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ISSN 2176-8765 Translatio Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga Vol. 2 (2010) - 01 - BROWN, C. Aquinas and the Ship of Theseus (M. Klemz Guerrero) - 10 - VELDE, Rudi A. te. Aquinas on God. The ‘divine science’ of the Summa Theologiae (M. A. Oliveira da Silva) - 15 - IMBACH, R. e OLIVA, A. La philosophie de Thomas d’Aquin. Repères (L. Lobo) - 21 - DELMAS, S. Un franciscain à Paris au milieu du XIIIe siècle. Le maître en théologie Eustache d’Arras (G. B. Vilhena de Paiva) - 30 - FOLGER-FONFARA, S. Das ‚Super’-Transzendentale und die Spaltung der Metaphysik. Der Entwurf des Franziskus von Marchia (R. Guerizoli) Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ) Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCAR) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (CUSC) • Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo (UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG)

Translatio 2 (2010)

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Journal of reviews on medieval philosophy. Published in Portuguese by the academic network História da Filosofia Medievla e a Recepção da Filosofia Antiga

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ISSN 2176-8765

Translatio

Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval

e a Recepção da Filosofia Antiga

Vol. 2 (2010)

- 01 -

BROWN, C. Aquinas and the Ship of Theseus (M. Klemz Guerrero)

- 10 -

VELDE, Rudi A. te. Aquinas on God. The ‘divine science’ of the Summa

Theologiae (M. A. Oliveira da Silva)

- 15 -

IMBACH, R. e OLIVA, A. La philosophie de Thomas d’Aquin. Repères (L. Lobo)

- 21 -

DELMAS, S. Un franciscain à Paris au milieu du XIIIe siècle. Le maître en

théologie Eustache d’Arras (G. B. Vilhena de Paiva)

- 30 -

FOLGER-FONFARA, S. Das ‚Super’-Transzendentale und die Spaltung der Metaphysik.

Der Entwurf des Franziskus von Marchia (R. Guerizoli)

Translatio. Caderno de Resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga é uma

publicação eletrônica anual do Grupo de Trabalho História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga, ligado à Associação

Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF).

Editores responsáveis: Alfredo Storck (UFRGS) • Rodrigo Guerizoli (UFRJ)

Conselho editorial: Carlos Eduardo de Oliveira (UFSCAR) • Carolina Fernández (UBA) • Cristiane Negreiros Abbud Ayoub (CUSC) •

Ernesto Perini-Santos (UFMG) • Guy Hamelin (UnB) • José Carlos Estêvão (USP) • Júlio Castello Dubra (UBA) • Lucio Souza Lobo

(UFPR) • Márcio Augusto Damin Custódio (UFBA) • Moacyr Novaes (USP) • Tadeu Mazzola Verza (UFMG)

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BROWN, C. Aquinas and the Ship of Theseus, Londres: Continuum,

“Continuum Studies in Philosophy”, 2005, ix+194p.

Markos Klemz Guerrero* ___________________________________________

Solucionar o assim denominado problema da constituição material de acordo

com o aparato conceitual da filosofia de Tomás de Aquino é o objetivo dessa

obra. Ao longo dela, Christopher Brown pretende mostrar a relevância desse

aparato nos debates contemporâneos sobre o referido problema, isto é,

pretende demonstrar a atualidade do pensamento tomista no que diz respeito a

problemas de identidade relacionados a coisas materiais. O espírito desse

projeto, que se localiza nas fronteiras da relação entre filosofia e história da

filosofia, é elucidar um problema filosófico e problematizar nossas intuições

sobre o mesmo através do recurso à perspectiva de um autor clássico, cuja

diferença em relação às reflexões contemporâneas pode servir para renová-las.

Para melhor julgar o mérito dessa empreitada, vejamos precisamente qual é o

problema que está aqui em jogo e como o autor desenvolve sua argumentação.

Problemas de identidade dizem respeito aos princípios que tornam uma

coisa a determinada coisa que ela é ao invés de outra qualquer, respondendo

pelo fato de se poder dizer dela que é uma coisa ao invés de muitas, ao menos

em algum sentido. A complexidade e a relevância filosófica desse gênero de

problemas revelam-se na sua variedade de aspectos e objetos. Segundo um

aspecto modal, por exemplo, trata-se de perguntar sobre quais alterações uma

coisa pode sofrer permanecendo a mesma, isto é, que elementos uma coisa não

pode deixar de apresentar, o que necessariamente a constitui como aquilo que é.

Segundo um aspecto temporal, trata-se de determinar se uma coisa é capaz de

perdurar ao longo de um intervalo de tempo e quais são as condições dessa

capacidade. De acordo com os diferentes objetos a que se pode dirigir, o

                                                                                                                         * Doutorando do Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGLM/UFRJ).

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problema da identidade pessoal é uma de suas mais célebres versões, mas, de um

modo geral, pode-se perguntar acerca dos princípios de identidade de quaisquer

entidades admitidas numa ontologia, como substâncias, propriedades, estados de

coisas ou mesmo proposições.

O objeto de acordo com o qual o problema da identidade é analisado na

presente obra são as coisas materiais: corpos vivos e inanimados, bem como os

artefatos que são a partir desses constituídos. O ângulo a partir do qual o autor

aborda o problema é o do aparente conflito que surge entre algumas intuições

gerais sobre as coisas materiais. O autor denomina de “problema da constituição

material” (doravante “PCM”) o problema da identidade de objetos materiais

visto a partir desse ângulo. O lugar privilegiado onde se manifesta o PCM são

casos exemplares como o do navio de Teseu, que dá titulo ao livro. Nesse

sentido, intuições sobre coisas materiais parecem levar a resultados

contraditórios quando aplicadas à situação em questão. Em sua versão mais

completa, devida a Hobbes, o navio de Teseu seria um objeto material cujas

partes iriam sendo trocadas gradativamente, até que a totalidade de suas peças

originais tivesse sido trocada. Ao mesmo tempo, as peças “descartadas” seriam

recolhidas e reconfiguradas como um navio na disposição original. Cabe, então,

questionar qual dos navios resultantes seria idêntico ao original, se algum deles

puder sê-lo. A resposta depende da consideração de intuições como a de que há

vários tipos de objetos materiais, inclusive compostos, alguns dos quais podem

sofrer perdas parciais ou totais de suas partes ou de que só pode haver um

objeto material em cada lugar do espaço. Como o conjunto das intuições desse

tipo parece acarretar respostas distintas e mutuamente excludentes àquele

questionamento, parece necessário abrir mão de uma ou mais das intuições que

se costuma sustentar sobre o tema. A contribuição que a filosofia de Tomás

pode oferecer ao problema, segundo o autor, é conciliar as intuições

comumente aceitas acerca da identidade das coisas materiais, ou seja, solucionar

o PCM sem abrir mão de nenhuma daquelas intuições; tal contribuição seria

especialmente relevante na medida em que todas ou a maioria das soluções

contemporâneas para esse problema implicariam o abandono de uma ou mais

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daquelas intuições.

Tendo isso em vista, a obra se organiza da seguinte maneira. Inicialmente,

no primeiro capítulo, são apresentadas seis intuições gerais concernentes à

identidade de objetos materiais e é ilustrado o modo como elas se comportam

em alguns casos particulares. Ao longo dessa apresentação, algumas “famílias” de

soluções contemporâneas para o PCM são esquematicamente organizadas,

levando em consideração quais daquelas intuições cada um dos tipos de solução

decide abandonar ou reinterpretar. É oferecido, assim, um útil panorama da

metafísica de coisas materiais contemporânea, onde podemos comparar variadas

alternativas teóricas a partir dos custos e vantagens que cada solução apresenta.

No segundo capítulo, três soluções específicas são examinadas em detalhe,

aquelas propostas por Peter van Inwagen, Lynne Baker e Dean Zimmermann. Ao

longo dessa análise, tem-se a ocasião de aprofundar a compreensão do

comportamento teórico de noções como identidade relativa, coincidência

espacial e bi-locação de objetos, reducionismo, eliminativismo e pluralismo

ontológicos, a partir do modo como são aceitas, rejeitadas e aplicadas em cada

teoria. Essas soluções servirão, ainda, no resto do livro, como contraponto à

solução tomista que será construída ao longo dos três capítulos subsequentes. A

escolha de interlocutores contemporâneos é evidentemente movida pela

suposição de que tal procedimento seria mais adequado para o estabelecimento

da pretendida atualidade do pensamento de Tomás. Embora a legitimidade dessa

suposição seja em si mesma questionável, seu ponto mais problemático talvez

seja o caráter excludente que assume na obra: com a óbvia exceção de Tomás,

nenhum interlocutor medieval ou mesmo moderno comparece a ela.

Nos capítulos 3, 4 e 5, o autor passa a reconstruir os pontos da filosofia de

Tomás que são relevantes para o tratamento do problema da identidade de

coisas materiais, todos gravitando em torno da noção de substância composta

individual e suas partes.

No capítulo 3, o autor aborda as noções de substância, acidente e

substância material em particular, que é definida em termos de subsistência e

completude numa espécie, bem como extensão tridimensional. As

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interpretações, explicações e justificativas fornecidas pelo autor são, embora

muitas vezes pouco minuciosas, predominantemente corretas, claras e pouco

problemáticas, ao menos no contexto da filosofia de Tomás. Apenas duas

ressalvas devem ser feitas. Em primeiro lugar, o autor, ao dar sua caracterização

mais fundamental da noção de substância material, assinala de passagem tratar-se

de algo que apenas “normalmente” se extende no espaço. Essa atenuação visa, na

verdade, a dar espaço à sua interpretação posterior acerca da identidade pessoal

no postmortem. Em segundo lugar, o autor considera que compostos que têm

partes homogêneas e são unos apenas por continuidade, como uma porção de

água, são unidades substanciais no mesmo sentido em que suas partes, como

moléculas de água ou porções menores da mesma, quando destacadas da porção

maior. Nenhum argumento ou base textual é ou será oferecido para essa tese,

que nem é trivial nem consensual na literatura secundária. Mais grave ainda, ao

final do livro acontece a adesão a um critério de substancialidade (p. 174) que

parece ser inconsistente com a unidade substancial de compostos homogêneos.

Segundo esse critério, uma substância tem poderes causais que suas partes

isoladamente não têm e que não podem ser reduzidos a uma soma dos poderes

das partes. Como coisas da mesma espécie têm o mesmo tipo de poder causal,

parece difícil, se não impossível, que tal critério seja preenchido por compostos

homogêneos, que se caracterizam por ter partes que, tomadas isoladamente,

pertencem à mesma espécie do todo. De todo modo, como resultado desse

capítulo, o autor passa a dispor das ferramentas iniciais para tratar, no capítulo

seguinte, das relações composicionais entre a substância material e suas partes e,

de um modo geral, entre tipos de compostos e seus respectivos tipos de partes.

No capítulo 4, são tratadas as composições por partes metafísicas e partes

integrais. Em relação ao primeiro tipo, são examinados os conceitos de forma

substancial e matéria prima, com merecida atenção para o tema da unicidade da

forma substancial em cada substância, tratado de maneira clara e bem

fundamentada, dentro dos limites de uma obra que não se pretende estritamente

histórica nem especializada no tema. Partes integrais de substâncias são

basicamente compreendidas em sentido quantitativo ou funcional, tendo como

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característica distintiva a posterioridade em relação ao todo que compõem, ou

seja, o fato de que são definidas em função do todo a que pertencem, não sendo,

por isso, substâncias, mas apenas partes de substâncias. Embora se aproximem

das partes metafísicas por ambas não serem substâncias, dessas se distinguem, de

acordo com o autor, em virtude de não existirem em outro algo como em um

sujeito, como é o caso das partes metafísicas. Tal caracterização indireta de parte

metafísica (p. 91) parece deixar de fora a matéria prima, explicitamente

reconhecida como parte metafísica, o que passa despercebido pelo autor. Ainda

assim, a unicidade da forma substancial basta para provar o resultado desejado:

partes de substâncias não são substâncias, de modo que não é necessário aceitar

uma versão forte de bi-locacionismo segundo a qual dois ou mais objetos e o

todo que compõem coincidem espacialmente. No caso de substâncias, suas

partes simplesmente não são objetos no mesmo sentido em que ela própria o é.

Ao fim do capítulo, é feita uma rápida menção ao status ontológico de

artefatos, que são considerados unidades acidentais entre uma ou mais

substâncias e um acidente, como, por exemplo, um pedaço de mármore e a

forma acidental de estar esculpido como uma certa estátua, ou entre alguns

pedaços de madeira, ferro e vidro e a forma acidental de estarem dispostos

como uma mesa. Embora essa formulação seja, na forma genérica segundo a qual

é apresentada, correta, a ligeireza com a qual é abordada terá consequências

indesejáveis no capítulo seguinte.

No capítulo 5, são investigados os princípios que tornam coisas materiais

indivíduos, ou seja, os princípios responsáveis pela identidade numérica de

unidades substanciais e acidentais materiais. Nos dois casos, a unidade numérica

da forma, respectivamente substancial e acidental, é a condição da unidade

numérica da coisa. No caso da forma acidental, a unidade numérica é dada pela

unidade numérica da substância em que inere. No caso da forma substancial, a

identidade numérica, por sua vez, deve-se à sua recepção pela matéria segundo

dimensões indeterminadas. Este último passo é bem menos desenvolvido que o

desejável, faltando uma melhor apreciação das diferentes versões da doutrina do

caráter individuador da matéria desenvolvidas por Tomás ao longo de sua

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carreira, uma apreciação que esclarecesse as motivações e benefícios conceituais

envolvidos na adoção daquela usada pelo autor. Tal lacuna não chega a ser

preenchida nem mesmo por uma análise cuidadosa de pelo menos alguns dos

principais textos em que Tomás formula sua teoria da individuação. Como

resultado disso, a noção de matéria sob dimensões indeterminadas como

princípio individuante acaba se apresentando como pouco mais que uma

formulação verbal, ou ao menos encontra-se desprotegida de uma enorme

variedade de objeções.

Dois temas que recebem especial atenção ao longo desse capítulo são as

condições de identidade de artefatos e a relação entre a alma desencarnada e o

indivíduo humano em sua condição natural. No que diz respeito ao último, o

autor propõe que o homem não se corrompe com a morte, mas apenas o seu

corpo, ou seja, propõe que a alma desencarnada de Sócrates identifica-se a

Sócrates. Ele defende sua proposta da acusação de que isso implicaria a

identificação de Sócrates à sua alma, a qual é explicitamente recusada por Tomás,

a partir do lema de que identidade não é constituição. Em outras palavras, o

Sócrates desencarnado seria constituído apenas por sua alma sem por isso se

identificar a ela, o que não impediria o Sócrates post mortem de ser uma

substância material graças à cláusula que vimos ser introduzida anteriormente na

caracterização de substância material. É apenas em situações “normais” que

Sócrates apresenta todos os seus princípios essenciais. Embora o lema de que

constituição não é identidade claramente se aplique à relação entre um todo e

suas partes integrais, em virtude da posterioridade destas em relação àquilo que

constituem, sua extensão às partes metafísicas parece duvidosa, dado que estas

caracterizam-se justamente por constituir a essência da substância de que são

partes. Outro problema que a proposta oferecida apresenta é a difícil tarefa de

determinar o que é corrompido quando acontece a morte biológica de uma

substância humana. Certamente alguma substância deve ter sido corrompida,

pois uma ou mais substâncias foram geradas (o defunto ou o conjunto de

substâncias que o constitui, caso ele não conte como substância). Não pode ter

sido a substância humana original, pois Sócrates continuaria, por hipótese, a

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existir como alma desencarnada; caso escolhamos dizer que apenas o corpo de

Sócrates foi corrompido, como faz o autor, passamos a tratar o corpo, tomado

como parte metafísica, como substância, o que é manifestamente incompatível

com a doutrina da unicidade da forma substancial.

Ao fim do capítulo, encontramos um esforço para determinar critérios de

identidade de artefatos. Tendo em vista a condição de unidade acidental

desfrutada por artefatos e a dependência de unidades acidentais da unidade

contínua da(s) substância(s) na(s) qual(is) a forma acidental inere, obtém-se a

conclusão de que uma estátua, ao perder uma lasca, torna-se outra estátua, de

que uma bicicleta, ao ser desmontada e remontada, torna-se outra bicicleta e de

que um navio, ao ter a menor de suas partes substituída, torna-se outro navio.

Trata-se de um critério de identidade altamente restritivo e contra-intuitivo para

artefatos, o que é prontamente percebido pelo autor. Sua reação é assinalar que

a identidade de unidades acidentais e de substâncias inanimadas de fato é mais

frágil que a de seres vivos, o que, embora correto até certo ponto, não tira o

aspecto contra-intuitivo do critério obtido. Como uma última tentativa de tornar

o critério de identidade para artefatos mais palatável, ele é atenuado sem

qualquer base nos elementos tomistas reconstruídos anteriormente; na verdade,

não parece haver outra justificação para essas atenuações além de tornar o

critério mais palatável. Uma alternativa mais promissora seria traçar uma

concepção reducionista de artefatos, segundo a qual a propriedade de ser uma

mesa, ou de ser uma cadeira, tivesse como condição necessária um certo tipo de

forma acidental quantitativa entre substâncias, sem no entanto consistir nessa

forma acidental inerente a alguma(s) substância(s). Desse modo, algo só poderia

ser uma certa mesa caso um pedaço de madeira, outros de ferro e outro de

vidro estivessem espacialmente configurados na disposição adequada, embora

essa configuração permita que ela desempenhe a função de variados tipos de

artefatos. Em outra palavras, essa configuração não se identifica mas apenas

condiciona propriedades como “ser uma mesa”, “ser uma cama”, “ser uma

barricada”. Nessa alternativa, apenas a forma acidental que consiste na disposição

quantitativa (ou qualitativa) que condiciona cada uma dessas propriedades seria

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uma forma realmente inerente numa substância ou conjunto de substâncias. Por

outro lado, a propriedade de ser um artefato seria uma propriedade meramente

intencional, inteiramente imanente ao sujeito que toma um certo algo como

artefato. É interessante notar que um dos argumentos que o autor usa ao

discutir posteriormente com um de seus interlocutores contemporâneos, contra

a tese de que uma estátua é uma coisa material no mesmo sentido em que a

porção de bronze da qual é feita o é, poderia servir para embasar essa

concepção reducionista da propriedade de ser um artefato (p. 171). Segundo ele,

se uma estátua é uma coisa tanto quanto aquilo de que é feita, poderemos

“criar” uma infinidade de objetos sem, contudo, exercer qualquer influência

causal sobre eles: uma pedra poderia ser transformada numa escultura abstrata

(ou mesmo figurativa, havendo a coincidência adequada), num peso de papel e

numa arma com apenas um olhar. Nesse ponto, o autor se contenta em

sustentar que ser um artefato não é um tipo de forma substâncial; talvez pudesse

ir mais adiante e defender que não é sequer um tipo de acidente real inerindo

nas substâncias a partir das quais são constituídos os artefatos. Isso permitiria a

formulação de critérios inteiramente pragmáticos para a identidade de artefatos,

livrando o autor do embaraço de ter de escolher entre uma teoria

absolutamente contra-intuitiva e outra ad hoc.

No capítulo 6, o autor passa a aplicar seus resultados a casos particulares

análogos aos do navio de Teseu. Basta dizer aqui que suas posições são

interessantes em relação a substâncias vivas e decepcionantes em relação a

artefatos, refletindo as virtudes e defeitos do capítulo anterior. Vale notar, ainda,

que a grande superioridade da solução oferecida para substâncias vivas parece

ser percebida implicitamente pelo próprio autor, que chega a tentar diluir essa

disparidade dedicando maior atenção aos casos para os quais dispõe de uma

solução mais adequada. No limite, o caso do navio de Teseu é parcialmente

transmutado, sem mais, num caso envolvendo uma pessoa cujas células são

completa e gradativamente substituídas ao longo da vida (p. 150). A assimetria

entre artefato e substância, apontada insistentemente no capítulo anterior, é

então ultrapassada sem escrúpulos.

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No último capítulo, os interlocutores contemporâneos voltam ao centro

da cena, sob a forma de objeções hipotéticas que o autor imagina que cada um

deles poderia levantar contra sua solução tomista. Previsivelmente, ele é bem

sucedido em rebater as objeções formuladas por si mesmo. Se quase nenhuma

contribuição positiva é gerada a partir daí para sua própria solução, ao menos ela

é reforçada por contraste com os aspectos contra-intuitivos das teorias rivais.

Além disso, é aí que se apresentam o critério de substancialidade e o argumento

reducionista que já mencionamos, nenhum dos quais, infelizmente, é levado às

suas últimas conseqüências.

De um modo geral, a obra, se por um lado peca por superficialidade em

alguns passos, por outro lado tem o mérito de expor algumas idéias

interessantes de maneira clara e pedagógica. Ao longo dessa exposição, delimita

acertadamente boa parte dos conceitos básicos necessários a um tratamento

tomista do problema da identidade de objetos materiais, lançando alguma luz

sobre as articulações entre esses conceitos. Desse modo, suas insuficiências

pontuais não chegam a comprometer definitivamente o proveito da leitura,

servindo antes como estímulo e ponto de partida para reflexões melhores e mais

aprofundadas sobre o tema. É nessa medida que a obra sucede em dar uma

contribuição relevante para a atualidade do tomismo.

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VELDE, Rudi A. te. Aquinas on God. The ‘divine science’ of the Summa

Theologiae, Aldershot: Ashgate, “Ashgate Studies in the History of

Philosophical Theology”, 2006, viii+192p.

Marco Aurélio Oliveira da Silva* ___________________________________________

Os resultados mais importantes acerca de Deus alcançados pelo Doutor

Angélico em sua mais relevante obra de síntese, a Summa Theologiae, são o norte

de Rudi te Velde em seu trabalho Aquinas on God. O livro divide-se em seis

capítulos, cada qual abordando um aspecto da teologia de Tomás, desde a

estrutura de toda a Summa, até a questão da graça, passando pelos nomes

divinos, pela primeira via para a existência de Deus, dentre outros temas

fundamentais para a compreensão do assunto.

No primeiro capítulo, o A. retoma uma tese apresentada por Chenu1,

segundo a qual a organização de toda a Summa Theologiae obedeceria ao

esquema neoplatônico exitus-reditus – segundo o qual as criaturas procederiam

de Deus como sua causa eficiente e retornariam a Ele como sua causa final. Além

disso, defende que o ato criador de Deus não deve ser compreendido apenas

como a produção eficiente das criaturas, mas também como envolvendo sua

distinção, sua manutenção e o governo que Deus exerce para com elas em

direção a Si mesmo (p. 14).

A estrutura que envolve a Ia, a Ia-IIae e a II-IIae partes da Summa Theologiae

pode ser explicada segundo o esquema sugerido, uma vez que a Ia pars trata da

natureza de Deus e de sua criação, enquanto que as duas partes da IIa pars

versam sobre como Deus auxilia a criatura racional (o homem) a dirigir-se ao

próprio Deus como seu fim último, através da lei e da graça.

                                                                                                                         * Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 1 CHENU, M.-D. “Le plan de la Somme Théologique de Saint Thomas”, Revue Thomiste, 47, 1939, pp. 93–107.

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11 VELDE,  Rudi  A.  te  Aquinas  on  God  

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A dificuldade consistiria no papel atribuído à IIIa pars, que versa sobre

Cristo. Enquanto Chenu considera que a IIIa pars da Summa Theologiae não pode

ser compreendida dentro da lógica exitus-reditus, uma vez que a Encarnação é

contingente, pois dependeu da livre vontade de Deus, por outro lado, para o A.,

Cristo “deve ser visto como um instrumento do cuidado providencial de Deus

na história humana” (p. 15). Deste modo, mesmo sendo um ato livre, a

Encarnação se insere no contexto do direcionamento final da criatura racional

em direção a seu fim último, a saber, a visão beatífica de Deus.

No segundo capítulo, o A. trata das cinco vias, mas dá um especial

tratamento à primeira via para a existência de Deus, a prova do primeiro motor

(Summa Theologia, Iª q.2 a.3 co.). Em vez de reconstruir o argumento de Tomás,

o A. está mais preocupado em avaliar a famosa crítica ao argumento através do

conceito de inércia tirado da física moderna. A prova conclui pela necessidade de

um primeiro motor ao partir da premissa segundo a qual tudo o que é movido, é

movido por outro. Ora, segundo a concepção de inércia, um corpo pode mover-

se sem o ser por outro. Deste modo, a primeira via parece ter uma refutação

científica.

O ponto central do A. no capítulo não é refutar a noção de inércia, mas

reler a primeira via como um argumento metafísico – como as demais quatro

vias –, e não como um argumento físico para a existência de Deus. Um ponto

importante a salientar é que as vias para a existência de Deus são argumentos do

tipo quia, ou seja, que a partir de constatações acerca das criaturas visíveis

inferem a existência de sua causa transcendente.

O capítulo conclui de modo muito interessante, uma vez que demonstra

como o princípio “o que é movido, é movido por outro”, pressuposto por

Tomás na primeira via, não é tão facilmente derrubado apenas pela lei da inércia.

Pois esta seria uma lei físico-matemática, enquanto aquele, um princípio

ontológico.

No terceiro capítulo, o A. dá uma solução interessante contra a literatura

que defende uma visão negativa com relação à teologia de Tomás, notadamente

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David Burrel2. Pois toda a teologia negativa do Doutor Angélico pressuporia o

conhecimento de Deus como causa – o conhecimento quia do segundo capítulo,

o qual não é um conhecimento negativo, mas um conhecimento positivo acerca

de Deus. Ou seja, admite-se conhecimento por remoção das criaturas, mas isto

pressupõe a demonstração quia da existência do Criador.

Deve-se aqui ter em mente a distinção entre vida presente e vida eterna,

uma vez que na vida presente não se tem um conhecimento perfeito de Deus, o

que só será possível na vida eterna no que diz respeito aos bem-aventurados, i.e.,

aos que vierem a gozar da visão beatífica. Estes terão um conhecimento

afirmativo, presente, verão a Deus tal como Ele é. No caso dos que estão na vida

presente, só podem conhecer a Deus imperfeitamente – por uma característica

da mente humana – e de modo negativo. Ora, o que se conhece de modo

negativo resulta da questão quid sit, “o que Deus é?”. Em contrapartida, a

resposta a esta questão pressupõe a resposta à questão an sit, “se Deus é

(existe)?”. Neste caso, a resposta pressuposta pela primeira questão – e

demonstrada pelas cinco vias por raciocínio quia – é uma resposta afirmativa, na

qual se conhece a existência de Deus por seus efeitos.

No quarto capítulo, o A. aborda a questão dos nomes divinos, muito

tratada no pensamento escolástico e que teve seu surgimento a partir do

opúsculo de Pseudo-Dionísio intitulado De Divinis Nominibus. Segundo o A. (p.

103-4), Tomás critica duas visões sobre os nomes divinos. A primeira, atribuída a

Maimônides, é a via remotionis, segundo a qual os nomes atribuídos a Deus o são

apenas negando o que é próprio das criaturas. Uma segunda visão é a via

causalitatis, na qual os nomes aplicados a Deus são vistos apenas do ponto de

vista da causalidade, ou seja, Deus como causa daquilo do qual o nome é tirado.

Tomás defende uma triplex via, ou seja, envolvendo tanto a via remotionis, a via

causalitatis e a via excelentiae, de modo que aquilo do qual o nome é tirado existe

em Deus de modo mais eminente. O exemplo apresentado pelo A. é o da vida.

Quando dizemos que Deus é a vida, não se trata da vida como ocorre na vida

                                                                                                                         2 Cf. BURRELL, D. Aquinas: God and Action, Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1979.

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humana, há uma remoção aqui. Também não se trata apenas do fato de que

Deus é a causa da vida, mas também que a vida em Deus se dá de modo mais

eminente.

O A. conclui que o tratamento dado por Tomás na questão 13 da Ia pars

da Summa Theologiae, no que tange aos nomes divinos, não deve ser interpretado

como um mero apêndice sobre as considerações sobre a essência divina (p. 101).

Pois no caso específico de Deus haveria uma discrepância entre o modo como

Ele é – inacessível ao nosso modo terreno de conhecer – e o modo como nós

pensamos acerca d’Ele, i.e., sempre por similitude através do conhecimento quia.

Neste sentido, os nomes de Deus Lhe são atribuídos mais ao modo como nós O

pensamos do que como Ele é em si mesmo, o que nos é inacessível no atual

estado da nossa vida.

No quinto capítulo, o A. trata da tríplice característica da criação descrita

por Tomás na questão 44 da Summa Theologiae, a saber, a produção – quando há

transmissão pela parte de Deus do Seu ser para as criaturas, a distinção – que

implica a multiplicidade e a diversidade nas próprias criaturas, e o governo – que

consiste na relação de causalidade final das criaturas com relação ao próprio

Deus.

Deste modo, o A. considera que Tomás trata de Deus como “a causa

universal do ser de todas as coisas” (p. 139). É feita também uma distinção entre

a causalidade de Deus com relação a Sua criação, na qual Ele transmite a

existência para as criaturas, o que não deve ser confundido com as causalidades

existentes dentro da natureza, denominadas pelo A. de causas secundárias.

Por fim, enquanto a relação de causalidade entre Deus e as criaturas é

propriamente denominada criação, há apenas dois modos de causalidade entre as

criaturas: a geração (genaratio), na qual uma nova substância advém à matéria, e a

transformação (alteratio), na qual um novo acidente advém a uma determinada

substância.

No último capítulo, o sexto, temos uma abordagem mais teológica do que

filosófica. Trata-se da questão da graça. O A. define o que é graça através de três

características principais, a saber, a iniciativa livre de Deus para entrar em uma

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relação especial com o homem, para restaurá-lo do estado de pecado e para

permiti-lo participar da bem-aventurança da vida divina.

Para o A., a graça não decorre apenas do pecado humano, pois mesmo se

o homem não tivesse pecado, ainda existiria a possibilidade da graça, expressa

pelo desejo presente em Deus de compartilhar a Sua bondade com a criatura.

Ocorre que o pecado humano apenas permitiu a manifestação da graça divina.

Deste modo, o A. assinala a triplex conversio do homem a Deus (p. 163). A

primeira é aquela pela qual o homem se prepara para receber a graça; a segunda,

pela qual a vontade é aperfeiçoada por ela; e a terceira, que consiste na

conversão pela qual o homem goza da vida eterna na visão beatífica de Deus.

Por fim, a visão beatífica é própria apenas da natureza divina, de modo que

os intelectos criados (anjos e almas humanas) dependem de uma concessão

divina – i.e, a graça – para poder participar desta visão beatífica, uma vez que as

substâncias intelectuais criadas não podem alcançar a visão beatífica apenas por

sua própria natureza. Deste modo, a graça é um auxílio de Deus para o homem

agir livremente em Sua direção.

Em suma, Aquinas on God é um livro digno de ser lido, uma vez que trata de

modo sistemático e linear o tema de Deus, tão vastamente abordado pelo

Doutor Angélico tanto na Summa Theologiae quanto ao longo de sua vasta obra.

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IMBACH, R. e OLIVA, A. La philosophie de Thomas d’Aquin. Repères,

Paris: Vrin, “Repères Philosophiques”, 2009, 179p.

Lucio Lobo* ___________________________________________

Textos podem ter muitos objetivos e este tem um muito claro, a saber, ajudar o

leitor a descobrir, num nível introdutório, o pensamento filosófico de Tomás de

Aquino valendo-se de indicações de algumas das principais teses e alguns capitais

conceitos usados pelo Aquinate, além de permitir que se construa um esboço

inicial de sua mundividência.

As teses e conceitos tomásicos elencados por Imbach e Oliva podem

servir de guia porque dão indicações de como se mover no seio da obra do

Aquinate. No entanto, não se trata de um tipo de introdução que pode ser lida

por qualquer um (e, aqui, me refiro especificamente aos leigos), mas deve ser lida

e será útil sobretudo para um público parcialmente versado em filosofia.

Aristóteles, por exemplo, é recorrentemente citado. E como boa parte da

nomenclatura técnica usada por Tomás é extraída dos textos do Estagirita, a falta

de familiaridade com estes pode prejudicar seriamente a compreensão do livro.

Noções como ato/potência, matéria/forma, substância/acidente, dentre outras,

precisam ser minimamente conhecidas pelo leitor.

Considero o texto como um “mapa para iniciados” e, a meu ver, seu

principal mérito está naquilo que é anunciado pelos próprios autores, a saber; ele

oferece boas indicações bibliográficas a cada passo da exposição das teses

tomásicas. Ele é útil porque facilita o trabalho de pesquisa.

O livro de Imbach e Oliva está estruturado da seguinte forma: (i) uma

apresentação da vida de Tomás; (ii) uma exposição de seu pensamento e (iii) uma

série de resumos de algumas de suas obras.

                                                                                                                         * Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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Voltar-me-ei, nesta resenha, somente à exposição do item (ii), o

pensamento de Tomás, ou seja, somente ao núcleo teórico que compõe o livro.

Na realização dessa tarefa, seguirei a ordem imposta pelos autores.

Pois bem, o que considero como núcleo teórico do livro é assim dividido:

1) natureza e divisão da filosofia; 2) o conhecimento humano; 3) problemas

éticos; 4) aspectos do pensamento político; 5) ontologia, metafísica e teologia

filosófica e 6) crença, ciência e teologia. Vejamo-los um a um.

1) Natureza e divisão da filosofia

Este primeiro tópico começa por expor a posição tomásica acerca da

função do filósofo. Para Tomás, assim como o fora para Aristóteles, o papel do

sábio é ordenar. Mas a ordem pode ser compreendida de duas maneiras. Uma,

como ordem a ser alcançada e, outra, como ordem a ser produzida. Esta dupla

significação é trazida à tona mediante o papel do intelecto. Por vezes o intelecto

busca conhecer como a coisa é, por vezes ele determina como algo deve ser.

Esta divisão é o ponto de partida para a divisão das ciências. As que determinam

como algo deve ser são as ciências práticas e as que buscam conhecer como as

coisas são são as ciências especulativas.

A lógica, por ser instrumento para todas as ciências, é o primeiro ponto a

ser tratado. A ela cabe reconhecer as diversas situações em que um argumento

se mostra certo e confiável. A física, ou filosofia da natureza, lida com os seres

que dependem da matéria e não podem ser definidos sem ela. Como todo ser

material é mutável, a física também é chamada de ciência do ser móvel (ens

mobile). Suas noções fundamentais estão diretamente ligadas à mutabilidade, daí o

par ato/potência estar sempre presente. O estudo de temas como a) os tipos de

movimento e b) o tempo estão no rol de suas atribuições. À metafísica cabe

estudar o “ser enquanto ser” ou aquilo que é próprio a todos os seres. Ela se

ocupa do que é maximamente inteligível e, para Tomás, isso quer dizer apossar-

se do conhecimento das causas, alcançar o máximo de universalidade e perceber

que a imaterialidade é uma característica fundamental da inteligibilidade.

2) O conhecimento humano

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Embora Tomás afirme ser a imaterialidade uma característica da

inteligibilidade, ele não restringe o conhecimento humano a ela. Homens são

seres dotados de um corpo cuja forma é uma alma imaterial e, para conhecer,

eles precisam dos dados fornecidos pela sensibilidade. O homem, ao nascer, é

uma tabula rasa e, ainda que tenha a potência de conhecer, seu conhecimento só

principiará, de fato, quando seu intelecto dispuser de informações fornecidas

pelos seus sentidos. Firmado este ponto, convém notar que Tomás defende uma

estrutura cognitiva bastante complexa (sentidos externos e internos, intelecto

agente, intelecto possível), com múltiplas operações (abstração, separatio), e que

ele também lança mão de toda uma gama de conceitos relativos aos objetos do

conhecimento (phantasma, espécie sensível, espécie inteligível). Outrossim, na

busca da verdade, é da natureza do conhecimento humano proceder

discursivamente, ou seja, elaborar estruturas proposicionais (S é P) e silogísticas;

diferentemente de Deus e dos anjos, que possuem um conhecimento intuitivo.

Por fim, é preciso dizer que Tomás reconhece limites ao conhecimento humano.

Por exemplo, temas como a Trindade e a Encarnação estão para além das

possibilidades de compreensão da razão humana.

3) Problemas éticos

Mas a alma não é só intelecto, ela possui, também, outras potências: as

potências apetitivas. Os autores apresentam esse conjunto do seguinte modo:

Considerados em conjunto, os dois grupos [sc. o das potências apetitivas e o das

potências cognitivas] dizem respeito à relação do homem à realidade exterior.

Essa relação pode ser considerada de duas maneiras: como presença no homem

de um objeto exterior por meio da percepção ou do conhecimento intelectual –

nesse último caso o objeto está presente na alma sob a forma de uma similitude

representativa –, ou como um desejo da alma em direção de um objeto. Tomás

fala então de appetitus, que se desdobra enquanto potência apetitiva sensível ou

intelectual: nos dois casos a alma é movida por um objeto que desempenha o

papel de motor não movido (...). Tomás dá à análise das paixões, que são as

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manifestações da potência apetitiva, tanta atenção quanto dá ao estuda da

vontade, identificada ao appetitus intelectual. (p. 51-52)

O movimento da potência apetecível sensível (paixões) para seu objeto é

classificado por Tomás em onze casos divididos submetidos a dois grupos. Um

grupo, o das paixões irascíveis, engloba a cólera, o medo, a audácia, a esperança e

a desesperança; outro grupo, o das paixões concupiscíveis, tem os seguintes

casos: o amor, o ódio, a concupiscência, a abominação, o prazer e a tristeza. A

posição do Aquinate com relação às paixões é a de que elas, em si mesmas, não

são boas ou más, pois não são elas que determinam sua realização, mas, sim, a

razão.

As virtudes também possuem um papel importante na ética tomásica. Elas

“são vistas como hábitos, isto é, como disposições adquiridas orientadas em direção à

ação” (p. 54) e elas são meios para os homens alcançarem seu fim último. A

virtude é definida como uma boa qualidade da alma em vista de uma operação.

Seu número é extenso e pode ser encontrado na Ética a Nicômaco quase

completo. Mas vale ressaltar uma importante diferença entre Tomás e

Aristóteles. Diferentemente do Estagirita, Tomás assume um conjunto de

virtudes dependentes da graça divina, as virtudes teologais. Estas são

pressupostas para obtenção da felicidade na vida após a morte e são em número

de três: fé, esperança e caridade. Tal posição, consoante com a doutrina da

Igreja, nos permite constatar a preocupação do Aquinate em salvaguardar sua

ortodoxia religiosa quando lida com questões filosóficas.

4) Aspectos do pensamento político

O homem é uma criatura racional e política. Criatura, por ter sido criado

por Deus; racional, por ser dotado de uma alma intelectiva capaz de conhecer

discorrendo de uma coisa a outra; mas por que político? O cerne da explicação

apresentada no livro está na capacidade de comunicação do homem; em outras

palavras, sua linguagem articulada e ordenada cujo fim é comunicar aos outros

homens aquilo que pensa. Ora, toda capacidade é capacidade para algo, e, se

temos uma capacidade, a natureza nos dotou com ela tendo em vista um fim —

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não buscá-lo seria desdenhar uma dádiva e significaria possuir algo em vão. Mas o

homem não tem essa capacidade em vão. Por natureza, ele a tem em vista de

viver em comunidade e em paz. Ao distinguir entre o bem e o mal e ao constatar

o valor moral de um ato, o homem pode comunicá-lo aos outros, pleitear para si

e para todos direitos e regras de convivência social. A defesa dos direitos se dará

mediante a estipulação de regras (leis). Para Tomás, a confecção de leis por uma

sociedade, embora passível de erros, tende a ser justa. Isto porque Tomás

defende a idéia de um Deus criador, mantenedor do universo. A vontade divina é

a lei que tudo governa (lei eterna), o mundo criado segue esta lei na medida de

suas possibilidades intrínsecas (lei natural) e, por sua vez, a lei humana é

elaborada por homens que tendem por natureza a seguir a lei natural, pois eles

têm, impressos em sua natureza, princípios da lei natural como “faça o bem e

evite o mal”. É a partir disto que se pode observar com freqüência, embora não

sempre, um quinhão de justiça nas leis das diversas sociedades.

5) Ontologia, metafísica e teologia filosófica

Quanto à ciência do ser enquanto ser são ressaltadas duas coisas. A

primeira é que Tomás acompanha Aristóteles na afirmação dos dez gêneros

máximos do ser, as categorias. A segunda é que Tomás sustenta que a

possibilidade de se formar proposições sobre os seres corresponde às múltiplas

possibilidades de os seres serem. Ele entende haver um fio condutor que nos

leva a descobrir o ser através do julgamento. O exemplo fornecido é a tábua das

categorias e a forma como a cópula (é) funciona distintamente quando diferentes

categorias estão na posição de predicado. A categoria da substância, quando uma

substância é usada como predicado, configura uma relação de identidade entre o

sujeito e o predicado. Quantidade, qualidade e relação, por sua vez, indicam uma

relação de inerência entre P e S. Já as categorias ação, paixão, tempo, lugar e

situação carregam consigo a noção de exterioridade de P com relação a S. A

décima categoria é especificamente humana. Ela indica uma posse adquirida,

como no caso de “Sócrates é hábil”.

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Das dez categorias os autores partem para a apresentação dos

transcendentais. Transcendentais são os “modos de ser gerais que seguem todo

ente” (p. 71). Ainda que sejam mais gerais, eles não podem ser gêneros, pois

como eles são determinações de todos os seres não pode haver diferença

específica a eles aplicável.

A teologia racional, por fim, é apresentada como tendo seu principal

escopo o encontrar ou construir provas da existência de Deus. A prova a priori

de Anselmo é dada como exemplo, mas a que realmente é desenvolvida são as

cinco vias de Santo Tomás (das quais eu me isento de falar por serem largamente

conhecidas entre os iniciados em filosofia).

6) Crença, ciência e teologia

Por fim, Imbach e Oliva concentram sua atenção na ciência que Tomás

considera ser a mais nobre. No século XIII ocorreram disputas em torno dos

papéis da razão e da fé. Estas disputas coincidem com o nascimento das

universidades. Um dos problemas levantados versava sobre “a necessidade de um

ensinamento teológico em acréscimo às disciplinas filosóficas” (p. 85). Tomás

defendeu tal necessidade da seguinte maneira. A razão humana é limitada, por

isso é incapaz de alcançar seu fim último sem a ajuda de uma revelação. Pode

haver ciência sobre o que é exposto pela revelação porque, mesmo que nem

tudo o que ela ensine possa ser alcançado pela razão natural, tudo o que ela

ensina é certo por ter fundamento na luz divina. Sendo assim, a teologia coloca-

se acima de toda outra ciência humana. Convém notar que tal supremacia da

teologia sobre as demais ciências, para Tomás, não acarreta qualquer demérito a

elas, pois este é um caso análogo ao da relação entre a natureza e a graça: a

graça não destrói a natureza, ela a aperfeiçoa.

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DELMAS, S. Un franciscain à Paris au milieu du XIIIe siècle. Le maître en

théologie Eustache d’Arras, Paris: Les Éditions du Cerf, 2010,

vii+471p.

Gustavo Barreto Vilhena de Paiva* ___________________________________________

Na rapsódia An American in Paris, o compositor americano George Gershwin

retrata, segundo ele próprio, as “impressões de um visitante americano em Paris

enquanto ele passeia pela cidade, ouve os vários barulhos da rua e absorve a

atmosfera francesa”1. Essas impressões, porém, longe de serem um mero

vislumbre da novidade de Paris, são uma mistura complexa da alegria suscitada

pela cidade francesa com uma inevitável saudade nostálgica de casa sentida por

todo viajante em terra estrangeira. Mas diante dessa alegria imediata e da nostalgia

que a sucede, “na conclusão, os barulhos da rua e a atmosfera francesa são

triunfantes”2! Esses são os sucessos de um americano em Paris no início do século

XX, narrados por Gershwin, quiçá baseado na experiência dos anos que ele

próprio vinha passando na França. No entanto, vale perguntar: somente um

viajante de inícios do século XX se fascinaria de tal modo com a cidade de Paris?

Ou poderíamos dizer que essa complexa fascinação narrada por Gershwin na sua

rapsódia seria sentida também por um outro viajante, também há pouco chegado a

Paris, porém há muitos séculos atrás?

Ora, são justamente essas impressões de Paris que reencontramos no livro

de Sophie Delmas, Un franciscain à Paris au milieu du XIIIe siècle. Le maître en

théologie Eustache d’Arras. Só que, agora, surge um retrato da Paris da segunda

metade do século XIII, uma cidade agitada pela universidade nascente, pelas novas

                                                                                                                         * Graduando do Departamento de Filosofia da USP e bolsista de Iniciação Científica da FAPESP. 1 SANDOW, H. “Gerschwin presents a New York”, Musical America 48, nº 18 (18 de agosto de 1928): 5, 12. Apud: POLLACK, H. George Gershwin. His Life and Work, Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2006, p. 433. 2  Op. cit., ibid.  

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DELMAS,  S.  Un  franciscain  à  Paris  au  milieu  du  XIIIe  siècle  

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22  

obras filosóficas e teológicas que estavam sendo traduzidas e produzidas, bem

como pelo novo personagem que vagarosamente começava a se destacar desde o

século XII e durante todo o século XIII: o mestre de universidade, que vive na

cidade e se dedica exclusivamente ao estudo, ao ensino e à escrita3. Assim como

Gerschwin nos narra as impressões do seu americano, Delmas descreve para nós

os sucessos de um personagem em particular que vai a Paris para continuar a sua

carreira universitária e a sua carreira institucional na Igreja Católica. Esse

personagem pode ser bem caracterizado e nomeado, fato relativamente raro para

um autor do século XIII: ele é um franciscano e seu nome é Eustáquio de Arras.

De fato, há muitas biografias dos autores escolásticos que mais se

destacaram nos séculos XIII e XIV – não somente biografias contemporâneas, mas

também narrativas de suas vidas feitas poucos séculos ou mesmo anos após as

suas mortes. Tomás de Aquino, por exemplo, teve a sua vida narrada por

Guilherme de Tocco ainda na primeira metade do século XIV e há, também, as

narrativas sobre a vida de João Duns Escoto e os milagres a ele ocorridos,

publicadas ainda durante a modernidade4! No entanto, parece uma tarefa

improvável produzir uma biografia intelectual de qualidade dos autores menos

conhecidos do século XIII, seja porque não possuímos sequer os seus nomes, seja

porque sabemos seus nomes, mas poucos são os documentos que nos apresentam

dados sobre as suas vidas. Mesmo porque obras filosóficas e teológicas medievais,

em geral, raramente fornecem informações biográficas precisas sobre seus autores

e, se as fornecem, estas são muitas vezes passíveis de várias interpretações.

Ora, o livro de Sophie Delmas é precisamente a tentativa de produzir uma

biografia intelectual de Eustáquio de Arras, um autor pouco estudado, parcamente

documentado, cuja produção teológica e filosófica (enumerada por completo no

                                                                                                                         3 Sobre todos esses aspectos da atividade nas escolas e, posteriormente, na Universidade de Paris nos séculos XII, XIII e XIV, ver: LE GOFF, J. Les intellectuels au Moyen Age, Paris: Éditions du Seuil, 1957; e DE LIBERA, A. Penser au Moyen Age, Paris: Éditions du Seuil, 1991, que discute o livro de Le Goff e, em grande medida, se opõe a ele. 4 GUILLELMUS DE TOCCO. Ystoria sancti Thome de Aquino de Guillaume de Tocco. Édition critique, introduction et notes de C. Le Brun Gouanvic. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1996. BONAVENTURA O’CONNOR. Elenchus Encomiorum Celeberr. et Testimoniorum Clariss. utriusque Ecclesiae Triumph. scilicet et Militantis de Sanctitate Vitae, infusione scientiae, et soliditate doctrinae Enthei Religiosi, et Extactici Viri Doct. Subt. Ionannis Duns Scoti (...). Bolzano: Ex offic. Archid. Typis Caroli Girardi, 1660.

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DELMAS,  S.  Un  franciscain  à  Paris  au  milieu  du  XIIIe  siècle  

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“catálogo de obras” adicionado por S. Delmas ao seu livro, pp. 347-404) data da

segunda metade do século XIII – momento crucial dos grandes debates filosóficos

e teológicos que envolviam os mestres da Universidade de Paris, ainda durante a

vida dos dois grandes personagens na Universidade daquele século: Tomás de

Aquino e Boaventura de Bagnoregio. Em linhas gerais, o que Delmas pretende no

livro é mostrar que, muito embora seja pouco documentado e quase não tenha

sido comentado ou lido durante mais de seis séculos, Eustáquio de Arras esteve

envolvido nas principais discussões universitárias do terceiro quarto do século XIII

e, portanto, mantinha diálogo com as principais figuras do meio universitário

parisiense àquela época, como os dois mestres citados há pouco e outros como

João Pecham, Pedro de Tarantésia, Guilherme de Mara, além de ter influenciado

autores de grande relevância que o sucederam, como Godofredo de Fontaines e

Mateus de Aquasparta. A importância do livro é, portanto, patente logo de início,

pois ele apresenta um estudo sobre a vida e a obra de um autor que, embora

tomasse parte nos grandes debates de sua própria época, terminou por não ser

tão lido e comentado durante a modernidade e a atualidade quanto outros de seus

contemporâneos. Esse estudo se mostra ainda mais instigante por apresentar o

mesmo nível de rigor, precisão e erudição que se pode obter hoje no estudo de

outros autores escolásticos mais conhecidos, porém com o detalhe de que, no

caso do livro de S. Delmas, poucos são os dados precisos ou comentários

filosóficos e teológicos nos quais seja possível se apoiar para realizar uma tal

pesquisa. Assim, um aspecto do livro de Delmas certamente merece atenção, a

saber, a metodologia e os fundamentos teóricos por ela adotados para tornar

possível a sua biografia intelectual de Eustáquio de Arras.

A seguir, gostaria de discutir justamente esses aspectos do livro Un

franciscain à Paris, nomeadamente os dois a seguir. Primeiramente, (item I) dada a

grande dificuldade intrínseca à produção de uma biografia intelectual de um autor

do século XIII, apresentarei o método utilizado por Sophie Delmas para produzir

uma tal biografia, bem como descreverei em poucas palavras o percurso trilhado

por ela no decorrer do seu trabalho. Em seguida, (item II) gostaria de discutir um

aspecto central do livro de Delmas, a saber, a caracterização de Eustáquio de

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DELMAS,  S.  Un  franciscain  à  Paris  au  milieu  du  XIIIe  siècle  

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Arras como uma “figura franciscana” (figure franciscaine) – com efeito, esse termo

tomado a François-Xavier Putallaz parece definir a base teórica da pesquisa de

Delmas bem como determinar o seu método de pesquisa, não obstante possa

haver certas objeções a sua utilização, como veremos.

I. Método

O percurso do Un franciscain à Paris é basicamente aquele de uma biografia

intelectual. Dessa maneira, o livro se inicia com um primeiro capítulo dedicado ao

nascimento e à juventude de Eustáquio de Arras, até a sua ida a Paris – cap. I, “Une

jeunesse dans l’ombre”; ao qual se seguem um capítulo sobre o início dos seus

estudos em Paris – cap. II, “Les débuts à l’université de Paris (avant 1267)” – e um

outro sobre a sua atividade como mestre na Universidade de Paris – cap. III, “Le

maître en théologie (1268-1269)”. Após essas três sessões iniciais, só voltaremos a

encontrar novas informações sobre a vida de Eustáquio no penúltimo capítulo do

livro – cap. X, “Les derniers mois et la mort (après 1270)” –, sucedido por um

estudo da influência do mestre de Arras em autores que possivelmente foram seus

estudantes ou, ao menos, comprovadamente tiveram acesso à sua obra – cap. XI,

“Eustache après Eustache”.

O que há entre aqueles três capítulos iniciais e esses dois finais é um

conjunto de estudos sobre os diversos temas que foram abordados por Eustáquio

na sua obra e sobre as diversas querelas nas quais ele tomou partido durante a sua

atividade em Paris. O primeiro desses estudos é voltado para a posição tomada

por Eustáquio de Arras na controvérsia da segunda metade do século XIII entre os

franciscanos e Tomás de Aquino e, em geral, entre os franciscanos e os autores

ditos “tomistas” – cap. IV, “Eustache, les Franciscains et Thomas d’Aquin”. Em

seguida, é feito um estudo sobre a posição tomada por Eustáquio na controvérsia,

também da segunda metade do século XIII, entre os teólogos e os artistae – cap.

V, “Eustache et la philosophie”. A esses dois capítulos, se seguem três estudos de

temas teológicos na obra de Eustáquio de Arras: primeiramente, um estudo sobre

alguns dos dogmas da Igreja – cap. VI, “Eustache et la théologie”; depois, um capítulo

referente à concepção que Eustáquio possuía sobre o clero – cap. VII, “Clercs et

laïques sous le regard d’Eustache”; e, para dar fim ao estudo dos problemas

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teológicos em sua obra, um capítulo sobre a concepção que Eustáquio desenvolve

das práticas sacramentais e do uso de imagens na liturgia – cap. VIII, “Un

témoignage sur les pratiques sacramentelles et les expériences religieuses”. Enfim, surge

um capítulo sobre algumas das concepções políticas de Eustáquio que se podem

conhecer a partir dos seus escritos – cap. IX, “Discours au roi et sur le roi”.

Não obstante o percurso pareça claro – ou seja, a narrativa da vida de um

personagem histórico entremeada pelas suas posições intelectuais –, a falta de

dados confiáveis sobre a biografia de Eustáquio de Arras exige o estabelecimento

de um método de trabalho que a compense. A própria S. Delmas o esclarece na

introdução, ao afirmar que “se as fontes biográficas são pouco prolixas, as obras

de Eustáquio são, ao contrário, numerosas e variadas” (p. 18). Parece-me que essa

é justamente a metodologia seguida pela autora no restante do livro, pois a quase

ausência de dados precisos sobre a vida de Eustáquio é, em grande parte,

compensada pela abundância de escritos seus que sobreviveram até os nossos

dias. Ou seja, se não parece possível determinar diretamente, por exemplo, qual

foi o período de permanência de Eustáquio como mestre regente na Universidade

de Paris, pode-se especificar quais foram os mestres anteriores a ele com os quais

ele estudou e aqueles, posteriores a ele, aos quais ele ensinou. Ao unir essa

informação com as datas da regência de outros mestres conhecidas com certeza,

pode-se passar a conhecer as prováveis datas que limitam a permanência do

próprio Eustáquio como mestre regente na Universidade (tal como é feito no cap.

III de Un franciscain à Paris). Em outras palavras, a ausência de dados biográficos

sobre Eustáquio de Arras é compensada por S. Delmas pelo estudo do conteúdo

das suas obras, das referências que nelas surgem a outros autores e da relação que

se pode estabelecer com segurança entre elas e os trabalhos dos demais mestres

em atividade durante a vida do próprio mestre de Arras.

Decerto, esse método não é novidade; pelo contrário, ele é constantemente

utilizado para o esclarecimento de dados biográficos de autores escolásticos

pouco documentados. O que me parece próprio do livro de S. Delmas é a

utilização desse método quase que ao extremo, para produzir uma biografia

intelectual a mais completa possível de um desses autores. Ora, se for aceito que

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esse é, de fato, o método mais eficiente de pesquisa sobre a vida e a obra desses

mestres medievais com poucos registros biográficos, talvez se possa concluir que

deles não é possível produzir senão uma biografia intelectual, visto que é

justamente o conteúdo das suas obras que fornecem as informações biográficas,

mais do que quaisquer outros documentos. Esse parece ser o caso, ao menos,

para Eustáquio de Arras, de maneira que a utilização desse método por Delmas se

mostra um grande êxito, dado que o seu resultado é precisamente uma biografia

intelectual de Eustáquio de Arras rigorosamente estabelecida.

Vistas essas questões relativas ao desenvolvimento do livro, gostaria de

atentar para a noção chave de “figura franciscana”, que parece ser fundamental

para compreender essa biografia intelectual de Eustáquio de Arras, tal como ela é

estabelecida por S. Delmas.

II. Uma “figura franciscana”

No seu prefácio de Un franciscain à Paris, Nicole Bériou – orientadora da

tese de doutorado que deu origem ao livro – destaca a importância que teve para

S. Delmas a noção de “figura franciscana”, desenvolvida por François-Xavier

Putallaz para substituir o conceito de “escola franciscana” (p. ii). De fato, Putallaz5

propõe essa noção de “figura franciscana” como um meio de escapar à síntese que

necessariamente parece se seguir da utilização da expressão “escola franciscana”.

Para ele, os mestres de teologia franciscanos decerto possuem em comum o fato

de serem franciscanos, porém isso não os obriga a defender as mesmas doutrinas.

Nas palavras de Putallaz, o “franciscanismo” desses autores não deve ser tomado

como “um traço unívoco simples: ele aparece, antes, como uma constelação de

centros de interesse”, cujas múltiplas repercussões podem ser notadas nas mais

diversas disciplinas e questões escolásticas – dentre as quais, segundo Putallaz, a

crítica anti-tomista6. Parece ser justamente para expressar essa multiplicidade de

autores unificada sob a noção de “franciscanismo” que Putallaz cunha o termo

“figura franciscana” – esses mestres de teologia franciscanos, por certo, não

                                                                                                                         5 PUTALLAZ, F.-X. Figures Franciscaines. De Bonaventure à Duns Scot. Paris: Les Éditions du Cerf, 1997. 6  Op. cit., p. 18 (itálico do original).  

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concordam em todas as suas doutrinas, mas todas elas se assemelham na medida

em que elas são desenvolvidas por franciscanos.

Retornando ao livro de Delmas, o seu próprio nome deixa clara a adoção do

conceito de “figura franciscana”, pois já no título Eustáquio de Arras é descrito

exatamente como un franciscain à Paris – ou seja, ao que parece, para a autora é

fundamental e distintivo de Eustáquio que ele seja franciscano. Além disso, S.

Delmas também empresta grande relevância, tal como Putallaz, à querela entre

franciscanos e tomistas, o que se torna evidente pelo fato de que o primeiro

capítulo sobre as doutrinas de Eustáquio de Arras em Un franciscain à Paris é,

justamente, sobre a sua atuação junto aos franciscanos na crítica à obra de Tomás

de Aquino (cap. IV), como foi dito acima. Ou seja, Delmas parece, de fato, tomar

Eustáquio de Arras como uma “figura franciscana” tal como essa noção foi

desenvolvida por Putallaz. Assim, Eustáquio decerto possui posições próprias

diferentes daquelas de outros mestres franciscanos, porém ele se aparenta a esses

últimos na medida em que é franciscano e, destarte, admite determinadas posições

comuns a todos eles – como, por exemplo, a crítica a Tomás de Aquino e ao

tomismo.

A utilização dessa noção de “figura franciscana”, no entanto, não deixa de

sugerir certos problemas e o primeiro deles diz respeito a João Duns Escoto.

Com efeito, parece muito mais coerente aproximar a defesa da possibilidade de

uma intelecção natural da verdade perpetrada por Duns Escoto à doutrina da

intelecção de Tomás de Aquino, do que aproximá-la das doutrinas da intelecção

de autores franciscanos contemporâneos ao Doutor Sutil, como Mateus de

Aquasparta, Vital de Furno ou Pedro de João Olivi. Assim, pelo menos Duns

Escoto teria que ser excluído de uma possível caracterização como uma “figura

franciscana” e, mesmo, do “franciscanismo”. Ora, o próprio Putallaz parece sugerir

que essa concepção por ele defendida é apta somente para o estudo de autores

franciscanos anteriores a Duns Escoto7. Nesse caso, resta a pergunta: porque no

fim do século XIII alguns autores franciscanos contemporâneos entre si podem ser

                                                                                                                         7  Op. cit., p. 21.  

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ditos “figuras franciscanas” e outros não? Por certo, não é o lugar aqui de

responder a essa questão, mas é preciso notar que essa mesma objeção parece

valer para a caracterização de Eustáquio de Arras como uma “figura franciscana”.

Como S. Delmas afirma na conclusão de Un franciscain à Paris, “essa estigmatização

de Tomás de Aquino ou Al-Ghazali em certos debates não chega, no entanto, a

tornar Eustáquio um adversário selvagem do pensamento do Doutor Angélico ou

da filosofia em geral” (p. 343). Com efeito, S. Delmas aponta momentos em que

Eustáquio concorda com Tomás de Aquino, como por exemplo, em temas

relativos ao clero regular (p. 232).

Com base nessas observações, poderíamos nos perguntar: seria a

classificação de Eustáquio de Arras como uma “figura franciscana” tão

problemática como ela se mostra no caso de João Duns Escoto? Não creio,

porém, que essa seja a melhor questão a se fazer. Mais interessante parece ser

perguntar se é, de fato, útil propor uma classificação de certos autores como

“franciscanos” em oposição a outros tidos por “tomistas”. Ou melhor: pode-se

dizer que o fato de um mestre de teologia ser franciscano é determinante em

todas as disciplinas por ele estudadas? Talvez haja questões em que se possa

determinar a oposição entre um grupo de “franciscanos” e um grupo de

“dominicanos” ou, mais particularmente, de “tomistas”. Mas seria possível fazê-lo

em todos os assuntos – por exemplo, nos estudos sobre a intelecção? Acredito

que essas perguntas são fortemente sugeridas pela leitura do livro Un franciscain à

Paris de S. Delmas, o qual não só as sugere como fornece diversos dados

históricos e filosóficos que contribuem, seja para a formulação dessas questões,

seja para a proposta de possíveis respostas afirmativas ou negativas com respeito a

elas.

III. Conclusão

Para concluir brevemente, o livro Un franciscain à Paris de S. Delmas termina

por suscitar questões sobre dois temas de grande interesse para a historiografia da

filosofia medieval, pois ele põe em relevo dois problemas fundamentais neste

campo. O problema (i) do estabelecimento de uma metodologia para a pesquisa

sobre a vida e a obra dos autores escolásticos; em especial daqueles autores que,

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embora nomeados, não possuam registros biográficos confiáveis advindos da sua

própria época. E o problema (ii) de decidir sobre a extensão possível e a

propriedade não somente da utilização da noção de “figura franciscana” como

também da classificação de certos autores como “franciscanos” em oposição a

outros tidos como “tomistas”.

Assim, como foi dito no início, o livro de Delmas é certamente significativo

por colocar em relevo a obra de Eustáquio de Arras e destacar a importância que

ela teve durante a escolástica e, portanto, a importância que ela possui atualmente

para a história da filosofia escolástica. Porém, além disso, a leitura de Un franciscain

à Paris de S. Delmas é um ótimo exercício para o medievista justamente porque o

seu minucioso estudo da vida e da obra de Eustáquio de Arras aponta claramente

para as diversas questões metodológicas postas em face do pesquisador que se

volta para o estudo do pensamento escolástico e, ao fazê-lo, propõe uma possível

resposta para elas. Em especial, o livro de Delmas nos chama a atenção para as

diversas opções metodológicas e teóricas que se deve fazer para que seja possível

um estudo dos diversos autores do período escolástico que, não obstante tenham

a sua importância reconhecida pelos seus próprios contemporâneos – que os

citam, discutem e criticam –, são hoje parcamente documentados, pouco

estudados e possuem as suas obras filosóficas e teológicas ainda inéditas,

espalhadas pelos diversos acervos de manuscritos. O problema posto é, portanto:

que métodos e fundamentos teóricos utilizar para fazer uma pesquisa rigorosa

sobre esses autores?

É exatamente ao levantar esse problema e mostrar uma possibilidade de

solução para ele que Un franciscain à Paris de Delmas se mostra mais significativo

para a história e a historiografia da escolástica. Nesse sentido, seguindo o que é

dito por N. Bériou no seu prefácio (p. vii), esse livro se mostrará tanto mais

promissor, quanto mais ele inspirar novas obras semelhantes sobre outros autores

escolásticos, as quais também coloquem esse mesmo problema rigorosamente e

igualmente busquem para ele uma resposta. Como a própria S. Delmas afirma ao

fim do seu livro, “a tarefa a realizar permanece imensa, mas não é a busca rigorosa

por informação um dos fundamentos do trabalho do historiador?” (p. 345).

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FOLGER-FONFARA, S. Das ‚Super’-Transzendentale und die Spaltung

der Metaphysik. Der Entwurf des Franziskus von Marchia,

Leiden/Boston: Brill, “Studien und Texte zur Geistesgeschichte des Mittelalters 96”, 2008, 187p.

Rodrigo Guerizoli*

___________________________________________ A presente obra, cujo título em português seria “O ‘super’-transcendental e a

clivagem da metafísica. O projeto de Francisco de Marchia”, remete a uma tese de

doutorado escrita sob a orientação de Jan A. Aertsen e defendida na

Universidade de Colônia no ano de 2006. E, de fato, a afinidade entre o trabalho

de Sabine Folger-Fonfara e as pesquisas em torno das relações entre a metafísica

e as noções transcendentais levadas a cabo por seu orientador é inequívoca.

Com efeito, trata-se para a autora de pôr à luz, através de uma análise centrada

nas noções de ente, coisa e algo, a contribuição oferecida por Francisco de

Marchia (ca. 1290-1344) à questão do objeto próprio da metafísica, dando

particular ênfase a um possível prenúncio, em Francisco, da famosa clivagem da

filosofia primeira da tradição aristotélica em metafísica geral e metafísica especial.

O início da obra consiste na retomada esquemática da relação entre a

metafísica e os transcendentais que se estabelece no mundo latino a partir

sobretudo da doutrina aviceniana das primeiras intenções do intelecto. Trata-se,

inicialmente, de destacar o assim chamado “segundo início da metafísica”, que

corresponde à refundação epistemológica daquela ciência e que ocorre pela

unificação em torno à noção de ente de sujeito próprio da metafísica (proprium

subiectum metaphysicae) e primeiro objeto do intelecto (primum obiectum

intellectus). Delineia-se, assim, numa atraente solução aos enigmas que cercam a

relação entre os livros IV e VI da Metafísica de Aristóteles, tanto a primazia

quanto a generalidade da ontologia como filosofia primeira com base na                                                                                                                          * Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/CNPq/PRONEX.

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FOLGER-­‐FONFARA,  S.  Das  ‚Super’-­‐Transzendentale  und  die  Spaltung  der  Metaphysik  

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determinação da noção de ente como o primeiro conhecido do intelecto

humano.

Em um segundo momento levantam-se dúvidas acerca da real capacidade

de a ontologia figurar como a mais geral das ciências. Seria de fato a noção de

ente a mais ampla das noções que possuímos? Considerando que, como objeto

de uma ciência real, a noção de ente não se aplica no mesmo sentido aos entes

reais e aos de razão, não existiriam noções mais gerais, que se aplicariam então

no mesmo sentido àqueles âmbitos? Não pareceriam noções como, por

exemplo, opinável, cogitável, apreensível ou inteligível mais gerais que a noção de

ente? Mas, em sendo este o caso, por que não deveríamos tomá-las como sujeito

próprio da mais geral das ciências? Por que não fazer da metafísica uma ciência

do super-transcendental?

É no âmbito dessas questões que se move o pensamento do franciscano

Francisco de Marchia. E sua contribuição diz respeito sobretudo a dois temas.

Por um lado, ele desempenha um papel fundamental quando se trata de uma

crítica do estabelecimento da noção de ente como primeiro objeto do intelecto.

Por outro, ele parece reconhecer como insuperáveis as dificuldades que desafiam

o ideal de uma metafísica perfeitamente unificada, de uma ciência una e capaz de

cumprir as exigências de um saber ao mesmo tempo o mais universal e sobre o

mais eminente. Nesse sentido, o que se mostra em Francisco de Marchia é, em

certo sentido, a fragilidade da síntese aviceniana, que havia se estabelecido em

diversos autores latinos do século XIII e do início do século XIV, até pelo menos

Duns Scotus, como o principal fio condutor do tratamento da questão sobre a

cientificidade da metafísica.

Explicitados os tópicos e objetivos centrais da obra, a investigação se

desdobra em três capítulos, dispostos de modo algo surpreendente na medida

em que o primeiro capítulo trata da “destronização do conceito de ser”, o

segundo do modelo de clivagem da metafísica operada por Francisco,

retornando, porém, o terceiro capítulo ao tratamento das noções super-

transcendentais, o que já marcara a investigação do primeiro capítulo. Seja como

for, tal opção de organização da obra, que nos pareceu questionável sobretudo

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no que diz respeito à posição de seu terceiro capítulo em relação ao primeiro,

não chega a obscurecer os resultados atingidos pela autora.

A questão que orienta o primeiro capítulo da obra diz respeito à

caracterização da noção de ente como, ao mesmo tempo, sujeito próprio da

metafísica e intenção primeira do intelecto. Ambas as determinações são postas

em xeque por Francisco de Marchia. As bases textuais apresentadas pela autora,

sobre as quais se apóiam suas análises, consistem, inicialmente, no começo do

primeiro livro do comentário de Francisco à Metafísica de Aristóteles e, em

seguida, na questão 3 de seu Quodlibet.

A discussão presente no comentário à Metafísica gira em torno a três

noções, classicamente associadas à reflexão medieval sobre os transcendentais:

ente, coisa e algo. Qual dessas noções desempenha o papel de sujeito próprio da

metafísica? Evidentemente, a resposta aristotélica típica privilegia a noção de ente.

Em Avicena, porém, a noção de coisa também figura como uma prima intentio

intellectus, de modo que reflexos da tensão que se instaura entre aquelas noções,

e que acaba por atingir também a noção de algo, podem ser percebidos com

clareza já antes de Francisco.

Na feliz expressão da autora, Francisco opera em sua resolução da questão

sobre o sujeito próprio da metafísica uma verdadeira “destronização do conceito

de ente” (em certas ocasiões, p. 39, p. 48, p. 67, fala-se em “degradação” do

conceito de ente). De um lado, ele substitui a noção de ente pela noção de coisa

como núcleo de referência para os demais transcendentais: ente se torna uma

das passiones rei, um dos atributos da coisa, ao lado de uno, verdadeiro e bom. De

outro, ele dispõe a noção de algo acima das noções transcendentais,

concebendo-a como formalmente comum a todos os transcendentais e, ao

mesmo tempo, como o primeiro objeto do intelecto.

Basta se atentar ao modelo dos Segundos Analíticos para se perceber a

conseqüência desses passos na determinação do sujeito próprio da metafísica.

Ente deixa de ocupar tal posto; afinal, o objeto da primeira das ciências não pode

ser em si mesmo um atributo. Assim, na exata medida em se que torna sujeito

da atribuição dos transcendentais ente, uno, verdadeiro e bom, a noção de coisa

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assume o lugar de sujeito próprio da metafísica. Por outro lado, desaparece o

espaço para a noção de algo dentro do grupo dos transcendentais. Tal noção,

com efeito, exibe uma comunidade que supera a dos transcendentais e que mais

tarde será reconhecida como própria às noções super-transcendentais.

Em Francisco ocorre, pois, por um lado, uma dissociação entre as noções

de primum obiectum intellectus e proprium subiectum metaphysicae, outrora

unificados em torno à noção de ente e agora cindidos em torno,

respectivamente, às noções de algo e coisa. Mas por que nesse contexto a noção

de algo não se torna sujeito próprio da metafísica? Não possui aquela ciência a

pretensão de se firmar como o mais geral dos saberes? É para que se preserve a

distinção entre lógica e metafísica que a noção de algo não se torna sujeito da

metafísica. Ao perceber que tal noção ameaça a possibilidade de a metafísica

manter-se uma ciência real, Francisco prefere abrir mão do caráter

incondicionalmente universal daquele saber e manter o seu perfil real, atrelado,

em seu parecer, à noção de coisa.

Certamente a originalidade da recepção de Francisco das noções

transcendentais já justifica a atenção de leitores contemporâneos. Mas, com base

no comentário à Metafísica, um ponto-chave de seu quadro teórico permanece

obscuro: como ele justifica seu rearranjo das noções transcendentais e, com isso,

sua redefinição do que atua como sujeito próprio da metafísica? Em busca de

uma resposta a essa questão, Sabine Folger-Fonfara se debruça sobre a questão

quodlibetal “Se a intenção de ente é a primeira intenção da coisa”.

O ponto de partida da justificação de Francisco consiste na distinção entre

dois tipos de primazia: material e formal. A um dado item será atribuída primazia

material na proporção direta de seu papel de substrato frente a outros itens.

Trata-se, portanto, de uma primazia de ordem genética ou, nas palavras de

Francisco, “de origem ou geração” (p. 50). Ao contrário, a primazia formal se

explica em termos de prioridade abstrativa, de maior simplicidade e generalidade

conceituais, características que apontam para itens menos determinados e de

maior extensão predicativa. Ora, em se tratando de nossas noções, qual delas

detém cada tipo de primazia?

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FOLGER-­‐FONFARA,  S.  Das  ‚Super’-­‐Transzendentale  und  die  Spaltung  der  Metaphysik  

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Segundo Francisco, a primazia material cabe à noção de coisa, que seria

materialmente comum às demais. Seu argumento, contudo, soa assaz artificial:

“Esta brancura – diz ele – é uma brancura, é uma cor, uma qualidade e um

ente. [...] [M]as a intenção de coisa é materialmente comum a todas essas

intenções, pois a mesma coisa é uma brancura, uma cor, uma qualidade, um

ente” (p. 55, grifos meus).

Mas por que não se poderia dizer que esta brancura é uma cor, uma

qualidade e, enfim, uma coisa? Nesse caso, seria mantida a primazia da noção de

ente. A autora, porém, não explora a questão, optando por uma apresentação

minuciosa, mas por momentos pouco crítica, do texto de Francisco.

Em se tratando de primazia formal, novamente cai por terra a prioridade

da noção de ente. E o posto dessa vez é ocupado pela noção de algo. O

argumento de Francisco parte da seguinte regra: “Quanto mais universal é uma

negação em termos de remoção, tanto mais universal em termos de predicação

é a afirmação que lhe é oposta” (p. 59)1. Ora, nenhuma negação é mais universal

que nada. A afirmação que lhe é oposta será, pois, a mais universal em termos de

predicação. E tal afirmação, conclui-se, é a noção de algo. O argumento, vê-se, se

sustenta na convicção de que uma proposição do tipo “o uno não é formaliter

ente” é verdadeira. A justificativa de Francisco encontra-se no fato de que se, ao

contrário, aquela proposição for falsa, então, uma vez que “o uno é formaliter

ente” será verdadeira, na expressão “ente uno” ocorrerá uma nugatio, ou seja, ela

corresponderá a “ente ente etc.”, o que é por ele descartado. Numa palavra,

resumindo o raciocínio, se consideramos bem formadas expressões como “ente

uno” e “ente bom” devemos aceitar que ente é um predicado que se aplica a

menos coisas do que algo.

Mas um problema paira sobre o estabelecimento da noção de coisa como

sujeito próprio da metafísica. Foi visto que Francisco recusa preencher tal

determinação com a noção de algo no intuito de preservar a diferença entre

                                                                                                                         1 Note-se que, divergindo do uso proposicional de negação e afirmação, Francisco opta por um uso em que tais noções correspondem a, respectivamente, termo negativo e termo afirmativo.

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metafísica e lógica. Todavia, aponta a autora no fim do primeiro capítulo, é

explícita a caracterização que Francisco faz da noção de coisa com uma intenção

neutra, ou seja, comum às primeiras e segundas intenções. Nesse sentido, parece

que a fronteira entre lógica e metafísica novamente se esboroa; afinal, como

poderia um saber cujo sujeito próprio é uma intenção neutra se arrogar o

estatuto de uma ciência real? Com o intuito de esclarecer essa questão Sabine

Folger-Fonfara dedica-se, no segundo capítulo de sua obra, a uma análise

detalhada do perfil atribuído por Francisco de Marchia à metafísica.

O capítulo inicia pela clivagem da metafísica operada por Francisco. E os

passos em direção a essa clivagem são de fato surpreendentemente semelhantes

àqueles que em geral se reconhece como distintos das reflexões filosóficas da

Schulphilosophie do século XVIII. Vê-se as tensões ligadas à recepção dos inícios

dos livros IV e VI da Metafísica de Aristóteles como apontando para dois

projetos de metafísica: como a primeira e como a última das ciências, como

ciência geral, da res secundum quod res, e como ciência especial, da realidade

divina ou da res separata a materia secundum rationem et secundum rem.

Reconhece-se, em seguida, a falência das tentativas de unificação desses projetos

em torno a um único saber, defendendo-se então a fundação de duas ciências

distintas, uma metafísica geral e uma especial, ocupadas com cada um daqueles

objetos. Característico de Francisco, no entanto, é a tentativa de enxergar o

ponto onde desemboca todo o processo, a clivagem da metafísica, como algo

que teria sido “evidentemente” afirmado por Aristóteles (p. 98).

Trata-se em seguida de explicar a relação entre as duas metafísicas.

Verifica-se inicialmente uma relação de subalternação: o início da metaphysica

specialis depende da capacidade da metaphysica generalis de provar a existência do

sujeito próprio daquela ciência. Noutros termos, a teologia natural é dependente

da investigação da res secundo quod res, pois somente esta pode estabelecer a

existência do que é investigado por aquela. Em seguida, porém, trata-se também

de uma relação em que a própria metafísica geral vê-se ordenada à teologia

natural, pois tende naturalmente à investigação da realidade primeira, o divino.

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Nesse sentido, afirma Francisco, “a metafísica particular é o fim da metafísica

comum” (p. 108).

Algo decepcionante, porém, é o encaminhamento dado à questão que

abrira o capítulo: como pode uma intenção neutra, a noção de coisa, atuar como

sujeito próprio de uma ciência real? Na verdade, em vão se busca por uma

resposta a essa questão. O que se depreende é que parece haver uma flutuação

na própria terminologia de Francisco, que reservaria na questão quodlibetal a

caracterização de coisa como intenção neutra, lançando mão, ao contrário, no

comentário à Metafísica de uma concepção de coisa como uma noção de primeira

intenção (p. 97). Sabine Folger-Fonfara não se pronuncia sobre o tema, mas a

impressão que no fim das contas se tem é a de que o modelo defendido no

comentário à Metafísica melhor se adequa ao projeto global de Francisco de

releitura do modelo aristotélico de metafísica.

No fim do capítulo a autora resume o que então em sua investigação foi

ganho: “Objeto da ‘metafísica geral’ não é o primum obiectum intellectus, o qual foi

de modo original demonstrado por Francisco ser um ‘super-transcendental’, mas,

ao contrário, o conceito transcendental tradicional de coisa, ao qual cabe

estender-se somente ao âmbito do ente real, dos conceitos de primeira

intenção; e objeto da ‘metafísica especial’ tampouco é o primum obiectum

intellectus, mas Deus” (p. 125). Torna-se urgente, a partir dessa constatação,

determinar qual seria o objeto primeiro do intelecto humano. Tal investigação já

fora iniciada no início da obra pela análise da noção de algo. No capítulo final,

porém, a autora se dedica a uma apresentação detalhada da indicação, por parte

de Francisco de Marchia, de que uma noção super-transcendental figura como

conceito primeiro da intelectualidade humana.

Determinar se há uma noção super-transcendental corresponde a

responder a pergunta sobre se existe um conceito acessível à intelectualidade

humana que seja um predicado unívoco das primeiras e segundas intenções, do

âmbito do ente real e dos entes de razão. Na investigação do tema, a autora

começa apresentando posições que, do século XIV ao XVII respondem

negativamente à pergunta colocada. Em seguida é analisada a atitude de

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Francisco, que se mostra radicalmente distinta do padrão comumente utilizado

na descrição da gênese das noções super-transcendentais. Com efeito, não se

trata, para Francisco, de basear os super-transcendentais em uma segunda

superação (transcensus), rumo ao que seria comum aos entes reais e de razão e

que se somaria à primeira superação, a partir das noções reais categoriais rumo

às transcendentais. O fundamental, com efeito, estaria noutra parte, a saber, no

fato de Francisco assimilar os entes de razão às categorias. Ora, uma vez feito

isso está aberto o caminho para os super-transcendentais: já a primeira

superação desembocará em noções predicáveis dos entes de razão porque

predicáveis das categorias, ou seja, dos entes reais. Compreende-se o porquê de

o super-transcendental central de Francisco, a noção de coisa, assemelhar-se

mais aos transcendentais do que aos futuros super-transcendentais da tradição

moderna, como opinável, inteligível etc., e também o porquê do uso de aspas

simples sobre o super da expressão ‘super’-transcendental no título da obra. Como

bem resume a autora, o desdobrar de noções super-transcendentais em

Francisco de Marchia não consiste, como ocorrerá em concepções mais tardias,

em uma superação do transcendental, mas procede, antes, de uma modificação

nesse próprio conceito, o que por sua vez decorre da subsunção dos entes de

razão às categorias (p. 143).

Em resumo, a obra de Sabine Folger-Fonfara se estrutura em torno a duas

questões: “qual o sujeito próprio da metafísica?” e “qual o objeto primeiro do

intelecto?”. Tradicionalmente, desde pelo menos Avicena, tais questões

desembocavam numa mesma resposta, na noção de ente. Em Francisco de

Marchia, porém, as coisas mudam radicalmente de figura e a noção de ente perde

seu destaque. Por um lado, a idéia de sujeito próprio da metafísica se desdobra

em duas: o sujeito próprio da metafísica geral, a primeira das ciências reais, e o

da metafísica especial, a última das ciências. Por outro, abre-se um fosso entre os

sujeitos próprios das metafísicas e o objeto primeiro do intelecto. Enquanto os

primeiros remetem à coisa (coisa enquanto tal e coisa separada de acordo com a

razão e a realidade), o último remete à noção de algo. Essa noção, por sua vez,

seria comum ao âmbito do real e do mental e seria, nesse sentido, um super-

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transcendental, num sentido bem particular, no entanto. Francisco, com efeito,

não lança mão de tal terminologia (p. 160) e a razão de se enquadrar a sua noção

de algo como um super-transcendental se deve sobretudo ao fato de ele

subsumir os entes às categorias. A dupla superação, sobre as categorias e sobre

os transcendentais, que historicamente caracteriza os super-transcendentais está

ausente da reflexão de Francisco de Marchia.

Mas, se a substituição da noção de ente pela de coisa no que diz respeito

ao sujeito próprio da metafísica parece artificiosa, se a distinção entre metafísica

geral e metafísica especial não parece ligada ao surgimento do dois objetos

distintos, mas de duas perspectivas, já bem entrevistas pela tradição, sobre o

mesmo objeto, e se o sentido de super-transcendental que se aplica a Francisco

parece imensamente distante do uso reconhecido da expressão, então – fica a

questão – seria de fato, em seus fundamentos, o pensamento de Francisco de

Marchia tão original quanto busca demonstrar Sabine Folger-Fonfara?