1102
1

UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR - ubibliorum.ubi.pt³nio Amaral... · Vol. I, Tomo I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, 537ss. 12 Insomn. De insomniis ... VH Vita Hesychii

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

  • 2

  • 3

    UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Faculdade de Artes e Letras

    Departamento de Comunicao e Artes

    MESOMORFOLOGIA DA ACO

    EM ARISTTELES

    Os limites da deciso no limiar da phronesis

    Dissertao para obteno de Doutoramento em Filosofia

    apresentada ao Departamento de Comunicao e Artes

    da Faculdade de Artes e Letras da UBI por

    Jos Antnio Campelo de Sousa Amaral

    sob orientao do

    Professor Doutor Antnio Manuel Martins

    e co-orientao do

    Prof. Doutor Jos Manuel Boavida Santos

    Covilh, 30 Setembro de 2013

  • 4

  • 5

    AGRADECIMENTOS E DEDICATRIA

    semelhana de todas as demais, a presente dissertao envolve na sua

    urdidura um vasto e complexo entrelaamento de influncias. Umas mais directas,

    outras menos. Umas mais patentes, outras nem tanto. Umas mais inevitveis, outras

    nem por isso. Uma coisa certa, qualquer intento de destacar esta ou aquela influncia

    para a sujeitar ao ritual propiciador de um agradecimento depender sempre de um

    exerccio memorialstico enraizado em afinidades interpessoais, cumplicidades

    afectivas, interesses cognitivos e lealdades institucionais. Insinuadas no silncio das

    entrelinhas do texto redigido, todas essas dimenses confluram de uma forma ou de

    outra para a materializao do resultado final e, nesse sentido, seria inglrio o esforo

    de as resgatar a todas do infinito tear onde cada uma se entrelaou em imprevisvel e

    complexa conspirao.

    Nesse inextricvel enredo de vontades, afinidades e compromissos, nunca se

    saber ao certo que sibilino critrio tornar umas influncias mais decisivas do que

    outras. E ainda bem que no, pois justamente graas a essa abissal indeterminao

    que sinto total liberdade de esprito para expressar um reconhecido gesto de gratido

    em dois planos distintos.

    Num plano mais genrico, e dada a impossibilidade de nomear um por um

    todos os visados, comeo por dirigir um prvio agradecimento a uma notvel gerao

    de mestres (como poderia eu esquecer-me deles?) que, em diferentes tempos e de

    diferentes modos, me transmitiram e incutiram uma efusiva predileco humanstica

    pela Cultura Clssica e pela Filosofia Antiga; o mesmo agradecimento gostaria de

    estender de seguida a todos os colegas com quem partilhei em infindveis e acaloradas

    discusses uma entusistica devoo pelas artes e letras ao longo da minha formao

    acadmica; por fim, e porque no?, agradeo a todos os alunos com quem me tenho

    cruzado em variadssimos mbitos lectivos e de quem tenho recebido, mais vezes do

    que as que seria de esperar, o comovente testemunho do irrecusvel poder

    transfigurador da reflexo filosfica e dos textos clssicos da antiguidade.

    Todavia, dado que a apresentao formal da presente tese no pode de modo

    algum ser desligada da investigao que h vrios anos venho realizando no mbito da

    Filosofia Antiga em geral e da tica em particular, quero enderear de forma muito

  • 6

    particular e especfica trs agradecimentos a um conjunto de personalidades pela

    influncia directa que tiveram na gnese, no desenrolar e no desfecho da elaborao

    deste trabalho. Antes de mais, comeo por agradecer ao Professor Antnio Manuel

    Martins, da Universidade de Coimbra, a amvel disponibilidade que desde a primeira

    hora manifestou para proporcionar a orientao e o acompanhamento cientfico da

    presente investigao. A sua atitude solcita e tranquila, sem nunca deixar de ser firme

    e interventiva, deu-me acrescidos motivos de alento e confiana, sobretudo naqueles

    momentos mais crticos em que, submerso em tarefas lectivas e compromissos

    acadmicos, o espao de manobra parecia demasiado estreito e a tarefa a realizar muito

    superior s foras de que dispunha. Todavia, a prontido e o interesse com que sempre

    acudiu s minhas solicitaes nunca me permitiram desanimar perante a ciclpica

    tarefa que enfrentava. Mais do que tudo, agradeo o modo sbio com que me permitiu

    ser eu prprio, sem jamais se demitir das suas funes de orientador exmio e rigoroso,

    designadamente na indicao de bibliografia relevante e na recomendao de opes

    metodolgicas mais viveis e consistentes. Todo o mrito da proposta terica desta

    tese e estou ciente de que algum ter devo-o por inteiro sua orientao; quanto

    aos erros, imprecises e lapsos que nela houver, apenas ao meu demrito e

    incapacidade se devem e, por isso, s a mim devem ser imputados. De seguida, quero

    agradecer ao Professor Joaquim Cerqueira Gonalves, da Universidade de Lisboa, no

    s o testemunho de um sublime magistrio acadmico, mas tambm a provocao de

    uma criativa reflexo filosfica com a qual, de resto, mantenho um tcito e furtivo

    dilogo nas entrelinhas desta dissertao. Foi sob os seus auspcios e graas aos seus

    bons ofcios e diligncias que se plasmou a minha deciso de dar incio investigao

    que culminou na presente dissertao. Convocado pela sua sugestiva concepo

    poitica do ser do mundo e do mundo da vida, aqui lhe presto um mais que justo

    tributo pessoal. Uma palavra de primordial gratido no podia deixar de enderear

    tambm ao Professor Antnio Carreto Fidalgo, actual reitor da Universidade da Beira

    Interior. Um discreto e acurado sentido de integridade, ao qual se aliam elevados

    padres de exigncia pedaggica e cientfica, constituram sempre motivo admirao e

    fonte de inspirao desde a minha formao na Universidade Catlica Portuguesa,

    instituio onde tive o privilgio de ser seu aluno. Grato lhe estou pela indefectvel

    confiana e pelo permanente estmulo e incentivo que mais tarde dele recebi, desta

  • 7

    feita j como jovem docente e investigador da Faculdade de Artes e Letras da

    Universidade da Beira Interior.

    Cingindo-me ao mbito institucional da Universidade da Beira Interior, quero

    dirigir uma agradecida palavra de estima e considerao ao Prof. Doutor Jos Manuel

    Santos, responsvel pela co-orientao desta dissertao na qualidade de Director do

    Instituto de Filosofia Prtica da referida Universidade. A esse agradecimento

    institucional e pessoal associo igualmente o Prof. Doutor Joaquim Paulo Serra,

    Presidente da Faculdade de Artes e Letras, bem como a Prof. Doutora Anabela

    Gradim, Presidente Departamento de Comunicao e Artes, ambos incansveis em

    decises administrativas cujos ns foi sendo necessrio desatar, sem esquecer o Prof.

    Doutor Jos Silva Rosa, amigo e compagnon de route que muito prezo e ao qual me

    unem momentos de assdua deambulao filosfica e uma maturada cumplicidade

    intelectual.

    Uma palavra de sincero reconhecimento no poderia deixar de dirigir a um

    respeitvel e reputado conjunto de especialistas quer da filosofia antiga em geral, quer

    da aristotlica em particular, com quem tive a sorte e o privilgio de me cruzar

    pessoalmente em Seminrios e Colquios Internacionais e de cuja voz autorizada

    recebi no s inestimveis incentivos, mas tambm pertinentes observaes crticas, a

    saber Antnio Pedro Mesquita da Universidade de Lisboa, Toms Calvo Martinez da

    Universidad Complutense de Madrid, Marco Zingano da Universidade de So Paulo,

    Cristopher Rowe da Durham University, Carlo Natali da Universit Ca'Foscari di

    Venezia e Alonso Tordesillas da Universit d'Aix-Marseille. A todos eles, sem

    excepo, aqui deixo uma nota de sentido apreo e reconhecimento.

    Um agradecimento final gostaria de deixar aqui bem expresso aos diversos

    Centros de Estudos, Unidades de I&D e Bibliotecas onde pesquisei bibliografia e

    desenvolvi parte substancial da investigao plasmada na presente tese: dessa lista

    fazem parte o Instituto de Filosofia Prtica Universidade da Beira Interior, a Unidade

    de I&D Linguagem, Interpretao e Filosofia da Universidade de Coimbra, o Gabinete

    de Estudos Polticos e o Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira

    (entretanto extintos ou refundios) da Universidade Catlica Portuguesa, a Biblioteca

    Nacional, a Biblioteca Central da Universidade da Beira Interior e a Biblioteca

    Universitria Joo Paulo II da Universidade Catlica Portuguesa.

  • 8

    Na pessoa do Prof. Pe Manuel Gomes Barbosa, docente de Metodologia do

    Trabalho Cientfico aquando da minha formao acadmica na Universidade Catlica

    Portuguesa, gostaria de deixar ao Instituto Religioso dos Dehonianos uma nota de

    grato e profundo reconhecimento pelo alojamento e meios logsticos proporcionados

    em Lisboa e em Coimbra durante o perodo de investigao e de elaborao da

    dissertao.

    Last but not least,

    minha esposa Margarida

    (paciente Penlope tecendo o fio dos dias)

    e aos meus filhos Antnio e Madalena

    (dias-a-fio adiando o eterno retorno das ausncias paternas)

    dedico com amor os frutos desta interminvel demanda.

  • 9

    ,

    ...ele que claramente provou com a prpria vida e por via das palavras

    de que modo o homem se torna simultaneamente bom e feliz.

    [ARISTTELES, Frgm. 650 R apud OLYMPIODORUS in Platonis Gorgiam Commentaria, 41.9]

  • 10

  • 11

    CRITRIOS METODOLGICOS, SIGLAS E ABREVIATURAS

    As siglas e abreviaturas empregues na presente dissertao reportam-se, em

    primeira linha, s obras atribudas a Aristteles quer se trate, quanto sua autoria, de

    produo autntica, duvidosa, pseudepigrfica ou apcrifa, quer se trate, quanto sua

    conservao, de escritos subsistentes (em estado integral ou fragmentrio), conhecidos

    atravs de testemunhos antigos ou tidos como perdidos.1 Todos os ttulos mencionados

    no corpo do texto sero registados, in extensu, na verso latina que a tradio

    filosfica cunhou e vulgarizou (e que no vemos motivo realmente ponderoso para

    rejeitar), tal como se apresenta na tabela que se segue:

    SIGLA/ABREVIATURA TTULO OBRA Alx. Alexander sive De colonis Amt. Amatorius APo. Analytica Posteriora APr. Analytica Priora Ath. Atheniensium respublica Aud. De audilibus Bn. De bono Cael. De caelo Cat. Categoriae Col. De coloribus Cv. Convivium De an. De anima DivSomn. De divinatione per somnia Dv. De divitiis EE Ethica Eudemia EN Ethica Nicomachea Eud. Eudemus sive De anima GA De generatione animalium GC De generatione et corruptione Grl. De rhetorica sive Gryllos HA Historia animalium IA De incessu animalium Id. De ideis Ins. De institutione

    1 Adoptamos a classificao perfilhada por Antnio Pedro Mesquita no Conspecto geral da obra de Aristteles in Introduo Geral s Obras Completas de Aristteles, coord. Antnio P. MESQUITA, Vol. I, Tomo I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, 537ss.

  • 12

    Insomn. De insomniis Int. De interpretatione Iust. De iustitia Juv. De juventute et senectute; De vita et morte LI De lineis insecabilis Long. De longaevitate et brevitate vitae MA De motu animalium Mech. Mechanica Mem. De memoria et reminiscentia Metaph. Metaphysica Mete. Meteorologica Mir. De mirabilibus auscultationibus MM Magna Moralia Mn. De monarchia Mu. De mundo Mx. Menexenus MXG De Melisso Xenophane Gorgia Nb. De nobilitate Nrt. Nerinthus Oec. Oeconomica PA De partibus animalium Ph. Physica Phgn. Physiognomonica Phil. De philosophia Pl. De plantis Plt. Politicus Po. Poetica Pol. Politica Pr. Problemata Prc. De precatione Prt. Protrepticus Pt. De poetis Resp. De respiratione Rh. Rhetorica RhAl. Rhetorica ad Alexandrum SE Sophistici elenchi Sens. De sensu et sensibilibus SomnVig. De somno et vigilia Sph. Sophista Spir. De spiritu Top. Topica Vent. Ventorum situs et cognomina Vl. De voluptate VV De virtutibus et vitiis

  • 13

    No que concerne aos dados coligidos nas antigas Vitae Aristotelis de que nos

    haveremos de socorrer em diversos passos e ocasies, optmos por incluir, para alm

    da respectiva autoria, a verso lingustica, bem como a fonte de onde cada uma

    provm matricialmente, de acordo com o que na tabela abaixo se apresenta:

    SIGLA AUTORIA VERSO FONTE

    DL Digenes Larcio

    grega

    Hermipo de Esmirna > trad. peripattica > escola grega do Perpato

    VH Vita Hesychii 2 grega idem

    VM Vita Marciana 3

    greco-latina

    VV Vita Vulgata 4 greco-latina VLasc. Vita Lascaris 5 greco-latina VL Vita Latina 6 greco-latina Ptolemeu [o Obscuro] VSI Vita Syriaca I 7 siraca > trad. neoplatnica VSII Vita Syriaca II siraca > escola siraca de Jmblico

    al-Nadim Ibn al-Nadim rabe Mubashir al-Mubashir rabe al-Qifti Ibn al-Qifti rabe Usaibia Ibn Abi Usaibia rabe

    Por outro lado, mantendo uniforme o critrio utilizado para o corpus

    aristotelicum, recorrer-se- utilizao de siglas e abreviaturas em latim para o

    conjunto da obra platnica, dada a persistente e matizada influncia que esta exerce no

    pensamento do Estagirita, e, nesse sentido, de a ela nos reportarmos assiduamente na

    presente dissertao. Segue-se uma tabela onde se explicita esse intento.

    2 Esta verso foi reproduzida pela Suda e editada por Gilles Mnage, em 1663, motivo pelo qual tambm conhecida por Vita Menagiana. 3 Verso proveniente do manuscrito Marc. gr. 257 (= texto colectivo da escola alexandrina). 4 Verso atribuda ao crculo neoplatnico alexandrino, encabeado por Amnio Hermeu e, por isso mesmo, tambm designada por Vita Ammoniana. 5 Verso acrescentada por um autor do mesmo nome como apndice VV, a partir de trs excertos da VM. 6 Verso de autoria desconhecida, traduzida directamente da VM. 7 Verso de autoria desconhecida e data indeterminada, tal como VSII.

  • 14

    SIGLA/ABREVIATURA TLULO OBRA Alc.I Alcibiades I Ap. Apologia Socratis Chrm. Charmides Cra. Cratylus Cri. Crito Crt. Critias Def. Definitiones Ep. Epistulae Euthd. Euthydemus Euthphr. Euthyphro Grg. Gorgias Hipp. Hipparchus HpMa. Hippias maior HpMi. Hippias minor La. Laches Lg. Leges Ly. Lysis Men. Menon Mx. Menexenus Phd. Phaedo Phdr. Phaedro Phlb. Philebus Plt. Politicus Prm. Parmenides Prt. Protagoras R. Res publica Smp. Symposium Sph. Sophista Tht. Theaetetus Ti. Timaeus

    Assim sendo, cada referncia directa ao corpus aristotelicum implicar sempre

    o registo do excerto, em original grego, no corpo do texto da dissertao, bem como a

    respectiva traduo verncula em nota de rodap, no termo da qual constar a

    indicao dos seguintes elementos: autoria da obra, sigla ou abreviao latina do ttulo

    e cota8.

    8 Cf. MESQUITA Antnio P., Introduo Geral s Obras Completas de Aristteles, op.cit., 27-28. Relativamente aos casos omissos, seguimos as opes editoriais de Jonathan Barnes em The Complete Works of Aristotle. The Revised Oxford Translation, I-II, ed. Jonathan BARNES et al., Princeton: Princeton University Press, 1995

  • 15

    Fora do mbito da antiga tradio filosfica greco-latina, todas as referncias

    directas de fontes e autores primrios de filosofia exibidas em caixa de citao no

    corpo textual da dissertao sero vertidas na lngua de origem sem traduo adicional,

    excepo feita aos textos em alemo, cuja lngua no dominamos: nesse caso,

    recorreremos a tradues caucionadas por edies de indiscutvel valia cientfica,

    exibindo sempre em nota de rodap a respectiva verso no original alemo, sempre

    que se justificar.

    Conceitos isolados, expresses compactas ou segmentos textuais que se

    apresentem com irrecusvel pertinncia terica, mas cuja extenso no aconselha o

    recurso a uma caixa de citao, comparecero traduzidos entre aspas e imediatamente

    secundados pela verso original em itlico no interior de parntesis rectos.9

    Sendo certo que, como profere Italo Calvino em Perch leggere i classici,

    classico un libro che non ha mai finito di dire quel che ha da dire10, impe-se desde

    j uma clarificao hermenutica: as de notas de rodap que profusamente se

    disseminam ao longo da dissertao nem sempre visam corroborar ou litigar com a

    nossa perspectiva terica, salvo indicao expressa em contrrio, mas to-s

    proporcionar a expresso multifacetada das infinitas formas de interpretao possvel

    que uma obra clssica como a de Aristteles necessariamente convoca.

    Enfim, uma derradeira palavra se impe para expressar publicamente um

    imperativo de conscincia cultural: devido ao patrimnio humanstico e clssico

    herdado na minha formao filosfica e ao thos greco-latino em que se domicilia o

    meu linguajar materno, informo que a matriz textual da presente dissertao no segue

    as normas lingusticas estipuladas pelo Acordo Ortogrfico em fase transitria de

    aplicao.

    9 Para a utilizao, contextualizao e clarificao de sentenas e expresses proverbiais greco-latinas revelou-se inestimvel o recurso intensivo ao Dizionario delle sentenze latine e greche, ed. Renzo TOSI, Milano: Rizzoli, 1991 10 CALVINO Italo, Perch leggere i classici, Milano: Arnoldo Mondadori, 1991, 13

  • 16

  • 17

    Rembrandt Harmenszoon van Rijn, Aristotle Before the Bust of Homer

    [Oil on canvas (1653)]: New York, The Metropolitan Museum of Art

  • 18

    Se existem pinturas de Rembrandt que pictoricamente melhor materializam o

    ofcio filosfico transfigurado em obra viva, o Retrato de Aristteles perante o busto

    de Homero , sem sombra dvida, uma delas. Desafiando com mestria as leis impostas

    arte pela cor local e pelo ar do tempo, o pintor do sculo de ouro holands apresenta-

    nos um Aristteles trajado de acordo com as convenes artsticas do barroco. No nos

    deteremos nas razes que motivam essa transposio anacrnica, embora seja legtimo

    pensar que nela se insinua uma subliminar aspirao do artista em situar-se no

    horizonte das suas referncias culturais atravs da mediao transfiguradora da

    literatura e da filosofia clssicas. Importa assim, antes de mais, fixar a nossa ateno

    no efeito apelativo, to real e quase tangvel, da pose meditativa do filsofo grego.

    Completamente absorto numa espcie de demanda reflexiva, a mo direita repousa

    sobre o busto de Homero, como que abrindo o limiar mediacional de uma odisseia cuja

    travessia procura anular a distncia entre a palavra mtica do aedo e a palavra logica

    do filsofo.11 A mensagem pictrica aflora simples e directa: a filosofia no se inicia

    ex nihilo, mas enraza-se no subsolo originrio e radical da linguagem po(i)tica.

    Curioso verificar que, apesar do vnculo tctil entre a mo do filsofo e a cabea do

    poeta, o olhar do Estagirita no se direcciona focalmente para este, em bom rigor nem

    sequer parece olhar para ele; todavia, quem ousaria negar que nesse desencontro visual

    sobrevive ainda um olhar-por-ele que constitui paradoxalmente a forma mais fiel e

    genuna de olhar-para-alm-dele, muito possivelmente para a crepuscular verdade do 11 Sobre esse despertar logico a partir no fundo mtico da tradio lrica, pica e trgica, cf. as penetrantes anlises de Bruno Snell na obra A descoberta do esprito, designadamente os captulos que dedica 1. concepo antropolgica em Homero, 2. ao tmido assomo de uma teologia em Hesodo de Ascra, 3. emancipao da personalidade e da autoconscincia na lrica arcaica [quer na sua comunitria vertente coral (representada por lcman de Esparta, Estescoro de Himera, bico de Rgio e Simnides de Ceos, inspirando poetas como Johann Goethe, Friedrich Hlderlin e Rainer Maria Rilke), quer no seu solipsstico recorte mondico (materializado em Safo e Alceu de Lesbos e em Anacreonte de Teos), quer nos respectivos pontos de contacto com o impressionismo psicolgico de Baqulides de Ceos e Pndaro de Cinocfalos], 4. transfigurao dramatrgica da mitografia na tragdia (assumida por squilo de Elusis e por Sfocles e Eurpides de Atenas), 5. gradual autonomizao da conscincia histrica (induzida por Herdoto de Halicarnasso e Tucdides de Atenas) e do pensamento cientfico (j latente no esforo de sistematizao genealgico-causalstica de Hesodo de Ascra, e paulatinamente depurado na reflexo conceptualmente mais formalizada dos fisilogos jnios de Mileto, pitagricos e atomistas), e finalmente 6. consolidao literrio-filosfica da reflexo moral (aspecto que nos interessa de sobremaneira, pelas preciosas indicaes para a compreenso da gnese e das linhas de desenvolvimento da tica grega at ao seu momento aristotlico de sistematizao problematolgica, crtica, metodolgica e conceptual): cf. SNELL Bruno, A descoberta do esprito [= Die Entdeckung des Geistes. Studien zur Entstehung des europischen Denkens bei dei Griechen, Hamburg: Claassen u. Goverts, 1948], trad. Artur MORO, Lisboa: Edies 70, 1992, 19-46; 67-120; 139-158; 195-246; 285-304

  • 19

    ser? Por outro lado, a mo esquerda, tranquilamente amparada na cintura, toca noutro

    artefacto, desta feita um cordo do qual se pende um medalho com a efgie do seu

    pupilo Alexandre Magno, fervoroso leitor da Ilada de Homero. Nesta trplice

    representao da inteligibilidade potica, da racionalidade filosfica e da

    discursividade poltica uma nova mediao se desvela: num plano histrico, a que

    envolve o aristotelismo no desgnio de entrelaar dois classicismos, o helnico e o

    helenstico; num plano hermenutico, a que investe a filosofia da tarefa de coadunar a

    responsabilidade potica pelo discurso-em-aco com a responsabilidade poltica pela

    aco-do-discurso. O cenrio envolvente reflecte uma atmosfera quase intimista e

    acolhedora, certo, mas tambm algo ambivalente na sua discreta ironia: quase

    imperceptveis, por detrs de uma cortina, empilham-se uma srie de volumes num

    espesso mutismo e anonimato, contrastando de imediato com a tranquila afabilidade de

    uma presena viva que nos parece cativar mais pelo charme de uma sabedoria vivida

    do que pela prospia de uma erudio acumulada. Por tudo isto, fazem para ns pleno

    sentido as palavras de Joaquim Cerqueira Gonalves para referir que na arte que

    que situamos o plo de unificao da racionalidade de todos os saberes. Tal acerto e

    opo () representam, contudo, uma resposta parcial, enquanto no for esclarecido o

    que se entende por arte, tarefa, alis, de contornos escarpados. No entanto, sem iludir

    essa polissemia do vocbulo arte, caracterizaramos a racionalidade da aco

    artstica pela intencionalidade de levar a efeito o mximo de sentido,

    considerando a arte como aco constitutiva de elaborao do mundo. () Para

    atenuar as consequncias negativas dessa mesma polissemia, acrescenta-se que no se

    confunde, aqui, arte com esttica, estando esta voltada mais para a contemplao do

    que para a elaborao da obra, no intuito de usufruir do sentimento provocado pela

    beleza desta. Com a arte, queremos denotar simultaneamente a actividade de

    realizao de uma obra e o seu resultado, sem considerar, para este efeito, o referido

    sentimento. A aco artstica, de cuja intencionalidade no pode ser dissociada a

    obra produzida, aqui assumida na sua fundamental globalidade: entra nela a

    integralidade do ser humano () e tambm a relao constitutiva com o

    mundo, afastando-se assim qualquer horizonte de exclusiva feio antropolgica. Por

  • 20

    idntica razo, considera-se que a obra de arte no modifica somente o seu autor,

    mediante o processo da aco, mas tambm e ao mesmo tempo o mundo.12

    12 GONALVES Joaquim C., O Estatuto das Humanidades. O regresso s artes, in Itinerncias de Escrita, vol. I: Cultura e Linguagem, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011, 553-554; destacado nosso.

  • 21

    PRLOGO "Arte Peripotica"

    Aristteles, visita da casa de minha av, no acharia esquisita esta forma de estar s esta maneira de ser contra a maneira do tempo esta maneira de ver o que o tempo tem por dentro.

    Aristteles diria entre dois goles de ch

    que o melhor ainda ser deixar o tempo onde est

    p-lo de perto no tema e de parte na poesia

    para manter o poema dentro da ordem do dia.

    Aristteles, visita da casa da minha av, no acharia esquisita esta forma de estar s. Ele sabia que o poeta depois de tudo inventado depois de tudo previsto de tudo vistoriado teria de fazer isto para no continuar com o que j estava acabado teria de ser presente no futuro antecipado no profeta no vidente mas ao bem temperado cachorro ferrando o dente na canela do passado adaga cravando a ponta no corao do sentido palavra osso furando pele de co perseguido.

    Aristteles, visita da casa da minha av, no acharia esquisita

    esta forma de estar s esta maneira de riso

    que a mais original forma de se ter juzo

    e ser poeta actual. Aristteles, visita da casa da minha av, tambm diria antes s do que mal acompanhado antes morto emparedado em muro de pedra e cal aonde no entre bicho que no seja essencial evaso da palavra deste silncio mortal. [ARY DOS SANTOS Jos, Adereos, Endereos, Lisboa, 1965]

  • 22

    Estar janela ou vir porta, no para pr a cabea de fora para ver quem passa

    ou sair para ver o que se passa, mas para, no parapeito da janela ou soleira da porta,

    receber e acolher quem chega na inesperada epifania da sua presena. Assim so os

    clssicos. Cada visita sua torna-nos novos: l-los lermo-nos no s no horizonte

    das determinaes do que j somos, mas, sobretudo, no risco das possibilidades

    daquilo em que ainda nos podemos tornar...

    , [muitas so as

    coisas admirveis, mas nada mais admirvel do que o homem]: normalmente

    proclamada como signo da grandeza humana, a expresso constitui o incio do

    estsimo recitado pelo coro ao entrar em cena na pea Antigona de Sfocles de Atenas

    com o intuito de exaltar o carcter radicalmente ambguo das conquistas do homem.13

    Tal ambiguidade dada pelo emprego polissmico de deinw, termo que, em grego,

    est conotado com um sentido demirgico e poitico de habilidade, podendo,

    todavia, significar tambm, em pauta semntica diametralmente bipolarizada,

    espantoso e terrvel, admirvel e tremendo, respeitvel e indigno. A

    ambivalncia especialmente apreciada em registo tragediogrfico por aludir tanto s

    proezas do homem capaz de cultivar campos e sulcar mares, como sua falta de

    jeito para se conter num limiar de possibilidades que tenta porfiadamente expandir e

    superar, ou para lidar com uma srie de limitaes que tenta em vo superar, a no ser

    arriscando o lance crtico de um excesso, desmesura, ou exorbitncia []. Na

    ambiguidade dessa infinita trama que tanto pode ser rede (web) salvfica como teia

    (net) mortfera importa no necessariamente o que decidir, mas antes como

    decidir.

    Qual o significado prtico de uma deciso cujo sentido poitico se declina

    tangencialmente no que fao, no modo como fao e no que por mim e de mim fao?

    De uma visita to (in)esperada como a de Aristteles no h que esperar um orculo

    para obter resultados infalveis, solues estveis e respostas definitivas, outrossim

    apenas o que se espera de um clssico: uma arte de indagar, inquirir e questionar que

    transforma cada partida em promessa de novas chegadas e cada chegada em apelo a

    novas partidas. Por isso, parecem-nos francamente oportunas e certeiras as palavras de

    13 Cf. SOPHOCLES, Antigona, vv. 332 ss.

  • 23

    Antnio Pedro Mesquita na sua Introduo recente edio crtica portuguesa das

    Obras Completas de Aristteles: a antiguidade do que foi novo um garante de que a

    sua novidade nunca se perca, se formos capazes de o trazer renovadamente superfcie

    no que a prpria tradio tem de vinculao origem, mesmo, ou porventura

    principalmente, nos usos tornados para si prprio opacos que inconscientemente a

    recordam e celebram.14

    14 MESQUITA Antnio Pedro, Introduo Geral s Obras Completas de Aristteles, op. cit., 472

  • 24

    INTRODUO Plano prospectivo de investigao e status quaestionis

    O que significa decidir? Melhor dito: o que significa tomar ou fazer uma

    deciso no acto consciente de a decidir tomar ou fazer? Pesando os prs e os

    contras para encontrar o balanceamento certo de uma escolha? Mantendo a cabea

    fria para avaliar os riscos inerentes possibilidade de sucesso ou fracasso de uma

    opo? Neutralizando a torrente impulsiva das paixes e das emoes para melhor

    escutar a voz da conscincia, seguir os ditames da razo, ou decifrar a codificao

    electroqumica da estrutura neuronal, consoante a perspectiva adoptada? E se a

    configurao tica do acto decisionrio no sendo apenas isso, mas, pressupondo e

    incluindo isso, for mais do que isso, a saber uma experincia discursiva da aco na

    sua irrecusvel epifania?

    Estamos em crer que, dada a sua peculiar propenso para conjugar subtileza

    heurstica, consistncia sistematizadora e densidade reflexiva, a filosofia prtica do

    Estagirita encontra-se conceptualmente dotada para cartografar o territrio e o

    epicentro desse radical questionamento. Nesse sentido, sendo certo que o esforo

    histrico-crtico de estabilizao do texto aristotlico aliado ao consenso da respectiva

    tradio exegtica em torno de um vasto leque de temticas bem delimitadas e

    articuladas impem a toda a interpretao adveniente uma base estvel, de modo

    algum cederemos trgica insolncia [] de distorcer definies ou subverter

    distines como as que inerem, por exemplo, s noes de arte [], produo

    [], aco [] e especulao []. Todavia, pese embora o recorte

    doutrinalmente bem tipificado e atestado da referida conceptualizao no corpus

    aristotelicum, no pudemos nem quisemos ficar indiferentes a trs hipteses de

    trabalho que, no mnimo, nos convidam a repensar a aparente rigidez que parece

    encapsular cada um desses domnios:

    - a primeira tem a ver com a paradoxal constatao de que a vida

    contemplativa [ ] encerra na sua mxima abrangncia uma

  • 25

    forma de aco que aponta ao cerne ontolgico da verdade prtica [

    ];

    - a segunda diz respeito forma de domiciliar analogicamente a infra-estrutura

    conceptual da racionalidade prtica [ ] no domnio das

    artes [], sejam elas produtivas ou criativas;

    - a terceira joga-se na conjectural sugesto de que o recorte prudencial da

    deliberao [] instaura mediacionalmente um limiar decisionrio

    cuja modelao designadamente em situaes crticas de aplicao

    normativa, discernimento avaliativo e determinao jurisdicional releva mais

    da habilidade criativa do arteso manual [] do que

    propriamente da preciso lgica da racionalidade notica ou apodctica.

    Em abono do nosso desgnio terico, lanamos mo das palavras de John Wall

    para assumir que contemporary Aristotelian perspectives on phronesis illustrate ()

    strategies for distinguishing it from, even while in successively deeper ways relating it

    to, the inventive, making, creative activity of poetics. Even [Joseph] Dunne, who

    retains the distinction most sharply, suggests in contrast with Aristotle that poetic

    rationality may be itself a form () of morality (). MacIntyre [After virtue, 1984]

    and Nussbaum [The fragility of goodness, 2001] go even further beyond Aristotles

    distinction by connecting phronesis with certain poetic dimensions of morality either

    implicitly as forming moral ends or explicitly as a vital moral means. Despite these

    important possible qualifications on Aristotles distinction, however, none of these

    perspectives seriously entertains the possibility which would question Aristotles

    distinction fundamentally that phronesis may be poetic in itself.15

    Assumindo o excerto supracitado como verdadeiramente inovador no actual

    panorama da investigao em torno da filosofia prtica aristotlica e, por via disso,

    tomando o pulso ao acervo dos estudos que constituem na sua interaco terica o que

    se poder designar de status quaestionis, estamos em crer que a tese de uma

    15 WALL John, Phronesis, Poetics and Moral Creativity, in Ethical Theory and Moral Practice, 6 (2003) 2, 323: destacado nosso; a posio sustentada pelo autor precedida de um estudo mais abrangente, mas nem por isso menos provocador, onde as mesmas teses so reexpostas num contexto historicamente mais enriquecido: reportamo-nos obviamente a Idem, Phronesis as Poetic: Moral Creativity in Contemporary Aristotelianism, in Review of Metaphysics, 59 (1995) 2, 313-331

  • 26

    transformao teleolgica da virtude [] em deliberao ponderada

    [] com base na configurao mediacional [] da prudncia

    [] regida pela recta razo [ ] poderia ser levada um pouco mais

    longe. Em que sentido? Mostrando at que ponto a dimenso poitica assinala

    racionalidade prtica no uma presena intrusiva, confundvel ou sobreponvel ao

    domnio especfico da aco realizada, mas antes a aproximao tangencial de uma

    percia experienciada e vivida no pice da qual a deciso exercida na esfera

    contingente das situaes-limite exige no uma proclamao abstracta e

    generalista de princpios ou uma aplicao mecnica e rotineira de

    procedimentos, mas uma modelao prudencial da forma universal ou genrica do

    princpio normativo na matria indeterminada de cada caso particular.

    Ora, desde que Pierre Aubenque assiste, em 1963, auspiciosa publicao da

    sua obra La prudence chez Aristote16, at ao momento em que Paul Ricoeur aceita o

    desafio de dedicar um estudo la gloire de la phronesis17, sem esquecer, no encalo

    desse interldio, os incisivos reexames da questo assumidos quer por Carlo Natali

    num artigo intitulado La phronesis dAristote dans la dernire dcennie du XXe

    sicle18, quer, mais recentemente, por Olav Eikeland numa meticulosa investigao

    de fundo intitulada The Ways of Aristotle: Aristotelian Phronesis, Aristotelian

    Philosophy of Dialogue, and Action Research19, so praticamente incontveis as

    incurses sobre uma temtica cuja abordagem receber decisivo impulso histrico

    graas ao advento de uma espcie de renascimento da filosofia aristotlica que, sob o

    revivalista designativo de neo-aristotelismo, comear a germinar no panorama

    filosfico alemo do incio dos idos anos 70 sob o signo de uma reabilitao da

    16 AUBENQUE Pierre, La prudence chez Aristote, Paris: PUF, 1997 (red. Quadrigue) 17 RICOEUR Paul, la gloire de la phronsis (thique Nicomaque, Livre VI), in CHATEAU Jean-Yves (org.), La vrit pratique. Aristote: thique Nicomaque, Livre VI, Paris: Vrin, 1997, 13-22 18 NATALI Carlo, La phronesis dAristote dans la dernire dcennie du XXe sicle, in Lexcellence de la vie. Sur L "thique Nicomaque" et L"hique Eudme" dAristote, dir. par Gilbert ROMEYER DERBEY, Paris: Vrin, 2002, 178-194 19 EIKELAND Olav, The Ways of Aristotle: Aristotelian Phronesis, Aristotelian Philosophy of Dialogue, and Action Research, Bern [etc.]: Peter Lang, 2008

  • 27

    filosofia prtica [Rehabilitierung der praktischen Philosophie]20. Assim, estudos como

    os de Pierre Aubenque [La place de lthique Nicomaque dans la discussion

    contemporaine sur lthique]21, Enrico Berti [La philosophie pratique dAristote et sa

    rhabilitation rcente, bem como Aristotele nel Novecento]22, Franco Volpi

    [Rhabilitation de la philosophie pratique et no-aristotlisme]23, Sergio Cremaschi

    [Neo-Aristotelian trends in contemporary ethics]24, Robert Sharples [Whose Aristotle?

    Whose Aristotelianism?]25, sem esquecer Sarah Broadie [Aristotle and Contemporary

    Ethics] e os estudos pioneiros de Gertrude Elizabeth Anscombe [v.g. Modern moral

    philosophy]26, constituem etapas e marcos de uma travessia a que no nos poderamos

    furtar para perceber os contornos de uma contextualizao to vasta e complexa.

    nesse contexto que, emergindo no panorama portugus da produo

    filosfica sobre Aristteles27, se nos afiguram incontornveis as leituras das obras A

    20 RIEDEL Manfried, Rehabilitierung der praktischen Philosophie, 2 Bdd., Freiburg: Rombach, 1972-1974 21 AUBENQUE Pierre, La place de lthique Nicomaque dans la discussion contemporaine sur lthique, in Lexcellence de la vie. L "thique Nicomaque" et L"hique Eudme" dAristote, dir. par Gilbert ROMEYER DERBEY, Paris: Vrin, 2002, 397-407 22 Vide respectivamente BERTI Enrico, La philosophie pratique dAristote et sa rhabilitation rcente, in Revue de Mtaphysique et de Morale 95 (1990) 2, 249-266 ; Ibid., Aristotele nel Novecento, Roma Bari: Laterza, 1992 [= Aristteles no sculo XX, trad. D.D. MACEDO, So Paulo: Loyola, 1997] 23 VOLPI Franco, Rhabilitation de la philosophie pratique et no-aristotlisme, in Aristote Politique. Etudes sur la Politique dAristote, dir. par Pierre AUBENQUE, Paris: PUF, 1993, 461-484 [reed. Idem, Rehabilitacin de la filosofa prctica y Neo-aristotelismo, trad. Alejandro Vigo, in Anuario Filosfico 32 (1999) 315-342] 24 CREMASCHI Sergio, Neo-Aristotelian trends in contemporary ethics [in portuguese = Tendncias aristotlicas na tica actual, trad. Manfredo OLIVEIRA], in Correntes fundamentais da tica contempornea, org. Menfredo OLIVEIRA, Petrpolis, RJ: Vozes, 2000, 9-30 25 SHARPLES Robert (ed.), Whose Aristotle? Whose Aristotelianism?, Aldershot: Ashgate, 2001 26 Vide respectivamente BROADIE Sarah, Aristotle and Contemporary Ethics, in KRAUT Richard (ed.), The Blackwell Guide to Aristotle's Nicomachean Ethics, Malden (MA): Blackwell Publishing, 2006, 342-361 e ANSCOMBE Gertrude, Modern moral philosophy, in Philosophy 33 (1958) 1-19 [sobre o primordial contributo histrico de Gertrude Anscombe, vide infra 545, not. 1211]. 27 Exceptuando o deliberado e estratgico impulso escolar dos conimbricenses [vide MARTINS Antnio M., Conimbricenses, In Logos: Enciclopdia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 1, Lisboa-So Paulo: Editorial Verbo, 1989, col. 1112-1126], convm no ignorar que a superior, ilustrada e erudita cultura portuguesa nutriu desde sempre uma relao tensa com o pensamento aristotlico: cf. RIBEIRO lvaro, Aristteles e a tradio portuguesa, in Filosofia (Lisboa) 2 (1955) 34-44

  • 28

    aret como possibilidade extrema do humano: fenomenologia da prxis em Plato e

    Aristteles, de Antnio Caeiro, bem como Introduo Geral edio crtica

    portuguesa das Obras Completas de Aristteles, de Antnio Pedro Mesquita28, neste

    caso particular porque o autor oferece atravs dela um balano actualizado e criterioso

    de algumas questes controversas, mormente as ligadas seja validao das fontes

    literrias e doxogrficas e fixao da crono-biografia do Estagirita [vejam-se os

    captulos que formam a parte intitulada Breve conspecto da biografia aristotlica (41-

    123)], seja ao esclarecimento aturado de alguns conceitos aristotlicos cuja traduo e

    interpretao suscita ainda hoje acirrada discusso [veja-se o captulo Dificuldades

    particulares do vocabulrio aristotlico (467-534)], seja perspectivao dos mltiplos

    e intensos debates em torno da histria no s da formao textual e da estabilizao

    editorial da obra do pensador macednio [vejam-se os captulos O corpus aristotlico

    (207-339) e Problemas de cronologia (439-463)], como tambm da matriz evolutiva do

    seu pensamento [veja-se o captulo Evoluo e linhas de fora do pensamento de

    Aristteles (341-438), onde se procura reequacionar criticamente o modelo de

    abordagem gentica de Werner Jaeger e seus predecessores, bem como de algumas

    das suas mais recentes e destacadas variantes, v.g. as preconizadas por Daniel Graham

    e Gwilym Owen], oferecendo uma ampla e sistematizada viso integrada com a qual

    nos identificamos por inteiro.

    Focando-nos mais especificamente na filosofia praxiolgica de Aristteles,

    importa destacar um punhado de estudos que se destacam no panorama editorial mais

    recente. No plano historiogrfico da recepo cultural dos textos ticos de Aristteles e

    de todas as peripcias que envolveram a respectiva transmisso, impe-se uma

    indispensvel aluso s obras The Development of Ethics: a historical and critical

    study de Terence Irwin, bem como The Reception of Aristotle's Ethics de Jon Miller,

    s quais importa associar um esclarecedor artigo de Christopher Rowe intitulado O

    estilo de Aristteles na Ethica Nicomachea.29 J no plano sistmico da estabilizao

    28 Vide CAEIRO Antnio, A aret como possibilidade extrema do humano: fenomenologia da prxis em Plato e Aristteles, Lisboa: IN-CM, 2002 e MESQUITA Antnio Pedro (coord.), Introduo Geral s Obras Completas de Aristteles, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005 29 Vide respectivamente IRWIN Terence, The Development of Ethics: a historical and critical study. Vol I: From Socrates to the Reformation, Oxford: Oxford University Press, 2007; MILLER Jon, The

  • 29

    textual e da urdidura interpretativa do pensamento do Estagirita avultam trs edies

    de grande envergadura pela fiabilidade dos estudos coligidos: uma organizada em

    2006 por Richard Kraut sob o ttulo The Blackwell Guide to Aristotle's Nicomachean

    Ethics30, na qual se coligem estudos de reputados especialistas na matria como o

    prprio Richard Kraut [How to Justify Ethical Propositions: Aristotle's Method (76-

    95)], Chris Bobonich [Aristotle's Ethical Treatises (12-36)], Gavin Lawrence [Human

    Good and Human Function (37-75)], Rosalind Hursthouse [The Central Doctrine of

    the Mean (96-115)], Gabriel Lear [Aristotle on Moral Virtue and the Fine (116-136)],

    Susan Meyer [Aristotle on the Voluntary (137-157)], Roger Crisp [Aristotle on

    Greatness of Soul (158-178)], Charles Young [Aristotle's Justice (179-197)], Charles

    Reeve [Aristotle on the Virtues of Thought (198-217], Paula Gottlieb [The Practical

    Syllogism (218-233)], Anthony Price [Akrasia and Self-control (234-254)], Dorothea

    Frede [Pleasure and Pain in Aristotle's Ethics (255-275)], Jennifer Whiting [The

    Nicomachean Account of Philia (276-304)], Malcolm Schofield [Aristotle's Political

    Ethics (305-322)], Terence Irwin [Aquinas, Natural Law, and Aristotelian

    Eudaimonism (323-341)] e Sarah Broadie [Aristotle and Contemporary Ethics (342-

    361)]; a outra, mais recente, dirigida por Jon Miller sob o designativo de Aristotle's

    Nicomachean Ethics: A Critical Guide31, relativamente qual nos pemitimos destacar

    o estudo de Terence Irwin, Beauty and morality in Aristotle (239-253), j para no

    falar e imperdovel seria se no o fizssemos da colectnea de estudos organizada

    por Marco Zingano, intitulada Sobre a tica Nicomaqueia de Aristteles32, onde so

    criteriosamente coligidos vrios artigos que marcaram o debate especializado em torno

    dos principais problemas e tpicos da filosofia prtica aristotlica a partir de meados

    do sculo passado, de entre os quais cumpre destacar o de Christoph Rapp, Para que

    Reception of Aristotle's Ethics, Cambridge: Cambridge University Press, 2013; ROWE Christopher, O estilo de Aristteles na Ethica Nicomachea in Analytica 8 (2004) 2, 13-29 30 KRAUT Richard (ed.), The Blackwell Guide to Aristotle's Nicomachean Ethics, Malden (MA): Blackwell Publishing, 2006; no podemos deixar passar em claro a oportuna e incisiva recenso crtica da obra por Marco Zingano in Notre Dame Philosphical Reviews. An electronic journal, 22.5.2006 [http://ndpr.nd.edu/news/25036-the-blackwell-guide-to-aristotle-s-nicomachean-ethics/] 31 MILLER Jon, Aristotle's Nicomachean Ethics: A Critical Guide, Cambridge: Cambridge University Press, 2011 32 ZINGANO Marco, Sobre a tica Nicomaqueia de Aristteles, So Paulo: Odysseus Editores, 2010

  • 30

    serve a doutrina aristotlica do meio termo? (405-438) tendo em conta o cenrio de

    fundo da presente dissertao. Finalmente, com publicao j anunciada para breve

    encontra-se a colectnea de estudos The Cambridge Companion to Aristotle's

    Nicomachean Ethics, organizada e editada por Ronald Polansky33: sobre ela no nos

    pronunciaremos por desconhecer ainda o seu contedo.

    Seja como for, damos por absolutamente incontornvel o empreendimento

    terico de problematizao heurstica, de interpretao textual e de clarificao

    conceptual que actualmente Marco Zingano encabea, com mrito amplamente

    reconhecido, no domnio da filosofia prtica de Aristteles no apenas no plano

    epistmico do mtodo apropriado tica, como se comprova no estudo Aristotle and

    Method in Ethics34, mas sobretudo, em espectro terico mais dilatado e denso, no

    arrojado projecto de sntese reflexiva presente em Estudos de tica Antiga, onde se

    encontram plasmadas algumas das tematizaes mais inovadoras e clarividentes da

    actualidade sobre a filosofia prtica do Estagirita. Para o desgnio da nossa dissertao,

    afiguram-se cruciais e relevantes as anlises em torno 1. da dimenso aretiolgica da

    integrao racional das diferentes virtudes em Emoo, ao e felicidade em

    Aristteles (143-165), A conexo das virtudes em Aristteles (393-425) e Acrasia e o

    mtodo da tica (427-461); 2. da vertente eudemnica do finalismo prtico em

    Eudaimonia e bem supremo em Aristteles (73-110) e Eudaimonia e contemplao na

    tica aristotlica (485-519), 3. da estrutura deliberativa da aco em Deliberao e

    vontade em Aristteles (167-211), Notas sobre a deliberao em Aristteles (212-239),

    Deliberao e indeterminao em Aristteles (241-276), Deliberao e inferncia

    prtica em Aristteles (277-300) e Escolha dos meios e t ayaretn (301-325), 4.

    da explicitao criteriolgica da rectitude da razo na sua inscrio prtica em Agir

    secundum rationem ou cum ratione? (363-391); e, por fim, 5. da perspectiva

    integradora da compatibilizao tica do particular e do universal em Particularismo e

    universalismo na tica aristotlica (111-142) e Lei moral e escolha singular (327-362).

    33 POLANSKY Ronald, The Cambridge Companion to Aristotle's Nicomachean Ethics, Cambridge: Cambridge University Press (forthcoming) 34 ZINGANO Marco, Aristotle and Method in Ethics, in Oxford Studies in Ancient Philosophy. Volume XXXII (Summer 2007), ed. by David SEDLEY, Oxford: Oxford University Press, 2007, 297-330

  • 31

    Ora, no mago dessa multifacetada configurao problematolgica,

    conceptual e sistemtica que gostaramos de enfatizar o recorte especfico da presente

    dissertao, no s dialogando, debatendo e, porventura at, divergindo das

    perspectivas tericas mais autorizadas e sedimentadas, como sucede, por exemplo, no

    tocante obra Lthique dans le projet moral dAristote. Une philosophie du bien sur

    le modle des arts et techiques de Pierre Mtivier35, onde se explana a relao tensa

    entre arte, aco e produo criativa, e tambm no que concerne obra Ethics and the

    Limits of Philosophy de Bernard Williams36, para quem a questo da mediedade no

    passa de uma questo perfeitamente colateral e negligencivel no mbito da filosofia

    prtica de Aristteles, sem olvidar, como no poderia deixar de ser, a tese exposta em

    A False Doctrine of the Mean por Rosalind Hursthouse37. Por outro lado, pretendendo

    levar to longe quanto possvel, ou mais longe at se possvel, o mosaico de

    perspectivas em jogo reportamo-nos neste caso a perspectivas tericas de

    inquestionvel autoridade como as sustentadas por John McDowell em Deliberation

    and Moral Development in Aristotle's Ethics38, por Carlo Natali em Laction efficace.

    tudes sur la philosophie de laction dAristote39, por Heda Segvic em Deliberation

    and Choice in Aristotle40 e por Nancy Sherman em The Fabric of Character.

    Aristotles Theory of Virtue41 procurmos na presente dissertao explorar uma

    35 MTIVIER Pierre, Lthique dans le projet moral dAristote. Une philosophie du bien sur le modle des arts et techiques, Paris: Cerf, 2000 36 WILLIAMS Bernard, Ethics and the limits of philosophy, London: Fontana Press William Collins, 1993 (3ed.) 37 HURSTHOUSE Rosalind, A False Doctrine of the Mean, in Proceedings of the Aristotelian Society 81 (1980-81) 57-72; na mesma linha vide tambm Idem, The Central Doctrine of the Mean, in KRAUT Richard (ed.), The Blackwell Guide to Aristotle's Nicomachean Ethics, op. cit., 96-115 38 McDOWELL John, Deliberation and Moral Development in Aristotle's Ethics, in Idem, The Engaged Intellect: Philosophical Essays, Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 2009, 41-58 39 NATALI Carlo, Laction efficace. tudes sur la philosophie de laction dAristote, Louvain Paris: Peeters, 2004 40 SEGVIC Heda, Deliberation and Choice in Aristotle, in Idem, From Protagoras to Aristotle: Essays in Ancient Moral Philosophy, Princeton: Princeton University Press, 2009, 144-171 41 SHERMAN Nancy, The Fabric of Character. Aristotles Theory of Virtue, Oxford: Clarendon Press, 1989

  • 32

    dupla perspectiva que, a nosso ver, ainda no vimos suficientemente tematizada no

    quadro bibliogrfico que acabmos de expor: 1) por um lado, inspirados pelas slidas

    prospeces historiogrficas de Antnio Pedro Mesquita na obra Vida de Aristteles42,

    pretendemos enfatizar uma biografia muito menos centrada no relato meramente

    factual das suas peripcias existenciais, mas antes em captar a discursividade de uma

    tica vivida e atestada nas disposies finais do seu testamento, procurando, de

    caminho, colmatar uma lacuna ainda persistente no puzzle da cronologia aristotlica

    no que concerne determinao da idade da filha Pitade II aquando da redaco das

    respectivas disposies testamentrias; 2) por outro lado, estimulados pela leitura do

    estudo Aristote et la juste mesure de Mari-Hlne Gauthier-Muzellec43, para quem a

    tica aristotlica percorre, a par de uma explcita via essencial e naturalista, um

    implcito trilho poitico-racional no tocante operacionalizao mediacional da

    prtica da virtude, a ideia de uma estrutura mesomorfolgica da aco no tardou a

    germinar e a ganhar forma.

    A partir da dupla perspectiva apontada, estamos em crer que a nossa tese sai

    substancialmente reforada em ulterior contacto textual no s com a vigorosa e

    convincente teorizao desenvolvida por Joo Hobuss no estudo Sobre o significado

    da doutrina da mediedade em Aristteles44 (na qual o autor disseca e reposiciona

    criticamente o aceso debate entre James Urmson45 e Rosalind Hursthouse46), mas

    tambm pelo providencial contributo de outros estudiosos da praxiologia do Estagirita

    movendo-se no mesmo horizonte de anlise como Patrice Guillamaud, em La

    mdiation chez Aristote47, Emmanuel Alloa em Metaxu. Figures de la mdialit chez

    42 MESQUITA Antnio P., Vida de Aristteles, Lisboa: Slabo, 2006 43 GAUTHIER-MUZELLEC Mari-Hlne, Aristote et la juste mesure, Paris: PUF, 1998 44 HOBUSS Joo, Sobre o significado da doutrina da mediedade em Aristteles, in Revista de Filosofia Antiga [= Journal of Ancient Philosophy] 2 (2008) 2, 1-27 45 Vide URMSON James, Aristotles doctrine of the mean, in Essays on Aristotles Ethics, ed. by Amelie O. RORTY, Berkeley: University of California Press, 1980, 157-170 [= in American Philosophical Quarterly (Pittsburgh) 10 (1973) 223-230] 46 Vide supra 31, not. 37 47 GUILLAMAUD Patrice, La mdiation chez Aristote, in Revue Philosophique de Louvain 85 (1987) 457-474

  • 33

    Aristote48, William Hardie em Aristotles doctrine that virtue is a mean49, Mark

    McCullagh em Mediality and rationality in Aristotles account of excellence of

    character50, Pierre Rodrigo em -propos: thique et mdit axiologique chez

    Aristote51 e Stephen Salkever em Finding the Mean. Theory and Practice in

    Aristotelian Political Philosophy52. Com base neste fluxo de investigaes no

    hesitamos em demarcar e vincar a tese de que uma tangencial aproximao poitica ao

    acto decisionrio s se torna vivel atravs da explicitao mesomorfolgica de

    uma virtude peculiar, a da prudncia, cujo recorte dianotico herda toda a sua

    espessura onto-praxiolgica [vide, a propsito, os estudos coligidos por Jean-Yves

    Chateau em La vrit pratique. Aristote: thique Nicomaque, Livre VI53, bem como

    o fascculo n 73 do peridico Philosophie, denominado Aristote. Ontologie de laction

    et savoir pratique54] no entrecruzamento mediacional de dois eixos: um

    horizontal que, sob o signo das seminais noes gregas de limite [] e medida

    [], procura visar o meio [ ] face aos extremos no plano do exerccio

    individualizado das virtudes, sejam elas quais forem; outro vertical que, sob o signo

    da movedia noo grega de habilidade [], procura interligar numa espcie

    de modelao o plano universal ou generalizvel dos princpios ao plano particular e

    indeterminado das situaes. Na interseco destes dois eixos, parece-nos defensvel a

    ideia de que a prtica das virtudes s adquire definitiva e plena consumao tica

    48 ALLOA Emmanuel, Metaxu. Figures de la mdialit chez Aristote, in Revue de mtaphysique et de morale 62 (2009) 2, 247-262 49 HARDIE William, Aristotles doctrine that virtue is a mean, in Articles on Aristotle vol 2: Ethics and Politics, ed. Jonathan BARNES, Malcolm SCHOFIELD and Richard SORABJI, London: Duckworth, 1977, 33-46 50 McCULLAGH Mark, Mediality and rationality in Aristotles account of excellence of character, in Apeiron 28 (1995) 4, 155-174 51 RODRIGO Pierre, -propos: thique et mdit axiologique chez Aristote, in AA.VV., Hommage au Professeur Jean Frre, Hildesheim - Zrich New-York: G. Olms Vg, 2004 52 SALKEVER Stephen, Finding the Mean. Theory and Practice in Aristotelian Political Philosophy, Princeton: Princeton University Press, 1990 53 CHATEAU Jean-Yves (org.), La vrit pratique. Aristote: thique Nicomaque, Livre VI, Paris: Vrin, 1997 54 AA.VV., Aristote. Ontologie de laction et savoir pratique, in Philosophie 73 (2002)

  • 34

    quando elevada teleologicamente ao plano aperfeioado do exerccio da boa

    deliberao [] tanto no horizonte instrumental da adequao entre meios e

    fins, como no horizonte relacional daquele sentido de alteridade na base do qual se

    alicera o estatuto arquitectnico da poltica no quadro dos saberes prticos.

    Por outro lado, norteados pela leitura da obra Les ruses de lintelligence. La

    mtis des grecs de Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant55, a que se juntam no s as

    j supramencionadas Phronesis, Poetics and Moral Creativity de John Wall56, bem

    como Nature, craft and phronesis in Aristotle e Nature and craft in Aristotelian

    teleology de Sarah Broadie57, La signification philosophique de la poiesis

    aristotlicienne e Le rle de la techne dans les thiques aristotliciennes de Lambros

    Couloubaritsis58, Artifacts, substances, and essences de Lloyd Gerson59, Alcuni aspetti

    della concezione della techne nella Metafsica di Aristotele de Margherita Isnardi

    Parente60, La importancia de la Potica para entender la Etica aritotlica de Ralph

    McInerny61, Nature artifex. Le sens de lanalogie nature-technique chez Aristote de

    Marie-Christine Roessler62, Chose, cause et oeuvre chez Aristote de Gilbert Romeyer-

    55 DETIENNE Marcel VERNANT Jean-Pierre, Les ruses de lintelligence. La mtis des grecs, Paris: Flammarion, 2002 56 Vide supra 25, not. 15 57 BROADIE Sarah, Nature and craft in Aristotelian teleology, in Biologie, logique et mtaphysique chez Aristote. Actes du Sminaire CNRS-NSF, Olron 28 Juin 3 Juillet 1987, pub. Daniel DEVEREUX Pierre PELLEGRIN, Paris: ditions du CNRS, 1990, 389-405; Idem, Nature, craft and phronesis in Aristotle, in Philosophical Topics (Stamford Conn.) 15 (1987) 2, 35-50 58 COULOUBARITSIS Lambros, La signification philosophique de la poiesis aristotlicienne, in Diotima 9 (1981) 94-100; Idem, Le rle de la techne dans les thiques aristotliciennes, in Justifications de lthique. XIXe Congrs de lAssociation des Socits de Philosophie de langue franaise, Bruxelles Louvain-la-Neuve 6-9 Septembre 1982, Bruxelles: ditions de lUniversit de Bruxelles, 1984, 131-137 59 GERSON Lloyd, Artifacts, substances, and essences, in Apeiron 18 (1984) 50-58 60 ISNARDI PARENTE Margherita, Alcuni aspetti della concezione della techne nella Metafsica di Aristotele, in Rivista Critica di Storia della Filosofia (Milano) 17 (1962) 26-40 61 McINERNY Ralph, La importancia de la Potica para entender la tica aristotlica, in Anuario Filosfico, Universidad de Navarra 20 (1987) 2, 85-94 62 ROESSLER Marie-Christine, Nature artifex. Le sens de lanalogie nature-technique chez Aristote, in La nature. Thmes philosophiques. Thmes de lactualit. Actes du XXVe Congrs de lAssociation des Socits de Philosophie de langue franaise, Lausanne 25-28 Aot 1994, dir. Daniel SCHULTHESS in Cahiers de la Revue de Thologie et Philosophie, 18, Lausanne: Revue de Thologie et Philosophie, 1996, 411-415

  • 35

    Derbey63, Opera darte e organismo in Aristotele e Il concetto di fare in Aristotele de

    Gianni Vattimo64, Aristotle's Ethics and the Crafts: A Critique de Thomas Angier65,

    Praxis and poiesis in Aristotles practical philosophy de Oded Balaban66, La tekhne

    dans lthique Nicomaque de Giuseppe Cambiano67, La comprensin aristotlica del

    trabajo de Carmen Innerarity68, Aristotle on artifacts. A metaphysical puzzle de Errol

    Katayama69, Aristote: Vers une potique de la politique? de Jean-Louis Labarrire70,

    How flexible is Aristotelian right reason? de Joseph Owens71, Ergon and Eudaimonia

    in Nicomachean Ethics I. Reconsidering the intellectualist interpretation de Timothy

    Roche72, quit et kaironomie de Alonso Tordesillas73, Ethics and the Craft Analogy

    63 ROMEYER-DERBEY Gilbert, Chose, cause et oeuvre chez Aristote, in Archives de Philosophie du Droit (Paris) 24 (1979) 127-137 64 VATTIMO Gianni, Opera darte e organismo in Aristotele, in Rivista di Estetica (Padova Torino) 5 (1960) 358-382 e Idem, Il concetto di fare in Aristotele, Torino: Pubblicazione della Facolt di Lettere e Filosofia delUnivesit di Torino, 1961 65 ANGIER Thomas, Aristotle's Ethics and the Crafts: A Critique, Toronto: T-Space at The University of Toronto Librairies, 2009 66 BALABAN Oded, Praxis and poiesis in Aristotles practical philosophy, in The Journal of Value Inquiry (Dordrecht) 24 (1990) 3, 185-198 67 CAMBIANO Giuseppe, La tekhne dans lthique Nicomaque, in Lexcellence de la vie. Sur L "thique Nicomaque" et L"hique Eudme" dAristote, dir. par Gilbert ROMEYER DERBEY, Paris: Vrin (2002) 161-177 68 INNERARITY Carmen, La comprensin aristotlica del trabajo, in Anuario Filosfico (Pamplona) 23 (1990) 2, 69-108 69 KATAYAMA Errol, Aristotle on artifacts. A metaphysical puzzle, Albany: State University of New York Press, 1999 70 LABARRIRE Jean-Louis, Aristote: Vers une potique de la politique?, in Philosophie 11 (1986) 25-46 71 OWENS Joseph, How flexible is Aristotelian right reason?, in The Georgetown Symposium on ethics, Lanham: University Press of America, 1984, 49-65 72 ROCHE Timothy, Ergon and Eudaimonia in Nicomachean Ethics I. Reconsidering the intellectualist interpretation, in Journal of the History of Philosophy (St. Louis) 26 (1988) 2, 175-194 73 TORDESILLAS Alonso, quit et kaironomie, in CORDERO Nestor (dir.), Ontologie et dialogue. Mlanges en hommage Pierre Aubenque, Paris: PUF, 2000, 149-169

  • 36

    de James Wallace74, Norma y situacin en la tica aristotlica de Wolfgang Wieland75,

    procuramos sondar at que ponto o conceito de rectitude [] confere

    racionalidade prtica contornos ergonmicos e estocsticos [termos usados no seu

    matricial sentido grego de obra e pontaria: vide infra Elucidrio terminolgico,

    882]. Com efeito, tudo nos faz crer que a fascinante e ainda pouco explorada noo

    grega de mtis se pode constituir como uma espcie de fio condutor de um lgos hbil

    que se vai testando e atestando em, na feliz expresso de Charles Reeve, prticas da

    razo76 (antes mesmo de ser razo em prtica de um lgos j formalmente

    habilitado) sob o signo poitico da experincia vivida, da imaginao indutiva e da

    temporalidade cairolgica, dimenses essas, alis, sem as quais permanecer obscura e

    incompreensvel a reiterada aluso aristotlica ao paradigma incarnado do prudente

    [] como signo vivente e critrio vivo de uma eticidade inscrita e domiciliada

    no fluxo da contingncia. A esta tangencial aproximao poitica da eticidade acresce

    o aspecto porventura mais controverso e arriscado da presente dissertao: a proposta

    conjectural de uma presena implcita do hilemorfismo como modelo de

    fundamentao metafsica do que nos atreveramos a designar de onto-poiese da

    deciso, em cuja urdidura tica vislumbramos potencial hermenutico suficiente para

    inspirar uma eficaz modelao decisionria em contextos crticos de adensada

    indeterminao (quanto s variveis em jogo) e de elevada incerteza (quanto ao

    desfecho resultante), designadamente nas esferas clnica, jurdica e econmica.

    Enfim, se outras razes no houvesse, mantemos intacta a convico de que,

    por si s, a tarefa a que lanamos mo j seria mais do que suficiente para, na esteira

    de Ronald Polansky em Phronesis on Tour: Cultural Adaptability of Aristotelian

    Ethical Notions77 e Kurt Von Fritz em Aristotles anthropological ethics and its

    74 WALLACE James, Ethics and the Craft Analogy, in FRENCH Peter UEHLING Theodore WETTSTEIN Howard (eds.), Midwest Studies in Philosophy XIII: Ethical Theory: Character and Virtue, University of Notre Dame Press, 1988, 222-232 75 WIELAND Wolfgang, Norma y situacin en la tica aristotlica, in Accin, Razn, y Verdad. Estudios sobre la filosofa prctica de Aristteles: in Anuario Filosfico 32 (1999) 1, 107-127 76 REEVE Charles, Practices of Reason: Aristotles Nicomachean Ethics, Oxford: Clarendon Press, 1992 77 POLANSKY Ronald, Phronesis on Tour: Cultural Adaptability of Aristotelian Ethical Notions, in Kennedy Institute of Ethics Journal 10 (2000) 4, 323-336

  • 37

    relevance to modern problems78, contribuir para caucionar a defesa de uma

    indiscutvel e revigorante actualidade da filosofia prtica de Aristteles, bem

    patente, alis, em obras trazidas estampa como Lattualit di Aristotele79, The

    Aristotelian ethics and its influence80, Les stratgies contemporaines dinterprtation

    dAristote81, Aristotele nella critica e negli studi contemporani82, Aristote

    aujourdhui83, apenas para referenciar um punhado de exemplos entre muitos outros.

    Em reforo deste preliminar roteiro de orientao programtica e heurstica,

    parecem-nos absolutamente oportunas as palavras de Paul Ricouer: Que signifie en

    effet ce retour Aristote? Deux choses, me semble-t-il. Dun point de vue ngatif le

    rejet simultan, aussi bien en milieu anglo-saxon quen milieu europen, tant du

    formalisme kantien que de lempirisme anglo-saxon. Maclntyre est cet gard typique

    de cette lutte sur deux fronts. En milieu europen on mettra de prfrence laccent sur

    la colonisation des sciences humaines par la mathmatisation de la nature: ce que

    Gadamer appelle objectivisme ou vrificationnisme. Ce mouvement commenc

    par la Krisis de Husserl, prolong par Sein und Zeit de Heidegger, aboutit la critique

    du mthodisme par Gadamer dans Wahrheit und Methode. Dun point de vue positif

    lloge contemporain de la phronsis comporte trois implications majeures. Dabord,

    linsistance sur le rapport de lintelligence pratique aux situations singulires, o lon

    retrouve le paralllisme aristotlicien avec laisthsis et avec lquit. Deuximement,

    la valorisation dune manire dargumenter non dmonstrative, proche de la rhtorique

    quAristote tenait pour lpistrophe de la dialectique, elle-mme comprise comme

    78 Von FRITZ Kurt, Aristotles anthropological ethics and its relevance to modern problems, in Journal of the History of Ideas (NY) 42 (1981) 187-207 79 BROCK Stephen (a cura), Lattualit di Aristotele, Roma, Armando Editore, 2000 80 KOUTRAS Demetrios (ed.), The Aristotelian ethics and its influence. The first international symposium for the Aristotelian philosophy, Athens 24-26 May 1995, Athens: ASAS, 1996; YU Jiyuan, The Ethics of Confucius and Aristotle: Mirrors of Virtue, New York: Routledge, 2007 81 AA.VV., Les stratgies contemporaines dinterprtation dAristote, in Rue Descartes 1-2, 1991; interessante na mesma linha o estudo de ROMEYER-DERBEY Gilbert, Aristote modernis, in Lexcellence de la vie. Sur L "thique Nicomaque" et L"hique Eudme" dAristote, dir. par Gilbert ROMEYER DERBEY, Paris: Vrin (2002) 372-395 82 AA.VV., Aristotele nella critica e negli studi contemporani, Milano, Vita e Pensiero, 1957 83 SINACEUR Mohammed-Allal (ed.), Aristote aujourdhui, Paris Toulouse: Unesco rs, 1988

  • 38

    logique du probable. De cette insistance sur les concepts flous, il faudrait rapprocher la

    critique du syllogisme pratique, ramen la simple mise en forme ultrieure dun

    travail de la pense discursive la recherche de ce quil convient de faire ici et

    maintenant: trouver luniversel appropri une situation singulire et construire la

    mineure, en cela consiste lopration de la pense quAristote a appele tour tour

    calculatrice, opinante, lgislative. Mais il faudrait, en troisime lieu, insister surtout sur

    lenracinement de la rflexion philosophique dans une pratique pralable, dans une

    culture vivante; cet gard, lexemplarit du phronimos est mise en valeur, ainsi que

    le lien avec le phronein tragique ou encore avec la pratique politique. A lhorizon de

    cette apologie de la culture vivante, on verrait poindre lappel parfois dsespr la

    restauration dun sens commun, le recours des valuations communautaires, un

    contextualisme culturel lencontre de la vise universalisante soit de la thorie de la

    justice de Rawls soit de lthique de la discussion dApel et Habermas. La conception

    propose par Charles Taylor dans The Sources of the Self du caractre primitif et

    irrductible des valuations fortes serait galement porter au compte de cette

    relecture surdtermine par tout un courant de la philosophie morale contemporaine de

    ladmirable Livre VI de lEthique Nicomaque, crit par Aristote la gloire de la

    phronsis.84

    Em suma, tomado o pulso investigao realizada at ao momento por

    reputados especialistas da filosofia prtica de Aristteles e verificando, alm disso, que

    as noes de mediedade e de prudncia se encontram ainda difusa e

    insuficientemente articuladas no panorama dos estudos do Estagirita, pretendemos

    nesta dissertao apresentar a tese de que a doutrina aristotlica do justo meio no

    reduz o que designaramos de teoria restrita das virtudes ao nvel meramente locativo

    (posio topolgica) ou gradativo (moderao entre excesso/defeito) das boas

    aces, mas instaura um horizonte mediacional do agir cujo foco prudencial

    constitui a condio de possibilidade do acto decisionrio, designadamente nas

    situaes-limite que requerem a modelao formal dos princpios (normas, valores,

    leis, etc...) singularidade das situaes individuais. luz desse quadro

    84 RICOEUR Paul, la gloire de la phronsis (thique Nicomaque, Livre VI), in CHATEAU Jean-Yves (org.), La vrit pratique. Aristote: thique Nicomaque, Livre VI, Paris: Vrin, 1997, 21-22

  • 39

    mesomorfolgico, pretendemos revisitar, reposicionar e interligar alguns aspectos

    centrais da praxiologia aristotlica na ptica do seguinte delineamento topogrfico:

    I. O TEXTO DA VIDA PRTICA EM ARISTTELES COMO PROBLEMA ORIGINRIO: a vinculao mediacional entre testamento e testemunho II. A VIDA PRTICA NO TEXTO DE ARISTTELES COMO PROBLEMTICA DE FUNDO

    1. Praxiologia e mediedade 2. Aretiologia e mediedade: a ontognese da virtude 3. Agir voluntrio e mediedade: a ontopoiese da deciso 4. Mediedade e metodologia da razo prtica: a lgica da aco discursiva

    III. A ONTOPOIESE DA MEDIAO DECISIONRIA POR ARISTTELES ENQUANTO PROBLEMATIZAO CENTRAL

    1. Consideraes preludiais sobre a phronesis: as virtualidades quase (poi)ticas de uma virtude moral 2. Os textos vividos da razo (em) prtica na cultura clssica grega 3. O texto vivente da mesomorfologia da aco na filosofia prtica Numa das clareiras mais luminosas da obra Mediaes, refere Fernando Gil:

    olhando os conceitos de poiesis, praxis e theoria, salta aos olhos, precisamente, quo

    artificial separar os trs registos. A poesia produz e pratica a palavra, para

    contemplar o Potico que escrevo com p maisculo; como sabeis, contemplar, diz-se

    em grego theorein. A arquitectura converte concepes imaginadas e contempladas em

    pontes e casas, produzindo ambientes que gostaramos de habitar poeticamente, como

    um poeta escreveu. A filosofia pretende teorizar as prticas e o potico, e ainda pensar

    a teoria: pertence ao filosofar interrogar o seu prprio sentido. E teorizar uma prtica,

    uma efectuao, pelo trabalho da mente, de intuies intuies pelas quais a filosofia

    e a cincia comunicam com o potico.85 Dificilmente se encontraria descrio mais

    lmpida e certeira para contracenar filosoficamente com o lance preludial da presente

    dissertao. De certo modo, ela contm nas entrelinhas da sua irreverente provocao

    todos os filamentos com os quais poderamos urdir o enredo tico de uma aco que

    se faz obra na discursividade prtica da deciso.

    85 GIL Fernando, Mediaes, Lisboa: INCM, 2001, 281-282

  • 40

  • 41

    PARTE I

    PROBLEMA

    O TEXTO DA VIDA PRTICA EM ARISTTELES

    Hombre detenido, evidencia de prudente. Es fiera la lengua, que si una vez

    se suelta, es mui dificultosa de poderse bolver a encadenar. Es el pulso del

    alma por donde conocen los sabios su disposicin. Aqu pulsan los atentos

    el movimiento del coran. El mal es que el que ava de serlo ms, es menos

    reportado. Escsase el sabio enfados y empeos, y muestra qun seor es de

    s. Procede circunspecto, Jano en la equivalencia, Argos en la verificacin.

    Mejor Momo huviera echado menos los ojos en las manos que la ventanilla

    en el pecho.

    Baltasar Gracin, Orculo manual y Arte de Prudencia [1647]

  • 42

  • 43

    Testamento e testemunho mediacional

    Ao contrrio do que faria supor toda uma multissecular produo literria e

    filosfica sobre a vida de Aristteles, temos que nos reconciliar com a ideia de que

    sabemos ainda muito pouco sobre a vida do Estagirita de modo definitivo e

    indiscutvel.86 No h, portanto, que esperar dos registos biogrficos disponveis uma

    resposta cabal para os problemas e desafios que o estudo do seu pensamento levanta.

    A dificuldade poderia eventualmente ser transposta se, por feliz circunstncia,

    dispusssemos de escritos de carcter autobiogrfico. Mas no o caso.87 Na verdade,

    as fontes de que dispomos para basear algumas teses conjecturais sobre a vida de

    Aristteles, desde aspectos relacionados com a sua personalidade at definio do

    seu estatuto cvico na vida social ateniense, passando pelo tipo de magistrio escolar

    desenvolvido no Liceu88, surgem envoltas num emaranhado de referncias indirectas e

    86 Cf. BARNES Jonathan (ed.), The Cambridge Companion to Aristotle, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, 1 ss.; vide, a propsito, SOLLENBERGER Michael, The Lives of Peripatetics: an analysis of the contents and structure of Diogenes Laertius Vita Philosophorum Book 5, in Ausstieg und Niedergang der rmischen Welt. Geschichte und Kultur Roms im Spiegel der neueren Forschung (Berlin) II, 36. 6, 3793-3879 87 Jonathan Barnes traa a esse propsito um cenrio muito sbrio e contido, advertindo que Aristotles writings are in any case uncommonly impersonal: BARNES Jonathan, Life and work of Aristotle, in The Cambridge Companion to Aristotle, Cambridge, op. cit., 2 88 Por ordem cronolgica, cf. MULVANY Charles, Notes on the Legend of Aristotle, in Classical Quarterly 20 (1926) 157-160; CRESSON Andr, Aristote. Sa vie, son uvre, sa philosophie, Paris: PUF, 1958; MANSION Augustin, Travaux demsemble sur Aristote, son oeuvre e sa philosophie, in Revue Philosophique de Louvain 57 (1959) 44-70; PLEZIA Marianus, The Human Face of Aristotle, in Classica et Mediaevalia 22 (1961) 16-31; GRENE Marjorie, A Portrait of Aristotle, London: Faber and Faber, 1963; CHROUST Anton-Hermann, The First Thirty Years of Modern Aristotelian Scholarship, in Classica et Mediaevalia 24 (1963-64) 27-57; CARDONA Giacinto, Ricerche sulla biografia aristotelica, in Nuova Rivista Storica 50 (1966) 87-115; CHROUST Anton-Hermann, Did Aristotle Own a School in Athens?, in Rheinisches Museum 115 (1972) 310-318; GAUTHIER Ren Antoine, Introduction, Lthique Nicomaque, vol. I, introd., trad. et comment. R.A. GAUTHIER J.-Y. JOLIF, Louvain Paris: Publications Universitaires de Louvain ditons Batrice Nauwelaerts, 1970, 10-62; CHROUST Anton-Hermann, Aristotle, A New Light on His Life and Some of His Lost Works vol. I: Some Novel interpretations of the Man and His Life; vol. II. Observations on Some of Aristotles Lost Works, Notre Dame London: University of Notre Dame Press Routledge, 1973; MINAS Anne, Was Aristotle named "Aristotle"?, in The Canadian Journal of Philosophy 6 (1976) 643-653; BERTI Enrico, Profilo di Aristotele, Roma: Studium, 1979; HUXLEY George, On Aristotle and Greek Society, Belfast: Huxley, 1979; NATALI Carlo (a cura), La scuola dei filosofi. Scienza ed organizzatione istituzionale della scuola di Aristotele, LAquila: Japadre, 1981; MOUREAU Joseph, Aristote et son cole, Paris: PUF, 1985; ROMEYER DERBEY Gilbert, Le satut social dAristote Athnes, in Revue de Mtaphysique et de Morale 91 (1986) 365-378; DRING Ingemar, Aristotle in the Ancient

  • 44

    colaterais muito difcil de descompactar em todas as suas implicaes. Assim,

    descontando um punhado de escritos mais pessoais89, onde se incluem alguns

    fragmentos de cartas (provavelmente nem todos genunos)90, uns quantos poemas e

    hinos (de entre os quais sobressaem o que comps em honra do seu mestre Plato e

    outro em homenagem ao seu protector Hermias de Atarneu)91, bem como o prprio

    Testamento92, a que aludiremos adiante, no h que depositar grandes expectativas

    hermenuticas quanto a interpretaes concludentes sobre a sua vida.

    Procedendo a um levantamento exaustivo dos estudos biogrficos do pensador

    estagirita93, Antnio Pedro Mesquita traa na sua obra Vida de Aristteles94 um

    conciso e fundamentado quadro histrico-exegtico desde o seu nascimento, em 384

    Biographical Tradition, New York: Garland, 1987; PUECH Bernardette, Aristote, in Dictionnaire des philosophes antiques vol. I, dir. Richard GOULET, Paris: CNRS, 1989, 417-423; AA.VV. Profils dAristote, vols. I-II, Bruxelles: Ousia, 1990; LOUIS Pierre, Vie dAristote (384-322 avant Jsus-Christ), Paris: Hermann, 1990; NATALI Carlo, Aristotele professore?, in Phronesis 36 (1991) 61-73; Idem, Bios theoretikos. La vita di Aristotele e lorganizzazione della sua scuola, Bologna: Il Mulino, 1991; BRUN Jean, Aristote et le Lyce, Paris: PUF, 1992; MESQUITA Antnio P., Vida de Aristteles, Lisboa: Slabo, 2006 [= Idem, MESQUITA Antnio Pedro (coord.), Introduo Geral s Obras Completas de Aristteles I: Breve Conspecto da Biografia Aristotlica, Vol. I, Tomo I, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005, 39-204]. Destacmos a negrito as obras que, acerca do tema em causa, nos parecem referenciais. 89 Vide PLEZIA Marianus (ed.), Aristotelis privatorum scriptorum fragmenta, ed. M. PLEZIA, Leipzig: Teubner, 1977 90 Cf. ARIST., Frgm. 645-670 R; vide a propsito PLEZIA Marianus (ed.), Aristotelis epistolarum fragmenta cum testamento, ed. Marianus PLEZIA, Leipzig: Teubner, 1961 91 Cf. ARIST., Frgm. 671-675 R : os textos originais e a respectiva traduo figuram in Anexo 6 Poemas de Aristteles, 913 ss.; vide a propsito JAEGER Werner, Aristotles verses in praise of Plato, in Classical Quarterly 21 (1927) 13-17; BOWRA Cecil M., Aristotles Hymn to Virtue, in Classical Quarterly 32 (1938) 182-189; CROSSETT John M., Aristotle as a Poet - The Hymn to Hermeias, in Philological Quarterly 46 (1967) 2, 145-155; RENEHAN Robert, Aristotle as lyric poet. The Hermias Poem, in Greek, Roman and Byzantine Studies (Duke) 23 (1982) 251-274 92 Cf. DL V, 11-16; vide a propsito CHROUST Anton-Hermann, Aristotles Last Will and Testament, in Wienner Studien. Zeitschrift fr Klassische Philologie und Patristik (Wien) 80 (1967) 90-144 [= CHROUST Anton-Hermann, Aristotle, A New Light on His Life and Some of His Lost Works vol. I: Some Novel interpretations of the Man and His Life, Notre Dame London: University of Notre Dame Press Routledge, 1973, 183-220]; GOTTSCHALK Hans, Notes on the Wills of the Peripatetic Scholars, in Hermes 100 (1972) 314-342 93 Vide Crono-biografia in Anexo 1: Sinopses cronogrficas, 824 ss. 94 MESQUITA Antnio P., Vida de Aristteles, Lisboa: Slabo (2006) 15-75

  • 45

    aC, at ao exlio auto-imposto e morte, em 322 aC, num ciclo temporal que abrange

    basicamente cinco fases:

    perodo inicial de vida (384-367 aC);

    estadia na Academia platnica (367-347 aC);

    viagens e retorno Macednia (347-335 aC);

    regresso a Atenas e formao do Liceu (335-323 aC);

    exlio voluntrio e morte (323-322 aC).

    O quadro histrico-biogrfico obtido exibe aspectos que, longe de

    desanuviarem o estudo da vida de Aristteles, lhe conferem maior espessura, na

    medida em que o fio condutor tem de ser obtido por triagem, cotejo e depurao de

    uma massa plurvoca e entrecruzada de referncias textuais e documentais95 cuja

    estabilizao testemunhal afectada por factores to determinantes como 1) a

    aporeticidade das cronologias factuais96, 2) a heterogeneidade das notcias e relatos de

    vida97, 3) a ambivalncia dos testemunhos pessoais98, 4) o ecletismo das referncias

    95 Cf. SHUTE Richard, On the History of the Process by which the Aristotelian Writings Arrived to Their Present Form, New York: Arno Press, 1976; vide complementarmente BIGNONE Ettore, LAristoteles perduto e la formazione filosofica di Epicuro, I-II, Firenze, la Nouva Italia, 1936; Le BLOND Jean-Marie, Aristote et Thophraste. Un renouvellement radical de la question aristotlicienne, in Critique 65 (1952) 8, 858-869; MORAUX Paul, Lexpos de la philosophie dAristote chez Diogne Larce (V, 28-34), in Revue Philosophique de Louvain 47 (1949) 5-43 96 Neste particular sobressaem factos e acontecimentos to relevantes como o retorno do filsofo a Estagira; a morte de Pitade, sua mulher; a unio de facto com Herplis; e o estatuto legal de Nicmaco, fruto dessa segunda unio: cf. MESQUITA Antnio P., Vida de Aristteles, op. cit., 41-53 97 A matria relativa a essas notcias e relatos encontra-se disseminada por doze Vitae Aritotelis, a saber Livro V das Vidas dos filsofos ilustres, de Digenes Larcio (sc. III dC); Vita Hesychii, de Hesquio de Mileto (sc. VI dC); Vita Marciana (sc. V dC); Vita Vulgata (sc. VI dC); Vita Lascaris; Vita Latina, (sc. XII dC); Vita Syriaca I (de data indeterminada); Vita Syriaca II (de data indeterminada); Vita do Kitab al-Fihirst, de Ibn al-Nadim (sc. X dC); Vita da Selecta de Sabedoria e Belos Ditos, de al-Mubashir (sc. XI dC); Vita da Crnica dos Sbios, de Ibn al-Qifti (sc. XIII dC) e Vita do Livro de Fontes de Informao sobre Escolas Mdicas, de Ibn Abi Usaibia (sc. XIII dC). Enquanto as duas primeiras (DL e VH) repercutem de forma autnoma uma biografia matricial elaborada pelo peripattico Hermipo de Esmirna por volta do sc. III dC., j as dez restantes (quatro greco-latinas: VM, VV, VLasc, VL; duas siracas: VSI, VSII; quatro rabes: al-Nadim, Mubashir, al-Qifti, Usaibia) parecem derivar da obra perdida de um desconhecido neoplatnico do sc. IV dC, muito provavelmente conotado com a escola siraca de Jmblico, a quem a tradio rabe alcunhou de Ptolemeu al-Garib (lit. = Ptolemeu o Obscuro) cuja influncia aristotlica ter inspirado a ambincia neoplatnica da escola alexandrina fundada por Amnio Hermeu e desenvolvida pelos seus epgonos Simplcio, Joo Filpono e Olimpiodoro: cf. MESQUITA Antnio P., Vida de Aristteles, op. cit., 89-93

  • 46

    literrias99, e finalmente 5) as tardias reorientaes da tradio comentarstica e

    biodoxogrfica100. Desta feita, segundo o autor, estamos perante um percurso feito de

    98 Grande parte desses testemunhos apresentam-se, numa primeira fase, dotados de exacerbado travo legendrio, anedtico ou implacavelmente hostil e panfletrio, como so os casos de Calstenes de Olinto (a sua obra Elogio a Hermias, conserva notas de algum valor biogrfico), de Aristxeno de Tarento (na sua Vida de Plato relatam-se algumas peripcias dos discpulos da Academia, incluindo Aristteles, durante a ausncia de Plato em Siracusa), de Cefisoforo de Atenas (numa polmica movida contra Aristteles, abundam indicadores relacionados com a sua projeco e influncia intelectual na Academia platnica), de Eurimedonte de Atenas, de Lcon o Pitagrico (as infamantes acusaes de impiedade contra Aristteles levaro este a impor-se a si mesmo um exlio forado), do obscuro Demcares (o libelo movido contra os peripatticos por alinhamento ao regime macednio permite revelar figuras directamente ligadas ao magistrio aristotlico, designadamente Demtrio de Falera), de Tecrito e de Teopompo, ambos de Quo (a obsesso antimacednica leva-os a explorar at limites delirantes a relao entre Aristteles e Hermias de Atarneu), de Eublides de Mileto, Alexino de lis, Epicuro e Metrodoro (os dois primeiros, da escola megrica, os outros dois da epicurista, protagonizam a reaco anti-aristotlica mais tenaz por parte das escolas filosficas coevas do Perpato), e, finalmente, de Colotes de Lmpsaco (Plutarco nas Vidas Paralelas transmite-nos sobre ele a imagem de um autor que, embora epicurista, sustentou uma crtica serena e ponderada de Aristteles e da escola peripattica); numa segunda fase, em nada comparvel ainda residual acidez anti-aristotlica de um Timeu de Tauromnio, mas marcada j por um clima de maior apaziguamento tanto ideolgico (com a crescente dissipao da fractura entre pr-macednicos e antimacednicos) como poltico (com o termo da guerra dos Didocos e a gradual recuperao da autonomia e auto-estima gregas), emergem vultos como Filcoro de Atenas (com a sua Histria da tica), Eumelo, Arston de Cs e Antgono de Caristo, cujas recolhas e apreciaes biogrficas so decisivas para a elaborao das Vitae Aristotelis na antiguidade, bem como para a subsequente fixao e datao de factos biogrficos, e ainda para o estabelecimento da autenticidade e datao da produo filosfica a ele atribuda: cf. MESQUITA Antnio P., Vida de Aristteles, op. cit., 93-98; sobre os contornos sociais e jurdicos dos processos de impiedade movidos na antiguidade contra filsofos gregos, de que Scrates foi vtima e Aristteles alvo [vide DL V, 5; al-Mubashir 20; Usaibia 7], cf. DERENNE Eudore, Les procs dimpit intents aux philosophes Athnes aux V.e et IV.e sicles av. J.-C., in Bib. Fac. Philos. et Lettres de Lige, fasc. XLV, Lige Paris, 1930; como enquadramento complementar vide FESTUGIRE Andr-Jean, Personal Religion among the Greeks, Berkeley Los Angeles: University of California Press, 1960 e CANFORA Luciano, Une profession dangereuse. Les penseurs grecs dans la cit, Paris: Desjonqures, 2000. 99 Este tipo de literatura biogrfica sobre Aristteles oscila entre autores de histrias vrias que procuravam destacar os aspectos mais anedticos e pitorescos da vida do filsofo (casos de Jernimo de Rodes e Dionsio de Halicarnasso) e autores de grandes livros movidos pelo intuito erudito de transmitir aspectos da sua vida com maior rigor e distanciamento (casos de Apolodoro de Atenas e Filodemo de Gdaros), ao quais se junta uma pliade de autores do designado primeiro renascimento aristotlico (fase impulsionada pelo acadmico Antoco de Ascalo) denotando j preocupaes de ordem textual, literria e editorial, como acontece quer com Apeliconte de Teo (responsvel pela redescoberta da desaparecida coleco de manuscritos de Aristteles, ou a ele atribudos, e pela compra da mesma a um herdeiro de Neleu de Cpsis, cujo acervo transitar para a biblioteca romana de Tirnio de Amiso, formando o ncleo central da primeira edio cannica do corpus aristotelicum por Andronico de Rodes em Roma, na base da qual trabalharo os seus imediatos seguidores Bocio de Sdon e Nicolau de Damasco), quer com Artmon de Cassandreia (primeiro editor da correspondncia de Aristteles), quer com Ccero, sem o qual no se teria consolidado o primeiro retorno literrio, lexical e interpretativo a Aristteles (retorno claramente assumido pelo platonismo mdio, e apenas tangencialmente contrariado por Calvino Tauro e tico). A esta segunda gerao sucede-se uma outra, no menos importante, movida com o propsito de privilegiar a recolha dos aspectos biogrfico-doutrinrios margem de preocupaes puramente editoriais, como sucede com o gegrafo Estrabo, o estico Possidnio de Apameia, o historiador Plutarco de Queroneia, o cptico e mdico Sexto Emprico e o naturalista Plnio o Antigo. A par desta importa no esquecer um leque de

  • 47

    acidentes e vcios de transmisso, onde os testemunhos biogrficos antigos so de

    tal modo dependentes uns dos outros e esto de tal modo interligados entre si que,

    frequentemente, no possvel seleccionar os elementos sos dos contaminados (...) na

    escritores de entretenimento como o orador lio Aristides, o autor satrico Luciano de Samosata, o cptico Favorino, o autor latino das Noites ticas Aulo Glio, o gramtico e orador Ateneu de Nucratis autor de Vidas dos Filsofos e Banquete dos Eruditos (= Deipnosofistas) e, finalmente, o retrico Eliano autor romano de Varia historia: cf. MESQUITA Antnio P., Vida de Aristteles, op. cit., 99-103 100 O pioneiro comentarismo de Aristteles marca, por assim dizer, o incio do segundo renascimento aristotlico iniciado por Adrasto de Afrodsias e prosseguido quer pelos seus condiscpulos Alexandre de Afrodsias e Galeno d