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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016 1 UM MUSEU DE GRANDES NOVIDADES? a música na narrativa da cultura carioca do “Novo MIS” 1 A MUSEUM OF BIG NOVELTIES? the music in the narrative of ‘carioca’ culture of the “New MIS” Gabrielle da Costa Moreira 2 Felipe da Costa Trotta 3 Resumo: A construção da nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS) em Copacabana insere-se num conjunto de alterações urbanas que buscam imprimir um viés turístico e cosmopolita à cidade do Rio. No MIS, a música desempenha um papel de destaque na elaboração dessa “identidade carioca”, sendo apresentada como cartão de visitas para a cidade e para o novo museu. Nesse texto, discutimos os conflitos e contradições das escolhas estéticas processadas pelo MIS, entendendo que os repertórios musicais legitimados na instituição operam segundo uma lógica de consagração musical e artística convencional, reificando modelos e valores já sedimentados no imaginário estereotípico do Rio. Palavras-Chave: Música Popular. Memória. Cidade. Identidade. Rio de Janeiro Abstract: The new building of the Museum of Image and Sound (MIS) in Copacabana is part of a set of urban changes in Rio de Janeiro that seek to impress a touristic and cosmopolitan profile to the city. In MIS , music plays an important role in the development this "carioca identity". In this text , we discuss the conflicts and contradictions of some aesthetic choices processed by the MIS, understanding that the musical repertoires legitimized by the institution operate as a conventional musical and artistic consecration, reifying models and values already sedimented in the stereotypical imagery of Rio. Keywords: Popular Music. Memory. City. Identity. Rio de Janeiro. 1. Introdução 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Som e Música do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutoranda em Comunicação, PUC-RIO, [email protected]. 3 Docente do PPGCOM-UFF, pesquisador do CNPq e Faperj. Doutor em Comunicação, [email protected].

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UM MUSEU DE GRANDES NOVIDADES? a música na narrativa da cultura carioca do “Novo MIS”1

A MUSEUM OF BIG NOVELTIES?

the music in the narrative of ‘carioca’ culture of the “New MIS”

Gabrielle da Costa Moreira2

Felipe da Costa Trotta3

Resumo: A construção da nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS) em Copacabana insere-se num conjunto de alterações urbanas que buscam imprimir um viés turístico e cosmopolita à cidade do Rio. No MIS, a música desempenha um papel de destaque na elaboração dessa “identidade carioca”, sendo apresentada como cartão de visitas para a cidade e para o novo museu. Nesse texto, discutimos os conflitos e contradições das escolhas estéticas processadas pelo MIS, entendendo que os repertórios musicais legitimados na instituição operam segundo uma lógica de consagração musical e artística convencional, reificando modelos e valores já sedimentados no imaginário estereotípico do Rio. Palavras-Chave: Música Popular. Memória. Cidade. Identidade. Rio de Janeiro Abstract: The new building of the Museum of Image and Sound (MIS) in Copacabana is part of a set of urban changes in Rio de Janeiro that seek to impress a touristic and cosmopolitan profile to the city. In MIS , music plays an important role in the development this "carioca identity". In this text , we discuss the conflicts and contradictions of some aesthetic choices processed by the MIS, understanding that the musical repertoires legitimized by the institution operate as a conventional musical and artistic consecration, reifying models and values already sedimented in the stereotypical imagery of Rio. Keywords: Popular Music. Memory. City. Identity. Rio de Janeiro.

1. Introdução

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Som e Música do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutoranda em Comunicação, PUC-RIO, [email protected]. 3 Docente do PPGCOM-UFF, pesquisador do CNPq e Faperj. Doutor em Comunicação, [email protected].

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Em 50 anos de existência, o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS)

funciona como importante centro de referência para pesquisadores da cultura da cidade, com

especial destaque para a música. Dotado de um robusto acervo discográfico, o MIS

consolidou-se como um dos principais arquivos musicais do Rio, sendo visitado diariamente

por pesquisadores de vários locais em busca de informações para livros, filmes, discos,

shows, teses, dissertações ou reportagens especiais. No contexto de uma grande

reurbanização de parte da cidade do Rio em virtude de mega-eventos como a Copa do Mundo

e as Olimpíadas, uma nova sede para o museu está sendo construída na praia de Copacabana.

Todo esse processo de remodelação da cidade tem sido criticado sobretudo pela orientação

vertical de tais decisões, elaboradas com pouca ou nenhuma consulta à população, que muitas

vezes é obrigada a deslocar-se e adaptar-se a novas estruturas de ruas e transporte público,

que nem sempre produzem uma efetiva melhora nos serviços. Em linhas gerais, as obras são

questionadas por priorizarem apenas um setor da população local, associado a uma forte

ênfase no turismo, independente dos custos logísticos e simbólicos impostos para o restante

da população4. No âmbito cultural, os investimentos do Estado direcionam-se para a

“qualificação” turística da cidade, priorizando a construção de novos museus e centros de

entretenimento e para a atração de grandes espetáculos, festivais e mostras. O novo prédio do

MIS insere-se nesse contexto de debates e ações, tanto como agente de memória e realização

cultural quanto como equipamento cultural turístico da cidade.

Nesse texto, iremos discutir os processos de escolhas estéticas aplicados para

construção do acervo musical do MIS e as possíveis alterações derivadas das diversas

mudanças estruturais e simbólicas que cercam a nova sede. Parte-se da ideia que as coleções

eleitas para serem conservadas em museus como o MIS traduzem escolhas e julgamentos de

valor aplicados aos repertórios e gêneros musicais, ajudando a moldar institucionalmente um

perfil musical credenciado para servir como representação de uma certa identidade – no caso,

o chamado “espírito carioca”.

Nesse sentido, indagamos que forma a elaboração de um projeto como o Novo MIS, ao

deslocar sua sede do centro da cidade para Copacabana e instaurar um conceito de museu

aberto ao público em geral (e não somente voltado para pesquisadores) produz também

4 Um exemplo da arbitrariedade de tais transformações na cidade está a recente “reorganização” das linhas de ônibus que passam pelo Centro e pela Zona Sul da cidade, impondo o acréscimo de uma baldeação aos habitantes de áreas mais afastadas, com impactos gigantescos sobre os orçamentos dessa fração da população.

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deslocamentos nos critérios de valoração e seleção de músicas, ainda que processados por

profissionais que integram o mesmo grupo cultural que esteve historicamente à frente das

decisões do museu. Acreditamos que trata-se de um momento singular de redefinições

espaciais, culturais e políticas na cidade e que o conjunto de visibilidade e audibilidade

legitimado para estar disponível nas luxuosas instalações do novo MIS são vetores que

sinalizam caminhos para esses reposicionamentos.

2. Música, cidade e identidade: o MIS e o “espírito carioca”

A interconexão entre música e cidade tem sido tema frequente dos estudos sobre

música popular. A ideia de que a música produz espaços e territorialidades é frequentemente

acionada nos debates em torno de gêneros musicais que ocupam espaços públicos e privados.

Como apontam os geógrafos John Connel e Chris Gibson, a música popular integra um

complexo processo “através do qual espaços são criados para interação social, entretenimento

e lazer, incluindo uma pletora de espaços designados exclusivamente para produção e

experiência musical” (2003, p.15).

No caso da cidade do Rio de Janeiro, é possível afirmar que parte substantiva do

imaginário de pertencimento a ela associado se reafirma em repertórios musicais. O

imaginário carioca está povoado por canções, gêneros, eventos e movimentos musicais que

constroem a cidade. No cotidiano urbano, a música aparece não apenas em grandes shows e

espetáculos que se inserem no calendário festivo da capital, mas também em ocupações

menos formalizadas, que transformam espaços urbanos em centros de lazer e entretenimento

musical.

Um exemplo bastante contundente dessa reconfiguração musical do espaço urbano é o

caso do bairro da Lapa, que nos últimos 15 ou 20 anos passou a ser ocupada por uma série de

atividades ligadas à música, que transformaram um lugar abandonado e perigoso num dos

principais centros de entretenimento noturno da cidade (HERSCHMANN, 2007). Diversos

lugares da cidade articulam o que Will Straw define como cena musical, um “espaço cultural

no qual uma série de práticas musicais coexistem, interagindo umas com as outras numa

variedade de processos de diferenciação, assim como várias trajetórias de mudanças e

fertilização cruzada” (STRAW, 1991, p. 373). Além dessas cenas, observa-se mais

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recentemente a ocorrência de intervenções musicais em praças e ruas da cidade,

caracterizadas pelos próprios músicos como ações de “ativismo musical” (HERSCHMANN e

FERNANDES 2014, p.104). A música nas ruas, produzida de forma aleatória e espontânea

manifesta também “uma dimensão política na atitude dos atores na busca por proporcionar

melhores condições de acesso ao conteúdo musical” (HERSCHMANN e FERNANDES,

2014, p.33). O carnaval de rua do Rio, exponencialmente ampliado nos últimos anos, talvez

seja o exemplo mais contundente deste momento.

Essa dimensão política da prática musical na construção de territorialidades e

identidades manifesta-se de forma mais institucionalizada nas ações do Estado relacionadas à

música. Seja no fomento de circuitos e atividades musicais (através de apoios financeiros e

logísticos, diretos ou indiretos), na repressão a certas atividades (que vão da interdição

absoluta à imposição de sanções, multas e limites para o funcionamento de bares ou mesmo

para performances na rua) ou na elaboração de políticas públicas sistemáticas de apoio (ou

negação) de determinadas práticas musicais, o Estado atua de modo consistente no

estabelecimento de vínculos entre músicas, territórios e identidades.

Na bibliografia sobre música popular brasileira, a referência ao uso do samba como

veículo de construção de uma identidade nacional pela ditadura de Vargas é um dos

exemplos mais citados dessa aproximação (VIANNA 1995, SANDRONI 2001,

NAPOLITANO 2007). Ainda que tal ação estatal seja intrinsicamente contraditória e que

tenha sempre produzido ao mesmo tempo tensões permanentes em torno da legitimação do

samba como música nacional (PARANHOS, 2015, p.50), o reconhecimento de uma relação

institucionalizada entre samba e nacionalidade no contexto da virada dos anos 1930 para os

anos 1940 é um dos raros pontos de convergência entre pesquisadores de música brasileira,

que em sua ampla maioria atribuem a essa aproximação o êxito da construção da ideia de

samba como símbolo nacional.

No caso do Rio, a operação de associação entre música e identidade carioca por algum

tempo se confundiu com a própria construção da identidade nacional, elaborada e difundida

a partir das margens da Baía da Guanabara. Em seu trabalho sobre o teatro de revista das

primeiras décadas do século XX, o historiador Antonio Herculano Lopes destaca que a música popular urbana estava na vanguarda da formação da cultura urbana carioca e brasileira e o teatro de revista mantinha com ela uma relação íntima. (...). Os personagens da revista ajudaram a consolidar uma auto-imagem do carioca, seja

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pela representação de si (o malandro, zé-povinho, a mulata), seja pela do “outro” (o português, o interiorano, a francesa) (2000, p.24)

Como capital da República, a identidade carioca se torna modelo de identificação

nacional, que tem na música um de seus eixos primordiais. Essa situação se intensifica

durante a chamada Era do Rádio, que estrutura uma referência de nacionalidade a partir do

Rio-capital, sempre articulada com ações governamentais. Durante o Estado Novo (1937-

1945), a aproximação entre mídia de massa (rádio) e política de governo se intensifica ainda

mais com a estatização da Rádio Nacional, ampliando a interconexão entre elementos locais

da cultura carioca e um imaginário compartilhado massivamente de identidade nacional.

A mudança da capital para Brasília em 1960 reconfigura as bases institucionais da

identidade carioca, dissolvendo parcialmente a ligação entre Estado, nação e cidade. No

mesmo ano, a criação do Estado da Guanabara reativa uma outra conexão, mais direta, entre

Estado e cidade, sem passar necessariamente pela nação. Cinco anos depois da mudança da

capital, o governo do Rio organiza uma série de eventos e inaugurações para comemorar o IV

Centenário da Cidade, reforçando sua importância cultural no país. Projeto encampado pelo

governador Carlos Lacerda, a criação do MIS foi um dos vetores do calendário de festejos,

sendo idealizado “como lugar de memória carioca dedicado exclusivamente à sua história

local, com a missão de dotar o recém-criado estado da Guanabara de uma identidade

desvinculada do poder central” (MESQUITA, 2009, p. 95). Desde o início, a concepção do

MIS prezava uma integração ativa com a cidade, produzindo discos, recebendo exposições e

eventos em torno de seu acervo. Voltado para a história recente da cidade, e incorporando objetos até então inéditos nos museus brasileiros da época – como discos, partituras, fotografias, depoimentos orais – o MIS promoveu a aproximação da museologia com a história social, através do registro não apenas das elites, mas do cotidiano das pessoas comuns (MESQUITA, 2009, p. 117).

A ideia de um museu antenado com a cotidianidade da cidade estrutura um campo fértil

para a ênfase na canção popular que se desenha nos anos subsequentes à inauguração do

MIS. Num período particularmente ativo no mercado musical brasileiro (e ainda fincado de

modo consistente no Rio), o MIS se torna um espaço de referência para a cultura da cidade,

ampliando progressivamente seu acervo musical. Desde 1966, além de aquisições de coleções

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(doadas ou compradas), o MIS também produz acervo com a Série Depoimentos para a

Posteridade, que continua sendo realizado até hoje contabilizando mais de 1000 depoimentos.

Na segunda década do século 21, o projeto de ampliação do MIS começa a tomar

forma. Acompanhando um gigantesco projeto de reestruturação urbana da cidade do Rio de

Janeiro (de novo!), que inclui, no plano arquitetônico-urbanístico, a construção de novos

museus e equipamentos culturais, a reestruturação da área portuária e diversas alterações no

sistema de transporte coletivo, a construção da nova sede do MIS apresenta-se como

elemento cultural que revela uma forma particular de pensar a música na cidade nesse início

de século, incorporando sua memória, seu imaginário e seu cotidiano. Uma operação que

apresenta aspectos ufanistas de valorização do Rio mas que ao mesmo tempo possui uma

série de contradições e esconde tensões. No caso da música popular, o MIS funciona como

instituição de consagração artística, conferindo valor a determinados repertórios, personagens

e momentos de sua história. Assim, torna-se agente de um “enquadramento de memória”

(POLLAK, 1989), estruturando maneiras de narrar o passado e construir o presente.

3. Memória e música: o que está no MIS?

A importância simbólica e histórica do MIS tem relação estreita com o reconhecido

valor artístico e estético de seu acervo, com destaque especial para o setor sonoro-musical. A

ênfase musical na estruturação do acervo está relacionada à presença da coleção do radialista

Almirante, uma das coleções iniciais do museu, à qual somaram-se as coleções da Rádio

Nacional, Jacob do Bandolim, Braguinha, Dorival Caymmi, Herivelto Martins, Waldir

Azevedo, Herminio Bello de Carvalho e Sergio Cabral, entre vários outros artistas e

pesquisadores da área de música.

O projeto inicial do museu, contudo, tinha uma orientação mais equilibrada entre as

diversas manifestações artísticas, incluindo importantes coleções de fotografias (Augusto

Malta e Guilherme Santos) e a intenção de incorporação de filmes, acervos de teatro e

literatura. Como aponta Claudia Mesquita em seu livro Um museu para a Guanabara, o

enfoque musical do MIS ilustra “a vitória de um projeto de museu defendido por um grupo

de intelectuais cariocas” (2009, p.171) que passou a privilegiar o que a autora classifica como

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“a base mais popular do MIS”. Ainda segundo a autora, “as lembranças do pesquisador e

radialista (Almirante) consolidaram-se como uma das mais cultuadas no Museu da Imagem e

do Som, seja pela grande procura de pesquisadores aos seus acervos sobre música popular ou

por intermédio de inúmeras homenagens póstumas” (MESQUITA, 2009, p.171).

No momento atual, pode ser produtivo pensar um pouco mais profundamente sobre a

atuação desse “grupo de intelectuais” que desenhou o projeto “vitorioso” do MIS com ênfase

na música e, mais do que isso, refletir sobre determinadas escolhas de repertórios e artistas

legitimados como representantes de um ideal de cultura carioca e brasileira. Como em

qualquer processo de curadoria museológica ou artística, determinados critérios de qualidade

são elaborados para montagem de um perfil estético desejável. No caso do MIS, a influência

das escolhas individuais dos artistas, colecionadores e pesquisadores que doaram seus

arquivos para a instituição é óbvia. Mas talvez valha a pena indagar sobre o resultado estético

de tais escolhas, que revelam uma aguda orientação para a valorização de determinado

universo da canção popular, em detrimento de outros.

Nesse sentido, é importante observar que o acervo do MIS é formado

fundamentalmente por coleções individuais (com exceção da Rádio Nacional e a Discoteca

Pública do Distrito Federal). Tais coleções carregam marcas de uma individualidade, que em

certa medida exclui a coletividade (COLOMBO, 1991). Nelas estão presentes subjetividades

que cancelam pistas e possibilitam perdas de acesso a outras memórias e suas infinitas

possibilidades. Porém, ao comporem o acervo de uma instituição se tornam legitimadas para

serem apropriadas como parte da memória social, estabelecendo uma ligação entre a memória

individual e a coletiva. Na operação, as escolhas subjetivas se tornam públicas, consagrando

critérios de valorização individuais em instituições que amplificam para a sociedade tais

critérios.

Ao mesmo tempo, nenhuma memória é essencialmente individual ou exclusivamente

coletiva (LOWENTHAL, 1998; POLLAK 1989). A memória é o resultado de seleções

realizadas em função de momentos históricos, que estruturam o que Pollak chama de

“enquadramento da memória” (1989), ou seja é uma construção social, que ocorre tanto no

nível individual quanto coletivo. A construção da memória passa a ser então um campo de

disputa, conflito e polaridades numa busca de produção de sentido, identidade e

representação social, a partir dos enquadramentos, muitas vezes coercitivos e marcados por

dominação e violência simbólica. Não é a toa que os grupos dominantes desejam ser

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“senhores da memória e do esquecimento” em suas sociedades, pois “os esquecimentos e os

silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória

coletiva” (LE GOFF, 2003, p.426). As coleções do MIS funcionam nesse espaço duplo entre

acervos privados e memórias coletivas, construindo em seu conjunto memórias

compartilhadas, enquadradas e legitimadas. Ou, como aponta Bourdieu, “consagradas por sua

própria conservação” (BOURDIEU, 2001, p.118).

No caso da música, incorporar repertórios ao acervo de um museu significa legitimar

certas músicas, assegurando não somente sua preservação, mas também um amplo leque de

narrativas sobre a memória musical. No Brasil (e em vários outros países), os acervos

musicais começam a ser montados ainda no início do século XX a partir de gravações

realizadas por etnógrafos interessados em práticas “populares”, normalmente rurais ou em

localidades distantes dos grandes centros. As gravações de Theodor Koch-Grünberg

(realizadas entre 1899 e 1924), Edgar Roquete-Pinto (1912) e Mario de Andrade (1938) são

alguns desses casos (OLIVEIRA PINTO, 2005). O que movia os pesquisadores do início do

século XX era sobretudo uma ideia de autenticidade que se manifestava nas culturas “não-

europeias”. No caso de Mario de Andrade, os registros da Missão de Pesquisas Folclóricas

em 1938 tinham como objetivo não somente catalogar e preservar manifestações de uma

cultura popular “profunda”, mas extrair dessas sonoridades a construção de uma identidade

nacional inspirada pelo “folclore como fonte de brasilidade” (CONTIER, 2013, p. 106). Mas

também não podemos deixar de considerar que a gravação é uma das principais formas que a

obsessão mnemônica do nosso tempo. O medo do esquecimento faz com que tudo se torne

digno de ser gravado, para ser acionado quando necessário.

Esse conjunto de gravações catalogadas e condicionadas em centros de memórias

funciona como materialização museológica de práticas culturais (musicais) reconhecidas

como válidas. Como afirma a etnomusicóloga Flavia Camargo Toni, As coleções tentam, de alguma forma, controlar a variedade do mundo. (...) E, sem dúvida nenhuma, as coleções acabam prometendo para os seus colecionadores a ideia de poder controlar o caos circundante, na medida em que se desenvolva um critério qualquer para análise e classificação das variadas características dos objetos em questão” (2008, p.57).

Seleção, controle e classificação são atividades que perpassam a montagem de acervos

pessoais e públicos, realizada por agentes que aplicam modos de pensar e preservar aquilo

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que julgam relevante. Os critérios usados são alvo de contínua disputa e, de tempos em

tempos, tais critérios são reavaliados, refletindo mudanças em pensamentos compartilhados

sobre o que é ou não arquivável.

Ao discutir a constituição de acervos musicais etnográficos em diversas partes do

mundo, Samuel Araújo destaca que a partir da década de 1960, o viés “colonialista” dos

registros musicais depositados em diversas instituições em todo o mundo passa a ser

questionado por induzirem a uma espécie de “congelamento de estereótipos culturais” (2008,

p.37). Tais acervos, imbuídos da noção de preservação, muitas vezes ignoravam o caráter

dinâmico das culturas, negligenciando processos de transformação no afã por registrar o mais

antigo ou aquilo que seria entendido como mais “autêntico”. Esse questionamento abre

caminho para movimentos de incorporação de práticas musicais mais diversificadas nos

acervos museológicos, ampliando o universo de músicas “conservadas” em arquivos e

museus.

Coincidência ou não, é exatamente nesse período que o Museu da Imagem e do Som do

Rio de Janeiro será concebido e inaugurado, buscando materializar através da cultura (e,

como vimos, especialmente da música) um conjunto de ideias sobre a identidade carioca.

Sintomaticamente, o acervo musical de um radialista será o ponto de partida para o projeto de

valorização de uma cultura popular urbana, tecnológica e midiatizada, distante dos

referenciais rurais adotados, por exemplo, por Mario de Andrade para eleger o que é

valorizável na cultura musical brasileira. A cotidianidade da música dos rádios e do disco

será valorizada como um marco fundador de uma nova autenticidade musical, representada

não em heranças de tempos remotos, mas nas práticas recentes da canção urbana midiatizada.

A formação do acervo do MIS a partir do rádio é parte desse processo.

Deve-se destacar que o período de inauguração do MIS é um momento de grande

debate intelectual sobre o papel da música na cultura brasileira. Numa fase imediatamente

após a eclosão e dispersão da bossa nova, com a ampliação da televisão, dos festivais e dos

programas musicais, a música popular urbana assumia protagonismo nos debates intelectuais,

pavimentando sonoramente um amplo espectro de discussões e ações políticas acirradas. A

canção de protesto, o iê iê iê, a valorização do samba “autêntico”, as transformações das

escolas de samba, a entrada progressiva da black music no país e a elaboração estética da

Tropicália e da “MPB” eram elementos de uma cultura em ebulição que ativavam discussões

acaloradas. É nessa mesma época que Caetano Veloso formula a noção de uma “linha

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evolutiva” na música brasileira5, ajudando a desenhar um perfil estético sobre o qual

começará a ser contada, alguns anos mais tarde, a história da música popular brasileira. E, ao

olhar para o passado recente, os pesquisadores identificam um mito de origem sobre o qual

montam suas narrativas.

Nesse processo, o samba será o gênero musical hegemonicamente considerado marco

fundacional da canção popular urbana brasileira, entendido por diversos pesquisadores como

momento síntese de práticas musicais variadas que consolida a música nacional

(SEVERIANO 2008, NAVES 2010). Luiz Tatit chega a afirmar que os sambistas do início

do século XX eram “melodistas e letristas em pleno processo de geração de uma música

popular, centrada na voz do intérprete” (2004, p.145). A partir dessa ideologia, o samba se

confunde tanto com o Rio de Janeiro quanto com a própria ideia de nação e mais ainda, com

a formulação de um novo produto cultural que, de certa forma, concilia autenticidade,

tradição e modernidade. Será o elemento cultural mais incisivo sobre o qual a reflexão sobre

a música brasileira irá se desenvolver.

O sentido do discurso elaborado em torno nacionalização do samba está relacionado

com o discurso positivado do mulato mestiço. Samba e mestiçagem são dois fortes elementos

que traduzem todo o discurso conciliador entre brancos e pretos, morro e asfalto, zona norte e

zona sul. Segundo Sandroni, o samba foi um “compromisso possível” entre as influências

musicais africanas e o mundo (branco) do rádio e do disco, contribuindo “para que o Brasil,

que 40 anos antes conhecia a escravidão, passasse a outra etapa de sua identidade cultural,

integrando dados até então excluídos” (2001, p.222). A ideia de “compromisso” ou

“conciliação” é matriz discursiva da ideologia da mestiçagem, uma mistura positivada de

tensões e diferenças com o objetivo de construir uma identidade comum.

Considerando o protagonismo do MIS como fonte legitimada de pesquisa sobre música

popular brasileira, as narrativas que elaboram “a” história da música popular brasileira tem

relação estreita com o acervo disponível na instituição. É possível encontrar uma forte

correspondência entre as coleções do museu e os principais compêndios e estudos sobre

canção popular no Brasil.

5 A íntegra dessa “mesa redonda”, promovida e publicada pela Revista Civilização Brasileira em 1966 (n.7) está disponível no site: http://tropicalia.com.br/eubioticamente-atraidos/reportagens-historicas/que-caminhos-seguir-na-mpb (Acesso 01/fev/2016).

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E o inverso é verdadeiro: os silêncios da historiografia da música popular brasileira são

ausências também no museu. O historiador Paulo César de Araújo, em seu instigante livro Eu

não sou cachorro não, discute o fato de não ter encontrado nos acervos do MIS nenhum

depoimento dos artistas identificados com o repertório romântico (“cafona”) da década de

1970 como Nelson Ned, Waldick Soriano, Odair José ou Paulo Sérgio. Segundo ele, essa

ausência reflete a operação de seleção e enquadramento de memória realizada por

determinados agentes que não somente determinam o que entra no acervo, mas também o que

será tomado como fonte válida para pesquisa (ARAÚJO, 2007, p.343). Ao comentar algumas

das publicações sobre música brasileira, Araújo aponta a sistemática ausência de cantores

ligados ao universo “cafona”, que, a despeito de suas vendas expressivas, não encontram

lugar nas narrativas sobre a história musical brasileira. O autor destaca o livro MPB: a

história de um século, no qual “ao longo de suas mais de 400 páginas ilustradas com 400

fotos não há nada referente a nenhum dos artistas “cafonas” da década de 70” (2007, p.345).

O livro em questão é de autoria de Ricardo Cravo Albin, o primeiro diretor do MIS (1965-

1971), que contribuiu significativamente para a definição do perfil musical da instituição.

Indo mais além, Cravo Albin, juntamente com Almirante e diversos outros pesquisadores,

moldaram um determinado perfil estético para o acervo, que tem inspirado parte importante

da historiografia da música popular brasileira. Seus eixos centrais são o samba em todas suas

fases e derivações, a bossa nova, o contexto do festivais e a MPB, passando por algumas

vertentes de música instrumental (sobretudo o choro) e com inserção apenas pontual de

músicos e repertórios ligados ao universo romântico e ou a repertórios “dançantes” (como o

soul ou o rock). Tais escolhas estão relacionadas também à própria afinidade estética dos

gestores e presidentes da instituição, sempre com grande proximidade com o mundo do

samba6. E essas escolhas atravessam toda a trajetória do museu, aportando na segunda década

do século 21 na praia de Copacabana.

6 Além de Ricardo Cravo Albin (1965-1971), o MIS teve como diretores-presidentes nomes ligados à prática ou pesquisa sobre samba e choro como Paulo Moura (1997-1998), Marília Barbosa (1999-2002), Nilcemar Nogueira (2006) e Rosa Maria Araújo (2007-atual). O Museu também foi dirigido pelo compositor Edino Krieger (2003-2006). Desde sua inauguração o MIS foi dirigido por pessoas com carreiras variáveis entre o mundo artístico e a museologia: Maurício Quadrio, idealizador e primeiro diretor por poucos meses; Neuza Fernandes (1971-1973); Alvarus (Álvaro Cotrim, 1973-1974); Luiz Carlos Pinheiro (1975); Gilda Mello Ferraz (1975); João Vicente de Souza (1976-1977; José Carlos Monteiro (1977-1980); Maria Cristina Gonçalves Ferreira Mendes (1980-1983); Heloisa Buarque de Holanda (1984-1985); Maria Eugênia Stein (1987-1991); Arthur Poener (1991-1994) e Jorge Roberto Martins (1995).

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4. O “Novo MIS”: memória, tecnologia e música

O “Novo MIS”, concretamente, não existe. O que podemos apreender sobre a ideia e os

detalhes do projeto são fragmentos, publicizados especialmente no tapume publicitário da

obra da nova sede em Copacabana (incluindo um quiosque que contém a maquete e alguns

vídeos relativos ao prédio) e na internet (sobretudo no site oficial do MIS, nas redes sociais e

em vídeos institucionais disponíveis no Youtube e outras plataformas). Contudo, esses

elementos formam um complexo relativamente amplo de discursos sobre o imaginário que

cerca a nova sede do museu, estruturando um conjunto de documentos sobre o qual é possível

imaginar e interpretar alguns aspectos que circulam em torno dessa mudança.

O principal vídeo publicitário do projeto do novo MIS tem um pouco mais de 9

minutos de duração. Nele, o espectador é convidado a fazer um tour virtual pelos ambientes

do novo museu através de uma animação de computador, sendo acompanhado pela narração

do ator Hugo Carvana. O texto da narração enfatiza a arquitetura ousada do novo prédio, que

visa integrar o museu com a praia de Copacabana, sublinhando a comunicação entre os

espaços e entre as diversas nuances do que entendem ser o “espírito carioca”. Recheado de

clichês e estereótipos sobre o Rio e seus habitantes, a narrativa de cidade musical atravessa

em diversos momentos a apresentação do vídeo, reforçando a ênfase musical do imaginário

da cidade e do próprio MIS. Textualmente:

A vida precisa de música. E, cá pra nós, não há cidade como o Rio quando o assunto é música. O maior legado da nossa cultura para o país e o mundo. Criou o choro e a bossa nova. “Berço do samba e de lindas canções que vivem na alma da gente”. O Rio criou o samba, criou o choro, e com suas vozes e melodias uniu o Brasil através das ondas da Radio Nacional. No Rio, os instrumentos musicais do mundo inteiro se tornam brasileiríssimos.

Em que pese o quase caricato cariococentrismo do trecho, é interessante sublinhar a

forma através da qual a música funciona para valorizar a força da cultura do Rio, numa

narrativa romântica e acrítica sobre a centralidade histórica da cidade. Esse viés ufanista

atravessa diversos outros discursos sobre a nova sede da instituição, configurando um estilo

publicitário constantemente adotado.

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No site oficial do Museu, o projeto do “Novo MIS” é apresentado em textos e outros

vídeos mais curtos, quase sempre contendo breves depoimentos de pessoas envolvidas na

elaboração do projeto arquitetônico ou museológico. Em um desses vídeos, a presidente Rosa

Maria Araújo recupera um viés histórico da atual mudança de sede, mencionando que a

criação do museu em 1965 teve como objetivo estabelecer um centro de pesquisa e memória

da cultura “do Rio de Janeiro e do Brasil” e que a nova sede será um espaço onde essa cultura

será “mostrada”. A distinção entre pesquisa e exibição é um dos eixos recorrentes nos

discursos sobre a mudança da sede da instituição da Lapa para Copacabana7. No entanto, essa

narrativa obscurece o fato de que o Museu da Imagem e do Som sempre esteve em busca de

uma conciliação entre documentação e exibição. A cerimônia de inauguração do MIS foi

também a abertura de uma “mostra” com peças expostas em sua primeira sede. No discurso

de inauguração, o governador Carlos Lacerda sublinha que o museu tem como objetivo

organizar exibições regulares, na tentativa de construir um futuro culturalmente sólido para o

Rio de Janeiro. Em suas palavras: A mostra que hoje se abre é, por assim dizer, uma pré-estreia das coleções que periodicamente serão exibidas. Não se trata apenas de uma casa para satisfazer a curiosidade pública, que é bem-vinda sempre nesta casa, mas trata-se (...) de um centro de documentação através do qual se há de procurar e encontrar as raízes do Rio de Janeiro, os segredos e soluções do seu futuro. (Carlos Lacerda, 3/9/1965, citado em MESQUITA 2009 p.189)

Como podemos observar, a construção da nova sede do MIS intensifica e atualiza algo

que se encontra como marco do nascimento e da história da instituição, apesar desse caráter

expositor ter se perdido com o passar dos anos. Hoje, o MIS não é um museu para ser

visitado, ele funciona unicamente como centro de pesquisa e documentação.

O que vale a pena chamar atenção aqui é uma certa distinção que parece existir entre o

MIS e o Novo MIS. O uso do termo “novo” como prefixo transforma o preexistente em

“velho”, e designa uma versão atualizada e “moderna” que é herdeira do “velho”. O curioso

é que os dois “MIS” estão simultaneamente em ação, com funções distintas. De acordo com o

projeto, a sede da Lapa continuará sendo a parte responsável pela administração da

instituição, pelo tratamento técnico do acervo e também de pesquisa do acervo. A sede de

7 De acordo com o projeto, o prédio da Lapa continua a existir como um espaço de localização física do acervo, reserva técnica e de tratamento dos documentos. Entretanto, nos debates que cercam o MIS a grandiosidade do novo prédio em Copacabana ofusca qualquer possível comentário sobre a unidade da Lapa, cuja função de pouca visibilidade midiática reforça a separação entre museu de memória e museu turístico.

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Copacabana também terá sala de consulta para pesquisar o acervo, porém seu foco é na

exposição museográfica. E isso a faz bem diferente.

Talvez a especificidade de cada sede ajude a apontar de modo mais claro uma distinção

entre arquivo e memória. Apesar de muitos centros arquivísticos serem designados como

centros de memória, numa interpretação mais acurada, a memória não é um objeto

materializável no registro ou gravação de algo e disponibilizado em instituições de guarda e

conservação. A memória é uma ação que “destila o passado” (LOWENTHAL, 1998, p. 104).

Os arquivos, por sua vez, são operadores que permitem evocar um determinado documento

para responder a um chamado. Esse chamado é a ação de memória.

A memória da identidade cultural do carioca está sendo destilada pela curadoria

museográfica do Novo MIS. É lá que parte dessa memória está sendo construída, em grande

medida a partir de “escavações arqueológicas” no acervo da própria instituição, mas não

apenas. O projeto museográfico compreende também produção de conteúdo – de memória –

a partir dos arquivos do “velho” MIS e além dele. O tratamento do passado (arquivos) para

construção de uma ação memorialística talvez seja uma das distinções mais significativas

entre as funções do “novo” e do “velho” MIS. E parte dessa reelaboração está relacionada à

tecnologia, uma dimensão que imprime conexão com “atualidade”, com o “tempo presente”,

com “juventude”.

Em um dos vídeos disponibilizados na página do MIS sobre a nova sede, a responsável

pelo projeto expográfico, Daniela Thomas, fala como o Novo MIS será um museu do

presente com atores jovens e radicais como Noel Rosa e Carmem Miranda. Nas palavras de

Thomas: Essa cultura carioca é uma cultura jovem, é uma cultura forjada na juventude dos criadores. O que é interessante, é que quando você vai mexer no material você fala ‘ai meu deus, material velho, preto e branco’. Quando você vê, quando começa a lidar com o que está sendo visto, que está sendo ouvido, você percebe que tem um vigor da criatividade, da juventude, uma radicalidade. Os cariocas aqui vão se reconhecer e retomar um orgulho da maneira como a criação é feita aqui, como aqui tudo é fruto de encontros muito radicais, entre pobres e ricos, altos e baixos, e ódios e amores e paixões, é uma cidade vivida na intensidade.

A tecnologia (artefatos interativos, holografias, instalações, etc.) permite novas formas

de se apreender o mundo, seu presente e seu passado. As representações dessa realidade

imaginada pela curadoria (viva, radical, intensa, presente) precisam de um meio que ligue

esse material “velho” a seu “novo” tempo (presente), pois sem isso não seria possível a

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transmissão de valores, crenças e “carioquices” para o grande público que se espera. Se o

público visitante do Novo MIS fosse apresentado apenas a exposições de fotografias em preto

e branco de uma cidade que só existe pelas lentes dos fotógrafos da virada do século XX

(como nas coleções de Augusto Malta e Guilherme dos Santos) ou a músicas com ruídos e

vídeos de baixa qualidade mostrando alguém cantando um samba, talvez essa vitalidade e

radicalidade não fossem reconhecidas.

É a tecnologia que faz o Novo MIS ser jovem e radical, transformando o passado em

presente, ao mesmo tempo que deixa claro a separação entre os tempos que se tocam. A

crença desmedida no poder da tecnologia do Novo MIS incita Thomas a declarar que o

projeto encorajará as pessoas, os cariocas, a “voltarem a criar”. Declaração é curiosa e

contraditória com o argumento apresentado em outro vídeo, no qual o co-curador André

Weller observa que a cada instante, no Rio, algo “genial” está sendo produzido. Mais

comedido, Weller observa que o museu pode ser um espaço de incorporação desse presente

criativo, dentro de um contexto de apropriação do acervo e do passado. Uma memória

atualizada.

Esse discurso ressoa algumas ideias inscritas na proposta arquitetônica do museu, que

amplia as possibilidades de integração do público com o acervo através dos artefatos

tecnológicos. A rigor, o projeto do novo MIS funciona como uma lógica de centro cultural

construído sobre um museu cultural (o “novo” sobre o “velho”), buscando acomodar

inúmeras atividades (cinema, boate, restaurante, galeria de arte, centro de convivência, salas

de aulas e palestras, mirante, espaço de exposições, ações educativas, entre outros) em um

espaço caracterizado pela ideia de “abertura” para a “praia”, metonímia de uma certa visão

sobre a “cidade”.

O bairro de Copacabana aparece nos discursos como um símbolo crucial dessa

mudança, operando nas narrativas como encarnação de um imaginário do que significa o

“espírito carioca”. Copacabana não é somente um tema privilegiado no repertório musical

consagrado no acervo, mas é o bairro mais turístico do Rio, com enorme concentração de

hotéis e apartamentos alugados por temporada, além das festas e espetáculos esportivos e

artísticos que regularmente são abrigados em suas areias. O MIS de Copacabana é um museu

que também é turístico, ampliando sua função memorialística para ocupar também um papel

de exibidor da cultura da cidade agora não mais exclusivamente para os residentes, mas para

os visitantes. Certamente o bairro e a magnitude do novo prédio convocam a “curiosidade

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pública” mencionada por Lacerda, acomodando confortavelmente em seus espaços demandas

difusas de imersão no imaginário “carioca”. Imersão realizada primordialmente, pela música.

Repertórios consolidados e (re)conhecidos como integrantes de um acervo musical e

simbólico da cidade são ferramentas para a construção de pertencimentos à cidade e apelos

para aproximação afetiva entre os indivíduos e os espaços, as instituições, e até mesmo a

determinados prédios. A música é um “artefato ativo na vida social” (DENORA, 2004, p.44),

que “toca em pontos de ligação efetivos do mental e do corporal, do intelectual, do afetivo”

(WISNIK, 1999, p.28). A questão que se coloca é: que repertórios? Haveria na curadoria ou

no perfil estético do Novo MIS espaço suficiente para incorporar a variedade de sonoridades

e musicalidades que se cruzam continuamente em torno do imaginário carioca? Até que

ponto todos os cariocas estão representados ou se sentirão representados pelas escolhas

musicais do “novo” museu, fincado na valorizada avenida praiana de Copacabana?

A partir dos fragmentos discursivos disponíveis sobre as exposições e a organização

dos acervos musicais no Novo MIS, é possível observar que os repertórios musicais

priorizados no novo espaço apresentam uma certa continuidade em relação ao universo

simbólico do velho MIS. Isto é, a ênfase numa espécie de “linha” (ainda que seja abandonada

a ideia de “evolução”) que liga o samba à bossa nova e daí para a Tropicália e a MPB. A

metáfora da linha é bastante sugestiva pois sugere algo que efetivamente ocorre: a obliteração

de outros repertórios e sonoridades simultâneos, que são caracterizados como secundários e

diminuídos em sua importância histórica (quando não explicitamente ignorados). Entre os

artistas e movimentos mencionados e apresentados nos diversos vídeos, entrevistas e textos

disponíveis sobre o Novo MIS, há um certo destaque para Carmem Miranda, Noel Rosa,

Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Tom Jobim e alguns outros nomes consagrados do

repertório musical nacional.

Mas nem tudo é tão estanque. Em algumas passagens – breves – há referências ao funk

e ao “passinho”, sempre apresentados no espaço da “festa”, não exatamente como parte

integrante do pavimento dedicado à música. Essa opção tem um duplo efeito. Por um lado,

reconhece a importância estética e cultural do funk no Rio de Janeiro contemporâneo e o

inclui no rol das práticas musicais museografáveis. Por outro, relega o funk a uma

manifestação de relevância menor em comparação a outras mais consagradas, alocando toda

sua força expressiva no ambiente da boate, sintomaticamente no “subsolo” do novo prédio.

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O que estamos querendo apontar aqui é que a operação de seleção realizada no MIS

desde sua fundação é protagonizada por determinados agentes incluídos em certos estratos

sociais que aplicam seus próprios critérios e juízos na construção de uma memória

compartilhada. É a “preferência musical do público de classe média e formação universitária”

que costuma ser tomada como parâmetro de qualidade em instituições como o MIS, pois

desse setor da população é que “saem os críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos,

enfim, os enquadradores da memória de nossa música popular” (ARAÚJO, 2007, p.343). Em

uma definição particularmente inspirada e ao mesmo tempo irônica, o brasilianista Frederick

Moehn define a “classe média” carioca como um grupo que celebra as expressões culturais de raiz, mas se preocupa com o tradicionalismo; o samba é uma influência fundamental para esses músicos, ainda que se ressintam de estereótipos que associam o Brasil a samba, mulata e carnaval. Adoram rock, mas procuram controlar sua influência. A música da diáspora negra também tem influência importante, mas as políticas de identidade negra menos. Podem ser pop, mas não muito populares. Tecnologia? Fabuloso, mas somente se ela não apagar as marcas sonoras da brasilidade. (2012, p.4)

O autor está se referindo à criação musical de um grupo de artistas “cariocas” (nem

todos nascidos no Rio) que surgiram a partir de meados da década de 1990 e que buscam um

cruzamento de linguagens entre a tradição e a tecnologia pop cosmopolita como Pedro Luis,

Fernanda Abreu, Paulinho Moska e Lenine. Músicos que se inserem no mesmo universo

cultural dos curadores e criadores do Novo MIS. Porém, esses artistas também não aparecem

na narrativa sobre a exposição musical do museu, talvez por serem recentes e estarem

ausentes das coleções doadas ou compradas pelo “velho” MIS. Essa ausência, de certa forma,

reforça a ideia de que o imaginário musical do MIS funciona como agente ativo de memória

selecionada por um determinado grupo social (que também não é homogêneo!) mas

construída a partir de um passado referencial entendido como válido. Assim, a presença do

funk no subsolo se torna mais significativa, pois mesmo sendo um movimento musical

contemporâneo, ocupa um espaço no imaginário carioca que é impossível de ser ignorado. E

demonstra que os jogos de escolhas são mais complexos e contraditórios do que parecem ser

à primeira vista ou escuta.

5. MIS na crise: incertezas políticas e investimentos culturais

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Desde meados de 2015, todo o projeto do Novo MIS encontra-se interrompido por falta

de verbas. A crise financeira do país e do Estado do Rio de Janeiro produziu paralizações em

diversas obras em todos os níveis de governo e o processo de transformação do “velho” MIS

em um “novo” MIS foi inevitavelmente atingido por esse momento político-econômico. A

nova sede deveria estar pronta no final de 2013, para funcionar como polo turístico durante a

Copa do Mundo de 2014. Expectativa frustrada em virtude de inúmeros atrasos provocados

fundamentalmente pela magnitude da obra, um novo calendário foi elaborado para finalizar a

sede para os Jogos Olímpicos de 2016. Novamente esse planejamento está sendo revisto e

atualmente o governo não tem previsão para inauguração da nova sede (cf. Veja Rio

09/01/2016).

A dificuldade em cumprir uma agenda política e cultural que esteja associada a

calendários turísticos e a uma publicidade específica gerada pelos grandes eventos na cidade

nos convoca a uma reflexão sobre as prioridades e os investimentos culturais realizados pelos

gestores públicos. Os milhões de reais empregados8 e o objetivo de implementar um museu

cultural de forte apelo turístico na praia de Copacabana não é consensual entre agentes do

campo cultural. A gestão do MIS será, de acordo com o projeto, realizada através do sistema

conhecido como “OS” (Organização Social), uma controversa parceria público-privado

definida pela Lei Federal 9.637 de 15 de maio de 1998 como “pessoa jurídica do direito

privado, sem fins lucrativos”. O modelo de gestão das “OS” é criticado por dividir de forma

desigual ônus e benefícios entre o público e o privado, retirando o Estado do poder decisório

sobre políticas culturais, ambientais ou de pesquisa realizadas com dinheiro público. A

parceria entre a Secretaria Estadual de Cultura e a Fundação Roberto Marinho, que realiza o

projeto museológico e tecnológico é um embrião desse sistema de gestão e financiamento,

com dinheiro obtido pelo Estado através do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Diga-se de passagem, a Fundação é parceira também nos grandiosos projetos do Museu de

Arte do Rio de Janeiro (MAR) e do Museu do Amanhã, ambos na Praça Mauá, na zona

portuária da cidade, principal área de intervenção da remodelação urbanística na cidade. E é 8 Dados publicados na Revista Veja Rio (9/1/2016), sem fonte, apontam o valor de 138 milhões de reais. O site de notícias R7 repete o mesmo valor em matéria no dia 21/1/2016, atribuindo a informação à Secretaria de Estado de Cultura. Em outra reportagem publicada um ano antes (11/1/2015), o jornal O Globo menciona a cifra de 104,6 milhões. Dados apurados no documento “Registro de Contratos” do Governo do Estado do Rio de Janeiro, disponível no Portal da Transparência do Governo do Estado (http://www.transparencia.rj.gov.br/transparencia/content/conn/UCMServer/uuid/dDocName%3aWCC226833) registram a soma de aproximadamente 94 milhões de reais investidos diretamente na obra, e mais cerca de 15,5 milhões relativos a atividades relacionadas à catalogação e digitalização do acervo.

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parceira também dos museus da Língua Portuguesa e do Futebol em São Paulo e do Paço do

Frevo em Recife, todos com o mesmo perfil tecnológico.

Todo esse investimento contrasta com as demais políticas culturais desenvolvidas pelos

governos estadual e municipal. De modo bastante direto, podemos mencionar a falta de

investimentos nos museus (“velhos”) já existentes, desprestigiados e até mesmo abandonados

pelos agentes públicos. De forma mais indireta, esse conjunto de opções políticas e estéticas

se materializa também na sistemática repressão aos bailes funk nas favelas ocupadas pelas

Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Nesses locais, além da proibição dos bailes, a

simples audição do repertório do funk em festas privadas (como aniversários ou encontros de

amigos) sofre intervenção policial, configurando-se aos ouvidos dos militares como ameaça à

ação “pacificadora”. Analogamente, a ocupação das ruas do centro da cidade com música

espontânea executada por grupos musicais de diversas searas musicais enfrenta

constantemente abordagens policiais que muitas vezes impedem suas práticas (ver

FERNANDES, TROTTA e HERSCHMANN, 2015). Em ambos os casos, podemos extrair

um embate político e estético sobre a prática musical que atravessa juízos de valor

construídos em torno de determinados repertórios.

É evidente que não há uma relação direta entre a repressão ao funk nas favelas

“pacificadas” e a reificação da “linha evolutiva” da história da MPB operacionalizada pelo

MIS (tanto o velho quanto o novo). São movimentos distintos que praticamente não se

cruzam a não ser pelo fato de se inserirem num mesmo contexto temporal de debates sobre

valores, músicas e memórias. Porém, esse contexto cultural produz vazamentos de ideias,

sonoridades e julgamentos que não são compartimentados em blocos, mas produzidos e

elaborados dinamicamente no cotidiano cultural e musical da cidade. A legitimidade das

práticas musicais atravessa diversos agentes, tempos, locais e instituições e não pode ser

creditada exclusivamente a um determinado grupo de atores sociais. No entanto, não é

possível ignorar que tais escolhas reproduzem (para pensar boudieusianamente) modos de

pensar e valorizar de uma parcela da sociedade, que apagam os rastros de tais disputas para

reforçar um perfil estético e político do que é válido, relegando a um plano secundário o que

não é válido. E, de modo tortuoso e bastante indireto, esses critérios de valoração acabam

sendo compartilhados pelos comandantes das UPPs ou sargentos da Guarda Municipal, que

não hesitam em vincular diretamente o funk ou determinados estilos de rock à marginalidade,

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passando por cima do reconhecimento de seu valor cultural (FERNANDES, TROTTA e

HERSCHMANN, 2015).

O inflado investimento do Estado na construção de prédios monumentais para abrigar

instituições como o MAR, o Museu do Amanhã e o MIS9 revela prioridades políticas e

estéticas (a arte, a tecnologia, a música) que não são neutras nem isentas de conflitos e

tensões. Nos jogos de legitimidade são realizadas escolhas que trazem consequências

simbólicas e estéticas diretas e indiretas, desde a onerosa opção pela construção de um prédio

tecnológico até a seleção de repertórios e artistas que ocuparão espaços de destaque na

exposição cultural desse prédio, passando pela forma específica de pensar a identidade

carioca (para além da música), processada por um grupo cultural mais afinado com a bossa

nova de Copacabana do que com o forró da Maré, o funk de Acari ou o baile charme de

Madureira. Nos apagamentos e nas ênfases, o que é ou não é memorável se constrói e se

materializa nos envolventes pavimentos do novo MIS de Copacabana, versão atualizada de

ações de memória nem tão novas assim.

Novo MIS e velho MIS são, de certa forma, portanto, agentes de um processo de

construção de memória musical que se atualiza tecnologicamente para reforçar sua

continuidade estética. Talvez ainda seja cedo para ratificar uma visão estanque sobre o que

será ou poderia ser o novo museu, mas os encaminhamentos adotados até aqui reforçam a

ideia de que o Novo MIS será um museu grande, mas sem muitas novidades.

Referências

9 Os três museus são os exemplos atuais de outros empreendimentos semelhantes como a Cidade das Artes, construída durante a gestão do prefeito Cesar Maia. Trata-se de uma obra faraônica na Barra da Tijuca, que seria destinada à música mas que acabou se ampliando para outras “artes” e que somente agora começa a ser parcialmente dinamizada e utilizada pelos habitantes da região. Vale registrar ainda que a construção de novos museus e equipamentos culturais também contrasta com a falta de investimento nos já existentes. Mais uma vez é possível observar uma tensão entre o “velho”, transformado em obsoleto e julgado como inadequado ou pouco importante, e o “novo”, apresentado como tecnológico e materializando um futuro vigoroso e desejável, quase sempre de acordo com o calendário eleitoral.

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