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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA MARCO ANTONIO DE SOUZA BRITO AMBIENTES, PRÁTICAS DE PESCA E TERRITORIALIDADE NO USO DO LAGO GRANDE DE MANACAPURU (AM) Manaus Amazonas 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

MARCO ANTONIO DE SOUZA BRITO

AMBIENTES, PRÁTICAS DE PESCA E TERRITORIALIDADE NO

USO DO LAGO GRANDE DE MANACAPURU (AM)

Manaus – Amazonas

2010

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MARCO ANTONIO DE SOUZA BRITO

AMBIENTES, PRÁTICAS DE PESCA E TERRITORIALIDADE NO

USO DO LAGO GRANDE DE MANACAPURU (AM)

Dissertação de Mestrado apresentado ao

Programa de Pós-graduação em

Sociologia da Universidade Federal do

Amazonas, como requisito para a

obtenção do grau de Mestre em

Sociologia.

ORIENTADOR: PROF. DR. ANTONIO CARLOS WITKOSKI

Manaus – Amazonas

2010

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(Catalogação realizada pela Biblioteca Central da UFAM)

B862a

Brito, Marco Antonio de Souza

Ambientes, práticas de pesca e territorialidade no uso do Lago

Grande de Manacapuru (AM) / Marco Antonio de Souza Brito. -

Manaus: UFAM, 2010.

179 f.; il. color.

Dissertação (Mestrado em Sociologia) –– Universidade Federal

do Amazonas, 2010.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Witkoski

1. Pesca de subsistência - Amazônia 2. Pescadores – Amazônia –

Condições sociais 3. Territórios de pesca 4. Conhecimentos

tradicionais I. Witkoski, Antonio Carlos II. Universidade Federal do

Amazonas III. Título

CDU 639.2.05(811.5)(043.3)

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MARCO ANTONIO DE SOUZA BRITO

AMBIENTES, PRÁTICAS DE PESCA E TERRITORIALIDADE NO USO DO

LAGO GRANDE DE MANACAPURU (AM)

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Sociologia da

Universidade Federal do Amazonas,

como requisito para a obtenção do grau

de Mestre em Sociologia.

BANCA EXAMINADORA

PROF. DR. ANTONIO CARLOS WITKOSKI

Programa de Pós-graduação em Sociologia - UFAM

PROFª. DRª. LÚCIA DA COSTA FERREIRA

Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais - UNICAMP

PROF. DR. MANOEL DE JESUS MASULO DA CRUZ

Programa de Pós-graduação em Geografia - UFAM

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AGRADECIMENTOS

A Agradeço à FAPEAM – Fundo de Amparo à Pesquisa na Amazônia – pela bolsa

de estudo concedida. À Universidade Federal do Amazonas pela realização das atividades

do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS / UFAM.

Aos ribeirinhos e pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de

Cima pela minha inserção no mundo da pesca. Sou eternamente grato pelos seus

ensinamentos.

Ao professor Dr. Antonio Carlos Witkoski pelo esforço, dedicação e

comprometimento ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, e com mesmo empenho e

paciência nos momentos de orientação desse trabalho, que foi desde o empréstimo de vários

livros, perpassando pelas idéias e elaboração de formulários de pesquisa e pelas discussões

coletivas envolvendo o grupo de pesquisa por ele organizado – projeto PPG7.

Aos colegas de pesquisa do projeto rede BASPA / PPG7 pelos ensinamentos e

esclarecimentos sobre o tema principal da pesquisa: “recursos pesqueiros”. Especialmente

ao Sérgio (Serginho), à Suzy C. P. Silva, ao Pedro Rapozo e ao Raniere Garcez pelo apoio

intelectual e produção dos gráficos inseridos neste trabalho.

Aos professores Henrique do S. Pereira, Márcia R. Calderipe e Manoel de J. Masulo

da Cruz pela leitura, críticas e colaborações dadas a este trabalho.

Aos meus pais, que mesmo à distância me deram e dão total apoio, carinho e boas

energias. Ao meu tio César, Giane e família pelo apoio incondicional em minha formação

acadêmica e, acima de tudo pela afetividade e solidariedade. Sou eternamente Grato. À

Kariny Texeira de Souza, minha companheira de todas as horas, de amor e paciência no dia

a dia de nossas vidas.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS /UFAM) pelo

incentivo e apoio intelectual durante este período de nossa formação. As aulas e as trocas de

idéias em sala de aula foram valiosas. Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em

Sociologia, obrigado pelo companheirismo e apoio intelectual.

Agradeço aos amigos do NUSEC / UFAM pela amizade profissional e lazer de todas

as horas, em especial à professora Therezinha de Jesus Pinto Fraxe pelos ensinamentos,

oportunidade e apoio intelectual.

Aos professores visitantes do nosso Programa de Pós-Graduação em Sociologia,

somos gratos pela participação e incentivo ao início desse compromisso social e acadêmico.

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À memória de meu avô Pedro Lobato Brito

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RESUMO

Este trabalho aborda as práticas de pesca e a territorialidade dos pescadores de subsistência e

pescadores comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima no uso

do lago Grande de Manacapuru (AM). O estudo realizado a partir das fases do ciclo

hidrológico da região (enchente/cheia/vazante/seca) ressaltou a importância do

conhecimento dos pescadores como a dimensão por excelência das práticas de pesca que

viabilizam, por intermédio de práticas tradicionais, o manejo e a conservação da natureza –

dos peixes e seus habitats. Na ocasião das atividades, verificou-se que o ponto de pesca mais

praticado é o lanço de igapó, local “bom” de captura, sendo também o momento da

aprendizagem das crianças a serem socializadas na atividade pesqueira. Acompanhando as

rotinas de trabalho, observou-se que o lago Grande e o Paraná do Anamã são lugares

aquáticos vitais para estas localidades, pois não secam totalmente em períodos de estiagem

(seca). Este fato permitiu compreender os acordos informais subjacentes às práticas de

pesca, bem como identificar os principais conflitos e as “possíveis iniciativas locais” de

intervenção na apropriação desses e de outros ambientes e seus recursos, com base nos

interesses e necessidades das próprias localidades.

Palavras-chave: Conhecimento; Práticas de pesca; território de pesca.

.

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ABSTRACT

This works approach about the subsistence and commercial fishermen’s fishery practice and

territoriality from the Cajazeira, Jaiteua de Baixo and Jaiteua de Cima localities at the

Manacapuru Big Lake (Amazon). This study was realized starting in the regional

hydrological cycle (rising/flood/receding/dry) and shows the importance of fishermen

knowledge as a Excellency dimension for the fishery practice that was possible due to its be

intermediated by the traditional practice, management and the environment conservation –

fish and its habitats. During the fisheries practice, was verified that the fisheries sector more

used was the lanço de igapó, good place for fish capture, be came also the learning time

from kids that was socialized with fisheries activities. Accompany the works routine we

observed that the Manacapuru Big Lake and the Paraná do Anamã were the vital aquatic

places for these localities, because these fisheries place does not dry completely during the

dry season. This fact permit us to understand the informal agreements congruent with the

fisheries practice, as well to identify the main fisheries conflicts and the possible local

initiative for interventions the appropriation of the fisheries environment and other

resources, based on localities interest and needs.

Key word: knowledge; fishery practice; fishery territory

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Localização do rio Manacapuru e do lago Grande............................. 20

Figura 2 – Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – Cajazeira ......... 21

Figura 3 – Comunidade Nossa Senhora Aparecida – Cajazeira. ......................... 22

Figura 4 – Comunidade Santo Antonio – Jaiteua de Baixo................................. 22

Figura 5 – Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – Jaiteua de Cima 23

Figura 6 – Comunidade Santa Izabel– Jaiteua de Cima ...................................... 24

Figura 7 – Comunidade Assembleia de Deus Tradicional – Jaiteua de Cima .... 25

Figura 8 – Comunidade Assembleia de Deus – Jaiteua de Cima ........................ 25

Figura 9 – Mapa da área de estudo: comunidades participantes da pesquisa ...... 26

Figura 10 – Paisagem do lago Grande de Manacapuru ......................................... 32

Figura 11 – Paisagem do Igarapé da Cajazeira no período da seca........................ 34

Figura 12 – a) Terraço que geralmente inunda; b) Terraços possíveis de

inundação dependendo da intensidade da cheia (espacialidade e

volume) ..............................................................................................

36

Figura 13 – Terra alta: lugar possível de inundação ............................................. 37

Figura 14 – O lago Grande: entremeado por ilhas. ............................................... 39

Figura 15 – Imagem de satélite do lago Grande de Manacapuru: período da seca

/ 2005; Período cheia / 2007...............................................................

42

Figura 16 – O igapó ............................................................................................... 44

Figura 17 – a) Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro; b) Comunidade

Nossa Senhora Aparecida -- Cajazeira .........................

51

Figura 18 – a) Cajazeira: período da seca; b) Cajazeira: período da cheia........... 54

Figura 19 – a) transporte; b) pontes; c) varadouros; d) cacimbas ......................... 56

Figura 20 – O calendário das atividades produtivas. ............................................ 57

Figura 21 – Produção de farinha........................................................................... 58

Figura 22 – O período da seca em Jaiteua de Baixo............................................. 61

Figura 23 – Cacimba ............................................................................................ 64

Figura 24 – Trapiche: lugar para lavar utensílios domésticos e ponte improvisada 65

Figura 25 – O calendário das atividades produtivas em Jaiteua de Baixo ............ 65

Figura 26 – Paraná do Tauari no período da seca ................................................. 68

Figura 27 – Paraná do Seringa no período da seca ............................................... 69

Figura 28 – Território da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

sujeito à inundação. Jaiteua de Cima .................................................

70

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Figura 29 – Ponte improvisada .............................................................................. 72

Figura 30 – Calendário das atividades produtivas realizadas em Jaiteua de Cima 72

Figura 31 – O roçado em Cajazeira ....................................................................... 95

Figura 32 – Pescadores citadinos .......................................................................... 103

Figura 33 – Preparo de um lanço (floresta alagada): época da seca ...................... 115

Figura 34 – Pesca no lanço (floresta alagada): época da enchente ........................ 116

Figura 35 – Preparo de um lanço de terra firme: época da seca ............................ 121

Figura 36 – Preparo e atuação da pesca de lanço de terra firme no lago São

Lourenço, Manacapuru ......................................................................

122

Figura 37 – Perfil da malha, instrumentos de confecção de malhadeiras e

malhadeiras coloridas ........................................................................

126

Figura 38 – Peixe preso na tramalha ..................................................................... 127

Figura 39 – Caniços ............................................................................................... 128

Figura 40 – Composição do arco e flecha; 2) flecha montada; 3) partes físicas da

flecha azagainha; 4) ilustração da montagem; 4) o pescador

manuseando-a ....................................................................................

128

Figura 41 – O arpão. Da esquerda para direita: 1) tipos de arpão; 2) haste e

manuseio; 3) arpoeira; 4) ponteira perfurante do arpão; 5) orifício de

encaixe da ponteira .............................................................................

129

Figura 42 – Pontos de desmatamento às margens do igarapé da Cajazeira .......... 152

Figura 43 – Imagem de satélite do lago Grande – cheia ........................................ 178

Figura 44 – Imagem de satélite do lago Grande – seca ......................................... 179

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Cajazeira.

Enchente: o melhor preço do pescado e média dificuldade de

captura; Vazante/Seca: períodos de maior fartura e captura em

quantidade de pescado. Pescado barato ..............................................

53

Gráfico 2 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de

Baixo. Enchente: o melhor preço do pescado no mercado, porém de

difícil captura; Vazante/Seca: períodos de maior fartura, facilidade

de captura em quantidade de pescado, porém preço barato no

mercado ..............................................................................................

62

Gráfico 3 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de

Cima. Enchente: melhor preço do pescado no mercado e relativa

facilidade de captura; Vazante/Seca: períodos de maior fartura,

facilidade de captura em quantidade de pescado, porém preço barato

no mercado .........................................................................................

71

Gráfico 4 – Instituições religiosas ......................................................................... 87

Gráfico 5 – Pescadores de subsistência e pescadores comerciais .......................... 92

Gráfico 6 – Atividades criatórias ............................................................................ 96

Gráfico 7 – Peixes mais comercializados e capturados nos lanços de pesca ......... 119

Gráfico 8 – Apetrechos de pesca mais utilizados para pesca comercial e

subsistência .........................................................................................

125

Gráfico 9 – Territórios de pesca: Cajazeira. ........................................................... 144

Gráfico 10 – Apetrechos de pesca ............................................................................ 150

Gráfico 11 – Territórios de pesca. ............................................................................ 154

Gráfico 12 – Apetrechos de pesca ............................................................................ 159

Gráfico 13 – Territórios de pesca: Jaiteua de Baixo ................................................ 163

Gráfico 14 – Apetrechos de pesca. ........................................................................... 164

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Critérios para escolha das comunidades ............................................

19

Quadro 2 – Associações de comunidades ............................................................. 79

Quadro 3 – Nível de participação social e política na Colônia de Pescadores de

Manacapuru Z 9..................................................................................

82

Quadro 4 – Nível escolar........................................................................................ 85

Quadro 5 – O cultivo nos quintais das moradias em Cajazeira ............................ 96

Quadro 6 – Indicação dos elementos presentes na pesca do lanço ...................... 117

Quadro 7 – Critérios biológicos e ecológicos para confecção dos apetrechos de

pesca ..................................................................................................

123

Quadro 8 – Ambientes de pesca............................................................................ 141

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 14

CAPÍTULO I – A DINÂMICA ECOLÓGICA DO LAGO GRANDE DE

MANACAPURU .....................................................................................................

30

1.1 O lago Grande de Manacapuru ........................................................................... 31

1.2 O tempo ecológico do ciclo das águas nas localidades Cajazeira, Jaiteua de

Baixo e Jaiteua de Cima......................................................................................

45

1.2.1 Cajazeira ......................................................................................................... 49

1.2.2 Jaiteua de Baixo .............................................................................................. 60

1.2.3 Jaiteua de Cima .............................................................................................. 67

CAPÍTULO II – PESCADORES E PESCARIAS ............................................. 75

2.1 A vida comunitária dos pescadores e de suas famílias nas localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima .........................................................

76

2.2 A família do pecador como unidade de trabalho nas atividades produtivas ........ 88

2.3 Pescadores de subsistência, pescadores comerciais e “pescadores de fora” ..... 92

2.4 Reflexões sobre tempo ecológico e tempo social na pequena produção

mercantil simples .......................................................................................................

104

2.5 A pesca no lanço: o conhecimento básico para o manejo da pesca de

subsistência e pesca comercial .................................................................................

110

2.6 Apetrechos de pesca .......................................................................................... 123

CAPÍTULO III – TERRITÓRIOS DE PESCA NO USO DO LAGO

GRANDE DE MANACAPURU ...........................................................................

132

3.1 A noção de território de pesca ......................................................................... 133

3.2 Territórios de pesca e as relações sociais estabelecidas ................................... 138

3.2.1 Cajazeira .......................................................................................................... 143

3.2.2 Jaiteua de Cima ............................................................................................... 154

3.2.3 Jaiteua de Baixo............................................................................................... 162

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 166

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 170

ANEXO ................................................................................................................... 177

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INTRODUÇÃO

O estudo objetivou identificar e compreender as práticas de pesca e as

territorialidades dos usuários dos recursos ictiofaunísticos do lago Grande de Manacapuru, a

partir de agentes sociais estabelecidos em três localidades rurais do município de

Manacapuru (AM): Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. A caracterização espacial

(física) do lago Grande Manacapuru também compôs os objetivos da pesquisa.

Para esclarecimento do leitor, o termo localidade para cada um dos nomes acima, e

apenas como condição operacional da pesquisa, refere-se aos locais onde estão estabelecidas

as comunidades ribeirinhas situadas nas proximidades das margens do lago Grande de

Manacapuru. Os nomes dados às localidades são de autoria dos moradores e convencionado

historicamente por eles, cuja forma de classificação ou nomeação do local de moradia não

consta nas definições do IBGE1 ou em mapas (na época do estudo exploratório) de

identificação de bairros ou assentamentos do município de Manacapuru. O principal

referencial geográfico dado às localidades por trabalhadores do Terminal Pesqueiro2 de

Manacapuru, era de estarem próximas ao lago Grande de Manacapuru ou identificadas por

comunidades próximas à sede do município. A comunidade Nossa Senhora das Graças, por

exemplo, situada às margens do rio Solimões e área focal dos estudos do PIATAM3 / UFAM

cedeu informações sobre a localização e identificação das lideranças dessas localidades.

A importância da pesca na Amazônia é antiga e fundamental para a economia das

populações ribeirinhas (BATISTA et al., 2004). A pesca comercial e a pesca de subsistência

são, sem dúvida, as principais atividades aquática da várzea, onde a maior parte dos

moradores pescam por meio período ou em tempo integral. Portanto, o peixe é a principal

fonte de proteína e de renda (BARTHEM et al., 1995; ALMEIDA et al., 2006). Bayley &

Petrere Jr. (1989) estimaram que em 1980 cerca de 61% do total de capturas do Estado do

Amazonas (125,665 t) era de origem do mercado local e das pescarias de subsistência.

O lago Grande de Manacapuru é uma região de alto potencial pesqueiro onde os

moradores e pescadores utilizam o pescado para o consumo e para abastecer os mercados

locais e de outros municípios. O volume de pescado comercializado no mercado de

Manacapuru é considerado o terceiro maior do Estado do Amazonas, depois de Manaus e

1 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

2 Este terminal pesqueiro flutuante fica atracado na beira do Rio Solimões, em frente à cidade de Manacapuru e

recebe o pescado vindo de embarcações maiores conhecidos localmente como motores de pesca. Furtado

(1993) reconhece como barcos geleiros. 3 Projeto Inteligência Socioambiental Estratégica da Indústria de Petróleo na Amazônia – PIATAM.

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Tabatinga (RUFFINO et al., 2004). A maior parte desse pescado é proveniente da pesca de

subsistência e comercial realizada nos lagos do sistema lago Grande de Manacapuru e rio

Solimões.

Diante deste contexto de intensificação da pesca mercantil realizada no lago Grande

Manacapuru, a problemática da pesquisa sugere se a experiência de vida, as práticas de

pesca e a territorialidade dos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e

Jaiteua de Cima podem ser pensados como elementos culturais de iniciativas para o manejo

racional dos recursos pesqueiros. Esta hipótese parte do princípio que é preciso entender que

as culturas tradicionais possuem singularidades por se desenvolverem como forma de

produção mercantil simples onde não prevalece a acumulação capitalista em grande escala,

já que o uso da força de trabalho assalariado é reduzido e as atividades econômicas são de

pequena escala. A combinação das atividades econômicas para garantir a subsistência

(agricultura, pesca e extrativismo) com o uso de tecnologias simples, de pouco impacto

ambiental e de forte identificação entre os grupos sociais em razão de sua cultura,

contribuem para as possibilidades do manejo racional dos recursos pesqueiros (DIEGUES,

1983).

Deste modo, trabalhamos com comunidades rurais que se apropriam dos ambientes

aquáticos e terrestres para aquisição dos seus meios de vida. Não se tratando

necessariamente de comunidades de pescadores.

O conceito de territorialidade utilizado na pesquisa se configura como um importante

referencial para entender o esforço coletivo dos pescadores das localidades Cajazeira,

Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima em usar, ocupar e controlar parcela específica de seu

meio social e biofísico – os pontos de pesca –, e com ela se identificar, convertendo-a em

seu território – território muitas vezes bem delimitado e conflitante (LITTLE, 2002). Neste

estudo, subjaz à noção de territorialidade, o conhecimento e as ações dos pescadores ao se

apropriarem dos recursos ictiofaunísticos do lago Grande de Manacapuru, necessários à

manutenção do seu modo de vida.

As motivações da pesquisa, num período anterior ao estudo, surgiu do meu interesse

associado às motivações de um grupo de professores da Universidade Federal do Amazonas4

4 Esta pesquisa foi coordenada pela profª. Dra. Therezinha de Jesus Pinto Fraxe e pelo prof. Dr. Antônio Carlos

Witkoski (NUSEC/UFAM). Este projeto fez parte de um projeto interdisciplinar chamado Bases Para

Sustentabilidade da Pesca na Amazônia Central (BASPA) e constituído de outros projetos sub-redes sob

coordenação dos seguintes pesquisadores e respectivos projetos: Prof. Dr. Alexandre Almir Ferreira Rivas –

Estimativa de Valor de Não-Uso de Recursos Ambientais na Região do Lago de Manacapuru (AM); Prof. Dr.

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(UFAM), interessados em estabelecer uma proposta de manejo e uso coletivo de recursos

comum (nesse caso, recursos pesqueiros), envolvendo as comunidade ribeirinhas e os

pescadores da sede de Manacapuru e de outras áreas vizinhas que utilizavam o lago Grande

de Manacapuru.

As hipóteses para a intenção do manejo para as comunidades ribeirinhas no âmbito

do lago Grande de Manacapuru, partiram dos pesquisadores tendo como fundamento a

sobrepesca de algumas espécies da ictiofauna deste complexo, como é o caso do tambaqui

(Colossoma macropomum) e do tucunaré (Cichla monoculus), o primeiro, já em condição de

sobrepesca, e o último, próximo desta condição como previsto por Soares (et al., 2008).

Para levar adiante esta proposta, os professores coletivamente elaboraram um projeto

interdisciplinar chamado BASPA – Bases Para a Sustentabilidade da Pesca na Amazônia –,

um projeto “guarda chuva” (amplo) envolvendo algumas disciplinas acadêmicas, tais como

biologia, engenharia de pesca, economia e sociologia. Este projeto foi financiado pelo

PPG75 em parceria com MCT/CNPq.

Eu, na condição de aluno de graduação e bolsista de iniciação científica, fiquei

interessado em participar da pesquisa, tendo como orientador o Prof. Dr. Antonio Carlos

Witkoski, sob o projeto “O caboclo ribeirinho e as modalidade de pesca no uso do lago

Grande de Manacapuru”.

Metodologia

A pesquisa de campo foi realizada por meio do método etnográfico. A opção pela

etnografia teve como propósito converter o observador em parte da observação, na medida

em que reinterpreta as representações sociais dos informantes, através do enfoque

interpretativo desses atores sobre o fato ou fenômeno interpretado e compreendido pelo

Carlos Edwar de Carvalho Freitas – Estratégias de Manejo Pesqueiro na Amazônia; Profª. Dra. Maria Gercília

Mota Soares – Biologia e Ecologia de Peixes de Lago de Várzea: subsídios para conservação e uso dos

recursos pesqueiros da Amazônia; Prof. Dr. Antônio José Inhamuns da Silva – Manejo Tecnológico Racional

do Pescado em Comunidades Rurais no Estado do Amazonas; Prof. Dr. Miguel Petrere Jr. – Manejo em Lagos

de Várzea Utilizando Modelos de Produção;

5 O Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil - PPG7 é uma ação conjunta do governo

brasileiro, da sociedade civil brasileira e da comunidade internacional, visando à conservação das florestas

tropicais do Brasil. Entre os subprogramas que compõem o Programa Piloto, o Subprograma de Ciência e

Tecnologia - SPC&T Fase II tem como objetivo promover e disseminar, de forma coordenada, pesquisas

científicas e tecnológicas em áreas relevantes do conhecimento, visando contribuir para a conservação e o

desenvolvimento sustentável da Região Amazônica.

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pescador. Ou seja, “transformar” o “exótico” (o pouco conhecido ou o diferente) em

“familiar” (em conhecimento) (DAMATTA, 1987).

Geertz (1989) percebe o trabalho etnográfico sob a seguinte perspectiva:

Fazer a etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado,

cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários

tendenciosos, escritos não com os sinais convencionais do som, mas com

exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1989, p.

20).

O estudo etnográfico se revela um método de observação eficaz, pois pela

intensidade do trabalho de campo permite apreender os significados das práticas e

representações sociais, ou seja, “começamos com as nossas próprias interpretações do que

pretendem nossos informantes ou que achamos que eles pretendem, e depois passamos a

sistematizá-las para melhor compreendê-las” (GEERTZ, 1989, p. 7).

Para Geertz (1989) o trabalho etnográfico enfrenta as seguintes dificuldades:

“[o exercício etnográfico envolve] uma multiplicidade de estruturas

conceptuais complexas, sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são

simultaneamente estranhas, irregulares e implícitas, e que ele [o

etnográfico] tem que, de alguma forma, primeiro apreender [o fenômeno] e

depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis da atividade do seu

trabalho de campo (p. 7).

Nessa perspectiva etnográfica é que focalizamos, por exemplo, os aspectos sociais na

pesca de lanço e as regras sociais estabelecidas em seu uso pelos pescadores das localidades

pesquisadas.

Área de estudo

O município de Manacapuru está localizado na 7ª Sub-Região na região dos rios

Negro – Solimões, com altitude de 34 m acima do mar, tendo uma área territorial 7.602 km²

(Biblioteca Virtual do Amazonas, 2007). O acesso a Manacapuru pode ser via rodovia,

através da estrada Manuel Urbano AM-070 que liga o município à cidade de Manaus. O

acesso pode ser feito também por via fluvial através do rio Solimões. Manacapuru se

encontra distante de Manaus por via terrestre a 85 km e por via fluvial a 102 Km.

Nessa região está situado o lago Grande de Manacapuru. Esse lago é caracterizado

pela flutuação do nível das águas com cerca de 10 m, os quais resultam em períodos de cheia

e seca bem definidos (FREITAS & GARCEZ, 2004). É formado por uma rede de ambientes

aquáticos que se conectam ou se separam durante as fases do ciclo hidrológico

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(enchente/cheia/vazante/seca), por canais, lagos, furos, igarapés, paranás e restingas que

formam uma grande área de várzea. Essas áreas são habitadas por grande variedade de

espécies de peixes migradoras e residentes (FREITAS & GARCEZ, 2004), sendo por isso,

de interesse amplo para a pesca comercial regional.

As principais atividades do setor primário no município de Manacapuru se

encontram, em sua maioria, na zona rural. Entre elas, destacam-se, como produção de

várzea, a agricultura da mandioca, juta, milho, feijão e hortaliças em geral. E na produção da

fruticultura, destacam-se o cultivo do maracujá, cupuaçu, mamão, abacaxi, banana e abacate.

O extrativismo vegetal ainda é uma atividade de grande significado para a economia local

através da exploração de produtos, tais como, a borracha, a pupunha e a madeira. A pecuária

se destaca pela criação de bovinos, equinos e suínos.

No município, também, executam-se atividades de avicultura, principalmente a

criação de galinhas de postura destinadas ao consumo local e, parte do excedente, vendido

aos municípios vizinhos. A atividade pesqueira apresenta forte desempenho, destacando-se

pela alta rentabilidade. Dentre as espécies mais populares e consumidas, destacam-se o pacu,

a sardinha, o curimatã, a branquinha, o matrinxã, o acari-bodó e peixes lisos em geral. A

piscicultura (criação de peixes em cativeiro) é uma das atividades em crescimento no setor

pesqueiro local, havendo a existência de viveiros de algumas espécies, tais como, o

tambaqui e o pirarucu; espécies saborosas pela qualidade e textura da carne, sendo muito

apreciados pelas redes de restaurantes em geral, redes de hotéis e redes de supermercados.

As qualidades destas espécies agregam alto valor de rentabilidade e o público consumidor,

mais frequentes são clientes da classe média e alta (BIBLIOTECA VIRTUAL DO

AMAZONAS, 2007).

De acordo com Vandick Batista et al., (2004), embora, nesta área, já tenham sido

criados pesqueiros reais desde o século XVII, e houvesse ocorrido movimentos migratórios

relacionados ao extrativismo da borracha desde o século XIX, a pesca no rio Solimões até a

década de 1960 era considerada de baixa exploração em decorrência da pequena densidade

populacional existente nas cidades da Amazônia brasileira em geral, principalmente na

Amazônia Central – região de Manacapuru e cidades vizinhas. Porém essa situação foi

transformada significativamente a partir dos projetos desenvolvimentistas implementados

pelo governo federal (a Zona Franca de Manaus e Projetos de Assentamentos Rurais) a partir

da segunda metade da década de 1960 (século XX) em diante, na região (KOHLHEPP, 1984

apud BATISTA et al., 2004). Como conseqüência ocorreu um grande aumento demográfico

na área urbana de Manacapuru, e principalmente em Manaus e cidades vizinhas, exigindo,

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como desdobramento, o aumento e investimentos em novas forças produtivas (adicionais às

já existentes), tais como: compra de novas tecnologias de pesca – barcos movidos a diesel,

redes de pesca, construção de frigoríficos – e, consequentemente, exigindo mais mão de

obra, isto é, mais pescadores com dedicação exclusiva.

Na ocasião da pesquisa, somam-se cerca de 20 mil pescadores profissionais lotados

em Manaus e em diversas cidades do interior do estado do Amazonas, atividade profissional

exercida predominante pela população ribeirinha (BATISTA et al, 2004). Em Manacapuru

são 2.300 pescadores associados à Colônia de Pescadores Z9 (instituição que organiza e

regulamente a atividade de pesca) acrescidos também de outros pescadores que não são

associados às Colônias de Pescadores.

Diante dessa nova realidade social, a pesca no município de Manacapuru é o reflexo

do processo de capitalização do setor pesqueiro, incentivada principalmente pela cidade de

Manaus, o maior consumidor de pescado; lembrando que boa parte da produção de pescado

é destinada para outros estados brasileiros, principalmente, os da região Sudeste e também

para outros países.

Para a seleção das comunidades (distribuídas nas três localidades) a serem

envolvidas na pesquisa, tomaram-se por base, os critérios definidos no workshop PPG7,

realizado em Manaus no dia 28 de Maio de 2006. Esse workshop foi realizado pelas equipes

(coordenadores e pesquisadores) do projeto BASPA que, por sua vez, foram responsáveis

pela execução dos projetos sub-redes que constituem o primeiro. Na ocasião do evento,

foram colocadas algumas questões comuns e peculiares a todas as equipes. Algumas dessas

questões faziam a seguinte referência: 1) critérios de escolha das comunidades; 2) o

planejamento das viagens a campo; e 3) a aplicação conjunta dos instrumentos de coleta de

dados. No decorrer do evento, foram abordados alguns critérios para a seleção das

comunidades. Esses critérios foram baseados em aspectos espaciais (geográficos),

ecológicos e socioeconômicos (Quadro 1).

Aspectos/Variáveis

Espacial Atividade econômica N. de Famílias

Comunidade próxima da cidade de

Manacapuru

Comunidades que não atuam

intensamente na pesca comercial

Comunidade intermediária à cidade

de Manacapuru

Comunidades em transição na

pesca comercial

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Comunidade distante da cidade de

Manacapuru

Comunidades que atuam

intensamente na pesca

comercial

Entre 15 a 30 famílias

Quadro 1 – Critérios para escolha das comunidades.

Fonte: Relatório do Workshop PPG7, Maio (2006).

A primeira pesquisa de campo foi realizada quase no final do primeiro semestre de

2006, mais precisamente no período de 26 a 29 de maio. A viagem teve como objetivo,

através do estudo exploratório, o reconhecimento das comunidades situadas em áreas de

influência do lago Grande, lago São Lourenço e rio Manacapuru. As equipes da sub-rede

saíram de Manaus no dia 26 de maio, às 21:00 h com destino à cidade de Manacapuru (sede

do município). Após a chegada, os coordenadores da excursão entraram em contato com o

Sr. Mureru, morador e proprietário de uma casa flutuante6 situada às margens do rio

Solimões, que os guiou pelo rio Manacapuru até a comunicação com a última comunidade

visitada (Figura 1).

Figura 1 – Localização do rio Manacapuru e do lago Grande.

Fonte: Imagem de Satélite Landsat, 2001.

.

Após o embarque do Sr. Moreru, o barco-pesquisa partiu do município de

Manacapuru, próximo ao principal terminal pesqueiro (recebimento e venda de pescado), em

6 Tipo de habitação comum nos ecossistemas de várzea baixa, construídos sobre prancha de madeira ou bóias

do tipo tronco de madeira de baixa densidade permitindo acompanhar o movimento das águas decorrente da

sazonalidade.

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direção aos locais da pesquisa. Assim, depois de algum tempo de viagem, a equipe se

deparou com a localidade denominada Cajazeira. Nesse local, visitamos a primeira

comunidade, então chamada Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e fizemos o contato com

Sr. Raimundo Corrêa da Silva, morador e líder comunitário. Ele nos repassou o quantitativo

de 15 famílias residentes na localidade e as principais atividades de trabalho baseadas na

agricultura e pesca de subsistência (Figura 2).

A segunda comunidade visitada, também estabelecida na mesma localidade, foi

Nossa Senhora Aparecida. A liderança local representada pelo Sr. José Delemir Dias da

Silva nos informou que a comunidade reunia cerca de 20 famílias e as principais atividades

de trabalho baseadas na agricultura e pesca de subsistência, característica muito semelhante

à comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, também influenciada pela proximidade

(Figura 3).

Figura 2 – Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro –

Cajazeira.

Fonte: Dados de campo (2006).

.

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Figura 3 – Comunidade Nossa Senhora Aparecida.

Fonte: Dados de campo (2006).

A terceira comunidade visitada foi Santo Antônio, estabelecida na localidade

denominada Jaiteua de Baixo. De acordo com os relatos do Sr. Abdias Monteiro, líder da

comunidade, a mesma reúne cerca de 20 famílias. Parte significativa das famílias se dedica

exclusivamente à pesca comercial, a outra parcela mantém suas atividades pesqueiras,

associadas às outras atividades, tais como, agricultura, extrativismo e atividades criatórias

(Figura 4).

A quarta comunidade visitada foi Nossa Senhora do Rosário. Neste local, residem

cerca de 25 famílias que realizam atividades criatórias de pequenos animais, tais como,

galinhas, porcos e poucas cabeças de gado e pescam apenas para subsistência. A liderança

Figura 4 – Comunidade Santo Antonio.

Fonte: Dados de campo (2006).

.

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da comunidade na época da visita não estava na comunidade. Então, o Sr. Francisco Rosano

Lopes Monteiro, morador da comunidade Santo Antônio (Jaiteua de Baixo) e ex-agente da

Secretaria de Desenvolvimento Sustentável – SDS – de Manacapuru foi solidário com

relação às informações acima explicitadas, acompanhando-nos também ao local.

A quinta comunidade visitada foi Boa Esperança, localizada em Jaiteua do Meio. Na

ocasião, não foi possível obter informações a respeito desta comunidade, pois o seu líder e a

maioria dos moradores estavam em comemoração festiva em outra comunidade não descrita

nesse trabalho. Mais uma vez, o Sr. Francisco Rosano Lopes Monteiro, morador da

comunidade Santo Antônio, mediou a comunicação com a comunidade, mas não pôde

prestar informações mais precisas sobre a mesma.

A sexta comunidade visitada foi Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, situada na

localidade Jaiteua de Cima. O líder comunitário, o Sr. Raimundo Martins Corrêa, nos

informou que nela residem aproximadamente 25 famílias. A produção econômica local está

baseada em atividades de pesca, agricultura e criação de pequenos e médios animais. As

atividades são desempenhadas para a subsistência, mas parte significativa da produção se

destina à comercialização (Figura 5).

Figura 5 – Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Jaiteua de Cima.

Fonte: Dados de campo (2006).

A última comunidade visitada foi Nova Esperança, localizada no paraná do Ajará (na

área de influência direta do lago Grande), próxima às imediações do rio Solimões. O líder

comunitário, o Sr. José Lino Duarte dos Santos informou que as principais atividades

econômicas são a pesca comercial e a agricultura, havendo, também, a prática de atividades

criatórias – criação de gado. De acordo com os moradores, a comunidade utiliza cerca de

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seis lagos onde realizam a atividade pesqueira. Em razão da impossibilidade de acesso a esta

comunidade no período da seca e pelo fato de estar muito distante das demais, optou-se por

não incluí-la nesta pesquisa.

As comunidades Assembleia de Deus Tradicional, Assembleia de Deus e Santa

Isabel situadas na localidade Jaiteua de Cima, não descritas acima, não foram visitadas no

primeiro estudo exploratório. Porém, em trabalho de campo posterior falamos com os líderes

comunitários dessas comunidades. O Sr. Smith Tavares da Silva, líder da comunidade Santa

Isabel mencionou a existência de 30 famílias, que praticam a pesca mais para a subsistência,

tendo como atividade principal a agricultura e a criação de animais (Figura 6).

A Sra. Maria Vera Lúcia Custódio da Silva, líder da comunidade Assembleia de

Deus Tradicional informou sua convivência com 30 famílias dedicadas principalmente a

pesca comercial, seguida da agricultura e do extrativismo (Figura 7).

Figura 6 – Comunidade Santa Izabel – Jaiteua de Cima.

Fonte: Dados de campo (2006).

.

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Figura 7 – Comunidade Assembleia de Deus Tradicional. Jaiteua de Cima.

Fonte: Dados de campo (2006).

O Sr. Valdenir de Assis de Oliveira, líder da comunidade Assembleia de Deus,

afirmou que a comunidade tem aproximadamente 17 famílias, que se dedicam

fundamentalmente à agricultura e a pesca de subsistência (Figura 8).

Figura 8 – Comunidade Assembleia de Deus. Jaiteua de Cima.

Fonte: Dados de campo (2007).

As comunidades Nossa Senhora do Rosário e Nova Esperança, embora

apresentassem características importantes para a pesquisa, não foram incluídas neste

trabalho pelas dificuldades naturais de acesso durante o período da vazante, e mais difícil

ainda, na época da seca do ciclo hidrológico. A comunidade Boa Esperança não foi incluída

na pesquisa, porque estava em fase de agregação de moradores e reunindo na ocasião,

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apenas cinco famílias. As atividades de trabalho das famílias eram desempenhadas, na

maioria das vezes, em comunidades vizinhas.

Diante desse contexto e de acordo com os coordenadores dos projetos sub-redes

baseados nos critérios estabelecidos no Workshop PPG7, as unidades sociais (comunidades)

participantes da pesquisa foram as seguintes: 1) comunidades Nossa Senhora do Perpétuo

Socorro e Nossa Senhora Aparecida estabelecidas em Cajazeira (3°14'31.00"S /

60°45'58.00"O). Próxima desta, está a localidade Jaiteua de Baixo (3°15'50.02"S /

60°45'9.37"O), onde está estabelecida a única comunidade, cujo nome é Santo Antônio. E

por último, a localidade Jaiteua de Cima (3°15'2.34"S / 60°51'55.92"O) que reúne quatro

comunidades: Santa Izabel, Assembleia de Deus Tradicional, Assembleia de Deus e Nossa

Senhora do Perpétuo Socorro. E verificou-se que, dependendo do ponto de partida, a

distância destas localidades para a sede do município de Manacapuru pode variar de

aproximadamente 0:45 h/min de motor (barco/voadeira) na época da cheia e/ou até 2:00 h

(ou mais) na época da seca, navegando através do canal principal e por múltiplos atalhos –

furos, paranás e igarapés (Figura 9).

Figura 9 – Mapa da área de estudo: comunidades participantes da pesquisa.

Fonte: Imagem do Google Earth 2006, com modificações.

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Para a coleta de dados, trabalhamos com algumas técnicas de abordagem, tais como:

entrevistas abertas, formulários, mapas mentais, uso de GPS (georeferenciador de território),

câmera fotográfica, gravador de voz e diário de campo.

As entrevistas abertas são de natureza mais interativa, e permitiram tratar de temas

mais complexos que dificilmente poderiam ser investigados adequadamente, através de

formulários ou questionários (MINAYO, 2004).

Em torno de 14 (dez) entrevistas abertas foram realizadas com os chefes de famílias,

principalmente pescadores comerciais. Mas, nesse quantitaivo, incluiram-se entrevistas com

mulheres responsáveis integralmente pelo lar (3 donas de casa) e 3 (três) idosos. Nas

entrevistas, abordamos assuntos relativos ao manejo da pesca (conhecimentos e práticas), as

principais motivações/necessidades e os principais problemas enfrentados na atividadade

pesqueira em seus contextos de trabalho. A vida em comunidade, a história social das

famílias, a dificuldade financeira, as alternativas de trabalho e a contextualização das

especificidades socioambientais de cada localidade também foram abordadas.

Os formulários (MINAYO, 2004) foram aplicados às famílias, considerando como

critério, os agentes sociais que vivem exclusivamente ou quase exclusivamente da renda do

pescado e/ou aqueles agentes sociais que se consideraram pescadores comerciais;

geralmente chefes de famílias ou filhos mais velhos e, em determinadas situações, as

mulheres quando consideradas responsáveis pela família do ponto de vista financeiro ou do

provimento dos meios materiais de vida.

Os dados obtidos para composição dos gráficos foram originados do formulário

BASPA, cujo conteúdo se refere a perguntas, quadros e tabelas pertinentes aos aspectos da

prática da pesca (etnoconhecimento, etnoconservação dos recursos pesqueiros e dados

socioeconômico) em relação direta com as fases do ciclo hidrológico da região – enchente,

cheia, vazante e seca.

Este formulário coletou dados para as equipes sub-redes – ecologia de peixes,

biologia, socioeconomia e tecnologia do pescado – para facilitar a necessária compreensão e

interdependência entre áreas do conhecimento, permitindo assim a leitura mais ampla dos

processos culturais e materiais relacionando homem e natureza.

100% dos dados obtidos nos formulários BASPA expressam o quantitativo de 64

unidades aplicadas, isto é, abrangeu a expectativa de 40,7% do total de famílias existentes

nas localidades. De todos os gráficos elaborados, alguns correspondem, por exemplo, aos

ambientes de pesca mais utilizados pelos pescadores de subsistência e pescadores comerciais

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das localidades, porém, os ambientes que foram mencionados de maneira esparsa não foram

apresentados nos gráficos.

Em barco alugado pelos coordenadores dos projetos sub-redes, as excursões

interdisciplinares para área de estudo foram realizadas mensalmente durante doze (12)

meses. Em seguida, realizadas bimestralmente totalizando dezoito (18) meses. O tempo de

excursão em cada ida a campo era de cinco (5) dias e máximo de dois (2) dias em cada

localidade, sendo necessário visitar todas as comunidades e suas respectivas lideranças.

Parcela significativa das excursões (sete viagens aproximadamente) foram destinadas à

aplicação dos formulários BASPA.

Utilizamos a observação participante, que permitiu descrever nos cadernos de campo

as observações in loco. Cardoso de Oliveira (2000) afirma que o ato de escrever o caderno

de campo é tarefa diária – no final do dia – após visitas aos grupos domésticos, uma vez que

o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar, é um caminho metodológico que marca o

fazer antropológico.

O capítulo I – A dinâmica ecológica do lago Grande de Manacapuru propõe a

descrição espacial do lago a partir da literatura especializada associada à percepção dos

pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. A percepção dos

pescadores se refere ao conceito de representação social de Serge Mocovici (2003), que

sugere que a representação social é uma forma de conhecimento que expressa a experiência

de vida de qualquer grupo social. O relato de cada pescador acerca experiência de vida na

várzea, demonstra que as variações sazonais do lago Grande de Manacapuru interfere,

diretamente, em suas rotinas de trabalho exigindo atitudes adaptativas diante da escassez de

recursos.

O capítulo 2 – Pescadores e Pescarias deu ênfase à organização social dos

pescadores das localidades pesquisadas. Os conceitos de Lourdes Furtado (1993) – pescador

polivalente e pescador monovalente –, nos apoiou ao entendimento dos papéis sociais dos

pescadores de subsistência, pescadores comerciais e pescadores citadinos dadas às

peculiaridades e similaridades (ou seja, o que há de comum) de suas rotinas de trabalho. Este

capítulo abordou o conhecimento do pescador sobre o manejo e a conservação dos recursos

ictiofaunísticos. Na ocasião das atividades de pesca, verificou-se que a técnica de pesca mais

praticada nas localidades é o lanço, local “bom de pescaria”, sendo também o momento da

aprendizagem das crianças a serem socializadas na atividade pesqueira.

O capítulo 3 – Territórios de pesca no uso do lago Grande de Manacapuru objetivou

mapear os principais pontos de pesca e verificar as condutas territoriais dos pescadores das

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localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima a partir de seus próprios discursos.

Acompanhando as rotinas de trabalho dos pescadores, verificou-se que o lago Grande, o

lago do Jaiteua e o paraná do Anamã são pesqueiros vitais para estas localidades. Este fato

permitiu compreender os acordos informais subjacentes às práticas de pesca, bem como

identificar os principais conflitos e as possíveis iniciativas locais de intervenção na

apropriação desses e de outros ambientes e seus recursos, com base nos interesses e

necessidades das próprias localidades.

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CAPÍTULO I

A DINÂMICA ECOLÓGICA DO LAGO GRANDE DE

MANACAPURU

O uso do lago Grande de Manacapuru enquanto espaço aquático para pesca, revela

os processos de interação entre o homem e o ambiente. Este capítulo aborda a caracterização

espacial do lago Grande de Manacapuru a partir da literatura científica referente à dinâmica

do ciclo das águas da várzea amazônica, articulada à percepção e ao conhecimento

(experiência) dos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima

sobre as implicações do ciclo das águas em seu cotidiano.

Este exercício demonstra que as alterações paisagísticas ocorridas nas localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima como resultado do recuo da água do lago

Grande de Manacapuru (correspondente a fase terrestre da várzea), incide sobre os

territórios de pesca das localidades, exigindo mais esforço de trabalho e ajuste social a nova

realidade.

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Os pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima

evidenciaram relatos sobre a dinâmica do ciclo das águas demonstrando como esse

fenômeno repercute em suas vidas. Serge Mocovici (2003) diz que o senso comum – a

experiência de vida – é uma forma de conhecimento, é uma representação social que se tem

da realidade. O autor afirma:

[...] A representação social é tudo aquilo que nos permite explicar o mundo

que nos cerca. [...] as representações sociais devem ser entendidas

articulando elementos afetivos, racionais e sociais, e integrando, ao lado da

cognição, da linguagem e da comunicação, a consideração das relações

sociais que afetam as representações (MOSCOVICI, 2003, p.6).

Nesta perspectiva de Serge Mocovici (2003) é que apresentaremos a espacialidade do

lago Grande de Manacapuru na perspectiva dos pescadores das localidades pesquisadas.

1.1 O lago Grande de Manacapuru

Saindo do principal terminal pesqueiro de Manacapuru e percorrendo o rio Solimões

até se conectar ao lago Grande, visualiza-se que o lago é um ambiente admirável pela sua

abrangência. Quem percorre seu leito de “voadeira7” inevitavelmente percebe a

espacialidade e o volume de água que abarca, e logo em seguida, vem à mente de um

simples observador interessado pela pesca a imediata dedução: “aqui parece ter muito

peixe”.

Numa ocasião, em trabalho de campo, solicitei ao senhor Lázaro, pescador comercial

da localidade Jaiteua de Cima, se ele poderia me levar para dar uma volta e apresentar o lago

Grande. Ele aceitou a proposta e logo em seguida nos preparamos para o passeio. Nesse

caminho, fui indagando sobre onde iniciara o lago Grande e onde terminara, ele respondeu:

“[...] o lago Grande começa lá “fora” e chega até aqui. Aqui é o lago do Jaiteua que a gente

chama” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).

Depois de uns trinta minutos percorrendo o lago Grande, resolvemos retornar.

Percebi que o caminho de volta para a localidade Jaiteua de Cima não foi o mesmo. Do

caminho anterior partimos de Jaiteua de Cima, passando pelo Paraná do Tauari, que é um

canal extenso, ligando-se diretamente ao lago do Jaiteua até chegar ao lago Grande.

Certamente fiquei confuso, pois o que eu estava visualizado como lago do Jaiteua não era

7 A “voadeira” é uma embarcação metálica e motorizada de pequeno porte utilizada como meio de transporte

em ambientes aquáticos da Amazônia.

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apenas um lago extenso e longo, ele se coadunava com pequenas ilhas arborizadas e

caminhos diversos parecendo labirintos, que ele chamava ora de igarapé, ora de furo e as

vezes, de paraná ou paranazinho.

De volta à localidade, desembarcamos da rabeta8, e ele então me disse: “o lago

Grande aqui pra nós é tudo isso que você viu” [...]“a várzea aqui pra nós é essa mistura de

coisa, e quando aqui tá seco, muda tudo. Tudo ao redor de casa vira um campo maior onde

os bois e as vacas podem pastá mais livre” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima,

2007) (Figura 10).

Figura 10 – Paisagem do lago Grande de Manacapuru.

Fonte: Dados de campo (2007).

Não se limitando a falar da importância da dimensão abrangente do lago Grande em

seu dia a dia, a várzea que o senhor Lázaro descreve como ocorrência de períodos de cheia

outrora períodos de seca, é percebida pela sua experiência como situação de limites e

possibilidades para a realização de suas atividades de trabalho. Como esclarece Pereira

(2007, p. 12):

“A alternância das fases terrestres e aquáticas devido às variações do nível

do rio é um fator ecológico limitante para a vida nos ambientes de várzea

8 A rabeta, como denominada pelos pescadores das localidades pesquisadas, é uma canoa motorizada utilizada

para transporte e atividades de trabalho.

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do rio Solimões-Amazonas. Esta dinâmica tem conseqüências

fundamentais sobre as formas de vegetação que nela ocorre e sobre a

distribuição das espécies. Sejam as formações totalmente aquáticas ou

vegetações florestais, elas se instalam segundo o tipo de hábitat, idade dos

solos, taxa de sedimentação, força da corrente [do rio] e o período de

inundação”.

A alternância das fases terrestres e aquáticas na percepção do senhor Lázaro,

significa que ele vivencia o tempo ecológico determinado pelo ciclo das águas. Com base

neste tempo ecológico que se interpenetra ao tempo social expressos pelas representações

sociais dos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima,

primeiramente discorreremos sobre as características físicas do lago Grande de Manacapuru,

para, em seguida, entendê-lo como espaço de mobilidade espacial dos pescadores, que se

apropriam deste lago e dos microambientes para a manutenção e reprodução material e

social de sua existência.

Na perspectiva da ciência geomorfologica, o lago Grande de Manacapuru é um lago

de várzea. Como descrito por Ayres (1995) e Sternberg (1998), a várzea e a terra firme

compõem a planície amazônica formando a maior bacia sedimentar da Terra. Ela abarca

uma área que perfaz seis milhões de km2, dos quais 3,9 milhões de km

2 se encontram em

território brasileiro – o que significa 65,0% da área total.

A várzea produzida pelo rio Solimões-Amazonas corresponde aproximadamente de

1,5 a 2% do território da Amazônia brasileira (variando de 75 a 150 mil km

aproximadamente), constrastando em vários aspectos com a maior parte da região

constituída de terras secas e altas, denominadas de terra firme como destaca Pereira (2007).

O lago Grande, assim como os demais lagos da várzea amazônica, são corpos de

água transbordados do canal principal do rio por ocasião da enchente, que podem

permanecem cheios, parcialmente cheios ou temporariamente isolados da água do rio

Solimões no período da seca (SIOLI, 1984). Nesse ciclo de transformação, como uma

espécie de “retorno das águas”, o rio Solimões se insere como coletor final do complexo

sistema de drenagem formado pelos inúmeros afluentes: os igarapés, os paranás, os igapós e

os pequenos rios.

De acordo com Esteves (1985) e Junk (1997) citados por Fabré (2003, p. 88),

“a dinâmica de inundação que caracteriza a várzea amazônica traz como

consequência a formação de diversos ambientes, a maioria temporários

como os lagos de planície de inundação, pertencentes à categoria de lagos

formados pela atividade do rio. [...] Para Junk a proposta mais

compreensiva para lidar com áreas inundáveis é o conceito de pulso de

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inundação. Este conceito leva em conta tanto os aspectos hidrológicos do

rio e da área de captação da bacia de drenagem quanto das áreas

inundáveis. O conceito de pulso propõe que o rio Solimões e a área de

inundação constituem um sistema que atua como uma unidade indivisível,

porque possuem água e sedimentos em comum. Dentro dessas áreas podem

ser identificados tanto habitats permanentes como habitats temporários,

periodicamente expostos à inundação com o avanço e retrocesso das

águas”.

Esta explicação descrita por Fabré condiz com o efeito causado pelo recuo da água

do lago Grande no período da seca do ciclo das águas, ao reduzir as águas dos igarapés e

furos das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, “transformado-os”9, em

determinados lugares, num imenso campo verde ou lamacento (Figura 11).

Figura 11 – Paisagem do Igarapé da Cajazeira no período da seca.

Fonte: Dados de campo (2007).

Pereira (2007) considera os lagos importantes fontes de recursos para a manutenção

das comunidades amazônicas. Os lagos são geralmente formados a partir de depressões

profundas ou rasas e podem ser alimentados na estação da seca por igarapés ou canais

oriundos da floresta circundante, ou ainda, apresentarem conexão com o rio principal no

período da cheia.

Pereira (2007) chama atenção para a importância da formação geomorfológica dos

lagos de várzea ao mencionar que, entre as unidades geomorfológicas, tais como, planície de

9 Transformação no sentido de modificar a paisagem aquática para a uma paisagem seca.

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bancos e meandros antigos, planície de bancos e meandros atuais e depósitos estuarinos, a

quarta denominação que caracteriza a área do lago Grande de Manacapuru, é a unidade

geomorfológica denominada de depósitos de inundação.

“os depósitos de inundação estão frequentemente em altura maior que a

planície de bancos e, em algumas partes, formando verdadeiros terraços e,

em outras, formando áreas deprimidas, semeadas de grandes lagos,

provavelmente afundadas por fenômenos neotectônicos (PEREIRA, 2007,

p. 26).

Os depósitos de inundação compõem a planície de inundação chamada de várzea

amazônica. Estes depósitos produzem trechos alteados ou elevados chamados pelos

moradores das localidades como várzea alta.

Os pescadores das localidades Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo explicam a várzea

alta como uma área de transição entre várzea e terra firme. As chamadas “terras altas” como

os moradores das localidades explicam, constituem porções de várzea que são relativamente

alagadas na estação da cheia e se elevam em direção à terra firme.

Porro (1998) faz uma distinção para classificar a várzea alta e várzea baixa. Segundo

o autor, a várzea alta se refere ao ecossistema que se localiza próximo ao rio resultante de

maior deposição de sedimentos ao longo do tempo, enquanto a várzea baixa é a porção de

terra mais recuada, recortada por igarapés, lagos temporários e permanentes.

Morán (1990) sugere que o processo de fragmentação da várzea, ao classificá-la,

pode conduzir a uma noção errada acerca do seu potencial biológico ou agrícola. Segundo o

autor, as diferenças significativas entre os tipos de várzea envolvem a flora, a fauna, o

aluvião depositado, o declive e a altitude, a acidez do solo e a reprodução de biomassa.

A fala do pescador da localidade Jaiteua de Cima esclarece a noção transitória que

percebemos nas localidades Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo acerca do que Porro (1998)

indica como várzea baixa e várzea alta (Figura 12):

“[...] onde a gente vive a cheia às vezes pode ser um problema. Olha, essa

várzea aqui do Jaiteua, as terras que a gente vive ficam um pouco mais alta,

e vai crescendo até chegar na terra firme mesmo, essa aí pra trás. Algumas

pontas da terra são mais altas, e quando vem pra comunidade ela vai

alteando, mas se dé uma cheia forte a nossa terra pode fica debaixo

d”água” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).

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a)

b)

Figura 12 – a) Terraço que geralmente inunda; b) Terraços possíveis de inundação

dependendo da intensidade da cheia (espacialidade e volume).

Fonte: Dados de campo (2007).

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Em Cajazeira, a terra firme é mais mencionada pelos moradores como terra de

atividade agrícola, terra de coleta de produtos da floresta e terra para criação de gado. As

florestas de terra firme da Amazônia são os ecossistemas terrestres mais ricos em

diversidade de espécies na biosfera e com maior produção de biomassa vegetal, embora sua

riqueza biológica não seja em função da riqueza dos solos, ela resulta de sofisticados

sistemas de reciclagem de nutrientes e evolução das plantas adaptadas às condições químicas

do solo (MORÁN, 1990).

De acordo com os moradores, a terra firme é muito boa para o cultivo de vários

vegetais. Ela não chega a ser inundada pela enchente, porém os terrenos dos núcleos

comunitários onde estão estabelecidas as residências, poderão estar sujeitos a esta situação

dependendo da intensidade da cheia.

A explicação de Morán (1990) demonstra a riqueza da terra firme (Figura 13).

Porém o relato do senhor Abdias, morador da localidade Cajazeira, ajuda-nos a entender a

dinâmica aquática em sua região:

“[...] aqui onde nós moramos pode inundá, mas tudo depende da cheia, se

for forte ela pode chegar aqui é passar aí pra trás. É difícil acontece porque

tem que ser uma cheia forte. [...] a terra firme como a gente tava falando

fica aí pra trás. Lá é bom de planta, tem castanheira, tem muita vegetação

aí pra dentro” (A. S., pescador de subsistência, Cajazeira, 2008).

.

Figura 13 – Terra alta: lugar possível de inundação;

Fonte: Dados de campo (2007).

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A área do lago Grande de Manacapuru descrita pelo Sr. Lázaro no início da

apresentação é composta por diversos ambientes aquáticos, tais como igarapés, poços,

paranás, furos e pequenos e grandes lagos. Dentre estes, destacam-se o lago São Lourenço, o

lago Grande, o lago do Jaiteua, o paraná do Jaiteua e o paraná do Anamã, muito procurados

pelos pescadores das localidades Jaiteua de Baixo, Jaiteua de Cima e Cajazeira, pois

afirmam que estes ambientes apresentam abundância de recursos pesqueiros.

Para os moradores das localidades, esses ambientes apresentam certas

especificidades e recebem estes os nomes conforme suas conceituações, não havendo

fronteiras visuais tão demarcadas ao nosso entendimento para dizer que tal ambiente é um

lago. Os lagos Jaiteua e São Lourenço, conforme Soares (et al., 2008), integram um sistema

de lagos, incluindo o lago Grande conhecido também como lago Cabaliana. No

entendimento dos moradores das localidades, o lago do Jaiteua assim nomeado, é uma

extensão do lago Grande “separado” deste por uma série de ilhas próximas entre si e

próximos às terras altas de ocupação das moradias das localidades Jaiteua de Baixo e Jaiteua

de Cima.

Estas ilhas são ligadas entre si por furos e canais ou pelos caminhos de água, mais

conhecidos pelos moradores como, paranazinhos, entradas e bocas de lagos e igarapés,

conformando uma densa paisagem labiríntica, onde os peixes encontram condições

favoráveis ao desenvolvimento da vida – abrigo, alimentação e reprodução (Figura 14).

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.

Figura 14 – O lago Grande: entremeado por ilhas.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

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Esses lagos e microambientes interligados fazem parte do Complexo lacustre que

forma o lago Grande de Manacapuru, constituído por lagos, paranás, furos e igarapés com

área estimada em torno de 420 km2 (SOARES, et al., 2008).

Na perspectiva liminológica, o lago Grande de Manacapuru, de acordo com o estudo

de Soares (2008, et al., 2008), possue água mista, ou seja, recebe água branca do rio

Solimões/Amazonas principalmente na enchente-cheia, através de canais de conexões e,

água preta proveniente do rio Manacapuru que alimenta o sistema principalmente nas épocas

de vazante-seca. Apesar do sistema receber água com duas características distintas (branca e

preta) o ambiente é caracterizado como de água branca segundo a classificação de Sioli

(1984), com altos valores de pH e de condutividade elétrica.

Na enchente e cheia a água apresenta elevadas concentrações de íons e com grande

quantidade de sedimentos. Os sedimentos da água do rio Solimões/Amazonas que aflui para

os lagos por canais de conexão são retidos, grande parte, pela vegetação (macrófitas

aquáticas, capins flutuantes e arbustos) e depositada na área alagada, o que da um aspecto de

água preta, principalmente na cheia e vazante. Em decorrência da flutuação sazonal do nível

das águas, o lago têm importante papel associado à produtividade e a variabilidade de

habitats. A água aberta e a floresta alagada (igapós), por exemplo, estão entre os ambientes

de pesca muito procurados pelos pescadores. Na água aberta, os pescadores pescam na parte

mais profunda, no canal, nas margens, próximos a entrada ou bocas de furos, igarapés e

paranás do lago Grande. Nas florestas alagadas10

que dominam a paisagem do lago, os

pescadores de subsistência e comercial, pescam no período de alagação, enchente e cheia,

sob as arbóreas, o tambaqui (Colossoma macropomum) e a pirapitinga (Piaractus

brachypomus); e às margens da floresta, o tucunaré (Cichla spp.).

Fabré (2003) em estudo anterior a Soares (et al.; 2008) se aproxima da conceituação

proposta por este – complexo lacustre –, ao mencionar que os lagos amazônicos cumprem

um papel fundamental no processo de disponibilização de matéria orgânica da dinâmica das

áreas inundáveis, tornando-se assim um ambiente de grande importância para a pesca de

autoconsumo e comercial.

10

“A floresta alagada é importante habitat para a ictiofauna por fornecer uma cadeia alimentar de origem

alóctone que pode manter alta biomassa de peixes. Isto está relacionado à habilidade dos peixes de explorarem

os alimentos disponíveis como folhas, flores, sementes e invertebrados, que caem das árvores na água, e dos

detritos oriundos da decomposição da matéria orgânica” (GOULDING, 1980; CLARO, Jr., 2003 apud

SOARES, et al., 2003).

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Na área focal do estudo realizado pelo PYRÁ11

, a autora identificou com base no

diálogo e no conhecimento tradicional dos pescadores dessa área, três grandes ambientes,

denominados-os de sistemas lacustres12

: o Sistema Lacustre Paracuuba/Jacaré, o Sistema

Lacustre do Cururu e o Sistema Redondo, sendo três sistemas inundados sazonalmente pelo

rio Solimões. Ao entorno do Sistema Redondo, foi identificado o lago Grande de

Manacapuru – um lago de várzea –, porém não estudado diretamente pelo programa PYRÁ

na época da realização da pesquisa.

É importante salientar que os três sistemas lacustres estudados pelo PYRÁ, para

quem parte de Manacapuru, estão situados próximos à margem direita do rio Solimões-

Amazonas, e opostos ao lago Grande de Manacapuru que está situado em áreas alagáveis, à

esquerda do rio Solimões-Amazonas.

Diante destas abordagens teóricas acerca da composição liminológica do lago de

várzea, convém, com bases nos autores, face aos dados empíricos, “olhar” o lago Grande de

Manacapuru como um amplo sistema aquático constituído de microambientes tal como

entende os moradores das localidades pesquisadas (Figura 15).

11

PYRÁ – Programa Integrado de Recursos Aquáticos e da Várzea – foi coordenado pelos professores da

Universidade Federal do Amazonas, Nídia Noemi Fabré e Vandick da Silva Batista. Este programa se

caracterizou como um programa de pesquisa-ação atuante em comunidades ribeirinhas através de estudos

interdisciplinares concentrados em biologia de água doce, pesca e socioeconomia. O livro intitulado SAS:

Sistemas Abertos Sustentáveis: uma alternativa de gestão ambiental na Amazônia, resultou como proposta de

manejo integrado e participativo nos locais identificados por Fabré (2003) como sistema lacustre. 12

“A complexidade fisiocrática destas formações lacustres presentes na planície de inundação comunicadas

entre si ou com o rio, por furos, canais, igarapés, ou compondo uma grande superfície inundada na cheia, nos

leva a tratar este conjunto de ambientes aquáticos como sistemas lacustres cujos limites são menos precisos

durante o período de águas altas” (FABRÉ, 2003, p. 92).

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Os igarapés e os paranás também são considerados águas de trabalho pelos

pescadores. Witkoski (2007, p. 230) em seu conceito águas de trabalho, apoia-nos a refletir

sobre o modo e o local onde são realizadas as pescarias, esses ambientes são definidos

através do princípio de territorialidade. O autor esclarece:

Figura 15 – Imagem de satélite do lago Grande de Manacapuru: período da seca /

2005; Período cheia / 2007.

Fonte: Imagem cedida pelo IBAMA da Amazônia, 2009.

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“na visão de mundo do camponês amazônico que habitam a calha do rio

Solimões-Amazonas e áreas contíguas (paranás, igarapés, furos etc.), os

ambientes aquáticos amazônicos dividem-se em duas grandes unidades: os

rios são concebidos como território aquático público; os lagos são

compreendidos, quase sempre como territórios aquáticos coletivo. Os

camponeses dividem os lagos em três sub-unidades: lagos de procriação

(lagos sagrados, lagos santuários); lagos de manutenção (subsistência da

família camponesa); por fim e não menos importante, os lagos livres

(destinados a pesca comercial, dentro dos limites estabelecidos pela

legislação municipal e pelas comunidades). Podemos, pois, conceber as

duas grandes unidades – os rios e diferentes tipos de lagos – como águas

de trabalho. Assim as águas de trabalho são responsáveis pela maior parte

da produção de proteína animal necessária a vida camponesa.

Além dos rios e dos lagos mencionados por Witkoski (2007), os igarapés, segundo

Junk (1997), são originários de altas taxas de precipitação, de chuvas, o que contribui para

que exista uma rede muito densa de igarapés em áreas de várzea. O autor enfatiza que a

maioria das espécies de peixes comem alimentos – insetos terrestres, frutos, sementes e

outras espécies da natureza – não provenientes do próprio igarapé, mas sim, da floresta ao

longo do seu leito.

Outros ambientes de pesca são identificados na área de estudo a partir dos elementos

paisagísticos mencionados pelos pescadores das localidades: o “igapó”, por exemplo, é um

importante ambiente de pesca. Morán (1990) afirma que as florestas de igapó são áreas para

onde uma grande parte da fauna aquática dos principais rios procura refúgio na época da

enchente. As frutas produzidas pela vegetação arbórea dos igapós são a principal fonte de

alimentação de espécies de grande porte como o tambaqui.

Pereira (2007) esclarece a ocorrência de floresta de igapó a partir da topografia

ondulada da várzea atual, que é causada por diferenças na deposição de sedimentos devido à

migração lateral intermitente dos canais do rio. Isso permite entender o tipo de vegetação

originária nas localidades pesquisadas. Segundo o autor,

“A topografia se caracteriza pela atuação de diques laterais (restingas),

depressões de canais abandonados (baixios) e bacias lacustres (lagos),

fazendo que exista diferenças na drenagem dos solos e na duração das fases

terrestres e aquáticas entre os diferentes tipos de terrenos. Estas variações

na topografia se refletem em variações na vegetação do interior da ilha,

como por exemplo, a ocorrência de igapós (florestas inundáveis) no topo

da restinga, e desenvolvimento durante a fases terrestre de vegetação

herbácea com predominância de gramíneas nas áreas deprimidas”

(PEREIRA, 2007, p. 20).

Na área de estudo, podemos observar que os igapós são utilizados frequentemente

para pescaria nas três localidades, através da técnica do lanço que será apresentado no

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capítulo II. A aproximação com a residência é um fator de interesse para se pescar nesses

lugares, pois não gasta muito tempo e nem dinheiro com combustível, favorecendo a

economia do pescador (Figura 16).

Figura 16 – O igapó.

Fonte: Dados de campo (2008).

A espacialidade do lago Grande de Manacapuru aqui descrita é o espaço de

referencia adotado na pesquisa para entender a dinâmica de ação dos pescadores das

localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, uma vez que a pesca é exercida

em ambientes internos (de dentro), nos arredores (imediações) e distantes das localidades.

Todo raio de ação dos pescadores é considerado como um exercício realizado no

lago Grande de Manacapuru, e como é pronunciado pelos próprios pescadores, o lago

Grande é um território de todos os pescadores das localidades.

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1.2 O tempo ecológico do ciclo das águas nas localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e

Jaiteua de Cima

Após a apresentação das características físico-químicas e espaciais do lago Grande

Manacapuru, percebemos a importância de discorrer sobre os efeitos ecológicos da fase

terrestre e aquática da várzea no cotidiano dos pescadores das localidades e como reagem

diante deste fenômeno.

Ao conversar com o Senhor Abdias, pescador de subsistência e morador da

localidade Cajazeira, perguntei a ele se não estaria cansado de viver na várzea, enfrentando

esses períodos de cheia e seca, e se, caso morasse em Manaus ou em outro lugar que fosse

mais “urbano”, não seria melhor para ele e sua família. Ele respondeu:

“olha, [...] eu e minha família já estamos acostumado a viver com a seca e

a cheia brava. Nunca pensei viver em Manaus, porque a vida aqui é

melhor, é difícil mas é melhor. Eu ... viver em Manaus [...] ?, eu tive lá ano

passado pra passar no médico por causa da minha pressão, é muito calor,

não tem os igarapés como tem aqui e nem peixe como tem aqui todo

tempo. A gente que vive aqui conheçe a dificuldade, mas também nós

criamos nossa maneira de viver” (A. S.; pescador de subsistência,

Cajazeira, 2007).

Evans-Pritchard (2005) ajuda-nos a pensar que o interesse em viver em determinado

local depende das escolhas subjetivas e das motivações construídas historicamente pelo

indivíduo e seu grupo em um campo social de contradições e antagonismos com a sociedade

abrangente. As condições do ambiente também devem propiciar as possibilidades de vida.

O interesse pelo pescado nas localidades, combinado às condições naturais da várzea

– o ciclo das águas –, exige um determinado modo de vida dos moradores que se concretiza

através do trabalho e das técnicas de adaptabilidades ao meio, ações que foram observadas

por Witkoski (2007) e Pereira (2007) ao pesquisarem os camponeses amazônicos ou as

comunidades ribeirinhas, respectivamente.

Pritchard ao se referir sobre o tempo ecológico pensado pelos Nuer, observa que os

aspectos sociais e ecológicos pelos quais as estações climáticas são definidas, têm maior

clareza quando esclarecidos do ponto de vista do interlocutor – os próprios Nuer, moradores

da savana africana. Em nosso caso, o tempo ecológico e os aspectos climáticos são

expressões das representações sociais que os pescadores de subsistência e comerciais das

localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima fazem de seu meio envolvente –

das águas, das terras e das florestas de trabalho que dispõem na várzea (Witkoski, 2007).

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A dinâmica do ciclo das águas imprime o ritmo do tempo ecológico ao ritmo social

em todas as circunstâncias da vida dos pescadores. São as necessidades da água e as

variações no suprimento de alimentos que relativamente condicionam as mobilidades

espaciais dos pescadores em determinadas épocas do ano – da fase terrestre para a fase

aquática da várzea ou vice-versa –, exigindo, como ação, medidas preventivas e

compensatórias (PEREIRA, 2007) ante aos períodos de escassez e estresses produzidos

pelos extremos da seca e da cheia do ciclo das águas.

Estas ações preventivas e compensatórias orientadas sob a tomada de decisões dos

pescadores – com base na estrutura social e simbólica do núcleo familiar e das relações de

parentesco – são variáveis políticas e econômicas que propiciam alternativas de mudança,

adaptação e mobilidade espacial no ambiente de várzea.

Em outras palavras, o Sr. Abidias vive a importância da natureza no seu dia a dia e

vive as escolhas do seu núcleo familiar sobre o preceito da manutenção das relações sociais

estabelecidas. A posse e uso da terra, a garantia do uso dos lagos ou dos igarapés ou os

fatores econômicos são variações que têm como “pano de fundo” a manutenção das relações

sociais e dos papéis desempenhados por ele, sua família e pelos parentes em diálogo com a

comunidade e com a sociedade a que pertencemos e interagimos.

Lourdes Furtado (1993), no estudo a respeito dos pescadores polivalentes e

pescadores monovalentes realizado no Baixo Amazonas, chama a atenção para a importante

percepção espacial dos ribeirinhos sobre o tempo, indicando uma conotação mais ecológica

do que propriamente cronológica acerca do tempo em atividades pesqueiras, onde o homem

e natureza se relacionam dicotomicamente com a variação sazonal do rio. Nestas

circunstâncias, a organização do trabalho é pensada em sintonia com o tempo ecológico,

sugerindo que a organização social do trabalho orienta a vida dos pescadores motivados por

valores (simbolizações) relativos ao mundo natural e social, intermediando a reprodução e

atualização das formas de manejo dos recursos naturais.

Sobre a percepção dos pescadores e seu tempo de trabalho, Yi-Fu Tuan (1983), em

Topofilia, contribui enfatizando que a adaptabilidade humana em qualquer contexto e o

“ideal de natureza” dependem de fatores biológicos, psicológicos e sociais, sobre as quais a

cultural “imprime suas marcas”. Tuan não pensa o indivíduo desconecto do ambiente de

crescimento e socialização fora dos marcos da cultura. Ele pensa que, para nós, seres

humanos, a partir de um ambiente, a habilidade espacial precede o conhecimento espacial

(considerados fatores intrínsecos da percepção humana), pois antes de qualquer

conhecimento sólido sobre o espaço ou lugar que vivemos, a relação do indivíduo com o

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meio depende do desenvolvimento das percepções (da inteligência) humana que, por sua

vez, são estimulados pelos sentidos sócio-motores do indivíduo – o olfato, o paladar, a

visão, o tato e a postura – vivenciando um contexto geográfico, social.

Tais conexões mentais permitem as deduções para a formulação de novos

conhecimentos acerca da vida, do lugar e do espaço. Portanto o domínio do espaço

desconhecido da várzea só passe a ser o lugar de segurança dos pescadores quando intuído

todo o arcabouço mental para a produção de conhecimentos a serem empregados nesses

espaços. Assim, o conhecimento se faz de outros conhecimentos. O conhecimento dos

pescadores são mediados pela cultura da qual participam.

Emílio Morán (1990, p.26) se direciona na mesma perspectiva de Tuan (1983), ao

pensar os processos de adaptabilidade humana ao ambiente da várzea amazônica, processo

que ele chamou de adaptação reguladora. O autor explica:

“o ambiente é reconhecido pela percepção do indivíduo, mas somente parte

dessa percepção entre na cognição devido às estruturas ecológicas e

[sociais] que derivam da linguagem e das rotinas diárias do indivíduo em

sociedade. Tais estruturas também servem para avaliar o que entrou no

consciente. A partir daí se segue um processo de decisão na qual interagem

a avaliação com rotinas culturais baseadas em experiências anteriores. Daí

surge a decisão de fazer ou não alguma coisa que, por sua vez, será

influenciada pelas condições externas que passam a restringir a ação: [os

fatores ecológicos e as normativas sociais do grupo social a que o

indivíduo pertence].

O tempo ecológico que os pescadores das localidades internalizam de seu meio

envolvente reflete a representação social do uso direto e indireto das águas de trabalho. O

uso direto da água se refere ao conhecimento prático sobre o manuseio dos ambientes

aquáticos, por exemplo, dos recursos pesqueiros. O uso indireto da água, por sua vez, se

relaciona ao conhecimento prático acerca das atividades que dependem das condições de

existência da água: por exemplo, a água para o transporte, a água para o cultivo agrícola ou a

água para o uso doméstico.

Segundo Godelier (1984), na prática, o tempo ecológico e a representação social se

combinam intrinsecamente formando um “tipo ideal de natureza”, uma forma de

conhecimento do pescador que mediatiza as práticas culturais. Esse conhecimento permite

que o pescador tire maior proveito do lago Grande direta ou indiretamente durante as fases

terrestres e aquáticas da várzea.

Como observado, os moradores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua

de Cima se apropriam da água como um recurso vital para suas vidas. Vital, pois, agrega

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valores materiais e simbólicos que refletem os aspectos culturais do cotidiano de suas vidas

naquele local. O uso direto e indireto da água pelos moradores se concretiza em suas

práticas culturais, seja em atividades produtivas, no uso doméstico ou no lazer. Este

importante recurso se impõe naturalmente durante o ciclo anual das águas como um desafio

à reprodução social de suas vidas.

Para Carlos Bruni (1994), a água, ao longo da história da humanidade, é investida de

representações. O significado da água para os moradores das localidades expressa a essência

do que a mesma representa: a água como fonte de vida, esperança, liberdade, angústia

desespero e prazer.

Escritores como o paraense Leandro Tocantins (1968, p.281), em O rio comanda a

vida, explicita:

“[...] rio, sempre o rio, unido ao homem em associação quase mística [...]

Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do

pobre e do rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos

atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte

perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no valor

inexpressivo dos desertos. Esses oásis tornaram possível a conquista da

terra e asseguram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar

a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico.

Para o autor, o rio Solimões, para além do determinismo geográfico, tem um

significado dinâmico no contexto social das populações ribeirinhas da Amazônia, pois a

várzea produzida e renovada ano a ano pelo rio Solimões que age pelos seus afluentes

diretos e indiretos proporcionando as condições básicas da vida aos ribeirinhos da

Amazônia.

O fenômeno como o ciclo das águas deixa suas marcas no cotidiano dos pescadores

das localidades. A localidade Cajazeira que reúne as comunidades Nossa Senhora do

Perpétuo Socorro e Nossa Senhora Aparecida é determinada pelo fluxo aquático do lago São

Lourenço. A localidade Jaiteua de Baixo, onde está estabelecida a comunidade Santo

Antonio, e Jaiteua de Cima, que é composta por quatro comunidades: Santa Izabel,

Assembléia de Deus Tradicional, Assembléia de Deus e Nossa Senhora do Perpétuo

Socorro, são margeadas direta e indiretamente pelas águas do lago do Jaiteua e lago Grande,

respectivamente.

Diante deste amplo ecossistema envolvendo as três localidades, apresentaremos

algumas variáveis sociais, econômicas e adaptativas básicas, fundamentais na vida dos

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moradores das localidades as quais são conectadas e interdependentes ao tempo ecológico

do ciclo das águas.

1.2.1 Cajazeira

Numa conversa descontraída com o Sr. Abdias, pescador da localidade Cajazeira, ele

relatou que os três lagos juntos formam o lago Grande de Manacapuru, e quando a águas do

lago São Lourenço diminui, a pesca próxima de sua casa fica mais difícil. Ele assim relata:

“[...] o lago São Lourenço aqui pra nós é o lago da Cajazeira, mas tudo isso

que o Sr. tá vendo lá no Santo Antonio [Jaiteua de Baixo] e no Jaiteua [de

Cima] é o lago Grande que a gente considera, e que tudo mundo fala .[...]

Ali aquela área do lago do Jaiteua, pra comunidade Santo Antonio, ali é

uma fonte boa de pescaria. Nós vamos pra lá, nós vamos pelo furo da

Cajazeira. Pra comer a gente pega pra cá mesmo, no igarapé do Acari. Ele

vara desse lago lá pra dentro por isso tudo aí é fonte de pescaria. Não

carece se deslocar, só vamos pra lá quando queremos pegá um peixe de

qualidade melhor.

[...] e quando o lago vem secando assim no mês de agosto e setembro, tudo

começa a ficar ruim pra nós. Seca tudo aqui. Esse igarapé aqui fica só

lama. Pra pescá mesmo é só lá no meio do Jaiteua ou no lago Grande” (A.

S., pescador de subsistência, Cajazeira, 2007).

O Sr. Abdias é um morador antigo da localidade Cajazeira. Ele residente na

comunidade Nossa Senhora Aparecida e sabe como é viver as dificuldades na várzea durante

a fase terrestre, isto é, do período relativo à “estação-seca” do ciclo das águas. Como não

pesca mais comercialmente, as alternativas de renda da sua família são o salário da

aposentadoria, a pequena produção agrícola, os produtos extraídos e coletados da floresta e a

criação de pequenos animais realizada em seu sítio.

As dificuldades naturais que o ciclo das águas impõe a estas atividades, é a condição

que todos os moradores da localidade Cajazeira estão sujeitos em seu dia a dia. A pesca que

ele pratica em ambientes próximo de sua residência, como no igarapé da Cajazeira, é

basicamente para o consumo da família. Ele considera as melhores fases para pesca

comercial o período da enchente. Porém, no período da seca, ele não hesita em pescar em

lugares mais distantes, como geralmente ocorre ao se deslocar para o lago do Jaiteua: Ele

diz: “o peixe pra nós é muito importante aqui, é nossa energia” (A. S., pescador de

subsistência, Cajazeira, 2007).

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A comunidade Nossa Senhora Aparecida é vizinha da comunidade Nossa Senhora do

Perpétuo Socorro, estando separadas pelo igarapé da Cajazeira. Para quem entra em

Cajazeira, cujo acesso é apenas pela via fluvial através do lago São Lourenço, a primeira

comunidade – Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – está à margem esquerda do igarapé,

sendo a primeira a ser avistada ao entrar na localidade, e a segunda comunidade – Nossa

Senhora Aparecida – se situa um pouco mais adiante à margem direita do igarapé.

Como as duas comunidades estão muito próximas, a dimensão ecossistêmica é

praticamente a mesma. Tanto Nossa Senhora Aparecida quanto Perpétuo Socorro estão

estabelecidas nas partes mais altas da localidade, local que os moradores chamam de “terra

firme”. Essa posição é estratégica, pois se caracteriza pela necessidade de proteção face às

imposições da cheia do ciclo das águas. Em Cajazeira, a água só alcança a “terra firme” se

for uma cheia muito densa (Figura 17).

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a)

b)

Figura 17 – a) Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro; b) Comunidade

Nossa Senhora Aparecida – Cajazeira. Fonte: Dados de campo (2008).

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Segundo o Sr. Abdias, em janeiro, o lago São Lourenço começa receber água dos

rios Manacapuru e Solimões. Quatro meses depois, a água avançou gradualmente atingindo

outros microambientes no interior da localidade, o que melhora as possibilidades de uma

pesca de qualidade, seja para subsistência ou para comercialização.

O senhor Orney Corrêa, pescador comercial que mora na comunidade Nossa Senhora

do Perpétuo Socorro relatou que a vida na localidade, assim como a vida em qualquer

beirada, é difícil quando está seco, mas na cheia também não é fácil.

Conversando sobre o tempo da pesca ele afirma:

“[...] Rapaz a pesca fica difícil tanto quanto tá cheio e quando tá seco, os

dois tempos. Quando tá cheio o peixe espalha tudo. Num fica um no

beiradão, tem que ficá muito tempo pescando pra conseguir algum

pouquinho pra boia. [...] a pesca aqui no São Lourenço é bom nas beiras,

nas matas da beira. Agora quem faz lanço a pesca é no mais fundo onde

passa os cardumes. Na seca, é mais fácil pesca, porque o peixe fica junto

principalmente nos poços. Mas é difícil porque a gente tem que andar

muito até o Jaiteua, que é onde a gente costuma pescá também. [...] quando

tá enchendo é o melhor período pra pescá também, porque o peixe da mais

dinheiro, agente pesca aqui na área, no igarapé do Acari. [...] na cheia fica

mais difícil aqui pra nós porque o pessoal foi criando gado e desmatando

tudo, porque o capim é onde o peixe gosta de ficá e agora eles estão mais

longe foi afastando com o tempo do gado aqui” (O.C. S., pescador

comercial, Cajazeira, 2007).

Nos lagos São Lourenço e Jaiteua, a pesca ocorre em alguns pontos em períodos de

enchente, principalmente na parte mais profunda ou em suas margens, onde ocorre mais

vegetação. Segundo Soares (et al. 2008), a pesca em floresta alagada (locais dos igarapés e

igapós) é de interesse do pescador porque os peixes encontram as condições favoráveis para

alimentação e abrigo.

O senhor Orney Corrêa vive praticamente da renda da pesca. A pesca comercial

intensiva praticada pelos pescadores da localidade Cajazeira geralmente ocorre em

ambientes fora da localidade, como é o caso do uso do paraná do Anamã que ocorre de

agosto a outubro, período que a água recua drasticamente na localidade (vazante/seca). Este

fenômeno facilita as capturas, pois os peixes vão se confinando em locais mais profundos no

paraná – os poços como dizem os pescadores. O peixe, nesse período, pela grande oferta,

tem seu valor barateado no mercado pesqueiro de Manacapuru (Gráfico 1).

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0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

35,0

Enchente Cheia Vazante Seca

Melhor

A enchente é um período considerado bom para os pescadores, porque coincide datas

festivas anuais (por exemplo, a Semana Santa) com a melhor qualidade do peixe – peso e

tamanho – devido à fartura de alimentos encontrada nos igarapés e nos igapós (MORÁN,

1990; SOARES, et al., 2008). Estes dois fatores se coadunam para a melhor valorização do

pescado.

No entendimento do Sr. Orney, a várzea sempre teve seus momentos de fartura como

períodos de escassez. Porém o gado em sua opinião é um problema sério criado por “pessoas

de fora”, que compraram terras na localidade, desmatado-as, para servir de pastagem. Essa

prática não afeta apenas ele por ser pescador comercial, mas prejudica todos os moradores

da localidade, porque precisam do peixe como alimento básico e de “rápida aquisição”.

A seca se caracteriza pela ausência ou redução da chuva, sendo o calor intenso. A

descida do nível das águas começa em julho até atingir o nível mínimo em final de outubro.

A redução drástica da água do lago São Lourenço está associada à interrupção de alguns

canais que são conectados ao rio Manacapuru e ao rio Solimões, reduzindo gradualmente o

deslocamento fluvial. O igarapé da Cajazeira é diretamente afetado por esse processo

(Figura 18).

.

Gráfico 1 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Cajazeira. Enchente:

o melhor preço do pescado e média dificuldade de captura; Vazante/Seca: períodos de

maior fartura e captura em quantidade de pescado. Pescado barato.

Fonte: Dados de campo (2008).

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a)

Figura 18 – a) Cajazeira: período da seca; b) Cajazeira: período da cheia.

Fonte: Dados de campo (2008).

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Em Cajazeira, a mobilidade aquática através de embarcações como, canoas a remo,

rebetas, voadeiras, barcos-recreio e o barco-escola diminuem significativamente no período

da seca. A redução da água do lago São Lourenço implica a inconsistência aquática do

igarapé da Cajazeira, o quê torna o fenômeno um obstáculo natural que limita a travessia dos

pescadores até a margem do lago e para outros ambientes onde são realizadas as pescarias.

O transporte de produtos produzidos diminuem internamente, e a chegada de

produtos de fora através das embarcações reduzem significativamente devido a escassez de

água. A caminhada através de “varadouros” ou atalhos ocorre o ano todo, pois alguns

roçados ou “centros”, como localmente denominam, ficam em lugares relativamente

próximos, e outros, distantes das comunidades. Porém, o uso dos varadouros se constitui em

uma rotina mais intensa de caminhada nesta época para abreviar a distância dos lugares de

trabalho e das moradias até as margens do lago São Lourenço. Geralmente o acesso ao lago,

após o uso do varadouro, se dá através dos paranás onde as embarcações ficam a espera dos

pescadores e suas famílias para realizarem juntos a travessia até o lago.

Ao andar pelos varadouros, em virtude da severidade do percurso e dos obstáculos,

pular as cercas do gado, equilibrar-se em cima de troncos de árvores caídos e descer e subir

chavascal ou igapós são perigosos e desafios como relata os pescadores. Porém é uma

realidade a ser enfrentada e não abdicada, pois precisam dos alimentos básicos para manter a

existência: o peixe e outras fontes de proteína animal.

Com relação à água para o consumo humano, doméstico e animal, na estação da

seca, ela é coletada em poços abertos anualmente pelos pescadores denominando-os

localmente de cacimbas.

As cacimbas são abertas em áreas baixas ou médias com medidas suficientes de

largura e profundidade para se ter acesso a ela. A água é limpa e, frequentemente, as

cacimbas são abertas no olho d’água, no lençol freático. Cada grupo doméstico possui sua

própria cacimba, podendo também ocorrer o uso coletivo como acontece em Cajazeira. A

cacimba é rodeada de tábuas e cobertas com palhas para proteção, para os animais

domésticos não sujarem a água (Figura 19).

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Figura 19 – a) transporte; b) pontes; c) varadouros; d) cacimbas.

Fonte: Dados de campo (2008)

Henrique Pereira (2007) apoia-nos a pensar a vida dos pescadores e suas famílias, ao

apresentar duas classificações que visam contornar os problemas causados pela sazonalidade

dos recursos face às variações do ciclo das águas, que são 1) as medidas preventivas e 2) as

medidas compensatórias. O autor explica,

“As estratégias preventivas atuam em longo e a curto prazo e têm por

objetivo evitar a escassez relativa dos recursos. Entre as estratégias

preventivas de longo prazo, destacam-se a territorialidade e a conservação

dos recursos. Entre as estratégias de curto prazo destacam-se a

armazenagem de recursos e a armazenagem de créditos e valores.

Estratégias compensatórias são estratégias que visam lidar com escassez

dos recursos [...] que são inesperados ou de tal forma intensas, que

estratégias preventivas se tornam ineficazes. No caso dos ambientes de

várzea, a ocorrências de cheias anormais, ou seja, cuja intensidade e

(duração e volume) seja superior, representam esse tipo de estresse

ambiental mais intenso (PEREIRA, 2007, p. 19-20)”.

Com base nas contribuições do autor, verificamos que as noções de estratégia

preventivas e estratégias compensatórias são dimensões reais vividas pelas famílias dos

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pescadores em Cajazeira. Abaixo está descrito o calendário das atividades produtivas de

Cajazeira durante o tempo das fases terrestres e aquáticas da várzea, atestando a polivalencia

das atividades produtivas como medidas de sobrevivência e ao mesmo tempo preventivas

para evitar a escassez dos recursos (Figura 20).

Figura 20 – O calendário das atividades produtivas.

Fonte: Dados de campo (2008).

A pesca, por exemplo, como atividade principal do nosso estudo, ocorre o ano todo

em Cajazeira. Os ambientes de pesca internos e alguns próximos à localidade são protegidos

para a pesca de uso doméstico, sendo proibida a prática comercial. Sob essa lógica são

ambientes preservados e conservados para atender às expectativas das famílias em períodos

de possível escassez de recursos pesqueiros. Os acordos informais de pesca como

dispositivo “jurídico” expressam a territorialidade das famílias de pescadores mediante as

possibilidades de terem seus recursos ameaçados por práticas de pesca que não condizem

com a manutenção da subsistência das famílias. Deste modo, as práticas de conservação

mediante dispositivos jurídicos visualizam a manutenção dos recursos a médio e a longo

prazo.

A agricultura, a caça e o extrativismo também ocorrem o ano todo. Estas atividades

não foram abordadas com profundidade neste estudo.

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A prática da agricultura possui centralidade para os grupos domésticos da área de

estudo, ganhando maior expressão com a roça de mandioca. A constatação dessa prática não

é diferente de outras partes da Amazônia, onde pesquisas demonstram que o cultivo de

mandioca é a característica marcante do subsistema agrícola (NODA et al., 2001, 1997;

RIBEIRO & FABRÉ, 2003; FRAXE, 2000; WITKOSKI, 2007).

Observamos que a agricultura se divide em fases temporais ou ciclos – tempo do

preparo, tempo do cultivo e tempo da colheita – ao longo do ano quando praticada em “terra

firme” da localidade ou terra preta de índio como diz Porro (1998).

O plantio ocorre nos meses de agosto a setembro. A colheita ocorre de novembro em

diante. As principais espécies cultivadas observadas foram: a mandioca, o maracujá, a

banana e o milho.

A farinha como subproduto do roçado da mandioca (Manihot esculenta) é preparada

em fornos de farinha aquecidos com lenhas oriundas dos arredores dos roçados ou dos sítios.

Geralmente é produzida durante o período da enchente até meados do início da cheia. Após

preparada, parte da produção é destinada ao consumo, outra parte, à comercialização e uma

terceira parte, não necessariamente nesta ordem, é guardada como uma espécie de poupança

alimentar ou reserva destinada à venda quando adentra o período da seca do ciclo das águas

(Figura 21).

Figura 21 – Produção de Farinha.

Fonte: Dados de campo (2008).

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O extrativismo vegetal e animal ocorrem em tempos diferenciados. Em Cajazeira, tal

como ocorre em outras comunidades ribeirinhas amazônicas estudadas por Fraxe (2000) e

Witkoski (2007), os quintais ou os sítios trabalhados pelos pescadores e suas famílias

constituem a área ao redor de suas moradias, onde são cultivadas várias árvores frutíferas,

plantas medicinais, plantas ornamentais, os jiraus13

e a criação de animais.

A coleta de cupuaçu, castanha e açaí, por exemplo, ocorre em determinados períodos

do ano. Algumas quantidades são destinadas ao consumo, e outras, imediatamente

destinadas à comercialização. A renda obtida com a venda dos produtos é para o provimento

de produtos geralmente não produzidos na localidade tais como, açúcar e medicamentos.

A caça consiste numa atividade sazonal relevante como alternativa alimentar e fonte

de proteína animal (MORÁN, 1990). Além de ser uma atividade destinada à subsistência,

serve à sociabilidade masculina nos momentos de confraternização, não orientados pela

lógica do trabalho produtivo e rotineiro como a agricultura.

A caça, como extrativismo animal, é praticada sempre que possível e o ano todo. Não

há em Cajazeira um tempo demarcado para esta atividade, isso porque é praticada antes,

durante, entremeada ou após outras atividades as quais já sabemos: a pesca, as práticas

agrícola, o extrativismo vegetal e a criação de animais ou após os serviços gerais e

específicos realizados pelos agentes de saúde e profissões de ensino como ocorre na

localidade.

A criação de pequenos e grandes animais é frequente durante o ano. O investimento

numa pequena criação de gado bovino, por exemplo, funciona como uma forma segura de

poupança para provimentos futuros, pois estes animais podem sobreviver e crescer durante

os períodos de escassez (cheia) e, nos casos de necessidade extrema, o investimento pode ser

facilmente recuperado com o consumo ou a venda de animais (FRAXE, 2000; WITKOSKI,

2007; PEREIRA, 2007).

Ao discorrer sobre as práticas produtivas realizadas em Cajazeira, a manutenção e a

preservação dos ambientes de pesca e a conversão de parte dos produtos temporariamente

abundantes em uma poupança na forma de produtos não perecíveis e sua posterior troca por

produtos de primeira necessidade, facilitam a sobrevivência dos pescadores e suas famílias

durante o período da fase terrestre da várzea. Estas práticas, como indica Pereira (2007),

situam-se no âmbito das estratégicas preventivas a médio e a longo prazo.

13

Adaptações suspensas para o período da cheia do ciclo das águas destinas aos cultivos de determinados

vegetais.

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Esta dinâmica social quando praticada na várzea amazônica demonstra que a

temporalidade e a espacilidade do ciclo das águas são os fatores determinantes nas vidas dos

pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.

1.2.2 Jaiteua de Baixo

A comunidade Santo Antonio e algumas casas flutuantes que se consideram

pertencentes à própria comunidade, compõem a localidade Jaiteua de Baixo. Os moradores

por ocuparem as margens do “paranazinho do Santo Antonio”, vivenciam o recuo da água

desse ambiente no período da seca, pois o volume e a espacialidade do “paranazinho”

depende do fluxo de água do sistema maior que é proveniente do lago Grande de

Manacapuru.

Conversando com o Sr. Rondon Filho, pescador comercial, ele fala que a

comunidade tem vantagem de não ficar tão distante da água do “paranazinho” como

acontece com os igarapés das localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima. Isso porque, no

período da seca, a água diminui, mas não seca totalmente. Ele assim relata,

“[...] a seca pra nós aqui é difícil como em outras comunidades também. A

água fica mais suja aqui no beradão. O bom é que tem água branquinha que

sai do nosso terreno que serve pra beber e fazer tudo que precisa [...]. Eu

percebo uma coisa que é boa aqui, é que não fica seco como fica pro lado

da Cajazeira e do Jaiteua. Pra esses lugares, a seca é mais forte que aqui”

(F.R.F., pescador comercial, Jaiteua de Baixo, 2007).

Essa afirmação se aproxima com a questão topográfica explicada por Pereira (2007,

p. 20), ao dizer que “a topografia [o perfil do solo] ondulada da várzea é causada por

diferenças na deposição de sedimentos”. Essa diferença causou depressões e, ao mesmo

tempo, ondulações no terreno, o que torna as características ambientais de Santo Antonio

diferente das demais localidades. Isso permite afirmar que o paranazinho do Santo Antonio

não é raso em frente à comunidade, se ligando pelo canal diretamente com o paraná do

Jaiteua (Mãe do Rio, conforme o pescador) que permite o acúmulo de água por tempo

prolongado mesmo em períodos de seca (Figura 22).

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Figura 22 – O período da seca em Jaiteua de Baixo.

Fonte: Dados de campo (2008).

A pesca realizada pelos pescadores de Santo Antonio, quando praticada em

ambientes internos ou próximos à comunidade, têm uma dinâmica diferente em relação às

localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima. Conversando com o senhor Rondon Filho assim

esclarece:

“[...] A enchente é o pior período prá pesca porque aqui, quando enche, eu

tenho observado, aqui nós não temos lago na nossa região. O que nós

temos muito é ilha. O peixe tem facilidade em se transportar de um lugar

para outra ilha. Quando é lago como ali no Piranha, porque o pessoal pega

muito peixe lá, porque é lago e lá tem vários lagos. Tem lago porque tem a

restinga tão alta que não dá passagem pra beira do Solimões, e eles pegam

o peixe na beira da restinga.

Agora porque fica bom na seca pra nós, é por aqui é passagem de peixe, e

quando vem secando a tendência do peixe é baixar, e na passagem, a gente

sabendo bota a malhadeira lá [...].

Agora, pra certos lugares a enchente é melhor [...] o Terra Preta é bom, o

Belmiro, o furo do Bode [...] Na enchente é ruim pra nós e pra outros

lugares é bom. Em Cajazeira é melhor porque tem restinga alta. Uma época

dessa você não arpua um surubim aqui, porque não tem terra pra gente ver

ele; taí mas ninguém consegue vê. Ele está no fundo. Lá consegue pegar

porque tem beira pra ele ficar. Aqui não tem beira” (F.R.F., pescador

comercial, Jaiteua de Baixo, 2007).

O senhor Rondon Filho se refere ao conceito restinga alta para demonstrar que a

diferença no perfil do terreno em áreas de várzea ocorre de uma localidade para outra. Isso

significa que os lagos ou lagotes emergidos no período da seca próximos à sua comunidade,

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quando utilizados para pesca, têm uma dinâmica diferenciada em relação à fase aquática de

outros ambientes de pesca das localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima.

Ele demonstra que a “enchente” é o pior período para pescar em sua localidade. Este

fato que ocorre nos meses de fevereiro até abril equivale ao período de enchente para ele e

para as outras localidades, porém com a diferença de não ser um período bom para a sua

comunidade, mas sim, para as localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima (Gráfico 2).

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

Enchente Cheia Vazante Seca

Melhor

Esse conhecimento ecológico é importante porque as práticas de pesca podem ser

diferenciadas de um lugar para outro, fato que foi identificado por Batista (2003) e Fabré

(2003) ao caracterizarem os ambientes aquáticos conforme o destino da produção e o tipo

ecológico do ambiente manejado.

Fabré (2003, p. 54) ao mencionar algumas paisagens modificadas naturalmente para

se tornarem ambientes de pesca em outro, se refere à restinga alta da seguinte maneira:

“as restingas constituem longas faixas contínuas de terraços mais altas

(barrancos), denominadas regionalmente como “costa” [...] a restinga alta é

coberta pela floresta de várzea [...]. Durante a cheia esta floresta fica

totalmente inundada, sendo denominada localmente como igapó. A floresta

inundada não está distribuída sobre um relevo uniforme, principalmente

passada a área de restinga alta, apresenta um suave declive, que em

algumas áreas podem se acentuar, culminando com formações de baixadas

pantanosas: os chavascais”.

O tempo ecológico do ciclo das águas, como visto, é internalizado na observação da

formação física do ambiente. Porém, o tempo da movimentação dos peixes nos ambientes de

várzea é um conhecimento básico que os pescadores da comunidade internalizam desde a

Gráfico 2 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de Baixo.

Enchente: o melhor preço do pescado no mercado, porém de difícil captura;

Vazante/Seca: períodos de maior fartura, facilidade de captura em quantidade de

pescado, porém preço barato no mercado.

Fonte: Dados de campo (2008).

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infância em seu período de aprendizado. O senhor Rosano, pescador comercial da

comunidade Santo Antonio, assim observa o fenômeno da piracema:

“[...] a piracema vai do mês de Agosto a Setembro quando o rio vem

secando. Em outros lugares ela vai até Outubro e começa desde Julho. A

piracema é uma fase que baixa todas as qualidades de peixes em cardume,

vem saindo dos lagos e descendo do Solimões. Aí os peixes começam a

sair e quando tem a alagação que não seca muito, eles saem, mas quando

seca muito num dá pra sair não.

Depois deles saírem do Solimões, muitos deles sobem os afluentes, vão

enfrentando as cabeceiras, as corredeiras, vão subindo pros outros lagos

que ainda tem acesso, vão subindo o rio e muitos deles que sobem pro

Solimões retorna. Retorna pra desovar na água nova que entra nos pastos,

retorna pra desovar no Solimões e depois um bucado deles retorna pro seu

hábitat. No ano passado deu uma piracema muito grande de peixes, saiu

muito peixe, foram todas as qualidades de peixes na piracema [...] o pacu, a

sardinha, a branquinha, o jaraqui, o pelubim, a pescada” (F.R.L.M.,

pescador comercial, Jaiteua de Baixo, 2008).

A vazante é o período em que as água baixam. Nessa época, a pesca para lancear

cardumes migratórios é uma alternativa praticada por alguns pescadores comerciais da

comunidade. O IBAMA tem portarias que proíbem esta prática para determinadas espécies

de peixes, pois coincide com o período do defeso. Porém os pescadores direcionam as suas

capturas para as espécies que estão fora desta normativa prevista pelo IBAMA e pela

Colônia dos Pescadores de Manacapuru.

O tempo do ciclo das águas apresenta alguns fatores limitantes que reduzem

qualitativamente a base de subsistência dos moradores de Jaiteua de Baixo. O período da

seca amplia a jornada de trabalho, havendo a necessidade de adequar o corpo a nova

situação. Os caminhos aquáticos que antes eram realizados em canoa ou rabeta, agora são

realizados a pé. Caminhos que duravam alguns minutos a serem percorridos, agora levam

até hora ou horas.

A água como elemento necessário ao corpo humano, no período da seca, se torna

quase imprópria ao consumo devido o aumento do acúmulo de sedimentos e outras

partículas decorrente da redução da água nos igarapés e no próprio paranazinho do Santo

Antonio. “É difícil beber água barrenta” como diz os moradores da localidade.

Algumas alternativas são criadas para contornar a situação. A cacimba, como vimos

em Cajazeira, é uma alternativa utilizada em Santo Antonio. Alguns improvisos são feitos

próximos às residências através de equipamentos como, caixa d’água e cano PVC que

captam a água que sai do olho d’água descoberto. Segundo o senhor Rondon, a água de sua

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cacimba surge apenas no período da seca e próximo à sua moradia. Ela é limpa e boa para o

consumo. A água da cacimba é empregada para o uso doméstico em lavagem de louças e

outros utensílios caseiros. Os animais do seu sítio também consomem esta água (Figura 23).

A redução da água no período da seca, como vimos, minimiza o raio de ação dos

pescadores em Cajazeira. Em Jaiteua de Baixo, as áreas internas da comunidade exigem a

abertura de varadouros para ter acesso a determinados ambientes de pesca. Com a redução

da água, os trapiches construídos para embarque e desembarque de pessoas e produtos são

transportados de lugares rasos para a margem mais profunda do “paranazinho” do Santo

Antonio (Figura 24).

Figura 23 – Cacimba.

Fonte: Dados de campo (2008).

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A seguir, o calendário das atividades de trabalho reflete a polivalência dos moradores

da localidade Jaiteua de Baixo durante o ciclo anual das águas (Figura 25).

Figura 24 – Trapiche: lugar para lavar utensílios domésticos e ponte improvisada.

Fonte: Dados de campo (2008).

Figura 25 – O calendário das atividades produtivas em Jaiteua de Baixo.

Fonte: Dados de campo (2008).

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A pesca é a atividade forte da localidade, é uma atividade realizada o ano todo pelos

pescadores em ambientes internos, nos arredores e distantes da localidade. A vazante e a

seca, contrário de Cajazeira e Jaiteua de Cima, é o melhor período para a pesca interna e

próxima à localidade. Os motivos, como vimos, foram explicados acima por Pereira (2007) e

pelo sr. Rondon acerca das diferenças do relevo na formação topográfica e ecológica do

ambiente que diferem Santo Antonio das demais localidades.

Em linhas gerais, a pesca realizada na vazante e na seca para o destino comercial não

é a mesma coisa da pesca comercial realizada no período da enchente. Os motivos

relacionados aos fatores culturais, econômicos e naturais explicam a valorização do peixe no

período da enchente tal como ocorreu em Cajazeira.

A pesca praticada na vazante e seca produz uma fatura que decorre de maiores

concentrações de peixes em pontos específicos – poços, paranás (canais de rotas

migratórias), furos e pequenos lagos – nesse período. Porém a fartura no mercado é

consequência do maior número de pescadores comerciais atuando. Isso acarreta na visão dos

pescadores – demanda relativamente reduzida, oferta de pescado acentuado e o maior

número de pescadores – a redução significativa do preço do pescado, ou seja, o valor do

peixe mais barato.

Como a pesca nos ambientes internos e próximos de Jaiteua de Baixo são melhores

na vazante e seca, eles preferem atuar no período da vazante tendo em vista a captura dos

peixes migratórios (cardume) que percorrem os ambientes próximos à localidade. Na seca, o

senhor Rondon, por exemplo, prefere atuar na agricultura apenas para manter as condições

básicas de sua família, ou seja, ele não ganha dinheiro para algo além do que manter as

condições mínimas necessárias da família.

Ele retorna a pescaria comercial mais intensiva após o período da seca. Durante a

enchente, ele pratica a pesca comercial em ambientes mais distantes da localidade que

requer conhecimento e prática, pois é o momento que a pesca melhor remunera – como

vimos anteriormente.

A caça como extrativismo animal é praticada o ano todo, porém sem tempos

definidos claramente para isso. Ela ocorre concomitantemente às demais atividades,

dependendo basicamente do interesse do pescador ou do agricultor.

A agricultura é praticada o ano todo, porém orientada por intervalos compreendendo:

preparo da terra, cultivo e colheita. Esta atividade é praticada de maneira alternada à

pescaria dependo do interesse e da disponibilidade do pescador comercial. Para a pesca de

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subsistência, o tempo de trabalho destinado à agricultora ocorre, porém exigindo mais

disciplina e maior esforço do pescador ou agricultor.

Os quintais e os sítios constituem a área ao redor da residência do produtor (FRAXE,

2000). No sítio do Sr. Rondon, observamos o cultivo de árvores frutíferas, hortaliças e a

criação de pequenos e médios animais. No roçado, observamos o cultivo de milho, da

mandioca e da banana.

1.2.3 Jaiteua de Cima

A temporalidade e a espacialidade do ciclo das águas em Jaiteua Cima são fatores

dinâmicos e modificadores radicais da paisagem local. Como citado anteriormente, Jaiteua

de Cima reúne quatro comunidades: Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Assembleia de

Deus, Assembleia de Deus Tradicional e Santa Izabel.

O lago do Jaiteua, como adverte os pescadores, é uma fronteira demarcada

territorialmente pelos moradores da localidade para assegurar onde termina ou alcança o

paraná do Tauari em direção aos limites externos da localidade. O lago do Jaiteua como

intermediário entre o paraná do Tauari e o lago Grande é de uso coletivo e sujeito a

determinadas restrições de uso, principalmente no período da seca do ciclo das águas para o

controle da pesca comercial. O paraná do Tauarí, como ambiente interno da localidade, é de

uso exclusivamente doméstico.

A água proveniente do lago Grande alimenta o lago do Jaiteua e todo sistema de

igarapés e canais que cortam o interior e os terrenos de fundo da localidade. O paraná do

Tauari, no período da cheia, margeia e “unifica” fisicamente os territórios das comunidades

Assembléia de Deus, Assembléia de Deus Tradicional e Nossa Senhora do Perpétuo

Socorro. No período da seca a água recua significativamente restando em seus trechos

alguns caminhos de água que tendem a ficar mais densos quando próximos da entrada do

lago do Jaiteua (Figura 26).

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A comunidade Santa Izabel, embora esteja na mesma localidade, não é diretamente

determinada pela influência aquática do paraná do Tauari. Santa Izabel situa-se às margens

do paraná do Seringa. Este mantém confluência com o paraná do Tauari e com o lago do

Jaiteua no período da cheia. Na época da seca, o Seringa tem sua água reduzida

drasticamente e desta fase emerge as “cacaias” – os galhos retorcidas e submersos da época

da cheia – como tradicionalmente classificam, ficando um campo vasto que liga a

comunidade até a margem do paraná. O paraná do Seringa é um ambiente de uso doméstico,

sendo proibida a pesca comercial para qualquer pescador, seja morador de dentro ou de fora

da localidade durante todo o ano (Figura 27).

Figura 26 – Paraná do Tauari no período da seca.

Fonte: Dados de campo (2008).

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A dinâmica de abrangência da água do lago do Jaiteua, entendido na perspectiva dos

moradores como continuidade do lago Grande de Manacapuru, é, no período da cheia, um

fator limitante para a organização social da comunidade Assembleia de Deus e Nossa

Senhora do Perpétuo Socorro, porque parte do território das comunidades fica quase

totalmente submersa pela água nesse período.

O território da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro está distribuído em

dois seguimentos: o principal é o núcleo central da comunidade, o outro extrato reúne um

pequeno número de casas que ficam praticamente de frente à comunidade Assembleia de

Deus Tradicional. Este segundo extrato é o território da comunidade que está mais sujeito à

inundação pelo paraná do Tauari no período da cheia. A comunidade Assembleia de Deus

tem seu território também dividido em dois extratos, e dependendo da intensidade da cheia,

são totalmente sujeitos à inundação (Figura 28).

Figura 27 – Paraná do Seringa no período da seca.

Fonte: Dados de campo (2008).

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Conversando com o Senhor Lázaro, pescador comercial, indaguei sobre as condições

da pesca durante o período da cheia e da seca, ele explicou:

“[...] a cheia quando muito forte fica ruim pra pesca. Os peixes se enfiam

nesse igapó e pra pegar ele fica muito difícil, eles se espalham. Já na seca é

bom pesca no paraná do Anamã, porque tem muito peixe, lá o que tem

mais é poço e os peixes acabam ficando tudo lá quando começa a secá.

Mas as vezes tem conflito porque é muita gente pescando pra vende. Lá é

um lago bom pra pesca, porque lá tem poço na seca e os peixes reune tudo

lá quando sai daqui de dentro quando começa a secá. Aqui no Tauari e no

Seringa é só pra pesca pra consumo. Aqui é proibido pesca pra vender. Nós

fizemos um acordo pra isso.

[...] A chuva forte que deu semana passada já é sinal que vai começar a

enchente. Vai começa entrar água nova e o peixe vem junto com a água. O

lago Grande enche, aqui pra nós começa a encher tudo também” (L. S.,

pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).

O senhor Lázaro é pescador comercial, é muito versátil porque conhece muito de

pescaria. Para ele, a estação da enchente é considerada um momento de abundância de

peixes, pois os peixes começam a entrar na mata de igapó em busca de abrigo e alimento. Os

acordos informais de pesca adotados pelos pescadores locais são para a proteção dos

ambientes internos e nas imediações da localidade, ocorrendo como medidas preventivas

adotadas para a manutenção dos recursos pesqueiros (Gráfico 3).

Figura 28 – Território da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro sujeito à

inundação. Jaiteua de Cima.

Fonte: Dados de campo (2008).

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0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

E nchente C heia Vazante S eca

Melhor

A redução da água no período da seca implica a mudança de comportamento dos

moradores da localidade, alterando as rotinas de trabalho. Acordar mais cedo para caminhar

até um lugar de pesca, ou acordar mais cedo para caminhar até “o centro” – o local do

roçado e da floresta de trabalho – são algumas das alterações temporais que ocorrem no

cotidiano dos pescadores da localidade. “Quem manda em tudo aqui é a água” diz o senhor

Lázaro ao se referir ao aumento do esforço de trabalho no período da seca.

Ele fez algumas ponderações a respeito do que altera na jornada de trabalho de sua

família: o transporte aquático no paraná do Tauari, por exemplo, é parcialmente limitado por

causa da seca. Caso seja uma seca acentuada, a alternativa para sair da localidade em direção

ao lago Grande ocorre através dos varadouros. Estes atalhos, segundo o senhor Lázaro, são

caminhos improvisados por terra que facilitam o acesso a determinados espaços aquáticos.

As poças, os poços ou os canais como ele se refere, são ambientes alcançados pelos

varadouros, o que favorece o acesso ao lago Grande.

As pontes improvisadas são alternativas para apoiar a travessia de um igarapé seco e

lamacento para sua outra extremidade. Porém ele destaca que é uma travessia perigosa, pois

as pontes como são coisas improvisadas, elas podem quebrar e as farpas da madeira

ocasionar ferimentos ao corpo. A qualidade da água para consumo tem suas características

reduzidas. Como não há poços artesianos na localidade, a água consumida é geralmente

proveniente do igarapé. Na seca, o paraná e os igarapés se tornam inviáveis para o consumo

devido ao aspecto e densidade de água barrenta. As cacimbas, nesse contexto, são

Gráfico 3 – Intensidade da atividade pesqueira dos pescadores de Jaiteua de Cima.

Enchente: melhor preço do pescado no mercado e relativa facilidade de captura;

Vazante/Seca: períodos de maior fartura, facilidade de captura em quantidade de

pescado, porém preço barato no mercado.

Fonte: Dados de campo (2008).

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alternativas viáveis para o consumo doméstico das famílias tal como em Cajazeira (Figura

29).

O calendário abaixo descreve as atividades produtivas realizadas em Jaiteua de Cima

(Figura 30):

A comunidade pratica a polivalência de atividades. A prática agrícola ocorre o ano

todo através do ciclo: preparo da terra, cultivo e colheita. O “centro”, denominado por eles

Figura 29 – Ponte improvisada.

Fonte: Dados de campo (2008).

.

Figura 30 – Calendário das atividades produtivas realizadas em Jaiteua de Cima.

Fonte: Dados de campo (2008).

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como o local do roçado, situa-se em áreas de terras altas e afastadas das possibilidades da

cheia. O plantio ocorre nos meses de agosto a setembro e a colheita ocorre de novembro em

diante.

No roçado, cultivam principalmente a mandioca (Manihot esculenta), o milho, a

banana e o abacaxi. São cultivos destinados ao consumo e à comercialização. Da mandioca,

preparam a farinha, considerada o principal produto para obtenção de renda para as famílias

da localidade.

Tal como ocorre em Cajazeira e Jaiteua de Baixo, os moradores praticam estratégias

preventivas para aliviar situações de possível escassez. Isso porque, do preparo da farinha,

armazenam uma parte da produção em potes para trocar ou comercializar com objetivo de

adquirir alimentos não perecíveis (açúcar, sal e óleo).

A pesca é praticada o ano todo. O período da enchente – de fevereiro a maio como

indicado pelos pescadores – é o momento que consideram como favoráveis à boa pesca,

sobretudo pela boa remuneração. Fato que foi recorrente, no mesmo período em Cajazeira.

De acordo com o depoimento dos pescadores, os ambientes de pesca internos da

localidade são destinados para o uso exclusivo dos pescadores locais e suas famílias. Os

ambientes relativamente externos à localidade são utilizados conforme determinadas regras e

acordos informais de uso comum dos recursos. A territorialidade e os acordos informais

operam para garantir a prevenção e a manutenção dos recursos aquáticos a médio e a longo

prazo, face a situações de escassez naturais ou escassez produzidas socialmente pela pesca

predatória.

A caça como extrativismo animal é uma prática semelhante ao que ocorre em

Cajazeira, sem maiores detalhes. A criação de pequenos e grandes animais é comum na

localidade. Porém a criação de gado bovino, quando do período da seca, é transportado para

às margens do paraná do Jaiteua longe dos agravos – doenças e dificuldades de alimento –

desse período como destaca por Sternberg (1998). O uso de marombas não foi percebido em

nenhuma localidade.

Esse tipo de ação é considerado estratégias compensatórias (PEREIRA, 2007). Isso

ocorre quando,

Estratégias preventivas não forem ou não puderem ser iniciadas, ou forem

inadequadas, então algumas respostas imediatas são necessárias para

corrigir os problemas de desequilíbrio entre população e recursos. Estas

respostas podem assumir a forma de redistribuição da demanda

(população) ou de redistribuição dos recursos [como ocorre com o gado no

período da seca] (PEREIRA, 2007, p.17).

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No capítulo a seguir será apresentado a organização social dos pescadores, os principais

agentes sociais da pesca e o conhecimento tradicional dos pescadores em relação às praticas de

pesca.

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CAPÍTULO II

PESCADORES E PESCARIAS

Este capítulo aborda o conhecimento e as práticas de pesca desenvolvidas pelos

pescadores de subsistência e pescadores comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de

Baixo e Jaiteua de Cima no uso dos seus territórios de pesca.

Os conceitos de Lourdes Furtado (1993) – pescadores polivalentes e pescadores

monovalentes – apoiou-nos a pesar a multiplicidade de atividades que estes agentes sociais

realizam em um dia de trabalho, bem como as redes de sociabilidade que estabelecem na

vida comunitária e durante as práticas de pesca.

Os lanços de pesca realizados pelos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de

Baixo e Jaiteua de Cima em áreas de floresta alagada (florestas de igapó) evidenciam o

tempo ecológico (da natureza e seus ciclos físicos e climáticos) e o tempo social (das

relações sociais e do mercado) vivenciado pelos pescadores.

Esta conexão de tempos combinados na consciência do pescador, imprimem ritmos

de trabalho no “interior” da pesca de subsistência e da pesca comercial, ocasionado

possibilidade de manejo equilibrado ou degradante aos recursos pesqueiros.

Estes são os principais assuntos apresentados neste capítulo.

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2.1 A vida comunitária dos pescadores e de suas famílias nas localidades Cajazeira,

Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima

“Nós que vivemos aqui, vivemos da nossa força, do nosso trabalho mesmo

[...], os políticos só vêm pra cá na época de eleição, prá querê voto, depois

que passa, eles desaparecem, e as coisas continuam assim: precisando

melhorá a escola, falta saúde, falta energia (V. C., pescador de subsistência,

Jaiteua de Cima, 2008).

As comunidades estabelecidas nas localidades estudadas apresentam, em sua

composição social e material, instituições e infraestruturas (equipamentos culturais)

semelhantes a outras comunidades rurais do estado do Amazonas. As comunidades

apresentam um modo de vida e trabalho que possibilitam sua manutenção de existência,

porém vivenciam as dificuldades de infraestrutura básica, baixa renda e pouco apoio das

instituições do Estado – segurança, saúde, educação, lazer e alimento – o que tem contribuído

para a redução da qualidade de vida das famílias dos pescadores.

As famílias das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima como

descrito, estão organizadas em “comunidades” (modo como é chamado os assentamentos

rurais locais) segundo a denominação dos moradores. Os núcleos comunitários são os espaços

de socialização dos moradores à medida que centralizam condições de infraestrutura para

realização de serviços gerais, lazer, vida religiosa, saúde e educação. A necessidade de formar

os centros comunitários nos quais estão localizadas as principais instituições – a escola, a

igreja, a sede de reuniões comunitárias, o campo de futebol e as associações – são de suma

importância para dar expressão aos assuntos, conhecimentos, sentimentos e interesses comuns

e divergentes dos moradores acerca das suas necessidades e reivindicações de serviços

públicos para a melhoria local.

Segundo Souza (1996), no âmbito comunitário, a ação comunitária tem sido um

instrumento usado pelos grupos rurais para a superação das barreiras e dos problemas

encontrados na vida em comunidade. Esse instrumento tem sido usado de diferentes formas,

por diferentes grupos de pessoas, muitas com obtenção de resultados positivos e outras

vezes, não correspondendo às expectativas. A ação comunitária precisa estar vinculada a

trabalhos cooperativos para que tenha algum resultado, entretanto, se não houver uma

resposta da própria comunidade, não terá valor algum.

A busca de superar os desafios encontrados na vida comunitária requer a cooperação

de todos para que estas ações sejam concretas e atinjam seus objetivos. A ação comunitária

representa um princípio através do qual a família já não é apenas uma unidade básica, mas

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passa a ser incorporada ao centro onde todas as famílias possuem um papel fundamental

para o funcionamento da vida local. Segundo a autora:

“[...] a ação comunitária é uma prática de ajuda mútua e cooperação que se

articula e se opera a partir da comunidade [...]. Esta ação enfrenta os

desafios a que a população comunitária é submetida, seja para solução de

conflitos, seja para a promoção de eventos ou comemorações [...] a partir

desses desafios é que determinadas formas de cooperação comunitária, tipo

mutirão, ajuda mútua, coleta voluntária, vão se estruturando e dando

resultado a essa ação coletiva [...]” (SOUZA, 1996, p. 28).

O conceito de comunidade utilizado para pensar a organização social e a ação dos

moradores das localidades está relacionado aos elementos da teoria clássica do conceito de

comunidade, porém o sentido de comunidade como designado pelos moradores indica uma

realidade dinâmica que é transformada pelas necessidades do contexto, seja político,

econômico ou relacionados à defesa de seus direitos.

Para Tonnies (1973), por exemplo, “tudo que é confiante, interno, que vive

exclusivamente junto, é compreendido como a vida em comunidade.” O autor analisa a

distinção entre comunidade e sociedade. Para o autor, a comunidade é caracterizada pela

organicidade social, há uma ligação entre os membros onde prevalece a concórdia, o

costume e o entendimento. Estes elementos são tácitos, dados quase naturalmente. Para

Tonnis (1973), o sentido contrário ou contraditório seria a sociedade, que decorre da troca e

afastada do sentido de coletividade partilhada, onde se estabelece o contrato explícito que é

o contrário do consenso comunitário e das regras consuetudinárias. A motivação de pleno

livre arbítrio e a competição são o que substituem a solidariedade.

Weber (1999), de modo mais sofisticado, define as relações sociais como sendo

comunitárias e associativas. De acordo com o autor, as relações comunitárias podem se

apoiar em fundamentos afetivos, emocionais, familiar ou tradicionais, “repousa no

sentimento subjetivo de pertencer [a um grupo social]” (WEBER, 1999, p. 25). A coesão

social tem um sentido naturalizado e integrador. Enquanto as relações associativas para

Weber (1999), constituem-se a partir de ajustes de interesses racionalmente motivados, de

acordos racionais por declaração recíproca, uma relação contratual deliberada politicamente.

Para o autor, “a grande maioria das relações sociais tem caráter, em parte, comunitário e, em

parte, associativo” (WEBER, 1999, 25).

Gusfield (1975), por outro lado, percebe a questão operacional dos conceitos, ou

seja, percebe como os conceitos, dentre eles comunidade, são acionados diante de

determinada realidade. Para o autor, existem dois modos de uso do conceito de comunidade

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em jogo: um de uso territorial que é referente ou relacional ao lugar, e um que é relacional

vinculado e elaborado a partir das relações sociais como decorrente de designação política.

Para o autor, comunidade é um conceito analítico, é um instrumento operacional que não

significa necessariamente realidades empíricas. Comunidade é um conceito dinâmico, é uma

maneira de pensar as realidades empiricamente observáveis. Segundo o autor, a

solidariedade é construída, e os “atrativos comunais” nos ajudam a pensar a identidade do

grupo. Essa identidade é uma construção social e não está presa a uma localização

geograficamente estabelecida ou determinada.

Nesse sentido, a noção conceitual de comunidade de Gusfield (1975) nos ajuda a

pensar que o termo comunidade para os moradores das localidades pesquisadas quando

acionados expressa uma designação de uso desses agentes sociais direcionado para a

utilização político-administrativa ou jurídica e não apenas como forma empírica.

Para alcançarem os objetivos de melhoria social e econômica, os moradores das

localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima organizaram algumas associações

para melhor pensar e gerenciar seus problemas e reivindicações. O quadro 2 a seguir

descreve as formas de organização política dessas comunidades por localidade:

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Quadro 2 – Associações de comunidades

Fonte: Dados de campo (2008).

Verificamos que as famílias das comunidades participam de diversas associações.

Algumas delas como, a Associação de Moradores, são recém criadas e outras têm alguns

anos de existência, aproximadamente entre dez a vinte anos.

Os moradores das comunidades participam dessas associações na condição de sócios,

pagando um valor mínimo para a manutenção dessas instituições. A participação se dá

Localidade Comunidade

Tempo de

Existência

Cajazeira

Nossa Senhora Aparecida

Associação dos devotos de Nossa Senhora

Aparecida 5 anos

Associação de Pais e Mestres 10 anos

Associação de Moradores 3 a 4 anos

Associação de Agricultores 3 anos

Clube de Mães 4 anos

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

Associação de Moradores 2 anos

Associação dos Agricultores 2 anos

Associação de Pais e Mestres 4 anos

Jaiteua de

Baixo

Santo Antônio

Clube de mães 5 anos

Jaiteua de

Cima

Assembleia de Deus

Associação dos membros da Assembleia de

Deus 8 anos

Associação de Moradores 3 anos

Assembleia de Deus Tradicional

Associação dos membros da Assembleia de

Deus Tradicional 6 anos

Associação de País e Mestres 5 anos

Associação de Moradores 4 anos

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

Associação de Pais e Mestres 10 anos

Clube de Mães 20 anos

Associação de Moradores 30 anos

Associação de Agricultores 2 anos

Santa Isabel

Associação dos membros da Assembleia de

Deus 10 anos

Clube de Mães 17 anos

Membros do sindicato Rural dos Trabalhadores 20 anos

Associação de Moradores 18 ano

Associação de Pais e Mestres 20 anos

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também através de diversos trabalhos, cooperando como tesoureiros da diretoria executiva

da associação. Outros moradores trabalham na prestação de serviços gerais como auxiliares,

colaborando nas reformas das igrejas e das escolas. Outros associados auxiliam em

atividades culturais, tais como a promoção e divulgação de festas religiosas e eventos

esportivos. Um pescador de subsistência da comunidade Assembleia de Deus (Jaiteua de

Cima) fala da importância da Associação de Moradores e da vida em comunidade:

[...] Viver na comunidade traz benefícios. Depois que a pessoa passa pagar

a associação dos moradores todos os meses. Se for [documento] pra

aposento a pessoa vai receber até morrer. Então, ela tem direitos. Por

exemplo, o auxilio materno [...] a comunidade dá uma declaração, dá um

pedaço de terra de um amigo pra essa pessoa no período de cinco meses

[...]. Nós exigimos somente que essa pessoa seja sócio da comunidade,

mas, pagando seu direito para que nós possamos correr atrás dos benefícios

que eles querem, pro benefício de todos. Eu levo no sindicato, eu levo no

INSS, eu tenho declarações prontas aqui do sindicato para qualquer

beneficio. [Levo também os associados] para tirar carteira de identidade,

CPF. Eu passo pros comunitários tudo isso direitinho, já tudo declarado. A

nossa associação de moradores serve pra isso, e tem feito a gente feliz (V.

C., líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).

Uma importante conquista das comunidades nos últimos anos como resultado de

pauta de reuniões foi o reconhecimento jurídico de suas comunidades. A legalização das

comunidades permite o diálogo formal com o Estado (instituições públicas) e com as

instituições privadas. A aquisição do CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), por

exemplo, facilitou que as lideranças comunitárias acionassem os bancos (geralmente bancos

estatais) para adquirirem empréstimo e financiamento para aquisição de produtos –

máquinas e equipamentos – a serem usados nos trabalhos agrícolas e de infraestrutura nas

comunidades. O morador da localidade Jaiteua de Cima afirma:

“[...] a gente sempre viveu em comunidade, mas depois de oito anos ... é

isso mesmo, que a gente passou a ser comunidade mesmo com toda

documentação certinha, a gente conseguiu algumas coisas pra nossa

comunidade ... o motor de luz que a gente tem, nós compramos esses

tempos .., a reforma da escola foi uma parte que a prefeitura fez, a outra

parte nós compramos financiado mesmo ... se a gente não tivesse

organizado o documento da comunidade seria difícil melhora as coisas por

aqui, porque onde você vai, e falar na prefeitura ou no banco tem que tá

com a comunidade em dia, toda documentada, se não, não consegue nada”

(Sr. R. V., líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).

O acordo informal de pesca convencionado pelos pescadores de subsistência e

pescadores comerciais da localidade Jaiteua de Cima para “guardar” e conservar o paraná do

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Anamã e o lago do Jaiteua no período da seca do ciclo das águas, foi estabelecido em

reuniões de moradores envolvendo as quatro comunidades estabelecidas em Jaiteua de

Cima, com o intuito de discutir a situação de escassez da pesca que estava ocorrendo pela

exploração comercial excessiva por pescadores comerciais locais e por pescadores citadinos

principalmente no período da seca.

A mobilização dos líderes comunitários para concretizar o acordo de pesca foi uma

iniciativa importante para controlar a pesca comercial e garantir as condições mínimas de

subsistência para as famílias dos pescadores de Jaiteua de Cima. Porém as lideranças

comunitárias ressaltam que o acordo não é seguido por todos porque há resistência dos

próprios pescadores comerciais locais que vivem necessariamente da renda da pesca e por

pescadores citadinos (pescadores de fora) que se fundamentam no fato de os moradores

locais não disporem de legitimidade jurídica legal para impedir o acesso dos pescadores aos

principais ambientes aquáticos da localidade – paraná do Anamã e lago do Jaiteua – e de uso

partilhado com os pescadores das localidades Cajazeira e Jaiteua de Baixo.

Neste mesmo período relativo à criação do acordo informal de pesca, as Associações

de Moradores, de modo geral, passaram a discutir a participação dos pescadores das

localidades com relação à filiação desses agentes sociais à Colônia de Pescadores de

Manacapuru Z9. Isso porque o controle sobre a atividade passou a confrontar os interesses

dos pescadores comerciais locais que achavam que seus ganhos (rentabilidades) seriam

limitados pelo acordo. Sendo importante ressaltar que a maior parte dos moradores das

localidades não estava vinculada a nenhuma associação ou instituição de trabalho, e que por

esse motivo os moradores não tinham acesso aos seus direitos de pescador ou agricultor

(este último referente à Associação dos Produtores Rurais de Manacapuru).

Esse tema, praticamente, era pouco comentado em reuniões comunitárias das

localidades e o desconhecimento dos pescadores sobre seus direitos e deveres com relação

ao oficio de pescador profissional (artesanal) e agricultor era difuso. Essa condição, além de

desestimular o interesse dos pescadores comerciais em se ajustarem ao acordo informal de

pesca porque não viam sentido de ganho material (monetário) sobre o mesmo, exigiu das

lideranças comunitárias (até mesmo para o fortalecimento do acordo) mobilização política

interna e o conhecimento sobre os direitos legais dos pescadores e dos agricultores de suas

comunidades junto a estas associações. O desdobramento dessa atitude dos líderes

comunitários resultou no envolvimento gradual dos moradores em busca de seus direitos.

Uma liderança comunitária afirma:

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“[...] antes do nosso acordo [de pesca] aqui pro Jaiteua, nós tinha pouco

conhecimento dos nossos direitos. Tinha um e outro pescador, até o pessoal

da agricultura não sabia mesmo dos seus direitos. Então prá melhorá isso,

nós pedimos auxílio do irmão [evangélico] que conhece mais sobre a

Colônia e das leis, e ele veio aqui e explicou tudo. Depois começamos a

ficá sócio da Colônia e outros da Associação dos Agricultores, foi isso que

aconteceu [...]” (V. C., líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).

Os quadros 3 indica, respectivamente, a participação dos pescadores como filiados à

Colônia de Pescadores de Manacapuru Z9 na época anterior à mobilização, em seguida, os

principais motivos relacionados a não participação desses agentes sociais a essa instituição.

Localidades Participação

Jaiteua de Cima 25% (Sim)

75% (Não)

Jaiteua de Baixo 20% (Sim)

80% (Não)

Cajazeira

14% (Sim)

86% (Não)

Motivos dos pescadores relacionados a

não participação na Colônia dos

Pescadores de Manacapuru Z9

Localidades

(Nível de Informação)

Cajazeira Jaiteua

de Baixo

Jaiteua de

Cima

Conhecimento sobre a Colônia. médio baixo baixo

Documentos pessoais completos para filiação. médio baixo baixo

Receio de perder outros direitos como a

aposentadoria por tempo de trabalho na

agricultura.

alto baixo médio

Distância da moradia à Colônia dos

Pescadores de Manacapuru. médio médio médio

Motivação política do líder comunitário. baixo baixo baixo

Desinteresse pessoal. médio alto médio

Falta de dinheiro. alto alto alto

Quadro 3 – Nível de participação social e política na Colônia de Pescadores de Manacapuru Z 9.

Fonte: Dados de campo (2008).

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A Associação de Moradores e a Associação de Pais e Mestres discutem sobre os

problemas relacionados ao ensino escolar adotado nas localidades. O sistema de ensino

escolar desenvolvido nas localidades é coordenado pela Prefeitura Municipal de

Manacapuru e pela Secretaria Estadual de Educação do Estado do Amazonas (SEDUC). A

pesquisadas apontou para a predominância de escolas de ensino fundamental – ensino de 1ª

a 8ª série. A fase posterior, ou seja, o ensino médio só é possível de ser realizado se os

estudantes conseguirem vagas em escolas de localidades vizinhas que tenham esse nível

escolar ou em escolas da sede do Município de Manacapuru.

De acordo com as lideranças comunitárias das localidades Cajazeira, Jaiteua de

Baixo e Jaiteua de Cima que estabeleceram diálogo com a Prefeitura de Manacapuru em

contextos pretéritos, cada comunidade (das respectivas localidades) deveria ter uma escola

com sede própria e com infraestrutura suficiente para acomodar os estudantes de todas as

séries e idades, porém não é isso que ocorre na prática. Em Jaiteua de Cima, por exemplo, a

escola de 1ª a 8ª série chamada Raimundo Queiroz é frequentada por crianças, jovens e

adultos da própria localidade, e por alunos das localidades Jaiteua de Baixo e Cajazeira. Por

outro lado, a estrutura escolar é sobrecarregada com alunos das comunidades Assembleia de

Deus Tradicional e Assembleia de Deus (pertencentes à localidade Jaiteua de Cima) que não

têm sede escolar por motivo de falta de apoio – financeiro e planejamento – da Prefeitura de

Manacapuru.

Em Cajazeira, as comunidades Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Nossa Senhora

Aparecida possuem escolas de ensino fundamental, porém a infraestrutura escolar de ambas

é insuficiente para atender as demandas de todos os alunos. As salas de aula e o material

didático são ajustados para atender com prioridade alunos de 1ª a 4ª série. Os alunos de 5ª a

8ª são alocados para a escola Raimundo Queiroz em Jaiteua de Cima para darem

continuidade aos estudos.

Em Jaiteua de Baixo, a escola de ensino fundamental atende apenas as demandas de

ensino de 1ª a 4ª série para crianças e adolescentes e educação básica para adultos. Os

estudantes de 5ª a 8ª série são encaminhados para a escola Raimundo Queiroz em Jaiteua de

Cima e os alunos de ensino médio são encaminhados para escolas da sede do Município de

Manacapuru quando as condições financeiras e sociais permitem.

O horário de funcionamento das escolas em todas as comunidades compreende o

período matutino e vespertino. Na escola Raimundo Queiroz, por exemplo, as aulas são

ministradas por professores residentes da própria localidade, por professores de localidades

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vizinhas e por profissionais do município de Manacapuru. Os professores que moram fora da

localidade, geralmente, ficam como residentes temporários na comunidade Nossa Senhora

do Perpétuo Socorro, ocupando o “barracão”, mais conhecido como “a casa dos

professores”.

O quadro 4 a seguir apresenta o nível escolar das localidades pesquisadas.`

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Quadro 4 – Nível escolar.

Fonte: Dados de campo (2008)

Conforme os moradores e a observação em campo, o nível escolar de 1ª a 4ª série

corresponde aos estudantes jovens e adultos das localidades pesquisadas e atende às

expectativas dos líderes comunitários em atingir esse nível mínimo educacional. Para o grau

de escolaridade variando entre a 5ª e 8ª série e a condição de moradores alfabetizados e não-

alfabetizado, os líderes comunitários explicam:

“[...] a primeira necessidade das nossas comunidades, que era muito

discutido nas reuniões da associação de pais e dos moradores também, era

Localidade Comunidade Grau de Escolaridade

Freqüência

%

Cajazeira

Nossa Senhora

Aparecida

1ª a 4ª Série 33,3

5ª a 8ª Série 16,7

Ensino Médio Incompleto 16,7

Não Lê e não Assina o Nome 16,7

Só Assina o Nome 16,7

Nossa Senhora

do Perpétuo

Socorro

1ª a 4ª Série 50,0

Ensino Médio Incompleto 25,0

Só Assina o Nome 25,0

Jaiteua de

Baixo

Santo Antônio

1ª a 4ª Série 57,1

5ª a 8ª Série 14,3

Ensino Médio Completo 14,3

Nunca Estudou 14,3

Jaiteua de

Cima

Assembléia de

Deus

1ª a 4ª Série 50,0

5ª a 8ª Série 33,3

Só Assina o Nome 16,7

Assembléia de

Deus

Tradicional

1ª a 4ª Série 87,5

5ª a 8ª Série 12,5

Santa Isabel

1ª a 4ª Série 61,5

Não Lê e não Assina o Nome 7,7

Só Assina o Nome 30,8

Nossa Senhora

do Perpétuo

Socorro

1ª a 4ª Série 21,4

5 ª a 8ª Série 42,9

Ensino Médio Completo 7,1

Não Lê e não Assina o Nome 7,1

Nunca Estudou 14,3

Só Assina o Nome 7,1

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a preocupação em faze as nossas crianças estuda mais. Com toda

dificuldade nossa e conversando com os professores e os pais a gente

conseguiu garanti o ensino básico pra crianças, que é mais importante

mesmo, mas a gente conseguiu convence os mais velhos a vim pra escola

também. Hoje os companheiros mais velhos, principalmente as mães,

minha esposa que não sabia lê direito, foi pra escola com dificuldade,

porque tem que trabalhá, hoje sabe lê, assina o nome e tudo, que bom né.

Hoje os colegas, o pessoa da nossa família sabe lê, e lê a bíblia certinho.

Isso foi muito bom pra nós. [...]”(Sr. R. V., líder comunitário, Jaiteua de

Cima, 2008).

“[...] é difícil continuá o estudo das crianças aqui nas comunidades depois

que termina a 4ª série, a escola é pequena, falta professor, falta sala de aula

que pra nós e mais grave. Então a saída e mandá pra comunidade do

Velhote [comunidade N.S.P.S., Jaiteua de Cima] que já não tem mais vaga,

e pra quem podé manda pras escolas de Manacapuru. Porque só dá pra ir

pra lá quem tem parente lá, que sempre tem. As crianças que querem

avança no estudo tem que ir pra lá, ou pra Manaus e só dá pra vim pra casa

no sábado e domingo, porque o gasto pra vim pra cá e alto, e os pais não

tem dinheiro pra isso [...]” (Sr. R., líder comunitário, Cajazeira, 2008).

As escolas são freqüentadas apenas nos períodos da enchente e cheia, porque os

ambientes aquáticos oferecem condições naturais para o deslocamento do barco-escola e das

pequenas embarcações que transportam os estudantes aos estabelecimentos de ensino. Esse

espaço de tempo corresponde ao calendário oficial escolar e todas as atividades escolares

devem ser realizadas nesse período. Do intervalo de tempo que compreende o mês de agosto

à segunda quinzena de novembro aproximadamente (períodos da vazante e seca,

respectivamente), as escolas entram em recesso e retornam às atividades apenas no mês de

dezembro em sintonia com a subida da água – da enchente.

As lideranças comunitárias se posicionam criticamente diante dessa situação,

afirmando que o curto calendário não dá conta daquilo que deveria ser ideal para o

aprendizado de qualidade. Por outro lado, a prefeitura do município de Manacapuru

pronuncia-se muito pouco com relação a rotina de vida escolar, atendendo somente as

condições mínimas de existência e funcionamento da estrutura pedagógica local.

O poder e a capacidade de liderança comunitária (administração) são fortemente

influenciados pela vida religiosa nas localidades. Inclusive as tomadas de decisão e as regras

de conduta dos moradores, neste caso, os acordos informais de pesca, são discutidos sob o

juízo de valor dessa conexão – vida comunitária e vida religiosa – e não cumprir as regras

significa sanções ao morador.

Liliane Oliveira (2008) estudou a dimensão religiosa nas localidades Cajazeira,

Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima e verificou que as instituições religiosas predominantes

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correspondem às denominações Católica Apostólica Romana e às Igrejas Evangélicas

(Gráfico 4).

100,0% 100,0%

41,2%

58,8%

0,0

20,0

40,0

60,0

80,0

100,0

120,0

Católica Católica Católica Evangélica

Cajazeiras Jaiteua de Baixo Jaiteua de Cima

Gráfico 4 – Instituições religiosas

Fonte: Dados de campo (2007).

Segundo a autora, a formação dos núcleos comunitários nas localidades se deu dentro

do direcionamento político e territorial, e atualmente são as igrejas (evangélica e católica) e

o poder local instituído dentro de cada comunidade (cada comunidade disponibiliza de uma

igreja) que delimitam o espaço territorial e as formas de uso dos recursos em todas as

localidades, sendo em Jaiteua de Cima a maior disputa simbólica. Nesta localidade, as

iniciativas de acordo informal de pesca para disciplinar o uso dos recursos pesqueiros

surgiram e tiveram eficácia, principalmente pela influência das instituições evangélicas, e

participar da vida religiosa nas comunidades evangélicas significa acompanhar as

deliberações do núcleo comunitário – das reuniões das associações existentes nas

comunidades – e o descumprimento sujeita a pessoa a determinadas sanções: perder os

benefícios sociais – empréstimos, auxílio de serviços –que a vida comunitária pode

proporcionar, é uma delas.

A autora afirma que o poder local está diretamente estabelecido a partir da história da

formação social de cada núcleo comunitário. Ela detectou entre os núcleos comunitários, que

o poder local se constitui por laços familiares associados à vida religiosa. Fator que

determina que os cargos de liderança sejam ocupados pelas pessoas que fazem parte da

família pioneira na fundação de cada núcleo comunitário. Além disso, o terreno onde os

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núcleos estão concentrados é uma herança familiar, gerando assim, um forte laço de

parentesco.

“[...] aqui na comunidade as família participa mais das decisões na

comunidade, porque a maioria é tudo parente mesmo. Primeiramente é

mais a minha família. Tem na comunidade a minha família, tem da minha

mulher, tem mesmo na comunidade umas cinco famílias, quase todo

mundo é parente. Tem umas quatro a cinco famílias só na comunidade e

todo mundo é parente, eu sou parente da minha mulher, primos distantes.

[…] como nós somos evangélicos, a gente segue o principio da igreja, né, e

nas reuniões o que a comunidade decide é o que a gente cumpre, é

importante isso” (I. L., Agente de saúde e ex-líder comunitário, 2007).

Nas localidades Cajazeira e Jaiteua de Baixo, as comunidade são predominantemente

católicas. A organização social, porém, não difere do predomínio familiar presentes nas

lideranças comunitárias como em Jaiteua de Cima.

2.2 A família do pecador como unidade de trabalho nas atividades produtivas

Para pensar as rotinas de trabalho dos pescadores de subsistência e pescadores

comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, apropriamos-nos

das noções conceituais de Lourdes Furtado (1993) denominadas pescadores polivalentes,

pescadores monovalentes e pescadores citadinos, porque nos auxiliam a pensar os múltiplos

papéis sociais que os pescadores das localidades exercem e o modo como as racionalidades

subjacentes às práticas produtivas operam.

Os conceitos de Furtado se relacionam com o conceito de camponês de Chayanov

(1974) e, mais especificamente, aproximando-se do conceito de camponês amazônico de

Witkoski (2007), pois sugere-se que a organização social no interior das atividades

pesqueiras e produtivas da terra e da floresta, defronta-se com elementos chaves que

caracterizam a economia camponesa da várzea amazônica.

Nas localidades estudadas, o cotidiano dos pescadores é constituído de atividades e

rotinas de trabalho diversificadas (FURTADO, 1993). As atividades produtivas como, a

agricultura, o extrativismo, a caça e a pesca, se mantêm, geralmente, em moldes lógicos de

organização do trabalho tradicionais, mostrando para nós que os pescadores necessitam

trabalhar intensamente os três ambientes – a terra, a floresta e a água. A piscosidade dos

diversos ambientes aquáticos favorecem a economia da subsistência e do excedente. Parte

importante da produção do pescado, o que e como produzir, vem das demandas do mercado

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consumidor de Manacapuru através dos agentes da comercialização que socializam

informações necessárias para atender às expectativas local e extra-local (WITKOSKI, 2007).

A organização do trabalho em atividades pesqueiras tal como ocorre em atividades

agrícolas, extrativistas e criatórias está fundamentada e tem sentido na participação ativa dos

membros do grupo doméstico, ou seja, da unidade de produção camponesa como sugere

Chayanov (1974), contando também com parcerias de trabalho envolvendo os parentes e a

vizinhança os quais contribuindo para as formas de intercâmbio com os diversos agentes da

comercialização – os comerciantes “atravessadores” de produtos agrícolas e os compradores

do peixe desembarcado em Manacapuru.

Chayanov (1974) elabora o conceito de campesinato, cuja base de orientação é a

própria estrutura familiar camponesa. A família é protagonista desta realidade ao estabelecer

regras fundamentais de comportamento econômico aos seus integrantes.

Os laços comunitários que os pescadores das localidades estabelecem entre si e entre

seus familiares e a vizinhança, o conjunto de regras coletivas que os acompanham durante as

práticas de trabalho, os vínculos de natureza personalizada que imaginam e praticam e o

carácter extraeconômico das relações de dependência econômica que estão sujeitos

fundamentam, o conceito de camponês amazônico, e permitem explicar as particularidades

sociais e culturais desses atores sociais (WOLF, 1970; CHAYANOV, 1974; WITKOSKI,

2007).

Com bases nesta reflexão, entende-se que a organização econômica dos pescadores

de subsistência e dos pescadores comerciais é constituída da unidade de consumo e da

unidade de produção. A primeira representa o universo de pessoas da família que ainda não

trabalham, ou são liberados do trabalho momentaneamente ou não mais trabalham

diretamente no manejo dos locais de produção dos produtos originados da terra (o roçado),

da floresta (o extrativismo) e da água (a pesca e a caça). Esta unidade reúne crianças em

situação de amamentação (de colo) ou crianças e jovens que os pais não ou ainda não

exigem com mais frequência o apoio da força de trabalho nestas atividades, pois alegam

estarem em fase escolar, o que é uma decisão deles em face a determinadas regras do grupo

doméstico visualizando novas oportunidades de trabalho, ou seja, “o melhor futuro para os

filhos”. Os membros da família que estão aposentados por motivos diversos (por exemplo,

invalidez) e idosos também fazem parte desta unidade. Porém esta ocorrência não pode ser

generalizada, pois, nas localidades, há alguns idosos que caçam, coletam e pescam. A

maioria deles contribui com atividades de trabalho mais leves e menos desgastantes

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fisicamente, tais como a limpeza das residências, o preparo de alimentação e o cuidado com

as crianças menores (netos).

O senhor Napoleão assim relata,

“[...] Os meus filhos e os meus netos acordam cedo pra ir pro roçado. Às

vezes quando dá eu vou, mas quando não, eu fico com os meus netos

pequenos e com a minha nora. As vezes ela vai também, então eu fico só

com eles. Alguém tem que cuidá deles. [...] os meus netos pequenos e até

os maiorzinhos não chegaram a me acompanhar nas pescarias mesmo, mas

quando é pesca pra boia eles vão comigo e aprende a pesca” (N.M.S.,

pescador de subsistência, Jaiteua de Cima, 2008).

A vivência e o sentido destas relações de apoio e cooperação familiar explicadas pelo

Sr. Napoleão são comuns entre as famílias das localidades estudadas. O pai e a mãe, ao se

afastarem de casa para trabalhar, contam com o apoio dos filhos mais velhos ou dos idosos

no cuidado com as crianças menores. A noção de cuidado para os pais comporta,

principalmente, a segurança (o cuidado com relação aos acidentes e a alimentação em

horários específicos) e a educação das crianças. A atribuição do Sr. Napoleão, ao cuidar dos

seus netos, tem sido, além da segurança, ensiná-los, na prática – meninos e meninas –, a

coletar iscas para peixe, a identificar e a demarcar os melhores pontos de pesca.

A unidade de produção é fundamental para a manutenção da unidade de consumo, ou

seja, ela atua em duas frentes: 1) é responsável pelo provimento de alimentos destinados à

subsistência e a 2) produção de produtos destinados à comercialização tendo em vista a

necessidade de aquisição de renda em forma de moeda para adquirir produtos que não são

produzidos nas localidades – por exemplo, laticínios e remédios. Esta unidade de trabalho é

constituída por pessoas cuja faixa etária transita em idade juvenil, em idade adulta e por

idosos.

No âmbito familiar, a chefia e as decisões políticas são geralmente atribuições tanto

dos homens – pai, avô ou filho mais velho – quanto das mulheres (mãe e avó). Porém, fora

do campo doméstico, o controle social sobre as atividades de trabalho é exercido pelo pai,

que é responsável pelo que deve produzir e comercializar, isso porque o tempo de trabalho

que ele exerce se situa na maior parte do tempo fora do campo doméstico, estabelecendo

contato com os agentes da comercialização, por isso sua liderança não se justifica apenas

pelo trabalho pesado que exerce na agricultura ou na pesca:

“[...] A minha mulher trabalha muito aqui em casa e no roçado junto com

meus filhos, ela praticamente não tem tempo pra fazer outras coisas. Faz o

que, eu tenho que vendê o peixe e vende as coisas que a gente planta aqui,

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e no caso da gente que tem criança pequena, ela fica com a minha sogra,

porque a gente só volta no fim do dia, do centro quando é dia de roça. E

quando ela chega é só pra descansa um pouco e arrumar as coisa de casa

que tem que ser feito” (S.M., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).

A mulher sabe o que deve produzir e comercializar, porém vive uma jornada de

trabalho mais intensa do que o homem: ela é mãe, doméstica, agricultora, pescadora,

extratora e exerce trabalhos técnicos que exigem nível de formação mais elevado. Na

agricultura, por exemplo, percebe-se a participação ativa da mulher nas atividades do

roçado, pois realizam a plantação do feijão, do maracujá e da mandioca e ficam incumbidas

da limpeza do roçado junto com os filhos, o que acontece periodicamente durante o ano.

A inteligência e a força de trabalho da mulher não se situam apenas no grupo

doméstico. Nas localidades, a participação social e política das mulheres são constantes e,

em certas circunstâncias, têm sido mais atuantes em reuniões do conselho comunitário que

os homens. Algumas mães sustentam suas famílias exercendo algumas atividades que não

são comuns à maioria das mulheres e dos homens. Elas atuam como professoras das escolas

de ensino fundamental e praticam a função de agentes de saúde, ganhando tanto e, em certas

circunstâncias, mais que seus maridos. As filhas de algumas famílias que querem continuar

os estudos ou que apresentam maiores níveis de escolaridade, trabalham em postos de saúde

ou trabalham em lojas como prestadoras de serviço no município de Manacapuru,

cooperando na renda da família:

“[...] Quando a gente faz reunião aqui na comunidade pra decidir algumas

coisas é porque a gente precisa tomar decisão pra melhorar nossa vida. A

gente precisa dos homens, dos nossos maridos pra tomar decisão junto,

mas de uns anos pra cá percebo que eles não participam como antes

participavam, eles acreditam pouco nisso, alguns trabalham e acha que só

isso tá bom. E agora esses tempos corremos atrás das pessoas pra poder se

aposenta porque o governo tava fazendo campanha pra tirar documento pra

ajudar até na aposentadoria, nos ficamos sabendo e acionamos as pessoas

pra arrumar todas documentação. Se não fosse a gente se mexe, muita

gente ia ficar parado o direito que a gente tem de se aposenta passando, né”

(V.L.M., moradora e líder da comunidade Assembléia de Deus Tradicional,

Jaiteua de Cima, 2007/8).

Para Silva (2007) e Rodrigues (2007) que estudam o papel da mulher em

comunidades ribeirinhas, embora a realidade das comunidades da várzea amazônica ainda

reproduza a desigualdade de valores na relação de gênero, o processo de consciência da

importância do papel social da mulher, por ela mesma, e a participação política delas em

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tomadas de decisão, tem contribuído em evidenciar que as mulheres não devem ser

valorizadas apenas nos afazeres domésticos, mas sim pela capacidade organizativa que

exercem no âmbito comunitário.

2.3 Pescadores de subsistência, pescadores comerciais e “pescadores de fora”

Gráfico 5 – Pescadores de subsistência e pescadores comerciais.

Fonte: Dados de campo (2007).

Os pescadores de subsistência estão difusos nas três localidades, com predominância

nas localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima. Furtado (1993) conceitua esse tipo ideal de

pescador como polivalente. Nas palavras da autora, o pescador polivalente realiza as

seguintes atividades:

[eles] lavram a terra própria e/ou arrendada, criam gado, cultivam juta,

caçam, coletam sementes e frutas da mata, extraem plantas medicinais e

resinas vegetais silvestres, fabricam carvão, torram farinha de mandioca e

preparam farinha de peixe e pescam. A pesca entre eles é primordialmente

destinada ao auto abastecimento e secundariamente à venda no mercado

local e extra local (FURTADO, 1993, p. 241).

A produção pesqueira realizada por esse grupo social tem participação ativa dos

membros do seu grupo doméstico e, em alguns casos, do grupo de parentes que habita a

vizinhança. “Estes formam as unidades de trabalho nessa modalidade de produção, que vão

diariamente aos rios, igarapés, paranás e lagos localizados nas imediações de suas moradias”

(FURTADO, 1993, p. 356).

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Os pescadores de subsistência em razão de comercializar mais os produtos extraídos

do trabalho realizado na agricultura, autodefinem-se como agricultores e não como

pescadores. Eles vivem mais na várzea afastados dos centros urbanos, porém mantendo

constantemente ligações com a cidade, trocando bens e serviços e mantendo relações

próximas com parentes e participando de atividades religiosas (FURTADO, 1993).

Nas localidades, a prática do cultivo da mandioca e sua posterior transformação em

farinha é a principal fonte para aquisição de renda. A agricultura assume lugar primordial

entre esse grupo social, ficando a pesca como atividade mais para o autoconsumo, embora

destinem eventualmente uma proporção para a venda.

A venda do pescado ocorre mais no período da enchente, pois o peixe se torna mais

rentável comercialmente em virtude das necessidades e demandas do mercado consumidor

de Manacapuru e Manaus.

O preço do pescado é também elevado pelas influências das festas religiosas como, a

Semana Santa, datas comemorativas relacionadas ao Dia das Mães e Dia dos Pais e pelas

dificuldades de captura das espécies devido aos fatores naturais relacionados a esses

períodos do ciclo das águas.

Os interesses em torno das atividades agrícolas pelos pescadores de subsistência

estão diretamente relacionadas com as fases do ciclo hidrológico. Isso porque, no calendário

da atividade pesqueira, o período da vazante e seca expressa a redução significativa de

diversos ambientes de pesca. Fato que dificulta não só a prática desta atividade, mas também

sua remuneração devido à competição entre os pescadores destas localidades pela

apropriação do pescado e, consequentemente, o barateamento do peixe em virtude de sua

fartura no mercado consumidor. O acesso aos ambientes aquáticos, devido a distância,

também é um fator que limita a ação dos pescadores de subsistência e pescadores

comerciais, pois o desgaste físico é muito grande, devendo-se levar em consideração o

tempo de chegada e retorno ao local da pescaria, bem como o gasto de combustível, a

alimentação e o peso carregado no ato do transporte das espécies capturadas.

Para entender essa dinâmica ecológica, e, ao mesmo tempo, econômica, um pescador

de subsistência da localidade Jaiteua de Cima assim explica:

“[...] eu começo a pescar na base de fevereiro em diante. Fevereiro, março,

abril, maio, junho, por aí assim, direto. É nessa fase. Daí quando chega os

mês de botar o roçado [julho, agosto, setembro], aí eu paro. Daí eu vou

botar meu roçado pra trabalhá. Aí depois de colocado eu continuo de novo

a pescar. O serviço é esse... Daqui ninguém pode sair. Sair daqui só se for

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pra outro canto, pra cidade ... Agora, meu serviço é esse: viver de pescaria

e trabalhar em farinha, em roça. Eu prefiro pescar na época da enchente

porque o peixe dá dinheiro e pescando não falta quase nada. É que nem o

trabalho da roça também. A roça todo tempo tá dando e a gente todo tempo

tem o negócio do dinheiro. E assim que é a pescaria. Nós temos nossas

experiências, por exemplo, tem a época que o peixe dá bem, dá peixe

melhor, o peixe grande. Numa época dessa [janeiro/enchente] ele dá

dinheiro, mesmo quando tá cheio que é difícil de pegá ele dá dinheiro

também. [...] e quando tá enchendo eu pesco pra vender o curimatã, o

tucunaré, a aruanã, o roelo, a pirapitinga, o pirarucu, o pacu, o carauaçu.

Esses outros peixes miúdo, [pacu e carauaçu] não pesco quase não, porque

quando tá enchendo dá os peixe graúdo que é melhor de vender, né!”(D.

M., pescador de subsistência, Jaiteua de Cima, 2007).

Nas localidades, as plantações ocorrem em áreas de terra firme, e geralmente são

terrenos que ficam próximos às casas dos pescadores, nos fundos da propriedade, ou em

áreas mais distantes das moradias fora do alcance da enchente e cheia do ciclo das águas –

neste caso são utilizadas canoas e rabetas para o transporte. Esses locais da produção, os

roçados, são localmente denominados sob o nome de centro, e lá, as famílias dos pescadores

de subsistência exercem suas atividades com base no uso compartilhado da terra e do

trabalho familiar como apresentado no tópico anterior.

A roça ou roçado (os centros) são os sistemas de uso da terra mais utilizados na

Amazônia pelos ribeirinhos, é o local onde geralmente são cultivadas espécies anuais

durante algum período (normalmente dois ciclos anuais, dependendo da qualidade do solo) e

após isso é deixado em descanso, para recuperação da fertilidade e eliminação das plantas

invasoras no solo. Essa técnica, conhecida como pousio, permite que os nutrientes

disponíveis sejam imediatamente utilizados na produção de alimentos energéticos

(MORÁN, 1990; FRAXE, 2000).

A época de plantio das culturas agrícolas é variável por ambiente e pelo tipo de

cultura. Em geral, o plantio é feito manualmente pela unidade de trabalho familiar e com a

utilização de instrumentos de trabalho simples como o machado, o terçado e a enxada. Nos

ambientes de terra firme, diversas culturas são plantadas no segundo semestre do ano, final

da época seca e início das chuvas. Os processos de trabalho nas roças, segundo os

pescadores de subsistência se dão da seguinte forma: derruba da capoeira, queima seguida de

encoivaramento e requeima, plantio e colheita.

A prática de corte e queima, como sistema de preparação da área para agricultura,

ofereceu ao ribeirinho um tipo de controle ao ataque de pragas para obter uma safra

razoável, além da economia na preparação do terreno, na conservação dos nutrientes e na

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recuperação do solo pelo abandono gradativo da roça ao processo de sucessão secundária

(MORÁN, 1990).

A escolha das áreas se deve ao tipo de solo, baixa incidência de pragas e doenças,

aproveitamento da área e fácil manutenção. A consorciação de plantas que apresentam ciclos

vegetativos distintos pode representar uma das mais importantes formas de

complementaridade, pois tal associação, na maioria das vezes, proporciona melhor uso

temporal dos fatores de produção, cujo excedente produzido pode complementar a renda do

produtor (FRAXE, 2000).

Nas roças de monocultivo, os principais produtos cultivados são a mandioca

(Manihot esculenta) e a banana (Musa sp). Nas roças de culturas misturadas, foram

identificados dentre os principais cultivos: o cará (Dioscorea alata L.), o milho (Zea mays) e

o maxixe (Cucumis anguria L.) (Figura 31).

Figura 31 – O roçado em Cajazeira.

Fonte: Dados de campo (2007).

Os quintais das casas dos pescadores de subsistência também são áreas manejadas.

Os quintais ou sítios são áreas onde são cultivadas árvores frutíferas, grãos, hortaliças e

plantas ornamentais e criação de animais, tendo como finalidade principal a

complementação da produção obtida em outras áreas de produção, como a roça, a criação de

animais maiores, a floresta e as capoeiras (FRAXE, 2000; 2004).

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Nos quintais das casas dos pescadores de subsistência, é comum o cultivo de plantas

perenes e herbáceas, tendo como finalidade, a garantia de subsistência das famílias. As

principais espécies vegetais encontradas nos quintais foram classificadas de acordo com seu

uso e podem ser categorizadas em espécies frutíferas, medicinais, hortaliças e espécies

florestais (Quadro 5).

Os quintais agroflorestais possuem uma micelânea de cultivos anuais, porém

dividindo espaço com outras atividades produtivas. As criações de pequenos animais,

médios e grandes animais são algumas destas atividades, mantendo regularidade no

cotidiano das famílias dos pescadores de subsistência das localidades Cajazeira, Jaiteua de

Baixo e Jaiteua de Cima (Gráfico 6).

51%

32%

10%

7%

Aves (Galinhas e Patos) Suíno Bovino Caprino / Ovino

Gráfico 6 – Atividades criatórias.

Fonte: Dados de campo (2007).

FRUTÍFERAS MEDICINAIS HORTALIÇAS FLORESTAIS

Coco

Cocos nucifera

Quebra-pedra

Phyllanthus niruri L.

Cebolinha

Allium pisfulosum

Açaí

Euterpe oleraceae

Manga Mangifera indica

Unha-de-gato Uncaria guianensis

Cheiro-verde

Coriandrum ativum

Castanheira Bertholletia excelsa

Goiaba Psidium guajava

Sucuúba Himatanthus attenuatus

Pimenta de cheiro

Capsicum chinense

Sucuúba Himatanthus attenuatus

Azeitona Syzygium

jambolanum

Macela

Achyrocline satureoides

Cupuaçu Theobroma

grandiflorum

Castanheira

Bertholletia excelsa

Quadro 5 – O cultivo nos quintais das moradias em Cajazeira

Fonte: Dados de campo (2007).

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A criação de aves (51%) teve maior destaque entre as famílias das localidades e o

destino da criação para o consumo doméstico. A criação de suínos (32%) ocorre nas três

localidades, porém com destaque para a localidade Jaiteua de Cima que comercializa os

animais para o centro comercial de Manacapuru. A criação de gado (10%) ocorre nas três

localidades, porém com destaque para as localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima que têm

áreas de pastagem cultivadas por criadores que moram fora da localidade, por moradores das

localidades que passaram a desenvolver esta atividade com mais frequência e moradores que

destinam a criação de gado para o uso doméstico.

Para algumas famílias das localidades, o investimento numa pequena criação de gado

bovino funciona como uma forma de poupança, pois estes animais podem sobreviver e

crescer durante os períodos de escassez (cheia) e nos casos de necessidade extrema o

investimento pode ser facilmente recuperado com o consumo ou com a venda do animal. A

venda tem por objetivo a manutenção da saúde da família, a compra de equipamentos de

infraestrutura e alimentação (FRAXE, 2000; PEREIRA, 2007). A criação de gado em

Jaiteua de Baixo se resume ao uso doméstico de apenas duas famílias.

A criação de gado bubalino não consta no gráfico (3), porém a prática dessa

atividade é visível numa área ampla de pastagem situada nas imediações de Jaiteua de Cima,

cujo proprietário é um fazendeiro que não mora na localidade. Os moradores da localidade

enfatizam os transtornos que essa atividade tem causado, pois os animais são criados soltos

na maior parte do tempo e, como consequência, pisoteiam as matas ciliares dos igarapés,

nadam nesses ambientes afugentando os peixes e destruindo os roçados.

A criação de caprinos e ovinos (7%), em relação às demais atividades criatórias, é

reduzida, porém com destaque para a localidade Jaiteua de Baixo onde a família de um

pescador de subsistência cria em torno de uma centena desses animais. A família destina a

produção para a comercialização. Nas demais localidades, a criação de caprinos e ovinos é

apenas para consumo doméstico.

Os pescadores de subsistência utilizam apetrechos de pesca tanto para a pesca de

subsistência quanto comercial, destacando-se a malhadeira e a tramalha. Isso decorre,

segundo o Sr. Armando, pescador de subsistência, da escassez de peixes “graúdos”, o que

minimiza a viabilização da pesca com os apetrechos tradicionais – que antigamente eram

utilizados com mais frequência – como o arpão, a azagaia, o arco e flecha, embora não

tenham deixado de utilizá-los.

Dessa forma, os recursos pesqueiros para os pescadores de subsistência possui um

valor-de-uso, um valor qualitativo que expressa a vida no sentido que serve de fonte de

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nutrição para esse grupo social, trocam o produto não no sentido de obterem lucro com a

venda, mas para adquirirem bens e serviços que a sua unidade doméstica não produz, ou

seja, troca mercadoria por mercadoria, sendo a moeda apenas um meio de circulação.

As três localidades também reúnem a presença dos pescadores comerciais,

denominados por Lourdes Furtado (1993) como pescadores monovalentes. Os pescadores

citadinos ou “pescadores de fora” como classificados pelos pescadores das localidades, e

que fazem parte deste conceito “pescadores monovalentes”, serão apresentados mais adiante.

Os pescadores comerciais locais estão mais presentes na localidade Jaiteua de Baixo

(66,7%), um pouco menos predominante em Jaiteua de Cima (39%) e são menos

expressivos em Cajazeira (14,3%) (vide gráfico pescadores).

De acordo com Furtado (1993), o pescador que se dedica à pesca comercial, apesar

de estar associado às grandes cidades, não é apenas o pescador citadino, mas inclui também

os ribeirinhos ou varjeiros, que podem (ou não) ser contratados pelos barcos de pesca ou

“motores de pesca” (embarcações com caixas de gelo ou urnas com gelo). “Isto [...] causa a

mistura entre ribeirinhos e pescadores profissionais, gerando a cumplicidade de muitos

comunitários com a atividade comercial” (BATISTA et al, 2004, p. 76). Os pescadores

monovalentes das localidades se autodefinem como pescadores simplesmente. Eles fazem

do produto da pesca uma mercadoria, possuindo não apenas valor-de-uso, mas, sobretudo,

um valor-de-troca. Estes pescadores se dedicam à pesca de maneira mais intensa e menos à

agricultura.

Eles enfrentam jornadas corridas de trabalho, sobretudo, porque parte do valor de seu

produto é posse de outros agentes sociais (compradores ou atravessadores). Estes pescadores

se dedicam o ano inteiro à pesca e se deslocam a grandes distâncias em busca de lagos e rios

piscosos, “vive o pescador, do lago para o rio, do rio para o lago, obedecendo à sazonalidade

do produto da pesca nesses biótopos” (FURTADO, 1993, p. 367). Por isso, o raio de ação do

pescador comercial, é bem maior do que o dos pescadores de subsistência.

Os apetrechos de pesca mais utilizados pelos pescadores comerciais das localidades

são a malhadeira, a tramalha, e quando conseguem, emprestado ou arrendado de algum

pescador, o arrastão ou a rede de pesca. Existem, entre esses pescadores, alguns que

trabalham para barcos de pesca em determinados períodos, porém nem todos os moradores

das localidades admitem isso porque sabem que os pescadores comerciais locais atuam nos

ambientes protegidos pelas localidades. De outro modo, quando vão pescar para a

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comercialização, pescam também em lugares distantes, por isso vão sempre acompanhados

de algum amigo ou parente, desse modo, dividem o lucro da pescaria após a venda.

Alguns pescadores comerciais locais vivem em condições precárias de trabalho, pois

não possuem todos os apetrechos de pesca necessários para esta atividade, isso os obriga a se

associarem ou trabalharem para os outros pescadores. É o caso de um pescador comercial

local, que trabalha para um pescador comercial citadino, este lhe oferece todos os apetrechos

de pesca, o lucro é divido, e essa divisão sempre tende a beneficiar o proprietário dos meios

de produção.

Analisando a realidade dos pescadores comerciais das localidades, entendemos que o

conceito de pescador monovalente de Furtado (1993) abarca as similaridades que há entre os

pescadores, porém verificando o contexto dos pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo

identificamos que esses atores sociais dependem exclusivamente da renda da pesca para

viver, pois, além de ser a principal fonte de renda das famílias, a situação de dependência

exclusiva à pesca comercial se mantém pelo fato de as atividades agroflorestais, agropastoris

e extrativistas serem pouquíssimos estimuladas ao desenvolvimento.

Os fatores que mantêm essa condição, de acordo com os moradores da localidade,

estão relacionados mais aos problemas políticos e econômicos, envolvendo a mais a

organização social da localidade do que problemas ecológicos relacionados ao meio

ambiente onde vivem e trabalham.

Do ponto de vida econômico, os pescadores afirmam que o sentido dado à

predominância desta atividade decorre da seguinte maneira: em primeiro, situa-se a renda

imediata que o pescado proporciona quando comparado às outras atividades produtivas, tais

como, a agricultura ou extrativismo. Nestas atividades, a quantidade, o peso e a variedade de

produtos é o que determina, quando bem negociados, as condições de maioria rentabilidade,

porém exigindo mais tempo de trabalho da unidade familiar, isto é, da participação

numerosa, ativa e disponibilidade de tempo de todos os membros do núcleo familiar.

Nas atividades agrícolas e extrativistas, as expectativas das famílias são pouco

alcançadas quando comparadas à pesca, pois, para o pleno desenvolvimento, seriam

necessários investimentos em otimização da produtividade, tais como, a compra de

equipamentos, a garantia e a disponibilidade da mão de obra da unidade de produção

camponesa e favoráveis relações de negociação com a mão de obra contratada e,

principalmente, a melhor negociação com agentes da comercialização – os regatões, os

feirantes e os marreteiros, uma vez que a presença desses agentes sociais é constante neste

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processo, sujeitando os trabalhadores à condição de subordinação na cadeia de

comercialização do excedente produzido, que se inicia nessas localidades, face às relações

econômicas mais abrangentes consolidadas em Manacapuru.

Na pescaria, o contexto do trabalho é mais flexível e oportuno, pois o pai em

determinadas circunstâncias pode optar em pescar sozinho tal como ocorre nos períodos da

enchente e cheia (nos lanço) ou na seca (nos paranás), reduzindo também o número de

parcerias de pesca. Isso minimiza o esforço de trabalho da unidade familiar, poupando-a

para as demais atividades acima descritas (agricultura ou extrativismo) ou até mesmo para o

descanso.

Esta economia do tempo que a pesca pode promover não é um fato que acontece para

todas as famílias, isso porque a unidade familiar está todo tempo trabalhando em alguma

atividade, seja no roçado, no extrativismo ou no conserto e manutenção dos apetrechos de

pesca. Mas a rentabilidade em curto prazo de tempo que o valor agregado do pescado pode

proporcionar permite que as crianças, por exemplo, possam ter mais tempo disponível para

frequentar a escola, não se vinculando o dia inteiro à polivalência das atividades produtivas.

O pescador comercial esclarece:

“[...] A agricultura pra nós aqui é mais difícil, falta organização na nossa

comunidade, falta legalizá né é isso mesmo que chama, né. Porque senão

tira o documento certinho da comunidade não da pra gente consegui as

coisa, porque tudo hoje em dia tem que tá organizado em comunidade, né.

É por isso que a gente fica na pesca mais, a gente pesca e ganha mais

rápido [...] é no roçado a família fica todo tempo ocupada, não falta comida

mas dá pouco dinheiro. Por isso que é bom pesca, eu prefiro pesca sozinho

e evita leva as crianças pra elas pode estudá, se ganhar dinheiro só com a

plantação dá pouco e precisa de muita gente pra trabalhá, toma todo nosso

tempo, a pesca não é mais rápido, é só pesca e vende” (F.R.L.M., pescador

comercial, Jaiteua de Baixo, 2008).

A “pesca de caixinha”, também conhecida como “pesca rápida” é uma atividade

rápida e rentável para o pescadores comerciais e pescadores de subsistência da localidade.

Ela é praticada nas três localidades e consiste na captura de diversas espécies de peixe de

tamanhos variados (pequeno, médio e grande), ou podem atender a encomendas requisitando

tambaquis ou tucunarés, considerados “peixes de classe” na linguagem do pescador. As

capturas são mantidas congeladas dentro de uma caixa de isopor que pode variar de 100 a

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200 litros. Depois da caixa completa, a venda do pescado ocorre imediatamente no porto

Panairzinha14

em Manacapuru, e o pagamento feito em dinheiro.

O segundo fator que torna a pesca atrativa para os pescadores comerciais de Jaiteua

de Baixo é a fartura do peixe que é relativamente constante em determinados pontos de

pesca (pesqueiros) por eles apropriados devido às circunstâncias naturais favoráveis. Os

lanços de pesca que os pescadores realizam são ocorrentes em áreas de igapó ou igarapé

muito rico em variedade de espécies na enchente e cheia do ciclo das águas – as

característica da floresta inundada onde ocorrem esses pesqueiros e suas qualidades foram

descritas no capítulo I.

Esta dinâmica também é marcada pela concorrência entre os pescadores da

localidade que, por sua vez, dividem seus territórios de pesca com pescadores de localidades

vizinhas e todos em competição com os diversos agentes sociais da pesca – pescadores

citadinos e motores de pesca (barcos de pesca) que apresentam níveis de concorrências

elevadas e desiguais socialmente. Porém estabelecendo relações de complementaridade para

comercialização da produção.

O terceiro fator que torna a pesca a atividade principal são os conflitos políticos

internos envolvendo os agentes sociais representantes dos poderes decisórios da localidade,

cuja atribuição das práticas estão mais fundamentadas em relações de parentesco e

vizinhança geralmente centrado em pessoas mais velhas e considerados moradores mais

antigos, inviabilizando processos de negociação, acordos e consensos entre outros

moradores interessados na mudança de postura política e econômica da localidade.

Caso o consenso interno fosse alcançado, as futuras ações de decisão possivelmente

viriam a beneficiá-los em situações mais abrangentes que exigem o reconhecimento e

legitimidade oficial documentada da comunidade Santo Antônio (Jaiteua de Baixo) para

aquisição de empréstimos financeiros para o desenvolvimento de possíveis frentes

produtivas, atualmente pouco desenvolvidas, por exemplo: a agricultura. Estas dificuldades

enfrentadas são pouco mitigadas estando ainda em andamento. Esse contexto torna a pesca

comercial como meio de renda mais imediata e menos burocrática apenas sujeita aos

acordos de pesca como ocorre nas demais localidades – Cajazeira e Jaiteua de Cima.

O pescador comercial explica:

14

O porto Panairzinha (flutuante) é o principal comprador de pescado oriundo do lago Grande de Manacapuru.

Praticamente todos os pescadores das localidades vendem o pescado neste flutuante, com exceção dos

pescadores que trabalham para os motores de pesca (barcos geleiros).

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“[...] ah! ... a gente vem batalhando pra mudá as coisas aqui fazendo

reunião, mas o problemas é mais entre o pessoal que acha que mora aqui

mais tempo, que não qué mudá de opinião, fica preocupados achando que

vão ficá pra trás. É ruim porque se não uni, não vai consegui nada, porque

temos que regularizá a comunidade, deixá em dia pra consegui dinheiro prá

faze nossas plantação melhó” (F.R.L.M., pescador comercial, Jaiteua de

Baixo, 2007).

No campo de disputa pela apropriação dos ambientes aquáticos, a presença dos

pescadores citadinos é constante em territórios de pesca das localidades. Os pescadores

citadinos são denominados pelos pescadores das localidades pelo rótulo “pescadores de

fora”.

Segundo Furtado (1993), o estilo de vida polivalente dos pescadores de subsistência

– onde se trabalha a terra, a floresta e a água – se dilui a partir do momento em que o

pescador migra para os centros urbanos, não encontrando mais condições objetivas de viver

como antes, passando a se dedicar no campo da pesca intensiva.

Os pescadores citadinos, ou, de acordo com a definição de Furtado (1993),

monovalentes, se autodefinem como pescadores. Fazendo parte desta categoria, em termos

conceituais, os pescadores comerciais das localidades, porque se consideram pescadores

simplesmente, vivendo relativamente da renda da pesca.

Os pescadores citadinos habitam os centros urbanos municipais de Manacapuru. Em

sua maioria, são emigrantes vindo das áreas de várzea em busca de melhores condições de

vida, mantendo relações com os parentes que continuaram na várzea. Juntam-se, a estes

pescadores, pessoas residentes nos próprios municípios que resolvem se converterem em

pescadores em busca de auferir recursos monetários mais rápidos para satisfazer suas

necessidades materiais e sociais.

Este grupo social de pescador vive prioritária ou exclusivamente da pesca. O produto

de seu trabalho é destinado ao consumo de suas famílias e à venda. Dessa forma, a pesca é a

atividade produtiva principal na vida do pescador citadino, onde o comércio do pescado é

feita em proporções muito maiores das encontradas pelos pescadores de subsistência e

pescadores comerciais das localidades pesquisadas.

Uma das características mais significativas da pesca realizada pelos pescadores

citadinos, é que o produto de seu trabalho possui não só um valor-de-uso – como vimos no

grupo anterior –, mas, sobretudo, um valor-de-troca. Sua produção pesqueira, contudo, se

destina principalmente à comercialização, sendo o peixe a principal fonte de renda.

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Os pescadores comerciais citadinos se dedicam o ano inteiro à pesca e deslocam-se a

grandes distâncias em busca de lagos e rios piscosos (FURTADO, 1993, p. 367). Por isso, o

raio de ação desse tipo de pescador, é bem maior do que o dos pescadores de subsistência.

Os pescadores citadinos (FURTADO, 1993) geralmente são filiados à Colônia de

Pescadores de Manacapuru – Z9. Consideram-se e são considerados profissionais. Alguns

pescadores possuem muitas apetrechos de pesca, têm vasto conhecimento acerca do

comportamento dos peixes, o que os possibilitando detectar e capturar grande variedade de

espécies quando atuam nos motores de pesca, na pesca de caixinha (individual) ou na pesca

de parceria em lanços de pesca preparados em rios como, o Solimões-Amazonas, ou no lago

Grande.

Os pescadores das localidades que pescam comercialmente, raramente possuem um

arsenal de pesca semelhante aos pescadores citadinos, pois são diversos em tamanho,

variedade e de preços elevados. É importante ressaltar que alguns destes agentes sociais

vivem da sazonalidade de pesca. Fora desta época, praticam diversas atividades: são

ajudantes da construção civil, trabalham em fazenda ou voltam para as comunidades de onde

vieram para restabelecer contatos com familiares e desenvolver novas relações de trabalho, e

outra parte dos trabalhadores dessa categoria assume a profissão de pescador continuamente

durante o ano atuando em diversos barcos de pesca comercial (Figura 32).

Figura 32 – Pescadores citadinos.

Fonte: Dados de campo (2007).

Tal como aborda Leonel (1998), em A Morte Social do Rios, a questão é que parte

significativa dos pescadores que reside na sede do município não são proprietários dos

meios de produção. Alguns deles trabalham e vivem em condições de subalternidade aos

patrões – donos de barcos de pesca e atravessadores. As longas jornadas de trabalho, a

dependências dos meios de produção, a informalidade da atividade que é justificada pelo não

registro da carteira de trabalho, os baixos salários e os múltiplos acordos como formas de

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pagamento pelo trabalho realizado, marcam a precarização do trabalho e a péssima

qualidade de vida destes trabalhadores.

Neste contexto, verificou-se que estes trabalhadores são marginalizados, e o rótulo

“pescadores de fora” deve ser problematizado em relação direta com os processos culturais e

econômicos a que estão inseridos local e globalmente. Caso contrário, corre-se o risco de

estigmatizá-los como gananciosos, o que é comum durante as concorrências pela

apropriação do pescado.

Como apresentado, discorremos sobre os principais pescadores das localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima e suas rotinas de trabalho. Neste contexto

destaca-se a atuação dos pescadores citadinos (pescadores de fora) em seus territórios de

pesca, que em determinadas situações, foge ao controle social dos pescadores das

localidades por fatores que veremos mais adiante, sendo importante lembrar que o lago

Grande de Manacapuru é um ambiente de livre acesso, porém demarcado territorialmente

pelos pescadores das localidades.

2.4 Reflexões sobre tempo ecológico e tempo social na pequena pesca mercantil simples

Pensando a atividade pesqueira realizada pelos pescadores de subsistência e

pescadores comerciais das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, o fator

tempo nesta atividade nos remete ao tempo dos ciclos da natureza em conexão com a

dimensão, prática, simbólica e econômica da pluralidade cultural dos povos amazônicos e

não-amazônicos. Há, como nos adverte Marilene Corrêa (1999) em Metamorfoses da

Amazônia, a inter-relação temporal e espacial entre o local e o global. O local está no global

e o global está no local, ideia sugerida apenas para fazer alusão ao tempo e ao espaço das

atividades econômicas e culturais da amazônia elaboradas pelo tempo histórico social de

cada grupo social e em parte determinada pelas exigências do mercado capitalista nacional e

internacional.

Esta afirmação não nos parece exagerada ao verificar que significativa parte da

produção pesqueira executada na Amazônia atende às expectativas do mercado nacional e

internacional.

Apenas para dar fundamento argumentativo ao uso do tempo e espaço pelos

pescadores das localidades que vivem sob o regime do ciclo hidrológico da várzea

amazônica, alguns intelectuais da ecologia, sociologia e da antropologia tem dado atenção

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ao fator tempo em determinados estilos culturais face à dinâmica e espacialidade dos ciclos

naturais.

Embora tenhamos uma noção ou opinião ou consciência generalizada sobre o

significado do que seja tempo, este é um fator característico e singular para qualquer

sociedade ou agrupamento social.

A modernidade faz do tempo uma noção prática que soa linear para nós. Um tempo

cronológico que não apresenta descontinuidades históricas. Temos que dar solução aos

problemas, e os problemas são o agora o imediato. Não há tempo para pensar o tempo da

natureza, e não internalizamos o tempo que deve ser dado a ela.

A sociedade moderna, se orienta pelo tempo do relógio. É impossível nos

desvincular dele porque está em nossa cultura, a cultura ocidental do mundo. Como diz

Boaventura de Souza Santos (2006), em Uma Sociologia das Ausências e Uma Sociologia

das Emergências, tudo que é peculiar (cultural, econômico ou político) em determinados

grupos sociais que não se enquadra na cultura ocidental do mundo é o atrasado, é o inferior,

é o feio, é o indolente. Está “ausente”, não é conhecido. Porém algumas especificidades

culturais são encontradas em locais em que a dinâmica do global também se faz presente,

como o caso das localidades rurais de Manacapuru.

Edmund Leach (1974) apresenta dois aspectos do tempo que é concebido em termos

gerais em sociedade influenciadas pela cultura ocidental: a) o tempo que se refere aos

fenômenos da natureza e que são percebidos como repetição; e b) o tempo que sugere que as

mudanças da vida são irreversíveis – a morte, por exemplo.

A primeira característica se refere ao tempo da repetição, dos fenômenos dos ciclos

naturais: a chuva, o verão, a seca, a ocorrências de dias, o tique taque de um relógio. O autor

esclarece que o tempo que se repete é um tempo esperado, um intervalo de tempo. Um

ritmo. O segundo diz respeito à não repetição. “Estamos cientes de que as coisas vivas

nascem, crescem e morrem, e que esse fenômeno é irreversível. O autor sugere que todos os

outros aspectos do tempo, duração ou sequência histórica em “profundidade” ou

descontinua, são exemplos sugeridos como derivação dessas duas condições, porque é assim

que a sociedade contemporânea concebe as sociedades que não se enquadram em aspectos

do tempo da modernidade.

O que o autor percebe é que momentos históricos do pensamento grego, perpassando

pela filosofia romana até a formulação do ideário cristão, a concepção de tempo foi

modificada. Os dogmas de várias religiões encerrou o repúdio à “realidade” da morte; “um

dos estratagemas mais comum é simplesmente afirmar que a morte e o nascimento são as

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mesmas coisas – que o nascimento segue a morte, assim como a morte segue o nascimento”

(LEACH, 1974, p. 193). Essa concepção motiva o ser humano a pensar que tudo pode e

deve ser realizado no mundo terreno, pois morte não há. O que há é um renascer que se

repete. O segundo aspecto do tempo (b) se ajustam ao primeiro (a). Nesta linha de

pensamento, os recursos naturais são pensados e utilizados como algo permanente tal qual a

vida humana. “Deus proverá os homens”.

Essa afirmação não poder ser dada como a única forma de explicação para a questão

do tempo na modernidade, mas a materialidade presente no discurso religioso percebe o

acúmulo como algo benéfico, um dom divino como esclarecido por Max Weber (2004) em a

Ética protestante e o “espírito” do capitalismo.

Edmund Leach afirma:

a regularização do tempo moderno não considera o tempo da natureza

como parte intrínseca da natureza, é uma noção fabricada pelo homem, que

nós já projetamos em nosso ambiente para os nossos próprios objetivos

particulares (LEACH, 1974, p. 205).

Por que indagar o tempo ao pensarmos as atividades pesqueiras? Pensamos que a

pesca na várzea, como identificado por Evans-Pritchard (2005) – em áreas sazonais –, Fraxe

(2000), Henrique Pereira (2007) e Witkoski (2007) de forma direta ou indireta em suas

pesquisas, está estreitamente conectada com a dimensão do tempo internalizada pela

atividades práticas do pescador. Na prática da pesca nos lanços, há o tempo ecológico da

natureza internalizada na consciência do pescador, e a pesca se realiza face às nuanças do

contexto do pescador – suas necessidades materiais e simbólicas imediatas – e

condicionadas também pelas determinações do ciclo hidrológico.

Percebemos que não há uma disjunção entre o tempo ecológico e o conceito de

tempo social do pescador, isso porque de modo geral seus meios de vida partem daquilo que

a natureza pode fornecê-lo. Não há indústria ou qualquer tipo de manufatura nas localidades.

Porém o que verificamos é a dependência significativa dos pescadores das localidades com

relação aos ambientes que vivem, pois deles retiram os produtos que serão vendidos para

adquirir outros produtos que não podem produzir.

Um caso clássico para pensar essa realidade é o trabalho de Evans-Pritchard (2005)

intitulado Os Nuer, que aborda o sentido da articulação entre os ciclos naturais e o modo de

vida e política organizacional desta etnia situada numa planície denominada nilota em

Sudão, país do continente africano.

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Aos falar sobre os aspectos ecológicos da terra dos Nuer, o autor descreve:

“Do ponto de vista de um homem europeu, a terra dos nuer não possui

qualidades favoráveis, a menos que se considere como tal sua severidade,

pois seus pântanos intermináveis e amplas savanas [vegetação típica de

parte do continente africano] têm um encanto austero, monótono. É muito

duro viver nela tanto para os homens, quanto para animais, sendo a maior

parte do ano ou seca ou em pântano. Os Nuer, porém, acham que vivem na

melhor região do mundo e, deve-se reconhecer, para criadores de gado, a

região tem muitas qualidades admiráveis. [e o autor continua] [...] eu logo

desisti de convencer os Nuer de que existem regiões mais adequadas para a

criação de gado do que a deles, tentativa que se tornou mais inútil ainda

desde que alguns deles foram levados para Karthum – que é considerada

por eles como o lar de todos os brancos – e, tendo visto a vegetação

desértica daquela latitude, viram confirma-se a opinião de que a terra deles

é superior que a nossa” (PRITCHARD, 2005, p. 61).

O autor evidencia que os Nuer operam suas atividades de trabalho em duas formas de

tempo: o ecológico e o estrutural. O tempo ecológico é mensurado a partir das épocas de

cheia e de seca da região que vivem, que eles conceituam como tot e mai respectivamente.

Na estiagem (seca) eles devem ter certos cuidados com o gado – a principal fonte de

alimentação – complementada por outras formas de proteína como o sogo e o milho, além da

pesca. No caso, eles conduzem o gado até o leito do rio, onde há pastagem e montagem de

seus acampamentos. O tempo é dividido entre as tarefas de preparação de montagem dos

acampamentos e da retirada dos membros do grupo das terras altas que haviam ocupado no

período anterior das chuvas, terras que não serão ocupadas desta vez.

Já na época das chuvas, o grupo retorna para as suas cabanas permanentes, há muito

tempo estabelecidas. Junto dessas estão os currais que ficam situados nas terras mais altas da

planícia nilota. Pritchard observou que as estações da chuva e da seca é que determinam as

atividades do grupo, ou seja, o que ele denominou de tempo ecológico.

Os Nuer possuem convenções similares aos nossos doze meses do ano, baseadas

nas tarefas da lua. Porém, como o autor frisou, não há muita referência aos meses e sim às

atividades desenvolvidas neste ou naquele período, levando em consideração os

acontecimentos marcantes para o grupo. Mas os Nuer, ao indagarem a sua memória, não se

referem a meses ou estações, mas às atividades que realizavam quando de um evento

marcante para o grupo. Por exemplo, eles não se referem ao mês de pet, mas as atividades

que eles desempenhavam naquele período, e a partir dessa descrição sabem em que período

estavam. Eles raramente usam os nomes do ano, mas referem-se à época do plantio, época

dos casamentos, época da pesca, época da colheita.

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Pritchard observou que, “o calendário dos [Nuer] é uma relação entre o ciclo de

atividades e um ciclo conceitual, e os dois não podem ser isolados, já que o ciclo conceitual

depende do ciclo das atividades do qual se deriva do sentido e função” [dos papéis sociais

dos homens, mulheres, crianças e idosos no interior do grupo Nuer] (EVANS-

PRITCHARD, 2005, p. 113)

Pritchard chama atenção, à primeira vista, parecer o tempo ecológico a variável que

determina as formas de entendimento do mesmo. Mas o tempo, apesar de tudo, é estrutural,

pois está relacionado à função social dos papéis sociais ligados à organização social e à

produção tendo em vista a sobrevivência dos Nuer. Mas isto não significa uma

correspondência imediata. No caso, o tempo estrutural está determinado por aquilo que o

autor chama de distanciamento estrutural, o que significa dizer que são as relações de

linhagem e parentesco, bem como os grupos etários, é que determinam a forma de se

relacionar com a categoria tempo entre os Nuer.

O autor chama atenção ao dizer que não há universalização de tempo para os Nuer,

pois como são vários grupos espalhados pela margem do Nilo, cada um tem seu sistema de

referência baseado nos acontecimentos internos de seu grupo. Por sua vez, estes

acontecimentos fornecem significados para apenas aquele grupo e não para outros. Pritchard

(2005, p. 120) reconhece os limites de nossa compreensão das categorias do tempo em outra

cultura.

Os Nuer são um exemplo clássico e tipo ideal de organização social simples e

complexa – neste, caso parafraseando Edgar Morin (1999), o simples não é antônimo e nem

oposição do complexo. O simples é tão complexo quanto o complexo – que permite pensar o

modo de vida dos pescadores de subsistência e pescadores comerciais das localidades, uma

vez que suas orientações de trabalho seguem a lógica do ethos organizacional do grupo

doméstico, tendo em vista a sobrevivência do grupo. O mercado econômico é uma variável

importante, porque necessitam estabelecer trocas materiais para aquisição de outros bens

materiais que não produzem localmente. O imaginário ecológico e conceitual dos pescadores

das localidades parece operar conforme as condições ideais da qualidade de vida do grupo

doméstico.

As similaridades das atividades pesqueiras sob o peso dos ciclos ecológicos da

várzea quando comparados aos Nuer são menos radicais, pois nem todos os pescadores de

subsistência e comerciais das localidades migram de suas moradias no tempo da cheia,

apenas, em casos extremos da seca ou da cheia, como indica Emílio Morán (1990) e Pereira

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(2007) ao explicarem os limites da adaptabilidade humana quando se prolonga os picos da

cheia ou extremos da seca como descrito no capítulo I.

Os pescadores não operam no sentido imaginário conceitual estrutural dos Nuer

porque é outra matriz cultural diferente, mas apresenta similaridade em relação ao ethos do

camponês amazônico identificados por Fraxe (2000) e Witkoski, (2007), porque se

valorizam a identidade, a crença e as normas internas do grupo, que não são diluídas

necessariamente pelo mercado comercial. Este é apenas uma variável da cultura apesar de

sua importância fundamental e determinante em relação ao que se deve produzir enquanto

mercadorias da atividade pesqueira exigidos em Manacapuru ou em Manaus.

De modo comparativo, podemos pensar o tempo ecológico e o tempo social

presentes na pesca de lanço, a partir das formulações de Lúcia Helena de Oliveira Cunha

(2000), em Tempo natural e tempo mercantil na pesca artesanal, um estudo realizado junto

à comunidade pesqueira de Barra de Lagoa (SC), que objetivou compreender como a

categoria tempo (do capital ou “natural”) imprime ritmos variados de jornada de trabalho no

interior da pesca artesanal.

Segundo a autora, o tempo “natural”15

é característico e expressão de algumas

comunidades tradicionais ou domésticas, cuja rotina da vida diária está regulada pelas

tarefas de trabalho associadas a diversas práticas produtivas, e por fronteiras de tempo de

trabalho e de não trabalho não marcados nitidamente pelo tempo do relógio, pois a

polivalência de atividades evolvendo agricultura ou a pesca exigem disponibilidade de

trabalho necessário à vida. Há um tempo ecológico e social no interior destas atividades.

Por outro lado, o tempo mercantil ou o tempo do relógio é mais característico das

chamadas sociedades modernas ou industriais, cujo ritmo de tempo se expressa através das

relações sociais formais ou informais, definidas pela própria sociedade, em especial, aquelas

regidas pelas relações capitalistas16

.

Ambas as formulações de tempo não são encontradas em “estado puro” na nossa

atualidade. Tratando-se da pesca de subsistência e pesca comercial, enquanto forma de

apropriação dos recursos pesqueiros, o tempo de trabalho se apresenta em dois níveis no

interior destas atividades: o primeiro é a realização da pesca como fonte básica de

subsistência, a outra é a atividade de pesca como atividades para renda imediata e condição

15

É importante compreender que a categoria tempo é analisada numa perspectiva antropológica, ou seja, o

tempo como sendo uma construção cultural e social. 16

De acordo com a autora, o tempo do relógio que representa consiste no regulador do ritmo dominante nas

sociedades ocidentais”, pois o homem se encontra submetido a uma medida autônoma, fora quase que

totalmente do seu controle (CUNHA, 2000, p. 102-103).

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básica de vida (a venda do pescado ou da mão de obra). Em síntese, os dois ritmos de

trabalho podem apropriar-se distintamente dos recursos pesqueiros, no entanto, se

complementam economicamente à medida que se considera a natureza do processo de pesca

em conformidade com o destino da produção, caso seja para a subsistência ou para

comercialização.

O antropólogo Antonio Carlos Diegues (1983) afirma que:

a significação da pesca artesanal está contida em um conjunto de

elementos singulares. Do ponto de vista de sua organização interna,

destaca-se o fato de se constituir uma atividade econômica que depende

das forças naturais, cujos reflexos imediatos atuam na geração do

excedente e nos grupos ou classes sociais envolvidos. Como uma atividade

eminentemente irregular, o pescador tem sobre ela pouco controle, estando

em direta dependência da natureza e de suas leis básicas – ventos e chuvas

– e do próprio ciclo de produção e migração dos peixes.

Daí resulta que a categoria tempo, nas reflexões de Lúcia Helena de Oliveira Cunha

(2000), colabora para pensarmos como a noção de tempo pode imprimir ritmos

diferenciados de trabalho no interior das práticas de pesca de subsistência e comerciais de

acordo com a racionalidade de quem se apropria.

Pereira (2007) nos esclarece o dia a dia do camponês da várzea amazônica ao

mencionar que algumas atividades são pensadas em termos do calendário agrícola. O autor

afirma que o tempo da várzea é demarcado pelas fases terrestre e aquática, e que os ciclos

produtivos perpassam pelas questões climáticas, pois estas atividades operam no ambiente

de várzea, onde a falta de sincronização entre regime pluvial e fluvial faz como que existam

quatro “estações climáticas” – enchente, cheia, vazante e seca. Entender esse tempo da

várzea é fundamental para compreensão do tempo social das atividades pesqueiras.

A seguir veremos que a pesca nos lanços opera sob a convergência das variáveis

ecológicas, econômicas e sociais, demonstrando que a conservação dos recursos pesqueiros

depende do manejo que considera o equilíbrio dessas variáveis.

2.5 A pesca no lanço: o conhecimento básico para o manejo da pesca de subsistência e

comercial

Ao pensarmos a prática da pesca no lanço, entendemos que o conhecimento e as

práticas dos pescadores de subsistência e comerciais das localidades estão interligados, fato

que orienta culturalmente e sustenta os ambientes manejados. Este conhecimento está na

base das decisões e estratégias de pesca dos pescadores das localidades.

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Neste sentido, ele é empírico e prático, combinando informações sobre o

comportamento dos peixes, taxonomias e classificações de espécies e hábitats, assegurando

capturas regulares e, muito das vezes, a sustentabilidade a longo prazo, das atividades

pesqueiras. O conhecimento tradicional também é capaz de fornecer o conhecimento crucial

para o manejo dos recursos pesqueiros locais.

Neste trabalho, o conhecimento dos pescadores é entendido como um conjunto de

práticas cognitivas, fundamentados em habilidades (noções espaciais e perceptivas) e

práticas que são transmitidas pela própria prática.

Diegues (1983) e Furtado (1993) que estudaram comunidades de pescadores

caracterizam alguns elementos constitutivos do conhecimento de pescadores. Deste modo,

traçamos alguns paralelos de seus conhecimentos para identificar as peculiaridades da

cultura dos pescadores das localidades pesquisadas. Assim percebemos que o conhecimento

se caracteriza: a) pelas relações simbólicas e econômicas com os recursos da terra e da água;

b) pela ligação como os territórios de pesca tendo em vista as atividades de subsistência e as

relações com o mercado comercial para a reprodução do modo de vida; c) o papel

desempenhado pela unidade familiar e as relações sociais baseadas principalmente no

parentesco (geralmente é o filho e o parceiro que pesca mais com o pai; d) pelo uso de

tecnologias relativamente simples e mais baratas compradas ou feitas com o material do

ambiente de moradia; c) uma identificação social e a linguagem peculiares em relação à

sociedade urbanizada. Outras características mais particulares do conhecimento dos

pescadores se relacionam com o hábitat dos peixes; a classificação das espécies (peixe-

cachorro, por exemplo, peixe cambuti), e os conhecimentos alimentares das espécies de

peixes.

Se, para a ciência contemporânea, o conhecimento sistematizado representa o modo

de classificar, organizar e compreender a complexidade das coisas do mundo, o

conhecimento dos pescadores das localidades Jaiteua de Cima, Jaiteua de Baixo e Cajazeira,

representa a ciência da experiência de vida dos ribeirinhos no contexto da várzea amazônica.

Nesta perspectiva, Lévi-Strauss (1996) enfatiza que a diversidade cultural se

constitui de diferenças culturais – conhecimentos e técnicas – e não de desigualdades

culturais17

. De outro modo, cada cultura ou grupo social estabelecem empréstimos ou

exercem trocas culturais que se opõem umas às outras por motivos de decisões econômicas e

17

O termo desigualdades culturais significa a noção explicita e, em certas circunstâncias implícita, de vincular

o conceito de cultura relacionado à existência de sociedades ou grupos culturais superiores e inferiores.

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forças políticas. E, em certas circunstâncias, fecundam-se naturalmente a ponto de

convergirem para algo positivo, se beneficiando mutuamente, com base no conhecimento e

nas técnicas diversas que cada cultura disponibilizou ao longo de sua trajetória histórico-

social.

Contextualizando esta reflexão, percebe-se atualmente que a intensificação do uso de

apetrechos de pesca modernos – malhadeiras e tramalhas – no cotidiano dos pescadores de

subsistência e pescadores comerciais, significa mudanças culturais substanciais nas formas

de apropriação dos recursos ictiofaunísticos. Quer seja pela facilidade ou pelo aumento da

capacidade das capturas com estes apetrechos em virtude das demandas de mercado e pela

necessidade de sobrevivência dos pescadores, é pertinente ressaltar que as práticas de pesca

e a confecção de apetrechos tradicionais, tais como o arpão, o arco e flecha, estão em

situação de quase desuso. Fato que pode ocasionar a perda do capital cultural investido na

confecção destes apetrechos desenvolvidos ao longo do tempo, uma vez que apresentam

detalhes e mecanismos estruturais importantes em sua confecção e praticidade de uso (ver

tópico 2.6).

De outro modo, este conhecimento, quando não reproduzido socialmente, pode ser

degradado no tempo e no espaço, por ter ocasionado a falsa noção de apetrechos obsoletos e

atrasados por serem raramente manuseados e pelo fato de não atenderem às expectativas

pragmáticas do mercado. Não se trata de situar os pescadores de subsistência e pescadores

comerciais como reivindicadores da sua preservação cultural e nem de situá-los como

sociedades estacionárias, mas sim valorizar suas práticas culturais como patrimônio desta

diversidade de povos da região, e que tem muito a contribuir para a manutenção dos recursos

naturais.

Na várzea amazônica, o cotidiano de trabalho dos pescadores é marcado pelo tempo

natural dos sistemas ecológicos e pelo tempo mercantil das práticas econômicas que, pela

conexão intrínseca, caracterizam o estilo de vida do pescador ribeirinho que vive da

sazonalidade desta atividade e da polivalência de outras culturas – o extrativismo, a

agricultura, a caça e os serviços gerais – durante as fases do ciclo hidrológico. Neste sentido,

cabe ressaltar as reflexões de Cunha (2000, p. 105, grifo nosso):

“o pescador parece definir sua existência e demarcar os afazeres diários,

não somente em função do calendário urbano, mas [do calendário

ecológico] das principais safras de peixes que perpassam [os períodos do

ciclo das águas]. Ele se refere a [determinados momentos] enquanto

significado da atividade [de pesca], demarcando os períodos de passagem

dos peixes: [a piracema, época do jaraqui e da curimatã].

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Esta reflexão permite afirmar que o sentido dado aos processos de trabalho dos

pescadores das localidades, seja para subsistência ou comercialização, coadunam-se com

elementos ecológicos, cuja composição é internalizada nas práticas de pesca. Assim, o

sucesso nas pescarias dependerá do conhecimento acerca da temporalidade dos sistemas

ecológicos, isto é, da inteligência e capacidade perceptiva dos pescadores em relação aos

períodos de reprodução e movimentação dos peixes, o que influencia diretamente as

possibilidades de captura das diferentes espécies de peixes que vivem em cardume ou em

comportamento isolado.

Com base nas palavras de um pescador, é possível ter ideia do conhecimento dos

grupos sociais das localidades acerca da apropriação da ictiofauna ao indagá-lo sobre a

influência da Lua em suas atividades de pesca:

“[...] a Lua. Só vão por lua o peixe-boi, a anta, o veado, a queixadá, o

caititú. Esses animais só comem assim. Eles vivem assim pra cima. Até no

roçado na nossa plantação de mandioca, se nós plantarmos na lua nova ela

dá uma planta boa, e se for na minguante ela não dá não. Assim mesmo são

os bichos, eles vivem pela força da lua. Tem dias que você chega lá e não

tem uma lua bem forte pra eles, eles não vem não. O peixe, o tambaqui são

peixes de arribação, de lua. O pirarucu, o pirarucu ele vinha focar toda essa

cabeceira, mas quando está no tempo do rio seco ele se banhava aqui pra

cima” (A. S.; pescador de subsistência, Cajazeira, 2007).

“[...] numa época dessas, eles [os cardumes de tucunaré] estão saindo,

porque a água está arriando, aí tá secando. Então, eles estão saindo, porque

se não sair, eles ficam em terra, aí pra dentro, aí vão procurando o fundo,

saindo pro fundo. Aí ele vai, vai, aí quando é novembro, a água nova já

vem. Aí é a época da enchente, aí já vem entrando, aí que eles ganham as

cabeceiras, os igapós... aí fica difícil o cara pegar ele. Mas esse é o

momento bom de pescar, o peixe dá mais dinheiro e a procura da cidade é

muita” (V.S., pescador comercial, Cajazeira, 2007).

No cotidiano dos pescadores de subsistência e pescadores comerciais, o

conhecimento do ambiente em que vivem e a habilidade para fazer as coisas para utilizar

esse ambiente, à medida que vão sendo transmitidos e absorvidos pelos seus filhos,

transformam práticas, recriam hábitos de vida e modos de apreensão e apropriação da

natureza.

O conhecimento dos pescadores se constrói na prática, trabalhando. Estes agentes

sociais geralmente levam seus filhos para acompanhá-los nas pescarias. O processo de

aprendizagem da criança ao trabalho inicia a partir do 5 anos de idade, momento em que a

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criança começa a despertar para as curiosidades da natureza do mundo. A pesca no lanço é o

momento mais significativo desta experiência, pois esta prática expressa o conhecimento e a

habilidade do pescador (o pai) acerca dos pontos de concentração de peixes.

Na área de estudo, os lanços podem ser feitos em ambientes fechados como a floresta

inundada (igapó) ou em áreas abertas dos lagos, em suas margens. Nas localidades

pesquisadas, a pratica mais comum é o lanço de floresta inundada (alagada ou igapó). Soares

(et al., 2008) citada no capítulo I sinaliza que a composição de águas mistas do lago são

importantes fontes de energia e otimizadoras do processo biológico em floresta alagada. Na

época da enchente os igapós e os igarapés são ambientes favoráveis para os peixes porque

encontram muitos alimentos. Muitas árvores ao redor dos igarapés, por exemplo, estão em

fase de frutificação no período da enchente, e os peixes comem os alimentos que caem nos

igarapés, do mesmo modo ocorrendo com os igapós.

O lanço é uma prática de pesca relativamente individual e não altera muito o

ambiente. Cada lanço representa um ponto de pesca. Esse local geralmente é preparado no

período da seca, ocorrendo a limpeza do terreno do lanço, retirando troncos de algumas

árvores e galhos retorcidos, galhos emersos no período da seca, denominados localmente

como “cacaias”. O lanço se caracteriza por um corredor ou caminho de terra, cuja largura é

suficiente para o deslocamento de uma canoa. A garantia desse espaço e não mais que isso, é

importante, pois caso o tamanho exceda o “peixe estranha”. O comprimento deve garantir as

possibilidades de distender diversos tamanhos de malhadeiras ou tramalhas para exercer as

pescarias (Figura 33).

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A limpeza é necessária para que não haja o enrosco das malhas (malhadeiras) no

fundo do igarapé ou do lago, o que pode ocasionar prejuízos (danificação) ou risco de

acidentes ao entrar sucessivas vezes na água para desprendê-la. Em seguida, se marca com

golpes de terçado – o facão usado pelo ribeirinho – alguns troncos ou galhos que servirão de

referencial visual durante o período da cheia. Cada pescador tem seu lanço. “Ninguém é

dono do rio, mas o lanço é o trabalho do pescador. Para pescar no lanço do outro se deve

pedir licença, é a nossa regra aqui” (F.R.F., pescador comercial, Jaiteua de Baixo, 2007).

Nota-se abaixo o local conhecido como igapó da Terra Preta, próximo ao lago

Grande, onde foi possível perceber o desenvolvimento da prática do lanço (Figura 34).

Figura 33 – Preparo de um lanço (floresta alagada): época da seca.

Fonte: Dados de campo (2007).

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Figura 34 – Pesca no lanço (floresta alagada): época da enchente. Fonte: Dados de campo (2007).

Como observado, as imagens seguem uma sequência que permite pensar a pesca no

lanço: a criança geralmente conduz a embarcação. O pai orienta e lhe indica onde deve

entrar com a canoa motorizada (a rabeta). Neste período, a criança vai observando as

práticas do pai. O filho indaga, critica, dá opiniões e advertências. O pai, por outro lado,

pede para observar, e vai explicando, na prática, como um lanço se difere do outro. Há

lanços que dão mais peixes, outros, menos. As observações são importantes, pois cada lanço

apresenta suas especificidades: uma delas é a quantidade de fruta dentro e ao redor do lanço,

o que permite mais concentração de peixes, facilitando as capturas através das malhadeiras

distendidas de um ponto de amarração (referência) ao outro ponto do lanço.

Na rotina da vida do pai, a criança, ao acompanhá-lo, inculca e aprende a prática da

pesca. A habilidade e o conhecimento se desenvolve na experiência de vida, de modo

gradual e paciente.

O Quadro 6 ilustra a composição da pesca no lanço realizado pelo Sr. Rondon Filho

nas imediações da comunidade Santo Antônio, localidade Jaiteua de Baixo durante as

rotinas do seu trabalho.

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Quadro 6 – Indicação dos elementos presentes na pesca do lanço.

Fonte: Dados de campo (2007).

Com apoio na ilustração e na participação ativa do pescador comercial, nota-se que o

igapó da Terra Preta é um ambiente de pesca que apresenta diversos pontos de pesca.

Segundo Sr. Rondon Filho, os lanços são definidos conforme a natureza do processo de

pesca: caso seja a pesca para a subsistência, em condições naturais favoráveis, a definição do

uso de três lanços, em um dia de trabalho, é suficiente para a manutenção da rotina alimentar

da família durante uma semana de trabalho, dada às condições mínimas de armazenamento e

abrigo, isto é, o uso de técnicas de tratamento e conservação do pescado, tais como a

aplicação de gelo e da salga, o que é muito comum no dia a dia doméstico de sua família.

Nessa condição, a composição das pescarias é muito variável, sendo definida de

acordo com o desejo do pescador: ele pode pescar sozinho ou com seu filho (o que reforça

os laços consanguíneos) ou parceiro de pesca. Conforme as oportunidades do contexto, isto

é, da possível fartura do peixe, e, consequentemente, sua comercialização, ele pode ater-se

ao uso misto de apetrechos de pesca tradicionais e modernos ao mesmo tempo, sendo mais

comum o uso de malhadeiras e tramalhas, arpão e azagaia, respectivamente (ver tópico

apetrechos de pesca).

Neste tipo de pescaria, o deslocamento da residência até o local de pesca pode ser

realizado por canoa a remo ou canoa motorizada (a rabeta), porém o deslocamento dentro do

lanço exige total silêncio para não afugentar os peixes. Nessa condição, o uso de canoa a

remo é mais recomendável.

As espécies capturadas são variadas, tendo ocorrido o destaque para o ruelo, o

tucunaré, o pacu e o jaraqui, todos muito apreciados para autoconsumo e bons para

comercialização. Caso a pescaria seja exclusiva para a comercialização, a composição das

pescarias em um dia de trabalho pode exigir a definição do uso de mais lanços, isto é, de

mais pontos de pesca. Nesse contexto, a racionalização do espaço de trabalho, do tempo e

Ambiente/lanço Quant.

lanços*

Períodos

Favoráveis Horário

Pescadores

Apetrechos/

Embarcação Espécies**

“Igapó”da

Terra Preta

8

pontos

de

pesca

Enchente/

Cheia

Manhã,

Tarde,

Noite

Pai e filho;

Outras

Parcerias

Tramalha,

Malhadeira,

Arpão;aza

gaia/canoa,

Rabeta

Pacu,

Roelo,

Tucunaré,

Jaraqui e

Outros

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das técnicas a serem utilizadas, é fundamental para o bom êxito das pescarias. Assim os

lanços são trabalhados em seqüência, partindo do melhor ponto de pesca para o que

apresenta menos fartura, fato que a experiência – a percepção e a habilidade – do pescador já

definiu anteriormente.

Conforme a racionalidade das práticas comerciais, o tempo de trabalho visando à

pesca comercial, ao contrário da pesca de subsistência, é organizado por turnos diários

(manhã, tarde e noite) ou jornadas de 24 horas, fato que perpassa a mente do pescador em

pernoitar em seu ambiente de trabalho, vivenciando as dificuldades e perigos das matas de

igapó, típica da vegetação que constitui o igapó da Terra Preta e seu entorno. Nesse

processo, o tempo e as condições dos sistemas ecológicos são determinantes no

comportamento das espécies (mas não as únicas), pois a aparição e a facilidade de captura

dos peixes dependerão das condições favoráveis ao abrigo e alimentação.

Os lanços sendo trabalhados sequencialmente na prática comercial, o uso combinado

de apetrechos de pesca modernos, tais como as malhadeiras e as tramalhas, são intensivas,

pois a maneira como estes são confeccionados objetivam a captura racionalizada, porém,

não seletiva de espécies de peixes de hábitos coletivos e individuais em grande quantidades,

o que depende da disposição e organização físico-espacial desses apetrechos nos ambientes

de pesca.

Nos lanços, os apetrechos tradicionais, tais como o arpão, utilizado tecnicamente

para a captura do pirarucu, e o arco e flecha aplicados, por exemplo, para a captura do

tucunaré, são constantes durante a pesca comercial. Isso é possível após a disposição das

malhadeiras e tramalhas nesses ambientes, apetrechos que exigem maior tempo de

permanência submersos para as capturas. Esse espaço de tempo que consome algumas

dezenas de minutos, ou até horas, é capaz de gerar um “tempo mais livre” ao pescador que o

utiliza para a pescaria do pirarucu e outras espécies, ou atividades relacionadas à pesca, tais

como a coleta de frutas, insetos grandes ou pequenos (jia/sapinnho, minhoca etc.) que

servirão de iscas para apetrechos de menor impacto ao ambiente como, o caniço ou linha de

mão. Nesse processo, a canoa e a rabeta continuam sendo os principais meios de transporte,

aumentando em número conforme as pescarias estabelecidas entre os agentes sociais

envolvidos.

A apresentação dos lanços de pesca nas florestas de igapós enquanto pontos de pesca

das localidades, evidencia que o tempo ecológico dos ciclos naturais é internalizado pelos

pescadores e associado ao tempo das relações comerciais. Observamos que o manejo desse

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tipo de atividade opera sob racionalidades que podem conservar (no sentido de manutenção)

ou degradar os estoques pesqueiros. O pescador sabe manejar sob as duas formas de

racionalidade e seus conhecimentos contribuem para a sustentabilidade dos recursos

ictiofaunisticos.

O gráfico 7 apresenta algumas espécies capturadas nos lanços e destinadas à

comercialização em Manacapuru. A atividade ocorre conforme as expectativas do mercado e

do cotidiano doméstico/familiar, motivações que definem quais espécies capturar e como

capturá-las.

0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

35,0

Tu

cu

na

Ro

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Cu

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Aru

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Pe

sc

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Ma

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Sa

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Gráfico 7 – Peixes mais comercializados e capturados nos lanços de pesca.

Fonte: Dados de campo (2007).

Assim, a espécie mais mencionada pelos pescadores em suas capturas é o tucunaré

(34%), muito preferido pelos freqüentadores dos restaurantes locais e pelas famílias (em

geral), por ser uma carne saborosa e com razoável preço de mercado. Em segundo, destaca-

se o roelo, o filhote de tambaqui (22%) que agrega valor comercial elevado, porém ainda

acessível aos consumidores em geral. O curimatã (19%), que também reúne boas qualidades

em suas carne e preço acessível ao consumidor de média/baixa renda. O tambaqui adulto

(13%) que é um peixe nobre e caro semelhante ao pirarucu (em termos de custo), muito

procurado pelos donos de restaurantes, hotéis e supermercados, sendo os principais

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compradores. E, por último, a matrinxã e a sardinha, espécies típicas das mesas mais

populares da região, acessíveis à compra e bem apreciados.

Na área de estudo, ocorre outra modalidade de pesca de lanço praticado em

ambientes abertos às margens dos lagos e relativamente distinto do lanço de floresta alagada.

Esta atividade é realizada no tempo da enchente/cheia do ciclo das águas, especialmente nas

margens do lago São Lourenço com objetivo de capturar cardumes de peixes de espécies

variadas. A escolha do local do lanço é resultado de observações empíricas do pescador,

sendo os canais dos lagos, no período da enchente/cheia, caminho de rota migratória de

cardumes de peixes de diversas espécies, ou seja, a escolha não ocorre por acaso,

aleatoriamente.

Este tipo de pescaria geralmente é praticada por barcos de pesca ou por pescadores

citadinos que arrendam a terra para a preparação do lanço. É uma atividade peculiar porque

consiste não apenas na atividade pesqueira, mas na aquisição de renda através do

arrendamento da terra por parte do camponês amazônico que adquiriu a terra por posse

tradicional reconhecida pelos comunitários (MASULO, 2007).

Box 1 – Lanço de terra firme

A técnica de pesca de lanço de apropriação e uso individual/familiar foi introduzida no lago

São Lourenço e baixo rio Manacapuru pelos proprietários de barcos de pesca, provenientes

da cidade de Manaus, no início da década de 60 do século XX, na qual se apropriavam de

porções das águas e terras dos camponeses-ribeirinhos. Executavam a pesca de lanço e, o

que é mais sintomático, não deixavam nada em troca para os moradores. Todo o pescado

capturado era direcionado para ser comercializado em Manaus. A partir de meados da

década de 70 do século XX, os camponeses-ribeirinhos começaram a impedir esse tipo de

pescaria por parte dos proprietários dos barcos de pesca na frente de suas propriedades.

Como os moradores já dominavam a técnica de preparar o lanço, eles assumiram essa

atividade. Desse modo, o controle dessas porções de água passou das mãos dos proprietários

de barcos de pesca de Manaus para as mãos dos camponeses-ribeirinhos, os quais

assumiram todo o processo de preparação e armação dos lanços. Além disso, assumiram

também todo o processo de comercialização do pescado. Por outro lado, como os

camponeses-ribeirinhos não dispunham de capital suficiente para as redes de pesca, tiveram

que se sujeitar aos proprietários de barcos de pesca, agora de Manaus e Manacapuru, que

começaram a fornecer esses apetrechos para a realização da pesca de lanço. A rede de pesca,

denominada localmente de “tralha”, tem um custo considerado alto para os camponeses-

ribeirinhos, pois, para executar a pesca em apenas um lanço, precisa-se de pelo menos dez

panos. Cada um pano custa o equivalente a R$ 1.100, 00, uma rede sairá pelo preço de R$

11.000, 00. Como a maioria dos camponeses-ribeirinhos no lago São Lourenço e baixo rio

Manacapuru possui mais de um lanço, em geral três, torna-se extremamente oneroso

adquirir, com capital próprio, essas redes, também chamada de “arrastadeira”. Por isso, os

camponeses-ribeirinhos, sem alternativas, tiveram que se sujeitar aos proprietários dos

barcos de pesca, entretanto, o apurado da venda do peixe no mercado de Manacapuru é

dividido em partes iguais, ou seja, 50% para os camponses-ribeirinhos, donos dos lanços, os

outros 50% para os proprietários dos barcos de pesca, donos das redes. Portanto, observa-se

uma extração da renda da terra e da água que vai para nas mãos dos donos dos barcos de

pesca (ou empresários do capital pesqueiro) e do camponês-ribeirinho que está na base do

arrendamento (MASULO, 2007, p. 262-263).

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121

A composição deste tipo de pescaria exige barco de pesca, equipes de pescadores

organizados, redes de pesca, canoas auxiliares e área de terra situada às margens dos lagos,

neste caso, do lago São Lourenço como mencionados pelos pescadores das localidades. O

trabalho na terra é semelhante ao trabalho no lanço de floresta alagada, pois consiste na

preparação da terra no período da seca (águas baixas). Nesta ocasião ocorre a varredura do

terreno pela equipe de pescadores que geralmente arrendam a terra (ou pelo arrendador). A

varredura tem por objetivo a retira da vegetação, de galhos, de troncos e até árvores se

necessário. A limpeza do terreno é feita para que não haja problemas de enrosco das redes

durante as capturas, ao conduzir os cardumes para a margem. Depois de varrido o terreno e

preparado o lanço, aguarda-se o período da enchente para iniciar as pescarias (Figura 35).

Os pescadores das localidades pesquisadas geralmente não praticam esse tipo de

pescaria por três motivos básicos: 1) é uma pesca dispendiosa porque exige recursos

financeiros para executá-la (compra de equipamentos de pesca); 2) os moradores não são

proprietários das terras dos lanços e praticamente não tem vínculos de parentesco com os

proprietários que moram em outras comunidades não reconhecidas na pesquisa; 3) e por ser

considerada uma prática predatória, pois retira da água todas as espécies de peixes e outros

animais de vida aquática como, botos, tartarugas e peixes- boi (Figura 36).

Figura 35 – Preparo de um lanço de terra firme: época da seca.

Fonte: Dados de campo (2007).

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Fig. 03 - Croquis do Lanço – Preparação da terra para o cerco do cardume - Perspectiva.

Elaboração: Beniz - Abri /2005.

Figura 36 – Preparo e atuação da pesca de lanço de terra firme no lago São Lourenço, Manacapuru.

Fonte: Nusec, de Gabriel Beniz, adaptado por Marco Antônio de Souza Brito.Trabalho de campo, 2007.

Conforme os pescadores das localidades, está atividade é dispendiosa para o

pescador arrendatário do lanço de lago. O pescador deve assumir os custos sociais e

financeiros e os riscos da produção, caso a pescaria seja fracassada. A natureza, como vimos

no capitulo 1 e II, segue os ciclos dela própria, cabendo ao pescador conhecê-la e desvendá-

la. As rotas migratórias dos peixes são observadas, porém podem mudar a qualquer

momento, sem licença prévia para o pescador, por isso o risco de ser fracassada. Em outras

palavras, o arrendamento antecipado para a preparação do lanço pode causar dados materiais

e econômicos ao arrendatário.

Sob a lógica do arrendamento, a pesca de lanço em lago de terra firme, com base no

custo-benefício, apenas pode assumir o caráter de valor de troca (MARX, 1971; DIEGUES,

1983), ou seja, a forma de organização do lanço no lago São Lourenço pode ser

caracterizada como uma pequena produção mercantil simples. “A principal característica

dessa forma de organização é a produção de valor de troca em maior ou menor intensidade,

isto é, o produto final, o pescado, é realizado tendo-se em vista a sua venda” (DIEGUES,

1983; MASULO, 2007).

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123

2.6 Apetrechos de pesca

Os apetrechos de pesca compõem os instrumentos de manejo dos recursos

pesqueiros. Como etnografado por Diegues (1983), Furtado (1993) e Maldonado (1993) em

outros contextos de abordagem, ao pensar o sentido dado às práticas de pesca, verificou-se

que os apetrechos confeccionados tradicionalmente ou adquiridos através da compra pelos

pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo, Jaiteua de Cima são tecnicamente

aplicados e manuseados conforme a natureza do processo de pesca em consonância com o

círculo de produtividade econômica a que estão inseridos.

Nas localidades, os apetrechos de pesca são instrumentos produzidos de acordo com

as expectativas do pescador. Nesta condição, o sentido dado ao processo produtivo se refere

aos apetrechos que podem ter maior ou menor eficácia durante as pescarias. Estas práticas

estão em conformidade com as espécies que se desejam capturar e também com o principal

fator, que é o destino da produção.

Os modos de pescar nas localidades pesquisadas variam entre as tecnologias

tradicionais (que remontam a influência dos povos indígenas) e modernas (caracterizando-se

por apetrechos confeccionados industrialmente). Atualmente é muito comum o uso

individual de apetrechos modernos (malhadeiras e tramalhas) e/ou em combinação com

diversos apetrechos tradicionais (por exemplo, o uso do arpão e arco e flecha) no cotidiano

dos pescadores das localidades, fato que indica mudanças lentas, porém contínuas neste tipo

de atividade na região de Manacapuru.

Tratando-se do processo de pesca artesanal (autoconsumo/comercialização) que

demonstra o uso combinado de apetrechos tradicionais e modernos, o conhecimento

tradicional do pescador enfatiza alguns detalhes importantes acerca dos seguintes critérios

para definição de uso e confecção de apetrechos, conforme o quadro 7.

O saber sobre o comportamento dos peixes que

deseja capturar;

Considerar os locais onde vivem;

O que os peixes comem; Locais onde se reproduzem;

Se são peixes de cardumes ou de

comportamento individual;

Se são espécies de escama (couro) ou peixes lisos (pele

fina);

Conhecer a anatomia do peixe; Especificidades em relação ao tamanho, caso seja grande

ou pequeno e a largura da boca;

Quadro 7 – Critérios biológicos e ecológicos para confecção dos apetrechos de pesca.

Fonte:

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124

Considerando os aspectos acima, sendo apetrechos perfurantes e cortantes do tipo

arco e flecha ou arpão, é imprescindível trabalhar as dimensões e os cortornos físicos destes

instrumentos, devendo-se levar em consideração o tipo de material de que são fabricados,

ressaltando a durabilidade e a flexibilidade do material empregado.

Os apetrechos confeccionados podem desenvolver maior ou menor eficácia no ato da

captura do peixe, sendo imprescindível a experiência do pescador no seu manuseio. Deste

modo, o manuseio e eficácia do apetrecho de pesca também requerem o uso da técnica

corporal (MAUSS, 2003) adequada, o que geralmente pode ser desenvolvido antes ou

reelaborado depois da fabricação destes instrumentos. Ao usarem os apetrechos, tais como o

arpão, o arco e flecha, a azagaia, a tarrafa e as malhadeiras, já pensaram no ato de sua

confecção, os detalhes de apoio que ficarão encaixados ao corpo – no ombro e nos braços –

e que facilita a otimização do manuseio no ato da pescaria. Após a fabricação dos

apetrechos, os ajustes são realizados no dia a dia conforme a percepção do pescador, seja

com relação ao tipo de peixe ou dos ambientes onde está pescando.

O sucesso da captura também depende da facilidade do manuseio do apetrecho e da

praticidade do movimento do corpo, sendo a experiência e o conhecimento acumulados do

pescador os melhores caminhos para o bom êxito da pescaria. Como diz Mauss (2003, p.

410), “as técnicas do corpo podem se classificar em função de seu rendimento, dos

resultados de um adestramento [capacidade, habilidade]. O adestramento, como a montagem

de uma máquina, é a busca, a aquisição de um rendimento”.

O gráfico 8 apresenta os apetrechos de pesca utilizados mais frequentemente pelos

pescadores das localidades Jaiteua de Cima, Jaiteua de Baixo e Cajazeira:

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28,8

15,413,5

11,59,6

5,8 5,83,8 3,8

1,9

24,8

20,0 19,2

11,28,8

7,2

3,2 2,4 2,40,8

0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

35,0

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Mal

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Comercial Subsistência

Gráfico 8 – Apetrechos de pesca mais utilizados para pesca comercial e subsistência.

Fonte: Dados de campo (2008).

O gráfico permite visualizar a tendência geral do uso dos principais apetrechos de

pesca pelos pescadores das localidades pesquisadas. As malhadeiras e as tramalhas estão em

destaque, sendo considerados apetrechos de pesca modernos. Tanto para pesca comercial

quanto para pesca de subsistência, a frequência de uso desses apetrechos representa em

média 29% e 25% respectivamente, dos instrumentos mais utilizados pelos pescadores. As

malhas (o tecido das malhadeiras e tramalhas) podem ser confeccionadas a partir de

diferentes tipos de linhas e com dimensões de malhas variadas. Nas localidades, observamos

o uso de malhadeiras confeccionadas com linha de nylon ou plástico e apresentam

dimensões quadriculadas variadas.

Elas correspondem ao tamanho e ao tipo de espécies de peixes que se deseja capturar

e não necessariamente específica para uma espécie. Quanto maior a dimensão da malha,

maior o tamanho do peixe capturado. Deste modo, temos, por exemplo, a malha 140 que na

medição do pescador equivale a “um palmo e dois dedos” de abertura são destinados à

captura de peixes graúdos, tipo tambaqui e malhas menores de tamanho 30 e 40 que são

destinadas à captura de espécies menores – a traíra, o acari-bodó. Os tamanhos 50, 60, 70,

80, 90, 100 e 120 são aplicados nesta mesma lógica: maior o peixe que se deseja capturar,

maior a dimensão da malha.

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126

Atualmente, a técnica utilizada pelos pescadores para facilitar a captura com estes

apetrechos é o processo de tingimento das malhas com uma substância corante chamada

anelina. A coloração da malha corresponde às características da cor da água que pode

apresentar coloração esverdeada escura, clara, amarelada ou cinzenta. De acordo com

pescadores comerciais, os peixes estão mais “espertos” e “percebem” obstáculos (isto é, os

apetrechos) em seus ambientes de circulação. Por isso, a necessidade de aperfeiçoar

determinadas técnicas de captura (Figura 37).

Figura 37 – Perfil da malha, instrumentos de confecção de malhadeiras e malhadeiras coloridas.

Fonte: Dados de campo (2007).

As tramalhas também passam por esse tratamento e, em geral, são confeccionadas

com linhas de plástico. Os pescadores comerciais e os pescadores de subsistência das

localidades optam por comprar este apetrecho e alegam que o bom preço favorece o

interesse pela aquisição, pois gasta-se muito tempo em fabricá-lo artesanalmente. As malhas

mais utilizadas variam entre 35 a 50, sendo ideais para capturas de espécies pequenas e

médias. Geralmente capturam traíra, pacu, sardinha, tucunaré e bodó (Figura 38).

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Figura 38 – Peixe preso na tramalha.

Fonte: Dados de campo (2007).

O caniço é um apetrecho utilizado com frequência para a pesca de subsistência (19,2

%). Como dizem os pescadores: “o caniço é bom pra pescaria rapidinha, pra boia” –

alimentação. Para pesca comercial (13,5%), é utilizado de maneira combinada com outros

apetrechos em pescarias mais frequentes em pontos de pesca, tais como o lanço de floresta

alagada (floresta de igapó) anteriormente apresentado.

De acordo com os pescadores, é um apetrecho simples e produzido a partir dos

galhos de árvores encontrados em torno das matas das comunidades. Estes apresentam

“certa retidão”, ou seja, são pouco retorcidos. As madeiras empregadas na fabricação são

conhecidas localmente como envira surucucu e taboca (uma espécies de bambu). São

resistentes, flexíveis e permitem uma “boa briga” com o peixe durante a captura, ou seja, as

madeiras não quebram facilmente. As espécies mais fisgadas com este apetrecho são: o

jaraqui, o pacu, a traíra e a sardinha (Figura 39).

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Figura 39 – Caniços.

Fonte: Dados de campo (2007).

O arco e flecha ainda é um apetrecho tradicional razoavelmente utilizado nas

localidades, e sua frequência de uso ocorre nas práticas de subsistência (8,8%). Porém

apresentando relevância para pescadores que vivem mais dos períodos sazonais

(enchente/cheia) e por pescadores comerciais (11,5%)18

.

Este apetrecho é confeccionado com matérias-primas retiradas da floresta que são

encontradas no entorno das comunidades. As partes (isto é, as peças) que compõem a

estrutura física da flecha são de encaixe e ajustável.

A figura 40 ilustra a composição do apetrecho arco e flecha, apresentado pelo senhor

Moisés, pescador comercial, especificando a montagem da flecha azagainha, instrumento

por ele fabricado e utilizado em conjunto com o arco (Figura 40).

Figura 40 – 1) Composição do arco e flecha; 2) flecha montada; 3) partes físicas da flecha azagainha; 4)

ilustração da montagem; 4) o pescador manuseando-a. Local: comunidade Assembleia de Deus Tradicional,

Jaiteua de Cima. Fonte: Dados de campo (2007).

18

Como visto anteriormente, este pescador vive mais da renda da pesca, prática exercida com mais intensidade

durante todo ano.

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129

O apetrecho arco e flecha é um tipo de apetrecho tradicional apropriado

para a pesca de subsistência e usado durante o dia. É também utilizado em

algumas circunstâncias na pesca comercial. Costuma-se também praticar

outras formas de caça com este instrumento. O Sr. Moisés fabrica o arco e

flecha somente para seu uso particular. É um conhecimento tradicional e

prático que herdou de seu pai, o Sr. João Palheta. Ele afirma que fabricar

este instrumento é uma “inteligência maior do “caboclo-índio”. Uma

herança herdada dos “índios Ajará”, seus antepassados. As espécies mais

capturadas, de acordo com o pescador, são: o tucunaré, a aruanã (aruanã), o

pacu, o jaraqui e o tracajá. Os ambientes de pesca mais frequentes para a

captura destas espécies são: o lago, o igarapé e o chavascal. Ele afirma que

o uso deste apetrecho tem sido bastante reduzido devido à escassez do

pescado nestes ambientes. A haste da flecha é produzida a partir de um

material muito leve, um tipo de bambu chamado popularmente de “canela

de velho”. A ponteira penetrante (ponta perfurante) é feita de ferro

retorcido que depois de aquecido é martelado (adornado) até adquirir o

formato final. O arco é produzido de uma madeira leve, flexível e resistente

à umidade. Em síntese, toda fabricação é artesanal, sendo desenvolvida por

alguns pescadores das localidades Jaiteua de Cima e Jaiteua de Baixo e o

processo de fabricação reflete o patrimônio cultural das famílias de

pescadores tradicionais desta região. Alguns pescadores relatam que estes

apetrechos estão em fase gradual de desuso devido à concorrência entre

diferentes pescadores nos ambientes de pesca das localidades e também à

escassez de várias espécies média e adultas. Nesta condição, a maioria dos

pescadores optam pelo uso das malhadeiras e das tramalhas para maior

eficiência nas pescarias (Caderno de campo, fevereiro de 2007).

O arpão é outro apetrecho de pesca tradicional e aplicado em pescarias especiais,

com baixa frequência de uso (5,8%), principalmente para captura do pirarucu e peixe-boi

(estes proibidos de serem capturados pela normativa (portaria do IBAMA), ambos para

comercialização e executadas em períodos de maior rentabilidade do pescado

(enchente/cheia).

Nas localidades, também, foi possível verificar a ocorrência do uso de modelos de

arpão confeccionados com objetivo de capturar bichos de casco, principalmente tracajás. A

figura abaixo apresenta alguns modelos de arpão e detalhes acerca das estruturas (peças)

componentes deste apetrecho (Figura 41).

Figura 41 - O arpão. Da esquerda para direita: 1) tipos de arpão; 2) haste e manuseio; 3) arpoeira; 4) ponteira

perfurante do arpão; 5) orifício de encaixe da ponteira. Fonte: Dados de campo (2007).

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A composição física deste apetrecho reúne partes com as seguintes definições:

Imagens 2: haste do arpão. Esta é confeccionada a partir da madeira

conhecida localmente como “paracuuba”. Esta madeira é encontrada nas

matas em torno das comunidades. É de coloração marrom, dura (dureza),

impermeável e de peso moderado. Sendo o arpão um apetrecho de

arremesso (projétil), o peso da haste é fundamental para garantir a

perfuração da escama ou couro do peixe. Caso a haste do arpão seja leve

demais, só a ponteira de ferro não garante a perfuração do tecido destes

animais, correndo o risco de não capturá-los. Imagem 3: a arpoeira é

composta por um cordão (barbante) que varia de 2 a 6 mm de diâmetro

aproximadamente e com comprimento que pode chegar até 10 metros

aproximadamente. O tamanho do cordão é para permitir o deslocamento do

peixe depois de fisgado até cansar. Neste cordão, é amarrada a ponteira de

ferro (imagem 4) – o gancho perfurante –, através de um nó ou laço

especial chamado de “estrovo”. A parte inferior do gancho apresenta um

orfício oval (imagem 5) que é encaixado na ponta da haste do arpão. E em

outra extremidade do cordão é amarrada uma boia de isopor ou de plástico

para não perder o apetrecho e nem perder de vista o peixe. Deste modo,

temos a montagem completa deste apetrecho (imagem 1), cuja eficiência

requer boa pontaria e habilidade do pescador durante seu manuseio.

O conhecimento sobre o comportamento e modo de vida das espécies a serem

capturadas é fundamental para o bom êxito da pescaria. Este êxito se refere à quantidade

capturada e redução de tempo de trabalho. Alguns pescadores comerciais locais utilizam este

apetrecho principalmente em pescarias encomendadas, por exemplo, a encomenda de

pirarucu. Alguns pescadores afirmam que este apetrecho está em fase de gradual desuso

devido à concorrência entre diversos pescadores nos principais ambientes de pesca das

localidades, seja para subsistência ou comercial, e também à escassez e ao possível

desaparecimento de espécies como pirarucu dos seus principais ambientes de pesca. As

representações sociais subjacentes a esses processos de trabalho, seja para a subsistência ou

comercialização intensiva, são caracterizadas e também fundamentadas em circunstâncias

que envolvem relações de parentesco e parcerias entre os distintos trabalhadores da pesca e

agentes da comercialização que determinam a maior ou menor pressão sobre o uso dos

recursos pesqueiros.

Nesse sentido, foi possível perceber, durante as práticas de pesca, que os elementos

técnicos e representativos da vida cultural dos pescadores transitam entre situações da vida

econômica moderna que exigem deles atitudes adaptativas ao contexto das esferas do círculo

da comercialização do pescado e, ao mesmo tempo, entre o modo de vida tradicional que,

alicerçado pela força do habitus (Bordieu,1979), resiste com pressupostos identitários e

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territoriais a essas formas de determinação sutis e, em certas circunstâncias, impositivas dos

ritmos da lógica instrumentalizada da economia de mercado e dos valores e crenças da

filosofia de vida moderna.

Assim o pescador comercial afirma:

[...] antigamente eu pescava com meu pai e nós usava o arpão e o arco e

flecha pra pegar os peixes. A gente comercializava pegando peixe mais

fácil, tinha muito aqui. Depois começou aparecer muito barco de pesca, aí

a concorrência aumentou pra essas bandas daqui [Jaiteua de Cima] então

passamos a pescar com as malhas [malhadeiras e tramalhas] mais vezes pra

poder pegar mais peixe bom pra vender, porque os grande [barcos de

pesca] só pegava eles. Por isso ficou difícil.

[...] a gente aqui não tem vontade de ir pra Manacapuru, prefiro viver aqui

com a minha família, porque aqui a gente tá próximo dos nossos parentes,

temos nossas festas, amigos ... seria bom se voltasse como antigamente

(S.M., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).

Ao compreender a realidade do Sr. Moisés e, na tentativa de articular a associação

entre a atividade pesqueira aos diferentes ambientes aquáticos – lagos, igarapés, e igapós –,

verificou-se que a identidade social dos pescadores e a territorialidade das práticas de pesca,

além das relações sociais em si, se constroem nestes espaços produtivos através da

reciprocidade entre o ambiente e ação humana para o aproveitamento dos recursos naturais

aí disponíveis. Nesse processo de reciprocidade, é imprescindível que os meios de produção

(relações sociais e instrumentos de trabalho) se ajustem aos ambientes manejados, “a fim de

que os recursos naturais se reproduzam ciclicamente e, ao mesmo tempo, ele (o pescador)

assegure, para a sua apropriação, a produção dos recursos historicamente necessários à sua

sobrevivência e vida”.

No capítulo a seguir abordaremos a territorialidade dos pescadores das localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.

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132

CAPÍTULO III

TERRITÓRIOS DE PESCA NO USO DO LAGO GRANDE DE

MANACAPURU

Este capítulo apresenta as ações territoriais dos pescadores das localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima na utilização dos seus principais território de

pesca. O lago Grande de Manacapuru é compreendido pelos pescadores das localidades

como um amplo território de pesca, porém sendo recortado territorialmente por pontos de

pesca que ficam nas proximidades, nas imediações e distantes das moradias dos pescadores

das localidades. Estes territórios não são utilizados deliberadamente para qualquer tipo de

pescaria, eles são apropriados por cada localidade conforme determinadas regras de uso

(acordos informais de pesca) tendo em vista, como iniciativas dos próprios pescadores, a

manutenção dos estoques pesqueiros destinados principalmente ao provimento de suas

famílias.

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133

3.1 A noção de território de pesca

“[...] A minha família veio pra Manacapuru [do Ceará] na época da

borracha prá consegui uma oportunidade prá trabalhá. Nós trabalhamos

muito tempo na juta, e de alguns anos pra cá temos vivido mais da pesca

junto com a plantação também. A pesca cresceu, cresceu, pra essas bandas

de Manacapuru, o pessoal chama financiá que é né? Com esse negócio de

empréstimo, cresceu de barco, de motô que a gente chama. É bom, mas

tem muita gente pescando agora de uns anos pra cá [...] morar aqui na

várzea não é só vontade, a gente precisa viver e acreditá. Aí que é difícil,

porque a gente tem que fazer condições pra isso. A gente tem que pescá ou

plantá, nós fazemos essas coisas junto pra ter mais dinheiro, dinheiro pra

família. [...] Antes a pesca aqui pra essas bandas do Piranha não era

problema, tudo mundo podia entra lá e pesca. Agora com esse negócio de

reserva que chama, fica difícil entra lá, tem que dá um jeitinho e conversa

pra não criar problema com ninguém” (N.M.S., pescador de subsistência,

Jaiteua de Cima, 2008).

Ao pensarmos os territórios de pesca utilizados pelos pescadores das localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, não podemos deixar de evidenciar que suas

histórias de vida são feitas de realizações motivadas pela esperança, porém marcadas pelas

circunstâncias políticas e econômicas (antagonismos e contradições) de uma realidade

complexa como a Amazônia.

As palavras do Sr. Napoleão demonstram um pouco dessa realidade ao mencionar, à

sua maneira, que os processos de ocupação e estabelecimento de sua família, assim como

muitas famílias ribeirinhas de Manacapuru, mesmo considerando as particularidades

culturais e decisões subjetivas de cada indivíduo ou grupo social, são decorrentes de

processos históricos de migração fortemente influenciados pelos ciclos e modelos

econômicos, estimulados financeiramente pelo governo federal e implementados pelo

governo estadual do Amazonas. Tudo isso num espaço de tempo ou períodos de tempo os

quais concernentes a determinadas conjunturas ou situações políticas articuladas por

interesses diversos e direcionada para a sociedade amazonense e brasileira como política

Nacional (SILVA, 1999; FREITAS, 2003).

O setor pesqueiro, como indica Ruffino (2004), não deixa de ser beneficiado por

estes estímulos do governo federal, sobretudo a partir da década de 1960, cujo objetivo era

motivar a economia pesqueira no Amazonas e “integrá-la economicamente” ao território

nacional.

Desde modo, pode-se afirmar que as localidades pesquisadas, mesmo apresentando

aspectos de isolamento, sempre estiveram conectadas e contextualizadas em processos de

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134

relações sociais mais abrangentes pertinentes à economia política regional, nacional e

internacional.

Com base nesses processos históricos, a noção de território no contexto social dos

pescadores é dinâmica, pois relaciona intrinsecamente algumas variáveis fundamentais da

realidade social que dão sentido a este termo: a dimensão espacial, a dimensão ecológica, a

dimensão política, a dimensão econômica e a dimensão simbólica. Esses elementos

combinados, e apenas neste sentido, fundamentam o conceito de território. Este conceito não

pode ser pensado como uma realidade estática. Por ser um conceito dinâmico, ele deve ser

contextualizado, pois expressa a dimensão histórica dos grupos sociais envolvidos com a

pesca.

A convergência dos elementos ecológicos, políticos, sociais, econômicos e históricos

são pensados intrinsecamente ao conceito de território, porque, ao abordar as práticas de

pesca na várzea amazônica, nos deparamos com diferentes fenômenos ou situações que

marcam a vida dos moradores das localidades pesquisadas. Por exemplo, do ponto de vista

ecológico, as diferentes fases do ciclo hidrológico, um fenômeno determinante e singular na

vida dos moradores da várzea amazônica, quando não “respeitado” ou não levado em

consideração pelas práticas econômicas predatórias, sejam capitalistas ou não, pode e

retroage aos grupos sociais sob a expressão do desequilibro ecológico e social, flagelando a

vida de muitas famílias ribeirinhas com situações temporárias ou permanentes de escassez

de recursos naturais.

Deste modo, pensamos o conceito de território como uma questão prático-teórica que

expressa formas de racionalidade e ações que ora soam “harmoniosas”, ora “conflitante” no

decorrer do uso do lago Grande de Manacapuru pelos pescadores das localidades Cajazeira,

Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.

O conceito de território pressupõe a categoria espaço, que é o fundamento básico de

uma comunidade ou de uma sociedade, onde se constroem as relações sociais e repousam os

objetos naturais (as coisas da natureza) e materiais (elementos que resultam do trabalho). É

preciso que vejamos o espaço como um sistema de objetos e, ao mesmo tempo, como um

sistema de ações. Isso significa dizer que o espaço é dinâmico, pois pressupõe o

empreendimento de ações humanas na sua configuração (SANTOS, 2002). O trabalho

realizado nos pontos de pesca como a técnica do lanço em ambientes fechados (floresta de

igapó) ou abertos (margem de lagos ou rios) reflete essa configuração elaborada pelo

trabalho individual e coletivo elaborado pelos pescadores das localidades e por pescadores

citadinos.

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O espaço se transforma em território, à medida que o revestimos de significados,

sejam eles simbólicos ou materiais, afetivos ou míticos (TUAN, 1983). Ou seja, o território

é uma representação social e coletiva, uma ordenação primeira do espaço. Nesse contexto, a

afetividade e o pertencimento ao lugar podem ser considerados formas de valor agregado,

assim como o conhecimento e a práxis das atividades produtivas realizadas no território – a

pesca, a agricultura, o extrativismo vegetal e animal e a caça. O território também pressupõe

e, ao mesmo tempo, é produto das ações coletivas organizadas. O território à medida que é

pensado e organizado, cultural e socialmente pelo trabalho coletivo, dá visibilidades aos

grupos sociais que passam a operacionalizá-lo mediante regras de uso como ocorre nas

localidades pesquisadas. O senhor Lázaro, pescador comercial explica esse contexto:

“[...] Esses lanços aqui no igapó que você tá vendo, eram pouco

trabalhados, o pessoal só passou a mexê neles depois que eu fiz o primeiros

preparos, as varredura que a gente chama. É preciso conhecê um pouco

como funciona os lanço prá fazer isso. [...] Aí depois começamos a

organizar turma de dois, três na época da seca pra limpa. Aí quem quisé

pesca aqui na época boa, pode pescá mas tem que pedi licença também prá

não atrapalhá a pesca de quem preparou ... acho isso certo né” (L. S.,

pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).

O lago Grande de Manacapuru é compreendido pelos pescadores das localidades

como um amplo território de pesca, porém, sujeito a determinadas regras de uso que marcam

sua “descontinuidade” ou “delimitações de fronteiras” articuladas pelos próprios pescadores.

Manoel Masulo (2007), ao estudar o processo de territorialização dos rios e lagos

amazônicos – lago São Lourenço e baixo rio Manacapuru (parte do local da pesquisa) –

praticado pelos camponeses-ribeirinhos e pescadores profissionais, se apropria de três

conceitos: espaço aquático, território de pesca e terroir. O primeiro significa que o espaço

aquático é pensado como “entidades espaciais estruturadas pelos sistemas de uso múltiplos

dos recursos aquáticos” (2007, p. 252), ou seja, o acesso aos recursos aquáticos interiores

(rios, lagos e microambientes aquáticos amazônicos) é orientado pela reivindicação das

comunidades de pescadores. Isso significa dizer que os direitos de uso sobre as águas fazem

parte da tradição e do costume constituindo o processo de apropriação dos espaços

aquáticos.

O território de pesca é pensado como a capacidade que potencialmente um grupo ou

vários grupos de pescadores podem explorar os recursos pesqueiros, levando em

consideração o destino da produção: o consumo ou a comercialização.

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O conceito terroir é de origem francesa e, segundo o autor, significa “porção do

território apropriado, organizado e utilizado pelo grupo que reside e retira seus meios de

existência” (MASULO, 2007, p.253). Este conceito é abrangente, pois é pensado não apenas

como extensão do uso dos recursos aquáticos. Ele abarca a dimensão de áreas inundáveis ou

inundadas dos pescadores das localidades, uma vez que são destinadas tanto para fins

pesqueiros quanto para atividades agrícolas e criatórias, sendo local de residência e

apropriado para a existência humana. Este conceito combina-se com os conceitos de

pescadores de subsistência e pescadores comerciais adotados na pesquisa, uma vez que os

pescadores vivem da polivalência de atividades produtivas e relativa monovalência da

atividade pesqueira.

Articulado a essa noção conceitual, porém, na perspectiva ecológica, Begossi (2004)

afirma que “o território é um espaço que foi, ou está sendo apropriado por algum individuo,

grupo ou comunidade sob formas de defesa ou regras de uso, ou sob os conflitos de uso”. A

territorialidade é uma forma de controlar espaços e recursos através de formas de defesa ou

regras de uso. De acordo com Begon et al. (1996), citado por Begossi (2004), a

territorialidade ocorre quando há interferência ativa entre indivíduos, quando uma área

exclusiva, o território, é defendida contra intrusos por um padrão de comportamento

reconhecido pelos outros indivíduos. Nesse sentido, a territorialidade tem mais conotação

política porque estabelece condutas de comportamento, ou seja, mobilização política com

relação à defesa do território.

A autora esclarece que dominar um território ou se apropriar de um território,

envolve custos, ou seja, a relação custo benefício na territorialidade, leva em conta a

disponibilidade de recursos, a sua distribuição e a organização social das comunidades. A

autora cita Stewart (1995) que estudou os índios Shoshoni na Califórnia, onde a escassez e a

imprevisibilidade dos recursos elevaria muito o custo de manter territórios para a extração

dos recursos. Dessa forma,

O nomadismo e a ausência de territorialidade entre os Shoshoni são

estratégias que respondem às peculiaridades ambientais dessa região da

Califórnia, onde os recursos localizados em vales áridos, mostrassem-se

limitados e esparços (BEGOSSI, 2004, p. 226).

Esta realidade descrita pela autora não evidencia totalmente a realidade da área de

estudo, porém ajuda-nos a pensar que a fase terrestre da várzea quando muito prolongada (a

seca) pode provocar situações de escassez, principalmente pesqueiros, levando os usuários

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dos recursos a partir para medidas compensatórias (PEREIRA, 2007), ou seja, se deslocarem

de suas moradias para lugares com melhores possibilidades de acessos aos recursos. Por

outro lado, caso não haja a situação de escassez, as regras de uso são as melhores práticas

para se evitar a possível escassez no período da seca, ações denominadas como medidas

preventivas (Capítulo I).

Nesta condição, entendemos que os territórios de pesca dos pescadores das

localidades pesquisadas são defendidos através de acordos informais de pesca. Os ambientes

protegidos são aqueles, cujas formas de expressão territorial neles contidos são de atribuição

simbólica e material (pertencimento e trabalho) de seus usuários que tendem a se defender

de formas de expressão territorial (dos pescadores citadinos) que possivelmente degradem os

recursos ictiofaunísticos destinados a subsistência de suas famílias. Um pescador comercial

assim relata:

“[...] os acordos que negociamos aqui é prá proteger os nosso igarapé, o

paraná do Anamã, se não o peixe se acaba de tanto pesca prá vendê e a

gente fica sofrendo como nas vezes passadas aconteceu aí no Anamã na

época da seca, que veio gente de fora com os motor de pesca e levou todo o

peixe e estragou um bocado também. Teve até gente que levô suas famílias

daqui pra Manacapuru porque ficô sofrido vivê com pouco peixe, só da

roça não dá [...]” (E.M.S. pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).

Simone Maldonado (1993), ao conviver com os pescadores do litoral de

Pernambuco, percebe que a mestrança é a expressão do conhecimento e da territorialidade

do pescador na defesa do ponto de pesca. A mestrança significa um cargo de honra e

prestígio investido ao pescador, pois ao conduzir a embarcação e os embarcados na condição

de proprietário ou contratado, pressupõe o conhecimento das regras de uso dos espaços

marítimos, que a autora identifica como espaços indivisíveis a olho nu, porém divisíveis

simbolicamente; e o conhecimento dos melhores pontos de pesca denominados como o

caminho das pedras – o local de concentração dos cardumes de peixes.

A autora enfatiza que,

[...] os territórios tanto podem corresponder a realidades geográficas

concretas quanto à representação que frequentemente se estendem às

relações sociais, na medida em que a territorialidade humana encompassa

amplo leque de dimensões como status, identidade e prestígio, não raro

podendo constituir-se em ordenações simbólicas em cujo bojo se dão

relações de poder e dominação, eventos de linguagem e ideologia

(MALDONADO, 1993, p. 35).

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Nessa condição, a territorialidade se estabelece a partir de processos políticos

definidos pelas redes de sociabilidade entre os agentes sociais e mecanismos sociais como as

regras de uso, cujo objetivo é manter e defender o usufruto ou a posse dos espaços de

interesse (MALDONADO, 1993). Através de sua concepção, é preciso que vejamos a

territorialidade como uma dimensão do comportamento humano, que se orienta para

apropriar-se do espaço e dividi-lo em territórios, fazendo deles recursos para o seu interesse.

A noção de territorialidade que se articula com a proposta de Maldonado (1993) a

qual utilizaremos, a seguir, para fazer alguns comentários acerca dos principais ambientes de

pesca apropriados pelos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de

Cima, parte da colaboração conceitual de Paul Little (2002). O autor destaca duas noções

que dão suporte ao conceito de territorialidade: a noção de Cosmografia e Território. O autor

afirma:

“A cosmografia de um grupo social considera seu regime de propriedade,

os vínculos afetivos que mantem com seu território específico, a história se

sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao

território e as formas de defesa dele”(LITTLE, 2002, p. 4).

A territorialidade implica uma conduta territorial, ou seja,

“[Refere-se ao] esforço coletivo de um grupo social ocupar, usar, controlar

e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico,

convertendo-o assim em seu território [...] o território é um produto

histórico de processos sociais e políticos” (LITTLE, 2002, p. 3).

3.2 Territórios de pesca e as relações sociais estabelecidas

Antes de identificar os ambientes de pesca dos pescadores das localidades em estudo,

é importante enfatizar que estes agentes sociais atuam num campo social de relações

objetivas sob as nuanças de conjunturas políticas, culturais e econômicas.

Pierre Bourdieu, em A produção da crença: contribuição para uma economia dos

bens simbólicos (2006), explica que o campo social envolve distintos grupos sociais, cujas

manifestações expressam relações de reconhecimento, antagonismos e contradições. Nesse

campo social, a trama das relações sociais é fundamentada numa rede de sociabilidade que

expressa diferentes discursos, posições e estratégias diferenciadas nessa rede, caracterizando

uma espécie de jogo de interesses, poder e prestígio entre os diversos agentes sociais em

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disputa pelo reconhecimento constante ou revelador do seu discurso e do posicionamento

social. Nesse sentido, a lógica ou racionalidade que opera no campo da “economia dos bens

simbólicos” não segue a mesma lógica ou racionalidade que orienta as economias

fundamentadas nas leis universais do mercado econômico. Embora esse conjunto de

racionalidades influenciadas pela lógica da economia de mercado, e outras, fundamentadas

na suposta denegação da “economia”, flutuem, ou melhor, constituem o campo da cultura,

isso significa dizer que as relações sociais na pesca e a crença professada pelos diversos

discursos em torno dessa prática, revelam que o sentido que orienta os distintos modos de

organização da produção – a pesca para autoconsumo ou a pesca exclusivamente comercial

–, bem como a delimitação e determinadas regras de uso de territórios de pesca, não seguem

necessariamente (integralmente) as normativas do mercado comercial.

Nestas circunstâncias, o campo social da pesca no lago Grande de Manacapuru se

configura numa relação social de interesses comuns, divergentes e relativamente específicos

envolvendo pescadores de subsistência, pescadores comerciais e pescadores citadinos

(“pescadores de fora”).

O conceito de habitus é importante para pensar o campo social da pesca em

Manacapuru,

“[...] pois o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a

dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a

interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja,

o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de

disposições duráveis (meios sociais passados), ou capacidades treinadas e

propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados,

que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e

solicitações do seu meio social existente” (ALMEIDA, 2005, p.126).

Este conceito ajuda a pensar que os pescadores das localidades vivem a relação

dialética com seu contexto social, externalizando valores de seu ethos (moral, identidade e

história social) quando coagidos por condições sociais que não correspondem com a

realidade que reivindicam.

Segundo Diegues (2004), a pesca enquanto apropriação material e social de recursos

renováveis e móveis coloca problemas relevantes para a análise da relação entre homem e

natureza. Em relação aos ambientes de pesca utilizados pelos pescadores das localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, tivemos a preocupação de apresentar

informações sobre as formas de uso dos lugares de pesca apontados pelos pescadores a partir

da sazonalidade dos períodos hidrológicos, dos apetrechos direcionados para a finalidade da

pesca – consumo e comercialização – e a relação estabelecida entre os agentes sociais.

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Para falar sobre os ambientes de pesca e a expressão territorial que os pescadores

fazem deles, discorremos sobre a apresentação de gráficos por localidade. Os ambientes de

pesca apresentados nestes gráficos são identificados no quadro 8 através de seus nomes

atribuídos pelo conhecimento dos pescadores, seguido de um número (numeral) para o

ambiente para facilitar a identificação e os comentários.

Os ambientes de pesca também foram identificados em duas figuras (43 e 44,

imagens de satélite) representando, respectivamente, os períodos da cheia e seca do ciclo das

águas com o objetivo de apresentar, além dos ambientes de pesca, o contraste aquático entre

os dois períodos. O georreferenciamento dos ambientes de pesca teve por objetivo

identificá-los e, ao mesmo tempo, perceber a dimensão espacial do lago Grande de

Manacapuru e a dispersão dos médios, pequenos e microambientes em sua abrangência

apropriados pelos pescadores das localidades Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima.

Os ambientes identificados e numerados no quadro 8 são os mesmos identificados e

numerados nas figuras 43 e 44 (são os mesmos nomes e numerações para os ambientes).

A figura 43 (imagem de satélite) descreve cores predominantes de tom verde, azul e

azul escuro em escala gradual de cores (este último com tonalidade preta). As tonalidades

escuras indicam os ambientes aquáticos que são misturas de água mista (branca e escura) e

pontos profundos (poços, paranás, lago etc.) e captados apenas pela tecnologia de satélite.

Estes pontos profundos são ambientes mais visíveis no período da seca (Figura 44)

indicando que são lugares de acúmulo ou concentração de corpos aquáticos (locais de

conflitos de pesca); a redução da água expressa pela fase terrestre da várzea configura-se em

escala de cinza.

Os ambientes de pesca descritos nos gráficos por localidade correspondem aos

pesqueiros mais mencionados pelos pescadores das localidades, não devendo vincular à

análise dos ambientes, o uso exclusivo de qualquer território de pesca ao limite geográfico

físico de uma localidade (dos assentamentos comunitários), pois existem regras de uso para

tais ambientes, ou seja, o pescador da localidade Cajazeira menciona, por exemplo, o uso do

lago do Jaiteua que fica próximo à localidade Jaiteua de Cima que não é de uso exclusivo

dessa localidade. Esse fato também ocorre com outros ambientes de pesca.

Alguns nomes de territórios de pesca não foram identificados nas figuras 43 e 44 e

no quadro 8 pelo nome ou pelo georreferenciamento do ambiente por falha no registro da

informação, porém são pesqueiros reconhecidos pelos pescadores como ambientes

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importante para pesca; esse é o caso, por exemplo, do lago Grande e do lago São Lourenço

entre outros microambientes não identificados.

A seguir destaca-se a apresentação do quadro 8 relativo ao ordenamento dos

ambientes de pesca e, posteriormente, apresentaremos os territórios de pesca por localidades.

As duas imagens de satélite referentes aos territórios de pesca (georreferenciados)

identificadas como figuras 43 e 44 estão em anexo para facilitar a leitura do texto e a

consulta simultânea dos territórios de pesca nestas figuras (ler e ver as imagens

simultaneamente).

AMBIENTES DE PESCA UTILIZADOS PELOS PESCADORES DAS LOCALIDADES

LAGOS

São coleções de águas paradas se ligação direta com o mar, distribuídas como ilhas na terra

(Schwoerbel, 1971 apud Junk, 1980). Os quais apresentam morfologias diferentes de acordo

com três categoriais: localização do lago no terreno (podem estar situados tanto na várzea

quanto na terra firme), origem/tipo de lago e quanto a forma (SOUZA, 2000). Na área de estudo

ocorre lagos de várzea.

Lago do Jaiteua [03] S 3° 16' 32.7" e W 60° 51' 27"

Lago do Catoré S 3° 17' 10.6" e W 60° 53' 52"

Lago do Chavascal

Lago Grande

Lago São Lourenço

CANAL

Os canais são caminhos aquáticos de conexão entre ilhas e entre igarapés e lagos (Pescadores

das localidades pesquisadas, 2008).

Canal do Tiago [01] S 3° 15' 29.5" e W 60° 52' 4.7"

Canal Serra Lima (entre duas ilhas) [09] S 3° 17' 14.8" e W 60° 45' 55.1"

Canal do peixe-boi (cruza com o igarapé Grande) [13] S 3° 16' 49.2" e W 60° 50' 40.6"

Canal do Jauari Grande [14] S 3° 16' 49.9" e W 60° 50' 29.5"

Canal que vai para o Castanho [22] S 3° 17' 33.8" e W 60° 53' 3.6"

Canal do Cumaru [44] S 3° 14' 56" e W 60° 51' 26"

PARANÁ

Canais de navegação até os lagos, importante ambientes para migração/dispersão de peixes

entre os lagos e rio (GARCEZ, 2000).

Paraná do Jaiteua [02] S 3° 15' 28.7’’ e W 60° 51' 34.3’’

Paraná do Cedrinho [11] S 3° 16' 36.6’’ e W 60° 51' 15.6’’

Paraná da Fazenda (entram nas cabeceiras e se espalham)

[15]

S 3° 16' 44.4’’ e W 60° 50' 9’’

Paraná do Tauari (1) [17] S 3° 15' 39.5" e W 060° 51' 14.9"

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Paraná do Tauari (2) [43] S 3° 15' 16" e W 60° 51' 35"

Paraná do Catoré [24] S 3° 17' 23.8" e W 60° 54' 3.2"

Paraná do Seringa [25] S 3° 16' 53.6" e W 60° 53' 34.3"

Paraná do Anamã [42] S 3°15' 24.8" e W 60° 51' 30.2"

Paraná do Jaiteua [50] S 3°16' 2" e W 60° 43' 59"

BOCA

A boca é o lugar de entrada ou início de um lago, furo ou igarapé (Pescadores das localidades

pesquisadas, 2008).

Boca do Lago do Jaiteua [41] S 3° 17' 3" e W 60° 51' 15.3"

Boca do Furo do Tigre [38] S 3° 15' 10" e W 60° 44' 54"

Boca do igarapé da Cajazeira [40] S 3° 14' 26" e W 60° 45' 55"

Boca do Lago do Jaiteua [41] S 3°17' 3" e W 60° 51' 15.3"

FURO

O furo é um caminho aquático de conexão entre lagos, entre lagos e igarapés e entre igarapés.

Furo do Acari entrada [33] S 3° 16' 7" e W 60° 45' 25.9"

Furo do Acari saída [34] S 3° 15' 28.88" e W 60° 46' 52.61"

Furo do Tigre [29] S 3º 14' 48.3'' e W 60° 44' 8.2''

Furo do Bode [53] S 3° 15' 9" e W 60° 43' 36"

Furo do Cumaru [54] S 3° 15' 6" e W 60° 43' 58"

POÇOS

Lugares profundos situados em um canal ou paraná (Pescadores das localidades Cajazeira,

Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima, 2008).

Poço do Muruca [04] S 3° 17' 14.1"e W 60° 51' 53"

Poço do Barro Vermelho [18] S 3° 17' 2.5" e W 60° 51' 21.2"

Poço do Chatu [20] S 3° 17' 6.1" e W 60° 51' 31.3"

Poço Pescoço do Veado (entrada de peixe nos canais)

[21]

S 3° 17' 24" e W 60° 52' 08.6"

IGARAPÉ

São corpos de água de pequeno porte, caracterizados pelo leito bem definido, correnteza

relativamente acentuada, os cursos médios e superior são totalmente encobertos pelo dossel da

floresta de terra-firme e o leito é entulhado de troncos caídos (Lowe-McConnel, 1999).

Segundo Junk (1983) as altas taxas de precipitações (chuvas) contribuem para que exista um

rede muito densa de igarapés que transportam a descarga superficial das chuvas. O autor

esclarece que a maioria dos peixes come os alimentos não provenientes do próprio igarapé, mas

sim, da floresta ao longo do seu leito, tais como insetos terrestres, frutos, sementes, polém etc.

Igarapé do Peraço (vai p/ o paraná do Anamã) [10] S 3° 15’ 40.5" e W 60° 51’ 14.4"

Igarapé do Zé Leite [12] S 3° 16' 48.5" e W 60° 50' 47.6"

Igarapé Grande [16] S 3° 15' 20.9’’e W 60° 50' 44.6’

Igarapé do Seringa [26] S 3° 16' 26.5" e W 60° 52' 33"

Igarapé Água Branca (cabeceira) [28] S 3° 15' 10.9" e W 60° 51' 49.1"

Igarapé do Acari [32] S 3° 15' 4.1'' e W 60° 46' 16.4''

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Igarapé da Canarana [35] S 3° 15' 32.7'' e W 60° 47' 12.1''

Igarapé sem nome (Atrás da casa do Sr. Abdias) [36] S 3° 15' 53" e W 60° 45' 1"

Igarapé do Tigre [37] S 3° 15' 38" e W 60° 44' 56"

Igarapé da Cajazeira [56] S 3° 14' 25.78" e W 60° 46' 11.38"

3.2.1 Cajazeira

Os pescadores da localidade Cajazeira utilizam ambientes próximos (internos), nos

arredores (nas imediações) e distantes de suas moradias. O lago do Jaiteua [03], a “Mãe do

Rio” (paraná do Jaiteua) [48], o lago Grande19

e o paraná do Anamã [42], considerados

ambientes distantes, são apropriados em todas as fases do período hidrológico pelos

pescadores dessa localidade. Estes ambientes apresentam fartura de peixe, fato que motiva o

interesse dos pescadores comerciais da localidade. Porém alguns desses ambientes são

utilizados com restrições principalmente no período da seca para a pesca comercial.

A pesca realizada pelos pescadores de subsistência indica que eles utilizam alguns

ambientes internos que perpassam pelas comunidades Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e

Nossa Senhora Aparecida (Cajazeira), destacando-se o uso dos ambientes (principais)

igarapé da Cajazeira [46] e boca do igarapé da Cajazeira [40]. Os pescadores também se

apropriam de pontos de pesca situados nas imediações da localidade, com destaque para os

ambientes: furo do Acari [33], igarapé do Acarí [32], igarapé do Marinho, igarapé do Jacó e

Ilha Redonda (Gráfico 9 e Figura 43 e 44).

19

Há pontos de pesca no lago Grande de Manacapuru (não referenciados, estando no domínio aquático da cor

azul no mapa da cheia, porém visíveis na época da seca, mas não georreferenciados por problemas de trabalho

de campo – tempo, logística de campo e condições ambientais –, que os pescadores das localidades, neste caso

particular, em Cajazeira, consideram distantes. Os pescadores não identificam por nomes, mas sim, por pontos

de pesca no lago Grande, e apenas isso. Ao se referirem ao lago Grande como descrito no gráfico significa que

não é o lago do Jaiteua, não é o lago São Lourenço, mas sim, pontos de pesca distribuídos que reconhecem e

identificam como compondo apenas o lago Grande, e este ambiente incluindo os lagos do Jaiteua e lago São

Lourenço compondo o lago Grande de Manacapuru como descrito no capitulo I.

Quadro 8 – Ambientes de pesca. Adaptado de Samantha A. Pereira (2005).

Fonte: Dados de campo, 2007/8.

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144

0,0 20,0 40,0 60,0 80,0 100,0 120,0

Igarapé da Cajazeira [46]

Lago do Jaiteua [03]

Paraná do Anamã [42]

Mãe do Rio (Paraná do Jaeteua) [48]

Boca do Igarapé da Cajazeira [40]

Igarapé do Acari [32]

Furo do Acari [33 / 34]

Boca do Igarapé do Tigre [38]

Igarapé da Canarana [35]

Lago Grande

Igarapé do Jacó

Igarapé do Marinho

Ilha redonda

RSD Piranha

Enchente Cheia Vazante Seca

Gráfico 9 – Territórios de pesca: Cajazeira.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

A pesca realizada nos ambientes internos da localidade (40, 46 e outros) é

exclusivamente para o consumo das famílias dos pescadores em associação com a

polivalência de outras atividades rentáveis como a agricultura, o extrativismo e a criação de

animais que foram apresentadas no capítulo II. Os pontos de pesca situados nas imediações

das localidades (32, 33 e outros) são apropriados tanto para o consumo quanto para a

comercialização e partilhados pelos pescadores de subsistência que vendem o pescado mais

no período da enchente, e pelos pescadores comerciais que vivem mais da renda do pescado

durante o ano.

Os ambientes de pesca internos (40, 46) utilizados “exclusivamente” para a pesca de

subsistência são apropriados com intensidade durante o ano, porém com a redução do nível

da água no período da seca, os pescadores de subsistência tendem a se apropriar de

ambientes mais distantes tais como o lago do Jaiteua [03], a Mãe do Rio ( paraná do Jaiteua)

[48], o paraná do Anamã [42] e o lago Grande para suprir as necessidades básicas da família

com a proteína do peixe e destinar uma parte do pescado capturado para a venda

completando o orçamento material e financeiro das famílias. O pescador de subsistência

relata:

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145

“[...] quando lá mesmo no Acari [igarapé] começa a secá, aqui na Cajazeira

a gente percebe que o nosso igarapé começa a secá também. Então a gente

passa lá pro Anamã, pro lago do Jaiteua, pra Mãe do Rio, a gente vai pra

outros lugares também né, porque esses lugares sempre tem peixe. Eu

aproveito e pego o peixe pra vendê também, o que eu não vendo, trago pra

casa prá prepará prá comê no nosso roçado quando tivé trabalhando. [...]

Mas é muito cansativo porque a gente tem que andá muito a pé. É de

rabeta, canoa mesmo, e de pé, pegando os varadouros que você viu hoje até

chegá nesses lugá. Se não for assim não tem peixe” (V.S., pescador

comercial, Cajazeira, 2008).

A pesca realizada nos ambientes internos e nos ambientes considerados distantes não

está isenta de regras de uso. Em Cajazeira, os pescadores de subsistência e os pescadores

comerciais locais estabeleceram um acordo de pesca informal, que garante, como prioridade,

o uso dos ambientes internos apenas para o consumo dos moradores da localidade. Ao se

deslocarem para o paraná do Anamã [42] e para o lago do Jaiteua [3], seja para subsistência

ou para a comercialização, estão sujeitos ao acordo informal de pesca estipulados pelos

pescadores da localidade Jaiteua de Cima, que adotaram-no para controlar o uso coletivo

desses ambientes. Estes agentes sociais exercem a territorialidade (LITTLE, 2002) com

eficiência de modo a coibir a pesca comercial no período da seca, principalmente no paraná

do Anamã [42], pois este reúne consideráveis estoques de peixes nessa época.

A pesca realizada nas imediações da localidade Cajazeira pelos pescadores

comerciais locais está sujeita às restrições de uso negociadas e maleáveis. Os pontos de

pesca são compartilhados com os pescadores comerciais da localidade Jaiteua de Baixo, que

estabelecem regras de uso apenas para os lanços20

que fazem (produzem) na época da seca.

Esta regra é uma recíproca que os pescadores da localidade Cajazeira se valem quando

fazem seus lanços nesses mesmos ambientes, que são menos numerosos em relação aos

produzidos pelos pescadores de Jaiteua de Baixo. O uso desses ambientes pelos pescadores

citadinos (pescadores de fora) ocorre na época mais produtiva, encontrando certa

cumplicidade com os pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo, porém sendo

constantemente vigiados para não excederem na exploração dos lanços.

Diegues (1983) e Furtado (1993) já haviam percebido esta cumplicidade entre os

pescadores-lavradores (pescadores comerciais locais) e os pescadores citadinos (pescador

comercial e embarcado) a respeito da convergência de interesses pelos pontos de pesca.

Estes interesses geralmente articulados pelos donos dos motores de pesca ou pelos

20

Esses lanços que os pescadores se referem são feitos em ambientes de floresta inundada (igarapés, igapós e

chavascais) chamados também de lanços de ambientes fechados.

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pescadores citadinos se ramificam numa ampla rede de prestações de serviços, cuja

finalidade são as melhores condições de captura, venda e compra do pescado. O apoio

logístico desses agentes sociais baseado em empréstimos do tipo esforço de pesca

(equipamentos e apetrechos de pesca) são meios pelos quais os pescadores comerciais da

localidade se sentem estimulados ao trabalho. Porém os autores apontam a ruptura desta

cumplicidade na medida em que os pescadores citadinos se interessam por outros pontos de

pesca ofertando as mesmas condições de cumplicidade a outros pescadores.

Um pescador da localidade Cajazeira explica:

“[...] a gente aqui não costume fazê lanço igual o pessoal do Jaiteua, a

gente faz dois, três lanços lá pro Acari, pra garanti, pra ganha alguma coisa

né, quando tá bom de vendê, só prá comê não compensa muito, que dá

trabalho pra fazê. Mas aqui dentro mesmo não, a gente pesca aqui no nosso

igarapé. Lá eles fazem muito lanço porque pesca prá vendê.

[...] Quando a gente faz um lanço, a gente faz porque precisa, e como tudo

mundo precisa pescá a gente não pode dizê: não você não pode pescá, mas

o pessoal tem que respeitá quando o outro tivé pescando. Se a gente vê

alguém no lanço a gente passa direto, mas quando não tem nenhum que

tudo mundo tá usando eu falo: “o fulano posso pescá? Mas isso já é ruim,

porque se ele tivé lá, só dá prá pescá depois, porque só é bom numas parte

do dia.

O pessoal lá do Jaiteua pesca prá vendê, mas às vezes trabalha pros donos

do motô. O lanço que eles fazem é pra eles, mas o pessoal de fora também

usa prá pescá de caixinha. Não é sempre que eles fazem isso. É quando

vale a pena mesmo. Mas quem sai ganhando é só os donos que pagam

pouco [...]” (L. S., pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2008).

A Reserva de Desenvolvimento Piranha21

(no gráfico, RDS Piranha) é o destino de

alguns pescadores comerciais da localidade Cajazeira. A reserva está distante de Cajazeira,

porém sua territorialidade legal e abrangente faz limites com o lago Grande de Manacapuru,

próximo à localidade Jaiteua de Cima. A RDS Piranha é um complexo de ambientes

21

As Unidades de Conservação (UC) integrantes do Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC)

dividem-se em dois grupos com características específicas, as Unidades de Proteção Integral e as de Uso

Sustentável. O objetivo das de Uso Sustentável é compatibilizar a preservação da natureza e o uso sustentável

de parcela dos recursos naturais. Neste grupo estão inseridas as seguintes categorias: Área de Proteção

Ambiental (APA), Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional (FLONA), Reservas Extrativistas

(RESEX), Reserva da Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e a Reserva Particular do

Patrimônio Nacional (RPPN) (Constituição Federal, Lei n° 9.985/2000 - MMA / Ministério do Meio

Ambiente). Por conta de estudos realizados por consultores e técnicos do IBAMA-AM, a Prefeitura Municipal

de Manacapuru implantou em 1997 (LEI n° 009/97) a primeira RDS municipal do país, denominada Reserva

de Desenvolvimento Sustentável Piranha (MESQUITA, 2000). A RDS Piranha foi criada com objetivo de

proteger o ecossistema de várzea, promover o desenvolvimento e melhorar a qualidade de vida das

comunidades locais.

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aquáticos (lagos e microambientes) que oferece boas condições para pesca comercial

durante o ano. Os pescadores afirmam utilizarem o lago do Piranha (um dos vários

ambientes da RDS) principalmente na enchente e cheia do ciclo das águas, porque a venda

do pescado nesses períodos é mais rentável e a disponibilidade de espécies é variada. O

pescado capturado é encaminhado e vendido diretamente na Balsinha do Pescador em

Manacapuru.

O uso da RDS Piranha pelos pescadores implica um acordo com os moradores de

dentro da Reserva. Isso é uma situação de risco, porque sabem que pescar dentro da RDS é

proibido, e que seus apetrechos de pesca podem ser apreendidos pelos ficais do IBAMA22

e

eles notificados por crime ambiental: “nós sabemos que pescá na RDS é errado, o pessoal do

IBAMA se pegá a gente leva tudo” (Pescador comercial, localidade Cajazeira, 2008).

O território da RDS Piranha legalmente delimitado gera conflitos para os pescadores

da Cajazeira no campo simbólico, pois alegam que a RDS era extensão de sua

territorialidade, uma vez que se reuniam com os moradores para dialogar e agir em defesa do

local, sendo favoráveis às regras de uso para evitar a pesca comercial predatória. Porém o

contexto atual da RDS Piranha faz os pescadores da localidade refletirem sobre a situação

que vivem, pois é proibida a pesca no interior da Reserva pelos “pescadores de fora”: eles

próprios. Nesta condição, foi possível identificar algumas variáveis que perpassam a mente

dos pescadores: 1) alguns pescadores acham viável utilizar a Reserva devido à facilidade de

captura, porém entendem que pagar para se ter acesso não é correto porque a utilizam para a

pesca comercial tendo em vista o sustento de suas famílias; 2) outros pescadores se sentem

constrangidos por não poderem pescar dentro da RDS, porque é proibido, prática que faziam

antes de sua institucionalização e por não terem sido consultados antes de sua criação; 3)

depois que se instituiu a RDS os pescadores citadinos que já utilizavam os ambientes de

pesca das localidades pesquisadas, passaram a utilizá-los com maior frequência, aumentando

o número de pescadores e a pressão sobre os estoques pesqueiros. O pescador comercial da

localidade Cajazeira explica:

“[...] o povo de lá da área não gosta muito desse negócio de reserva, cada

morador de lá ganha um salário pra não mexer em nada, o pessoal disse

que a derrota deles foi assinar, concordar pra ser reserva, o amigo nosso

disse que ganhava numa viagem que dava com as caixinhas pra

Manacapuru. Agora passa um mês pra ganha um salário, prá não pescá.

Mas o pessoal lá, todos eles pescam assim mesmo, podem tirar duas

caixinhas que tem direito, e a gente que pescava lá dá um jeito de pescá

22

Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis.

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também. Eu acho que a reserva foi a nossa derrota também, antes de ser

reserva era melhor, agora a população aumentô, aumentô o pescadô no

nosso lugá de pesca, tem mais gente agora” (O.C.S., pescador comercial,

Cajazeira, 2007).

Contudo, diante destas circunstâncias históricas, há opiniões divergentes acerca da

institucionalização da RDS Piranha, que são relatadas pelos próprios pescadores de

Cajazeira:

“[...] A reserva que tudo mundo fala e acha ruim, eu acho que ela ajuda pra

mantê os peixes existindo. O pessoal reclama muito porque não pode entrá

a vontade pra pescá, eu também acho ruim, mas se não fosse assim o

pessoal de fora já tinha acabado com tudo como fizeram um tempo aí no

Anamã [paraná]. Mas seria bom se tivesse uma maneira da gente pode

pescá lá sem sê escondido. Isso ajuda muito a gente aqui que precisa pescá

porque a gente vive da pesca mesmo” (A. S., pescador de subsistência,

Cajazeira, 2008).

Ao se pensar o uso dos ambientes de pesca é importante relacioná-los ao uso dos

esforços de pesca aplicados. Neste sentido, os pescadores da localidade Cajazeira utilizam

diversos apetrechos de pesca. Os apetrechos de pesca apresentados no capítulo II são os

equipamentos utilizados nos ambientes descritos no gráfico 9 acima. A relevância destes

apetrechos diz respeito à natureza própria de como são produzidos esses equipamentos de

pesca, à capacidade criativa do pescador e aos recursos naturais de que dispõem para a

confecção (NERY, 1995). Geralmente a pesca é praticada de forma artesanal como

demonstramos no capítulo II – o lanço no igapó da Terra Preta –, com instrumentos simples

e individuais e, de preferência, nas proximidades e imediações das residências. Porém o uso

é evidente nos igarapés, nos paranás, nos furos e nos igapós.

Conforme os pescadores da localidade, os apetrechos de pesca apresentam,

atualmente, grande plasticidade de uso. Ou seja, a dificuldade de capturar o pescado por

fatores associados à competitividade entre os pescadores, ao pouco dinheiro para a compra

dos apetrechos e à escassez de determinadas espécies, tem forçado a adaptação do uso de

determinados apetrechos em ambientes cuja aplicação era menos regular. O uso da

malhadeira no igapó é um exemplo, pois não era comum seu uso neste ambiente, apenas nos

furos, nos paranás e nos lagos onde continuam sendo utilizados.

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A tramalha23

, por outro lado, tem substituído relativamente a malhadeira através da

criatividade dos pescadores que, utilizando a técnica “das emendas dos panos de malha” ,

dão origem a “novas malhadeiras” e pequenas e médias redes de pesca.

Leme & Begossi (2004) detectaram esses arranjos nas pescarias realizadas pelas

comunidades do rio Negro, associando esse fato à baixa rentabilidade do pescador e ao

processo do aumento monovalente desta atividade em relação às demais culturas: agricultura

e extrativismo florestal. A compra desses apetrechos apenas faz sentido para as comunidades

se a relação custo-benefício atende às expectativas positivas das famílias. Caso contrário,

sua aquisição, sendo inviável, conduz o pescador a apostar em novas experiências criativas,

porém necessárias a seu ofício de pescador.

Os apetrechos de pesca mais mencionados pelos pescadores da localidade foram: o

caniço, a tramalha, a malhadeira, a tarrafa e a azagaia. Em seguida, tivemos os apetrechos

menos mencionados, com destaque para: o arco e flecha, a linha e anzol, o arpão e a rede.

O uso de diferentes tecnologias de pesca varia de acordo com os hábitos alimentares

e os padrões de mobilidade das espécies (BEGOSSI, 2004). Os apetrechos de pesca

utilizados pelos pescadores de Cajazeira são aplicados conforme a mudança do ciclo das

águas. Os apetrechos mais seletivos geralmente são utilizados nos igapós24

e nos igarapés

nos períodos da enchente e cheia para captura de espécies de comportamento individual tais

como o tambaqui (Colossoma macropomum), o roelo (tambaqui filhote) (Colossoma

macropomum) e o tucunaré (Cichla monoculus). A azagaia, por exemplo, é um apetrecho

extremamente seletivo utilizado para captura de peixes de hábito noturno como, o tucunaré

(Cichla monoculus), o aruanã (Osteoglossum bicirrhosum) e o acará-açu (Astronotus

ocellatus). O uso desses apetrechos é direcionado para a pesca comercial.

O uso do caniço foi observado no igapó em algumas ocasiões para a pesca de

consumo, isso depois de preparada (distendida) a tramalha no lanço. Porém seu uso foi

frequentemente observado juntamente com a linha de mão para pesca de consumo próximo

às residências dos pescadores.

A tramalha é utilizada tanto para pesca de subsistência quanto para pesca comercial

com mais frequência nos períodos da enchente e cheia nos igarapés e nos igapós. Na seca,

23

Tramalha: pequena rede de pesca produzida a partir da linha de plástico. A malha é o tecido de plástico,

confeccionado, cujo tamanho é variado, mais conhecido como “pano”. Diversos panos emendados ou apenas

um “pano” dá origem à tramalha. Seu custo é relativamente baixo no mercado em relação à malhadeira que é

confeccionada a partir da linha de Nylon, considerada mais cara. 24

A Riqueza biológica desses ambientes de pesca foi descrita no capítulo I e II.

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ela é utilizada em substituição da malhadeira em ambientes mais rasos. A malhadeira é

utilizada mais para pesca comercial nos furos, nos paranás e nos lagos em todas as fases do

período hidrológico.

A tarrafa é utilizada com mais frequência no período seca, em ambientes onde a

concentração de peixe é maior. O arco e flecha e o arpão são utilizados nos igapós e nos

igarapés, de modo combinado, em ocasiões da pesca comercial. A rede de pesca é utilizada

pelos pescadores comerciais, porém devido ao alto custo para sua aquisição os pescadores

tem optado pelas redes feitas de “emendas de malhas”. O uso é frequente nos paranás, nos

furos e nos lagos (Gráfico 10).

Cajazeiras

-

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

Caniç

o

Tra

malh

a

Malh

adeira

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Arc

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Fle

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ha e

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Arp

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deira

ou R

ede

Caçoeira

%

Gráfico 10 – Apetrechos de pesca.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

Os moradores da localidade Cajazeira denunciam os problemas ambientais que

verificam em seu cotidiano, como a pesca comercial realizada em alguns pontos às margens

do lago São Lourenço, considerada predatória. A técnica de pesca denominada lanço de

áreas abertas25

praticada às margens desse lago (apresentado no capítulo II) é criticada pelo

impacto que causa ao ambiente, pois atua na captura de grandes quantidades de pescado

selecionando aquelas espécies de mais interesse comercial. Os peixes menores (incluindo de

menor valor comercial) e outras espécies, como os botos e os bichos de casco (tartarugas ou

25

Este lanço de pesca realizado em área abertas como nas margens dos lagos ou paranás, é diferente dos lanços

de áreas fechadas ou mata inundada (igapós ou igarapés). As duas práticas foram descritas no capítulo II.

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tracajás) são aproveitados dependendo da demanda e tamanho. Caso contrário, as espécies

são descartadas nos próprios lagos, fato que implica a poluição e a escassez dos recursos

pesqueiros. Esta prática de pesca ocorre com frequência no período da enchente

coadunando-se com a migração de cardumes de diversas espécies.

Os “pescadores de fora” ou pescadores citadinos são os agentes sociais que atuam

nesta atividade, atendendo às demandas dos donos dos “motores de pesca” provenientes,

principalmente, do município de Manacapuru e Manaus. O esforço de pesca, sem dúvida, é

superior aos dos pescadores da localidade Cajazeira, que se sentem prejudicados diante da

desigualdade material e econômica.

Para a defesa dos lagos, os pescadores da localidade têm denunciado estas práticas ao

IBAMA e à Prefeitura de Manacapuru conseguindo respostas positivas, pois a fiscalização

destas instituições tem atuado para coibir estas práticas de pesca fazendo a apreensão dos

barcos e equipamentos de pesca dos “pescadores de fora”26

. Porém há situações que as

fiscalizações não ocorrem por problemas institucionais de logística e infraestrutura, fato que

deixa as localidades a mercê da atuação desses pescadores.

A criação de gado é uma atividade que tem causado transtornos aos moradores da

localidade. Isso porque as áreas situadas às margens do igarapé da Cajazeira têm sido

desmatadas para servirem de pastagem para os animais. Esta prática implica dois fatores

prejudiciais aos moradores: o desmatamento causa a redução das matas ciliares e, como

consequência, a redução dos fatores biológicos que permitem a permanência das espécies no

igarapé – alimentos, abrigo da luz e condições de reprodução das espécies. O segundo fator

é o deslocamento dos peixes para lugares mais distantes, forçando os pescadores a se

dirigirem para ambientes já explorados por eles e por outros atores sociais, sobretudo nos

ambientes cujas regras de uso são mais eficientes como, no paraná do Anamã e no lago do

Jaiteua no período da seca. Isso causa pressão sobre os estoques pesqueiros desencadeando

conflitos entre os pescadores (Figura 42).

26

Este tipo de pratica deve ser melhor investigada para compreender as relações sociais que se estabelecem

nesse circuito envolvendo camponeses amazônicos, que moram em comunidade vizinhas não pertencentes às

localidades pesquisadas e “novos proprietários de terra” que não moram nas localidades e nem nas

comunidades vizinhas.

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Figura 42 – Pontos de desmatamento às margens do igarapé da Cajazeira.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

A criação de gado tem forçado algumas famílias da localidade a deixarem de praticar

a polivalência das atividades. No campo, observamos a realidade dos moradores, ao

identificarmos o desmatamento de áreas produtivas destinadas à agricultura e ao extrativo.

Isso tem forçado as famílias, como alternativa a curto prazo, a praticar a monovalência da

atividade pesqueira, pois a rentabilidade nesta atividade é mais imediata, exigindo apenas o

conhecimento do pescador e um pequeno esforço de pesca (apetrechos, canoa e caixas de

gelo) para as capturas.

Essa dinâmica da expropriação do ribeirinho da várzea foi problematizada por

Furtado (1993) e Begossi (2004), apontando que a qualidade de vida dos pescadores da

várzea tende a reduzir devido ao “abandono das práticas de agricultura e extrativismo em

substituição à pesca comercial”. Esta dinâmica “sugere a perda gradual da autonomia

simples de produção de alimentos, do conhecimento das práticas do manejo e, como

consequência, a redução da diversidade biológica produzida pelo manejo.

“[...] O gado que esse pessoal de fora cria aqui tem prejudicado nóis

bastante. Cê viu dá ultima vez que você veio aqui. Tudo isso que você tá

vendo não tava assim, foi derrubado esses dias, daqui do nosso terreno até

o terreno do meu compadre aqui. A gente junta nossas terras pra fazê tudo,

prá pegá açaí, prá pegá cupuaçu, prá plantá. Ele usa a minha parte e uso a

dele. E agora, o que a gente vai fazê? Morá em Manacapuru ...? prá fazer o

quê ?, trabalhá de ajudante de pedrero ou pescá pros patrão dos motô. Nos

vamos acioná o IBAMA pra vê o que a gente consegue fazê aqui [...] pesca

mais vai sê o que a gente vai fazê um pouco mais prá ganhá alguma coisa,

né” (O.L.L., pescador de subsistência, Cajazeira, 2008).

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Os moradores da localidade Cajazeira alegam que a criação de gado é

responsabilidade de dois atores sociais: é praticada por pessoas de dentro da localidade que

passaram a valorizar a criação de gado e, por isso, necessitam de maiores espaços de terra

para pastagem dos animais; e por pessoas “de fora” que convivem na localidade apenas em

períodos favoráveis do ciclo das águas – enchente e cheia. Nos últimos três anos, estes

atores sociais que não moravam na localidade têm negociado o uso de grandes áreas

destinadas à criação de gado.

Pereira (2007) menciona que criadores de gado vêm praticando a distribuição do

gado em áreas de várzea através da prática da meia. Nesta parceria, os investimentos e os

riscos da produção do gado são divididos proporcionalmente entre as partes. O autor explica:

“Durante o verão, o fazendeiro retira o rebanho das pastagens da terra

firme dividindo-o em pequenos lotes para serem entregue a vários

pequenos produtores da várzea. O meeiro é subsidiado pelo criador

[fazendeiro] nos gastos com o trabalho de manutenção da pastagem e

pastoreio do gado. Ao final da engorda, o gado é recolhido e o pagamento

ao meeiro pelo trabalho de cuidar dos animais é feito em espécie” (Pereira,

2007, p. 19).

Para os moradores, a área da localidade Cajazeira é considerada de terra firme,

“ideal” para pastagem dos animais. Porém o morador da localidade faz a seguinte indagação

sobre o assunto:

“[...] Esse pessoal de fora que tem muito gado aqui, quando começa a

diminui a água eles mandam os gado pras bandas do Jaiteua, nos beiradão

do paraná do Jaiteua, esses lugares é melhó prá cuidá quando tá seco”

(O.L.L., pescador de subsistência, Cajazeira, 2008).

Apresentado os principais territórios de pesca utilizados pelos pescadores da

localidade Cajazeira, os motivos de determinadas regras de uso aplicadas a esses ambientes

e os problemas ambientais que vivem, discorremos a seguir sobre os ambientes de pesca da

localidade Jaiteua de Cima.

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3.2.2 Jaiteua de Cima

Os pescadores da localidade Jaiteua de Cima se apropriam de ambientes internos e

ambientes situados nas imediações de suas moradias, com exceção da RDS Piranha

considerado um ambiente distante no ponto de vista dos pescadores. O paraná do Anamã

[42], o lago Grande, o lago do Jaiteua [03], o paraná do Cedrinho [11] e o lago do Mutum

são ambientes frequentados pelos pescadores durante todo o ciclo hidrológico, seja para

pesca de subsistência ou comercialização.

Os ambientes considerados internos como, o igarapé do Peraço [10], o canal do

Cumaru [44], o igarapé Grande [16], o paraná do Tauari [17] e o canal do Tiago [1] são

frequentados durante o ano e destinados exclusivamente para pesca de consumo dos

moradores da localidade. Porém a frequência das práticas de pesca nestes ambientes é

reduzida no período da seca devido a diminuição drástica do nível da água associada à

pouquíssima quantidade de pescado (Gráfico 11).

0,0 20,0 40,0 60,0 80,0 100,0 120,0

Lago do Jaiteua [03]

Paraná do Anamã [42]

Paraná do Tauari [17]

Paraná do Cedrinho [11]

Canal do Tiago [01]

Igarapé Grande [16]

Lago Grande

Lago do Mutum

Canal do Cumaru [44]

Igarapé do Peraço [10]

RSD Piranha

Enchente Cheia Vazante Seca

Gráfico 11 – Territórios de pesca.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

As regras de uso direcionadas para os ambientes internos da localidade é para coibir

a prática comercial, sem exceção para qualquer período do ano, ou seja, são ambientes

exclusivos para a subsistência das famílias. O líder comunitário Sr. Raimundo, mais

conhecido como “Seu Velhote” esclarece:

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“[...] o acordo que a gente batalhô aqui no Jaiteua é prá proibi a pesca pra

vendê mesmo aqui dentro de nossas comunidades. Nós temos que

preservar nossos igarapés aqui dentro. Se a gente não fizé isso nossa

família vai sofrer porque não tem muito peixe como o pessoal pensa. Hoje

tá muito concorrido prá pescá, todo mundo qué vendê, por isso de quatro

anos pra cá a gente tem feito isso” (R.M.C., pescador de subsistência e

líder comunitário, Jaiteua de Cima, 2008).

.

O paraná do Anamã [42] e o lago do Jaiteua [03] são os pesqueiro que se destacam

entre os demais ambientes porque são dos poucos lugares do lago Grande de Manacapuru

que oferecem condições ideais para pesca durante o período da seca (Figura 44). Os demais

ambientes, inclusive os lagos têm seus espelhos de água muito reduzidos, fato natural que

provoca a migração dos peixes para ambientes como o paraná do Anamã. Neste pesqueiro,

há ocorrência de “poços” ou fossos profundos que são conhecidos popularmente pelos

nomes de poço do Barro Vermelho [18], poço do Chatu [20] e poço do Pescoço do Veado

[21].

De acordo com os pescadores, estes ambientes localizados na extensão do paraná do

Anamã atingem a profundidade aproximada de quase cinqüenta metros durante o período da

cheia, permanecendo profundos na seca. Durante a seca, os poços são destinos de grande

parte dos peixes que instintivamente se deslocam dos igarapés e de outros ambientes

aquáticos em busca de alimentação, reprodução e abrigo.

O Sr. Lázaro, pescador comercial explica:

“[...] O paraná do Anamã é um lugar bom de pescá, tem muito peixe pra

nós todo tempo. Tem muito poço também ... é lá que os peixes ficam

quanto tá seco, quando eles vem de outros lugares eles ficam porque tem

comida e não é baixo de água como fica nos lagotes por aí [...] o Anamã é

assim, tem muito poço por isso que o pessoal gosta de pescá lá” (L. S.,

pescador comercial, Jaiteua de Cima, 2007).

Para efeitos comparativos, o estudo realizado por Fabré (2007) na unidade Sistemas

Abertos Cururu em Manacapuru (AM) indica que o “Poço” do lago Cururu é uma espécie de

celeiro ou micro-hábitat com alta disponibilidade de peixes para os grupos sociais locais. A

autora relata que o poço é a área mais profunda do lago e na época da seca serve de refúgio

para os peixes sedentários.

A característica ecossistêmica que qualifica o poço Cururu como celeiro de alimentos

para os grupos sociais, por outro lado, é reavaliado por Fabré (2007) como local de

“conflitos de pescadores”. A autora explica:

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Observa-se a convergência de todos os grupos sociais do sistema

[Cururu] ao celeiro de uso comum denominado poço, fato que o

configura como centro de conflito socioambiental. Esses conflitos se

caracterizam como embates entre os grupos sociais derivados dos

distintos modos de inter-relacionamentos com seu meio social e

natural, onde os grupos sociais têm sua forma de adaptação,

ideologias e modo de vida que entram em choque com outros grupos

sociais, dando a dimensão social e cultural ao conflito.

Os conflitos sociais identificados pela autora no uso do poço Cururu foram similares

aos conflitos ocorridos no paraná do Anamã [42], porém envolvendo pescadores de fora da

localidade.

A pesca realizada no paraná do Anamã [42] e no lago do Jaiteua [03] está sujeita

aos acordos informais de pesca articulados pelos pescadores de subsistência e pescadores

comerciais locais de Jaiteua de Cima. Os acordos de pesca foram firmados para o controle

da pesca comercial realizada neste ambientes principalmente no período da seca. O alvo

desses acordos tem sido direcionado com mais rigidez para os “pescadores de fora”, pois os

pescadores de subsistência relataram que “os pescadores de fora” entraram no paraná do

Anamã e no lago do Jaiteua, e com as equipes de pesca retiraram grandes quantidades de

pescado.

Os pescadores das localidades Cajazeira e Jaiteua de Baixo como descrito

anteriormente se ajustaram a esses acordos de pesca porque entendem que esses ambientes

devem ser preservados da pesca predatória. Eles reconhecem as iniciativas e legitimam os

acordos de pesca porque dependem das pescarias realizadas nesses ambientes

principalmente no período da seca, tendo em vista que os pesqueiros próximos às suas

residências secam quase totalmente, e, para aqueles que vivem primordialmente da renda da

pesca27

o paraná do Anamã, torna-se um dos poucos ambientes viáveis a pesca neste

período. Os laços de solidariedade (amizade, vizinhança e parentesco), o sentimento de

segurança entre os pescadores das localidades e o respeito às regras de uso reforçam o

acordo de pesca, contribuindo para minimizar as tensões inerentes ao controle social

direcionado para o uso desses recursos pesqueiros.

27

Embora o acordo informal de pesca proibe a pesca comercial no Paraná do Anamã no período das águas

baixas (vazante/seca), esta regra é direcionada mais para os pescadores de fora. Porém ocorre a negociação

com os pescadores das localidades pesquisadas para a retirada controlada do pescado com destino comercial:

uma caixa de isopor de 120 a 170 litros em média (duas vezes por semana) é a quantidade convencionada entre

os pescadores da localidade Jaiteua de Cima. Esta regra é tanto para os pescadores comerciais como para os

pescadores de subsistência.

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157

Os pescadores de Jaiteua de Cima relataram que as técnicas de captura do pescado

utilizadas no paraná do Anamã são criativas e variadas. Os pescadores citadinos geralmente

costumam operar fazendo a prática da pesca de caixinha, que é uma atividade comum entre

os pescadores das localidades e pescadores citadinos de Manacapuru. Esta atividade consiste

no seguinte processo: os pescadores se organizam em equipes de duas pessoas ou apenas

uma pessoa utilizando canoas motorizadas (as rabetas) que servirão para conduzi-los até os

pontos de pesca. Nas canoas, eles embarcam alguns apetrechos de pesca, tais como as

malhadeira e as redes, carregam lanternas, comidas para suprirem o desgaste físico, água e

caixas de isopor de 200 litros abastecidas de gelo para o armazenamento do pescado

capturado. Por essa composição de equipamentos, essa prática é chamada de pesca de

caixinha. Depois de cheias, as caixas de isopor são levadas aos “motores de pesca” (geleiros)

onde são armazenadas, ou são levadas diretamente para o Terminal Pesqueiro de

Manacapuru pelos pescadores citadinos quando negociadas anteriormente com os

compradores do peixe.

O cerco aos peixes é outra técnica praticada no paraná do Anamã. Consiste na

organização de duas embarcações e quatro pessoas embarcadas, ou seja, dois pescadores em

cada canoa de pesca. Os pescadores são munidos de malhadeiras ou redes de pesca, que são

distendidas de modo a se fecharem em círculo, facilitando a captura de grandes quantidades

de pescado. A batição dos remos na água é feita pelos pescadores para conduzir o pescado

para dentro das redes. Esse tipo de prática foi observada por Furtado (1993) nas pescarias

realizadas pelas comunidades ribeirinhas da cidade de Óbidos (PA), onde causou vários

conflitos de pesca envolvendo pescadores polivalente e pescadores citadinos.

Os motivos que levaram a mobilização social para a criação dos acordos informais de

pesca entre os pescadores das localidades, principalmente em Jaiteua de Cima, são

contextualizados em duas situações pretéritas a partir dessas técnicas de pesca empregadas

no lago do Jaiteua [03], porém com destaque para o paraná do Anamã, principal local dos

conflitos. A primeira faz referência ao ano de 1999 e a segunda ao ano de 2005.

Em 1999, ocorreu a grande pesca do tucunaré (Cichla ocellaris) realizada por um

“motor de pesca” (barco geleiro) vindo da cidade de Manacapuru. Na ocasião, uma grande

quantidade de pescado foi capturada com base na seleção de espécie de interesse comercial.

O montante do tucunaré capturado foi separado das espécies menores e armazenado nos

motores de pesca. As espécies menores e outras espécies variadas sem valor comercial

foram descartadas, jogadas no paraná do Anamã. “A matança e a podridão tava horrível, e o

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158

pessoal da nossa região que pesca prá vendê tava pescando junto apoiando isso, além de a

gente ficá sem peixe, tivemos que passar todo tempo pelo cheiro ruim de peixe podre.” (Sr.

E. F. O., pescador de subsistência, 2007).

Em 2005, ocorreu a pesca liderada por dois “motores de pesca” vindos de

Manacapuru, que fez uma grande captura direcionada para o curimatã (Phochilodus

argenteus). Da captura, ocorreu o enorme estrago de peixe devido à seleção de espécies

maiores e menores. Os peixes menores e sem valor de mercado foram descartados na área do

Paraná do Anamã. O Sr. E. F. O., pescador de subsistência relatou:

[...] os barcos vieram de Manacapuru, como a outra vez, fizeram a mesma

coisa, a mesma mortandade. Como era dois motor grande, eles deram

quatro lanceada com os batelão (canoa) e levaram tudo, só que dessa vez

levaram curimatã, só deixaram os pequeno mesmo, jogando na água pra

apodrecer. Agente se reuniu aqui todos e fomos até o Ibama, falamo o que

aconteceu eles falaram que iam vim aqui, mas não deu em nada. Eles

dizem que falta gente prá trabalhá, a gente sabe disso, mas se não for prá

eles, prá quem a gente vai falá? (E.F.O., pescador comercial, Jaiteua de

Cima, 2008).

O contexto histórico relatado pelo Sr. E. F. O. demonstra que a pesca no paraná do

Anamã anterior à época da criação dos acordos de pesca, operava sob racionalidades que

possivelmente poderiam destruir os estoques pesqueiros. As iniciativas locais que se

desencadearam em acordos informais de pesca têm garantido o uso controlado do paraná do

Anamã, incluindo também o lago do Jaiteua. O lago Grande, por sua vez, tem uma dinâmica

diferenciada porque os pescadores de Jaiteua de Cima o consideram de livre acesso, pois

partilham seu uso com pescadores das localidades vizinhas e com os pescadores citadinos.

Porém, no período da seca, há restrições de uso para pesca comercial associada à

convergência de interesses dos pescadores das localidades que foram apoiados pelas

instituições governamentais atuantes em Manacapuru através da sinalização de placas

proibindo a pesca comercial em determinados pontos do lago Grande.

Retomando o contexto dos acordos de pesca, os pescadores comerciais de Jaiteua de

Cima articulam situações que causam constragimento aos moradores da localidade. Isso

porque insistem em pescar durante o período da seca no paraná do Anamã, confrontando as

determinações dos pescadores de subsistência. Os pescadores comerciais locais quebram as

regras dos acordos informais em determinadas situações, sempre associadas à condição de

atender às demandas das famílias.

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159

Para os pescadores de subsistência, a condição de necessidade é uma situação a que

todos estão sujeitos, o que não justifica a pesca comercial no período da seca no paraná do

Anamã fora dos termos da negociação, que é de duas “caixinhas” por semana (ver nota de

rodapé 27). Porém, o que causa mais descrédito aos moradores, é a cumplicidade com os

pescadores de fora. Essa prática tem sido contestada veemente na localidade a ponto de

forçar alguns pescadores comerciais a rever suas condutas em relação aos pescadores de

fora. O pescador comercial explica:

“[...] Às vezes os nosso colegas aqui, como os irmãos da igreja, eles acham

que a gente pesca prá querer só dinheiro, mas não é assim: eu tenho

sabedoria, prá pesca, sei pescá, então quando preciso eu vou, e às vezes eu

vou pro paraná do Anamã, porque lá tem muito peixe, eu armo as

malhadeiras, faço a caputura rápido e pronto. O sr. vê, eu tenho quatro

crianças curumim ainda, e preciso de dinheiro prá comprá remédio,

comida. O irmão Everson aqui chama minha atenção junto com o pessoal,

eu paro prá não causar problema, porque a gente precisa um do outro. Mas

eu concordo que o paraná do Anamã tem que ser vigiado, porque os

pescador de fora aí acaba com tudo [...] eu trabalhava com o pessoal de

fora, mas o pessoal da comunidade faz pressão prá gente pará com isso.

Então, hoje sigo o que a gente da comunidade decide” (M.O., pescador de

comercial, localidade Jaiteua de Cima, 2007).

Depois de apresentado os principais conflitos de pesca vivenciados pelos pescadores

da localidade Jaiteua de Cima, agora descreveremos os apetrechos de pesca (Gráfico 12)

utilizados nos ambientes descrito no gráfico 11.

Jaiteua de Cima

0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

Malh

adeira

Caniç

o

Tra

malh

a

Lin

ha e

Anzol

Arc

o e

Fle

cha

Zagaia

Arp

ão

Curr

ico

Tarr

afa

Arr

asta

deira

ou R

ede

%

Gráfico 12 – Apetrechos de pesca.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

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160

Os pescadores mencionaram o uso mais frequente de quatro apetrechos de pesca: em

primeiro lugar, temos a malhadeira e, em seguida, respectivamente o uso do caniço, da

tramalha e da linha e anzol. Os apetrechos menos utilizados vieram na seqüência,

respectivamente, iniciando com o arco e flecha, a azagaia, o arpão, o currico, a tarrafa e, por

último, a rede.

A malhadeira, como descrevemos anteriormente (em Cajazeira e Jaiteua de Baixo), é

utilizada nos lagos [03], nos paranás [42], nos canais [44] ou nos furos em todas as fases do

período hidrológico. Os pescadores da localidade utilizam a tramalha de maneira associada

aos demais apetrechos, tais como a azagaia, o arco e flecha e o arpão quando a pescaria é

realizada no lanço de ambiente fechado, isto é, na floresta inundada (nos igarapés, nos

igapós e nos furos). A tramalha é utilizada em ambientes rasos em substituição à malhadeira

principalmente no período da seca. O motivo do uso, segundo os pescadores, é devido a sua

eficiência e baixo custo de manutenção quando comparado à malhadeira. O pescador

comercial esclarece:

“[...] O pano da tramalha que a gente chama, que é de linha de plástico, é

mais barato que a malhadeira, e a piranha se estragá a gente não gasta tanto

[...] com a tramalha na seca a gente pega mesmo, se não pega peixe com

ela, com outro apetrecho a gente não vai pegá mesmo” (S.M., pescador

comercial, Jaiteua de Cima, 2007).

O uso do caniço e a linha e anzol é mais comum para pesca de autoconsumo,

principalmente pelas crianças e jovens que capturam os peixes geralmente para o momento

do almoço. Esta é uma atividade que as mães geralmente direcionam para seus filhos

menores quando, estão trabalhando nos roçados, ocupadas.

Os moradores de Jaiteua de Cima denunciam os problemas ambientais que vivem em

seu cotidiano. Na localidade, os problemas relacionados à criação de animais de grande

porte, sobretudo em relação à criação de gado bubalino [45], demonstram que as práticas de

desmatamento para pastagem dos búfalos e a circulação desses animais nos ambientes

aquáticos têm provocado mudanças de comportamento, a migração e a redução de algumas

espécies de peixes, sendo estas muito apreciadas para o consumo e para a comercialização

pelos pescadores de subsistência e comerciais. Dentre tais espécies, destacam-se o tambaqui

(Colossoma macropomum), o pirarucu (Arapaima gigas) e o roelo (filhote do tambaqui)

(Colossoma bidens) que existiam em grande quantidade, porém, hoje, são raros nos

ambientes de pesca internos da localidade.

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161

A criação de búfalos tem causado constrangimento aos moradores, pois os animais

pisoteiam o chão, provocando a compactação do solo, nadam principalmente nos ambientes

internos da localidade (igarapés) afugentando os peixes e incomodando os pescadores. Os

animais circulam nos roçados destruindo os cultivos agrícolas e atacam outros animais de

grande e pequeno porte, como o gado bovino e os porcos causando em alguns casos a morte

dos animais.

Algumas ações mobilizadas pelos moradores como abaixo-assinados para a retirada

do gado bubalino foram encaminhadas junto à prefeitura de Manacapuru e ao IBAMA com

o objetivo de avaliar a situação e convencer o fazendeiro responsável pela criação de búfalos

a retirar os animais da região, porém, até o momento, não houve respostas positivas para o

problema. O líder comunitário explica:

Nós andamos por todas comunidades aqui do Jaiteua para consegui

assinaturas prá pedir prá sair a fazenda dos búfalo daqui. A gente levô o

papel com as assinaturas prá Prefeitura e pro IBMA de Manacapuru, mas

estamos até agora esperando a resposta deles, não vindo nada é um

problemas prá nós porque a gente vai continuá a viver essa situação de ter

nossas plantações estragadas por causa dos animais, a gente não pode fazê

nada contra os animais porque a gente não quer confusão e é errado matá

os animais (R.M.C., pescador de subsistência e líder comunitário, Jaiteua

de Cima, 2008).

.

Nas palavras dos moradores, a criação de gado bubalino não traz benefícios e é

incompatível com os ambientes de várzea. Os conflitos entre pescadores e fazendeiros,

embora não sejam manifestos na área de estudo, configuram-se como um problema social

que necessita de um olhar mais atento por parte dos organismos de defesa do meio ambiente.

Alguns pescadores da localidade mencionaram o uso dos pesqueiros da RDS

Piranha. Porém a relação estabelecida entre os pescadores da localidade e os moradores da

RDS Piranha perpassa pela esfera religiosa. Na RDS Piranha a única associação comunitária

e religiosa é da Igreja Evangélica Assembleia de Deus (FABRÉ, 2007). Em Jaiteua de Cima,

os moradores das comunidades evangélicas, principalmente da comunidade Assembléia de

Deus são visitados e vice-versa por membros desta instituição religiosa. Esta relação que

perpassa pelos interesses comunitários e pelas relações de parentesco entre os moradores da

localidade e da RDS, facilita a negociação de acesso à reserva. Para outros pescadores da

localidade que não tem os mesmos vínculos, o acesso a reserva se assemelha à negociações

estabelecida pelos pescadores da localidade Cajazeira, causando os mesmos

constrangimentos.

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162

3.2.3 Jaiteua de Baixo

A maioria dos pescadores da localidade Jaiteua de Baixo vive da renda da pesca. Eles

mencionaram os nomes de diversos pesqueiros, porém os ambientes mais utilizados são os

descrito no gráfico 13 destinados com frequência para a pesca comercial.

Os pescadores se apropriam de pesqueiros próximos, nos arredores e distantes de

suas moradias. O lago do Jaiteua [03], a Mãe do Rio (paraná do Jaiteua) [48], o paraná do

Anamã [42], o canal Serra Lima [09] e o lago Grande são apropriados em todas as fases do

período hidrológico. Esses pontos de pesca são considerados distantes, com exceção da Mãe

do Rio (paraná do Jaiteua) e do canal Serra Lima, pesqueiros estes situados nas imediações

da localidade.

O igarapé do Tigre [37] e o igapó Terra Preta são pesqueiros utilizados em quase

todo o período hidrológico, reduzindo o uso drasticamente no período da seca, porque os

ambientes secam totalmente. Nesses pontos de pesca, observamos a prática do lanço desde o

preparo (a capinagem e limpeza) até a realização das pescarias no período da enchente como

descrito no capítulo II.

O furo do Bode [53], o furo do Cumaru II [54], o canal Serra Lima [09] e a ilha da

Borboleta (poço) [08] são apropriados com frequência, porém apresentando relativo limite

de uso no período da seca. De acordo com os pescadores, esses ambientes são rotas

migratórias de diversos cardumes, o que desperta o interesse dos pescadores comerciais da

localidade (Gráfico 13).

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163

0,0 20,0 40,0 60,0 80,0 100,0 120,0

Lago do Jaiteua [03]

Paraná do Anamã [42]

Ilha da Borboleta (poço) [08]

Canal Serra Lima [09]

Igapó Terra Preta

Furo do Bode [53]

Lago Grande

Mãe do Rio [48]

Furo do Cumaru II [54]

Igarapé do Tigre [37]

RSD Piranha

Enchente Cheia Vazante Seca

Gráfico 13 – Territórios de pesca: Jaiteua de Baixo.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

Os demais pontos de pesca que não foram mencionados no gráfico apresentam

diversas limitações de uso principalmente relacionados aos fatores ecológicos e topográficos

apresentados no capítulo I. Ou seja, a formação de inúmeras ilhas na área de pesca da

localidade, dificulta a pesca no período da enchente e cheia porque os peixes se “espalham

ou ficam nas moitas” (S. L., pescador comercial, 2008). Esse é um fator natural que reforça

o interesse dos pescadores comerciais em buscar outros pesqueiros, tais como o paraná do

Jaiteua , o canal Serra Serra Lima e outros ambientes nesses períodos.

A Reserva de Desenvolvimento Piranha, como apresentado nas outras localidades, é

o destino de alguns pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo. Os pescadores afirmam

utilizarem o lago do Piranha principalmente na enchente e cheia do ciclo das águas, porque a

venda do pescado nesses períodos é mais rentável. O pescado capturado é encaminhado e

vendido diretamente na Balsinha do Pescador em Manacapuru.

Os pescadores de subsistência e os pescadores comerciais de Jaiteua de Baixo não

estabeleceram acordos informais de pesca próprios para proibir ou restringir com veemência

o uso dos pesqueiros da localidade. Porém, para não afirmarmos que não há nenhum tipo de

restrição, os pescadores estabelecem a regra de uso para os pontos de pesca onde foram

feitos seus lanços. Ou seja, os lanços feitos em qualquer ponto de pesca são prioridade de

uso daqueles que tiveram o trabalho de organizá-los durante a limpeza e o preparo do

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terreno. Esse fato é o que ocorre com o furo do Acari [33] e o igarapé do Acarí [32]

compartilhados com os pescadores da localidade Cajazeira.

Pelo fato de não haver acordos informais de pesca nos pesqueiros da localidade

Jaiteua de Baixo, isso não significa que os pescadores não sejam atentos aos “pescadores de

fora” (citadinos) por conta da pesca predatória. Os pescadores permitem o uso dos lanços e

dos outros pesqueiros (sem lanços) pelos “pescadores de fora”, porém com o argumento

focado para não realizarem a pesca de arrasto e nem excederem na exploração dos lanços

através do aumento do esforço de pesca.

Nessa condição, os pescadores apenas acompanham os acordos informais de pesca

definidos pelos pescadores da localidade Jaiteua de Cima com relação aos pontos de pesca

internos e os ambientes que são frequentados em todo período hidrológico como, o paraná

do Anamã e o lago do Jaiteua. Em Cajazeira, os pescadores das localidades respeitam o

acordo de pesca que proíbe a pesca comercial nos ambientes internos da localidade.

Os pescadores de Jaiteua de Baixo utilizam tecnologias de pesca simples como, a

malhadeira, a redinha, a tramalha, o currico, o arco e flecha, a tarrafa, o caniço, o arpão, a

linha de mão e a zagaia, cujas descrições detalhadas foram apresentadas no capítulo II e são

encontradas na literatura de Smith (1979) e Furtado (1993) (Gráfico 14).

Jaiteua de Baixo

0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

Malh

adeira

Arr

astã

o o

u

Redin

ha

Caniç

o

Curr

ico

Tra

malh

a

Lin

ha e

Anzol

Tarr

afa

Zagaia

%

Gráfico 14 – Apetrechos de pesca.

Fonte: Dados de campo (2007/8).

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165

A malhadeira é o apetrecho de pesca mais citado pelos pescadores, utilizado em

todos os períodos do ciclo hidrológico tanto para pesca comercial quanto para pesca de

subsistência. Este apetrecho é utilizado nos lagos, nos paranás e nos furos. Por várias vezes,

pudemos presenciar os pescadores da localidade mencionarem que a malhadeira é o

apetrecho que “sustenta” a família. Segundo eles, a malhadeira garante os peixes necessários

para o consumo no período que ocorre a expansão dos ambientes aquáticos.

A redinha é utilizada mais com finalidade comercial, sendo empregada nos mesmos

ambientes. O caniço é muito utilizado para pesca de subsistência, principalmente na

enchente e cheia nos igapós e nos igarapés. A tramalha é utilizada para pesca de subsistência

e comercial nos igapós e nos igarapés.

Na localidade Jaiteua de Baixo não há problemas ambientais similares aos problemas

das localidades Cajazeira e Jaiteua de Cima correspondentes a criação de gado bovino ou

bubalino. Deste modo, apresentamos os principais territórios de pesca das localidades, as

regras de uso neles empregadas e os principais problemas ambientais vivenciados pelos

pescadores.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo da nossa investigação foi evidenciar as práticas de pesca focalizando o

lago Grande de Manacapuru como amplo território de pesca dos pescadores das localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. A pesca, como vimos, está associada a

dinâmica ecológica da várzea, exigindo como imperativo o conhecimento de condições de

adaptabilidade ao ciclo das águas que reflete diretamente nesta atividade.

Num primeiro momento do trabalho, mostramos a dimensão espacial do lago Grande

de Manacapuru, dando ênfase a composição ecológica do lago através das suas

características físicas (geomorfolóficos e liminológicos) (PEREIRA, 2007; SOARES, et al.,

2008). Essa perspectiva se coadunou com a experiência de vida dos pescadores das

localidades evidenciando que as instabilidades de seus ambientes aquáticos e terrestres

geram situações de escassez, sobretudo dos recursos aquáticos, impondo limitações de uso

dos recursos e estresse ao corpo humano. O período da seca ou da cheia em situações

extremas exige adaptação dos pescadores, pois, na seca, por exemplo, a água potável se

torna escassa e de menos qualidade e os pontos de pesca ficam mais distantes. A

representação social que os pescadores fazem de sua realidade expressam essa dinâmica.

A adaptabilidade pressupõe conhecimento sobre a natureza e seus recursos. A

característica liminológica do lago Grande (lago de água mista) é fundamental para as

atividades produtivas, porque estão associadas com a flutuação do nível da água – expresso

no tempo da enchente, cheia, vazante e seca. No período da enchente, apenas para fazer

alusão à afirmação, ocorre a frutificação dos vegetais nos igapós que é fonte de alimentação

para determinados peixes, o que é um conhecimento importante para os pescadores durante

suas capturas, pois há peixes que se alimentam essencialmente de frutas – como o tambaqui

(Colossoma macropomum), um peixe principalmente frugívoro – e que mudam de

alimentação em outro período hidrológico (MORÁN, 1990; SOARES, et al., 2008). Isso

revela que a base produtiva dos pescadores é um ecossistema natural, de enorme riqueza e

diversidade de espécies. No período da seca como vimos, os recursos pesqueiros se tornam

escassos em determinados pontos do lago Grande de Manacapuru, exigindo do pescador,

dependendo do contexto social, que convencione regras para o uso dos recursos. Nas

localidades pesquisadas os acordos informais de pesca foram adotados pelos pescadores

como medidas preventivas que visam a manutenção dos recursos pesqueiros e para que

sirvao de suporte a esta manutenção a médio e longo prazo.

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No segundo momento mostramos que o lago Grande de Manacapuru é utilizado por

diversos agentes sociais, e nas localidades pesquisadas identificamos os pescadores locais de

subsistência, pescadores comerciais e pescadores citadinos que operam sob racionalidades

conflituosas e, em determinados momentos, complementares. A pesca de lanço que ocorre

em florestas inundada, reflete o conhecimento do pescador sobre as melhores condições de

manejo do pescado seja para a subsistência ou comercialização. Porém, os lanços de

margens de lagos e paranás que são ambientes abertos, pelo custo-benefício desta atividade,

apenas faz sentido se for para a comercialização, o que coloca em risco a sustentabilidade

dos recursos pesqueiros pela pesca predatória realizada pelos pescadores de fora.

A partir dos contextos apresentados por localidade, verificamos que os territórios de

pesca e os espaços de uso comum (terras e florestas de trabalho) utilizados pelos pescadores

da localidade Jaiteua de Baixo, porém mais evidentes em Cajazeira e Jaiteua de Cima

(principalmente) são confrontados por ações territoriais (criadores de gado bovino e gado

bubalino e a pesca realizada pelos pescadores citadinos) que tendem aos desajustes ou

desequilíbrio dos acordos informais de pesca e das regras de uso comum dos recursos

naturais convencionados por esses pescadores. Esses confrontos de ações territoriais indicam

a sobreposição de territórios. No caso do uso dos territórios de pesca das localidades pelos

próprios pescadores, a sobreposição de uso territorial é negociada, havendo conflitos apenas

no campo simbólico. Porém, quando se trata dos problemas ambientais relacionados às

criações de gado bovino, gado bubalino e a pesca comercial realizada pelos pescadores de

fora, a sobreposição territorial se torna prejudicial colocando em risco a manutenção dos

recursos naturais de um modo geral.

O conflito simbólico interno que ocorre entre os pescadores de subsistência e

pescadores comerciais das localidades repercute também para a soma aos possíveis

desarranjos no tecido social das localidades, isso porque as unidades domésticas em sua

maioria combinam relações de uso dos recursos naturais (embora não seja algo partilhado de

modo eqüitativo), e no caso da pesca, os ambientes internos e alguns mais distantes como o

paraná do Anamã são vitais para as famílias das localidades em todo as fases do ciclo

hidrológico, principalmente na seca.

A noção da vida em comunidade e os benefícios sociais que dela advém (capítulo II)

são percebidos pelos pescadores. Esta condição tende a amenizar a situação de conflito

interno porque os pescadores comerciais locais podem perder valores mais simbólicos do

que necessariamente monetários ao manter relações de cumplicidade com os pescadores

citadinos (pescadores de fora). Os benefícios materiais decorrente da prestação de serviços

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são perdas importantes para quem deixa de viver em comunidade. Nesse sentido, as

lideranças comunitárias, e com mais ênfase as evangélicas, fiscalizam de perto as atitudes

dos pescadores comerciais. Um fator importante é que entre as comunidades há relações de

parentesco que ocorrem por consangüinidade (primos de 1° até 4°) e casamentos, o que

fortalece os acordos informais de pesca, principalmente em Jaiteua de Cima e Cajazeira.

Lima (2006, p. 149-148), ao estudar a economia doméstica ribeirinha da RDS Mamirauá28

,

chama este tipo de relação de “comunidade de parentes” e esclarece:

“as parentelas [entre as comunidades da RDS Mamirauá] são ligadas por

afinidade e consangüinidade [...]. Nesse contexto se observa um resultado

do processo de reprodução dos grupos domésticos que caracteriza a

sociedade rural: a constituição de “comunidades de parentes” que detêm o

direito de usufruto comum do território onde realizam suas atividades

produtivas. A delimitação de uso dos territórios dessas “comunidades” é

mais precisa em relação à extensão do conjunto de áreas individuais de

moradia e plantio, enquanto que as áreas de pesca, de acesso coletivo do

grupo, são definidas de acordo com as localidades, [e localidades vizinhas]

e por isso sujeitas aos conflitos no campo simbólico e material, [mesmo

beneficiando a todos, os conflitos ocorrem porque não atende todos os

níveis de satisfação]”.

O uso da RDS Piranha pelos pescadores das localidades, como vimos, pelo discurso

e pelo dado gráfico é ilegal do ponto de vista normativo das leis ambientais, porém as

relações sociais transcendem a norma jurídica. A invisibilidade da relação dos pescadores

das localidades com os comunitários da RDS Piranha ao nível da norma jurídica

provavelmente continuará, porém o principio da dádiva (reciprocidade) e certos níveis de

intolerância dos comunitários que não aceitam a presença de intruso na RDS serão

ajustados pela própria relação, uma vez que o poder público não tem condições materiais

suficientes para vigiar a abrangência da RDS, tão pouco de controlar a relação desses

agentes sociais.

As informações apresentadas são importantes para identificar e compreender os

conflitos e as regras sociais que ocorrem no uso dos territórios de pesca das localidades

Cajazeira, Jaiteua de Baixo e Jaiteua de Cima. Sugerir a proposta de gestão participativa

dos pontos de pesca das localidades onde existem estas situações de sobreposição do

território não é apenas a única saída, pois é necessário rever situações como a delimitação

territorial da RDS Piranha que possivelmente esteja forçando pescadores de fora das

localidades a se dirigirem para os territórios de pesca das localidades (até mesmo como

28

Reserva de Desenvolvimento Sustentável localizada em uma extensa área na região do Médio Solimões,

Amazonas.

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169

únicas alternativas) e, por outro lado, a territorialidade da RDS Piranha sendo negociada

com os pescadores de fora, que inclui os pescadores das próprias localidades.

Nesse sentido podemos afirmar que os conhecimentos e as práticas dos pescadores

das localidades pesquisadas possibilitam o manejo racional dos recursos coadunando-se

com o diálogo científico.

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ANEXO

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