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Transição agroecológica e sustentabilidade dos agricultores familiares do Território do Caparaó-ES 1 Agroecological transition and sustainability of family agriculturists in the Territory of Caparaó, state of Espírito Santo, Brazil SIQUEIRA, Haloysio Miguel de 1, SOUZA, Paulo Marcelo de 2, RABELLO, Lilian Katiany Castello 3, FERREIRA, Rodrigo de Souza 4, ALVAREZ, Célio Ricardo da Silva 5. 1 Programa de Pós-Graduação em Produção Vegetal da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF, Campos dos Goytacazes/RJ - Brasil/ Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, Alegre/ES - Brasil, [email protected]; 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Produção Vegetal da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF, Campos dos Goytacazes/RJ - Brasil, [email protected]; 3 Docente substituta da Universidade Federal do Espírito Santo, Alegre/ES - Brasil, [email protected]; 4 Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural - Incaper, Alegre/ES - Brasil, [email protected]; 5 Biólogo, Especialista em Agroecologia, [email protected] RESUMO O objetivo desse artigo é apresentar os resultados do levantamento dos agricultores familiares em processo de transição agroecológica no Território do Caparaó-ES, e discutir os fatores que afetam esse processo. O estudo revela o potencial dos sistemas agroecológicos para proporcionar maior sustentabilidade à produção familiar. Entretanto, os agricultores identificados enfrentam grandes dificuldades para desenvolverem este potencial, destacando- se a falta de mais tecnologias e de assistência técnica com enfoque agroecológico, a falta de uma modalidade de crédito rural que atenda as exigências e peculiaridades do processo de transição e a falta de apoio à comercialização justa. PALAVRAS-CHAVE: transição agroecológica; agricultura familiar; sustentabilidade ABSTRACT The objective of this paper is to present the results of the survey of family agriculturists in agroecological transition in the Territory of Caparaó, state of Espírito Santo, Brazil, and discuss the factors involved in this process. The study reveals the potential of agroecological systems to provide greater sustainability for family production. However, the agriculturists face great difficulties to develop this potential, highlighting the lack of more technology and technical assistance with agroecological approach, the lack of a kind of rural credit that meets the demands and peculiarities of the transition process and the lack of support for fair trade. KEY WORDS: agroecological transition; family agriculture; sustainability Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 5(2): 247-263 (2010) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 27/07/2010

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Transição agroecológica e sustentabilidade dos agricultoresfamiliares do Território do Caparaó-ES1

Agroecological transition and sustainability of family agriculturists in the Territory ofCaparaó, state of Espírito Santo, BrazilSIQUEIRA, Haloysio Miguel de 1, SOUZA, Paulo Marcelo de 2, RABELLO, Lilian Katiany Castello 3,FERREIRA, Rodrigo de Souza 4, ALVAREZ, Célio Ricardo da Silva 5.

1Programa de Pós-Graduação em Produção Vegetal da Universidade Estadual do Norte FluminenseDarcy Ribeiro - UENF, Campos dos Goytacazes/RJ - Brasil/ Docente da Universidade Federal doEspírito Santo, Alegre/ES - Brasil, [email protected]; 2 Docente do Programa de Pós-Graduação emProdução Vegetal da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF, Campos dosGoytacazes/RJ - Brasil, [email protected]; 3 Docente substituta da Universidade Federal do EspíritoSanto, Alegre/ES - Brasil, [email protected]; 4 Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica eExtensão Rural - Incaper, Alegre/ES - Brasil, [email protected]; 5 Biólogo, Especialista emAgroecologia, [email protected]

RESUMOO objetivo desse artigo é apresentar os resultados do levantamento dos agricultores familiaresem processo de transição agroecológica no Território do Caparaó-ES, e discutir os fatores queafetam esse processo. O estudo revela o potencial dos sistemas agroecológicos paraproporcionar maior sustentabilidade à produção familiar. Entretanto, os agricultoresidentificados enfrentam grandes dificuldades para desenvolverem este potencial, destacando-se a falta de mais tecnologias e de assistência técnica com enfoque agroecológico, a falta deuma modalidade de crédito rural que atenda as exigências e peculiaridades do processo detransição e a falta de apoio à comercialização justa.

PALAVRAS-CHAVE: transição agroecológica; agricultura familiar; sustentabilidade

ABSTRACTThe objective of this paper is to present the results of the survey of family agriculturists inagroecological transition in the Territory of Caparaó, state of Espírito Santo, Brazil, and discussthe factors involved in this process. The study reveals the potential of agroecological systems toprovide greater sustainability for family production. However, the agriculturists face greatdifficulties to develop this potential, highlighting the lack of more technology and technicalassistance with agroecological approach, the lack of a kind of rural credit that meets thedemands and peculiarities of the transition process and the lack of support for fair trade.

KEY WORDS: agroecological transition; family agriculture; sustainability

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 5(2): 247-263 (2010)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 27/07/2010

IntroduçãoA agricultura convencional ou moderna se

caracteriza pelo uso intensivo do fator capital2

para elevar a produtividade da terra e do trabalho,através da adoção de variedades de plantas eraças animais geneticamente melhoradas, emmonoculturas, insumos (ex: agroquímicos) emáquinas de origem industrial, dependentes dopetróleo como matriz energética, constituindo um“pacote tecnológico”3. É uma agricultura que visaà maximização da lucratividade no prazo maiscurto possível. Sua origem remonta àsdescobertas e invenções que ocorreram ainda noséculo XIX, em genética, fertilização artificial desolos e moto-mecanização. Mas, foi após a 2ªguerra mundial que esse modelo tecnológico seconsolidou e se expandiu pelo mundo, no bojo dachamada Revolução Verde.

No Brasil, o processo de modernização daagricultura foi muito impulsionado pelo Estado,principalmente por meio da política de crédito ruralsubsidiado, que vigorou no período de 1965 a1980, para viabilizar a adoção do pacotetecnológico, concentrando-se entre os agricultorespatronais, de modo que foi mantida a tendênciahistórica elitista das políticas estatais. Osubdesenvolvimento da agricultura e do meio ruralera atribuído ao seu atraso tecnológico, tomandoas teorias do insumo moderno (SCHULTZ, 1965)e do difusionismo (ROGERS e SHOEMAKER,1974) como referenciais de análise.

Entretanto, esse processo de modernizaçãopassou a ser objeto de várias críticas4 apontandoos impactos socioeconômicos e ambientaisnegativos gerados, que se diferenciam conforme omomento histórico, a região e as culturasenfocadas, bem como salientando que oenfrentamento do problema da fome não seresume a uma questão de eficiência agrícola, poisrequer, principalmente, que se faça justiça social.Entre os impactos abordados vale citar: adependência de insumos industriais e o aumentodos custos monetários de produção; a

concentração fundiária e a sobrevalorização daterra; a proletarização e o êxodo rural,decorrentes da exclusão da maioria dosagricultores familiares dos benefícios damodernização; a insegurança alimentar; asintoxicações e a poluição ambiental devido ao usode agrotóxicos; o estreitamento da base genéticadas plantas cultivadas, a erosão genética e ocontrole do germoplasma das variedades antigaspor empresas transnacionais.

A partir dessa visão crítica, emergiu ummovimento social em busca de alternativastecnológicas ao padrão moderno, que ganhouforça nos anos 1980 e ficou conhecido comomovimento pela “agricultura alternativa”. Além doincentivo às experiências práticas, para darvisibilidade dos resultados positivos e mostrar quetambém é possível produzir bem adotandotécnicas não-convencionais, uma das principaisações do movimento no Brasil foi de exercerpressão política para a ocorrência das mudançasinstitucionais necessárias, em nível do ensino, dapesquisa, da extensão, do fomento, dofinanciamento e da comercialização para que odesenvolvimento agrícola pudesse assumir outradireção.

Atualmente, um bom exemplo de que essapressão política histórica surtiu efeito é o caso doMinistério do Desenvolvimento Agrário – MDA,que vem realizando ações de promoção eincentivo à produção familiarorgânica/agroecológica em termos de crédito,assistência técnica, agregação de valor e geraçãode renda. Segundo o Núcleo de Estudos Agráriose Desenvolvimento Rural5,

“Entre 2003 e 2005 a SAF/MDA apoiou cercade R$ 80 milhões em ações de produçãoorgânica e/ou agroecologia, sendo R$ 36,8milhões em assistência técnica e extensãorural; R$ 37,5 milhões em pesquisa e

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valor; e R$ 2 milhões em agrobiodiversidade.No crédito, foram criadas linhas especiais doPrograma Nacional de Fortalecimento daAgricultura Familiar (Pronaf), como oAgroecologia e o Floresta. Na assistênciatécnica e extensão rural, as ações planejadas edesenvolvidas são baseadas nos princípios daagroecologia e, em 2007, foram criadas redestemáticas envolvendo técnicos da extensãorural para tratar de temas como produçãoorgânica e agroecologia.

Já na geração de renda e agregação devalor, foram apoiados, nos anos de 2006 eparte de 2007, 12 convênios em agriculturaorgânica/agroecológica, representando ummontante de R$ 1,5 milhão.

Ainda nesta área, foi apoiada a participaçãode agricultores familiares com produçãoorgânica em importantes feiras nacionais,como a Feira da Agricultura Familiar e ReformaAgrária, que gerou cerca de R$ 10 milhões emvendas diretas nos dois últimos anos, einternacionais, como a Biofach, que aconteceem Nuremberg, na Alemanha, e a BiofachAmerica Latina e Exposustentat, em SãoPaulo.”

Vale destacar também o reconhecimentooficial, internacionalmente, do importante papelque a agricultura orgânica pode cumprir emtermos de segurança alimentar das nações,conforme as conclusões da ConferênciaInternacional sobre Agricultura Orgânica eSegurança Alimentar, organizada pela FAO erealizada em 2007, em Roma.

É oportuno apresentar alguns dados querevelam a dimensão da agricultura orgânica noBrasil e no mundo. Willer, Yussefi-Menzler eSorensen (2008) informam que na América Latina223.277 produtores manejavam 4,9 milhões dehectares de terras agrícolas organicamente, em2006. Isto representa 0,7 % das terras agrícolas

na América Latina e 16% das terras comagricultura orgânica no mundo. O Brasil estavaem 8º lugar no ranking mundial de área comculturas orgânicas. No topo da lista estavam,respectivamente, Austrália, China e Argentina.

Segundo Brasil (2006), o Brasil tinha, em 2006,uma área cultivada de cerca de 800.000 hectarescom agricultura orgânica e cerca de 15.000produtores, sendo 68% deles da região sul e 10%do sudeste. A região centro-oeste, apesar deabranger apenas 5% dos produtores, tinha amaior participação na área cultivada, com 65%. Aprática da agricultura orgânica, certificada ou não,nos estabelecimentos agropecuários brasileiros foiinvestigada pelo IBGE, pela primeira vez, pormeio do Censo Agropecuário 2006 (IBGE, 2009).Os estabelecimentos produtores de orgânicosrepresentavam 1,75% do total. Na distribuiçãodestes estabelecimentos quanto às atividadeseconômicas, nota-se o predomínio dapecuária/criação de outros animais, com peso de42%, e das lavouras temporárias, com 33,3%.Porém, a proporção dos estabelecimentosprodutores de orgânicos é maior entre o total deestabelecimentos que se dedicavam àhorticultura/floricultura.

No Estado do Espírito Santo, segundo aAssociação Chão Vivo (2010), existem 144propriedades certificadas, perfazendo uma áreatotal de 2.535,9ha, além de outras 420 emprocesso de transição que perfazem uma áreatotal de 5.460ha. A soma das áreas destaspropriedades (certificadas e em transição)corresponde a 0,28% da área total ocupada pelosestabelecimentos agropecuários no EspíritoSanto.

À medida que os movimentos contrários àagricultura convencional, em nível mundial, foramganhando a adesão de alguns pesquisadores,passou-se a buscar fundamentação científica paraas práticas alternativas. Assim, foi sendo

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construído um arcabouço teórico, ao longo doséculo 20, que se consolidou em uma novaciência, a Agroecologia, nos anos 1980. De acordocom Gliessman (2005: 54), a Agroecologia sededica à “[...] aplicação de conceitos e princípiosecológicos no desenho e manejo deagroecossistemas sustentáveis”, considerando osecossistemas naturais e os agroecossistemastradicionais (indígenas e camponeses) comoreferências iniciais básicas.

O processo de transição agroecológica, ouseja, de conversão de sistemas agrícolasconvencionais em agroecológicos, vem sendoobjeto de estudo no Brasil procurandocompreender os fatores que estão envolvidosnesse processo e estabelecer diretrizes quepossam facilitar a transição. Os trabalhos deMattos (2006), Lima e Carmo (2006), Caporal eCostabeber (2004), Feiden et al. (2002), Assis(2002), Khatounian (2001) e Veiga (1994), entreoutros, constituem relevantes contribuições nessesentido.

Também já foram feitos levantamentos deagricultores orgânicos/agroecológicos no Brasil(GRAZIANO et al., 20096; ORMOND et al., 20027)e em algumas regiões brasileiras específicas, taiscomo os Estados do Espírito Santo (CARMONA,2004) e de Santa Catarina (OLTRAMARI,ZOLDAN e ALTMANN, 2003), o Centro-Sul doParaná (AHRENS, 2006) e os municípios dePelotas-RS (FINATTO e SALAMONI, 2008) eCampos dos Goytacazes-RJ (BARBÉ, SOUZA ePONCIANO, 2009).

Especificamente no Território do Caparaó-ES,constata-se a existência de algumas iniciativas embusca de alternativas tecnológicas envolvendo umnúmero reduzido de agricultores, em sua grandemaioria do tipo “familiar”, sozinhos ou empequenos grupos relativamente isolados, queestão sensibilizados, em processo de transição ouconvertidos para o sistema orgânico/agroecológico

de produção (não necessariamente certificados).Uma dessas iniciativas já foi estudada (SIQUEIRAet al., 2008), referindo-se à experiência daAssociação Capixaba de Agricultores OrgânicosFamiliares de Iúna e região – ACAOFI. As demaisiniciativas estão sendo enfocadas, pela primeiravez, na tese de doutorado8 (em andamento) do 1ºautor do presente artigo, a qual foi tomada (emparte) como base para a elaboração do mesmo.

O objetivo desse artigo é apresentar osresultados do levantamento dos agricultoresfamiliares em processo de transição agroecológicano Território do Caparaó-ES, e discutir osprincipais fatores que afetam esse processo. Opressuposto fundamental do estudo foi que ossistemas agroecológicos de produção teriampotencial para proporcionar maiorsustentabilidade9 a esses agricultores.

Caracterização do Território do Caparaó-ESO Território do Caparaó-ES (TC) está

localizado no sudoeste do Estado do EspíritoSanto, perfazendo uma área de 3.920,70Km2, oque corresponde a 8,5% da área estadual. Éconstituído por onze municípios, quais sejam:Alegre, Dores do Rio Preto, Divino São Lourenço,Guaçuí, Ibitirama, Iúna, Irupi, Ibatiba, JerônimoMonteiro, Muniz Freire e São José do Calçado. NoEstado do Espírito Santo existem outros cincoterritórios definidos. Esta divisão do Estado emterritórios representa uma tentativa de reunirmunicípios de características ambientais,socioeconômicas e socioculturais similares, paraque possam somar forças em busca do seudesenvolvimento.

O TC é um dos "Territórios da Cidadania"reconhecidos pelo MDA, como parte de umprograma que busca superar a pobreza rural pormeio da promoção do desenvolvimento destesterritórios, de modo a melhorar a qualidade devida das populações rurais, garantindo os seus

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direitos e a sua cidadania. O Conselho Territorial éresponsável pela elaboração e gestão do PlanoTerritorial de Desenvolvimento Rural Sustentável eSolidário, bem como pelo controle social daspolíticas públicas decorrentes, se colocando comoum espaço de participação, discussão, proposiçãoe deliberação democrática. É um órgão colegiadoconstituído por representantes do poder público eda sociedade civil, de forma paritária, com um totalde 34 membros no TC.

Conforme o Instituto Jones dos Santos Neves,o TC participava, em 2007, com 1,9% no PIBestadual. Os valores de PIB per capita municipaisvariaram de R$5.705,00, em Jerônimo Monteiro, aR$8.253,00, em Irupi, enquanto o valor para oEstado foi de R$18.003,00. A Agência 21 (2006)informa que sete dos onze municípios do TCapresentam mais de 60% da renda familiarproveniente do setor agrícola, o qual tambémocupa 57% dos trabalhadores da região. Asprincipais atividades econômicas são acafeicultura e a pecuária de leite. Além dessas,também se encontram as culturas de milho, feijão,mandioca, frutas variadas, aves e suínos, entreoutras, geralmente como economia desubsistência.

Os estabelecimentos familiares10

correspondem a 81,8% do total deestabelecimentos agrícolas do TC, ocupandoapenas 43,9% da área agrícola, conformetotalização obtida com base nos dados do IBGE(2009), o que revela a concentração fundiária noTC.

Uma importante característica do TC se refereao meio ambiente que o compõe, onde “[...]predominam terras acidentadas com temperaturasfrias ou amenas em 82% do espaço territorial [...]”(ESPÍRITO SANTO, 2008: 78), fazendo parte dafaixa de domínio da Mata Atlântica. A Agência 21(2006: 71) relata que:

“[...] a própria identidade cultural do território

e de seus moradores está intimamentevinculada às paisagens da região, em especialàquelas preservadas nas unidades deconservação como o Parque Nacional doCaparaó e o Parque Estadual da Cachoeira daFumaça. (...) Além disso, ressalta-se também ofato da região estar inserida em três baciashidrográficas (do Rio Itapemirim, do RioItabapoana e do Rio Doce), sendo uma dasregiões capixabas de maior potencial hídrico[...]”.

De acordo com o IBGE, o TC contava com170.522 habitantes em 2007, sendo que apopulação rural representava 40,4% desse total.Segundo a Agência 21 (2006), essa participaçãojá chegou a quase 70% em 1970, o que evidenciaum intenso processo de êxodo rural na região,sendo a falta de infraestrutura e dos serviçospúblicos necessários à cidadania uma das causasprincipais. E segundo o Atlas do DesenvolvimentoHumano no Brasil, o IDH dos municípios quecompõem o TC foi igual a 0,73, em média no anode 2000, indicando um médio nível dedesenvolvimento humano regional. O melhor IDHfoi obtido em Dores do Rio Preto (0,77) e ospiores em Divino de São Lourenço e Ibitirama(ambos iguais a 0,69).

O TC também apresenta sérios problemasambientais. O histórico de desmatamentoindiscriminado reduziu drasticamente a coberturaflorestal nativa. Práticas como o uso degradantedo solo e da água, inclusive com aplicaçãoabusiva de agrotóxicos, são muito comuns. Poroutro lado, o TC possui grande potencial turísticoem função do relevo acidentado, das baixastemperaturas e do bioma regional. A produçãoorgânica/agroecológica representa um dos nichosde mercado que ainda é muito pouco explorado.

MetodologiaO levantamento realizado correspondeu a um

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censo dos agricultores familiares que seencontram em transição agroecológica noTerritório do Caparaó-ES (TC), utilizando oquestionário e a entrevista como instrumentospara coleta de dados. A coleta foi iniciada em2006 e concluída em 2009, quando, inclusive,procedeu-se a atualização dos dados. Os critériospara enquadrar o agricultor nessa situação forama adoção de pelo menos duas práticas11

consideradas agroecológicas e o esforço de evitara utilização de agrotóxicos, sempre que possível,em função de sua consciência crítica quanto aosimpactos socioambientais negativos dosagrotóxicos.

Procuraram-se indicações de quais seriam osagricultores familiares com esse perfil em cadamunicípio do TC, além, é claro, daqueles jáconhecidos pelos autores desse artigo antes dolevantamento. Para isso, mantiveram-se contatocom os escritórios do Instituto Capixaba dePesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural –INCAPER, Secretarias Municipais de Agricultura,

Sindicatos de Trabalhadores Rurais eAssociações Comunitárias.

As inovações técnicas, no campo daAgroecologia, foram contextualizadas em termossocioeconômicos e socioambientais. Olevantamento abrangeu os seguintes aspectos: afamília e a terra; o agroecossistema, com ênfasenas práticas agroecológicas adotadas; asatividades não-agrícolas existentes (agroindústria,agroturismo, etc.); a mão-de-obra utilizada; oacesso à assistência técnica e ao crédito; ascondições de comercialização e as rendasexternas obtidas. Quanto às práticasagroecológicas adotadas, abordaram-se a origem,as culturas em que se aplicam, os resultadosobtidos e as principais dificuldades enfrentadas.

Os dados foram processados utilizando oprograma de estatística SPSS for Windows. Eforam analisados com base nas freqüênciasobtidas, as quais estão expressas emporcentagem.

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Resultados e DiscussãoNo Território do Caparaó-ES (TC) foram

identificados 46 (quarenta e seis)estabelecimentos familiares12 em processo detransição agroecológica, abrangendo todos os 11(onze) municípios que o compõem, conforme atabela 1. Isso corresponde a cerca de 0,5% dototal de estabelecimentos familiares do TC.

Mais da metade dos agricultores familiaresdesses estabelecimentos cursou somente oensino fundamental (completo ou incompleto),embora um número significativo (27%) tambémtenha cursado o ensino médio, e apenas quatroagricultores são analfabetos. A participação emorganizações sociais é muito comum,predominando a associação da comunidade e osindicato de trabalhadores rurais.

Entre os 46 agricultores familiares que estãoem transição agroecológica, 85% produzem emestabelecimentos cuja área total não excede a

25ha. A maioria está na condição de proprietário(por herança ou compra individual), mas tambémexistem assentados de reforma agrária,assentados de crédito fundiário e comodatários,além de um arrendatário e um posseiro-quilombola.

A influência recebida para iniciar a transiçãoagroecológica tem como origem mais citada aatuação de determinados técnicos (43%), além daassociação de agricultores (11%), vizinhos eamigos, organização não-governamental e cursose palestras (com o mesmo peso de 6,5%), entreoutras origens. Uma parcela considerável (37%)dos entrevistados disse que passou a adotarpráticas agroecológicas por iniciativa própria oupor tradição familiar.

Quase a metade (48%) dos entrevistadosinformou aplicar as práticas agroecológicas emtodas as culturas do estabelecimento, dentre as

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quais predominam café13, milho, feijão, olerícolase frutíferas, na parte vegetal, e aves, suínos,peixes e bovinos de leite, na parte animal. Osdemais aplicam em culturas específicas, sendoolerícolas, café14 e aves as mais comuns.

Na tabela 2 encontram-se expostas as práticasagroecológicas levantadas. Nota-se que aspráticas adotadas por, pelo menos, mais de 30%dos agricultores familiares são: cobertura morta,manejo de plantas espontâneas com roçadas,consorciação de culturas, adubação com esterco,compostagem e controle alternativo de pragas edoenças.

No processo de transição agroecológica podemser concebidos três níveis ou passos paraconversão de sistemas agrícolas convencionaisem agroecológicos, segundo Gliessman (2005). Oprimeiro se refere à redução do uso de insumosexternos, caros, escassos e impactantesambientalmente, maximizando a eficiência daspráticas convencionais. No segundo nível,ocorreria a substituição de insumos químico-sintéticos por insumos orgânicos e práticasalternativas. E no terceiro, seriam redesenhadosos sistemas produtivos para que passem afuncionar com base em um novo conjunto deprocessos ecológicos, sendo o expressivoaumento da biodiversidade um dos seus principaisindicadores.

Analisando a tabela 2, com base nessereferencial teórico, pode-se inferir que a grandemaioria dos agricultores familiares abordadosainda está no nível de substituição dos insumosquímico-sintéticos por insumos orgânicos epráticas alternativas, em diferentes graus. Apenasquatro agricultores conseguiram avançar para oterceiro nível, redesenhando os seus sistemasprodutivos, total ou parcialmente, de modo aassumir a forma agroflorestal com elevadadiversificação e mínima dependência de insumosexternos.

Nesse sentido, é pertinente esclarecer a

diferença entre os sistemas “agroecológico” e“orgânico” de produção, que são os termos maisem voga atualmente no Brasil. O sistemaorgânico não corresponde, muitas vezes, aoagroecológico, principalmente quando se orientaapenas a aproveitar os nichos de mercado,caracterizando-se por apresentar

“[...] simplificação dos manejos, baixadiversificação dos elementos dos sistemasprodutivos, baixa integração entre taiselementos, especialização da produção sobrepoucos produtos, simples substituição deinsumos químicos e biológicos e exíguapreocupação com a inclusão social e criaçãode alternativas de renda para os agricultoresmais pobres” (CANUTO, 1998, apud MATTOS,2006: 24).

Contudo, essa diferenciação não significa dizerque o sistema orgânico, na sua forma maiscomum da simples substituição de insumosquímico-sintéticos por insumos orgânicos, nãopossa ser encarado como uma etapaintermediária do processo de transiçãoagroecológica, conforme a concepção deGliessman (2005), na medida que o agricultoresteja consciente das limitações que tal sistemaainda oferece para alcançar a sustentabilidadeagrícola, e também esteja disposto a avançar natransição. No presente estudo foram identificadossomente três agricultores legalmente certificadoscomo “orgânicos”, embora, seus sistemasprodutivos ainda sejam contrastantes com o idealagroecológico.

Quanto aos resultados obtidos com as práticasagroecológicas, constatou-se que houve poucaconvergência nas respostas dos agricultores,conforme revela a tabela 3. Pode-se observar quesomente o “menor risco à saúde familiar” aparececomo resultado bem citado (39%). Além deste, osresultados mais citados (por 8 a 9 agricultores)

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foram: ampliação das fontes e/ou aumento derenda, melhor condição de trabalho e cultivo,economia de insumos externos, conservação dosolo e proteção ao meio ambiente e/ou àbiodiversidade. Apesar da variedade de resultadosinformados, no conjunto eles revelam o potencialdos sistemas agroecológicos em contribuir para odesenvolvimento de uma agricultura maissustentável no TC, principalmente pelo ladosocioeconômico, que se manifesta em termos demelhoria na saúde familiar, na renda e nas

condições de trabalho.O baixo índice de relato de ganhos ambientais

se deve, em parte, ao fato de tais ganhosdemorarem mais a ocorrer, pois dependem dosprocessos ecológicos envolvidos na recuperaçãoe conservação das áreas agrícolas, os quaispossuem um tempo próprio para surtir os efeitosesperados, conforme salientado por Gliessman(2005). Mas, também se pode explicar pelo fatode muitos agricultores ainda não estaremsuficientemente sensíveis às questões ambientais

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de modo mais amplo.É preciso ressaltar que os agricultores

familiares abordados se encontram em processode transição agroecológica e, por isto mesmo,ainda não puderam obter todos os resultadospotenciais de sistemas agroecológicosconsolidados. Inclusive, existem dois projetos queestão em fase de implantação, em assentamentos,e ainda não têm resultados a relatar.

No que se refere às dificuldades na adoção do

sistema agroecológico, apresentadas na tabela 4 ,também se observa que as respostas dadas pelosagricultores familiares foram, em geral, poucoconvergentes. As dificuldades mais citadas (por 6a 8 agricultores) foram a obtenção de esterco, aexigência de mão-de-obra, a comercialização e afalta de reconhecimento e incentivo.

Além dos três passos da transiçãoagroecológica enfocados anteriormente, quecorrespondem à transição interna, Mattos (2006)

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acrescenta a idéia da transição externa ao sistemaprodutivo. A transição externa se refere adeterminadas condições mais amplas que tambémprecisam ser trabalhadas, por meio da sociedadee do Estado, as quais incluem

“[...] a expansão da consciência pública, aorganização dos mercados e infraestruturas, asmudanças institucionais na pesquisa, ensino eextensão, a formulação de políticas públicascom enfoque agroecológico e as inovaçõesreferentes à legislação ambiental” (MATTOS,2006: 29).

Tendo isso em vista, é possível deduzir, quantoàs dificuldades listadas na tabela 4, que sete delasestão diretamente relacionadas aoscondicionantes externos da transição, tais comoassistência técnica, comercialização,reconhecimento e incentivo. Por isso, a proposiçãode políticas públicas com enfoque agroecológico ede âmbito territorial se coloca como prioridadeabsoluta, buscando o enfrentamento de taisquestões. E os movimentos sociais têm um papelfundamental a cumprir nesse sentido.

Entretanto, constata-se que os movimentossociais do Território do Caparaó-ES (TC) sãopouco atuantes em defesa dessa causa. Luzzi(2007), analisando a inserção dos movimentossociais rurais do Brasil na luta pela Agroecologia,observa que no movimento sindical esta questãoainda fica muito restrita ao discurso de suaslideranças, sendo pouco representativo o númerode sindicatos que realizam ações concretas. Nocaso específico do TC, notamos que apenas ossindicatos de Iúna/Irupi, Muniz Freire e Alegre(mais recentemente) vêm sendo atuantes.

Essa mesma autora coloca que o Movimentodos Trabalhadores Sem Terra – MST tem sidorelativamente bem mais atuante em prol daAgroecologia. No caso do TC, nosso estudoidentificou o projeto de um assentamento,

organizado pelo MST, que parece ser promissorpara inovação agroecológica em face dadisposição manifestada por um grupo deassentados que estava iniciando algumasexperiências.

Nesse contexto, a Rede da AgriculturaFamiliar15 do TC tem enorme potencial deengajamento, apesar de ainda não estarconsolidada, representando uma nova forma deorganização, não hierárquica, que possibilita aarticulação das diversas iniciativas de basevoltadas ao desenvolvimento dos agricultoresfamiliares do TC. Inclusive, essa Redeestabeleceu que a Agroecologia seria um dosseus eixos temáticos de trabalho prioritários. E em2008 chegou a promover o primeiro mini-curso decapacitação inicial em Agroecologia.

Do total de entrevistados, 54% recebemassistência técnica, embora nem sempre comenfoque agroecológico, e 52% têm acesso aocrédito rural, não específico para produçãoagroecológica. Os canais de comercialização maiscomuns são o atravessador, a cooperativa, a feiralivre e o contato domiciliar, na maioria das vezessem agregar um valor diferencial da qualidade“orgânica/agroecológica”. Esses dados confirmamas dificuldades correspondentes apontadas erevelam alguns dos enormes desafios que aindase impõem para promover a produçãoagroecológica familiar no Brasil, os quais tambémjá foram discutidos por outros autores, tais comoMattos (2006), Lima e Carmo (2006), Assis (2002)e Ormond et al. (2002).

O primeiro desafio seria garantir umaassistência técnica diferenciada, que venhafacilitar o processo de transição agroecológica,desde o simples uso mínimo e racional deinsumos externos até o redesenho doagroecossistema, mediante o amplo diálogo como agricultor e numa perspectiva construtivista. Oque se verifica no TC é a carência de profissionaiscom o perfil necessário para atender essa

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demanda. Algumas vezes o profissional existe,mas os agricultores familiares não dispõem derecursos financeiros para remunerá-lo. OINCAPER, através do último concurso, conseguiusuprir, em parte, a demanda por extensionistascom formação agroecológica, atendendogratuitamente.

É claro que essa questão da assistênciatécnica diferenciada está intimamente relacionadacom as mudanças institucionais, já referidas, napesquisa, no ensino e na extensão que também sefazem necessárias, conforme destacou Mattos(2006). E vale acrescentar a preocupação deAssis (2002) de que não bastam tais mudanças,definindo linhas de trabalho com enfoqueagroecológico, pois também é preciso haver amudança de atitudes dos pesquisadores eextensionistas. Eles precisam assumir uma novapostura profissional, decorrente do processo demudança conceitual quanto à sustentabilidade daagricultura na perspectiva agroecológica. Umprojeto pedagógico também diferenciado, para aformação desses profissionais, será essencialpara favorecer tal mudança conceitual e atitudinal.

O segundo desafio seria possibilitar o acesso auma modalidade de crédito rural que atenda asexigências e peculiaridades do processo detransição, apesar de sua baixa freqüência entre asdificuldades relatadas pelos entrevistados.Condições adequadas de volume de recursos,prazo de pagamento, carência e taxa de subsídiose tornam essenciais para a viabilidade econômicada transição, que envolve um período em que arenda familiar costuma decrescer. Tais medidasseriam condizentes com a extrema relevânciasocioambiental da produção agroecológica, que setraduz em segurança alimentar, saúde pública econservação dos recursos naturais e do espaçovital, além de favorecer a permanência dasfamílias no campo em melhores condições.

O Governo Federal instituiu o PronafAgroecologia, a partir da safra 2005/200616, como

uma nova linha de crédito do Pronaf (ProgramaNacional de Fortalecimento da AgriculturaFamiliar) voltada para incentivar a produçãoagroecológica. Embora ainda seja poucoconhecida, essa linha de crédito não vem tendoaceitação pelos agricultores familiares cientes,tanto que no TC ainda não foi feito nenhumcontrato nessa linha, de acordo com informaçãodo Banco do Brasil. Mattos (2006) chegou apropor a criação de um “programa nacional detransição agroecológica”, tendo em vista ofinanciamento da transição.

Até mesmo uma política governamental defomento seria, muitas vezes, necessária eestratégica como estímulo econômico inicial àtransição agroecológica, considerando quesomente a expectativa de recebimento do prêmiode mercado seria insuficiente. Mesmo porque ovalor do prêmio pode não ser o bastante paracobrir os custos da transição, conforme já foidemonstrado em estudos como o de Calo e Wise(2005), principalmente no caso daquelesprodutores que estão adotando a certificação, poiso custo desta tem grande peso no custo total deprodução e o produto gerado durante o processode conversão ainda não pode ser comercializadocomo orgânico/agroecológico. Esse tipo deintervenção política seria plenamente justificávelem função dos relevantes serviços ambientais esocioeconômicos, já referidos, que os produtoresagroecológicos prestam para a sociedade.

E o terceiro desafio se refere à necessidade deapoio à comercialização, de modo a permitir quesejam conciliados os interesses dos produtores edos consumidores, num contexto socioambiental,conforme os princípios do comércio justo17, isto é,transparência, co-responsabilidade, relação delongo prazo, pagamento de preço justo, respeitoao meio ambiente e à dignidade do trabalho. Asfeiras livres podem se tornar um importanteespaço de realização destes princípios, comocanal de venda direta, na medida em que os

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produtores familiares estiverem mais conscientese mobilizados para exigir uma atenção bem maiordo poder público à organização das feiras e àconscientização dos consumidores, principalmenteem municípios como Divino São Lourenço eIbitirama que sequer têm feiras implantadas.

Identificaram-se outras duas experiências bempromissoras de comercialização. Uma delasenvolve três agricultores do município de Alegreque operam no Programa de Aquisição deAlimentos18, de iniciativa do GovernoFederal/CONAB, na modalidade da compra diretados agricultores, através de sua Associação, paraa doação simultânea a entidades como o hospitalpúblico e o lar das crianças desamparadas. Aoutra experiência envolve três agricultoresparticipantes da Associação Capixaba deAgricultores Orgânicos e Familiares de Iúna eregião do Caparaó – ACAOFI. Eles estãocertificados e já tiveram seu café exportado duasvezes19 com o selo “Fair Trade”, de acesso aomercado justo, e os selos “Chão Vivo/BCS” para acertificação orgânica.

A maioria das demais dificuldades apontadasse refere aos fatores envolvidos na transiçãointerna aos sistemas produtivos, refletindodiferentes níveis de eficiência técnica dosmesmos. Por exemplo, a dificuldade de obtençãode insumos orgânicos (inclusive esterco) aparecedevido ao fato da maioria dos agricultores nãoconceber e não organizar o seu estabelecimentode modo integrado e autosuficiente, para efeito datransição, mantendo uma grande dependência deinsumos externos, agora não mais químico-sintéticos e sim orgânicos. O caso dos trêsagricultores da ACAOFI, antes referidos, éilustrativo dessa situação limitante dasustentabilidade agrícola, inclusive pela ênfaseexcessiva dada a um só produto (café orgânico)para exportação.

A prestação de uma assistência técnicadiferenciada, já discutida anteriormente, é uma

das condições necessárias para melhorar aeficiência técnica e a viabilidade econômica daprodução. Articuladamente a essa assistência, sefaz urgente desenvolver mais projetos depesquisa voltados para a redução dos custos e aotimização da produtividade, entre outrosaspectos, em consonância com os princípiosagroecológicos. A produção e a reciclageminternas de biomassa parecem ser alguns dospontos-chave a serem trabalhados.

Lima e Carmo (2006: 68) também enfocaram aquestão da viabilidade econômica da produçãoagroecológica, concluindo que a falta decompetitividade desta é um dos principaisobstáculos à transição agroecológica. Destacarama necessidade de estudos empíricos que visem

“[...] examinar sob quais condiçõestecnológicas, socioeconômicas e ambientais ossistemas de produção agroecológicos têm seconstituído alternativa econômica viável, emrelação a outras formas de agriculturapraticadas pelos agricultores, especialmente aconvencional [...]”.

A tese de doutorado do 1º autor do presenteartigo procura dar uma contribuição neste sentido,abordando especificamente o caso da cafeiculturafamiliar do TC.

Por fim, é válido transcrever algumas dicasimportantes, de Feiden et al. (2002: 188 e 189),para bem conduzir o processo de transição, quaissejam:

“[...] Deve-se fazer uma análise dos pontosfortes e fracos da propriedade, definir aptidões,considerar a experiência do agricultor, mão-de-obra e mercado. Não há receitas nem pacotesnem hierarquia de ações a seremdesenvolvidas. Os procedimentos vãodepender, em especial, do estratosocioeconômico do agricultor e do padrão

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tecnológico inicial da unidade produtiva, que,de maneira geral, irão condicionar o tipo deconversão a ser realizado e a estratégia deconversão para a agricultura orgânicautilizada.”

ConclusãoO estudo revelou a situação das

experiências de transição agroecológica noTerritório do Caparaó-ES, vivenciadas pelosagricultores familiares, relatando resultadosque indicam o potencial dos sistemasagroecológicos para proporcionar maiorsustentabilidade à produção familiar, ediscutindo as principais dificuldadesenfrentadas pelos agricultores paradesenvolver este potencial.

A disponibilidade de mais tecnologias e deassistência técnica com enfoque agroecológico,a provisão de uma modalidade de crédito ruralque atenda as exigências e peculiaridades doprocesso de transição e o apoio àcomercialização justa figuram como alguns dosgrandes desafios a serem trabalhados. Atémesmo uma política governamental de fomentoseria necessária e estratégica como estímuloeconômico inicial.

É preciso que os poderes públicosinstituídos no Território do Caparaó-ES,juntamente com as entidades de apoio,priorizem, o quanto antes, a formulação eimplementação de políticas que venham,efetivamente, promover a produção familiaragroecológica, em função dos importantíssimosserviços que pode prestar para a sociedade,tanto na oferta de alimentos bem maissaudáveis, produzidos com rigorosa proteçãoambiental e economia de recursos naturais nãorenováveis, como na redução do êxodo rural.Espera-se que o presente estudo tambémpossa ser útil como subsídio para políticasdessa natureza.

Notas1 Esse artigo tomou como base, parcialmente,

a tese de Doutorado em Produção Vegetal do 1ºautor, em andamento na Universidade Estadualdo Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF,Campos dos Goytacazes-RJ.

2 Goodman et al (1990) formularam o conceitode “apropriacionismo” para também explicar essalógica econômica. Segundo eles, os capitaisindustriais vêm progressivamente realizando aapropriação de elementos do processo produtivoagrícola, que são reproduzidos industrialmente ereincorporados neste processo como meios(insumos) de produção. O genótipo das plantasnativas cultivadas, gerando as sementesmelhoradas, e a oferta natural de nutrientes dosolo, gerando os adubos químicos são exemplos.

3 A idéia do “pacote” é que o pleno efeito decada uma das técnicas preconizadas depende dacombinação com as demais. Por exemplo, umavariedade melhorada para ganho de produtividadedepende da adubação química recomendada pararealizar todo o seu potencial.

4 Ver Paschoal (1979), Silva (1982), Martine(1987) e Mooney (1987), entre outros.

5 Boletim Notícias Agrárias no 410/2008,editado pelo Núcleo de Estudos Agrários eDesenvolvimento Rural – NEAD (vinculado aoMDA), disponível em:http://www.nead.org.br/boletim/todosboletins.php.

6 Com base nos produtores orgânicoscertificados pelo Instituto Biodinâmico - IBD, emfunção do alcance nacional desta certificadora edo maior número de certificados emitidos.

7 Com base em dados obtidos junto àsprincipais certificadoras que atuam no Brasil e aalgumas empresas produtoras e/oucomercializadoras de produtos orgânicos.

8 Doutorado em Produção Vegetal,Universidade Estadual do Norte Fluminense DarcyRibeiro, Campos dos Goytacazes-RJ.

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9 Vários autores já abordaram a questão dasustentabilidade da agricultura familiar,defendendo a relevância da contribuição que osistema orgânico/agroecológico de cultivo podedar neste sentido, dentre os quais se incluemWeid (2009), Carvalho (2006) e Romeiro (1998).Ainda que cada autor enfatize mais um aspecto ououtro, em linhas gerais, acredita-se que essesistema possibilitaria a obtenção de retornossocioeconômicos, num nível ótimo e em longoprazo, conservando a base produtiva de recursosnaturais e sendo compatível com a cultura dosagricultores familiares.

10 Definidos de acordo com os critériosinstituídos pela Lei Federal n° 11.326/2006, quesão os seguintes: a área do estabelecimento nãoexcede a 4 (quatro) módulos fiscais; a mão-de-obra utilizada é predominantemente da própriafamília; a renda familiar é predominantementegerada no estabelecimento; e o estabelecimento édirigido pela família.

11 Quando se tratava unicamente de “sistemaintegrado de olericultura e avicultura” ou de“sistema agroflorestal”, estes por si só seenquadraram, pois envolvem um conjunto depráticas integradas.

12 Esse total se refere aos estabelecimentosidentificados com base nas fontes de informaçãocitadas na “metodologia”, podendo haver outro(s)ainda não identificado(s). Dois destesestabelecimentos correspondem, na verdade, aprojetos coletivos que ainda estavam em fase deimplantação, sendo um deles num assentamentode reforma agrária (grupo de 10 famílias, em suasrespectivas glebas) e o outro num assentamentode crédito fundiário (grupo de 16 famílias, numaárea coletiva). As estatísticas indicadas ao longodessa seção consideram tais projetos como umaunidade cada, totalizando, assim, 46estabelecimentos.

13 Somente seis agricultores cultivam o café

conilon. Todos os demais cultivam o café arábica.14 Somente um agricultor cultiva o café

conilon. Todos os demais cultivam o café arábica.15 Foi criada em 2005, fruto da mobilização

dos agricultores familiares do TC, em decorrência,por um lado, de sua indignação perante aspolíticas públicas territoriais vigentes na época, e,por outro, da fragilidade organizacional da maioriadas entidades representativas, como os sindicatose as associações, que não vinham atuando comocanal aberto e direto entre as políticas públicas eseus beneficiários finais.

16 Na safra 2004/2005 já havia um pequenoincentivo de crédito à produção agroecológica, naforma de um sobreteto que contemplavaagricultores familiares dos grupos C e D,ampliando em 50% os limites de crédito para essetipo de produção. As taxas de juros, prazos depagamento, benefícios e condições para obtençãodo crédito seguiam as mesmas regras dos gruposC e D.

17 Conforme documento da Fairtrade LabellingOrganizations International – FLO, de 2006,disponível emwww.fairtrade.net/uploads/media/Explan_Doc_Small_Farmers_Mar_2006_PT.pdf (acesso em 02fev. 2009).

18 No caso de produtosorgânicos/agroecológicos, admite-se umacréscimo de até 30% nos preços de referênciadefinidos pela CONAB. Mas, nenhum dosagricultores envolvidos atende a regulamentaçãoexigida (Decreto Federal n.o 6.323/2007) parausufruir deste acréscimo.

19 Para a Suíça, em 2007, e para a Itália, em2010.

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