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  • 184 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    T N N I E SO objetivo destas pginas reto-

    mar um texto esquecido, Marx,

    Leben und Lehre (1) (Vida e Obra

    de Marx), publicado por Ferdinand

    Tnnies em 1921, do qual j apre-

    sentei uma pequena resenha (2), e

    aqui expor e eventualmente desen-

    volver as linhas gerais de seus ar-

    gumentos, em busca de proximida-

    des e diferenas entre os dois auto-

    res. O texto foi redigido quando o

    autor, aos 65 anos, recm-sado da

    profunda depresso que a guerra

    mundial lhe provocara, encontra-

    va-se no apogeu da popularidade

    intelectual e representava um acer-

    to de contas com Marx, de quem se

    considerava devedor.

    sabido que Tnnies era conside-

    rado pela ortodoxia marxista como

    anticomunista e romntico por se

    Utopia, valor e contradio

    ORLANDODE MIRANDA professordo Departamentode Sociologia daFFLCH-USP.

    O R

    L A

    N D

    O D

    E

    M I R

    A N

    D A

    Karl Marx com

    as filhas (Jenny,

    Laura e Eleonor)

    e Engels

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 185

    E M A R Xopor revoluo bolchevique (que

    no considerava uma revoluo

    proletria, mas apenas uma revolu-

    o nacionalista russa) e descrer das

    transformaes sociais atravs de

    movimentos polticos violentos e

    radicais (por outro lado, os conser-

    vadores o descreviam como

    social-democrata perigoso por

    seu anticapitalismo e a defesa assu-

    mida dos trabalhadores; e os libe-

    rais viam nele um pessimista re-

    trgrado. Na opinio de Tnnies,

    essa condenao quase unnime dos

    polticos era apenas mais uma das

    anedotas que percorriam sua vida).

    De fato, no ter conhecido pessoal-

    mente Marx era uma das frustra-

    es expressas de Tnnies (3). E

    nas suas palavras, a relao entre

    ambos no continha nenhuma am-

    1 Marx, Leben und Werk,Jena, K. Ntzel, 1921.

    2 Vida e Obra de FerdinandTnnies, So Paulo, FFLCH-USP, 1995, pp. 110-6.

    3 De fato, entre 1878 e 1880,quando Tnnies pesquisavaa vida de Hobbes no MuseuBritnico, avistou vrias ve-zes Marx trabalhando em me-sas prximas. Todavia, o jo-vem Tnnies viajava financia-do por um tio que lhe exigi-ra, como condio, que ja-mais procurasse aquele ho-mem perigoso, e por isso,absteve-se do contato. Maistarde, com outra fonte derecurso, voltou a Londres(1884), mas Marx havia fale-cido e teve que se contentarcom vrias entrevistas comEngels. O episdio narradopelo prprio Tnnies (A Fi-losofia Alem Atual em Mi-nhas Memrias, in R.Schmidt (org.), Die Philosophieder Gegenwart, Leipzig, 1922)que a propsito no escon-dia sua decepo.

    alguns problemas da teoria marxista

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    bigidade. Desde a publicao de Comuni-

    dade & Sociedade (1887) (4) declarava a

    importncia de Marx, o analista que lhe te-

    ria desvendado as caractersticas do capi-

    talismo, permitindo-lhe fundamentar a te-

    oria da sociedade. Compartilhava com

    Marx as expectativas em relao ao prole-

    tariado (5), a viso metodolgica do mun-

    do manifestando-se plenamente de acor-

    do com o princpio bsico da concepo

    materialista da histria (6) e elogiava sua

    postura analtica, pois, seguindo o modo

    dos astrnomos e a ao dos verdadeiros

    pensadores cientficos, Marx sempre se

    concentra em descobrir e constatar para os

    fatos e movimentos aparentes, quais os fa-

    tos e movimentos reais (7). Numa pala-

    vra, considerava-o fundamental, pois, como

    homem e como pensador, estaria sempre

    unindo a luz sua prpria luz (8).

    Essa admirao expressa, todavia, no

    faz de Tnnies um apstolo. O texto de

    MLL, alm do esboo biogrfico que

    compe a primeira parte, contm cinco ca-

    ptulos analticos, quatro deles praticamente

    constituindo um fichamento de O Capital,

    que procura dominar em sua complexida-

    de. O ltimo captulo, reserva-o crtica,

    que j no tem como referncia necessria

    a obra principal de Marx. Pode-se assim,

    grosso modo, distinguir uma crtica a Marx

    (o quinto captulo) e uma parte principal

    em que a interpretao de O Capital home-

    nageia Marx preservando-o da viso esta-

    belecida pelos marxistas vulgares e procu-

    rando aprofundar algumas questes dali

    advenientes.

    Talvez se possa resumidamente, em um

    jargo contemporneo, externar os funda-

    mentos crticos com que Tnnies se refere

    a Marx: Eric Hobsbawn descreveu o scu-

    lo XIX como um longo sculo. Contu-

    do, mais que isso, tem-se a impresso de

    que muitos dos que nele efetivamente vi-

    veram perceberam-no como um sculo

    permanente. Os avanos da racionali-

    dade ilustrada e sua penetrao na polti-

    ca, a revoluo industrial, tcnica e cien-

    tfica refletem em boa parte da produo

    filosfica e acadmica como uma sensa-

    o de urgncia que a levava menos a

    analisar a histria do que a buscar resolv-

    la. Para Marx, como para muitos dos seus

    contemporneos racionalistas, o sculo

    XIX coroa a histria e desemboca na reali-

    zao da humanidade. Essa concepo de

    patamar da histria, de sculo definitivo,

    implica a ausncia de uma prospeco

    mediadora e acaba por incluir na obra ele-

    mentos dspares, quando no contradit-

    rios, confundindo ou invalidando certas

    anlises e concluses.

    Tnnies concorda com Marx na prima-

    zia das formas econmicas para a anlise e

    diagnsticos das coletividades humanas,

    bem como sobre a inutilidade de se lhe opor

    devaneios idealistas. Escreveu que Marx

    estava certamente com a razo quando afir-

    mou que a base materialista, ou seja, a

    compreenso do desenvolvimento econ-

    mico, merece profundo estudo objetivo para

    que se possa agir sobre a realidade. Conti-

    nuava ainda correto ao ironizar a fase revo-

    lucionria de Most, considerando ridculo

    e reacionrio o jogo da fantasia dos pri-

    meiros utopistas sobre a futura estrutura

    social. Reconheceu o perigo dos devaneios

    e da no-poltica que geralmente caminham

    de mos dadas, de modo debilmente vaido-

    so e carregado de sensualidade sentimen-

    tal (9). Todavia, o econmico explica, mas

    no determina seno nos termos de sua pr-

    pria lgica. E a limitao de Marx seria pre-

    cisamente a de, tendo percebido a lgica

    imanente ao capitalismo, aplic-la modelar

    e diretamente teoria da transformao so-

    cial. Em outros termos, o Marx dos anos 40,

    tempos de tempestade e fria (a expresso

    de Tnnies), ao mesmo tempo em que

    assume uma proposta e uma militncia par-

    tidria, ao romper com Proudhon elabora os

    princpios de uma Economia Poltica e apli-

    ca diretamente uma coisa sobre a outra. Para

    Tnnies, conquanto corretas ambas as ativi-

    dades, no haveria entre uma e outra uma

    relao simtrica e automtica de causa e

    conseqncia.

    As formas econmicas tm valor diag-

    nstico, mas no teraputico. Explicam a

    lgica de uma sociedade dada, mas no a

    superam. Tnnies considerava Marx o

    maior e melhor analista do capitalismo,

    4 O subttulo da 1a ed. de C&S(Formas Culturais Empricasdo Socialismo e do Comunis-mo) era desde logo uma alu-so a Marx. Embora o traba-lho tivesse se originado de umapreocupao diferente (a dis-cusso sobre o direito histri-co e natural), seu desenvolvi-mento expressava a ambiode articular no plano da cultu-ra o mesmo trabalho que Marxlhe significara no campo eco-nmico nO Capital. Na 2a edi-o de C&S (1912), por moti-vos metodolgicos o subttulofoi alterado para Tratado deSociologia Pura, e em notaagregada Tnnies lamenta que poca da redao de C&S asconcluses do sistema marxis-ta ainda no fossem bem co-nhecidas (de fato, o 3o volumedO Capital sequer fora publi-cado). A propsito se poderiacitar, dentre outros, meu ParaLer Ferdinand Tnnies (So Pau-lo, Edusp, 1995), onde essa dis-cusso aparece desenvolvidaem alguns textos, e a citaode C&S encontra-se p. 271.

    5 Minhas esperanas as colo-co somente na internacio-nalidade dos movimentos detrabalhadores (F. Tnnies,Introduo Sociologia,1931, e.p.).

    6 MLW, op. cit., p. 141.

    7 Idem, ibidem, p. 126.

    8 Idem, ibidem, p. 145.

    9 Idem, ibidem, p. 140.

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    contido entretanto pelo prprio modo capi-

    talista de pensar ou, se prefervel a expres-

    so, pela racionalidade intrnseca ao pr-

    prio sistema analisado. Assim, et pour cau-

    se, as prospeces marxistas contaminam-

    se e expressam lacunas, incompletudes e

    equvocos com referncias ao materialis-

    mo, histria, dialtica, teoria do valor

    e formulao das utopias.

    Tnnies seria acusado, e de forma irres-

    ponsvel, por Lkacs (10), de se constituir

    em um subjetivista-irracionalista. Em

    outro contexto, e de forma mais elegante,

    precisamente uma crtica anloga que

    Tnnies dirige a Marx. Considera (desde

    C&S) que as manifestaes materiais e

    concretas pelas quais os homens isolados

    ou em coletividades se expressam do-se

    no plano pessoal pela interveno das von-

    tades e no plano social pelos valores cons-

    tituintes das formas culturais. Vontades e

    valores culturais, opostos e subsistentes em

    contradio dialtica (11), determinam a

    dinmica humana e animam as transfor-

    maes sociais. Conformam, por conse-

    guinte (e contraditoriamente), o plano onde

    o homem sujeito e constri sua histria

    nos limites que lhe so proporcionados.

    Assim, valores e vontades existem concre-

    tamente, definem os limites e condiciona-

    mentos de cada momento, determinando-

    lhe os possveis, e devem estabelecer-se

    como o fundamento mesmo de uma anlise

    materialista da histria.

    Ora, na medida em que se aplica uma

    teoria e um diagnstico econmico a uma

    proposta de transformao poltica radical,

    estar-se-ia precisamente propondo a cons-

    truo da histria, escamoteando o plano

    onde ela se realiza. Tal anlise ou suporia

    uma determinao absoluta e mecnica do

    econmico sem resduo de autonomia para

    aqueles que deveriam se constituir nos agen-

    tes histricos (12) ou pressuporia nesses

    ltimos a possibilidade de uma compreen-

    so dos fatos e uma ao inteiramente racio-

    nais, com o que seriam eles prprios ho-

    mens do capitalismo. A primeira vertente

    mecanicista e a segunda idealista.

    Uma revoluo montada em tais bases

    no poderia significar de nenhum modo o

    fim definitivo das classes, o fim da lti-

    ma forma antagnica do processo de pro-

    duo social. A previso de Marx de que a

    estrutura social atual representaria a pr-his-

    tria da humanidade , em conseqncia,

    falsa. Nesse ponto surge para Marx a viso,

    a crena utpica cujo carter primordial-

    mente o de uma f religiosa, e de modo al-

    gum um pensamento cientfico (13).

    A recuperao do materialismo hist-

    rico implicaria precisamente reconhecer,

    alm da estrutura econmica, o plano da

    histria, dos valores e fenmenos cultu-

    rais, e Tnnies prope uma correo em

    um conhecido aforismo de Marx: a fra-

    se: a existncia social do homem deter-

    mina a sua conscincia, e no o contr-

    rio deveria ser modificada para anunci-

    ar que o ser determina mais forte e ime-

    diatamente a conscincia do que o con-

    trrio (14) pois

    a vida popular fundamentalmente inde-

    pendente das configuraes do plano pol-

    tico e espiritual, e s necessita para sua

    existncia do controle dos instintos e mo-

    tivos dinmicos fundamentais que definem

    a convivncia como tal: ela relativamente

    independente, como a vida vegetativa do

    organismo do mamfero relativamente

    independente dos rgos motores e

    sensores. A vida social geral , no entanto,

    a vida econmica. Atravs do costume, do

    direito, do poder de dominao, se

    condiciona; mas estes se voltam para os

    costumes dessa vida social geral, nascem

    das suas necessidades. Tambm a vida es-

    piritual isso (15).

    Na terminologia de Tnnies, explicita-

    se que a organizao econmica predomi-

    nante caracteriza uma coletividade e intro-

    duz por suas instituies e valores formas

    de condicionamento aplicveis coletivi-

    dade em geral (o modo capitalista de ser e

    pensar caracterizaria uma sociedade con-

    tempornea). Todavia, o povo (palavra que

    define grupos culturais particulares) reage

    a isso por seus prprios valores e mecanis-

    mos. Tais conceitos, aplicados luta de clas-

    ses, a definiriam no apenas como o confli-

    10 Tratei especificamente des-se assunto, e do texto deLkacs, Assalto Razo, emmeu texto O Conceito deRacionalidade em FerdinandTnnies (PLFT, op. cit., pp.143-62).

    11 Tal fenmeno no aleat-rio ou produto da subjetivi-dade humana, mas se deve Dialtica da Identidade,como procurei sintetizar emartigo com esse ttulo (PLFT,op. cit., pp. 61-72).

    12 O que de imediato recorda ainfeliz passagem da SagradaFamlia em que o proletari-ado produzir a revoluomesmo que este no seja odesgnio de qualquer deles,ou ento a anedota do co-munista no bar, que dizia: sea revoluo vem mesmo,para que apress-la? Vamostomar mais uma.

    13 MLL, op. cit., p. 143.

    14 Idem, ibidem, p. 141.

    15 Idem, ibidem.

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    to pela posse ou propriedade dos meios de

    produo, mas como a reao proletria ba-

    seada nos valores contidos nas comunida-

    des operrias contra a difuso dos valores

    expressos pela sociedade capitalista (16).

    Sem a compreenso de tal mediao, a

    afirmao vitoriosa dos valores do capita-

    lismo, ainda que em nome de uma revolu-

    o proletria, longe de resolver os confli-

    tos e crises, representaria a perda da auto-

    nomia cultural, o colapso da cultura e a

    introduo da sociedade de massas. Do

    modo como Marx expe, no v o fato de

    que tais contradies insolveis e incur-

    veis tambm so a morte de uma cultura, da

    vida do povo espiritualizada em comuni-

    dades. Simultaneamente, pode alis ocor-

    rer o desenvolvimento de uma cultura mais

    jovem a partir da mais velha, desde que se

    coloque a necessidade para tanto, cuja con-

    dio fundamental no a vitria de novas

    foras de produo, de novas tcnicas ou a

    ditadura de uma classe, mas o erguer-se de

    novos homens, de novos povos e a abertu-

    ra, para estes, de novo cho (17).

    A proposio de Tnnies funda-se em

    que seu princpio dialtico no nem a luta

    de classes, nem a explorao do homem

    sobre o homem, cuja ocorrncia histrica

    derivaria da contradio fundamental

    imanente vida social entre a identidade

    do homem consigo mesmo (identidade

    pessoal ou abstrata) e com sua coletividade

    (identidade coletiva ou concreta), de onde

    a formao histrica e contraditria seja

    das vontades (a nvel pessoal) seja das for-

    maes mais ou menos comunitrias ou

    societrias. A referncia entre as pessoas,

    famlias, povos (grupos culturais homo-

    gneos) e formaes mais amplas, encon-

    tra-se mediada pelos valores, eles prprios

    expresses ou representaes da contradi-

    o fundamental. Dessa forma, tais valores

    podem ser unitrios (congregando a pes-

    soa ao grupo) ou fragmentrios (expres-

    sando uma qualidade individual que a dife-

    rencia e separa). A vigncia hegemnica

    de tais ou quais valores numa coletividade

    qualquer esclarece seu carter comunitrio

    ou societrio. Assim, por exemplo, indiv-

    duo, razo, liberdade, competio, Esta-

    do, civilizao, so valores de expresso

    societria; ao passo que companheirismo,

    pensamento, responsabilidade, comunho,

    povo, cultura, designam valores comunit-

    rios. Dessa forma, sendo os valores expres-

    ses de vontades (pessoais), tanto quanto

    condicionamentos da vida coletiva, uma

    transformao do carter da coletividade

    (a passagem do capitalismo ao comunis-

    mo, ou, na terminologia de Tnnies, da

    sociedade comunidade) implicaria a pr-

    via realocao dos valores na escala social

    e pessoal, de onde a importncia da cultura

    e do povo que a faz e reproduz para o senso

    comunitrio, e da moral decorrente entre

    os valores pessoais.

    Por isso, recriminando Marx por t-lo

    esquecido, escreve:

    Em todo ser humano normal mora uma

    conscincia moral, mesmo que s vezes s

    pouco desenvolvida ou oculta por sob as

    dobras da religio. E essa conscincia moral

    uma arma que se torna mais potente na

    luta contra situaes injustas, contra as cru-

    eldades das civilizaes, doenas da hu-

    manidade e o desejo por infra-estrutura mais

    digna, pois que esses pensamentos no se

    prendem de forma alguma a uma classe;

    estes dependem muito mais do estado na-

    tural do esprito e do carter, da influncia

    de educadores e professores, do lido e do

    ouvido, da compaixo e da sabedoria, en-

    fim, da formao moral como um todo mais

    do que da conscincia da prpria misria,

    do ressentimento sobre isto e sobre a situ-

    ao infeliz dos companheiros (18).

    Outro aspecto onde o sculo definitivo

    colocando-se como patamar da humanida-

    de introduz elementos deletrios anlise

    marxista diz respeito utopia, efetivao

    da sociedade comunista. De fato, trata-se

    de categoria com tripla funo na anlise

    marxista: faz parte de um projeto poltico

    em que constitui o objetivo estratgico;

    resulta da luta dos contrrios e a dissol-

    ve, consolidando uma teoria da histria; e

    desempenha papel metodolgico como sn-

    tese do processo de contradies que con-

    figuram a dialtica materialista.

    16 Destacando-se apenas quepela presena das vontadesintroduzindo um contedocontraditrio em ambas ascoletividades, o conflito nose esgotaria em uma luta deuma contra a outra, senotambm no conflito de cadauma consigo mesma.

    17 MLL, op. cit., p. 142.

    18 Idem, ibidem, p. 144.

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    Os trs elementos tomados como o

    mesmo implicariam fortes ambigidades e

    contradies, e, nesse ponto, Tnnies que

    j classificara as previses marxistas de

    falsas especialmente severo, descreven-

    do-a como grave erro lgico.

    O mecanicismo da teoria da histria j

    parece suficientemente documentado e

    analisado. Toda a histria nos aparece como

    uma satnica combinao dialtica entre

    explorao e alienao denominada de-

    senvolvimento das foras produtivas que

    a etapa superior da dominao, o capita-

    lismo, permite desvendar e, feita luz, re-

    solver, devolvendo a humanidade ao den

    de onde nunca deveria ter sado. Na ex-

    presso de um crtico autorizado, com

    Marx, somos colocados em presena de

    uma mudana que segue um curso inelu-

    tvel, mas o seu motor de tal natureza

    o desenvolvimento das foras produtivas

    que no somos capazes de ver como

    que uma formao social pode resistir a

    ele, conservar-se ao abrigo de seus efei-

    tos, instalar-se, por uma durao indeter-

    minada, na estagnao (19).

    Tnnies, que no v como se possa in-

    troduzir no materialismo histrico o proje-

    to de destruir a histria (ao menos, tal como

    se a conhecia) e atravs de uma construo

    ideal, produto da imaginao de Marx e

    Engels, rigoroso: O fato de Marx haver

    vinculado suas concepes econmicas a

    uma forte influncia partidria fez com que

    predominassem pr-conceitos e pressupos-

    tos que deveriam estar ausentes no verda-

    deiro pensamento terico (20). Mas con-

    centra suas atenes nos outros aspectos da

    utopia.

    Como projeto poltico, assinala tratar-

    se de uma proposta tanto simptica quanto

    contraditria: Mesmo quem no compar-

    tilhe com Marx dessa crena no futuro, no

    renunciar impresso simptica dessas

    consideraes [] Se, porm, um desen-

    volvimento humano no s desejado, mas

    tambm previsto e acreditado, por que Marx

    recusa participao aos trabalhadores so-

    cialistas e a possibilidade de se animarem

    por esse objetivo tico maior, transforma-

    rem em sua a esperana e o desejo de uma

    humanidade mais nobre? (21).

    O argumento que Tnnies utiliza com

    muita nfase, alis introduzindo as ltimas

    concluses de seu texto, que o proletaria-

    do, durante toda a obra de Marx, fora apre-

    sentado como sujeito da histria, senhor do

    seu destino. E o projeto comunista retira-

    lhe precisamente essa condio, limita e

    bloqueia a atividade criadora que deveria

    promanar do sujeito. A utopia consagrada

    passa a negar ao sujeito qualquer ao real,

    seno aquela que deva conform-lo ao des-

    tino pr-traado. Que sujeito seria esse em

    que mesmo a conscincia somente seria

    mensurvel pelo seu grau de adeso a um

    projeto preexistente? Recusada humani-

    dade e ao proletariado a autonomia para

    decidir os prprios passos, eliminada a

    perspectiva de construir e reconstruir a

    cultura em suas formas concretas de estatuir

    valores e organizar a sociedade, tudo con-

    formado a um projeto adrede elaborado,

    no restaria uma utopia humana, nem a

    realizao de uma classe, mas to-somente

    o autoritrio produto do imaginrio de um

    s homem.

    Nessa parte, resta ainda a utopia como

    sntese metodolgica, a resultante dialti-

    ca da luta dos contrrios. Tnnies no a

    aborda diretamente. Para chegar dialti-

    ca, estabelece um percurso na trajetria

    filosfica de Marx, onde a separao de

    Hegel significa uma volta para o pensa-

    mento predominante no sculo XVIII, a que

    Kant tambm permaneceu, em contedo,

    fiel. Seus princpios bsicos so cientfi-

    cos: constitui uma negao da concepo

    de mundo mitolgico-ingnua e teolgica.

    O sculo XIX o reassume, o enriquece com

    a noo do vir-a-ser e do desenvolvimento

    orgnico formulada nessa poca como sua

    principal caracterstica (22). Marx procu-

    ra desvendar uma regulamentao natural

    do desenvolvimento humano (23), proce-

    dendo de modo anlogo ao que fizera

    Schopenhauer (24).

    Quanto dialtica, fundamental pela

    noo de sntese que implica reconstru-

    o e renovao, tambm descrita como a

    negao da negao (25), Tnnies mani-

    festa certa perplexidade:

    19 Claude Lefort, As Formas daHistria, So Paulo, Brasilien-se, 1979, p. 39.

    20 MLL, op. cit., pp. 143-4.

    21 Idem, ibidem, p. 143.

    22 Idem, ibidem, p. 119.

    23 Idem, ibidem, p. 120.

    24 Idem, ibidem, p. 122.

    25 Idem, ibidem, p. 125.

  • 190 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    No se poderia afirmar que uma ou outra

    concepo, da negao e da sntese, sejam

    exatamente incompatveis entre si, mas da

    sua ambigidade e da sua diferena, Marx e

    Engels no tomaram a devida conscincia,

    pois se o fizessem, teriam deixado vestgios

    dessas tentativas de unir os conceitos. Nun-

    ca se torna realmente claro se a propriedade

    privada no geral ou a propriedade privada

    capitalista; se a produo simples de merca-

    dorias ou somente a produo capitalista de

    mercadorias so as formas alienantes em que

    as relaes sociais das pessoas apresentam-

    se travestidas em relaes sociais entre coi-

    sas, os produtos do trabalho (26).

    Talvez uma comparao entre as duas

    metodologias dialticas possa ser mais

    esclarecedora. Em Tnnies a dialtica de-

    riva da natureza social do homem e sua

    capacidade de intervir na cultura, e funda-

    menta-se na contradio identitria, que se

    expressa a nvel pessoal pela tenso das

    vontades (krwille e wesenwille) e na cole-

    tividade pelas tenses entre a comunidade

    e a sociedade, concretamente sob a media-

    o dos valores incidentes e relativos a cada

    formao social e pessoal. Toda a histria

    produto de tais tenses e no pode se es-

    gotar seno com a renncia a toda caracte-

    rstica de vida social tal como a conhece-

    mos. As snteses expressam-se assim ape-

    nas como figuras lgicas, que implicariam

    a realizao absoluta de um dos vetores em

    tenso. De um lado, a totalizao ou desdo-

    bramento mximo do conceito de comuni-

    dade configura-se na noo de humanida-

    de (onde todos os homens so o mesmo);

    de outro, o nada (no apenas o no-ser), o

    desenvolvimento mximo do conceito de

    sociedade, implica a plenitude da noo de

    indivduo (como unidade inteiramente au-

    tnoma). Assim, todos os nveis so

    dialticos e contm as contradies. A afir-

    mao e a negao podero ser tomadas

    indiferentemente como pessoas e coletivi-

    dades (ou vice-versa) com as contradies

    presentes em ambas e se manifestando en-

    tre elas (no que consiste, nunca demais

    relembrar, a produo da cultura). A snte-

    se maior, por se constituir apenas em ter-

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 191

    mos lgicos, resguarda tambm em si as

    contradies expressas na antinomia indi-

    vduo-humanidade. Ou a sntese lgica no

    um vir-a-ser, e as snteses histricas (ou

    a prpria histria) resumem-se em um

    rearranjo das contradies pelas alteraes

    dos valores hegemnicos. No parece, por-

    tanto, cabvel uma noo tal como a da

    negao da negao.

    Em Marx, a dialtica decorre da propri-

    edade e da dominao do homem pelo ho-

    mem que os iluministas atribuam pr-

    pria natureza da vida social. Seria, como

    diz Rousseau, que desde o instante em que

    o homem teve necessidade de recorrer a

    um outro, desde que se apercebeu que era

    til a um s armazenar provises paras dois,

    a igualdade desapareceu, a propriedade se

    introduziu, o trabalho tornou-se necess-

    rio (27). Marx, como Tnnies, no admite

    um homem natural (28), pr-social, mas

    ao contrrio de Tnnies, para o qual a dia-

    ltica identitria uma caracterstica da vida

    social, para Marx trata-se de um seu produ-

    to. Implica um estgio ou uma relao so-

    cial anterior, as comunidades primitivas,

    s quais, portanto, a dialtica no se aplica

    e que se constituem literalmente em soci-

    edades sem histria. Como a comuni-

    dade que no aqui um produto de fato

    da histria, mas algo de que os homens

    tm conscincia como tal tem portanto

    uma origem, temos portanto a condio

    prvia da propriedade da terra, vale dizer,

    da relao do sujeito que trabalha com as

    condies naturais de seu trabalho como

    algo que lhe pertence (29). Ou, em ou-

    tros termos:

    A frmula capital, em que o trabalho vivo

    se apresenta numa relao de no-proprie-

    dade relativamente matria-prima, aos

    instrumentos e meios de subsistncia ne-

    cessrios durante o perodo de produo,

    implica, em primeira instncia, a no-pro-

    priedade da terra; isto , a ausncia de um

    estado em que o indivduo trabalhador con-

    sidere a terra, o solo, como seu prprio e o

    trabalho como seu proprietrio [] esta

    situao histrica a que, em primeiro lu-

    gar, negada pela relao de propriedade

    26 Idem, ibidem, p. 126.

    27 J.-J. Rousseau, Oeuvres Com-pletes, Livro III, p. 171; cf.Nisbet, La Tradit ionSociologique, op. cit., p. 69.

    28 Em Tnnies, essa posioconstitui o cerne de sua cr-tica a Hobbes (cf. ThomasHobbes. Os Elementos da LeiNatural e Poltica, Londres,1889, 226 p. reimp. 1970, eVida e Obra de Hobbes,Stutgart, 1896).

    29 K. Marx, Formaes Econmi-cas Pr-Capitalistas, Rio de Ja-neiro, Paz e Terra, 1977, p.70.

  • 192 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    mais completa implcita na relao do tra-

    balhador com as condies de trabalho

    como capital. Esta a situao histrica

    nmero um, negada no novo relacionamen-

    to, ou pressuposta como tendo sido dissol-

    vida pela histria (30).

    No h um homem natural, mas uma sorte

    de comunidade natural, de onde a histria

    se desenvolve a partir de uma ruptura entre

    homem e natureza, e onde o homo eco-

    nomicus aparece como seu prprio vilo,

    com o que, inclusive, o comunismo s pode-

    ria se realizar ao final da carncia, isto , no

    mundo da abundncia (o que certamente

    reproduz um mito da revoluo industrial).

    E a dialtica configura-se como um produto

    histrico que a prpria histria.

    Determinada a vigncia da dialtica,

    pode-se passar a sua constituio. Marx,

    lui mme, declarou estar colocando de p o

    que Hegel construra de cabea para baixo.

    Seguindo a metfora geomtrica, pode-se

    considerar que, qualquer que seja sua posi-

    o no espao, uma figura permanece a

    mesma, e portanto verificar se as noes do

    idealismo hegeliano no se apresentam si-

    mtricas s do materialismo marxista.

    Desde logo no parece que todos os

    nveis da dialtica hegeliana sejam verda-

    deiramente dialticos. O conceito, sntese

    idtica hegeliana, que corresponde ver-

    dade e harmonia, certamente no e se-

    quer expressa um movimento, contradit-

    rio ou no. Est, a priori, posto. Em Hegel,

    a essncia que se dirige ao conceito car-

    regando as contradies precisamente para

    solv-las. Cabe perguntar se em Marx isso

    se modifica. Ao conceito, a sntese

    hegeliana, corresponde a totalidade mar-

    xista com a realizao da utopia. Como pode

    esse nvel supremo postular-se dialtico,

    se o momento real da emancipao e da

    retomada de si do homem (31), verda-

    deira soluo do antagonismo entre o ho-

    mem e a natureza, o homem e o homem,

    [] existncia e essncia, objetivao e

    afirmao de si, liberdade e necessidade,

    indivduo e gnero (32)? Como pode ser

    dialtico o momento de superao da dia-

    ltica? De modo anlogo a Hegel, trata-se

    da totalizao, desprovida de movimento

    pois que nada h fora dela, no tem para

    onde dirigir-se (33). Claro que, como

    Lkacs explicitou polemizando com Sartre,

    admite-se o movimento em seu interior, mas

    movimento delimitado como o trecho que

    Marx esclarece em um todo harmnico, e

    portanto de modo nenhum um continente de

    contradio. Em Hegel, a essncia dirige-se

    ao conceito carregada de contradies. Em

    Marx, da tarefa incumbe-se o proletariado

    (a classe operria), que se afirma e se nega

    em sua relao com a totalidade.

    Resta ainda um terceiro elemento, a

    afirmao em Hegel o ser (o mundo ob-

    jetivo), em Marx a burguesia (ou o mundo

    mitificado):

    Em primeiro lugar, vemos que as foras

    produtivas aparecem como foras totalmen-

    te independentes e separadas dos indiv-

    duos, cujas foras so aquelas, existem dis-

    seminados e em contraposio uns com os

    outros, ao passo que essas foras so reais

    e verdadeiras no intercmbio e na coeso

    desses indivduos [] Por outro lado, a

    estas foras produtivas confronta-se a mai-

    oria dos indivduos, de quem essas foras

    se desgarraram e que, portanto, despojados

    de todo contedo real de vida, converte-

    ram-se em indivduos abstratos, e, por isso

    mesmo, s ento se vem postos em condi-

    es de relacionar-se uns com os outros

    como indivduos (34).

    Em Hegel, o ser reverbera sobre a es-

    sncia que o reflete. E essa reflexo da

    essncia colocando o ser como seu outro

    que implica a contradio. Ou seja, o ser

    apresenta-se essncia com um movimen-

    to de saltos, onde a essncia estabelece a

    contradio. Poder-se-ia dizer que, num

    sentido dialtico, o ser s o quando a

    essncia o torna. Parece similar a posio

    do proletariado diante do mundo mtico da

    burguesia que sobre ele reverbera. E do

    mesmo modo como a essncia coloca-se

    em oposio ao ser e conduz tal contradi-

    o ao conceito, o proletariado age sobre o

    mundo mitificado do qual se distingue, para

    completar o movimento na direo da tota-

    30 Idem, ibidem, pp. 93-4.

    31 K. Marx, Misria da Filosofia,So Paulo, Global Editora,1984, p. 99.

    32 Idem, ibidem, p. 87.

    33 A respeito de Hegel, tal argu-mento encontra-se desenvol-vido em G. R. G. Mure, A Studyof Hegel Logic , Oxford,Clarendon Press, 1966, espe-cialmente as fls. 351-4.

    34 Marx e Engels , IdeologiaAlemana, Barcelona, Grijalbo,1972, p. 78.

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 193

    lidade, constituindo as duas formas da cons-

    cincia de classe.

    Enfim, se em Hegel s h um nvel ver-

    dadeiramente dialtico a essncia (35) ,

    tambm em Marx possvel que toda a

    dialtica esteja contida unicamente no pro-

    letariado. E as categorias provenientes da

    tenso posta pela conscincia no mundo

    mitificado, como a alienao ( o que

    Tnnies nota na referncia ao fetiche), so

    de complexa operacionalizao.

    De todo modo, o que cabe estabelecer

    nessa abordagem que Tnnies e Marx

    divergem quanto ao preciso significado do

    materialismo histrico, pois para o primei-

    ro no h modo de uma abordagem direta

    do real seno atravs dos conceitos-valo-

    res que os representam e que constituiriam

    parte do mundo concreto; como tambm

    quanto concepo dialtica, para Tnnies

    intrnseca vida social e abrangendo todos

    os seus nveis, e para Marx constituindo ela

    prpria um produto histrico, onde o pro-

    letariado seu nico agente real.

    At aqui, enfatizaram-se as diferenas

    entre os dois autores alocados em correntes

    prximas, tais como Tnnies as explicita

    no 5o captulo de MLL, ou como produto

    de minha prpria interpretao. Evidente-

    mente, divergncias conduzem tanto a con-

    cluses como a modelos analticos bastan-

    te diversos, e projetam-se sobre a interpre-

    tao de O Capital a que Tnnies se dedi-

    cara nos quatro primeiros captulos, consi-

    derando-o como a obra de Marx, j que

    a obra de vida verdadeiramente somente

    uma frao (36), e que deveria ser apreen-

    dida deixando-se de lado os outros

    posicionamentos do autor, suas crenas e

    sonhos derivados por exemplo da Comuna

    de Paris, que lhe constituiriam parte da

    psicologia e, como se pode dizer, da psico-

    logia patolgica do homem e pensador

    Marx, mas no da compreenso certa e

    coerente da sua obra vital (37).

    Em princpio, procura estabelecer as

    conexes de Marx com os economistas cls-

    sicos, iniciando a anlise afirmando que

    A Economia Poltica (ou Economia Nacio-

    nal, termo que Marx no utiliza) uma

    construo filosfica que, por sua dinmi-

    ca, hoje comumente entendida como a

    Economia Poltica clssica. Tratando-a

    seriamente como cincia, Marx a diferen-

    cia de forma precisa da economia vulgar,

    sua forma banalizada. Os primeiros teri-

    cos reconhecidos foram os economistas

    ingleses, Adam Smith e David Ricardo,

    cujos antecessores seriam os fisiocratas

    franceses. Mas Marx lhes atribui outra ori-

    gem, considerando como seu fundador

    outro ingls: William Petty. Em sntese, a

    economia nacional clssica conclui que o

    bem-estar amplia-se sob a regncia da li-

    berdade de comrcio interior e exterior,

    sendo a interior a livre concorrncia o

    fator fundamental na distribuio do pro-

    duto anual. E em conseqncia, a distri-

    buio entre as trs grandes classes de ren-

    da ocorre a partir de sua participao na

    produo (38).

    Destaca a importncia do trabalho de

    conservar e recuperar os economistas cls-

    sicos esquecidos, que eleva categoria ci-

    entfica, em perfeita consonncia com a

    tradio marxista:

    O socialismo moderno, qualquer que seja

    a sua tendncia, na medida em que arranca

    da economia poltica burguesa, subscreve,

    quase sem excees, a teoria do valor de

    Ricardo. Dos dois postulados estabeleci-

    dos por Ricardo, em 1817, nas primeiras

    pginas dos seus Principles: 1o) o valor

    de toda mercadoria determinado nica e

    exclusivamente pela quantidade de traba-

    lho necessrio para produzi-la e 2o) o pro-

    duto de todo trabalho social dividido en-

    tre trs classes: os proprietrios fundirios

    (renda), os capitalistas (lucro) e os oper-

    rios (salrios) desses dois postulados, a

    partir de 1821, na Inglaterra, extraram-se

    dedues socialistas e com um vigor e de-

    ciso tais que esta literatura, hoje quase

    esquecida e em grande parte recuperada por

    Marx, no foi superada at a publicao de

    O Capital (39).

    Aps descrever sumariamente os princ-

    pios de Smith e Ricardo, especialmente des-

    35 A anlise de Hegel baseia-senos textos de RosenMenahen, especialmente oartigo Identit, Difference etContradiction DialetiquesSelon Hegel (in Journal of theHistory of Philosophy, vol. 23,fasc. 4, 1985, pp. 515-35).

    36 MLL, op. cit., p. 117.

    37 Idem, ibidem.

    38 Idem, ibidem, p. 77.

    39 Engels, prefcio 1a edioalem de Misria da Filosofia,1885, pp. 164-5.

  • 194 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    se ltimo, principal ponto de apoio de Marx

    a teoria dos valores de Ricardo a inter-

    pretao cientfica da vida econmica atu-

    al (40) , enfatiza que Marx retoma de

    Ricardo o princpio bsico [] que o tempo

    de trabalho socialmente gasto ou seja, o

    tempo de trabalho socialmente necessrio

    aquele necessrio para reproduzir a merca-

    doria e lev-la ao mercado e que depende do

    nvel de produtividade do trabalho consti-

    tui o valor da mercadoria (41).

    Da Lei do Valor, expressa desse modo,

    Marx iria extrair os elementos essencial-

    mente novos da obra (42) (a referncia

    ao primeiro tomo de O Capital), e que con-

    sistem:

    1. que o trabalho guarda em si mesmo um

    carter ambguo e duplo, dependendo em se

    exprimir em valor de uso ou valor de troca;

    2. que, para alm de todas as diferencia-

    es das formas de renda, a diferenciao

    da fora de trabalho contida em cada pro-

    duto e produzida por ele prprio e da

    mais-valia que como tal deve ser trata-

    da independentemente de suas formas es-

    pecficas de lucro, juro, renda da terra, etc.

    aparece de forma geral da mais-valia de

    maneira ainda indiferenciada e dissolvida;

    3. que pela primeira vez o salrio se revela

    como expresso irracional de uma relao

    oculta que se desvenda precisamente nas

    duas formas de salrio-tarefa e salrio-jor-

    nada (43).

    A leitura de Tnnies enfatiza a impor-

    tncia dos conceitos marxistas para o en-

    tendimento da realidade capitalista e pro-

    cura aplic-los para os desdobramentos

    observveis na vida social, lamentando que

    Marx, preso pela sndrome do patamar da

    histria, no o tenha feito, pois, ao dissecar

    o capitalismo, no percebera, entretanto,

    que se tratava de um desenvolvimento

    inconcluso no seu tempo, no o havendo

    descrito, mesmo fornecendo os aspectos

    decisivos para a sua compreenso (44).

    Evidentemente, Tnnies trabalha os con-

    ceitos marxistas atravs de uma tica par-

    ticular, vinculando-os s prprias noes,

    de tal sorte a centrar seus comentrios nos

    efeitos individualizadores (e massificantes)

    do processo de produo capitalista que

    reduzem ou impossibilitam a ao cultural

    (e moral) dos agentes produtivos, bem como

    buscar na sociedade descrita elementos que

    permitam a persistncia ou o desenvolvi-

    mento da vida comunitria.

    Em princpio, Tnnies acompanha Marx

    na descrio dos efeitos da revoluo in-

    dustrial constituda sob o capitalismo, des-

    crevendo as mazelas do colonialismo, da

    concentrao demogrfica e da pobreza,

    conseqncias da lei geral da acumulao.

    Abordando a luta entre a burguesia e o pro-

    letariado, comenta:

    Essa guerra civil vem se desenvolvendo e

    multiplicando, se a concepo correta,

    ininterruptamente na Inglaterra at 1914 e

    especialmente tambm na Alemanha. E,

    entretanto, se voltarmos nosso olhar para

    esse perodo agora enxergamos que foi um

    tempo pacfico e feliz, que no foi inter-

    rompido para a Alemanha a no ser por

    trs guerras curtas e relativamente insig-

    nificantes, fundamentais para a configu-

    rao nacional do pas [] Se Marx pre-

    disse na introduo ao quarto tomo que o

    processo de transio move-se no conti-

    nente de forma mais ou menos brutal,

    dependendo do grau de desenvolvimento

    da classe trabalhadora, assim o processo

    assumiu em nosso tempo as formas mais

    cruis e horrveis, no somente na Rssia

    e seus vizinhos. Que tenham culpa no pro-

    cesso os obstculos impostos ao desen-

    volvimento das camadas inferiores pode

    ser presumido. Mas isso tambm no sig-

    nifica que a formao intelectual proteja

    contra devaneios e sirva como substituto

    para a razo poltica natural.

    Nesse trecho, como em vrios outros,

    Tnnies (recm-sado da Primeira Guerra

    Mundial, que lhe causou enorme impacto)

    parece especular sobre o desenvolvimento

    social e poltico de modo sombrio, prog-

    nosticando catstrofes das quais a forma-

    o intelectual no protegeria. O apelo

    razo poltica natural apareceria melhor

    definido em texto que publicaria um ano

    40 MF, p. 54.

    41 MLL, p. 78.

    42 Idem, ibidem, p. 79.

    43 Idem, ibidem, pp. 78-9.

    44 Idem, ibidem, p. 104.

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 195

    depois (45), em que a lgica do capitalismo

    descrita como racionalidade instrumen-

    tal opondo-se a racionalidade conscien-

    te que aqui denominara razo poltica

    natural.

    Buscando caracterizar essa racionali-

    dade instrumental, insiste em que a lgica

    do processo capitalista de produo base-

    ada no uso da maquinaria da qual o traba-

    lhador seria concebido como extenso,

    configurando de forma tecnicamente pal-

    pvel a essncia geral da produo capita-

    lista, cujas condies de trabalho acabam

    por utilizar o trabalhador com uma disci-

    plina de quartel, uma diviso militar dos

    trabalhadores dentro da fbrica, o que

    oprime os trabalhadores, cria uma popu-

    lao trabalhadora excedente, confunde e

    convulsiona o dia-a-dia trabalhista opondo

    todos os obstculos ao seu desenvolvimen-

    to natural e moral (46). Em suma, o meio

    de trabalho tornou-se concorrente do tra-

    balhador como tal, e o destruiu (47).

    O proletrio reage a tal situao, pois

    em todas as fases do desenvolvimento o

    trabalho se defendeu contra o capital, mes-

    mo que lutando contra o maquinrio, forma

    de existncia material do capital (48), mas

    no apenas o trabalhador direto reagindo

    contra a alienao pelo trabalho, mas todos

    os que, compreendendo o processo, estejam

    imbudos de senso moral e entre os quais se

    poderia incluir os prprios Marx e Engels,

    visando conseguir a exploso da carapaa

    capitalista, pela qual o desenvolvimento tc-

    nico do trabalho comprimido (49).

    A posio de Tnnies descaracteriza o

    conceito marxista da classe retomando a

    dualidade bsica dos valores comunitrios

    e societrios, preservando contudo o papel

    dos trabalhadores como agentes culturais e

    polticos privilegiados. desse ngulo que

    aborda a questo da mais-valia, que lhe

    permitiria destinar-se ao mago da crtica,

    quando retornaria teoria do valor.

    O capital, escreve, essencialmen-

    te um comando sobre o trabalho no-pago,

    toda mais-valia substancialmente mat-

    ria de tempo de trabalho no-pago. O sal-

    rio no o preo do trabalho, mas sim da

    fora de trabalho (50).

    A diferena entre o valor e o preo da

    fora de trabalho, no que consiste a

    mais-valia, calculada em relao ao capital

    total, define o lucro. Todavia, da teoria

    parece transparecer porque a mais-valia

    nasce exclusivamente do capital varivel,

    ou seja, do salrio depositado no capital

    que a mais-valia deveria ser relativamente

    maior quanto maior fosse a parte varivel

    do capital em relao ao capital constante,

    e vice-versa. Mas os dados empricos mos-

    tram que o lucro desejado no depende

    dessa relao, que ele uma frao deter-

    minada do capital total pr-investido, cujo

    volume depende de outros momentos que

    o que Marx denomina de forma imprecisa

    de igualdade mediana (51).

    O trabalho, como acentua Marx, a

    substncia e a medida imanente dos valo-

    res, mas ele prprio no tem nenhum va-

    lor (52), ou, de forma mais taxativa,

    Ele [Proudhon] confunde o valor das

    mercadorias medido pela quantidade de

    trabalho nelas fixado com o valor das mer-

    cadorias medido pelo valor do trabalho.

    Se estas duas maneiras de medir o valor se

    reduzissem a uma s, poder-se-ia dizer in-

    diferentemente: o valor relativo de uma

    mercadoria qualquer medido pela quan-

    tidade de trabalho nela fixado; ou mede-se

    pela quantidade de trabalho que pode com-

    prar [] Mas as coisas no so assim. O

    valor do trabalho, como o valor de qual-

    quer outra coisa, no serve para medir o

    valor (53).

    Se o trabalho, em si, no tem valor, racio-

    cina Tnnies, se nem a fora de trabalho

    tem algum valor [] ela no produzida,

    no mercadoria, mas tratada como outras

    coisas cambiveis entre si, como se ela fosse

    uma mercadoria e tivesse valor (54).

    Evidentemente, sob o capitalismo, a

    fora de trabalho constitui mercadoria, mas

    trat-la como se ela universalmente o fosse

    poderia implicar uma sria limitao ana-

    ltica. A questo remonta novamente s Leis

    do Valor. Sendo correto, segundo Ricardo,

    que o valor de toda mercadoria determi-

    nado nica e exclusivamente pela quanti-

    45 Ref. a Crtica da Opinio P-blica, editada em 1922.

    46 MLL, op. cit., p. 86.

    47 Idem, ibidem, p. 87.

    48 Idem, ibidem, p. 86.

    49 Idem, ibidem, p. 88.

    50 Idem, ibidem, p. 91.

    51 Idem, ibidem, p. 99.

    52 K. Marx, O Capital, Livro I, 3a

    ed., Rio de Janeiro, Civiliza-o Brasileira, 1975, p. 619.

    53 MF, p. 58.

    54 MLL, p. 137.

  • 196 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    dade de trabalho necessrio para produzi-

    la e tendo o trabalho um carter ambguo

    e duplo, que lhe torna imanente aos

    valores sem que possua nenhum valor, a

    mercadoria, isto , o valor-de-troca, co-

    mea a se insinuar como sendo o prprio

    processo de valorizao do trabalho.

    Ao enfrentar o problema, Marx o reme-

    te em princpio para o valor-de-uso, tam-

    bm desprovido em si mesmo de valor:

    uma coisa pode ser valor-de-uso, sem ser

    valor. o que sucede quando sua utilidade

    para o ser humano no decorre do trabalho,

    exemplo: o ar, a terra virgem, seus pastos

    naturais, e a madeira que cresce espont-

    nea na selva, etc. (55), embora continente

    necessrio do valor. Valor, excetuan-

    do-se sua representao, simblica, s exis-

    te num valor-de-uso, numa coisa (56).

    Valor corporifica-se em valor-de-uso, e

    valor-de-uso condio para se criar va-

    lor (57).

    O valor-de-uso, ou simplesmente a

    utilidade a utilidade de uma coisa faz

    dela um valor-de-uso (58) , passa, en-

    to, a servir para definir e caracterizar o

    trabalho como atividade distinta de outras

    atividades humanas: Nenhuma coisa pode

    ser valor se no objeto til. Se no til,

    tampouco o ser o trabalho nela contido,

    o qual no conta como trabalho, e, por isso,

    no cria nenhum valor [] Chamamos

    simplesmente de trabalho til aquele cuja

    utilidade se patenteia no valor-de-uso do

    seu produto ou cujo produto um valor-

    de-uso. Sob este ponto de vista ser con-

    siderado sempre associado a seu efeito

    til (59).

    Mas, para que o valor-de-uso ou utili-

    dade no se constitusse apenas em uma

    categoria subjetiva (como notou Sombart,

    que Tnnies cita), insuficiente para fun-

    damentar um mercado massivo, e portan-

    to respondendo a uma necessidade do pr-

    prio processo de produo capitalista, se-

    ria preciso objetiv-lo, o que s poderia

    ser feito atravs de sua utilidade social,

    consubstanciada no valor-de-troca, e no

    uso efetivo do produto, isto , seu consu-

    mo. Com efeito, valor-de-uso condio

    necessria do valor-de-troca e por conse-

    guinte do valor (60). E o valor-de-uso

    s se realiza com a utilizao ou o consu-

    mo (61). A mercadoria, ela prpria, pos-

    sui um valor-de-troca, expressa um valor-

    de-uso e contm o valor-quantidade-de-

    trabalho: para criar mercadoria, mister

    no s produzir valor-de-uso, mas produ-

    zi-lo para outros, dar origem a valor-de-

    uso social (62). Ou: a mercadoria pos-

    sui valor-de-uso, isto , satisfaz uma ne-

    cessidade social qualquer. Quando trata-

    mos das mercadorias isoladas, podemos

    supor existente a necessidade das merca-

    dorias consideradas (63).

    At aqui define-se uma sociedade pro-

    dutora de mercadorias, onde o valor a

    forma objetiva do trabalho social

    despendido para produzir uma mercado-

    ria. E como medir a magnitude do valor de

    uma mercadoria? Pela magnitude do traba-

    lho que ela contm (64). Nessa sociedade

    mercantil, o valor a mercadoria, servindo

    a quantidade de trabalho (ele prprio sem

    nenhum valor) como instrumento social de

    comparao entre valores de diferentes

    mercadorias:

    S com a troca, adquirem os produtos do

    trabalho, como valores, uma realidade so-

    cialmente homognea, distinta de sua

    heterogeneidade de objetivos teis, per-

    ceptvel aos sentidos. Esta ciso do pro-

    duto do trabalho em coisa til e em valor

    s atua na prtica, depois de ter a troca

    atingido tal expanso e importncia que

    se produzem as coisas teis para serem

    permutadas, considerando-se o valor das

    coisas j por ocasio de serem produzidas

    [] O valor s se realiza atravs da troca,

    isto , por meio de um processo social []

    tm elas [as mercadorias] de evidenciar

    que so valores, pois o trabalho nelas

    despendido s conta se foi empregado em

    forma til aos outros, que seu produto

    satisfaz necessidades alheias (65).

    O valor do trabalho portanto uma ca-

    tegoria eminentemente social, introduzida

    de forma a objetivar o valor e fundamentar

    um comrcio em larga escala: As merca-

    dorias s encarnam valor na medida em

    55 O Capital, Livro I, p. 47.

    56 Idem, ibidem, p. 228.

    57 Idem, ibidem, p. 728.

    58 Idem, ibidem, p. 42.

    59 Idem, ibidem, pp. 48-9. Verainda Livro I, p. 218 e Livro III,p. 947.

    60 Idem, Livro I, p. 728.

    61 Idem, ibidem, pp. 42 e 93.

    62 Idem, ibidem, p. 48.

    63 Idem, Livro III, p. 205.

    64 Idem, Livro I, p. 617.

    65 Idem, ibidem, pp. 82, 93 e 96.

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 197

    que so expresses de uma mesma subs-

    tncia social, o trabalho humano; seu valor

    , portanto, uma realidade apenas social,

    s podendo manifestar-se, evidentemente,

    na relao social que uma mercadoria se

    troca por outra (66).

    Descrita a construo do valor na soci-

    edade capitalista, cuja historicidade in-

    discutvel, Tnnies poderia subscrever a

    concluso de Marx de que em todos os

    estgios sociais o produto do trabalho

    valor-de-uso; mas s em perodo determi-

    nado do desenvolvimento histrico, em que

    se representa o trabalho despendido na pro-

    duo de uma coisa til como propriedade

    objetiva, inerente a essa coisa, isto , como

    seu valor, que transforma o produto do

    trabalho em mercadoria (67).

    A determinao da historicidade da Lei

    do Valor fora o salto dado por Marx sobre

    a formulao de Ricardo: [] a Lei do

    Valor para seu pleno desenvolvimento

    pressupe a sociedade da grande produ-

    o industrial e da livre concorrncia, isto

    , a sociedade burguesa moderna. De res-

    to, considera Ricardo a forma burguesa

    do trabalho como a eterna forma natural

    do trabalho social. O pescador e o caador

    primitivos, a troca de peixe e caa na pro-

    poro do tempo de trabalho objetivando

    nestes valores de troca [] (68). E, na

    opinio de Tnnies, o grande avano te-

    rico sobre as doutrinas clssicas, pois os

    representantes daquela doutrina contem-

    plam a separao entre capital e trabalho

    (e tambm a separao da propriedade de

    ambos) como eterna e necessria, ou, como

    em Adam Smith, um dado da cultura []

    A crtica constri o conceito do modo de

    produo capitalista, e t-la formulado e

    descrito em seus traos caractersticos

    constitui, na verdade, o grande mrito de

    Karl Marx (69).

    Porm, e nesse ponto que Tnnies

    distingue-se definitivamente de Marx, as

    categorias histricas to cuidadosamente

    elaboradas que caracterizariam valores

    sociais do capitalismo, ao serem novamen-

    te aplicadas ao movimento das foras soci-

    ais, naquilo que Tnnies denomina como

    o realismo sociopoltico de Marx, apare-

    cem reificadas, naturalizadas, abstradas do

    contexto que lhes legara o valor. A mais-

    valia e as leis do valor deixam de ser valo-

    res objetivados socialmente para aparece-

    rem como valores objetivos.

    A teoria assume que todo trabalho

    exprime o valor de uso da fora de traba-

    lho comprada, mas mesmo admitindo

    que tal se deu atravs de um complexo

    processo social de valorizao que cul-

    minou com a mercadoria e seu consumo,

    ignora que o comprador, ou seja mesmo

    o capitalista ou empresrio, tambm con-

    tribui com trabalho criador de valor para

    a mercadoria como tal, o que torna invi-

    vel compreender o que seja efetivamen-

    te fundamental em um processo de pro-

    duo cooperativa (70).

    Em outros termos, aps demonstrar que

    a separao entre capital e trabalho (e a

    propriedade de ambos) no era parte de uma

    economia natural, Marx assumiria tal pers-

    pectiva, tomando como pressuposto que

    capital e trabalho esto separados entre si,

    que o capital aparea fundamental e neces-

    sariamente como comprador da fora de

    trabalho, e nunca como intrinsecamente

    unido, por sua origem, com qualquer tipo

    de fora de trabalho (71). Tomada generi-

    camente, essa abstrao s tem validade

    conceitual (72).

    Tnnies acentua que a relao mecnica

    entre o valor do tempo de trabalho incorpo-

    rado mercadoria e o valor da mercadoria

    implica considerar apenas a mais-valia ope-

    rria, impedindo o conceito de se aplicar a

    toda outra atividade, das quais cita as de

    vigilncia, liderana e coordenao da pro-

    duo, como produtoras de mais-valia. Lem-

    bra que, em Marx, como pessoas indepen-

    dentes os trabalhadores so solitrios [] A

    sua cooperao comea somente no proces-

    so de trabalho, mas no processo de trabalho

    j esto desprovidos de si mesmos, torna-

    ram-se escravos do capital. Como equipe,

    como membros de um organismo produti-

    vo, eles no so mais do que uma forma de

    existncia do capital. A fora produtiva do

    trabalhador societrio , portanto, a fora do

    capital, e acrescenta que as concepes

    esto corretas, mas delas Marx parece no

    66 Idem, ibidem, p. 55.

    67 Idem, ibidem, p. 70.

    68 K. Marx, Crtica EconomiaPoltica, in Marx, col. Gran-des Cientistas Sociais Eco-nomia, dirigida por FlorestanFernandes e Paul Singer(orgs.), So Paulo, tica, 1982,p. 64.

    69 MLL, p. 103.

    70 Idem, ibidem, p. 127.

    71 Idem, ibidem, p. 128.

    72 Idem, ibidem.

  • 198 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8

    haver tirado nenhuma concluso (73).

    Trata-se de que,

    mesmo que a expropriao do povo ou

    seja, a separao do povo de seus meios de

    produo fundamentais seja considerada

    por Marx a base do modo capitalista de

    produo [] por mais que Marx situe o

    modo de produo capitalista como um

    fenmeno histrico, no aparece entretan-

    to em sua conceituao bsica nenhum ras-

    tro dessa perspectiva de desenvolvimento

    histrico ou da dialtica na qual se deveria

    expressar. Ele no relaciona a mais-valia

    como algo universal para o capital; mas ela

    aparece historicamente antes do modo de

    produo capitalista, com outros proprie-

    trios dos meios de produo divorciados

    do trabalho, entre os quais os senhores de

    escravos e da vassalagem (74).

    Para Tnnies, a separao entre capital

    e trabalho engendra a produo de mais-

    valia, seja ou no a sociedade capitalista,

    ou seja, sem uma relao direta ao valor da

    mercadoria. O problema que Marx pri-

    meiramente concebeu a origem do valor

    como exclusivamente derivada do traba-

    lho em parte pago, em parte no-pago

    realizado pelos trabalhadores desprovidos

    de propriedade, portanto, de capital; alm

    disso, concebe a mercadoria produzida

    como resultante da incorporao de valor

    novo e de fraes do valor antigo de

    matrias-primas e meios de produo

    portanto que a esses novos pedaos de va-

    lor antigo una-se o valor novo somente de

    forma aparente e mecnica, como um sim-

    ples exemplo de adio (75).

    Com isso,

    para Marx inconcebvel que o trabalho

    vivo aplicado a um material e multiplicado

    em seu efeito atravs de ferramentas e das

    mquinas aumente os valores desse mate-

    rial, desses meios de produo como tais,

    de forma que eles se fortaleam entre si e se

    multipliquem entre si homogeneamente em

    vez de constiturem uma simples soma.

    impensvel para Marx, mas no impensvel

    por si s; , ao contrrio, bem possvel e

    constatado via experincia prtica; da mes-

    ma forma a independncia da taxa de lucro

    em relao parte proporcional do capital

    investido na fora de trabalho algo que se

    entende por si s. A independncia, toda-

    via, condicionada no geral tambm pelo

    valor dos instrumentos de trabalho utiliza-

    dos que o trabalho multiplica [] (76).

    No , a esta altura, um argumento novo,

    e Tnnies o expe para explicitar o desen-

    volvimento da lgica do capitalismo onde

    a mais-valia submergiria entre os custos

    de produo e a taxa mdia de lucro

    dependente do grau de domnio do merca-

    do. Importa-lhe, na verdade, descarac-

    terizar a mais-valia como contida no valor

    da mercadoria e pela ao direta do agente

    de produo (o operrio), mas descrev-la

    como um processo social amplo e no ape-

    nas tpico do capitalismo industrial. A l-

    gica do valor, a partir da incorporao do

    tempo de trabalho mercadoria, implicaria

    em que a criao do valor , em ltima ins-

    tncia, a criao da mercadoria, cuja pro-

    duo e consumo representariam o mon-

    tante criado dos valores. Por conseguinte,

    no poderia ser objeto do capitalismo o

    atendimento das necessidades humanas,

    mas a sua multiplicao que viria a possi-

    bilitar a multiplicao das mercadorias e

    em conseqncia do valor. Ou seja, o capi-

    talismo deveria desembocar em uma soci-

    edade de consumo.

    Na questo da mais-valia, Tnnies ima-

    gina estar desenvolvendo um conceito

    marxista, limitado em O Capital, e pres-

    tando-se a interpretaes equvocas, como

    o prprio Marx havia assinalado (77). As

    observaes visavam ultrapassar a lgica

    do capitalismo industrial e retomar as pr-

    prias idias que deslocavam a questo para

    a tica da comunidade e sociedade: O tra-

    balho quer equivalentes (o igual-valor)

    atravs da troca simples; o comrcio quer o

    sobre-valor atravs da dupla troca e o

    fato de que o comrcio se submeta produ-

    o (expresso cara Marx) significa

    to-somente que o processo de produo se

    torna uma pea constante do processo de

    circulao (78). Em conseqncia,

    73 Idem, ibidem, p. 132.

    74 Idem, ibidem, p.129.

    75 Idem, ibidem, p. 131.

    76 Idem, ibidem.

    77 Na polmica com Lassale,Marx considera a mais-valiasocial, necessariamente noremunerada ao produtor di-reto, e assinala a impossibili-dade do uso prtico do con-ceito como programa revo-lucionrio (ver a Crtica aoPrograma de Gotha, in K.Marx e F. Engels, Textos, vo-lume 1, So Paulo, Ed. Soci-ais , 1977). A propsito,Tnnies leu e fez anotaes,sem manifestar discordncias, margem do programa mar-xista de Erfurter, formuladopor Kautsky (1890).

    78 MLL, p. 135.

  • R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 199

    a essncia do capitalismo a essncia do

    comrcio, que mais desenvolvido e forte

    como comrcio ampliado. Por mais que a

    atividade produtiva possa estar e esteja

    realmente ligada ao comrcio, existe no

    s uma diferena, mas uma verdadeira

    oposio entre o trabalho e o comrcio.

    Ambas so funes da vida social, mas o

    trabalho (se eu posso inserir aqui meus

    conceitos) determinado por Gemeinschaft

    e wesenwille, e o comrcio por Gesellschaft

    e krwille. O trabalho quer um resultado

    que o valide: ou imediatamente com o fru-

    to, ou mediatamente com a troca; o comr-

    cio quer atingir vantagens somente atravs

    da simples troca repetitiva, portanto colher

    frutos do trabalho sem ter realizado o tra-

    balho de fato (79).

    Tnnies retoma os valores (no caso

    valor-trabalho e valor-comrcio) como fun-

    es dialticas contraditrias mediando as

    vontades e a coletividade, em que a expan-

    so do comrcio e da conseqente alteridade

    fundamenta a sociedade contra os valores-

    trabalho, em si cooperativos e comunit-

    rios. O valor objetivado na mercadoria, em-

    bora derivado do trabalho, implica a supe-

    rior valorizao do comrcio do qual a

    mercadoria parte; e dota de racionalidade

    o ato objetivo da troca, sem a qual seria

    inexplicvel. A satisfao das necessida-

    des, a verdadeira utilidade, que servira para

    definir o trabalho, perde-se na medida em

    que seu substrato, uma vez alienado, per-

    deu-se tambm.

    O valor sempre uma determinao

    social. E a lei capitalista do valor em seu

    desenvolvimento baseia-se no trabalho para

    racionalizar-se e em seguida alien-lo. Ter

    percebido a historicidade do fenmeno e

    desvendado seus mecanismos constituiria

    o grande mrito de Marx, inegavelmente o

    maior terico do capitalismo e dono de

    enorme fibra moral, que entretanto, preso

    em seu tempo, no poderia transcend-lo.

    E Tnnies poderia concluir citando o

    prprio e velho Marx:

    Do que se trata aqui no de uma soci-

    edade comunista que se desenvolveu so-

    bre sua prpria base, mas de uma que

    acabe de sair precisamente da sociedade

    capitalista e que, portanto, apresente ain-

    da em todos os seus aspectos, no econ-

    mico, no moral e intelectual, o selo da

    velha sociedade de cujas entranhas pro-

    cede [] No seio de uma sociedade

    coletivista, baseada na propriedade co-

    mum dos meios de produo, os produto-

    res no trocam seus produtos; o trabalho

    invertido nos produtos no se apresenta

    aqui, tampouco, como valor destes pro-

    dutos, como uma qualidade material, por

    elas possuda, pois aqui, em oposio ao

    que sucede na sociedade capitalista, os

    trabalhos individuais j no constituem

    parte integrante do trabalho comum atra-

    vs de um salrio, mas diretamente (80).

    79 Idem, ibidem.

    80 Crtica ao Programa deGotha, op. cit., p. 231.