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184 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
T N N I E SO objetivo destas pginas reto-
mar um texto esquecido, Marx,
Leben und Lehre (1) (Vida e Obra
de Marx), publicado por Ferdinand
Tnnies em 1921, do qual j apre-
sentei uma pequena resenha (2), e
aqui expor e eventualmente desen-
volver as linhas gerais de seus ar-
gumentos, em busca de proximida-
des e diferenas entre os dois auto-
res. O texto foi redigido quando o
autor, aos 65 anos, recm-sado da
profunda depresso que a guerra
mundial lhe provocara, encontra-
va-se no apogeu da popularidade
intelectual e representava um acer-
to de contas com Marx, de quem se
considerava devedor.
sabido que Tnnies era conside-
rado pela ortodoxia marxista como
anticomunista e romntico por se
Utopia, valor e contradio
ORLANDODE MIRANDA professordo Departamentode Sociologia daFFLCH-USP.
O R
L A
N D
O D
E
M I R
A N
D A
Karl Marx com
as filhas (Jenny,
Laura e Eleonor)
e Engels
R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8 185
E M A R Xopor revoluo bolchevique (que
no considerava uma revoluo
proletria, mas apenas uma revolu-
o nacionalista russa) e descrer das
transformaes sociais atravs de
movimentos polticos violentos e
radicais (por outro lado, os conser-
vadores o descreviam como
social-democrata perigoso por
seu anticapitalismo e a defesa assu-
mida dos trabalhadores; e os libe-
rais viam nele um pessimista re-
trgrado. Na opinio de Tnnies,
essa condenao quase unnime dos
polticos era apenas mais uma das
anedotas que percorriam sua vida).
De fato, no ter conhecido pessoal-
mente Marx era uma das frustra-
es expressas de Tnnies (3). E
nas suas palavras, a relao entre
ambos no continha nenhuma am-
1 Marx, Leben und Werk,Jena, K. Ntzel, 1921.
2 Vida e Obra de FerdinandTnnies, So Paulo, FFLCH-USP, 1995, pp. 110-6.
3 De fato, entre 1878 e 1880,quando Tnnies pesquisavaa vida de Hobbes no MuseuBritnico, avistou vrias ve-zes Marx trabalhando em me-sas prximas. Todavia, o jo-vem Tnnies viajava financia-do por um tio que lhe exigi-ra, como condio, que ja-mais procurasse aquele ho-mem perigoso, e por isso,absteve-se do contato. Maistarde, com outra fonte derecurso, voltou a Londres(1884), mas Marx havia fale-cido e teve que se contentarcom vrias entrevistas comEngels. O episdio narradopelo prprio Tnnies (A Fi-losofia Alem Atual em Mi-nhas Memrias, in R.Schmidt (org.), Die Philosophieder Gegenwart, Leipzig, 1922)que a propsito no escon-dia sua decepo.
alguns problemas da teoria marxista
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bigidade. Desde a publicao de Comuni-
dade & Sociedade (1887) (4) declarava a
importncia de Marx, o analista que lhe te-
ria desvendado as caractersticas do capi-
talismo, permitindo-lhe fundamentar a te-
oria da sociedade. Compartilhava com
Marx as expectativas em relao ao prole-
tariado (5), a viso metodolgica do mun-
do manifestando-se plenamente de acor-
do com o princpio bsico da concepo
materialista da histria (6) e elogiava sua
postura analtica, pois, seguindo o modo
dos astrnomos e a ao dos verdadeiros
pensadores cientficos, Marx sempre se
concentra em descobrir e constatar para os
fatos e movimentos aparentes, quais os fa-
tos e movimentos reais (7). Numa pala-
vra, considerava-o fundamental, pois, como
homem e como pensador, estaria sempre
unindo a luz sua prpria luz (8).
Essa admirao expressa, todavia, no
faz de Tnnies um apstolo. O texto de
MLL, alm do esboo biogrfico que
compe a primeira parte, contm cinco ca-
ptulos analticos, quatro deles praticamente
constituindo um fichamento de O Capital,
que procura dominar em sua complexida-
de. O ltimo captulo, reserva-o crtica,
que j no tem como referncia necessria
a obra principal de Marx. Pode-se assim,
grosso modo, distinguir uma crtica a Marx
(o quinto captulo) e uma parte principal
em que a interpretao de O Capital home-
nageia Marx preservando-o da viso esta-
belecida pelos marxistas vulgares e procu-
rando aprofundar algumas questes dali
advenientes.
Talvez se possa resumidamente, em um
jargo contemporneo, externar os funda-
mentos crticos com que Tnnies se refere
a Marx: Eric Hobsbawn descreveu o scu-
lo XIX como um longo sculo. Contu-
do, mais que isso, tem-se a impresso de
que muitos dos que nele efetivamente vi-
veram perceberam-no como um sculo
permanente. Os avanos da racionali-
dade ilustrada e sua penetrao na polti-
ca, a revoluo industrial, tcnica e cien-
tfica refletem em boa parte da produo
filosfica e acadmica como uma sensa-
o de urgncia que a levava menos a
analisar a histria do que a buscar resolv-
la. Para Marx, como para muitos dos seus
contemporneos racionalistas, o sculo
XIX coroa a histria e desemboca na reali-
zao da humanidade. Essa concepo de
patamar da histria, de sculo definitivo,
implica a ausncia de uma prospeco
mediadora e acaba por incluir na obra ele-
mentos dspares, quando no contradit-
rios, confundindo ou invalidando certas
anlises e concluses.
Tnnies concorda com Marx na prima-
zia das formas econmicas para a anlise e
diagnsticos das coletividades humanas,
bem como sobre a inutilidade de se lhe opor
devaneios idealistas. Escreveu que Marx
estava certamente com a razo quando afir-
mou que a base materialista, ou seja, a
compreenso do desenvolvimento econ-
mico, merece profundo estudo objetivo para
que se possa agir sobre a realidade. Conti-
nuava ainda correto ao ironizar a fase revo-
lucionria de Most, considerando ridculo
e reacionrio o jogo da fantasia dos pri-
meiros utopistas sobre a futura estrutura
social. Reconheceu o perigo dos devaneios
e da no-poltica que geralmente caminham
de mos dadas, de modo debilmente vaido-
so e carregado de sensualidade sentimen-
tal (9). Todavia, o econmico explica, mas
no determina seno nos termos de sua pr-
pria lgica. E a limitao de Marx seria pre-
cisamente a de, tendo percebido a lgica
imanente ao capitalismo, aplic-la modelar
e diretamente teoria da transformao so-
cial. Em outros termos, o Marx dos anos 40,
tempos de tempestade e fria (a expresso
de Tnnies), ao mesmo tempo em que
assume uma proposta e uma militncia par-
tidria, ao romper com Proudhon elabora os
princpios de uma Economia Poltica e apli-
ca diretamente uma coisa sobre a outra. Para
Tnnies, conquanto corretas ambas as ativi-
dades, no haveria entre uma e outra uma
relao simtrica e automtica de causa e
conseqncia.
As formas econmicas tm valor diag-
nstico, mas no teraputico. Explicam a
lgica de uma sociedade dada, mas no a
superam. Tnnies considerava Marx o
maior e melhor analista do capitalismo,
4 O subttulo da 1a ed. de C&S(Formas Culturais Empricasdo Socialismo e do Comunis-mo) era desde logo uma alu-so a Marx. Embora o traba-lho tivesse se originado de umapreocupao diferente (a dis-cusso sobre o direito histri-co e natural), seu desenvolvi-mento expressava a ambiode articular no plano da cultu-ra o mesmo trabalho que Marxlhe significara no campo eco-nmico nO Capital. Na 2a edi-o de C&S (1912), por moti-vos metodolgicos o subttulofoi alterado para Tratado deSociologia Pura, e em notaagregada Tnnies lamenta que poca da redao de C&S asconcluses do sistema marxis-ta ainda no fossem bem co-nhecidas (de fato, o 3o volumedO Capital sequer fora publi-cado). A propsito se poderiacitar, dentre outros, meu ParaLer Ferdinand Tnnies (So Pau-lo, Edusp, 1995), onde essa dis-cusso aparece desenvolvidaem alguns textos, e a citaode C&S encontra-se p. 271.
5 Minhas esperanas as colo-co somente na internacio-nalidade dos movimentos detrabalhadores (F. Tnnies,Introduo Sociologia,1931, e.p.).
6 MLW, op. cit., p. 141.
7 Idem, ibidem, p. 126.
8 Idem, ibidem, p. 145.
9 Idem, ibidem, p. 140.
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contido entretanto pelo prprio modo capi-
talista de pensar ou, se prefervel a expres-
so, pela racionalidade intrnseca ao pr-
prio sistema analisado. Assim, et pour cau-
se, as prospeces marxistas contaminam-
se e expressam lacunas, incompletudes e
equvocos com referncias ao materialis-
mo, histria, dialtica, teoria do valor
e formulao das utopias.
Tnnies seria acusado, e de forma irres-
ponsvel, por Lkacs (10), de se constituir
em um subjetivista-irracionalista. Em
outro contexto, e de forma mais elegante,
precisamente uma crtica anloga que
Tnnies dirige a Marx. Considera (desde
C&S) que as manifestaes materiais e
concretas pelas quais os homens isolados
ou em coletividades se expressam do-se
no plano pessoal pela interveno das von-
tades e no plano social pelos valores cons-
tituintes das formas culturais. Vontades e
valores culturais, opostos e subsistentes em
contradio dialtica (11), determinam a
dinmica humana e animam as transfor-
maes sociais. Conformam, por conse-
guinte (e contraditoriamente), o plano onde
o homem sujeito e constri sua histria
nos limites que lhe so proporcionados.
Assim, valores e vontades existem concre-
tamente, definem os limites e condiciona-
mentos de cada momento, determinando-
lhe os possveis, e devem estabelecer-se
como o fundamento mesmo de uma anlise
materialista da histria.
Ora, na medida em que se aplica uma
teoria e um diagnstico econmico a uma
proposta de transformao poltica radical,
estar-se-ia precisamente propondo a cons-
truo da histria, escamoteando o plano
onde ela se realiza. Tal anlise ou suporia
uma determinao absoluta e mecnica do
econmico sem resduo de autonomia para
aqueles que deveriam se constituir nos agen-
tes histricos (12) ou pressuporia nesses
ltimos a possibilidade de uma compreen-
so dos fatos e uma ao inteiramente racio-
nais, com o que seriam eles prprios ho-
mens do capitalismo. A primeira vertente
mecanicista e a segunda idealista.
Uma revoluo montada em tais bases
no poderia significar de nenhum modo o
fim definitivo das classes, o fim da lti-
ma forma antagnica do processo de pro-
duo social. A previso de Marx de que a
estrutura social atual representaria a pr-his-
tria da humanidade , em conseqncia,
falsa. Nesse ponto surge para Marx a viso,
a crena utpica cujo carter primordial-
mente o de uma f religiosa, e de modo al-
gum um pensamento cientfico (13).
A recuperao do materialismo hist-
rico implicaria precisamente reconhecer,
alm da estrutura econmica, o plano da
histria, dos valores e fenmenos cultu-
rais, e Tnnies prope uma correo em
um conhecido aforismo de Marx: a fra-
se: a existncia social do homem deter-
mina a sua conscincia, e no o contr-
rio deveria ser modificada para anunci-
ar que o ser determina mais forte e ime-
diatamente a conscincia do que o con-
trrio (14) pois
a vida popular fundamentalmente inde-
pendente das configuraes do plano pol-
tico e espiritual, e s necessita para sua
existncia do controle dos instintos e mo-
tivos dinmicos fundamentais que definem
a convivncia como tal: ela relativamente
independente, como a vida vegetativa do
organismo do mamfero relativamente
independente dos rgos motores e
sensores. A vida social geral , no entanto,
a vida econmica. Atravs do costume, do
direito, do poder de dominao, se
condiciona; mas estes se voltam para os
costumes dessa vida social geral, nascem
das suas necessidades. Tambm a vida es-
piritual isso (15).
Na terminologia de Tnnies, explicita-
se que a organizao econmica predomi-
nante caracteriza uma coletividade e intro-
duz por suas instituies e valores formas
de condicionamento aplicveis coletivi-
dade em geral (o modo capitalista de ser e
pensar caracterizaria uma sociedade con-
tempornea). Todavia, o povo (palavra que
define grupos culturais particulares) reage
a isso por seus prprios valores e mecanis-
mos. Tais conceitos, aplicados luta de clas-
ses, a definiriam no apenas como o confli-
10 Tratei especificamente des-se assunto, e do texto deLkacs, Assalto Razo, emmeu texto O Conceito deRacionalidade em FerdinandTnnies (PLFT, op. cit., pp.143-62).
11 Tal fenmeno no aleat-rio ou produto da subjetivi-dade humana, mas se deve Dialtica da Identidade,como procurei sintetizar emartigo com esse ttulo (PLFT,op. cit., pp. 61-72).
12 O que de imediato recorda ainfeliz passagem da SagradaFamlia em que o proletari-ado produzir a revoluomesmo que este no seja odesgnio de qualquer deles,ou ento a anedota do co-munista no bar, que dizia: sea revoluo vem mesmo,para que apress-la? Vamostomar mais uma.
13 MLL, op. cit., p. 143.
14 Idem, ibidem, p. 141.
15 Idem, ibidem.
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to pela posse ou propriedade dos meios de
produo, mas como a reao proletria ba-
seada nos valores contidos nas comunida-
des operrias contra a difuso dos valores
expressos pela sociedade capitalista (16).
Sem a compreenso de tal mediao, a
afirmao vitoriosa dos valores do capita-
lismo, ainda que em nome de uma revolu-
o proletria, longe de resolver os confli-
tos e crises, representaria a perda da auto-
nomia cultural, o colapso da cultura e a
introduo da sociedade de massas. Do
modo como Marx expe, no v o fato de
que tais contradies insolveis e incur-
veis tambm so a morte de uma cultura, da
vida do povo espiritualizada em comuni-
dades. Simultaneamente, pode alis ocor-
rer o desenvolvimento de uma cultura mais
jovem a partir da mais velha, desde que se
coloque a necessidade para tanto, cuja con-
dio fundamental no a vitria de novas
foras de produo, de novas tcnicas ou a
ditadura de uma classe, mas o erguer-se de
novos homens, de novos povos e a abertu-
ra, para estes, de novo cho (17).
A proposio de Tnnies funda-se em
que seu princpio dialtico no nem a luta
de classes, nem a explorao do homem
sobre o homem, cuja ocorrncia histrica
derivaria da contradio fundamental
imanente vida social entre a identidade
do homem consigo mesmo (identidade
pessoal ou abstrata) e com sua coletividade
(identidade coletiva ou concreta), de onde
a formao histrica e contraditria seja
das vontades (a nvel pessoal) seja das for-
maes mais ou menos comunitrias ou
societrias. A referncia entre as pessoas,
famlias, povos (grupos culturais homo-
gneos) e formaes mais amplas, encon-
tra-se mediada pelos valores, eles prprios
expresses ou representaes da contradi-
o fundamental. Dessa forma, tais valores
podem ser unitrios (congregando a pes-
soa ao grupo) ou fragmentrios (expres-
sando uma qualidade individual que a dife-
rencia e separa). A vigncia hegemnica
de tais ou quais valores numa coletividade
qualquer esclarece seu carter comunitrio
ou societrio. Assim, por exemplo, indiv-
duo, razo, liberdade, competio, Esta-
do, civilizao, so valores de expresso
societria; ao passo que companheirismo,
pensamento, responsabilidade, comunho,
povo, cultura, designam valores comunit-
rios. Dessa forma, sendo os valores expres-
ses de vontades (pessoais), tanto quanto
condicionamentos da vida coletiva, uma
transformao do carter da coletividade
(a passagem do capitalismo ao comunis-
mo, ou, na terminologia de Tnnies, da
sociedade comunidade) implicaria a pr-
via realocao dos valores na escala social
e pessoal, de onde a importncia da cultura
e do povo que a faz e reproduz para o senso
comunitrio, e da moral decorrente entre
os valores pessoais.
Por isso, recriminando Marx por t-lo
esquecido, escreve:
Em todo ser humano normal mora uma
conscincia moral, mesmo que s vezes s
pouco desenvolvida ou oculta por sob as
dobras da religio. E essa conscincia moral
uma arma que se torna mais potente na
luta contra situaes injustas, contra as cru-
eldades das civilizaes, doenas da hu-
manidade e o desejo por infra-estrutura mais
digna, pois que esses pensamentos no se
prendem de forma alguma a uma classe;
estes dependem muito mais do estado na-
tural do esprito e do carter, da influncia
de educadores e professores, do lido e do
ouvido, da compaixo e da sabedoria, en-
fim, da formao moral como um todo mais
do que da conscincia da prpria misria,
do ressentimento sobre isto e sobre a situ-
ao infeliz dos companheiros (18).
Outro aspecto onde o sculo definitivo
colocando-se como patamar da humanida-
de introduz elementos deletrios anlise
marxista diz respeito utopia, efetivao
da sociedade comunista. De fato, trata-se
de categoria com tripla funo na anlise
marxista: faz parte de um projeto poltico
em que constitui o objetivo estratgico;
resulta da luta dos contrrios e a dissol-
ve, consolidando uma teoria da histria; e
desempenha papel metodolgico como sn-
tese do processo de contradies que con-
figuram a dialtica materialista.
16 Destacando-se apenas quepela presena das vontadesintroduzindo um contedocontraditrio em ambas ascoletividades, o conflito nose esgotaria em uma luta deuma contra a outra, senotambm no conflito de cadauma consigo mesma.
17 MLL, op. cit., p. 142.
18 Idem, ibidem, p. 144.
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Os trs elementos tomados como o
mesmo implicariam fortes ambigidades e
contradies, e, nesse ponto, Tnnies que
j classificara as previses marxistas de
falsas especialmente severo, descreven-
do-a como grave erro lgico.
O mecanicismo da teoria da histria j
parece suficientemente documentado e
analisado. Toda a histria nos aparece como
uma satnica combinao dialtica entre
explorao e alienao denominada de-
senvolvimento das foras produtivas que
a etapa superior da dominao, o capita-
lismo, permite desvendar e, feita luz, re-
solver, devolvendo a humanidade ao den
de onde nunca deveria ter sado. Na ex-
presso de um crtico autorizado, com
Marx, somos colocados em presena de
uma mudana que segue um curso inelu-
tvel, mas o seu motor de tal natureza
o desenvolvimento das foras produtivas
que no somos capazes de ver como
que uma formao social pode resistir a
ele, conservar-se ao abrigo de seus efei-
tos, instalar-se, por uma durao indeter-
minada, na estagnao (19).
Tnnies, que no v como se possa in-
troduzir no materialismo histrico o proje-
to de destruir a histria (ao menos, tal como
se a conhecia) e atravs de uma construo
ideal, produto da imaginao de Marx e
Engels, rigoroso: O fato de Marx haver
vinculado suas concepes econmicas a
uma forte influncia partidria fez com que
predominassem pr-conceitos e pressupos-
tos que deveriam estar ausentes no verda-
deiro pensamento terico (20). Mas con-
centra suas atenes nos outros aspectos da
utopia.
Como projeto poltico, assinala tratar-
se de uma proposta tanto simptica quanto
contraditria: Mesmo quem no compar-
tilhe com Marx dessa crena no futuro, no
renunciar impresso simptica dessas
consideraes [] Se, porm, um desen-
volvimento humano no s desejado, mas
tambm previsto e acreditado, por que Marx
recusa participao aos trabalhadores so-
cialistas e a possibilidade de se animarem
por esse objetivo tico maior, transforma-
rem em sua a esperana e o desejo de uma
humanidade mais nobre? (21).
O argumento que Tnnies utiliza com
muita nfase, alis introduzindo as ltimas
concluses de seu texto, que o proletaria-
do, durante toda a obra de Marx, fora apre-
sentado como sujeito da histria, senhor do
seu destino. E o projeto comunista retira-
lhe precisamente essa condio, limita e
bloqueia a atividade criadora que deveria
promanar do sujeito. A utopia consagrada
passa a negar ao sujeito qualquer ao real,
seno aquela que deva conform-lo ao des-
tino pr-traado. Que sujeito seria esse em
que mesmo a conscincia somente seria
mensurvel pelo seu grau de adeso a um
projeto preexistente? Recusada humani-
dade e ao proletariado a autonomia para
decidir os prprios passos, eliminada a
perspectiva de construir e reconstruir a
cultura em suas formas concretas de estatuir
valores e organizar a sociedade, tudo con-
formado a um projeto adrede elaborado,
no restaria uma utopia humana, nem a
realizao de uma classe, mas to-somente
o autoritrio produto do imaginrio de um
s homem.
Nessa parte, resta ainda a utopia como
sntese metodolgica, a resultante dialti-
ca da luta dos contrrios. Tnnies no a
aborda diretamente. Para chegar dialti-
ca, estabelece um percurso na trajetria
filosfica de Marx, onde a separao de
Hegel significa uma volta para o pensa-
mento predominante no sculo XVIII, a que
Kant tambm permaneceu, em contedo,
fiel. Seus princpios bsicos so cientfi-
cos: constitui uma negao da concepo
de mundo mitolgico-ingnua e teolgica.
O sculo XIX o reassume, o enriquece com
a noo do vir-a-ser e do desenvolvimento
orgnico formulada nessa poca como sua
principal caracterstica (22). Marx procu-
ra desvendar uma regulamentao natural
do desenvolvimento humano (23), proce-
dendo de modo anlogo ao que fizera
Schopenhauer (24).
Quanto dialtica, fundamental pela
noo de sntese que implica reconstru-
o e renovao, tambm descrita como a
negao da negao (25), Tnnies mani-
festa certa perplexidade:
19 Claude Lefort, As Formas daHistria, So Paulo, Brasilien-se, 1979, p. 39.
20 MLL, op. cit., pp. 143-4.
21 Idem, ibidem, p. 143.
22 Idem, ibidem, p. 119.
23 Idem, ibidem, p. 120.
24 Idem, ibidem, p. 122.
25 Idem, ibidem, p. 125.
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No se poderia afirmar que uma ou outra
concepo, da negao e da sntese, sejam
exatamente incompatveis entre si, mas da
sua ambigidade e da sua diferena, Marx e
Engels no tomaram a devida conscincia,
pois se o fizessem, teriam deixado vestgios
dessas tentativas de unir os conceitos. Nun-
ca se torna realmente claro se a propriedade
privada no geral ou a propriedade privada
capitalista; se a produo simples de merca-
dorias ou somente a produo capitalista de
mercadorias so as formas alienantes em que
as relaes sociais das pessoas apresentam-
se travestidas em relaes sociais entre coi-
sas, os produtos do trabalho (26).
Talvez uma comparao entre as duas
metodologias dialticas possa ser mais
esclarecedora. Em Tnnies a dialtica de-
riva da natureza social do homem e sua
capacidade de intervir na cultura, e funda-
menta-se na contradio identitria, que se
expressa a nvel pessoal pela tenso das
vontades (krwille e wesenwille) e na cole-
tividade pelas tenses entre a comunidade
e a sociedade, concretamente sob a media-
o dos valores incidentes e relativos a cada
formao social e pessoal. Toda a histria
produto de tais tenses e no pode se es-
gotar seno com a renncia a toda caracte-
rstica de vida social tal como a conhece-
mos. As snteses expressam-se assim ape-
nas como figuras lgicas, que implicariam
a realizao absoluta de um dos vetores em
tenso. De um lado, a totalizao ou desdo-
bramento mximo do conceito de comuni-
dade configura-se na noo de humanida-
de (onde todos os homens so o mesmo);
de outro, o nada (no apenas o no-ser), o
desenvolvimento mximo do conceito de
sociedade, implica a plenitude da noo de
indivduo (como unidade inteiramente au-
tnoma). Assim, todos os nveis so
dialticos e contm as contradies. A afir-
mao e a negao podero ser tomadas
indiferentemente como pessoas e coletivi-
dades (ou vice-versa) com as contradies
presentes em ambas e se manifestando en-
tre elas (no que consiste, nunca demais
relembrar, a produo da cultura). A snte-
se maior, por se constituir apenas em ter-
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mos lgicos, resguarda tambm em si as
contradies expressas na antinomia indi-
vduo-humanidade. Ou a sntese lgica no
um vir-a-ser, e as snteses histricas (ou
a prpria histria) resumem-se em um
rearranjo das contradies pelas alteraes
dos valores hegemnicos. No parece, por-
tanto, cabvel uma noo tal como a da
negao da negao.
Em Marx, a dialtica decorre da propri-
edade e da dominao do homem pelo ho-
mem que os iluministas atribuam pr-
pria natureza da vida social. Seria, como
diz Rousseau, que desde o instante em que
o homem teve necessidade de recorrer a
um outro, desde que se apercebeu que era
til a um s armazenar provises paras dois,
a igualdade desapareceu, a propriedade se
introduziu, o trabalho tornou-se necess-
rio (27). Marx, como Tnnies, no admite
um homem natural (28), pr-social, mas
ao contrrio de Tnnies, para o qual a dia-
ltica identitria uma caracterstica da vida
social, para Marx trata-se de um seu produ-
to. Implica um estgio ou uma relao so-
cial anterior, as comunidades primitivas,
s quais, portanto, a dialtica no se aplica
e que se constituem literalmente em soci-
edades sem histria. Como a comuni-
dade que no aqui um produto de fato
da histria, mas algo de que os homens
tm conscincia como tal tem portanto
uma origem, temos portanto a condio
prvia da propriedade da terra, vale dizer,
da relao do sujeito que trabalha com as
condies naturais de seu trabalho como
algo que lhe pertence (29). Ou, em ou-
tros termos:
A frmula capital, em que o trabalho vivo
se apresenta numa relao de no-proprie-
dade relativamente matria-prima, aos
instrumentos e meios de subsistncia ne-
cessrios durante o perodo de produo,
implica, em primeira instncia, a no-pro-
priedade da terra; isto , a ausncia de um
estado em que o indivduo trabalhador con-
sidere a terra, o solo, como seu prprio e o
trabalho como seu proprietrio [] esta
situao histrica a que, em primeiro lu-
gar, negada pela relao de propriedade
26 Idem, ibidem, p. 126.
27 J.-J. Rousseau, Oeuvres Com-pletes, Livro III, p. 171; cf.Nisbet, La Tradit ionSociologique, op. cit., p. 69.
28 Em Tnnies, essa posioconstitui o cerne de sua cr-tica a Hobbes (cf. ThomasHobbes. Os Elementos da LeiNatural e Poltica, Londres,1889, 226 p. reimp. 1970, eVida e Obra de Hobbes,Stutgart, 1896).
29 K. Marx, Formaes Econmi-cas Pr-Capitalistas, Rio de Ja-neiro, Paz e Terra, 1977, p.70.
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mais completa implcita na relao do tra-
balhador com as condies de trabalho
como capital. Esta a situao histrica
nmero um, negada no novo relacionamen-
to, ou pressuposta como tendo sido dissol-
vida pela histria (30).
No h um homem natural, mas uma sorte
de comunidade natural, de onde a histria
se desenvolve a partir de uma ruptura entre
homem e natureza, e onde o homo eco-
nomicus aparece como seu prprio vilo,
com o que, inclusive, o comunismo s pode-
ria se realizar ao final da carncia, isto , no
mundo da abundncia (o que certamente
reproduz um mito da revoluo industrial).
E a dialtica configura-se como um produto
histrico que a prpria histria.
Determinada a vigncia da dialtica,
pode-se passar a sua constituio. Marx,
lui mme, declarou estar colocando de p o
que Hegel construra de cabea para baixo.
Seguindo a metfora geomtrica, pode-se
considerar que, qualquer que seja sua posi-
o no espao, uma figura permanece a
mesma, e portanto verificar se as noes do
idealismo hegeliano no se apresentam si-
mtricas s do materialismo marxista.
Desde logo no parece que todos os
nveis da dialtica hegeliana sejam verda-
deiramente dialticos. O conceito, sntese
idtica hegeliana, que corresponde ver-
dade e harmonia, certamente no e se-
quer expressa um movimento, contradit-
rio ou no. Est, a priori, posto. Em Hegel,
a essncia que se dirige ao conceito car-
regando as contradies precisamente para
solv-las. Cabe perguntar se em Marx isso
se modifica. Ao conceito, a sntese
hegeliana, corresponde a totalidade mar-
xista com a realizao da utopia. Como pode
esse nvel supremo postular-se dialtico,
se o momento real da emancipao e da
retomada de si do homem (31), verda-
deira soluo do antagonismo entre o ho-
mem e a natureza, o homem e o homem,
[] existncia e essncia, objetivao e
afirmao de si, liberdade e necessidade,
indivduo e gnero (32)? Como pode ser
dialtico o momento de superao da dia-
ltica? De modo anlogo a Hegel, trata-se
da totalizao, desprovida de movimento
pois que nada h fora dela, no tem para
onde dirigir-se (33). Claro que, como
Lkacs explicitou polemizando com Sartre,
admite-se o movimento em seu interior, mas
movimento delimitado como o trecho que
Marx esclarece em um todo harmnico, e
portanto de modo nenhum um continente de
contradio. Em Hegel, a essncia dirige-se
ao conceito carregada de contradies. Em
Marx, da tarefa incumbe-se o proletariado
(a classe operria), que se afirma e se nega
em sua relao com a totalidade.
Resta ainda um terceiro elemento, a
afirmao em Hegel o ser (o mundo ob-
jetivo), em Marx a burguesia (ou o mundo
mitificado):
Em primeiro lugar, vemos que as foras
produtivas aparecem como foras totalmen-
te independentes e separadas dos indiv-
duos, cujas foras so aquelas, existem dis-
seminados e em contraposio uns com os
outros, ao passo que essas foras so reais
e verdadeiras no intercmbio e na coeso
desses indivduos [] Por outro lado, a
estas foras produtivas confronta-se a mai-
oria dos indivduos, de quem essas foras
se desgarraram e que, portanto, despojados
de todo contedo real de vida, converte-
ram-se em indivduos abstratos, e, por isso
mesmo, s ento se vem postos em condi-
es de relacionar-se uns com os outros
como indivduos (34).
Em Hegel, o ser reverbera sobre a es-
sncia que o reflete. E essa reflexo da
essncia colocando o ser como seu outro
que implica a contradio. Ou seja, o ser
apresenta-se essncia com um movimen-
to de saltos, onde a essncia estabelece a
contradio. Poder-se-ia dizer que, num
sentido dialtico, o ser s o quando a
essncia o torna. Parece similar a posio
do proletariado diante do mundo mtico da
burguesia que sobre ele reverbera. E do
mesmo modo como a essncia coloca-se
em oposio ao ser e conduz tal contradi-
o ao conceito, o proletariado age sobre o
mundo mitificado do qual se distingue, para
completar o movimento na direo da tota-
30 Idem, ibidem, pp. 93-4.
31 K. Marx, Misria da Filosofia,So Paulo, Global Editora,1984, p. 99.
32 Idem, ibidem, p. 87.
33 A respeito de Hegel, tal argu-mento encontra-se desenvol-vido em G. R. G. Mure, A Studyof Hegel Logic , Oxford,Clarendon Press, 1966, espe-cialmente as fls. 351-4.
34 Marx e Engels , IdeologiaAlemana, Barcelona, Grijalbo,1972, p. 78.
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lidade, constituindo as duas formas da cons-
cincia de classe.
Enfim, se em Hegel s h um nvel ver-
dadeiramente dialtico a essncia (35) ,
tambm em Marx possvel que toda a
dialtica esteja contida unicamente no pro-
letariado. E as categorias provenientes da
tenso posta pela conscincia no mundo
mitificado, como a alienao ( o que
Tnnies nota na referncia ao fetiche), so
de complexa operacionalizao.
De todo modo, o que cabe estabelecer
nessa abordagem que Tnnies e Marx
divergem quanto ao preciso significado do
materialismo histrico, pois para o primei-
ro no h modo de uma abordagem direta
do real seno atravs dos conceitos-valo-
res que os representam e que constituiriam
parte do mundo concreto; como tambm
quanto concepo dialtica, para Tnnies
intrnseca vida social e abrangendo todos
os seus nveis, e para Marx constituindo ela
prpria um produto histrico, onde o pro-
letariado seu nico agente real.
At aqui, enfatizaram-se as diferenas
entre os dois autores alocados em correntes
prximas, tais como Tnnies as explicita
no 5o captulo de MLL, ou como produto
de minha prpria interpretao. Evidente-
mente, divergncias conduzem tanto a con-
cluses como a modelos analticos bastan-
te diversos, e projetam-se sobre a interpre-
tao de O Capital a que Tnnies se dedi-
cara nos quatro primeiros captulos, consi-
derando-o como a obra de Marx, j que
a obra de vida verdadeiramente somente
uma frao (36), e que deveria ser apreen-
dida deixando-se de lado os outros
posicionamentos do autor, suas crenas e
sonhos derivados por exemplo da Comuna
de Paris, que lhe constituiriam parte da
psicologia e, como se pode dizer, da psico-
logia patolgica do homem e pensador
Marx, mas no da compreenso certa e
coerente da sua obra vital (37).
Em princpio, procura estabelecer as
conexes de Marx com os economistas cls-
sicos, iniciando a anlise afirmando que
A Economia Poltica (ou Economia Nacio-
nal, termo que Marx no utiliza) uma
construo filosfica que, por sua dinmi-
ca, hoje comumente entendida como a
Economia Poltica clssica. Tratando-a
seriamente como cincia, Marx a diferen-
cia de forma precisa da economia vulgar,
sua forma banalizada. Os primeiros teri-
cos reconhecidos foram os economistas
ingleses, Adam Smith e David Ricardo,
cujos antecessores seriam os fisiocratas
franceses. Mas Marx lhes atribui outra ori-
gem, considerando como seu fundador
outro ingls: William Petty. Em sntese, a
economia nacional clssica conclui que o
bem-estar amplia-se sob a regncia da li-
berdade de comrcio interior e exterior,
sendo a interior a livre concorrncia o
fator fundamental na distribuio do pro-
duto anual. E em conseqncia, a distri-
buio entre as trs grandes classes de ren-
da ocorre a partir de sua participao na
produo (38).
Destaca a importncia do trabalho de
conservar e recuperar os economistas cls-
sicos esquecidos, que eleva categoria ci-
entfica, em perfeita consonncia com a
tradio marxista:
O socialismo moderno, qualquer que seja
a sua tendncia, na medida em que arranca
da economia poltica burguesa, subscreve,
quase sem excees, a teoria do valor de
Ricardo. Dos dois postulados estabeleci-
dos por Ricardo, em 1817, nas primeiras
pginas dos seus Principles: 1o) o valor
de toda mercadoria determinado nica e
exclusivamente pela quantidade de traba-
lho necessrio para produzi-la e 2o) o pro-
duto de todo trabalho social dividido en-
tre trs classes: os proprietrios fundirios
(renda), os capitalistas (lucro) e os oper-
rios (salrios) desses dois postulados, a
partir de 1821, na Inglaterra, extraram-se
dedues socialistas e com um vigor e de-
ciso tais que esta literatura, hoje quase
esquecida e em grande parte recuperada por
Marx, no foi superada at a publicao de
O Capital (39).
Aps descrever sumariamente os princ-
pios de Smith e Ricardo, especialmente des-
35 A anlise de Hegel baseia-senos textos de RosenMenahen, especialmente oartigo Identit, Difference etContradiction DialetiquesSelon Hegel (in Journal of theHistory of Philosophy, vol. 23,fasc. 4, 1985, pp. 515-35).
36 MLL, op. cit., p. 117.
37 Idem, ibidem.
38 Idem, ibidem, p. 77.
39 Engels, prefcio 1a edioalem de Misria da Filosofia,1885, pp. 164-5.
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se ltimo, principal ponto de apoio de Marx
a teoria dos valores de Ricardo a inter-
pretao cientfica da vida econmica atu-
al (40) , enfatiza que Marx retoma de
Ricardo o princpio bsico [] que o tempo
de trabalho socialmente gasto ou seja, o
tempo de trabalho socialmente necessrio
aquele necessrio para reproduzir a merca-
doria e lev-la ao mercado e que depende do
nvel de produtividade do trabalho consti-
tui o valor da mercadoria (41).
Da Lei do Valor, expressa desse modo,
Marx iria extrair os elementos essencial-
mente novos da obra (42) (a referncia
ao primeiro tomo de O Capital), e que con-
sistem:
1. que o trabalho guarda em si mesmo um
carter ambguo e duplo, dependendo em se
exprimir em valor de uso ou valor de troca;
2. que, para alm de todas as diferencia-
es das formas de renda, a diferenciao
da fora de trabalho contida em cada pro-
duto e produzida por ele prprio e da
mais-valia que como tal deve ser trata-
da independentemente de suas formas es-
pecficas de lucro, juro, renda da terra, etc.
aparece de forma geral da mais-valia de
maneira ainda indiferenciada e dissolvida;
3. que pela primeira vez o salrio se revela
como expresso irracional de uma relao
oculta que se desvenda precisamente nas
duas formas de salrio-tarefa e salrio-jor-
nada (43).
A leitura de Tnnies enfatiza a impor-
tncia dos conceitos marxistas para o en-
tendimento da realidade capitalista e pro-
cura aplic-los para os desdobramentos
observveis na vida social, lamentando que
Marx, preso pela sndrome do patamar da
histria, no o tenha feito, pois, ao dissecar
o capitalismo, no percebera, entretanto,
que se tratava de um desenvolvimento
inconcluso no seu tempo, no o havendo
descrito, mesmo fornecendo os aspectos
decisivos para a sua compreenso (44).
Evidentemente, Tnnies trabalha os con-
ceitos marxistas atravs de uma tica par-
ticular, vinculando-os s prprias noes,
de tal sorte a centrar seus comentrios nos
efeitos individualizadores (e massificantes)
do processo de produo capitalista que
reduzem ou impossibilitam a ao cultural
(e moral) dos agentes produtivos, bem como
buscar na sociedade descrita elementos que
permitam a persistncia ou o desenvolvi-
mento da vida comunitria.
Em princpio, Tnnies acompanha Marx
na descrio dos efeitos da revoluo in-
dustrial constituda sob o capitalismo, des-
crevendo as mazelas do colonialismo, da
concentrao demogrfica e da pobreza,
conseqncias da lei geral da acumulao.
Abordando a luta entre a burguesia e o pro-
letariado, comenta:
Essa guerra civil vem se desenvolvendo e
multiplicando, se a concepo correta,
ininterruptamente na Inglaterra at 1914 e
especialmente tambm na Alemanha. E,
entretanto, se voltarmos nosso olhar para
esse perodo agora enxergamos que foi um
tempo pacfico e feliz, que no foi inter-
rompido para a Alemanha a no ser por
trs guerras curtas e relativamente insig-
nificantes, fundamentais para a configu-
rao nacional do pas [] Se Marx pre-
disse na introduo ao quarto tomo que o
processo de transio move-se no conti-
nente de forma mais ou menos brutal,
dependendo do grau de desenvolvimento
da classe trabalhadora, assim o processo
assumiu em nosso tempo as formas mais
cruis e horrveis, no somente na Rssia
e seus vizinhos. Que tenham culpa no pro-
cesso os obstculos impostos ao desen-
volvimento das camadas inferiores pode
ser presumido. Mas isso tambm no sig-
nifica que a formao intelectual proteja
contra devaneios e sirva como substituto
para a razo poltica natural.
Nesse trecho, como em vrios outros,
Tnnies (recm-sado da Primeira Guerra
Mundial, que lhe causou enorme impacto)
parece especular sobre o desenvolvimento
social e poltico de modo sombrio, prog-
nosticando catstrofes das quais a forma-
o intelectual no protegeria. O apelo
razo poltica natural apareceria melhor
definido em texto que publicaria um ano
40 MF, p. 54.
41 MLL, p. 78.
42 Idem, ibidem, p. 79.
43 Idem, ibidem, pp. 78-9.
44 Idem, ibidem, p. 104.
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depois (45), em que a lgica do capitalismo
descrita como racionalidade instrumen-
tal opondo-se a racionalidade conscien-
te que aqui denominara razo poltica
natural.
Buscando caracterizar essa racionali-
dade instrumental, insiste em que a lgica
do processo capitalista de produo base-
ada no uso da maquinaria da qual o traba-
lhador seria concebido como extenso,
configurando de forma tecnicamente pal-
pvel a essncia geral da produo capita-
lista, cujas condies de trabalho acabam
por utilizar o trabalhador com uma disci-
plina de quartel, uma diviso militar dos
trabalhadores dentro da fbrica, o que
oprime os trabalhadores, cria uma popu-
lao trabalhadora excedente, confunde e
convulsiona o dia-a-dia trabalhista opondo
todos os obstculos ao seu desenvolvimen-
to natural e moral (46). Em suma, o meio
de trabalho tornou-se concorrente do tra-
balhador como tal, e o destruiu (47).
O proletrio reage a tal situao, pois
em todas as fases do desenvolvimento o
trabalho se defendeu contra o capital, mes-
mo que lutando contra o maquinrio, forma
de existncia material do capital (48), mas
no apenas o trabalhador direto reagindo
contra a alienao pelo trabalho, mas todos
os que, compreendendo o processo, estejam
imbudos de senso moral e entre os quais se
poderia incluir os prprios Marx e Engels,
visando conseguir a exploso da carapaa
capitalista, pela qual o desenvolvimento tc-
nico do trabalho comprimido (49).
A posio de Tnnies descaracteriza o
conceito marxista da classe retomando a
dualidade bsica dos valores comunitrios
e societrios, preservando contudo o papel
dos trabalhadores como agentes culturais e
polticos privilegiados. desse ngulo que
aborda a questo da mais-valia, que lhe
permitiria destinar-se ao mago da crtica,
quando retornaria teoria do valor.
O capital, escreve, essencialmen-
te um comando sobre o trabalho no-pago,
toda mais-valia substancialmente mat-
ria de tempo de trabalho no-pago. O sal-
rio no o preo do trabalho, mas sim da
fora de trabalho (50).
A diferena entre o valor e o preo da
fora de trabalho, no que consiste a
mais-valia, calculada em relao ao capital
total, define o lucro. Todavia, da teoria
parece transparecer porque a mais-valia
nasce exclusivamente do capital varivel,
ou seja, do salrio depositado no capital
que a mais-valia deveria ser relativamente
maior quanto maior fosse a parte varivel
do capital em relao ao capital constante,
e vice-versa. Mas os dados empricos mos-
tram que o lucro desejado no depende
dessa relao, que ele uma frao deter-
minada do capital total pr-investido, cujo
volume depende de outros momentos que
o que Marx denomina de forma imprecisa
de igualdade mediana (51).
O trabalho, como acentua Marx, a
substncia e a medida imanente dos valo-
res, mas ele prprio no tem nenhum va-
lor (52), ou, de forma mais taxativa,
Ele [Proudhon] confunde o valor das
mercadorias medido pela quantidade de
trabalho nelas fixado com o valor das mer-
cadorias medido pelo valor do trabalho.
Se estas duas maneiras de medir o valor se
reduzissem a uma s, poder-se-ia dizer in-
diferentemente: o valor relativo de uma
mercadoria qualquer medido pela quan-
tidade de trabalho nela fixado; ou mede-se
pela quantidade de trabalho que pode com-
prar [] Mas as coisas no so assim. O
valor do trabalho, como o valor de qual-
quer outra coisa, no serve para medir o
valor (53).
Se o trabalho, em si, no tem valor, racio-
cina Tnnies, se nem a fora de trabalho
tem algum valor [] ela no produzida,
no mercadoria, mas tratada como outras
coisas cambiveis entre si, como se ela fosse
uma mercadoria e tivesse valor (54).
Evidentemente, sob o capitalismo, a
fora de trabalho constitui mercadoria, mas
trat-la como se ela universalmente o fosse
poderia implicar uma sria limitao ana-
ltica. A questo remonta novamente s Leis
do Valor. Sendo correto, segundo Ricardo,
que o valor de toda mercadoria determi-
nado nica e exclusivamente pela quanti-
45 Ref. a Crtica da Opinio P-blica, editada em 1922.
46 MLL, op. cit., p. 86.
47 Idem, ibidem, p. 87.
48 Idem, ibidem, p. 86.
49 Idem, ibidem, p. 88.
50 Idem, ibidem, p. 91.
51 Idem, ibidem, p. 99.
52 K. Marx, O Capital, Livro I, 3a
ed., Rio de Janeiro, Civiliza-o Brasileira, 1975, p. 619.
53 MF, p. 58.
54 MLL, p. 137.
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dade de trabalho necessrio para produzi-
la e tendo o trabalho um carter ambguo
e duplo, que lhe torna imanente aos
valores sem que possua nenhum valor, a
mercadoria, isto , o valor-de-troca, co-
mea a se insinuar como sendo o prprio
processo de valorizao do trabalho.
Ao enfrentar o problema, Marx o reme-
te em princpio para o valor-de-uso, tam-
bm desprovido em si mesmo de valor:
uma coisa pode ser valor-de-uso, sem ser
valor. o que sucede quando sua utilidade
para o ser humano no decorre do trabalho,
exemplo: o ar, a terra virgem, seus pastos
naturais, e a madeira que cresce espont-
nea na selva, etc. (55), embora continente
necessrio do valor. Valor, excetuan-
do-se sua representao, simblica, s exis-
te num valor-de-uso, numa coisa (56).
Valor corporifica-se em valor-de-uso, e
valor-de-uso condio para se criar va-
lor (57).
O valor-de-uso, ou simplesmente a
utilidade a utilidade de uma coisa faz
dela um valor-de-uso (58) , passa, en-
to, a servir para definir e caracterizar o
trabalho como atividade distinta de outras
atividades humanas: Nenhuma coisa pode
ser valor se no objeto til. Se no til,
tampouco o ser o trabalho nela contido,
o qual no conta como trabalho, e, por isso,
no cria nenhum valor [] Chamamos
simplesmente de trabalho til aquele cuja
utilidade se patenteia no valor-de-uso do
seu produto ou cujo produto um valor-
de-uso. Sob este ponto de vista ser con-
siderado sempre associado a seu efeito
til (59).
Mas, para que o valor-de-uso ou utili-
dade no se constitusse apenas em uma
categoria subjetiva (como notou Sombart,
que Tnnies cita), insuficiente para fun-
damentar um mercado massivo, e portan-
to respondendo a uma necessidade do pr-
prio processo de produo capitalista, se-
ria preciso objetiv-lo, o que s poderia
ser feito atravs de sua utilidade social,
consubstanciada no valor-de-troca, e no
uso efetivo do produto, isto , seu consu-
mo. Com efeito, valor-de-uso condio
necessria do valor-de-troca e por conse-
guinte do valor (60). E o valor-de-uso
s se realiza com a utilizao ou o consu-
mo (61). A mercadoria, ela prpria, pos-
sui um valor-de-troca, expressa um valor-
de-uso e contm o valor-quantidade-de-
trabalho: para criar mercadoria, mister
no s produzir valor-de-uso, mas produ-
zi-lo para outros, dar origem a valor-de-
uso social (62). Ou: a mercadoria pos-
sui valor-de-uso, isto , satisfaz uma ne-
cessidade social qualquer. Quando trata-
mos das mercadorias isoladas, podemos
supor existente a necessidade das merca-
dorias consideradas (63).
At aqui define-se uma sociedade pro-
dutora de mercadorias, onde o valor a
forma objetiva do trabalho social
despendido para produzir uma mercado-
ria. E como medir a magnitude do valor de
uma mercadoria? Pela magnitude do traba-
lho que ela contm (64). Nessa sociedade
mercantil, o valor a mercadoria, servindo
a quantidade de trabalho (ele prprio sem
nenhum valor) como instrumento social de
comparao entre valores de diferentes
mercadorias:
S com a troca, adquirem os produtos do
trabalho, como valores, uma realidade so-
cialmente homognea, distinta de sua
heterogeneidade de objetivos teis, per-
ceptvel aos sentidos. Esta ciso do pro-
duto do trabalho em coisa til e em valor
s atua na prtica, depois de ter a troca
atingido tal expanso e importncia que
se produzem as coisas teis para serem
permutadas, considerando-se o valor das
coisas j por ocasio de serem produzidas
[] O valor s se realiza atravs da troca,
isto , por meio de um processo social []
tm elas [as mercadorias] de evidenciar
que so valores, pois o trabalho nelas
despendido s conta se foi empregado em
forma til aos outros, que seu produto
satisfaz necessidades alheias (65).
O valor do trabalho portanto uma ca-
tegoria eminentemente social, introduzida
de forma a objetivar o valor e fundamentar
um comrcio em larga escala: As merca-
dorias s encarnam valor na medida em
55 O Capital, Livro I, p. 47.
56 Idem, ibidem, p. 228.
57 Idem, ibidem, p. 728.
58 Idem, ibidem, p. 42.
59 Idem, ibidem, pp. 48-9. Verainda Livro I, p. 218 e Livro III,p. 947.
60 Idem, Livro I, p. 728.
61 Idem, ibidem, pp. 42 e 93.
62 Idem, ibidem, p. 48.
63 Idem, Livro III, p. 205.
64 Idem, Livro I, p. 617.
65 Idem, ibidem, pp. 82, 93 e 96.
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que so expresses de uma mesma subs-
tncia social, o trabalho humano; seu valor
, portanto, uma realidade apenas social,
s podendo manifestar-se, evidentemente,
na relao social que uma mercadoria se
troca por outra (66).
Descrita a construo do valor na soci-
edade capitalista, cuja historicidade in-
discutvel, Tnnies poderia subscrever a
concluso de Marx de que em todos os
estgios sociais o produto do trabalho
valor-de-uso; mas s em perodo determi-
nado do desenvolvimento histrico, em que
se representa o trabalho despendido na pro-
duo de uma coisa til como propriedade
objetiva, inerente a essa coisa, isto , como
seu valor, que transforma o produto do
trabalho em mercadoria (67).
A determinao da historicidade da Lei
do Valor fora o salto dado por Marx sobre
a formulao de Ricardo: [] a Lei do
Valor para seu pleno desenvolvimento
pressupe a sociedade da grande produ-
o industrial e da livre concorrncia, isto
, a sociedade burguesa moderna. De res-
to, considera Ricardo a forma burguesa
do trabalho como a eterna forma natural
do trabalho social. O pescador e o caador
primitivos, a troca de peixe e caa na pro-
poro do tempo de trabalho objetivando
nestes valores de troca [] (68). E, na
opinio de Tnnies, o grande avano te-
rico sobre as doutrinas clssicas, pois os
representantes daquela doutrina contem-
plam a separao entre capital e trabalho
(e tambm a separao da propriedade de
ambos) como eterna e necessria, ou, como
em Adam Smith, um dado da cultura []
A crtica constri o conceito do modo de
produo capitalista, e t-la formulado e
descrito em seus traos caractersticos
constitui, na verdade, o grande mrito de
Karl Marx (69).
Porm, e nesse ponto que Tnnies
distingue-se definitivamente de Marx, as
categorias histricas to cuidadosamente
elaboradas que caracterizariam valores
sociais do capitalismo, ao serem novamen-
te aplicadas ao movimento das foras soci-
ais, naquilo que Tnnies denomina como
o realismo sociopoltico de Marx, apare-
cem reificadas, naturalizadas, abstradas do
contexto que lhes legara o valor. A mais-
valia e as leis do valor deixam de ser valo-
res objetivados socialmente para aparece-
rem como valores objetivos.
A teoria assume que todo trabalho
exprime o valor de uso da fora de traba-
lho comprada, mas mesmo admitindo
que tal se deu atravs de um complexo
processo social de valorizao que cul-
minou com a mercadoria e seu consumo,
ignora que o comprador, ou seja mesmo
o capitalista ou empresrio, tambm con-
tribui com trabalho criador de valor para
a mercadoria como tal, o que torna invi-
vel compreender o que seja efetivamen-
te fundamental em um processo de pro-
duo cooperativa (70).
Em outros termos, aps demonstrar que
a separao entre capital e trabalho (e a
propriedade de ambos) no era parte de uma
economia natural, Marx assumiria tal pers-
pectiva, tomando como pressuposto que
capital e trabalho esto separados entre si,
que o capital aparea fundamental e neces-
sariamente como comprador da fora de
trabalho, e nunca como intrinsecamente
unido, por sua origem, com qualquer tipo
de fora de trabalho (71). Tomada generi-
camente, essa abstrao s tem validade
conceitual (72).
Tnnies acentua que a relao mecnica
entre o valor do tempo de trabalho incorpo-
rado mercadoria e o valor da mercadoria
implica considerar apenas a mais-valia ope-
rria, impedindo o conceito de se aplicar a
toda outra atividade, das quais cita as de
vigilncia, liderana e coordenao da pro-
duo, como produtoras de mais-valia. Lem-
bra que, em Marx, como pessoas indepen-
dentes os trabalhadores so solitrios [] A
sua cooperao comea somente no proces-
so de trabalho, mas no processo de trabalho
j esto desprovidos de si mesmos, torna-
ram-se escravos do capital. Como equipe,
como membros de um organismo produti-
vo, eles no so mais do que uma forma de
existncia do capital. A fora produtiva do
trabalhador societrio , portanto, a fora do
capital, e acrescenta que as concepes
esto corretas, mas delas Marx parece no
66 Idem, ibidem, p. 55.
67 Idem, ibidem, p. 70.
68 K. Marx, Crtica EconomiaPoltica, in Marx, col. Gran-des Cientistas Sociais Eco-nomia, dirigida por FlorestanFernandes e Paul Singer(orgs.), So Paulo, tica, 1982,p. 64.
69 MLL, p. 103.
70 Idem, ibidem, p. 127.
71 Idem, ibidem, p. 128.
72 Idem, ibidem.
198 R E V I S T A U S P , S O P A U L O ( 3 6 ) : 1 8 4 - 1 9 9 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 7 - 9 8
haver tirado nenhuma concluso (73).
Trata-se de que,
mesmo que a expropriao do povo ou
seja, a separao do povo de seus meios de
produo fundamentais seja considerada
por Marx a base do modo capitalista de
produo [] por mais que Marx situe o
modo de produo capitalista como um
fenmeno histrico, no aparece entretan-
to em sua conceituao bsica nenhum ras-
tro dessa perspectiva de desenvolvimento
histrico ou da dialtica na qual se deveria
expressar. Ele no relaciona a mais-valia
como algo universal para o capital; mas ela
aparece historicamente antes do modo de
produo capitalista, com outros proprie-
trios dos meios de produo divorciados
do trabalho, entre os quais os senhores de
escravos e da vassalagem (74).
Para Tnnies, a separao entre capital
e trabalho engendra a produo de mais-
valia, seja ou no a sociedade capitalista,
ou seja, sem uma relao direta ao valor da
mercadoria. O problema que Marx pri-
meiramente concebeu a origem do valor
como exclusivamente derivada do traba-
lho em parte pago, em parte no-pago
realizado pelos trabalhadores desprovidos
de propriedade, portanto, de capital; alm
disso, concebe a mercadoria produzida
como resultante da incorporao de valor
novo e de fraes do valor antigo de
matrias-primas e meios de produo
portanto que a esses novos pedaos de va-
lor antigo una-se o valor novo somente de
forma aparente e mecnica, como um sim-
ples exemplo de adio (75).
Com isso,
para Marx inconcebvel que o trabalho
vivo aplicado a um material e multiplicado
em seu efeito atravs de ferramentas e das
mquinas aumente os valores desse mate-
rial, desses meios de produo como tais,
de forma que eles se fortaleam entre si e se
multipliquem entre si homogeneamente em
vez de constiturem uma simples soma.
impensvel para Marx, mas no impensvel
por si s; , ao contrrio, bem possvel e
constatado via experincia prtica; da mes-
ma forma a independncia da taxa de lucro
em relao parte proporcional do capital
investido na fora de trabalho algo que se
entende por si s. A independncia, toda-
via, condicionada no geral tambm pelo
valor dos instrumentos de trabalho utiliza-
dos que o trabalho multiplica [] (76).
No , a esta altura, um argumento novo,
e Tnnies o expe para explicitar o desen-
volvimento da lgica do capitalismo onde
a mais-valia submergiria entre os custos
de produo e a taxa mdia de lucro
dependente do grau de domnio do merca-
do. Importa-lhe, na verdade, descarac-
terizar a mais-valia como contida no valor
da mercadoria e pela ao direta do agente
de produo (o operrio), mas descrev-la
como um processo social amplo e no ape-
nas tpico do capitalismo industrial. A l-
gica do valor, a partir da incorporao do
tempo de trabalho mercadoria, implicaria
em que a criao do valor , em ltima ins-
tncia, a criao da mercadoria, cuja pro-
duo e consumo representariam o mon-
tante criado dos valores. Por conseguinte,
no poderia ser objeto do capitalismo o
atendimento das necessidades humanas,
mas a sua multiplicao que viria a possi-
bilitar a multiplicao das mercadorias e
em conseqncia do valor. Ou seja, o capi-
talismo deveria desembocar em uma soci-
edade de consumo.
Na questo da mais-valia, Tnnies ima-
gina estar desenvolvendo um conceito
marxista, limitado em O Capital, e pres-
tando-se a interpretaes equvocas, como
o prprio Marx havia assinalado (77). As
observaes visavam ultrapassar a lgica
do capitalismo industrial e retomar as pr-
prias idias que deslocavam a questo para
a tica da comunidade e sociedade: O tra-
balho quer equivalentes (o igual-valor)
atravs da troca simples; o comrcio quer o
sobre-valor atravs da dupla troca e o
fato de que o comrcio se submeta produ-
o (expresso cara Marx) significa
to-somente que o processo de produo se
torna uma pea constante do processo de
circulao (78). Em conseqncia,
73 Idem, ibidem, p. 132.
74 Idem, ibidem, p.129.
75 Idem, ibidem, p. 131.
76 Idem, ibidem.
77 Na polmica com Lassale,Marx considera a mais-valiasocial, necessariamente noremunerada ao produtor di-reto, e assinala a impossibili-dade do uso prtico do con-ceito como programa revo-lucionrio (ver a Crtica aoPrograma de Gotha, in K.Marx e F. Engels, Textos, vo-lume 1, So Paulo, Ed. Soci-ais , 1977). A propsito,Tnnies leu e fez anotaes,sem manifestar discordncias, margem do programa mar-xista de Erfurter, formuladopor Kautsky (1890).
78 MLL, p. 135.
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a essncia do capitalismo a essncia do
comrcio, que mais desenvolvido e forte
como comrcio ampliado. Por mais que a
atividade produtiva possa estar e esteja
realmente ligada ao comrcio, existe no
s uma diferena, mas uma verdadeira
oposio entre o trabalho e o comrcio.
Ambas so funes da vida social, mas o
trabalho (se eu posso inserir aqui meus
conceitos) determinado por Gemeinschaft
e wesenwille, e o comrcio por Gesellschaft
e krwille. O trabalho quer um resultado
que o valide: ou imediatamente com o fru-
to, ou mediatamente com a troca; o comr-
cio quer atingir vantagens somente atravs
da simples troca repetitiva, portanto colher
frutos do trabalho sem ter realizado o tra-
balho de fato (79).
Tnnies retoma os valores (no caso
valor-trabalho e valor-comrcio) como fun-
es dialticas contraditrias mediando as
vontades e a coletividade, em que a expan-
so do comrcio e da conseqente alteridade
fundamenta a sociedade contra os valores-
trabalho, em si cooperativos e comunit-
rios. O valor objetivado na mercadoria, em-
bora derivado do trabalho, implica a supe-
rior valorizao do comrcio do qual a
mercadoria parte; e dota de racionalidade
o ato objetivo da troca, sem a qual seria
inexplicvel. A satisfao das necessida-
des, a verdadeira utilidade, que servira para
definir o trabalho, perde-se na medida em
que seu substrato, uma vez alienado, per-
deu-se tambm.
O valor sempre uma determinao
social. E a lei capitalista do valor em seu
desenvolvimento baseia-se no trabalho para
racionalizar-se e em seguida alien-lo. Ter
percebido a historicidade do fenmeno e
desvendado seus mecanismos constituiria
o grande mrito de Marx, inegavelmente o
maior terico do capitalismo e dono de
enorme fibra moral, que entretanto, preso
em seu tempo, no poderia transcend-lo.
E Tnnies poderia concluir citando o
prprio e velho Marx:
Do que se trata aqui no de uma soci-
edade comunista que se desenvolveu so-
bre sua prpria base, mas de uma que
acabe de sair precisamente da sociedade
capitalista e que, portanto, apresente ain-
da em todos os seus aspectos, no econ-
mico, no moral e intelectual, o selo da
velha sociedade de cujas entranhas pro-
cede [] No seio de uma sociedade
coletivista, baseada na propriedade co-
mum dos meios de produo, os produto-
res no trocam seus produtos; o trabalho
invertido nos produtos no se apresenta
aqui, tampouco, como valor destes pro-
dutos, como uma qualidade material, por
elas possuda, pois aqui, em oposio ao
que sucede na sociedade capitalista, os
trabalhos individuais j no constituem
parte integrante do trabalho comum atra-
vs de um salrio, mas diretamente (80).
79 Idem, ibidem.
80 Crtica ao Programa deGotha, op. cit., p. 231.