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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
ADRIANA RODRIGUES DIAS
DESENHO/NARRATIVIDADE:
ENTRE LIVROS DE ARTISTA, OBJETOS E PÁGINAS SOLTAS
DRAWING/NARRATIVITY:
BETWEEN ARTISTS’ BOOKS, OBJECTS AND LOOSE PAGES
CAMPINAS
2016
2
ADRIANA RODRIGUES DIAS
DESENHO/NARRATIVIDADE:
ENTRE LIVROS DE ARTISTA, OBJETOS E PÁGINAS SOLTAS
DRAWING/NARRATIVITY:
BETWEEN ARTISTS’ BOOKS, OBJECTS AND LOOSE PAGES
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de Mestra em Artes Visuais.
Dissertation presented to the Faculty/Institute of the University of
Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree
of Master in
ORIENTADORA: LÚCIA EUSTÁCHIO FONSECA RIBEIRO
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA
ALUNA ADRIANA RODRIGUES DIAS, E ORIENTADA PELA
PROFA. DRA. LÚCIA EUSTÁCHIO FONSECA RIBEIRO
CAMPINAS
2016
3
4
5
Dedicatória
Para Eduardo, Maria Eduarda e Eleonora, meus amores.
6
Agradecimento
À professora doutora Lúcia Fonseca, orientadora deste trabalho.
Sempre paciente e compreensiva, agradeço por ter acreditado que eu
conseguiria concluir esta etapa de meus estudos em meio a tantas outras
demandas da vida; por ter me feito caminhar, mostrando-me as frestas seguras
em meio às névoas. Meu carinho e meu respeito.
Aos professores doutores Sylvia Furegatti e Gilberto Alexandre
Sobrinho, pela delicadeza, generosidade e assertividade de suas colocações
no exame de qualificação.
Às professoras doutoras Luise Weiss e Tatiana Fecchio C.
Gonçalves por aceitarem prontamente compor minha banca de defesa do
mestrado. E às professoras Marta Luiza Strambi e Walkíria Pompermayer
Morini por aceitarem a suplência.
À Ivanise de Carlo, atriz e amiga que trabalhou como minha
assistente na interferência-ação Desenho/Narrativa: histórias e ficções da Frei
Baraúna, pelo diálogo, pelo apoio, pela prontidão e pelo carinho. À Vanessa
Aprá, fotógrafa e amiga que registrou em fotos a intervenção.
A Ricardo Turatti, por elaborar o abstract de meu trabalho.
Aos meus pais, Iraci e Alcides, pelo amor de todos os dias. Aos
meus irmãos, Erica e Edson, por existirem.
Ao Eduardo, meu marido, por seu companheirismo, por ser um bom
ouvinte, por me dizer a palavra certa, por compartilhar a vida comigo. Às
minhas filhas, Maria e Eleonora, por preencherem de ternura meu coração e
me trazerem para o mundo que está fora dos meus pensamentos.
À Luciana Válio e Ângela Gonçalves, pelo acolhimento e pelo afeto;
pela amizade de tantos anos. À Eli Camargo, pelo carinho. À Heloísa Angeli,
pela amizade delicada, pelas trocas e pelos muitos cafezinhos que tomamos
juntas.
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para esta
dissertação.
7
Resumo
A presente dissertação, Desenho/Narratividade: entre livros de
artista, objetos e páginas soltas aborda o desenho e a narratividade,
percorrendo o território dos livros de artista. Nesta pesquisa são destrinçados
cinco trabalhos de minha produção 2012-Atual em que narrativas são
construídas sobre tecidos e papéis e onde o desenho é o fio condutor daquilo
que é contado, compondo uma série de acontecimentos descritos visualmente
de modo encadeável.
Nestes livros de artista e páginas soltas, as figurações desenhadas
juntam-se a gravuras, costuras e objetos, contam sobre personagens reais e
fictícios em situações imaginárias. As imagens evocadas e citadas narram
sobre sentidos e/ou aspectos sensíveis de ligação, peso, deslocamento e
leveza do ser humano e dos seres no mundo.
Palavras chave: desenho, narratividade, livros de artista, arte contemporânea.
.
8
Abstract
The present dissertation – Drawing/Narrativity: between artists’
books, objects and loose pages – approaches the drawing and the narrativity,
traveling through the artists’ books’ territory. The research promotes an
exploration of five works produced by me in the period 2012-present, in which
narratives are constructed on tissues and papers and where the drawing is the
main conductor of what is told, composing a series of events described visually
in a chained way.
In these artists’ books and loose pages, the figurations drawn are
joined by prints, seams and objects, talking about real and fictional characters in
imaginary situations. The evoked and cited images narrate senses and/or
sensitive aspects of connection, weight, displacement and lightness of the
human being and the beings in the world.
Keywords: drawing, narrativity, artist’ books, contemporary art
9
Sumário
Introdução 10
Parte I - Adentrar a atmosfera 17
A natureza intimista e a atmosfera que se expande 18
A busca em meio a brumas: Liames I 26
Liames II, o peso e a leveza 32
Desejo de liberdade: Liames III 36
Parte II - Desejo de deslocamento 40
A imersão no abismo 42
Liames Atlas/Sísifo 46
Da sombra para a claridade 51
Parte III - Histórias e Ficções 53
Frei Baraúna 55
Proposta, Expografia e Cronograma: Desenho/Narrativa: Histórias e Ficções da Frei Baraúna
59
A Interferência-ação no espaço e no tempo da Praça 62
Do livro de artista à interferência-ação: a relação corpo-obra 65
A narratividade em páginas soltas 69
O imaginário de uma praça I 70
O corpo em busca da leveza 73
O imaginário de uma praça II 77
O imaginário de uma praça III 79
Em busca da liberdade 80
Histórias e Ficções da Frei Baraúna 81
Considerações finais 83
Referências Bibliográficas e referências online 85
Referências em vídeo 88
10
Desenho/Narratividade: entre livros de artista, objetos e páginas soltas
Introdução
Esta dissertação, Desenho/Narratividade: entre livros de artista,
objetos e páginas soltas, se configura como um entremear – de longos fios –
dos assuntos e imagens que aborda: o desenho e a narratividade, percorrendo
o território dos livros de artista e levando-nos a passear por entre páginas
soltas e objetos que, em separados ou juntos, compõem uma série de
acontecimentos descritos visualmente de modo encadeável.
Minha produção de 2012 a 2014 a ser apresentada neste trabalho
são narrativas produzidas ora em suportes translúcidos (tecido, papel) que se
sobrepõem camada a camada ou justapõem-se, ora em suportes opacos
(papel). O desenho é o fio condutor daquilo que é contado e, a estes desenhos,
juntam-se gravuras e objetos que, enredados a linhas, compõe a narratividade.
Liame – ligação, elo – é a ideia que perpassa minha produção. Liam-se os
desenhos somados uns sobre outros, liam-se as imagens que como num
sonho – ou a memória – apresentam-se mais ou menos nítidas. As imagens
evocadas e citadas narram sobre sentidos e/ou aspectos sensíveis de ligação,
peso, deslocamento e leveza do ser humano e dos seres no mundo.
O desenho, para Mário de Andrade (1975, p. 69-77), é um modo de
falar, uma caligrafia, uma espécie de escritura; mais uma escritura que uma
arte plástica, “[...] o desenho está pelo menos tão ligado, pela sua finalidade, à
prosa e principalmente à poesia, como o está, pelos seus meios de realização,
à pintura e à escultura.” Para o autor, os desenhos são poesias, são para
serem fruídos pela leitura: “Desenhos são para a gente folhear, são para serem
lidos que nem poesias, são haicais, são rubaes, são quadrinhas e sonetos”1.
O desenho sempre esteve no centro de meu trabalho, mesmo
quando apenas preliminar para uma obra a realizar-se em outra linguagem.
Concordando com Mário de Andrade, uso o desenho como um modo de falar.
1 Idem
11
Gabriel Garcia Marques, em Vivir para contarla (2002, p.112), conta-nos que
quando criança não necessitava da palavra escrita, pois expressava em
desenhos tudo que o impressionava. Inventava sequências gráficas e criava
histórias sem diálogos.
O desenho, em especial o figurativo – mas não apenas –, sempre
parecerá para mim um modo de contar, mesmo quando é um desenho
autônomo, fora de uma intencional sequência de imagens. Em minha produção
2012-2014, a linguagem do desenho e a narrativa conduziram meu trabalho.
Num sentido amplo, todos sabermos o que é narrar e, em algum
momento de nossas vidas já nos enredamos em meio a tramas de uma história
contada. Narrar, segundo o Pequeno Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
(2015, p.661), é expor por escrito ou oralmente fato ou acontecimento; contar,
relatar.
Para o verbete narrativa (p.662), o dicionário é conciso: narração,
exposição, conto, história, ficção. Para o mesmo verbete [narrativa], o
Dicionário Priberam de Língua Portuguesa2 contempla apenas o universo das
palavras escritas: “obra literária, geralmente em prosa, em que se relata um
acontecimento ou um conjunto de acontecimentos, reais ou imaginários, com
intervenção de uma ou mais personagens num espaço e num tempo
determinados”.
O conceito de narrativa não é circunscrito apenas à obra literária;
perpassa pelos campos do cinema, da fotografia, dos comics, das artes visuais,
da tradição oral: histórias, mitos e causos relatados gerações após gerações.
Neste sentido, para Jaccques Aumont e Michel Marie, no Dicionário teórico e
crítico de cinema (2003)3, “a narrativa é relativamente indiferente à sua
formatação e podem-se considerar amplamente equivalentes narrativas
2 "narrativa", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
http://www.priberam.pt/dlpo/narrativa [consultado em 27-05-2014].
3 O dicionário cita Gérard Genette, que distinguiu três sentidos para a palavra narrativa: O enunciado narrativo que assegura a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos; A sucessão de acontecimentos reais ou fictícios [...] e suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição etc; Não mais [o acontecimento] que se conta, e sim aquele que consiste no fato de alguém contar alguma coisa. (Aumont e Marie)
12
escritas, orais, cinematográficas de uma mesma sequência de
acontecimentos”.
No âmbito da obra literária, do cinema, das histórias em quadrinhos,
a narrativa proposta delimita os campos de interpretação (de leitura); isto é,
nestes formatos a narrativa tem o encadeamento dos acontecimentos
entregues ao leitor – expectador – de modo a conduzi-lo através da
sequencialidade dos fatos, mesmo quando se desconhece o desfecho da
história. Na prosa literária as palavras arranjam-se lado a lado sobre as linhas
de uma página, no cinema cada quadro foi precedido pela cena do quadro
anterior, assim como se dá nas histórias em quadrinhos – a leitura se dá em
uma direção e sequência pré-determinada.
Algirdas Julius Greimas e Joseph Courtés, no Dicionário de
Semiótica (2008, p. 327), definem narrativa como o discurso narrativo de
caráter figurativo, que comporta personagens que realizam ações. O dicionário
de Greimas e Courtés aponta o conceito de narratividade como posterior ao de
narrativa; narratividade é o princípio organizador de qualquer discurso narrativo
(identificado, num primeiro momento, com o figurativo) e não-narrativo (p. 328-
330).
Nas artes visuais a narrativa não tem os mesmos contornos da
literatura, cinema ou quadrinhos; a narrativa pode dar-se de maneira indireta,
não linear, oblíqua. As imagens podem se suceder de modo a criar uma
circularidade na leitura ou, ainda, remeter-se a segmentos da narrativa que não
são mostrados e devem ser intuídos. A narrativa em imagens, no campo das
artes visuais, é polissêmica. A abertura desta linguagem, assim como ocorre
com a poesia ou com a música, permite que sigamos aquilo que é contado por
um viés próprio, a obra constrói-se com o leitor. Umberto Eco, em Obra aberta
(1991, p. 40), esclarece que o autor ao produzir um objeto de arte organiza a
obra de modo que o possível fruidor possa recompreender - pela sensibilidade
e pela inteligência - a obra originária imaginada pelo autor. Neste jogo, cada
fruidor estabelecerá suas relações, segundo uma perspectiva pessoal com
gostos, preconceitos, tendências, isto é, uma sensibilidade particularmente
condicionada.
Dentre os meus desenhos enredados, os muitos fios da narrativa e
13
as muitas possibilidades de apresentá-la – e de ser recompreendida pelo
possível fruidor –, escolhi os livros de artista para abrigarem minhas histórias4.
O livro, tal qual o sabemos, é um objeto que reúne folhas, impressas
ou manuscritas. E pode conter imagens. Em geral sua capa é constituída por
um papel de maior gramatura em que se lê o nome do livro ou o assunto de
que trata – o livro tem uma identidade, todos iguais em sua estrutura, mas
carregando seu nome, quase uma individualidade, um ente. Em geral o livro
leva impresso o nome de quem modelou seu conteúdo incorpóreo, um autor.
Ainda em sua capa, procurando um pouco abaixo encontramos outro nome,
agora daquele que modelou o que o livro tem de corpóreo: a impressão das
letras, o corte das folhas, as costuras, a capa; um editor. Roger Chartier (1992,
p.55), em El mundo como representación, esclarece que os autores não
escrevem livros, estes são fabricados por escribas e artesãos, por mecânicos e
outros engenheiros, por impressoras e máquinas; autores escrevem textos que
outros transformam em objetos impressos.
Para Umberto Eco, em discurso proferido na Biblioteca de
Alexandria (2003a), o livro pertence à mesma classe de instrumentos que a
colher, a faca, o martelo: uma vez inventados, não se modificaram, não foram
aprimorados, pois já estão bons o bastante. A evolução do livro – desde os
tabletes da escrita cuneiforme – ao chegar a sua forma códex, ou códice,
encontrou seu formato ideal.
Edith Derdyk em Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas
poéticas (2013) traça algumas aproximações e distinções entre livros e livros
de artista. Derdyk (p. 11-12) apresenta a denominação livro funcional para
livros existentes desde o início de sua história na civilização e denomina como
livro de artista o objeto singular com específicos modos de produção e que
carrega em si muitas nomenclaturas – objeto-livro, livro-processo, impressos,
livro registro, caixa-livro... – e variam amplamente. Para Derdyk livros
funcionais e livros de artista confluem num primeiro instante naquilo que
concerne à forma-livro. Porém, nos livros funcionais conteúdo independe de
seu suporte.
4 Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2015, p. 511), história: [...] 6. Narração de eventos fictícios ou não; narrativa, estória.
14
No livro “funcional”, o suporte é um contêiner isento, ausente de si mesmo, cuja forma e materialidade estão ali para agarrar, fixar e preservar memórias ou estender, alongar e projetar imaginários, diferentemente do livro de artista cujo suporte é, essencialmente, um espaço poético do “aqui do onde” e do “agora do quando”. Isso quer dizer que no livro de artista o “suporte” é a temporalidade que se atualiza a cada instante em que o livro é lido, visto, tocado, manuseado. E assim, o tal “suporte” deixa de suportar depósitos gráficos para ser uma superfície extensiva, folhas “quase cinema”, um campo de aterrissagem para sinais transitivos, com alta voltagem poética.
Nas folhas quase-cinema, o artista trabalha a materialidade do
objeto. Para Frederico Morais, em Caixas e livros, (2012, p. 71), o livro
tradicional distancia o leitor do objeto que este tem em mãos, já o livro de
artista, que o autor chama de livro-forma está próximo a sua realidade material.
Em sua opinião, do livro ao livro-forma, “recuamos da transcendência à
imanência”. Para o autor, a obra deixa de ser o ‘conteúdo’ que está para além
do objeto e deposita-se no objeto em si.
Meus livros de artista, a serem apresentados nesta dissertação, são
multiformes, assim como é o campo dos livros de artista. Ora construo minhas
narrativas em livros que podem ser folheados como um códice ou desdobrados
como uma sanfona; ora apresento-as em uma sequência de páginas e objetos
que arranjados lado a lado contam uma história. Apresento-as ainda em
páginas soltas, que dispostas num amplo espaço, parecem não ter se com-
formado à estrutura de um grande volume.
O fluido desenvolvimento de meu processo de criação, de minhas
buscas, e das transformações de meus livros de artista desde o início da
produção atual, em 2012, me remete a Redes da criação: construção da obra
de arte, de Cecília Salles (2006). Salles (p. 22) fala sobre o ato da criação
como um movimento entre o rumo e a incerteza; deslocamentos de saberes
prévios em constante rearranjo. O ir e vir entre produção-teoria-produção, que
vivenciei retornando obras de artistas que me são referência, filmes, poemas,
literatura, é apontado por Salles5 quando mostra que no processo criativo há
um movimento no campo teórico-prático, diretamente ligado ao movimento do
5 Idem.
15
campo das ideias, em que a prática e a teoria constroem-se ao mesmo tempo,
de forma cíclica, como uma fita de moebius6.
Cecília Salles aponta que a obra ‘entregue ao mundo’ é objeto dito
acabado, mas referente a um processo inacabado, uma versão possível do que
pode vir a ser modificado. Concordando com Salles, o trabalho a ser
destrinçado nesta pesquisa é um trecho de um percurso (não linear), passível
de ser modificado (como se modificou no percurso destes dois anos de
construção da obra apresentada nesta dissertação), repensado, retomado, pois
decorrente de alguns acasos e de algumas escolhas, que poderiam ter sido
outras.
A intenção desta pesquisa é observar meu trabalho poético e tal qual
a fita de moebius, entrelaçá-lo e pensá-lo pelas lentes dos textos e referências
apresentadas. Não é a intenção desta pesquisa realizar uma investigação
fechada a respeito dos temas que aborda; realizo este estudo em terreno
poético, dos desenhos e da narratividade, do simbolismo das formas, no fértil e
multiforme campo dos livro de artista, a que pertencem a série Liames e seus
desdobramentos.
Assim, voltando-me para o princípio – ou aquilo que marco como
começo – deste percurso, a Parte 1 desta dissertação, Adentrar a atmosfera,
se inicia por um olhar a respeito dos livros e livros de artista, apresentando-os,
para além do objeto detentor da memória, como objeto intimista que conduz o
leitor – e o artista- ao devaneio. Nesta parte será exposta a série Liames
(2012), composta por três livros de artista, Liames I, II e III. Nesta parte da
dissertação a leitura de Ovídio [Metamorfoses], Jorge Luís Borges [Ficciones],
Ítalo Calvino [Se um viajante numa noite de inverno] ajudaram-me aprofundar
meu olhar.
A Parte 2, Desejo de deslocamento, trará para o estudo uma
narrativa intitulada Liames Atlas/Sísifo (2013 e 2014). É uma narrativa formada
6 A fita de Moebius é um objeto obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, porém realizando a inversão de 180º em uma das pontas e leva esse nome pelas pesquisas de August Ferdinand Möbius, que a estudou em 1858. Esse objeto tem interessantes propriedades, pois embora pareça haver dois lados da fita, há apenas um; há apenas uma borda. Pode caminhar-se por sua superfície de maneira infinita, um caminho sem princípio nem fim.
16
por páginas – trabalhadas em gravura em metal, desenho, costura- e objetos.
Liames Atlas/Sísifo mostra meu corpo – em autorretratos- experienciando o
peso e a profundidade, percorrendo a topografia de abismos. A obra narra
sobre conter e libertar, sobre o peso e a leveza, o desejo de deslocamento e
liberdade. Nesta parte da dissertação leio a obra por um viés simbólico: a
imagem do abismo, as linhas enredadas ao corpo e a narratividade do uso da
cor.
Na Parte 3 desta dissertação, Histórias e Ficções, será
apresentada a intervenção urbana Desenho/Narrativa: histórias e ficções da
Frei Baraúna (2014). A interferência-ação aconteceu na Praça Frei Baraúna,
em Sorocaba por um período de 21 dias em que a obra construiu-se e
modificou-se. A ação se constituiu pela realização diária de desenhos em
nanquim sobre tecido. Os desenhos, realizados in loco, são lidos nesta
dissertação como grandes páginas que se soltaram de um livro. A narrativa em
páginas soltas foi tecida por memórias, histórias vividas e inventadas.
No interior desses livros e narrativas aqui apresentadas há um
mundo de histórias contidas em páginas costuradas, objetos e páginas soltas,
compostas por figurações desenhadas, repletas de personagens reais e
fictícios em situações imaginárias.
17
Parte I
Adentrar a atmosfera
Liames I. Livro de artista. Papel vegetal, nanquim. Página em tamanho
A5. Adriana Dias. 2012.
18
Parte I
Adentrar a atmosfera7
Ah! os livros também têm seu próprio devaneio!
Cada um deles também tem uma tonalidade de devaneio,
pois todo devaneio também tem uma tonalidade
particular. [...] Os livros são, pois, nossos verdadeiros
mestres de sonhar. Gastón Bachelard8
A natureza intimista e a atmosfera que se expande
Em A história sem fim, Michael Ende (2010)9, descreve as paixões
humanas como misteriosas, e a paixão do personagem Bastian eram os livros;
ao deparar-se com um volume cujo magnetismo o atraía irresistivelmente, toca-
o. O gesto das mãos reverbera no garoto uma sensação de estalo, como se
algo fora desencadeado e já não pudesse ser detido. Bastian, então, furta o
livro e esconde-se no sótão de sua escola para lê-lo. O local reúne os mais
díspares objetos e há uma camada de poeira deitada sobre cada coisa, um
lugar onde o tempo parecia ter parado; uma fresta na realidade.
Bastian olhou para o livro.
"Gostaria de saber", disse para si mesmo, "o que se
passa dentro de um livro quando ele está fechado. É claro
que lá dentro só há letras impressas em papel, mas,
apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque
quando o abro, existe ali uma história completa. Lá dentro
há pessoas que ainda não conheço, e toda a espécie de
aventuras, feitos e combates — e muitas vezes há
tempestades no mar, ou alguém vai a países e cidades
exóticos. Tudo isso, de algum modo, está dentro do livro.
É preciso lê-lo para o saber, é claro. Mas antes disso, já
está lá dentro. Gostaria de saber como. . ."
7 Alguns trechos desse capítulo foram apresentados no encontro Poéticas da Criação – ES 2013: o artista como autor e as práticas colaborativas na arte contemporânea. UFES-Vitória/ES. 4 a 7 de dezembro de 2013. O texto apresentado foi publicado: DIAS, Adriana Rodrigues. Folhear: algumas considerações a respeito do livro de artista. In: Cirillo, J., GIL, F. G. e GRANDO, A (orgs.). Artistas, autoria e a práticas colaborativas. São Paulo: Intermeios, 2013. 8 Apud Ferreira, 2008, p. 117-118. 9 Publicado pela primeira vez em 1979.
19
E, de repente, sentiu que aquele momento tinha algo de
solene. (ENDE, 2010, p. 14-15)
Os pensamentos de Bastian no silêncio que antecede o momento de
abrir o livro e iniciar a leitura perscrutam sua natureza. O personagem percebe
que o sentido do volume que pesa em suas mãos está além do objeto. Bastian
faz-nos meditar sobre duas facetas do livro que interessam a esta dissertação:
ser o livro de natureza intimista – tanto em sua feitura quanto em sua leitura –
ou que sugere algo que como um segredo se desvelará e a atmosfera que se
expande em relação ao objeto livro, sobrepassando a matéria – e perdurando a
ela.
Para mim, como para muitos, o livro é um objeto de afeto. É um
objeto para se ter nas mãos ou apoiado em uma superfície, deve ter a
proximidade dos olhos (ou dos dedos) de quem o lê. Sentar-se, dar volta no
volume. Explorar o exterior primeiro. Abri-lo. Penetrar o livro exige tempo: uma
poltrona pode ser importante. Diferentemente de uma pintura na parede de um
museu, de uma instalação artística, ou um outdoor na calçada, o livro exige
proximidade, um leitor por vez, para si. Penso que foi por esse formato e
linguagem, por ser intimista,
que optei pelo livro de artista
para o início da série
Liames; meu olhar que se
debruça sobre o pequeno
formato quando estou
tecendo minhas memórias
entremeadas de ficção. Em
consonância, a escolha da
linguagem do desenho
também está na ordem da
intimidade; ele nos convida a
olhar de perto suas
qualidades gráficas. Se há proximidade quando realizo o trabalho, há também
proximidade do possível fruidor. O gesto do corpo que se aproxima e desce o
olhar é íntimo. Parece, talvez, que revelo um segredo a quem o ‘lê’.
Figura 1. Adriana Dias. Corpo-forma. Diário/Livro de artista. Página em tamanho A4. 2000. Projeto para
gravura em metal.
20
Meus primeiros livros, anteriores a série trabalhada neste capítulo,
tinham um caráter de diário. Iniciei meu afeto por livros pelo viés da literatura;
descobri os textos em primeira pessoa, as cartas, os diários, as narrativas a
respeito do cotidiano, das miudezas, das sutilezas da vida comum. Vislumbrava
na leitura de um diário a possibilidade de perscrutar, descobrir um rico universo
interior talvez não expresso de outra maneira. Assim comecei a escrever os
meus diários: registrar em palavras meu mundo interno e as relações que
estabelecia com o que estava fora. A transição do formato ‘diário’, para o de
livro de artista aconteceu aos poucos, no contato com o material de outros
artistas. Os diários que a princípio eram compostos por escrita, foram,
paulatinamente, ganhando imagens que viriam, talvez, a constituir-se como
trabalhos maiores. A princípio meus livros de artista eram um veículo para algo
que se materializaria fora deles (fig. 1). Com o tempo, e em contato com a obra
de outros artistas, meus cadernos foram compondo-se apenas por imagens.
Comecei a produzir meus primeiros livros de artista.
Sob uma perspectiva de gênero, essa mesma trajetória iniciada por
mim pela escrita do diário, aconteceu em outro momento com outras artistas.
Judith Hoffberg, em seu texto de apresentação de uma exposição de livros de
artista ocorrida em São Paulo na década de 1990 (1997, p. 11), apresenta o
formato diário como o gérmen de algo a desdobrar-se na obra de algumas
artistas. Hoffberg aponta que no início do movimento feminista, mulheres
usavam o diário para exprimir problemas e soluções, assim como sentimentos
perenes ou cotidianos.
Na construção de livros como quem sonda a própria essência, Lenir
de Miranda, artista visual rio grandense que em sua produção constrói livros de
artistas como objetos únicos, em entrevista concedida a Paulo Silveira em
dezembro de 1997, afirma que “o livro de artista é objeto paradoxo que convida
o homem a uma pausa diante de si mesmo ao convidá-lo a penetrar na sua
trama íntima” (apud Silveira, 2008, p. 261). A forma do livro de artista como
diário, ou como páginas que imprimem o espírito10 do autor, ou ainda o livro de
10 Neste texto, a palavra ‘espírito’ é utilizada no sentido de ‘imaterial’, algo que o autor coloca em seu livro, mas é de natureza impalpável. Aproxima-se ao sentido que emprega Aleida Assmann no livro Espaços da recordação (2011) e que é apresentado na citação.
21
artista como objeto único, são algumas das possibilidades de existência do livro
de artista, em meio a uma vasta paisagem.
Aleida Assmann (2011, p. 203) nos traz que a página impressa é um
médium entre o espírito do autor e o leitor. A autora aponta que um livro com
páginas vazias não se destina a ser lido, mas a ser escrito. Na impressão –
imprint- desse livro em branco será tomada como matriz o espírito do
proprietário: “O livro, com isso, torna-se um instrumento de externalização do
que é interno, fechado e inacessível; com a ajuda das folhas vazias, vai se
desvendar, abrir-se, tornar-se legível”. Nesta colocação, o autor surge mais
próximo da materialidade do livro, da conformação das páginas e não apenas
conformação de ideias. Sobre páginas em branco o sujeito [autor] é convidado
a agir, deixando impressa sua matriz. Assmann nos aponta que em sua
tradição o livro [a escrita] carrega a ideia de verdade impressa, conceito que
advém do Renascimento:
O conceito-chave nesse contexto chama-se “espírito”. A
escrita é considerada medium congenial do espírito, pois
nessa teoria a transparência da escrita corresponde à
imaterialidade do espírito. A escrita, por meio de sua
transparência virtual – os caracteres como significantes
materiais “caem como borra durante a leitura” -, tem uma
finalidade especial com o espírito. (ASSMANN, 2011, p.
206)
Na construção de meus livros de artista, minha relação com a página
em branco é de cumplicidade. Ao trabalhar a materialidade do papel, teço em
desenhos a memória-ficção. Vou imprimindo nas páginas meu “espírito”, na
forma de desenhos. Este elo entre mim, que construo o livro de artista, e
aquele que se disporá a folheá-lo [lê-lo], é o caráter intimista e o “espírito”
impregnado. Na tessitura11 das imagens eu escancaro, sussurro, minto ou velo.
11 Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2001, p. 2708), Tessitura: [...] 5 – composição de tecido, textura. 6 – p. ana. Modo como estão interligadas as partes de um todo; organização, contextura (o romance possuía uma extraordinária t.) ETIM. It. Tessitura (s XIV) organização de um discurso religioso, (1640), ação de fazer tapeçaria sobre uma tela ou o trabalho assim tecido, (1737) organização e composição de uma obra literária, contextura, 1879) acp. Mús, (1881) acp modo de dispor ou ordenar, do v. it. Tessere, este do lat. Txo, is xui, xtum, ére, tecer, fazer tecido; entrançar, entrelaçar; construir sobrepondo ou entrelaçando. [O negrito não consta do texto original.]
22
Partilho. O outro desvela, lê, reconta. Perscruta. Quando se abre o livro [de
artista], sua atmosfera se expande.
Em Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino (1999,
publicado pela primeira vez em 1979), guarda ao longo de suas páginas
reflexões sobre a essência dos livros. No livro, o autor propõe um desafio físico
– e metafórico – ao personagem Leitor, protagonista da história. O Leitor, ao
tomar um livro em mãos para iniciar a leitura percebe que as folhas do volume
não foram cortadas. Ele então, munido de espátula, perpassa as fronteiras da
matéria:
Os prazeres que o uso da espátula reserva são táteis,
auditivos, visuais e, sobretudo, mentais. Para avançar na
leitura, é preciso um gesto que atravesse a solidez
material do livro e dê a você o acesso à substância
incorpórea dele. [...] Abrir uma passagem com o fio da
espada na fronteira das páginas sugere segredos
encerrados nas palavras: você avança na leitura como
quem penetra uma densa floresta.12
A natureza incorpórea/espiritual do livro – ou da leitura – é retomada
em outros momentos de Se um viajante numa noite de inverno. Calvino outorga
ora a um ora a outro personagem sondar a imaterialidade do livro: o professor
Uzzi Tuzii, conversando com leitores, define que na leitura há a presença de
um objeto sólido, escrito, que não pode ser mudado. Porém há também alguma
coisa sem presença, “algo que faz parte do mundo imaterial, invisível, porque é
apenas concebível, imaginável, ou porque existiu e não existe mais, porque é
passado, perdido, inalcançável, na terra dos mortos”13. Tais impressões do
personagem Uzzi Tuzii se seguem na voz de outro personagem, a Leitora, “Ler
é ir ao encontro de algo que está para ser e ninguém ainda sabe o que será...”.
Ela, então, debruça-se para sondar além da página impressa a sua frente,
pronta para ver navios despontando no horizonte, tempestades... 14.
A reflexão em torno do livro enquanto matéria e do livro em sua
imaterialidade, em sua natureza que se expande – e perdura –, pode ser
encontrada em Roger Chartier (1992), em El mundo como representación. O
12 Idem, p. 48. 13 Ibidem, p. 78. 14 Op. Cit.
23
autor aponta que em um lapso temporal de mais de mil anos, construções
colossais jazem em ruínas; ao contrário, textos escritos na mesma época ainda
são copiados, lidos e estudados (p.195).
A fragilidade das letras manuscritas ou impressas, sobre um papiro
ou num livro é aparente. Para Assmann15
a escrita é uma “força preservadora”
e “uma das armas mais eficientes contra a segunda morte social, o
esquecimento”. Se em sua materialidade o livro mostra-se frágil, a
indestrutibilidade é o aspecto que o faz objeto político. Desmaterializados ao
longo da história, o objeto detentor de memórias e instigador de pensamentos,
foi visto como uma ameaça a governos totalitaristas ou a visões unilaterais de
dogmas religiosos. Temidos, cultuados, lidos às escondidas, a censura faz
parte da história dos livros.
Neste sentido, Ana Paula Cohen em Entre o museu e a biblioteca
(2012, p.339), aponta que o livro pode circular, passar de uma mão a outras
mãos sem perder sua potência, “a qualquer momento, pode ser aberto, mesmo
em movimento, e seu conteúdo se expande em relação ao corpo do sujeito que
o lê, e seu espaço se abre para outras dimensões – que não demandam
necessariamente um espaço físico maior, mas sim um tempo estendido, no
qual se realiza a leitura”. O espaço e o tempo são outras duas facetas desse
objeto que há séculos magnetiza àquele que se permite dele aproximar-se.
Waltércio Caldas (2012, p. 331), artista com ampla produção em
livros de artista, considera os livros – assim como os relógios e os espelhos16 –
significativamente maiores por dentro que por fora. Em 1978, Waltércio realizou
o livro chamado Matisse, talco. A obra consiste num livro aberto numa página
que contém a reprodução fotográfica do ateliê de Henri Matisse; o artista
colocou talco recobrindo quase completamente ambas as páginas do livro
aberto (fig. 2). Sobre esta obra, Frederico Morais (2012, p. 85) faz a seguinte
colocação, “Matisse, talco, 1978, é mais propriamente uma intervenção de
Waltércio, que ao recobrir a reprodução de Ateliê do artista, de Henri Matisse,
15 Op. Cit. 16 Waltércio possivelmente refere-se a Shakespeare quando pontua os livros, os espelhos e os relógios. Como nos mostra Aleida Assmann (2011, p. 201-202), Shakespeare – no Soneto 77 –, combina estes três objetos, trazendo seus valores pragmáticos, mas também simbólicos.
24
com pigmento branco e
perfumado, recria a atmosfera
sensorial e luxuriante que
subjaz à pintura do mestre
francês”.
Matisse, talco, é um
livro com a natureza corpórea,
material, concernente a este
objeto tal qual o sabemos,
acrescido da materialidade,
textura, cor, cheiro
específicos do talco. É também um livro com a incorporeidade que a ele cabe,
ainda que não possamos tocá-lo nem folheá-lo. Ulysses Carrión, em seu A
nova arte de fazer livros (201117, p. 52) aponta que na velha arte18 o texto
transmite as intenções do autor. Na nova arte o livro em sua totalidade, em sua
estrutura transmite a intenção do autor; a materialidade faz parte da intenção.
Neste sentido, na obra de Waltércio sentimos a suavidade do pó branco,
buscamos o título da obra: Matisse. O título nos remete às odaliscas, à volúpia,
à pulsão da cor, à vibração das formas, à paixão; talco nos sugere o aroma
morno e um pouco agudo (Matisse não nos permite sentir o cheiro da pele de
um bebê, a referência é outra, de lascívia).
O artista que desenvolve sua poética no campo dos livros, trabalha a
atmosfera do livro, mas também em sua materialidade. São livros construídos a
partir de elementos plásticos. Bruno Munari (1998, p. 210-211), em seu texto
Um livro ilegível, conta uma experimentação que fez com texturas, cores,
formatos, transparências, para verificar como seria um livro em que se utilizam
outros recursos que não o texto. Isto é, quê comunica um livro enquanto objeto,
sem textos ou palavras impressas? Como é este objeto em termos visuais e
táteis? A pesquisa de Munari se dispersa pelo território dos livros de artista.
17 Publicado pela primeira vez em 1975. 18 O autor chama de livros da velha arte o livro tal como o conhecemos – o códice com textos impressos. Refere-se aos livros de artista como nova arte.
Figura 2. Waltércio Caldas. "Matisse, talco". 1978
25
Aponta Ulysses Carrión19 o livro de artista como uma sequência
autônoma de espaço-tempo (p. 5). Para o autor, um livro da velha arte é um
livro em que nada acontece. Seja de um autor medíocre ou genial, ao ler a
primeira ou a última página, se faz da mesma maneira; neste livro, as páginas
repetem-se, inalteradas (p.19).
Edith Derdyk em Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas
poéticas (2013), ao denominar cada página do livro de artista como folhas
quase cinema, comunga da ideia de Carrión (p.67) quando este afirma que os
livros da nova arte criam condições específicas de leitura: o ritmo da leitura
muda, aumenta, acelera. Desta maneira, cada livro de artista requer uma
leitura diferente.
A estruturação dos elementos na construção do livro de artista,
linhas, cor, forma, textura, sobreposições, rasgaduras, palavras impressas,
escolha do suporte (papel, tecido, plástico, metal...) opaco ou transparente,
leve ou pesado, dentre muitas outras formas possíveis, sugerem a cada página
um tempo de leitura/visionamento. Cada espaço –página- do livro de artista é
vivenciado num tempo próprio; a sequência e o ritmo da leitura podem ser
impressas por aquele que se disponha a fruí-lo.
Neste sentido, para Luise Weiss e Suzana Azevedo, em Livros-
objeto e Almanaques: marcas e deslocamentos (2010), o ir e vir no folhear das
páginas do livro evoca aspectos temporais, compara esse movimento a uma
metáfora do tempo. Para as autoras, a sequencialidade da escrita constrói a
narrativa, “ao abrir um livro, o tempo impregnado neste livro começa a fluir, não
o tempo cotidiano, mas, sim, o tempo da leitura: um tempo paralelo”. No livro
de artista a leitura ou visualidade de sua narrativa constrói-se de maneira
particular. Derdyk (2012, p. 167) aponta que as narrativas no livro de artista
nascem das conjugações entre tempo-espaço, forma e conteúdo, significante e
significado; mais do que um tema ou assunto a ser contado, "o foco poético se
fixa justamente no modo de narrar, que acontece tanto pelas articulações
inéditas entre palavra e a imagem quanto pela sua materialidade, a sequência
das páginas, sua estrutura formal”.
19 Op. Cit.
26
À diferença do livro – com sua história ou conteúdo dado pela
linguagem escrita – em que o ritmo da leitura se dá da mesma maneira do
princípio ao fim, o livro de artista proporciona ao leitor fazer parte da construção
da obra, o tempo da obra é o tempo do desfrute: do ir e vir nas páginas, do
demorar-se, do acelerar. A cada leitura a obra se (re)faz. A cada vez que o livro
de artista é ativado uma narratividade se dá.
A busca em meio a brumas: Liames I
Iniciei Liames I por sua encadernação, unindo e costurando folhas. É
um códice simples, com capa de tecido de cor entre cinza e bege. O livro
fecha-se com um nó ou laço de tiras de couro marrom e quando fechado,
parece um livro austero.
Liames I é de um confortável tamanho A5 e apesar da austeridade
da capa, ao abri-lo modifica-se, como se adentrássemos um sonho. Nesse livro
de artista escolhi um suporte mais sutil, uma materialidade que me
possibilitasse ver através, ainda que parcialmente: o papel vegetal. Ao folhear
Liames I, temos a sensação de adentrarmos a profundidade em busca do
horizonte – ainda que em meio a brumas – e do desvelar conforme se viram as
páginas. As camadas sobrepostas enevoam as páginas mais distantes daquela
que está aberta. Porém, o jogo de densidades e o conjunto de folhas que se
acumulam de um e de outro lado do caderno compõe juntamente com as
páginas abertas a paisagem que se vê.
27
Figura 3. Páginas de Liames I. Livro de artista. Nanquim e caneta sobre papel vegetal. Página em tamanho A5. Adriana Dias, 2012.
As imagens deste livro de artista são referências a fragmentos de
minhas lembranças, paisagens, plantas, objetos de meu afeto e de meu
cotidiano, autorretratos; imagens estas enlaçadas a um imaginário simbólico e
afetivo (fig. 3).
Na construção de Liames I esteve muito presente a memória dos
meses que passei na Espanha20. Enredadas – liadas – a estas memórias, o
momento que vivia então: o retorno às artes visuais. Um e outro tempo
confundiam-se em mim, e eu tateava uma compreensão em meio às névoas.
Para mim é o mais afetivo livro da série Liames, um livro de artista que nos
remete ao onírico e, em meio às brumas, à metamorfose.
20 No acadêmico de 2005-2006 realizei um Master en Bienestar Social e no ano acadêmico 2006-2007 realizei um Mestrado Oficial en América Latina Contemporánea, curso da área de ciências políticas. Ambos na Universidad de Alcalá, Alcalá de Henares, Espanha.
28
A primeira imagem evocada para este trabalho foi uma planta de
estrutura enredada, de tronco entrelaçado, capturada por minha câmera há
alguns anos no Instituto Ortega y Gasset, Madrid, onde estudei. Essa imagem,
a primeira a ser desenhada, aparece no que se entende por última página do
caderno, segundo nossa leitura ocidental. Sobre essa página sobrepus a
página precedente, ainda em branco. Pela translucidez do papel de baixa
gramatura passavam nitidamente as linhas da planta enredada do desenho da
página de baixo. A estas linhas, somei linhas novas, folhagens sobre os
troncos. Folheei nova
página em branco sobre
ambas as páginas
desenhadas
anteriormente. Sempre a
folha precedente
acrescentando, tecendo
e transformando a página
seguinte (fig. 4).
Como num
tempo invertido esse livro
de artista construiu-se
da última à primeira
página, até acabarem-se
as folhas. Enquanto
desenhava, subverti a sequência a que estamos habituados. Em dados
momentos da feitura de Liames I, retomei páginas produzidas anteriormente,
interferindo sobre desenhos já feitos – acrescentando, rasgando, velando –
para dar-lhes a ideia de conjunto. Realizei na criação o mesmo movimento
experienciado – o ir e o vir – por quem se disponha a visionar o trabalho.
Jorge Luis Borges, em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, primeiro conto de
seu livro Ficciones (2006), descreve um planeta – Tlön – em que objetos
perdidos se duplicam. Por exemplo, duas pessoas procuram um lápis e a
primeira pessoa o encontra, mas não diz nada. A segunda pessoa encontra um
segundo lápis, não menos real que o primeiro, porém mais ajustados às suas
Figura 4. Liames I aberto na antepenúltima página. A
paisagem onírica forma-se de um e de outro lado das páginas somadas. A paisagem se vê em tamanho A4.
29
expectativas. A esse objeto secundário (que não existia anteriormente e que se
constituiu/materializou-se no momento da busca – ou do desejo de encontrá-lo)
dá-se o nome de hrönir.
Na ficção de Borges, os hrönir, que a princípio davam-se de maneira
casual, passam a ser sistematicamente produzidos: e se objetos raros, e se
achados históricos e tesouros lendários pudessem ser constituídos? E se
pudessem ser desenterrados como descoberta arqueológica? No conto, passa-
se, então, à exumação de objetos histórico-arqueológicos que transformam o
passado.
A metódica elaboração de hrönir [...] prestou serviços prodigiosos aos arqueólogos. Permitiu interrogar e até modificar o passado, que agora não é menos plástico e menos dócil que o porvir. (BORGES, 2006, p. 36)21
No ato de folhear Liames I as imagens que estão por vir somam-se e
ressignificam as imagens passadas – podendo ser o livro folheado de um e
outro lado, conforme a vontade do leitor. No planeta Tlön os objetos
arqueológicos encontrados a partir da produção de hrönir modificam a história.
O passado torna-se plástico, pode ser modelado. Em Liames I, as páginas que
já se passaram e as que estão por vir coexistem no tempo/espaço. A cada
folhear a imagem metamorfoseia-se. Há inversão/subversão da temporalidade
daquilo que é contado. Em um e outro lado de duas páginas abertas, o tempo
sobrepõe-se: podem-se ver a um só momento as páginas precedentes e as
que se desdobrarão logo a seguir [ainda que envoltas em névoa]. Através da
translucidez das folhas de Liames 1 a figuração de uma página evoca formas
nas páginas anteriores e seguintes. Na leitura de Liames I a paisagem
transforma-se.
Assim como em Tlön com a exumação de hrönir, em Liames I cada
página ressignifica a forma da página vista anteriormente. Cada desenho tece-
se com o desenho seguinte e com o anterior. As memórias-ficções são
remodeladas, descosturadas e novamente tecidas, liadas. Ainda como em
21 Tradução livre do trecho: “La metódica elaboración de hrönir (dice el Onceno Tomo)
ha prestado servicios prodigiosos a los arqueólogos. Ha permitido interrogar y hasta modificar el pasado, que ahora no es menos plástico y menos dócil que el porvenir” (Borges, 2006, p. 36. Grifo do autor).
30
Tlön, a imagem de meu
livro de artista é
duplicada: ela está em
um e outro lado da
mesma folha, porém
invertida, espelhada,
sugerindo outra
narrativa (fig. 5 e 6). As
páginas já folheadas
tem a plasticidade, a
possibilidade de
transformação das
páginas por vir.
A
justaposição constrói
uma imagem com
variações de
densidades e graus de
evanescência. Já a
sobreposição dos
desenhos, ora soma-se
a forma anterior,
completando-a ou
transformando-a, ora causa anulação da imagem precedente. A sequência das
páginas nestes cadernos também mostra a resistência da imagem em
desaparecer. A cada folhear a imagem de camadas mais profundas dissipa-se
aos poucos, mas resiste ao apagamento, como a memória. Quanto persiste a
imagem [a memória] em camadas profundas?
Como apresenta-nos Agripina Ferreira, no Dicionário de imagens,
símbolos, mitos, termos e conceitos Bachelardianos (2008, p. 145),
Em cada sonhador há em potência uma imagem, uma paisagem de lembranças acumuladas que se apagaram da memória, mas estão sempre renascendo em seus devaneios. A paisagem existe como um sonho anterior ao
Figuras 5 e 6. Páginas de Liames I. Quando aberto o livro tem o formato A4.
31
que se apresentou ao contemplador. O sonhador projeta, em consonância com a sua imaginação, seu mundo, sua profundeza, suas impressões, em suma, seu passado longínquo. Eis porque "o azul de outono é o azul de uma lembrança".
Em Liames I podemos perceber trechos narrativos simbólico-afetivos
– não delimitados por um recorte preciso, mas que se liam uns aos outros:
conter, nascer, segredar, transformar (fig. 7 e 8)... Cada uma destas partes
metamorfoseando-se e fundindo-se. Ovídio, no início do Livro Um, em
Metamorfoses (2003, p. 9), expõe que sua intenção é contar histórias sobre
corpos que assumem diferentes formas. O poema narrativo página a página
enreda personagens e transformações da matéria; pedras tornam-se homens e
mulheres, algas tornam-se corais, sangue se torna em víboras. Em
Metamorfoses, ainda que a obra esteja ordenada em quinze livros, as histórias
enlaçam-se.
Figuras 7 e 8. Páginas sequenciais de Liames I. Quando aberto o livro tem o formato A4.
Em Liames I, memória e devaneio se enredam em narratividade. Se
Ovídio nos conta sobre corpos que assumem diferentes formas, Liames I
conta-nos sobre uma busca em meio a metamorfoses; a cada folhear o sonho
se desvela.
32
Liames II, o peso e a leveza
Liames II foi o livro de artista mais desconstruído e experimental
dentre os três livros desta série. A princípio com folhas de cores, densidades,
translucidez/opacidade e gramaturas diferentes, foi sendo modificado pelas
solicitações do próprio objeto em seu processo de construção: da idealização
inicial, folhas foram arrancadas, rasgadas, substituídas, acrescentadas. Há
preponderância do papel vegetal.
Figura 9 e 10. Liames II. Capa: verso e frente. Tecido, nanquim, papel
vegetal, botão e fio de nylon. O livro de artista tem aproximadamente 21 cm x 21 cm quando fechado. 2012.
Se em Liames I a capa austera e discreta quase dispensa a atenção
e se em Liames III – a ser apresentado a seguir- o formato sanfonado não
diferencia capa e contracapa das outras folhas do livro, em Liames II a capa é
parte relevante da obra. Sua capa dura é recoberta de tecido vermelho
queimado, com estampa em padrão encaracolado, miúda e densa.
Parcialmente é sobreposto por papel vegetal em camadas rasgadas, aí criando
uma paisagem em que tronco e raízes tentam liar o fundo vermelho e os papéis
rasgados [montanhas?]. O padrão e a cor do tecido e as sobreposições em
papel vegetal enunciam na capa deste livro de artista a relação entre peso e
leveza que conduzirá a narratividade em suas páginas. O caderno fecha-se
com fios de nylon enrolados a um pequeno botão (fig. 9 e 10).
33
Em Liames II,
pequenas sequências
demarcadas acontecem
em seu interior. As
páginas são
parcialmente ou
totalmente unidas
tornando inseparável um
conjunto de folhas. As
pequenas compilações
de três, quatro ou cinco
folhas ao longo de
Liames II possibilitaram
adensar um grupo de desenhos sobre o papel vegetal, às vezes velando quase
totalmente algumas páginas do interior do conjunto.
Como em Liames I, o volume é composto por trechos narrativos.
Mas se em Liames I, sua construção e materialidade possibilitaram passagens
que se imbricam umas nas outras, numa narrativa fluida e em metamorfose – e
por isso, pela homogeneidade do conjunto foi apresentado e discutido Liames I
em sua totalidade22 –, em Liames II os trechos que compõe sua narratividade,
aproximam-se mais da ideia que fazemos de capítulos ou partes. Em Liames II
há uma sequência de páginas em branco que compõe com os trechos
desenhados neste livro de artista. Dentre o conjunto da obra, escolhi o recorte
de uma sequência de páginas que interessa a esta dissertação, que guarda a
metáfora do peso e da leveza. A primeira imagem que foi desenhada nesse
livro é uma representação –autorretrato – de Atlas23, sustentando o peso de um
mundo, de uma grande rocha, sobre suas costas (fig. 11). Neste conjunto de
três páginas unidas – Atlas/autorretrato – há a rocha em aquarela na porção
superior da página, e as linhas que representam o solo, na porção inferior. Em
meio a estes dois limites, o corpo dobrado, resistindo à pressão da rocha. Os
22 A obra é discutida em sua totalidade, porém foram apresentadas apenas algumas imagens. 23 Atlas, titã na mitologia grega é condenado por Zeus a sustentar a abóbada celeste para sempre (BULFINCH, Thomas. 2006, p. 122-123).
Figura 11. Páginas de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x21 cm.
34
pés estão bem
plantados na linha
do chão. Na
imagem há peso,
mas também
equilíbrio: o
esforço da rocha
em obedecer à
gravidade encontra
igual esforço do
corpo em
sustentar-se e não
deixar-se esmagar.
Atlas/autorretrato, embora em equilíbrio – pelo contínuo esforço –
incita dois desejos: o de deslocar-se e encontrar brechas ou fendas por onde
esgueirar-se e o desejo de respirar profundamente. O desejo de deslocamento
será representado na Parte 2 desta dissertação, com a obra Liames
Atlas/Sísifo.
Conta-nos
Ferreira (2008, p. 24),
que os alquimistas
consideram o ar
elemento da leveza e
pureza, contrário aos
elementos pesados, as
escórias que ficam na
terra. Jean Chevalier,
doutor em teologia, e
Alain Gheerbrant
(orgs.), no Dicionário de símbolos (1986, p. 67) apresentam-nos que o ar está
simbolicamente associado ao vento e ao sopro, representando o mundo sutil
intermediário entre o céu e a terra.
Figura 12. Páginas de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x 21 cm.
Figura 13. Páginas de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x 21 cm.
35
Se Atlas/autorretrato sustenta o peso da rocha na entranha da terra,
como desdobramento dessa representação seguem dois conjunto de imagens.
No primeiro conjunto de páginas, se vê o autorretrato, onde a boca e nariz
estão velados. Talvez o ar esteja preso, impedido de ser inspirado; talvez o ar
esteja sendo sugado, obrigado a ser expirado (fig. 12). O desejo de respirar
profundamente concretiza-se no trecho seguinte: o sopro (fig.13).
A sequência iniciada em Atlas/autorretrato, no peso e entranha da
terra, finaliza-se com a imagem do balão e do coração. Ar, sístoles e diástoles;
pulsação e vida (fig. 14).
Figura 14. Página de Liames II. Página em tamanho aproximado 21 cm x 21 cm.
Para Arnaldo Bataglin, em A fronteira como território (2007, p. 111),
o desenho ocupa uma posição ambígua, “entre o imaginário e o real, entre o
mundo dos sonhos e das memórias, de um lado, e, de outro, o mundo da
matéria, da sensação física, da dor”. Liames II projeta o peso e a leveza;
contenção e libertação.
36
Desejo de liberdade: Liames III
Inicio meus livros de artista sem uma conformação mental detalhada
de como a obra se dará. Para mim o ato de criação é fluído, as decisões são
tomadas no momento da feitura e têm um caráter mais intuitivo que racional.
Liames III é um livro de artista que se dobra/desdobra em forma de sanfona
(fig. 15).
Figura 15. Liames III. Papel vegetal, papel vergê, papel japonês, nanquim e aquarela. Aproximadamente 20 cm x 20 cm quando fechado. Adriana Dias. 2012.
Considerando a forma desse livro de artista, que ao desdobrar-se se
tem a impressão da continuidade de uma única folha, arrumei-as lado a lado,
unidas apenas pela proximidade, sobre uma mesa. Escolhi papéis translúcidos
e opacos: vegetal, japonês e vergê.
37
Iniciei
Liames III pelo
desenho de longas
linhas que tomam a
faixa de papel de uma
ponta à outra. Na
frente e no verso as
folhas liam-se por este
desenho e algumas
páginas se passam
sem que meus
autorretratos ou outra imagem se junte às linhas desenhadas. As linhas
algumas vezes enredam-se, outras vezes fluem na parte inferior das folhas:
sugerem ondas? Areia? Nuvem? (fig.16).
Em Liames III há desejo de liberdade. Embora as linhas, os fios que
liam as páginas remetam [talvez] a uma superfície ou sugiram um limite entre o
que pode estar abaixo e o que pode estar acima, no interior desse livro de
artista encontramos uma sequência de páginas que, para mim, traduz o desejo
de liberdade (fig. 17, 18, 19).
Nesta simbólica sequência de páginas escolhidas para esta
dissertação, as figuras de meu corpo dobrado em si, de uma árvore, do meu
olhar para o alto e do voo de um pássaro. Para Gaston Bachelard, apud
Ferreira (2008, p. 29), a árvore, como o ser humano, possui raízes que a fixam
às sombrias profundezas da terra; porém, como espírito e luz, lança-se ao
ilimitado azul infinito, vivendo entre terra e céu. Para Bachelard a árvore tem
um sentido imanente e transcendente.
Figura 16. Páginas de Liames III. Aproximadamente 20 cm x 20 cm cada página.
38
Figuras 17, 18 e 19. Sequência de páginas, Liames III. Cada página mede aproximadamente 20 x 20 cm.
Nos autorretratos deste trecho de Liames III, uma figura fecha-se,
está mais ligada às entranhas de si mesma – às sombrias profundezas? O
desenho do corpo dobrado está sobreposto à árvore aguada em nanquim,
39
percepção que se inverte se olharmos do outro lado das folhas translúcidas. A
copa da árvore inclina-se sobre a figura, como num gesto. As linhas
desenhadas na porção inferior desta página descrevem uma materialidade
mais pesada; parecem comprimidas pelo peso do mundo.
No outro autorretrato o corpo desdobra-se, respira, projeta seu olhar
para o alto. As linhas que fluem abaixo desta figura são aguadas em nanquim,
flutuantes. O desenho destas linhas parece água ou ar. A onda parece
levar/sustentar com gentileza a figura.
Entre o corpo que se fecha e o corpo que se desdobra, está a
imagem do voo. Bachelard apud Ferreira24
(p. 67), diz que os pássaros –como
os peixes- possuem uma liberdade a mais do que nós, pois vivem em um
volume enquanto nós vivemos apenas sobre uma superfície. Para mim, o voo é
o desejo de liberdade; é o desejo de pairar acima do peso do mundo.
Sérgio Fingermann, em Desenho e opacidade (2007, p. 92-93),
pontua,
A folha de papel é um interior que contém o mundo e, ao mesmo tempo, pode ser um exterior, que exclui de si qualquer espécie de interior. Vencendo a opacidade do papel, o desenho faz um lugar. Faz teatro. É o lugar da visão apurada. É um lugar em que o olhar vê a si mesmo. Nesse teatro o desenho anuncia o mundo.
Em minha narratividade, teço o que vejo do mundo [de mim].
24 Op. Cit.
40
Parte II
Desejo de deslocamento
Da Liberdade. Trecho de Liames Atlas/Sísifo, desenho em nanquim e
costura. Aproximadamente 39 cm x 39 cm. Adriana Dias. 2013/14.
41
Parte II
Desejo de deslocamento
Não há sol sem sombra, e é preciso conhecer a noite.
Albert Camus.25
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço onde a claridade está presa.
Há que sentar-se na beira
do poço da sombra e pescar luz caída
com paciência.
Pablo Neruda.26
Esta parte da dissertação trará para o estudo o trabalho Liames
Atlas/Sísifo27
, produzido entre os anos de 2013 e 2014. É uma narrativa
formada por páginas – trabalhadas em gravura em metal, desenho, costura – e
objetos.
Neste trabalho, o corpo – em autorretratos – perscruta a entranha da
terra, as gargantas; o corpo experiencia o peso e a profundidade: o medo. A
obra narra sobre o desejo de deslocamento e liberdade; representa o corpo
que se lia a fios, movendo-se no espaço do desenho em busca de frestas por
onde esgueirar-se. Liames Atlas/Sísifo narra sobre o peso e a leveza, sobre
conter e libertar. Trata do corpo que experimenta – e vence – [o medo] a
topografia dos abismos.
Ao contrário do livro de artista Liames I, apresentado anteriormente,
onde a busca entre brumas é pelo horizonte, em Liames Atlas/Sísifo a
imersão/emersão é no/do abismo (fig. 20).
25 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2012. (p. 124) 26 NERURA, Pablo. Se cada dia cai. In: Últimos Poemas (O Mar e os Sinos). Porto Alegre: L&PM, 1999. (p. 55) 27 Na mitologia grega, Sísifo é um mortal castigado a rolar montanha acima uma enorme pedra. Quando já bem avançado o trabalho, a pedra, impelida por força irresistível, rola encosta abaixo. Sísifo, banhado em suor, recomeça o esforço vão. (BULFINCH, Thomas. 2006, p. 260).
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Figura 20. Liames Atlas/Sísifo. Narrativa. Gravura em metal, costura, desenho, objetos. Dimensões variáveis. Adriana Dias. 2013-2014.
A imersão no abismo
O abismo, apresentado na primeira página de Liames Atlas/Sísifo, é
uma imagem recorrente em minha obra, mais pontualmente na série
Paisagens-abismos, realizada entre os anos 1999 e 2002. Nesta série os
abismos foram desenhados em grafites, buril e ponta seca, ora trabalhados
sobre tecido28, ora trabalhados sobre papel. Nestes desenhos, os gestos fortes
delimitam os contornos de gargantas e despenhadeiros, demarcam os
contrastes entre a luz e a sombra. São paisagens como representação – e
reconhecimento – das topografias pelas quais caminhamos.
No processo de feitura das Paisagens-abismos, meu corpo, ao
desenhar, travou um embate com o papel, tratado quase como uma matriz de
metal: sulcado, desgastado, texturizado. O embate foi com a matéria
28 Cambraia pele de ovo colada sobre MDF.
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trabalhada e a paisagem aí descrita foi um estudo das massas e vazios
imaginados nos abismos nunca penetrados (fig. 21).
Figura 21. Imagem da série Paisagem-abismo. Grafites da série H e B e ponta seca sobre cambraia/madeira. 90 cm x180 cm. Adriana Dias, 2002.
A mudança de meu olhar – ou de rumo – sobre a série das
Paisagens-abismos aconteceu entre os anos de 2012 e 2013. Nesse período –
de interações, trocas, conversas e revisitação de obras de artistas consagrados
– senti um novo anseio: pela primeira vez meu olhar quis deixar a superfície
material de meus grafismos-abismos. Veio-me o desejo de adentrar meu
desenho e, ainda que eu seguisse representando-o bidimensionalmente, a
vontade de explorar com meu olhar através da superfície do plano do suporte,
penetrando-o. Nesta experiência de devaneio, foi como se houvesse
descortinado-se uma possibilidade até então não percebida: perpassei a trama
do papel/tecido para perceber a atmosfera dentro do desenho-abismo.
Nas Paisagens-abismo meu desejo – meu devaneio – perscrutou o
espaço, percebendo quais atmosferas eu poderia encontrar nas brechas de luz
e quais densidades e obstáculos eu encontraria nas sombras. Na primeira
sondagem dessa topografia meu olhar era de uma observadora, não de um
personagem.
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Impregnada da experiência do devaneio, realizei um story board,
registrando em imagens e frases ou palavras as percepções sobre aquele
espaço percorrido em pensamento (fig. 22, 23, 24 e 25).
Quatro quadros: Trama do tecido impregnada de grafite. Superfície aveludada. [Ultrapasso a trama] Atmosfera fria, paredes lisas e um pouco brilhantes. Abertura ao fundo. Grafite. Como minas/grafites dispostos do teto ao chão. Chão como depósito de grafite. Liso. Tramas de grafite.
Três quadros: Teto. Parte superior da abertura em forma de ogiva. Como a abertura de um vitral gótico, na forma. Parede em saliências verticais. Brilho de acordo com a incidência de luz.
Dois quadros: Solo inclinado. Paredes luminosas perto da abertura.
45
Dois quadros: Aproximação da janela/abertura. Luz.
Figuras 22, 23, 24 e 25. Story board/estudo: caminhando pelo abismo. Grafite. Caderno de artista. Cada página em tamanho A5. 2012.
Entre devaneios, buscas, leituras e alguns esboços, deparei-me com
Viagem ao centro da Terra, de Júlio Verne. Como seriam as entranhas da terra
segundo seu olhar? Como se sentiriam seus personagens dentre fendas
subterrâneas?
[...] O terreno havia sido violentamente afastado por uma convulsão subterrânea. O maciço terrestre, cedendo a algum poderoso impulso, deslocara-se deixando aquele largo vazio onde os habitantes da Terra penetravam pela primeira vez. (VERNE, 2006, p. 104-105)
Em dado momento da história de Verne, o personagem Axel perde-
se na entranha da Terra. Sem luz, sem referência espacial e quase sem
esperanças, tem impulsos primitivos:
[...] Ergui-me, de braços estendidos, tateando dolorosamente as paredes. Comecei a correr, ao acaso, pelo inextricável labirinto, descendo e correndo através da crosta terrestre, como um habitante das fendas subterrâneas, chamando, gritando, uivando, magoando-me nas saliências rochosas, caindo e voltando a erguer-me [...] (p. 130).
A leitura de Verne nutriu meus pensamentos por semanas. A ficção
infanto-juvenil sugeriu-me imagens de fendas e caminhos por entre maciços
rochosos.
46
O desdobramento das imagens de rochas, fendas, gargantas e
despenhadeiros em Liames Atlas/Sísifo, manifestam ecos e desejos sobre a
imagem e simbologia do abismo. O Dicionário de símbolos de Chevalier e
Gheerbrant (1986, p. 42-43) mostra que em grego como em latim, abismo
significa sem fundo, mundo das alturas e profundidades indefinidas. Guarda
em sua origem o sentido geral de inferno. O abismo intervém em todas as
cosmogonias, como a gênese e o fim da evolução universal; o abismo, como
os monstros mitológicos, engole os seres para cuspi-los transformados.
Chevalier e Gheerbrant pontuam que C. G. Jung incorporou o abismo como
símbolo do arquétipo maternal, carinhosa e terrível e, nos sonhos, “fascinante
ou espantoso, o abismo evocará o imenso e poderoso inconsciente; aparecerá
como um convite a explorar as profundidades da alma, para liberar os
fantasmas e desfazer laços”29.
Liames Atlas/Sísifo
Liames Atlas/Sísifo, retoma e transforma as Paisagens-abismo e traz
consigo o esforço do corpo de Atlas/autorretrato. Atlas/autorretrato, já descrito
na Parte 1 desta dissertação, mostra o corpo que sustenta em equilíbrio o peso
sobre si (fig. 26). Tal qual Atlas, o Titã, sustenta-se estático.
29 C. G. Jung, apud Chevalier e Gheerbrant (1986, p. 42-43). Tradução livre do trecho:
"fascinante o espantoso, el abismo evocará el inmenso y poderoso inconsciente; aparecerá como una invitación a explorar las profundidades del alma, para liberar los fantasmas o deshacer las ataduras".
47
Figura 26. Atlas/autorretrato, in Liames II. Papel vegetal, nanquim e aquarela. Aproximadamente 21 cm x 21 cm. 2012.
Figura 27. Estudo para Atlas/Sísifo. Gravura em metal e costura. Aproximadamente 39 cm x 39 cm. 2013-2014.
Homero apud Albert Camus, em O mito de Sísifo (2012), conta-nos
que Sísifo acorrentou a morte e tratava com leviandade os deuses. Foi
condenado pelos deuses a empurrar incessantemente uma rocha até o alto de
uma montanha que, por seu próprio peso, tornava rolar encosta abaixo. Na
imagem de estudo para Liames Atlas/Sísifo há linhas costuradas à rocha, como
se o peso da rocha estivesse sendo mitigado, sustentado ou içado pelas linhas.
Nesta imagem houve a possibilidade do corpo colocar-se em movimento e
deslocar-se, ainda que ligeiramente, um passo à frente (fig. 27). Tal qual Sísifo,
a figura do corpo em Atlas/Sísifo coloca-se em movimento.
Para Camus30 (p. 122), Sísifo amava a vida e esse é o preço pago
pelas paixões desta Terra. Afirma Camus que os mitos nada nos dizem sobre
Sísifo nos infernos e prossegue:
No caso deste, só vemos todo o esforço de um corpo
tenso ao erguer a pedra enorme, empurrá-la e ajudá-la a
subir uma ladeira cem vezes recomeçada; vemos o rosto
crispado, a bochecha colada contra a pedra, o socorro de
um ombro que recebe a massa coberta de argila, um pé
que a retém, a tensão dos braços, a segurança totalmente
humana de duas mãos cheias de terra. Ao final desse
30 Op. Cit.
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prolongado esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo
tempo sem profundidade, a meta é atingida. Sísifo
contempla então a pedra despencando em alguns
instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que
tornar a subi-la até os picos. E volta à planície. (CAMUS,
2006, p. 122)
Para Albert Camus, Sísifo é o herói absurdo. Afirma que seu mito só
é trágico porque Sísifo é consciente que seu tormento não terá fim e,
justamente por esta consciência, Sísifo é superior ao seu suplício. Para o autor,
Sísifo pensa em seu destino a cada vez que desce a encosta com passos
pesados e regulares e, a clarividência sobre o próprio tormento, é sua vitória:
“Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa” (p. 124).
Camus compara o herói absurdo ao homem absurdo; o instante em
que o homem volta-se para sua vida é o instante em que Sísifo regressa para
sua rocha. Sísifo está sempre em marcha, mas acha que está tudo bem: “Cada
grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite
forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para
encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”31.
Em Liames Atlas/Sísifo ecoam as referências simbólicas sobre a
imagem do abismo e o mito de Sísifo. A sequência narrativa compõe-se por
quatro trechos: Atlas/Sísifo (fig. 28); Desejo de deslocamento (fig. 29), Liames
(fig. 30) e Da Liberdade (fig. 31).
31 Idem.
49
Figura 28. Atlas/Sísifo. Gravura em metal e
costura. Aproximadamente 80 cm x 39 cm.
Figura 29. Desejo de deslocamento.
Gravura em metal, desenho e costura. Aproximadamente 80 cm x 39 cm.
Atlas/Sísifo e Desejo de deslocamento fazem parte da sombra, do
conhecimento das profundezas e do desejo de alçar-se através da fenda que
abre a parede de pedra. As mesmas linhas que parecem içar e mitigar o peso
da rocha sobre as costas de Atlas/Sísifo tensionam-se e mostram o caminho
retilíneo para a saída do abismo.
O corpo-autorretrato vivencia o espaço do abismo representado,
sente seus limites, sustenta-se. Atlas/Sísifo perscruta a profundidade e, apesar
da aparente improbabilidade, coloca-se em movimento. O Sísifo de Homero
sabe-se atado ao seu castigo. Atlas/Sísifo busca uma brecha para esgueirar-
se. Em Desejo de deslocamento o corpo deixa o abismo.
50
Figura 30. Liames. Roldanas, costura e
linha. Dimensões variáveis.
Figura 31. Da liberdade. Desenho e costura.
Aproximadamente 39 cm x 39 cm.
As cordas ou linhas que possibilitam ao corpo-personagem içar-se
do abismo, juntam-se a roldanas e continuam a narratividade em Liames (fig.
30). Neste trecho da história contada por objetos, a sequência narrativa é
intuída, forma-se em pensamento. A primeira polia proporciona movimento e
energia, sustenta fios tensionados, o corpo desloca-se. Na outra polia,
vestígios do esforço; o corpo-personagem desatou-se.
O último trecho da sequencia narrativa, Da liberdade, é leveza e
liberdade.
51
Em Liames
Atlas/Sísifo, enlaçada ao
personagem-autorretrato há
uma tornozeleira. O objeto, do
qual se desprende um feixe de
fios costurados, aparece em
todos os trechos da narrativa.
O uso da tornozeleira pelo
personagem na narrativa é
uma referência ao objeto
Liames (fig. 32), que
confeccionei em couro, cetim e
fios de nylon. A tornozeleira,
feita com minhas medidas, guarda a metáfora do elo, da ligação, entre o ser e
o mundo; entre o indivíduo e todas as coisas com as quais, mesmo
inconscientemente, lia-se.
Na narratividade de Liames Atlas/Sísifo, a tornozeleira de longos fios
costurados, lia simbolicamente o personagem-autorretrato às suas
experiências, às topografias percorridas.
Da sombra para a claridade
A cor em Liames Atlas/Sísifo é o branco e o preto, e as variações de
cinza. Branco, preto e cinza são sensações visuais, isto é, cores, que não
tendem para qualquer matiz. Não são neutras, mas dependem das relações
estabelecidas32.
Na narratividade de Liames Atlas/Sísifo, a cor preta se dá nas
sombras [nas entranhas subterrâneas], a cor branca, na luz. A sequência de
32 Explica Lialian Ried Miller Barros, que a neutralidade do cinza depende do contexto visual observado (2012, p. 50). BARROS, Lilian Ried Miller. Preto e branco: cores sem matiz. In: ___________. A cor inesperada: uma reflexão sobre os usos criativos da cor. São Paulo: 2012.
Figura 32. Liames. Objeto confeccionado em couro, cetim e fios de nylon. Dimensões variáveis.
Adriana Dias. 2012.
52
imagens e objetos vai clareando-se até que, na última imagem, Da liberdade, o
desenho em cinzas ocupa a porção superior do papel, quase todo em branco;
na leveza parece que o corpo caminha no ar, ou sobre matéria sem densidade.
Para Bachelard apud Ferreira (2008, p. 48), sobre a matéria negra,
pressagia-se a brancura; toda nuança clara é o instante de uma esperança, de
uma libertação que repele a escuridão, “a esperança da claridade repele
ativamente o negrume. Em toda parte, em todas as imagens, repercute a
dialética dinâmica do ar e da terra [...]”.
O peso e a leveza de Liames Atlas/Sísifo estão também na
representação da terra, da rocha em oposição – ou equilíbrio? – com o ar.
Em Liames Atlas/Sísifo, uso o desenho, a gravura e os objetos para
projetar realidades e ficções. Tadeu Chiarelli, em A natureza, a natureza do
desenho: anteprojeto de exposição (2007, p. 155), proposta de exposição
sobre a natureza do desenho, estabelece temáticas e grupos de artistas que
trabalham o desenho como linguagem. Em Natureza Invisível [o onírico, o
grotesco, o código, a ação], um dos trechos da proposta expositiva, ele reúne
artistas como Tunga, Marcelo Grassmann, Maria Martins. Sobre estes artistas,
Chiarelli argumenta que "a linha surge nesse núcleo demonstrando "o outro
lado" da objetividade, quando o artista usa esse instrumento para tornar visível
seus medos diante da realidade exterior e interior."
Como sugere Chiarelli, aproprio-me da linha, do desenho – e no
caso de Liames Atlas/Sísifo, também da gravura e dos objetos. Ao colocar-me
em autorretratos em Liames Atlas/Sísifo – e nos demais trabalhos
apresentados nesta dissertação – torno visíveis minhas realidades interiores e
exteriores
53
Parte III
Histórias e Ficções
Desenho/Narrativa: Histórias e ficções da Frei Baraúna (trecho da obra). Interferência-ação na Praça Frei Baraúna, Sorocaba. Desenho e costura sobre tecido. Adriana Dias. 2014. Fotografia de Vanessa Aprá.
54
Parte III
Histórias e ficções
Resta ainda aquele fio que comecei a desenrolar logo ao princípio: a literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver.
Ítalo Calvino33.
O desdobramento em desenho e narrativa que se seguiu aos livros
de artista da série Liames e também à leveza conquistada em Liames
Atlas/Sísifo deu-se numa interferência-ação realizada entre 18 de outubro e 16
de novembro de 2014, Desenho/Narrativa: histórias e ficções da Frei Baraúna,
na Praça Frei Baraúna, em Sorocaba. O trabalho, selecionado a partir de um
edital, fez parte do Projeto de Interferências Artísticas Camada Superficial, com
curadoria de Hector Zamora34.
O Projeto de Interferências Artísticas Camada Superficial foi
divulgado pelo chamamento público POIESIS Nº 03/2014, realizado pela
Poiesis – Organização Social de Cultura. O projeto teve como eixo central o
tema 'Camada Superficial', "que é, por definição, a que tem maior interação
com os elementos externos ao objeto"35, e propunha a ocupação da Praça Frei
Baraúna, por abrigar o Marco Zero da cidade e como "espaço representativo
das transformações formais e simbólicas pelas quais a sociedade sorocabana
passou nas últimas décadas"36.
O desejo de participar deste projeto se deu na constatação de que o
edital dava abertura para projetos de intervenções urbanas: eu poderia ativar
ideias que vinham tomando consistência desde a construção de Liames I e de
um projeto esboçado de interferência com desenho e tecido que eu havia
pensado também para o espaço de uma praça da cidade, a Praça Coronel
33 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (p. 39) 34 Participaram concomitantemente de interferências na Praça Frei Baraúna os artistas Fernando Linberger, Lais Myrrha, Santiago Ribeiro e Wagner Malta Tavares. 35 Edital de chamamento público POIESIS Nº 03/2014, página 1. 36 Idem.
55
Fernando Prestes37. Assim, uma vez lido o edital o projeto fluiu naturalmente e
foi apresentado: a arborizada Praça Frei Baraúna acolheria meu trabalho.
Frei Baraúna
Figura 33. Jardim Público Municipal. Foto de Camilo Lellis. Acervo do Museu Histórico Sorocabano. Sem data38.
O terreno onde se localiza a praça pertencia ao Mosteiro de São
Bento e foi doado ao município em 1864, pelo Frei Baraúna, monge beneditino.
No antigo quintal do mosteiro instalou-se o Largo do Jardim, em 1896. Em
1916 foi implantado no local o Jardim Municipal (fig. 33), que era conhecido
também como Jardim dos Bichos – havia uma preguiça habitando uma enorme
figueira, lago com peixes, viveiros com pássaros – e era ladeado por grades e
37 Projeto de Interferência-ação com tecido, intitulado Olhar Sobre, em que a proposta era desenhar in loco autorretratos de meu olhar que seriam suspensos no entorno da Praça Coronel Fernando Prestes, em Sorocaba. O projeto Olhar Sobre foi exposto no
antigo Ciclo Básico, UNICAMP, em setembro-outubro de 2012. 38 Fotografia disponibilizada como documento de consulta junto ao edital de chamamento público POIESIS Nº 03/2014
56
portões, fabricados em Ipanema39. O jardim foi desativado em 1930 e em 1937
teve início a construção do Fórum, inaugurado em 1941. Do antigo Jardim dos
Bichos não sobrou nada. Calçadas foram redesenhadas, o jardim foi
remodelado, palmeiras imperiais foram plantadas.
Na praça, além do Marco Zero da cidade e do edifício do antigo
Fórum – que há vinte anos é ocupado pela Oficina Cultural Grande Otelo40-,
encontra-se o Obelisco aos Combatentes da Força Expedicionária Brasileira,
inaugurado em 1948 em homenagem aos pracinhas, soldados brasileiros que
participaram da Campanha da Itália (1944-1945), durante a Segunda Guerra
Mundial (fig. 34), e há ainda o Monumento ao Centenário da Igreja
Presbiteriana em Sorocaba (1869-1969).
Nos anos 1990 a praça e a Oficina Cultural Grande Otelo foram
palco do Terra Rasgada41, evento promovido pela Secretaria de Cultura do
Estado, Prefeitura de Sorocaba e SESC, com o objetivo de revelar, pela
arte/cultura, as visões sobre a cidade e sua relação com a população, com
manifestações artísticas como performances, literatura, teatro, dança, artes
visuais e musical42. Visitei o Terra Rasgada nas suas várias edições e lembro-
me da potência do evento, que sempre me impactou positivamente. O edifício
da Oficina Cultural era integralmente tomado pelos artistas visuais da cidade e,
enquanto durava a mostra de artes visuais, aconteciam as várias
manifestações das outras linguagens artísticas, ocupando a escadaria externa
da Grande Otelo e também o espaço da praça. A edição do ano 2000 do Terra
Rasgada reuniu em torno de 400 artistas de Sorocaba e região. A última edição
da mostra, em 2001, já não teve a mesma potência das primeiras edições e o
evento extinguiu-se.
39 Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, fundada em 1810. O edifício da antiga fábrica localiza-se na Floresta Nacional de Ipanema, em Iperó. 40 A Oficina Cultural Grande Otelo é uma das 14 Oficinas Culturais do Estado de São Paulo; realizam atividades gratuitas de formação e difusão cultural em diferentes linguagens artísticas. http://www.oficinasculturais.org.br/# 41 Sorocaba significa Terra Rasgada ou Terra Fendida em língua indígena. 42 Cultura: Secretaria da Cultura promove Projeto 'Terra Rasgada 2000' em Sorocaba. Disponível em , acesso em 31/05/2016.
http://www.oficinasculturais.org.br/
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Figura 34. Praça Frei Baraúna. Vista do Fórum e do Obelisco. Acervo do Museu Histórico Sorocabano. Sem data e sem autoria43.
A Praça Frei Baraúna é cortada ao meio por uma rua, local que às
quintas-feiras recebe uma feira livre. A Interferência-ação Desenho/Narrativa:
Histórias e Ficções da Frei Baraúna ocupou o espaço bem em frente ao edifício
da Oficina Cultural Grande Otelo; entre a obra e o prédio, a Rua Rosália
Speers (fig. 35).
Como é possível apreciar na planta baixa, a praça é bastante
arborizada. Há três anos várias árvores comprom