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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES ADRIANA RODRIGUES DIAS DESENHO/NARRATIVIDADE: ENTRE LIVROS DE ARTISTA, OBJETOS E PÁGINAS SOLTAS DRAWING/NARRATIVITY: BETWEEN ARTISTS’ BOOKS, OBJECTS AND LOOSE PAGES CAMPINAS 2016

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE …repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/320841/1/Dias_AdrianaRodrigues_M.pdfO desenho, em especial o figurativo – mas não apenas

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE ARTES

    ADRIANA RODRIGUES DIAS

    DESENHO/NARRATIVIDADE:

    ENTRE LIVROS DE ARTISTA, OBJETOS E PÁGINAS SOLTAS

    DRAWING/NARRATIVITY:

    BETWEEN ARTISTS’ BOOKS, OBJECTS AND LOOSE PAGES

    CAMPINAS

    2016

  • 2

    ADRIANA RODRIGUES DIAS

    DESENHO/NARRATIVIDADE:

    ENTRE LIVROS DE ARTISTA, OBJETOS E PÁGINAS SOLTAS

    DRAWING/NARRATIVITY:

    BETWEEN ARTISTS’ BOOKS, OBJECTS AND LOOSE PAGES

    Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade

    Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a

    obtenção do título de Mestra em Artes Visuais.

    Dissertation presented to the Faculty/Institute of the University of

    Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree

    of Master in

    ORIENTADORA: LÚCIA EUSTÁCHIO FONSECA RIBEIRO

    ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

    FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA

    ALUNA ADRIANA RODRIGUES DIAS, E ORIENTADA PELA

    PROFA. DRA. LÚCIA EUSTÁCHIO FONSECA RIBEIRO

    CAMPINAS

    2016

  • 3

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  • 5

    Dedicatória

    Para Eduardo, Maria Eduarda e Eleonora, meus amores.

  • 6

    Agradecimento

    À professora doutora Lúcia Fonseca, orientadora deste trabalho.

    Sempre paciente e compreensiva, agradeço por ter acreditado que eu

    conseguiria concluir esta etapa de meus estudos em meio a tantas outras

    demandas da vida; por ter me feito caminhar, mostrando-me as frestas seguras

    em meio às névoas. Meu carinho e meu respeito.

    Aos professores doutores Sylvia Furegatti e Gilberto Alexandre

    Sobrinho, pela delicadeza, generosidade e assertividade de suas colocações

    no exame de qualificação.

    Às professoras doutoras Luise Weiss e Tatiana Fecchio C.

    Gonçalves por aceitarem prontamente compor minha banca de defesa do

    mestrado. E às professoras Marta Luiza Strambi e Walkíria Pompermayer

    Morini por aceitarem a suplência.

    À Ivanise de Carlo, atriz e amiga que trabalhou como minha

    assistente na interferência-ação Desenho/Narrativa: histórias e ficções da Frei

    Baraúna, pelo diálogo, pelo apoio, pela prontidão e pelo carinho. À Vanessa

    Aprá, fotógrafa e amiga que registrou em fotos a intervenção.

    A Ricardo Turatti, por elaborar o abstract de meu trabalho.

    Aos meus pais, Iraci e Alcides, pelo amor de todos os dias. Aos

    meus irmãos, Erica e Edson, por existirem.

    Ao Eduardo, meu marido, por seu companheirismo, por ser um bom

    ouvinte, por me dizer a palavra certa, por compartilhar a vida comigo. Às

    minhas filhas, Maria e Eleonora, por preencherem de ternura meu coração e

    me trazerem para o mundo que está fora dos meus pensamentos.

    À Luciana Válio e Ângela Gonçalves, pelo acolhimento e pelo afeto;

    pela amizade de tantos anos. À Eli Camargo, pelo carinho. À Heloísa Angeli,

    pela amizade delicada, pelas trocas e pelos muitos cafezinhos que tomamos

    juntas.

    A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para esta

    dissertação.

  • 7

    Resumo

    A presente dissertação, Desenho/Narratividade: entre livros de

    artista, objetos e páginas soltas aborda o desenho e a narratividade,

    percorrendo o território dos livros de artista. Nesta pesquisa são destrinçados

    cinco trabalhos de minha produção 2012-Atual em que narrativas são

    construídas sobre tecidos e papéis e onde o desenho é o fio condutor daquilo

    que é contado, compondo uma série de acontecimentos descritos visualmente

    de modo encadeável.

    Nestes livros de artista e páginas soltas, as figurações desenhadas

    juntam-se a gravuras, costuras e objetos, contam sobre personagens reais e

    fictícios em situações imaginárias. As imagens evocadas e citadas narram

    sobre sentidos e/ou aspectos sensíveis de ligação, peso, deslocamento e

    leveza do ser humano e dos seres no mundo.

    Palavras chave: desenho, narratividade, livros de artista, arte contemporânea.

    .

  • 8

    Abstract

    The present dissertation – Drawing/Narrativity: between artists’

    books, objects and loose pages – approaches the drawing and the narrativity,

    traveling through the artists’ books’ territory. The research promotes an

    exploration of five works produced by me in the period 2012-present, in which

    narratives are constructed on tissues and papers and where the drawing is the

    main conductor of what is told, composing a series of events described visually

    in a chained way.

    In these artists’ books and loose pages, the figurations drawn are

    joined by prints, seams and objects, talking about real and fictional characters in

    imaginary situations. The evoked and cited images narrate senses and/or

    sensitive aspects of connection, weight, displacement and lightness of the

    human being and the beings in the world.

    Keywords: drawing, narrativity, artist’ books, contemporary art

  • 9

    Sumário

    Introdução 10

    Parte I - Adentrar a atmosfera 17

    A natureza intimista e a atmosfera que se expande 18

    A busca em meio a brumas: Liames I 26

    Liames II, o peso e a leveza 32

    Desejo de liberdade: Liames III 36

    Parte II - Desejo de deslocamento 40

    A imersão no abismo 42

    Liames Atlas/Sísifo 46

    Da sombra para a claridade 51

    Parte III - Histórias e Ficções 53

    Frei Baraúna 55

    Proposta, Expografia e Cronograma: Desenho/Narrativa: Histórias e Ficções da Frei Baraúna

    59

    A Interferência-ação no espaço e no tempo da Praça 62

    Do livro de artista à interferência-ação: a relação corpo-obra 65

    A narratividade em páginas soltas 69

    O imaginário de uma praça I 70

    O corpo em busca da leveza 73

    O imaginário de uma praça II 77

    O imaginário de uma praça III 79

    Em busca da liberdade 80

    Histórias e Ficções da Frei Baraúna 81

    Considerações finais 83

    Referências Bibliográficas e referências online 85

    Referências em vídeo 88

  • 10

    Desenho/Narratividade: entre livros de artista, objetos e páginas soltas

    Introdução

    Esta dissertação, Desenho/Narratividade: entre livros de artista,

    objetos e páginas soltas, se configura como um entremear – de longos fios –

    dos assuntos e imagens que aborda: o desenho e a narratividade, percorrendo

    o território dos livros de artista e levando-nos a passear por entre páginas

    soltas e objetos que, em separados ou juntos, compõem uma série de

    acontecimentos descritos visualmente de modo encadeável.

    Minha produção de 2012 a 2014 a ser apresentada neste trabalho

    são narrativas produzidas ora em suportes translúcidos (tecido, papel) que se

    sobrepõem camada a camada ou justapõem-se, ora em suportes opacos

    (papel). O desenho é o fio condutor daquilo que é contado e, a estes desenhos,

    juntam-se gravuras e objetos que, enredados a linhas, compõe a narratividade.

    Liame – ligação, elo – é a ideia que perpassa minha produção. Liam-se os

    desenhos somados uns sobre outros, liam-se as imagens que como num

    sonho – ou a memória – apresentam-se mais ou menos nítidas. As imagens

    evocadas e citadas narram sobre sentidos e/ou aspectos sensíveis de ligação,

    peso, deslocamento e leveza do ser humano e dos seres no mundo.

    O desenho, para Mário de Andrade (1975, p. 69-77), é um modo de

    falar, uma caligrafia, uma espécie de escritura; mais uma escritura que uma

    arte plástica, “[...] o desenho está pelo menos tão ligado, pela sua finalidade, à

    prosa e principalmente à poesia, como o está, pelos seus meios de realização,

    à pintura e à escultura.” Para o autor, os desenhos são poesias, são para

    serem fruídos pela leitura: “Desenhos são para a gente folhear, são para serem

    lidos que nem poesias, são haicais, são rubaes, são quadrinhas e sonetos”1.

    O desenho sempre esteve no centro de meu trabalho, mesmo

    quando apenas preliminar para uma obra a realizar-se em outra linguagem.

    Concordando com Mário de Andrade, uso o desenho como um modo de falar.

    1 Idem

  • 11

    Gabriel Garcia Marques, em Vivir para contarla (2002, p.112), conta-nos que

    quando criança não necessitava da palavra escrita, pois expressava em

    desenhos tudo que o impressionava. Inventava sequências gráficas e criava

    histórias sem diálogos.

    O desenho, em especial o figurativo – mas não apenas –, sempre

    parecerá para mim um modo de contar, mesmo quando é um desenho

    autônomo, fora de uma intencional sequência de imagens. Em minha produção

    2012-2014, a linguagem do desenho e a narrativa conduziram meu trabalho.

    Num sentido amplo, todos sabermos o que é narrar e, em algum

    momento de nossas vidas já nos enredamos em meio a tramas de uma história

    contada. Narrar, segundo o Pequeno Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

    (2015, p.661), é expor por escrito ou oralmente fato ou acontecimento; contar,

    relatar.

    Para o verbete narrativa (p.662), o dicionário é conciso: narração,

    exposição, conto, história, ficção. Para o mesmo verbete [narrativa], o

    Dicionário Priberam de Língua Portuguesa2 contempla apenas o universo das

    palavras escritas: “obra literária, geralmente em prosa, em que se relata um

    acontecimento ou um conjunto de acontecimentos, reais ou imaginários, com

    intervenção de uma ou mais personagens num espaço e num tempo

    determinados”.

    O conceito de narrativa não é circunscrito apenas à obra literária;

    perpassa pelos campos do cinema, da fotografia, dos comics, das artes visuais,

    da tradição oral: histórias, mitos e causos relatados gerações após gerações.

    Neste sentido, para Jaccques Aumont e Michel Marie, no Dicionário teórico e

    crítico de cinema (2003)3, “a narrativa é relativamente indiferente à sua

    formatação e podem-se considerar amplamente equivalentes narrativas

    2 "narrativa", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,

    http://www.priberam.pt/dlpo/narrativa [consultado em 27-05-2014].

    3 O dicionário cita Gérard Genette, que distinguiu três sentidos para a palavra narrativa: O enunciado narrativo que assegura a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos; A sucessão de acontecimentos reais ou fictícios [...] e suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição etc; Não mais [o acontecimento] que se conta, e sim aquele que consiste no fato de alguém contar alguma coisa. (Aumont e Marie)

  • 12

    escritas, orais, cinematográficas de uma mesma sequência de

    acontecimentos”.

    No âmbito da obra literária, do cinema, das histórias em quadrinhos,

    a narrativa proposta delimita os campos de interpretação (de leitura); isto é,

    nestes formatos a narrativa tem o encadeamento dos acontecimentos

    entregues ao leitor – expectador – de modo a conduzi-lo através da

    sequencialidade dos fatos, mesmo quando se desconhece o desfecho da

    história. Na prosa literária as palavras arranjam-se lado a lado sobre as linhas

    de uma página, no cinema cada quadro foi precedido pela cena do quadro

    anterior, assim como se dá nas histórias em quadrinhos – a leitura se dá em

    uma direção e sequência pré-determinada.

    Algirdas Julius Greimas e Joseph Courtés, no Dicionário de

    Semiótica (2008, p. 327), definem narrativa como o discurso narrativo de

    caráter figurativo, que comporta personagens que realizam ações. O dicionário

    de Greimas e Courtés aponta o conceito de narratividade como posterior ao de

    narrativa; narratividade é o princípio organizador de qualquer discurso narrativo

    (identificado, num primeiro momento, com o figurativo) e não-narrativo (p. 328-

    330).

    Nas artes visuais a narrativa não tem os mesmos contornos da

    literatura, cinema ou quadrinhos; a narrativa pode dar-se de maneira indireta,

    não linear, oblíqua. As imagens podem se suceder de modo a criar uma

    circularidade na leitura ou, ainda, remeter-se a segmentos da narrativa que não

    são mostrados e devem ser intuídos. A narrativa em imagens, no campo das

    artes visuais, é polissêmica. A abertura desta linguagem, assim como ocorre

    com a poesia ou com a música, permite que sigamos aquilo que é contado por

    um viés próprio, a obra constrói-se com o leitor. Umberto Eco, em Obra aberta

    (1991, p. 40), esclarece que o autor ao produzir um objeto de arte organiza a

    obra de modo que o possível fruidor possa recompreender - pela sensibilidade

    e pela inteligência - a obra originária imaginada pelo autor. Neste jogo, cada

    fruidor estabelecerá suas relações, segundo uma perspectiva pessoal com

    gostos, preconceitos, tendências, isto é, uma sensibilidade particularmente

    condicionada.

    Dentre os meus desenhos enredados, os muitos fios da narrativa e

  • 13

    as muitas possibilidades de apresentá-la – e de ser recompreendida pelo

    possível fruidor –, escolhi os livros de artista para abrigarem minhas histórias4.

    O livro, tal qual o sabemos, é um objeto que reúne folhas, impressas

    ou manuscritas. E pode conter imagens. Em geral sua capa é constituída por

    um papel de maior gramatura em que se lê o nome do livro ou o assunto de

    que trata – o livro tem uma identidade, todos iguais em sua estrutura, mas

    carregando seu nome, quase uma individualidade, um ente. Em geral o livro

    leva impresso o nome de quem modelou seu conteúdo incorpóreo, um autor.

    Ainda em sua capa, procurando um pouco abaixo encontramos outro nome,

    agora daquele que modelou o que o livro tem de corpóreo: a impressão das

    letras, o corte das folhas, as costuras, a capa; um editor. Roger Chartier (1992,

    p.55), em El mundo como representación, esclarece que os autores não

    escrevem livros, estes são fabricados por escribas e artesãos, por mecânicos e

    outros engenheiros, por impressoras e máquinas; autores escrevem textos que

    outros transformam em objetos impressos.

    Para Umberto Eco, em discurso proferido na Biblioteca de

    Alexandria (2003a), o livro pertence à mesma classe de instrumentos que a

    colher, a faca, o martelo: uma vez inventados, não se modificaram, não foram

    aprimorados, pois já estão bons o bastante. A evolução do livro – desde os

    tabletes da escrita cuneiforme – ao chegar a sua forma códex, ou códice,

    encontrou seu formato ideal.

    Edith Derdyk em Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas

    poéticas (2013) traça algumas aproximações e distinções entre livros e livros

    de artista. Derdyk (p. 11-12) apresenta a denominação livro funcional para

    livros existentes desde o início de sua história na civilização e denomina como

    livro de artista o objeto singular com específicos modos de produção e que

    carrega em si muitas nomenclaturas – objeto-livro, livro-processo, impressos,

    livro registro, caixa-livro... – e variam amplamente. Para Derdyk livros

    funcionais e livros de artista confluem num primeiro instante naquilo que

    concerne à forma-livro. Porém, nos livros funcionais conteúdo independe de

    seu suporte.

    4 Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2015, p. 511), história: [...] 6. Narração de eventos fictícios ou não; narrativa, estória.

  • 14

    No livro “funcional”, o suporte é um contêiner isento, ausente de si mesmo, cuja forma e materialidade estão ali para agarrar, fixar e preservar memórias ou estender, alongar e projetar imaginários, diferentemente do livro de artista cujo suporte é, essencialmente, um espaço poético do “aqui do onde” e do “agora do quando”. Isso quer dizer que no livro de artista o “suporte” é a temporalidade que se atualiza a cada instante em que o livro é lido, visto, tocado, manuseado. E assim, o tal “suporte” deixa de suportar depósitos gráficos para ser uma superfície extensiva, folhas “quase cinema”, um campo de aterrissagem para sinais transitivos, com alta voltagem poética.

    Nas folhas quase-cinema, o artista trabalha a materialidade do

    objeto. Para Frederico Morais, em Caixas e livros, (2012, p. 71), o livro

    tradicional distancia o leitor do objeto que este tem em mãos, já o livro de

    artista, que o autor chama de livro-forma está próximo a sua realidade material.

    Em sua opinião, do livro ao livro-forma, “recuamos da transcendência à

    imanência”. Para o autor, a obra deixa de ser o ‘conteúdo’ que está para além

    do objeto e deposita-se no objeto em si.

    Meus livros de artista, a serem apresentados nesta dissertação, são

    multiformes, assim como é o campo dos livros de artista. Ora construo minhas

    narrativas em livros que podem ser folheados como um códice ou desdobrados

    como uma sanfona; ora apresento-as em uma sequência de páginas e objetos

    que arranjados lado a lado contam uma história. Apresento-as ainda em

    páginas soltas, que dispostas num amplo espaço, parecem não ter se com-

    formado à estrutura de um grande volume.

    O fluido desenvolvimento de meu processo de criação, de minhas

    buscas, e das transformações de meus livros de artista desde o início da

    produção atual, em 2012, me remete a Redes da criação: construção da obra

    de arte, de Cecília Salles (2006). Salles (p. 22) fala sobre o ato da criação

    como um movimento entre o rumo e a incerteza; deslocamentos de saberes

    prévios em constante rearranjo. O ir e vir entre produção-teoria-produção, que

    vivenciei retornando obras de artistas que me são referência, filmes, poemas,

    literatura, é apontado por Salles5 quando mostra que no processo criativo há

    um movimento no campo teórico-prático, diretamente ligado ao movimento do

    5 Idem.

  • 15

    campo das ideias, em que a prática e a teoria constroem-se ao mesmo tempo,

    de forma cíclica, como uma fita de moebius6.

    Cecília Salles aponta que a obra ‘entregue ao mundo’ é objeto dito

    acabado, mas referente a um processo inacabado, uma versão possível do que

    pode vir a ser modificado. Concordando com Salles, o trabalho a ser

    destrinçado nesta pesquisa é um trecho de um percurso (não linear), passível

    de ser modificado (como se modificou no percurso destes dois anos de

    construção da obra apresentada nesta dissertação), repensado, retomado, pois

    decorrente de alguns acasos e de algumas escolhas, que poderiam ter sido

    outras.

    A intenção desta pesquisa é observar meu trabalho poético e tal qual

    a fita de moebius, entrelaçá-lo e pensá-lo pelas lentes dos textos e referências

    apresentadas. Não é a intenção desta pesquisa realizar uma investigação

    fechada a respeito dos temas que aborda; realizo este estudo em terreno

    poético, dos desenhos e da narratividade, do simbolismo das formas, no fértil e

    multiforme campo dos livro de artista, a que pertencem a série Liames e seus

    desdobramentos.

    Assim, voltando-me para o princípio – ou aquilo que marco como

    começo – deste percurso, a Parte 1 desta dissertação, Adentrar a atmosfera,

    se inicia por um olhar a respeito dos livros e livros de artista, apresentando-os,

    para além do objeto detentor da memória, como objeto intimista que conduz o

    leitor – e o artista- ao devaneio. Nesta parte será exposta a série Liames

    (2012), composta por três livros de artista, Liames I, II e III. Nesta parte da

    dissertação a leitura de Ovídio [Metamorfoses], Jorge Luís Borges [Ficciones],

    Ítalo Calvino [Se um viajante numa noite de inverno] ajudaram-me aprofundar

    meu olhar.

    A Parte 2, Desejo de deslocamento, trará para o estudo uma

    narrativa intitulada Liames Atlas/Sísifo (2013 e 2014). É uma narrativa formada

    6 A fita de Moebius é um objeto obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, porém realizando a inversão de 180º em uma das pontas e leva esse nome pelas pesquisas de August Ferdinand Möbius, que a estudou em 1858. Esse objeto tem interessantes propriedades, pois embora pareça haver dois lados da fita, há apenas um; há apenas uma borda. Pode caminhar-se por sua superfície de maneira infinita, um caminho sem princípio nem fim.

  • 16

    por páginas – trabalhadas em gravura em metal, desenho, costura- e objetos.

    Liames Atlas/Sísifo mostra meu corpo – em autorretratos- experienciando o

    peso e a profundidade, percorrendo a topografia de abismos. A obra narra

    sobre conter e libertar, sobre o peso e a leveza, o desejo de deslocamento e

    liberdade. Nesta parte da dissertação leio a obra por um viés simbólico: a

    imagem do abismo, as linhas enredadas ao corpo e a narratividade do uso da

    cor.

    Na Parte 3 desta dissertação, Histórias e Ficções, será

    apresentada a intervenção urbana Desenho/Narrativa: histórias e ficções da

    Frei Baraúna (2014). A interferência-ação aconteceu na Praça Frei Baraúna,

    em Sorocaba por um período de 21 dias em que a obra construiu-se e

    modificou-se. A ação se constituiu pela realização diária de desenhos em

    nanquim sobre tecido. Os desenhos, realizados in loco, são lidos nesta

    dissertação como grandes páginas que se soltaram de um livro. A narrativa em

    páginas soltas foi tecida por memórias, histórias vividas e inventadas.

    No interior desses livros e narrativas aqui apresentadas há um

    mundo de histórias contidas em páginas costuradas, objetos e páginas soltas,

    compostas por figurações desenhadas, repletas de personagens reais e

    fictícios em situações imaginárias.

  • 17

    Parte I

    Adentrar a atmosfera

    Liames I. Livro de artista. Papel vegetal, nanquim. Página em tamanho

    A5. Adriana Dias. 2012.

  • 18

    Parte I

    Adentrar a atmosfera7

    Ah! os livros também têm seu próprio devaneio!

    Cada um deles também tem uma tonalidade de devaneio,

    pois todo devaneio também tem uma tonalidade

    particular. [...] Os livros são, pois, nossos verdadeiros

    mestres de sonhar. Gastón Bachelard8

    A natureza intimista e a atmosfera que se expande

    Em A história sem fim, Michael Ende (2010)9, descreve as paixões

    humanas como misteriosas, e a paixão do personagem Bastian eram os livros;

    ao deparar-se com um volume cujo magnetismo o atraía irresistivelmente, toca-

    o. O gesto das mãos reverbera no garoto uma sensação de estalo, como se

    algo fora desencadeado e já não pudesse ser detido. Bastian, então, furta o

    livro e esconde-se no sótão de sua escola para lê-lo. O local reúne os mais

    díspares objetos e há uma camada de poeira deitada sobre cada coisa, um

    lugar onde o tempo parecia ter parado; uma fresta na realidade.

    Bastian olhou para o livro.

    "Gostaria de saber", disse para si mesmo, "o que se

    passa dentro de um livro quando ele está fechado. É claro

    que lá dentro só há letras impressas em papel, mas,

    apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque

    quando o abro, existe ali uma história completa. Lá dentro

    há pessoas que ainda não conheço, e toda a espécie de

    aventuras, feitos e combates — e muitas vezes há

    tempestades no mar, ou alguém vai a países e cidades

    exóticos. Tudo isso, de algum modo, está dentro do livro.

    É preciso lê-lo para o saber, é claro. Mas antes disso, já

    está lá dentro. Gostaria de saber como. . ."

    7 Alguns trechos desse capítulo foram apresentados no encontro Poéticas da Criação – ES 2013: o artista como autor e as práticas colaborativas na arte contemporânea. UFES-Vitória/ES. 4 a 7 de dezembro de 2013. O texto apresentado foi publicado: DIAS, Adriana Rodrigues. Folhear: algumas considerações a respeito do livro de artista. In: Cirillo, J., GIL, F. G. e GRANDO, A (orgs.). Artistas, autoria e a práticas colaborativas. São Paulo: Intermeios, 2013. 8 Apud Ferreira, 2008, p. 117-118. 9 Publicado pela primeira vez em 1979.

  • 19

    E, de repente, sentiu que aquele momento tinha algo de

    solene. (ENDE, 2010, p. 14-15)

    Os pensamentos de Bastian no silêncio que antecede o momento de

    abrir o livro e iniciar a leitura perscrutam sua natureza. O personagem percebe

    que o sentido do volume que pesa em suas mãos está além do objeto. Bastian

    faz-nos meditar sobre duas facetas do livro que interessam a esta dissertação:

    ser o livro de natureza intimista – tanto em sua feitura quanto em sua leitura –

    ou que sugere algo que como um segredo se desvelará e a atmosfera que se

    expande em relação ao objeto livro, sobrepassando a matéria – e perdurando a

    ela.

    Para mim, como para muitos, o livro é um objeto de afeto. É um

    objeto para se ter nas mãos ou apoiado em uma superfície, deve ter a

    proximidade dos olhos (ou dos dedos) de quem o lê. Sentar-se, dar volta no

    volume. Explorar o exterior primeiro. Abri-lo. Penetrar o livro exige tempo: uma

    poltrona pode ser importante. Diferentemente de uma pintura na parede de um

    museu, de uma instalação artística, ou um outdoor na calçada, o livro exige

    proximidade, um leitor por vez, para si. Penso que foi por esse formato e

    linguagem, por ser intimista,

    que optei pelo livro de artista

    para o início da série

    Liames; meu olhar que se

    debruça sobre o pequeno

    formato quando estou

    tecendo minhas memórias

    entremeadas de ficção. Em

    consonância, a escolha da

    linguagem do desenho

    também está na ordem da

    intimidade; ele nos convida a

    olhar de perto suas

    qualidades gráficas. Se há proximidade quando realizo o trabalho, há também

    proximidade do possível fruidor. O gesto do corpo que se aproxima e desce o

    olhar é íntimo. Parece, talvez, que revelo um segredo a quem o ‘lê’.

    Figura 1. Adriana Dias. Corpo-forma. Diário/Livro de artista. Página em tamanho A4. 2000. Projeto para

    gravura em metal.

  • 20

    Meus primeiros livros, anteriores a série trabalhada neste capítulo,

    tinham um caráter de diário. Iniciei meu afeto por livros pelo viés da literatura;

    descobri os textos em primeira pessoa, as cartas, os diários, as narrativas a

    respeito do cotidiano, das miudezas, das sutilezas da vida comum. Vislumbrava

    na leitura de um diário a possibilidade de perscrutar, descobrir um rico universo

    interior talvez não expresso de outra maneira. Assim comecei a escrever os

    meus diários: registrar em palavras meu mundo interno e as relações que

    estabelecia com o que estava fora. A transição do formato ‘diário’, para o de

    livro de artista aconteceu aos poucos, no contato com o material de outros

    artistas. Os diários que a princípio eram compostos por escrita, foram,

    paulatinamente, ganhando imagens que viriam, talvez, a constituir-se como

    trabalhos maiores. A princípio meus livros de artista eram um veículo para algo

    que se materializaria fora deles (fig. 1). Com o tempo, e em contato com a obra

    de outros artistas, meus cadernos foram compondo-se apenas por imagens.

    Comecei a produzir meus primeiros livros de artista.

    Sob uma perspectiva de gênero, essa mesma trajetória iniciada por

    mim pela escrita do diário, aconteceu em outro momento com outras artistas.

    Judith Hoffberg, em seu texto de apresentação de uma exposição de livros de

    artista ocorrida em São Paulo na década de 1990 (1997, p. 11), apresenta o

    formato diário como o gérmen de algo a desdobrar-se na obra de algumas

    artistas. Hoffberg aponta que no início do movimento feminista, mulheres

    usavam o diário para exprimir problemas e soluções, assim como sentimentos

    perenes ou cotidianos.

    Na construção de livros como quem sonda a própria essência, Lenir

    de Miranda, artista visual rio grandense que em sua produção constrói livros de

    artistas como objetos únicos, em entrevista concedida a Paulo Silveira em

    dezembro de 1997, afirma que “o livro de artista é objeto paradoxo que convida

    o homem a uma pausa diante de si mesmo ao convidá-lo a penetrar na sua

    trama íntima” (apud Silveira, 2008, p. 261). A forma do livro de artista como

    diário, ou como páginas que imprimem o espírito10 do autor, ou ainda o livro de

    10 Neste texto, a palavra ‘espírito’ é utilizada no sentido de ‘imaterial’, algo que o autor coloca em seu livro, mas é de natureza impalpável. Aproxima-se ao sentido que emprega Aleida Assmann no livro Espaços da recordação (2011) e que é apresentado na citação.

  • 21

    artista como objeto único, são algumas das possibilidades de existência do livro

    de artista, em meio a uma vasta paisagem.

    Aleida Assmann (2011, p. 203) nos traz que a página impressa é um

    médium entre o espírito do autor e o leitor. A autora aponta que um livro com

    páginas vazias não se destina a ser lido, mas a ser escrito. Na impressão –

    imprint- desse livro em branco será tomada como matriz o espírito do

    proprietário: “O livro, com isso, torna-se um instrumento de externalização do

    que é interno, fechado e inacessível; com a ajuda das folhas vazias, vai se

    desvendar, abrir-se, tornar-se legível”. Nesta colocação, o autor surge mais

    próximo da materialidade do livro, da conformação das páginas e não apenas

    conformação de ideias. Sobre páginas em branco o sujeito [autor] é convidado

    a agir, deixando impressa sua matriz. Assmann nos aponta que em sua

    tradição o livro [a escrita] carrega a ideia de verdade impressa, conceito que

    advém do Renascimento:

    O conceito-chave nesse contexto chama-se “espírito”. A

    escrita é considerada medium congenial do espírito, pois

    nessa teoria a transparência da escrita corresponde à

    imaterialidade do espírito. A escrita, por meio de sua

    transparência virtual – os caracteres como significantes

    materiais “caem como borra durante a leitura” -, tem uma

    finalidade especial com o espírito. (ASSMANN, 2011, p.

    206)

    Na construção de meus livros de artista, minha relação com a página

    em branco é de cumplicidade. Ao trabalhar a materialidade do papel, teço em

    desenhos a memória-ficção. Vou imprimindo nas páginas meu “espírito”, na

    forma de desenhos. Este elo entre mim, que construo o livro de artista, e

    aquele que se disporá a folheá-lo [lê-lo], é o caráter intimista e o “espírito”

    impregnado. Na tessitura11 das imagens eu escancaro, sussurro, minto ou velo.

    11 Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2001, p. 2708), Tessitura: [...] 5 – composição de tecido, textura. 6 – p. ana. Modo como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura (o romance possuía uma extraordinária t.) ETIM. It. Tessitura (s XIV) organização de um discurso religioso, (1640), ação de fazer tapeçaria sobre uma tela ou o trabalho assim tecido, (1737) organização e composição de uma obra literária, contextura, 1879) acp. Mús, (1881) acp modo de dispor ou ordenar, do v. it. Tessere, este do lat. Txo, is xui, xtum, ére, tecer, fazer tecido; entrançar, entrelaçar; construir sobrepondo ou entrelaçando. [O negrito não consta do texto original.]

  • 22

    Partilho. O outro desvela, lê, reconta. Perscruta. Quando se abre o livro [de

    artista], sua atmosfera se expande.

    Em Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino (1999,

    publicado pela primeira vez em 1979), guarda ao longo de suas páginas

    reflexões sobre a essência dos livros. No livro, o autor propõe um desafio físico

    – e metafórico – ao personagem Leitor, protagonista da história. O Leitor, ao

    tomar um livro em mãos para iniciar a leitura percebe que as folhas do volume

    não foram cortadas. Ele então, munido de espátula, perpassa as fronteiras da

    matéria:

    Os prazeres que o uso da espátula reserva são táteis,

    auditivos, visuais e, sobretudo, mentais. Para avançar na

    leitura, é preciso um gesto que atravesse a solidez

    material do livro e dê a você o acesso à substância

    incorpórea dele. [...] Abrir uma passagem com o fio da

    espada na fronteira das páginas sugere segredos

    encerrados nas palavras: você avança na leitura como

    quem penetra uma densa floresta.12

    A natureza incorpórea/espiritual do livro – ou da leitura – é retomada

    em outros momentos de Se um viajante numa noite de inverno. Calvino outorga

    ora a um ora a outro personagem sondar a imaterialidade do livro: o professor

    Uzzi Tuzii, conversando com leitores, define que na leitura há a presença de

    um objeto sólido, escrito, que não pode ser mudado. Porém há também alguma

    coisa sem presença, “algo que faz parte do mundo imaterial, invisível, porque é

    apenas concebível, imaginável, ou porque existiu e não existe mais, porque é

    passado, perdido, inalcançável, na terra dos mortos”13. Tais impressões do

    personagem Uzzi Tuzii se seguem na voz de outro personagem, a Leitora, “Ler

    é ir ao encontro de algo que está para ser e ninguém ainda sabe o que será...”.

    Ela, então, debruça-se para sondar além da página impressa a sua frente,

    pronta para ver navios despontando no horizonte, tempestades... 14.

    A reflexão em torno do livro enquanto matéria e do livro em sua

    imaterialidade, em sua natureza que se expande – e perdura –, pode ser

    encontrada em Roger Chartier (1992), em El mundo como representación. O

    12 Idem, p. 48. 13 Ibidem, p. 78. 14 Op. Cit.

  • 23

    autor aponta que em um lapso temporal de mais de mil anos, construções

    colossais jazem em ruínas; ao contrário, textos escritos na mesma época ainda

    são copiados, lidos e estudados (p.195).

    A fragilidade das letras manuscritas ou impressas, sobre um papiro

    ou num livro é aparente. Para Assmann15

    a escrita é uma “força preservadora”

    e “uma das armas mais eficientes contra a segunda morte social, o

    esquecimento”. Se em sua materialidade o livro mostra-se frágil, a

    indestrutibilidade é o aspecto que o faz objeto político. Desmaterializados ao

    longo da história, o objeto detentor de memórias e instigador de pensamentos,

    foi visto como uma ameaça a governos totalitaristas ou a visões unilaterais de

    dogmas religiosos. Temidos, cultuados, lidos às escondidas, a censura faz

    parte da história dos livros.

    Neste sentido, Ana Paula Cohen em Entre o museu e a biblioteca

    (2012, p.339), aponta que o livro pode circular, passar de uma mão a outras

    mãos sem perder sua potência, “a qualquer momento, pode ser aberto, mesmo

    em movimento, e seu conteúdo se expande em relação ao corpo do sujeito que

    o lê, e seu espaço se abre para outras dimensões – que não demandam

    necessariamente um espaço físico maior, mas sim um tempo estendido, no

    qual se realiza a leitura”. O espaço e o tempo são outras duas facetas desse

    objeto que há séculos magnetiza àquele que se permite dele aproximar-se.

    Waltércio Caldas (2012, p. 331), artista com ampla produção em

    livros de artista, considera os livros – assim como os relógios e os espelhos16 –

    significativamente maiores por dentro que por fora. Em 1978, Waltércio realizou

    o livro chamado Matisse, talco. A obra consiste num livro aberto numa página

    que contém a reprodução fotográfica do ateliê de Henri Matisse; o artista

    colocou talco recobrindo quase completamente ambas as páginas do livro

    aberto (fig. 2). Sobre esta obra, Frederico Morais (2012, p. 85) faz a seguinte

    colocação, “Matisse, talco, 1978, é mais propriamente uma intervenção de

    Waltércio, que ao recobrir a reprodução de Ateliê do artista, de Henri Matisse,

    15 Op. Cit. 16 Waltércio possivelmente refere-se a Shakespeare quando pontua os livros, os espelhos e os relógios. Como nos mostra Aleida Assmann (2011, p. 201-202), Shakespeare – no Soneto 77 –, combina estes três objetos, trazendo seus valores pragmáticos, mas também simbólicos.

  • 24

    com pigmento branco e

    perfumado, recria a atmosfera

    sensorial e luxuriante que

    subjaz à pintura do mestre

    francês”.

    Matisse, talco, é um

    livro com a natureza corpórea,

    material, concernente a este

    objeto tal qual o sabemos,

    acrescido da materialidade,

    textura, cor, cheiro

    específicos do talco. É também um livro com a incorporeidade que a ele cabe,

    ainda que não possamos tocá-lo nem folheá-lo. Ulysses Carrión, em seu A

    nova arte de fazer livros (201117, p. 52) aponta que na velha arte18 o texto

    transmite as intenções do autor. Na nova arte o livro em sua totalidade, em sua

    estrutura transmite a intenção do autor; a materialidade faz parte da intenção.

    Neste sentido, na obra de Waltércio sentimos a suavidade do pó branco,

    buscamos o título da obra: Matisse. O título nos remete às odaliscas, à volúpia,

    à pulsão da cor, à vibração das formas, à paixão; talco nos sugere o aroma

    morno e um pouco agudo (Matisse não nos permite sentir o cheiro da pele de

    um bebê, a referência é outra, de lascívia).

    O artista que desenvolve sua poética no campo dos livros, trabalha a

    atmosfera do livro, mas também em sua materialidade. São livros construídos a

    partir de elementos plásticos. Bruno Munari (1998, p. 210-211), em seu texto

    Um livro ilegível, conta uma experimentação que fez com texturas, cores,

    formatos, transparências, para verificar como seria um livro em que se utilizam

    outros recursos que não o texto. Isto é, quê comunica um livro enquanto objeto,

    sem textos ou palavras impressas? Como é este objeto em termos visuais e

    táteis? A pesquisa de Munari se dispersa pelo território dos livros de artista.

    17 Publicado pela primeira vez em 1975. 18 O autor chama de livros da velha arte o livro tal como o conhecemos – o códice com textos impressos. Refere-se aos livros de artista como nova arte.

    Figura 2. Waltércio Caldas. "Matisse, talco". 1978

  • 25

    Aponta Ulysses Carrión19 o livro de artista como uma sequência

    autônoma de espaço-tempo (p. 5). Para o autor, um livro da velha arte é um

    livro em que nada acontece. Seja de um autor medíocre ou genial, ao ler a

    primeira ou a última página, se faz da mesma maneira; neste livro, as páginas

    repetem-se, inalteradas (p.19).

    Edith Derdyk em Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas

    poéticas (2013), ao denominar cada página do livro de artista como folhas

    quase cinema, comunga da ideia de Carrión (p.67) quando este afirma que os

    livros da nova arte criam condições específicas de leitura: o ritmo da leitura

    muda, aumenta, acelera. Desta maneira, cada livro de artista requer uma

    leitura diferente.

    A estruturação dos elementos na construção do livro de artista,

    linhas, cor, forma, textura, sobreposições, rasgaduras, palavras impressas,

    escolha do suporte (papel, tecido, plástico, metal...) opaco ou transparente,

    leve ou pesado, dentre muitas outras formas possíveis, sugerem a cada página

    um tempo de leitura/visionamento. Cada espaço –página- do livro de artista é

    vivenciado num tempo próprio; a sequência e o ritmo da leitura podem ser

    impressas por aquele que se disponha a fruí-lo.

    Neste sentido, para Luise Weiss e Suzana Azevedo, em Livros-

    objeto e Almanaques: marcas e deslocamentos (2010), o ir e vir no folhear das

    páginas do livro evoca aspectos temporais, compara esse movimento a uma

    metáfora do tempo. Para as autoras, a sequencialidade da escrita constrói a

    narrativa, “ao abrir um livro, o tempo impregnado neste livro começa a fluir, não

    o tempo cotidiano, mas, sim, o tempo da leitura: um tempo paralelo”. No livro

    de artista a leitura ou visualidade de sua narrativa constrói-se de maneira

    particular. Derdyk (2012, p. 167) aponta que as narrativas no livro de artista

    nascem das conjugações entre tempo-espaço, forma e conteúdo, significante e

    significado; mais do que um tema ou assunto a ser contado, "o foco poético se

    fixa justamente no modo de narrar, que acontece tanto pelas articulações

    inéditas entre palavra e a imagem quanto pela sua materialidade, a sequência

    das páginas, sua estrutura formal”.

    19 Op. Cit.

  • 26

    À diferença do livro – com sua história ou conteúdo dado pela

    linguagem escrita – em que o ritmo da leitura se dá da mesma maneira do

    princípio ao fim, o livro de artista proporciona ao leitor fazer parte da construção

    da obra, o tempo da obra é o tempo do desfrute: do ir e vir nas páginas, do

    demorar-se, do acelerar. A cada leitura a obra se (re)faz. A cada vez que o livro

    de artista é ativado uma narratividade se dá.

    A busca em meio a brumas: Liames I

    Iniciei Liames I por sua encadernação, unindo e costurando folhas. É

    um códice simples, com capa de tecido de cor entre cinza e bege. O livro

    fecha-se com um nó ou laço de tiras de couro marrom e quando fechado,

    parece um livro austero.

    Liames I é de um confortável tamanho A5 e apesar da austeridade

    da capa, ao abri-lo modifica-se, como se adentrássemos um sonho. Nesse livro

    de artista escolhi um suporte mais sutil, uma materialidade que me

    possibilitasse ver através, ainda que parcialmente: o papel vegetal. Ao folhear

    Liames I, temos a sensação de adentrarmos a profundidade em busca do

    horizonte – ainda que em meio a brumas – e do desvelar conforme se viram as

    páginas. As camadas sobrepostas enevoam as páginas mais distantes daquela

    que está aberta. Porém, o jogo de densidades e o conjunto de folhas que se

    acumulam de um e de outro lado do caderno compõe juntamente com as

    páginas abertas a paisagem que se vê.

  • 27

    Figura 3. Páginas de Liames I. Livro de artista. Nanquim e caneta sobre papel vegetal. Página em tamanho A5. Adriana Dias, 2012.

    As imagens deste livro de artista são referências a fragmentos de

    minhas lembranças, paisagens, plantas, objetos de meu afeto e de meu

    cotidiano, autorretratos; imagens estas enlaçadas a um imaginário simbólico e

    afetivo (fig. 3).

    Na construção de Liames I esteve muito presente a memória dos

    meses que passei na Espanha20. Enredadas – liadas – a estas memórias, o

    momento que vivia então: o retorno às artes visuais. Um e outro tempo

    confundiam-se em mim, e eu tateava uma compreensão em meio às névoas.

    Para mim é o mais afetivo livro da série Liames, um livro de artista que nos

    remete ao onírico e, em meio às brumas, à metamorfose.

    20 No acadêmico de 2005-2006 realizei um Master en Bienestar Social e no ano acadêmico 2006-2007 realizei um Mestrado Oficial en América Latina Contemporánea, curso da área de ciências políticas. Ambos na Universidad de Alcalá, Alcalá de Henares, Espanha.

  • 28

    A primeira imagem evocada para este trabalho foi uma planta de

    estrutura enredada, de tronco entrelaçado, capturada por minha câmera há

    alguns anos no Instituto Ortega y Gasset, Madrid, onde estudei. Essa imagem,

    a primeira a ser desenhada, aparece no que se entende por última página do

    caderno, segundo nossa leitura ocidental. Sobre essa página sobrepus a

    página precedente, ainda em branco. Pela translucidez do papel de baixa

    gramatura passavam nitidamente as linhas da planta enredada do desenho da

    página de baixo. A estas linhas, somei linhas novas, folhagens sobre os

    troncos. Folheei nova

    página em branco sobre

    ambas as páginas

    desenhadas

    anteriormente. Sempre a

    folha precedente

    acrescentando, tecendo

    e transformando a página

    seguinte (fig. 4).

    Como num

    tempo invertido esse livro

    de artista construiu-se

    da última à primeira

    página, até acabarem-se

    as folhas. Enquanto

    desenhava, subverti a sequência a que estamos habituados. Em dados

    momentos da feitura de Liames I, retomei páginas produzidas anteriormente,

    interferindo sobre desenhos já feitos – acrescentando, rasgando, velando –

    para dar-lhes a ideia de conjunto. Realizei na criação o mesmo movimento

    experienciado – o ir e o vir – por quem se disponha a visionar o trabalho.

    Jorge Luis Borges, em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, primeiro conto de

    seu livro Ficciones (2006), descreve um planeta – Tlön – em que objetos

    perdidos se duplicam. Por exemplo, duas pessoas procuram um lápis e a

    primeira pessoa o encontra, mas não diz nada. A segunda pessoa encontra um

    segundo lápis, não menos real que o primeiro, porém mais ajustados às suas

    Figura 4. Liames I aberto na antepenúltima página. A

    paisagem onírica forma-se de um e de outro lado das páginas somadas. A paisagem se vê em tamanho A4.

  • 29

    expectativas. A esse objeto secundário (que não existia anteriormente e que se

    constituiu/materializou-se no momento da busca – ou do desejo de encontrá-lo)

    dá-se o nome de hrönir.

    Na ficção de Borges, os hrönir, que a princípio davam-se de maneira

    casual, passam a ser sistematicamente produzidos: e se objetos raros, e se

    achados históricos e tesouros lendários pudessem ser constituídos? E se

    pudessem ser desenterrados como descoberta arqueológica? No conto, passa-

    se, então, à exumação de objetos histórico-arqueológicos que transformam o

    passado.

    A metódica elaboração de hrönir [...] prestou serviços prodigiosos aos arqueólogos. Permitiu interrogar e até modificar o passado, que agora não é menos plástico e menos dócil que o porvir. (BORGES, 2006, p. 36)21

    No ato de folhear Liames I as imagens que estão por vir somam-se e

    ressignificam as imagens passadas – podendo ser o livro folheado de um e

    outro lado, conforme a vontade do leitor. No planeta Tlön os objetos

    arqueológicos encontrados a partir da produção de hrönir modificam a história.

    O passado torna-se plástico, pode ser modelado. Em Liames I, as páginas que

    já se passaram e as que estão por vir coexistem no tempo/espaço. A cada

    folhear a imagem metamorfoseia-se. Há inversão/subversão da temporalidade

    daquilo que é contado. Em um e outro lado de duas páginas abertas, o tempo

    sobrepõe-se: podem-se ver a um só momento as páginas precedentes e as

    que se desdobrarão logo a seguir [ainda que envoltas em névoa]. Através da

    translucidez das folhas de Liames 1 a figuração de uma página evoca formas

    nas páginas anteriores e seguintes. Na leitura de Liames I a paisagem

    transforma-se.

    Assim como em Tlön com a exumação de hrönir, em Liames I cada

    página ressignifica a forma da página vista anteriormente. Cada desenho tece-

    se com o desenho seguinte e com o anterior. As memórias-ficções são

    remodeladas, descosturadas e novamente tecidas, liadas. Ainda como em

    21 Tradução livre do trecho: “La metódica elaboración de hrönir (dice el Onceno Tomo)

    ha prestado servicios prodigiosos a los arqueólogos. Ha permitido interrogar y hasta modificar el pasado, que ahora no es menos plástico y menos dócil que el porvenir” (Borges, 2006, p. 36. Grifo do autor).

  • 30

    Tlön, a imagem de meu

    livro de artista é

    duplicada: ela está em

    um e outro lado da

    mesma folha, porém

    invertida, espelhada,

    sugerindo outra

    narrativa (fig. 5 e 6). As

    páginas já folheadas

    tem a plasticidade, a

    possibilidade de

    transformação das

    páginas por vir.

    A

    justaposição constrói

    uma imagem com

    variações de

    densidades e graus de

    evanescência. Já a

    sobreposição dos

    desenhos, ora soma-se

    a forma anterior,

    completando-a ou

    transformando-a, ora causa anulação da imagem precedente. A sequência das

    páginas nestes cadernos também mostra a resistência da imagem em

    desaparecer. A cada folhear a imagem de camadas mais profundas dissipa-se

    aos poucos, mas resiste ao apagamento, como a memória. Quanto persiste a

    imagem [a memória] em camadas profundas?

    Como apresenta-nos Agripina Ferreira, no Dicionário de imagens,

    símbolos, mitos, termos e conceitos Bachelardianos (2008, p. 145),

    Em cada sonhador há em potência uma imagem, uma paisagem de lembranças acumuladas que se apagaram da memória, mas estão sempre renascendo em seus devaneios. A paisagem existe como um sonho anterior ao

    Figuras 5 e 6. Páginas de Liames I. Quando aberto o livro tem o formato A4.

  • 31

    que se apresentou ao contemplador. O sonhador projeta, em consonância com a sua imaginação, seu mundo, sua profundeza, suas impressões, em suma, seu passado longínquo. Eis porque "o azul de outono é o azul de uma lembrança".

    Em Liames I podemos perceber trechos narrativos simbólico-afetivos

    – não delimitados por um recorte preciso, mas que se liam uns aos outros:

    conter, nascer, segredar, transformar (fig. 7 e 8)... Cada uma destas partes

    metamorfoseando-se e fundindo-se. Ovídio, no início do Livro Um, em

    Metamorfoses (2003, p. 9), expõe que sua intenção é contar histórias sobre

    corpos que assumem diferentes formas. O poema narrativo página a página

    enreda personagens e transformações da matéria; pedras tornam-se homens e

    mulheres, algas tornam-se corais, sangue se torna em víboras. Em

    Metamorfoses, ainda que a obra esteja ordenada em quinze livros, as histórias

    enlaçam-se.

    Figuras 7 e 8. Páginas sequenciais de Liames I. Quando aberto o livro tem o formato A4.

    Em Liames I, memória e devaneio se enredam em narratividade. Se

    Ovídio nos conta sobre corpos que assumem diferentes formas, Liames I

    conta-nos sobre uma busca em meio a metamorfoses; a cada folhear o sonho

    se desvela.

  • 32

    Liames II, o peso e a leveza

    Liames II foi o livro de artista mais desconstruído e experimental

    dentre os três livros desta série. A princípio com folhas de cores, densidades,

    translucidez/opacidade e gramaturas diferentes, foi sendo modificado pelas

    solicitações do próprio objeto em seu processo de construção: da idealização

    inicial, folhas foram arrancadas, rasgadas, substituídas, acrescentadas. Há

    preponderância do papel vegetal.

    Figura 9 e 10. Liames II. Capa: verso e frente. Tecido, nanquim, papel

    vegetal, botão e fio de nylon. O livro de artista tem aproximadamente 21 cm x 21 cm quando fechado. 2012.

    Se em Liames I a capa austera e discreta quase dispensa a atenção

    e se em Liames III – a ser apresentado a seguir- o formato sanfonado não

    diferencia capa e contracapa das outras folhas do livro, em Liames II a capa é

    parte relevante da obra. Sua capa dura é recoberta de tecido vermelho

    queimado, com estampa em padrão encaracolado, miúda e densa.

    Parcialmente é sobreposto por papel vegetal em camadas rasgadas, aí criando

    uma paisagem em que tronco e raízes tentam liar o fundo vermelho e os papéis

    rasgados [montanhas?]. O padrão e a cor do tecido e as sobreposições em

    papel vegetal enunciam na capa deste livro de artista a relação entre peso e

    leveza que conduzirá a narratividade em suas páginas. O caderno fecha-se

    com fios de nylon enrolados a um pequeno botão (fig. 9 e 10).

  • 33

    Em Liames II,

    pequenas sequências

    demarcadas acontecem

    em seu interior. As

    páginas são

    parcialmente ou

    totalmente unidas

    tornando inseparável um

    conjunto de folhas. As

    pequenas compilações

    de três, quatro ou cinco

    folhas ao longo de

    Liames II possibilitaram

    adensar um grupo de desenhos sobre o papel vegetal, às vezes velando quase

    totalmente algumas páginas do interior do conjunto.

    Como em Liames I, o volume é composto por trechos narrativos.

    Mas se em Liames I, sua construção e materialidade possibilitaram passagens

    que se imbricam umas nas outras, numa narrativa fluida e em metamorfose – e

    por isso, pela homogeneidade do conjunto foi apresentado e discutido Liames I

    em sua totalidade22 –, em Liames II os trechos que compõe sua narratividade,

    aproximam-se mais da ideia que fazemos de capítulos ou partes. Em Liames II

    há uma sequência de páginas em branco que compõe com os trechos

    desenhados neste livro de artista. Dentre o conjunto da obra, escolhi o recorte

    de uma sequência de páginas que interessa a esta dissertação, que guarda a

    metáfora do peso e da leveza. A primeira imagem que foi desenhada nesse

    livro é uma representação –autorretrato – de Atlas23, sustentando o peso de um

    mundo, de uma grande rocha, sobre suas costas (fig. 11). Neste conjunto de

    três páginas unidas – Atlas/autorretrato – há a rocha em aquarela na porção

    superior da página, e as linhas que representam o solo, na porção inferior. Em

    meio a estes dois limites, o corpo dobrado, resistindo à pressão da rocha. Os

    22 A obra é discutida em sua totalidade, porém foram apresentadas apenas algumas imagens. 23 Atlas, titã na mitologia grega é condenado por Zeus a sustentar a abóbada celeste para sempre (BULFINCH, Thomas. 2006, p. 122-123).

    Figura 11. Páginas de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x21 cm.

  • 34

    pés estão bem

    plantados na linha

    do chão. Na

    imagem há peso,

    mas também

    equilíbrio: o

    esforço da rocha

    em obedecer à

    gravidade encontra

    igual esforço do

    corpo em

    sustentar-se e não

    deixar-se esmagar.

    Atlas/autorretrato, embora em equilíbrio – pelo contínuo esforço –

    incita dois desejos: o de deslocar-se e encontrar brechas ou fendas por onde

    esgueirar-se e o desejo de respirar profundamente. O desejo de deslocamento

    será representado na Parte 2 desta dissertação, com a obra Liames

    Atlas/Sísifo.

    Conta-nos

    Ferreira (2008, p. 24),

    que os alquimistas

    consideram o ar

    elemento da leveza e

    pureza, contrário aos

    elementos pesados, as

    escórias que ficam na

    terra. Jean Chevalier,

    doutor em teologia, e

    Alain Gheerbrant

    (orgs.), no Dicionário de símbolos (1986, p. 67) apresentam-nos que o ar está

    simbolicamente associado ao vento e ao sopro, representando o mundo sutil

    intermediário entre o céu e a terra.

    Figura 12. Páginas de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x 21 cm.

    Figura 13. Páginas de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x 21 cm.

  • 35

    Se Atlas/autorretrato sustenta o peso da rocha na entranha da terra,

    como desdobramento dessa representação seguem dois conjunto de imagens.

    No primeiro conjunto de páginas, se vê o autorretrato, onde a boca e nariz

    estão velados. Talvez o ar esteja preso, impedido de ser inspirado; talvez o ar

    esteja sendo sugado, obrigado a ser expirado (fig. 12). O desejo de respirar

    profundamente concretiza-se no trecho seguinte: o sopro (fig.13).

    A sequência iniciada em Atlas/autorretrato, no peso e entranha da

    terra, finaliza-se com a imagem do balão e do coração. Ar, sístoles e diástoles;

    pulsação e vida (fig. 14).

    Figura 14. Página de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x 21 cm.

    Para Arnaldo Bataglin, em A fronteira como território (2007, p. 111),

    o desenho ocupa uma posição ambígua, “entre o imaginário e o real, entre o

    mundo dos sonhos e das memórias, de um lado, e, de outro, o mundo da

    matéria, da sensação física, da dor”. Liames II projeta o peso e a leveza;

    contenção e libertação.

  • 36

    Desejo de liberdade: Liames III

    Inicio meus livros de artista sem uma conformação mental detalhada

    de como a obra se dará. Para mim o ato de criação é fluído, as decisões são

    tomadas no momento da feitura e têm um caráter mais intuitivo que racional.

    Liames III é um livro de artista que se dobra/desdobra em forma de sanfona

    (fig. 15).

    Figura 15. Liames III. Papel vegetal, papel vergê, papel japonês, nanquim e aquarela. Aproximadamente 20 cm x 20 cm quando fechado. Adriana Dias. 2012.

    Considerando a forma desse livro de artista, que ao desdobrar-se se

    tem a impressão da continuidade de uma única folha, arrumei-as lado a lado,

    unidas apenas pela proximidade, sobre uma mesa. Escolhi papéis translúcidos

    e opacos: vegetal, japonês e vergê.

  • 37

    Iniciei

    Liames III pelo

    desenho de longas

    linhas que tomam a

    faixa de papel de uma

    ponta à outra. Na

    frente e no verso as

    folhas liam-se por este

    desenho e algumas

    páginas se passam

    sem que meus

    autorretratos ou outra imagem se junte às linhas desenhadas. As linhas

    algumas vezes enredam-se, outras vezes fluem na parte inferior das folhas:

    sugerem ondas? Areia? Nuvem? (fig.16).

    Em Liames III há desejo de liberdade. Embora as linhas, os fios que

    liam as páginas remetam [talvez] a uma superfície ou sugiram um limite entre o

    que pode estar abaixo e o que pode estar acima, no interior desse livro de

    artista encontramos uma sequência de páginas que, para mim, traduz o desejo

    de liberdade (fig. 17, 18, 19).

    Nesta simbólica sequência de páginas escolhidas para esta

    dissertação, as figuras de meu corpo dobrado em si, de uma árvore, do meu

    olhar para o alto e do voo de um pássaro. Para Gaston Bachelard, apud

    Ferreira (2008, p. 29), a árvore, como o ser humano, possui raízes que a fixam

    às sombrias profundezas da terra; porém, como espírito e luz, lança-se ao

    ilimitado azul infinito, vivendo entre terra e céu. Para Bachelard a árvore tem

    um sentido imanente e transcendente.

    Figura 16. Páginas de Liames III. Aproximadamente 20 cm x 20 cm cada página.

  • 38

    Figuras 17, 18 e 19. Sequência de páginas, Liames III. Cada página mede aproximadamente 20 x 20 cm.

    Nos autorretratos deste trecho de Liames III, uma figura fecha-se,

    está mais ligada às entranhas de si mesma – às sombrias profundezas? O

    desenho do corpo dobrado está sobreposto à árvore aguada em nanquim,

  • 39

    percepção que se inverte se olharmos do outro lado das folhas translúcidas. A

    copa da árvore inclina-se sobre a figura, como num gesto. As linhas

    desenhadas na porção inferior desta página descrevem uma materialidade

    mais pesada; parecem comprimidas pelo peso do mundo.

    No outro autorretrato o corpo desdobra-se, respira, projeta seu olhar

    para o alto. As linhas que fluem abaixo desta figura são aguadas em nanquim,

    flutuantes. O desenho destas linhas parece água ou ar. A onda parece

    levar/sustentar com gentileza a figura.

    Entre o corpo que se fecha e o corpo que se desdobra, está a

    imagem do voo. Bachelard apud Ferreira24

    (p. 67), diz que os pássaros –como

    os peixes- possuem uma liberdade a mais do que nós, pois vivem em um

    volume enquanto nós vivemos apenas sobre uma superfície. Para mim, o voo é

    o desejo de liberdade; é o desejo de pairar acima do peso do mundo.

    Sérgio Fingermann, em Desenho e opacidade (2007, p. 92-93),

    pontua,

    A folha de papel é um interior que contém o mundo e, ao mesmo tempo, pode ser um exterior, que exclui de si qualquer espécie de interior. Vencendo a opacidade do papel, o desenho faz um lugar. Faz teatro. É o lugar da visão apurada. É um lugar em que o olhar vê a si mesmo. Nesse teatro o desenho anuncia o mundo.

    Em minha narratividade, teço o que vejo do mundo [de mim].

    24 Op. Cit.

  • 40

    Parte II

    Desejo de deslocamento

    Da Liberdade. Trecho de Liames Atlas/Sísifo, desenho em nanquim e

    costura. Aproximadamente 39 cm x 39 cm. Adriana Dias. 2013/14.

  • 41

    Parte II

    Desejo de deslocamento

    Não há sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite.

    Albert Camus.25

    Se cada dia cai, dentro de cada noite,

    há um poço onde a claridade está presa.

    Há que sentar-se na beira

    do poço da sombra e pescar luz caída

    com paciência.

    Pablo Neruda.26

    Esta parte da dissertação trará para o estudo o trabalho Liames

    Atlas/Sísifo27

    , produzido entre os anos de 2013 e 2014. É uma narrativa

    formada por páginas – trabalhadas em gravura em metal, desenho, costura – e

    objetos.

    Neste trabalho, o corpo – em autorretratos – perscruta a entranha da

    terra, as gargantas; o corpo experiencia o peso e a profundidade: o medo. A

    obra narra sobre o desejo de deslocamento e liberdade; representa o corpo

    que se lia a fios, movendo-se no espaço do desenho em busca de frestas por

    onde esgueirar-se. Liames Atlas/Sísifo narra sobre o peso e a leveza, sobre

    conter e libertar. Trata do corpo que experimenta – e vence – [o medo] a

    topografia dos abismos.

    Ao contrário do livro de artista Liames I, apresentado anteriormente,

    onde a busca entre brumas é pelo horizonte, em Liames Atlas/Sísifo a

    imersão/emersão é no/do abismo (fig. 20).

    25 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2012. (p. 124) 26 NERURA, Pablo. Se cada dia cai. In: Últimos Poemas (O Mar e os Sinos). Porto Alegre: L&PM, 1999. (p. 55) 27 Na mitologia grega, Sísifo é um mortal castigado a rolar montanha acima uma enorme pedra. Quando já bem avançado o trabalho, a pedra, impelida por força irresistível, rola encosta abaixo. Sísifo, banhado em suor, recomeça o esforço vão. (BULFINCH, Thomas. 2006, p. 260).

  • 42

    Figura 20. Liames Atlas/Sísifo. Narrativa. Gravura em metal, costura, desenho, objetos. Dimensões variáveis. Adriana Dias. 2013-2014.

    A imersão no abismo

    O abismo, apresentado na primeira página de Liames Atlas/Sísifo, é

    uma imagem recorrente em minha obra, mais pontualmente na série

    Paisagens-abismos, realizada entre os anos 1999 e 2002. Nesta série os

    abismos foram desenhados em grafites, buril e ponta seca, ora trabalhados

    sobre tecido28, ora trabalhados sobre papel. Nestes desenhos, os gestos fortes

    delimitam os contornos de gargantas e despenhadeiros, demarcam os

    contrastes entre a luz e a sombra. São paisagens como representação – e

    reconhecimento – das topografias pelas quais caminhamos.

    No processo de feitura das Paisagens-abismos, meu corpo, ao

    desenhar, travou um embate com o papel, tratado quase como uma matriz de

    metal: sulcado, desgastado, texturizado. O embate foi com a matéria

    28 Cambraia pele de ovo colada sobre MDF.

  • 43

    trabalhada e a paisagem aí descrita foi um estudo das massas e vazios

    imaginados nos abismos nunca penetrados (fig. 21).

    Figura 21. Imagem da série Paisagem-abismo. Grafites da série H e B e ponta seca sobre cambraia/madeira. 90 cm x180 cm. Adriana Dias, 2002.

    A mudança de meu olhar – ou de rumo – sobre a série das

    Paisagens-abismos aconteceu entre os anos de 2012 e 2013. Nesse período –

    de interações, trocas, conversas e revisitação de obras de artistas consagrados

    – senti um novo anseio: pela primeira vez meu olhar quis deixar a superfície

    material de meus grafismos-abismos. Veio-me o desejo de adentrar meu

    desenho e, ainda que eu seguisse representando-o bidimensionalmente, a

    vontade de explorar com meu olhar através da superfície do plano do suporte,

    penetrando-o. Nesta experiência de devaneio, foi como se houvesse

    descortinado-se uma possibilidade até então não percebida: perpassei a trama

    do papel/tecido para perceber a atmosfera dentro do desenho-abismo.

    Nas Paisagens-abismo meu desejo – meu devaneio – perscrutou o

    espaço, percebendo quais atmosferas eu poderia encontrar nas brechas de luz

    e quais densidades e obstáculos eu encontraria nas sombras. Na primeira

    sondagem dessa topografia meu olhar era de uma observadora, não de um

    personagem.

  • 44

    Impregnada da experiência do devaneio, realizei um story board,

    registrando em imagens e frases ou palavras as percepções sobre aquele

    espaço percorrido em pensamento (fig. 22, 23, 24 e 25).

    Quatro quadros: Trama do tecido impregnada de grafite. Superfície aveludada. [Ultrapasso a trama] Atmosfera fria, paredes lisas e um pouco brilhantes. Abertura ao fundo. Grafite. Como minas/grafites dispostos do teto ao chão. Chão como depósito de grafite. Liso. Tramas de grafite.

    Três quadros: Teto. Parte superior da abertura em forma de ogiva. Como a abertura de um vitral gótico, na forma. Parede em saliências verticais. Brilho de acordo com a incidência de luz.

    Dois quadros: Solo inclinado. Paredes luminosas perto da abertura.

  • 45

    Dois quadros: Aproximação da janela/abertura. Luz.

    Figuras 22, 23, 24 e 25. Story board/estudo: caminhando pelo abismo. Grafite. Caderno de artista. Cada página em tamanho A5. 2012.

    Entre devaneios, buscas, leituras e alguns esboços, deparei-me com

    Viagem ao centro da Terra, de Júlio Verne. Como seriam as entranhas da terra

    segundo seu olhar? Como se sentiriam seus personagens dentre fendas

    subterrâneas?

    [...] O terreno havia sido violentamente afastado por uma convulsão subterrânea. O maciço terrestre, cedendo a algum poderoso impulso, deslocara-se deixando aquele largo vazio onde os habitantes da Terra penetravam pela primeira vez. (VERNE, 2006, p. 104-105)

    Em dado momento da história de Verne, o personagem Axel perde-

    se na entranha da Terra. Sem luz, sem referência espacial e quase sem

    esperanças, tem impulsos primitivos:

    [...] Ergui-me, de braços estendidos, tateando dolorosamente as paredes. Comecei a correr, ao acaso, pelo inextricável labirinto, descendo e correndo através da crosta terrestre, como um habitante das fendas subterrâneas, chamando, gritando, uivando, magoando-me nas saliências rochosas, caindo e voltando a erguer-me [...] (p. 130).

    A leitura de Verne nutriu meus pensamentos por semanas. A ficção

    infanto-juvenil sugeriu-me imagens de fendas e caminhos por entre maciços

    rochosos.

  • 46

    O desdobramento das imagens de rochas, fendas, gargantas e

    despenhadeiros em Liames Atlas/Sísifo, manifestam ecos e desejos sobre a

    imagem e simbologia do abismo. O Dicionário de símbolos de Chevalier e

    Gheerbrant (1986, p. 42-43) mostra que em grego como em latim, abismo

    significa sem fundo, mundo das alturas e profundidades indefinidas. Guarda

    em sua origem o sentido geral de inferno. O abismo intervém em todas as

    cosmogonias, como a gênese e o fim da evolução universal; o abismo, como

    os monstros mitológicos, engole os seres para cuspi-los transformados.

    Chevalier e Gheerbrant pontuam que C. G. Jung incorporou o abismo como

    símbolo do arquétipo maternal, carinhosa e terrível e, nos sonhos, “fascinante

    ou espantoso, o abismo evocará o imenso e poderoso inconsciente; aparecerá

    como um convite a explorar as profundidades da alma, para liberar os

    fantasmas e desfazer laços”29.

    Liames Atlas/Sísifo

    Liames Atlas/Sísifo, retoma e transforma as Paisagens-abismo e traz

    consigo o esforço do corpo de Atlas/autorretrato. Atlas/autorretrato, já descrito

    na Parte 1 desta dissertação, mostra o corpo que sustenta em equilíbrio o peso

    sobre si (fig. 26). Tal qual Atlas, o Titã, sustenta-se estático.

    29 C. G. Jung, apud Chevalier e Gheerbrant (1986, p. 42-43). Tradução livre do trecho:

    "fascinante o espantoso, el abismo evocará el inmenso y poderoso inconsciente; aparecerá como una invitación a explorar las profundidades del alma, para liberar los fantasmas o deshacer las ataduras".

  • 47

    Figura 26. Atlas/autorretrato, in Liames II. Papel vegetal, nanquim e aquarela. Aproximadamente 21 cm x 21 cm. 2012.

    Figura 27. Estudo para Atlas/Sísifo. Gravura em metal e costura. Aproximadamente 39 cm x 39 cm. 2013-2014.

    Homero apud Albert Camus, em O mito de Sísifo (2012), conta-nos

    que Sísifo acorrentou a morte e tratava com leviandade os deuses. Foi

    condenado pelos deuses a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de

    uma montanha que, por seu próprio peso, tornava rolar encosta abaixo. Na

    imagem de estudo para Liames Atlas/Sísifo há linhas costuradas à rocha, como

    se o peso da rocha estivesse sendo mitigado, sustentado ou içado pelas linhas.

    Nesta imagem houve a possibilidade do corpo colocar-se em movimento e

    deslocar-se, ainda que ligeiramente, um passo à frente (fig. 27). Tal qual Sísifo,

    a figura do corpo em Atlas/Sísifo coloca-se em movimento.

    Para Camus30 (p. 122), Sísifo amava a vida e esse é o preço pago

    pelas paixões desta Terra. Afirma Camus que os mitos nada nos dizem sobre

    Sísifo nos infernos e prossegue:

    No caso deste, só vemos todo o esforço de um corpo

    tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a

    subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto

    crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de

    um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé

    que a retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente

    humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse

    30 Op. Cit.

  • 48

    prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo

    tempo sem profundidade, a meta é atingida. Sísifo

    contempla então a pedra despencando em alguns

    instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que

    tornar a subi-la até os picos. E volta à planície. (CAMUS,

    2006, p. 122)

    Para Albert Camus, Sísifo é o herói absurdo. Afirma que seu mito só

    é trágico porque Sísifo é consciente que seu tormento não terá fim e,

    justamente por esta consciência, Sísifo é superior ao seu suplício. Para o autor,

    Sísifo pensa em seu destino a cada vez que desce a encosta com passos

    pesados e regulares e, a clarividência sobre o próprio tormento, é sua vitória:

    “Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa” (p. 124).

    Camus compara o herói absurdo ao homem absurdo; o instante em

    que o homem volta-se para sua vida é o instante em que Sísifo regressa para

    sua rocha. Sísifo está sempre em marcha, mas acha que está tudo bem: “Cada

    grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite

    forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para

    encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”31.

    Em Liames Atlas/Sísifo ecoam as referências simbólicas sobre a

    imagem do abismo e o mito de Sísifo. A sequência narrativa compõe-se por

    quatro trechos: Atlas/Sísifo (fig. 28); Desejo de deslocamento (fig. 29), Liames

    (fig. 30) e Da Liberdade (fig. 31).

    31 Idem.

  • 49

    Figura 28. Atlas/Sísifo. Gravura em metal e

    costura. Aproximadamente 80 cm x 39 cm.

    Figura 29. Desejo de deslocamento.

    Gravura em metal, desenho e costura. Aproximadamente 80 cm x 39 cm.

    Atlas/Sísifo e Desejo de deslocamento fazem parte da sombra, do

    conhecimento das profundezas e do desejo de alçar-se através da fenda que

    abre a parede de pedra. As mesmas linhas que parecem içar e mitigar o peso

    da rocha sobre as costas de Atlas/Sísifo tensionam-se e mostram o caminho

    retilíneo para a saída do abismo.

    O corpo-autorretrato vivencia o espaço do abismo representado,

    sente seus limites, sustenta-se. Atlas/Sísifo perscruta a profundidade e, apesar

    da aparente improbabilidade, coloca-se em movimento. O Sísifo de Homero

    sabe-se atado ao seu castigo. Atlas/Sísifo busca uma brecha para esgueirar-

    se. Em Desejo de deslocamento o corpo deixa o abismo.

  • 50

    Figura 30. Liames. Roldanas, costura e

    linha. Dimensões variáveis.

    Figura 31. Da liberdade. Desenho e costura.

    Aproximadamente 39 cm x 39 cm.

    As cordas ou linhas que possibilitam ao corpo-personagem içar-se

    do abismo, juntam-se a roldanas e continuam a narratividade em Liames (fig.

    30). Neste trecho da história contada por objetos, a sequência narrativa é

    intuída, forma-se em pensamento. A primeira polia proporciona movimento e

    energia, sustenta fios tensionados, o corpo desloca-se. Na outra polia,

    vestígios do esforço; o corpo-personagem desatou-se.

    O último trecho da sequencia narrativa, Da liberdade, é leveza e

    liberdade.

  • 51

    Em Liames

    Atlas/Sísifo, enlaçada ao

    personagem-autorretrato há

    uma tornozeleira. O objeto, do

    qual se desprende um feixe de

    fios costurados, aparece em

    todos os trechos da narrativa.

    O uso da tornozeleira pelo

    personagem na narrativa é

    uma referência ao objeto

    Liames (fig. 32), que

    confeccionei em couro, cetim e

    fios de nylon. A tornozeleira,

    feita com minhas medidas, guarda a metáfora do elo, da ligação, entre o ser e

    o mundo; entre o indivíduo e todas as coisas com as quais, mesmo

    inconscientemente, lia-se.

    Na narratividade de Liames Atlas/Sísifo, a tornozeleira de longos fios

    costurados, lia simbolicamente o personagem-autorretrato às suas

    experiências, às topografias percorridas.

    Da sombra para a claridade

    A cor em Liames Atlas/Sísifo é o branco e o preto, e as variações de

    cinza. Branco, preto e cinza são sensações visuais, isto é, cores, que não

    tendem para qualquer matiz. Não são neutras, mas dependem das relações

    estabelecidas32.

    Na narratividade de Liames Atlas/Sísifo, a cor preta se dá nas

    sombras [nas entranhas subterrâneas], a cor branca, na luz. A sequência de

    32 Explica Lialian Ried Miller Barros, que a neutralidade do cinza depende do contexto visual observado (2012, p. 50). BARROS, Lilian Ried Miller. Preto e branco: cores sem matiz. In: ___________. A cor inesperada: uma reflexão sobre os usos criativos da cor. São Paulo: 2012.

    Figura 32. Liames. Objeto confeccionado em couro, cetim e fios de nylon. Dimensões variáveis.

    Adriana Dias. 2012.

  • 52

    imagens e objetos vai clareando-se até que, na última imagem, Da liberdade, o

    desenho em cinzas ocupa a porção superior do papel, quase todo em branco;

    na leveza parece que o corpo caminha no ar, ou sobre matéria sem densidade.

    Para Bachelard apud Ferreira (2008, p. 48), sobre a matéria negra,

    pressagia-se a brancura; toda nuança clara é o instante de uma esperança, de

    uma libertação que repele a escuridão, “a esperança da claridade repele

    ativamente o negrume. Em toda parte, em todas as imagens, repercute a

    dialética dinâmica do ar e da terra [...]”.

    O peso e a leveza de Liames Atlas/Sísifo estão também na

    representação da terra, da rocha em oposição – ou equilíbrio? – com o ar.

    Em Liames Atlas/Sísifo, uso o desenho, a gravura e os objetos para

    projetar realidades e ficções. Tadeu Chiarelli, em A natureza, a natureza do

    desenho: anteprojeto de exposição (2007, p. 155), proposta de exposição

    sobre a natureza do desenho, estabelece temáticas e grupos de artistas que

    trabalham o desenho como linguagem. Em Natureza Invisível [o onírico, o

    grotesco, o código, a ação], um dos trechos da proposta expositiva, ele reúne

    artistas como Tunga, Marcelo Grassmann, Maria Martins. Sobre estes artistas,

    Chiarelli argumenta que "a linha surge nesse núcleo demonstrando "o outro

    lado" da objetividade, quando o artista usa esse instrumento para tornar visível

    seus medos diante da realidade exterior e interior."

    Como sugere Chiarelli, aproprio-me da linha, do desenho – e no

    caso de Liames Atlas/Sísifo, também da gravura e dos objetos. Ao colocar-me

    em autorretratos em Liames Atlas/Sísifo – e nos demais trabalhos

    apresentados nesta dissertação – torno visíveis minhas realidades interiores e

    exteriores

  • 53

    Parte III

    Histórias e Ficções

    Desenho/Narrativa: Histórias e ficções da Frei Baraúna (trecho da obra). Interferência-ação na Praça Frei Baraúna, Sorocaba. Desenho e costura sobre tecido. Adriana Dias. 2014. Fotografia de Vanessa Aprá.

  • 54

    Parte III

    Histórias e ficções

    Resta ainda aquele fio que comecei a desenrolar logo ao princípio: a literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver.

    Ítalo Calvino33.

    O desdobramento em desenho e narrativa que se seguiu aos livros

    de artista da série Liames e também à leveza conquistada em Liames

    Atlas/Sísifo deu-se numa interferência-ação realizada entre 18 de outubro e 16

    de novembro de 2014, Desenho/Narrativa: histórias e ficções da Frei Baraúna,

    na Praça Frei Baraúna, em Sorocaba. O trabalho, selecionado a partir de um

    edital, fez parte do Projeto de Interferências Artísticas Camada Superficial, com

    curadoria de Hector Zamora34.

    O Projeto de Interferências Artísticas Camada Superficial foi

    divulgado pelo chamamento público POIESIS Nº 03/2014, realizado pela

    Poiesis – Organização Social de Cultura. O projeto teve como eixo central o

    tema 'Camada Superficial', "que é, por definição, a que tem maior interação

    com os elementos externos ao objeto"35, e propunha a ocupação da Praça Frei

    Baraúna, por abrigar o Marco Zero da cidade e como "espaço representativo

    das transformações formais e simbólicas pelas quais a sociedade sorocabana

    passou nas últimas décadas"36.

    O desejo de participar deste projeto se deu na constatação de que o

    edital dava abertura para projetos de intervenções urbanas: eu poderia ativar

    ideias que vinham tomando consistência desde a construção de Liames I e de

    um projeto esboçado de interferência com desenho e tecido que eu havia

    pensado também para o espaço de uma praça da cidade, a Praça Coronel

    33 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (p. 39) 34 Participaram concomitantemente de interferências na Praça Frei Baraúna os artistas Fernando Linberger, Lais Myrrha, Santiago Ribeiro e Wagner Malta Tavares. 35 Edital de chamamento público POIESIS Nº 03/2014, página 1. 36 Idem.

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    Fernando Prestes37. Assim, uma vez lido o edital o projeto fluiu naturalmente e

    foi apresentado: a arborizada Praça Frei Baraúna acolheria meu trabalho.

    Frei Baraúna

    Figura 33. Jardim Público Municipal. Foto de Camilo Lellis. Acervo do Museu Histórico Sorocabano. Sem data38.

    O terreno onde se localiza a praça pertencia ao Mosteiro de São

    Bento e foi doado ao município em 1864, pelo Frei Baraúna, monge beneditino.

    No antigo quintal do mosteiro instalou-se o Largo do Jardim, em 1896. Em

    1916 foi implantado no local o Jardim Municipal (fig. 33), que era conhecido

    também como Jardim dos Bichos – havia uma preguiça habitando uma enorme

    figueira, lago com peixes, viveiros com pássaros – e era ladeado por grades e

    37 Projeto de Interferência-ação com tecido, intitulado Olhar Sobre, em que a proposta era desenhar in loco autorretratos de meu olhar que seriam suspensos no entorno da Praça Coronel Fernando Prestes, em Sorocaba. O projeto Olhar Sobre foi exposto no

    antigo Ciclo Básico, UNICAMP, em setembro-outubro de 2012. 38 Fotografia disponibilizada como documento de consulta junto ao edital de chamamento público POIESIS Nº 03/2014

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    portões, fabricados em Ipanema39. O jardim foi desativado em 1930 e em 1937

    teve início a construção do Fórum, inaugurado em 1941. Do antigo Jardim dos

    Bichos não sobrou nada. Calçadas foram redesenhadas, o jardim foi

    remodelado, palmeiras imperiais foram plantadas.

    Na praça, além do Marco Zero da cidade e do edifício do antigo

    Fórum – que há vinte anos é ocupado pela Oficina Cultural Grande Otelo40-,

    encontra-se o Obelisco aos Combatentes da Força Expedicionária Brasileira,

    inaugurado em 1948 em homenagem aos pracinhas, soldados brasileiros que

    participaram da Campanha da Itália (1944-1945), durante a Segunda Guerra

    Mundial (fig. 34), e há ainda o Monumento ao Centenário da Igreja

    Presbiteriana em Sorocaba (1869-1969).

    Nos anos 1990 a praça e a Oficina Cultural Grande Otelo foram

    palco do Terra Rasgada41, evento promovido pela Secretaria de Cultura do

    Estado, Prefeitura de Sorocaba e SESC, com o objetivo de revelar, pela

    arte/cultura, as visões sobre a cidade e sua relação com a população, com

    manifestações artísticas como performances, literatura, teatro, dança, artes

    visuais e musical42. Visitei o Terra Rasgada nas suas várias edições e lembro-

    me da potência do evento, que sempre me impactou positivamente. O edifício

    da Oficina Cultural era integralmente tomado pelos artistas visuais da cidade e,

    enquanto durava a mostra de artes visuais, aconteciam as várias

    manifestações das outras linguagens artísticas, ocupando a escadaria externa

    da Grande Otelo e também o espaço da praça. A edição do ano 2000 do Terra

    Rasgada reuniu em torno de 400 artistas de Sorocaba e região. A última edição

    da mostra, em 2001, já não teve a mesma potência das primeiras edições e o

    evento extinguiu-se.

    39 Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, fundada em 1810. O edifício da antiga fábrica localiza-se na Floresta Nacional de Ipanema, em Iperó. 40 A Oficina Cultural Grande Otelo é uma das 14 Oficinas Culturais do Estado de São Paulo; realizam atividades gratuitas de formação e difusão cultural em diferentes linguagens artísticas. http://www.oficinasculturais.org.br/# 41 Sorocaba significa Terra Rasgada ou Terra Fendida em língua indígena. 42 Cultura: Secretaria da Cultura promove Projeto 'Terra Rasgada 2000' em Sorocaba. Disponível em , acesso em 31/05/2016.

    http://www.oficinasculturais.org.br/

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    Figura 34. Praça Frei Baraúna. Vista do Fórum e do Obelisco. Acervo do Museu Histórico Sorocabano. Sem data e sem autoria43.

    A Praça Frei Baraúna é cortada ao meio por uma rua, local que às

    quintas-feiras recebe uma feira livre. A Interferência-ação Desenho/Narrativa:

    Histórias e Ficções da Frei Baraúna ocupou o espaço bem em frente ao edifício

    da Oficina Cultural Grande Otelo; entre a obra e o prédio, a Rua Rosália

    Speers (fig. 35).

    Como é possível apreciar na planta baixa, a praça é bastante

    arborizada. Há três anos várias árvores comprom