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A viagem no tempo: o satírico e o fantástico em “Pequena conversa com uma múmia” de Poe Nícolas Totti LEITE 1 Resumo A proposta deste artigo é a de analisar o conto de Edgar Allan Poe intitulado “Pequena conversa com uma múmia”, demonstrando o dialogismo entre elementos que compõe o fantástico e as considerações acerca da sátira menipeia feitas por Mikhail Bakhtin. Ao relacionar o fantástico à sátira menipeia, o escritor norte-americano tece várias críticas à sociedade da qual faz parte. Por meio da figura de uma múmia, Poe problematiza questões filosóficas, históricas e sociais, como por exemplo, a experiência do tempo e o progresso, satirizando a modernidade de seu país. Palavras-chave: Literatura fantástica; sátira menipeia; contexto histórico; Edgar Allan Poe. Abstract The purpose of this article is analyzing Edgar Allan Poe’s short story entitled “Some words with a mummy”, showing the dialogism between some aspects that compose the fantastic and the considerations about menippean satire made by Mikhail Bakhtin. By relating the fantastic to the menippean satire, the American writer criticizes the society in which he lives. Through the mummy’s image, Poe discusses philosophical, historical and social issues, for instance, the time experience and the progress, satirizing his country’s modernity. Keywords: Fantastic literature; menippean satire; historical context; Edgar Allan Poe. 1 Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras: Teoria Literária e Crítica da Cultura, pela Universidade Federal de São João del-rei, (UFSJ), CEP. 36301-160, São João del-rei, MG. Brasil. Atualmente, é professor na AFARP-UNIESP (Associação Faculdade de Ribeirão Preto). E-mail: [email protected].

The purpose of this article is analyzing fantastic and the ... · A viagem no tempo: o satírico e o fantástico em “Pequena conversa com uma múmia” de Poe Nícolas Totti LEITE1

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A viagem no tempo: o satírico e o fantástico em “Pequena conversa com uma

múmia” de Poe

Nícolas Totti LEITE1

Resumo

A proposta deste artigo é a de analisar o conto de Edgar Allan Poe intitulado “Pequena

conversa com uma múmia”, demonstrando o dialogismo entre elementos que compõe o

fantástico e as considerações acerca da sátira menipeia feitas por Mikhail Bakhtin. Ao

relacionar o fantástico à sátira menipeia, o escritor norte-americano tece várias críticas à

sociedade da qual faz parte. Por meio da figura de uma múmia, Poe problematiza

questões filosóficas, históricas e sociais, como por exemplo, a experiência do tempo e o

progresso, satirizando a modernidade de seu país.

Palavras-chave: Literatura fantástica; sátira menipeia; contexto histórico; Edgar Allan

Poe.

Abstract

The purpose of this article is analyzing Edgar Allan Poe’s short story entitled “Some

words with a mummy”, showing the dialogism between some aspects that compose the

fantastic and the considerations about menippean satire made by Mikhail Bakhtin. By

relating the fantastic to the menippean satire, the American writer criticizes the society

in which he lives. Through the mummy’s image, Poe discusses philosophical, historical

and social issues, for instance, the time experience and the progress, satirizing his

country’s modernity.

Keywords: Fantastic literature; menippean satire; historical context; Edgar Allan Poe.

1 Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras: Teoria Literária e Crítica da Cultura, pela Universidade Federal de São João del-rei, (UFSJ), CEP. 36301-160, São João del-rei, MG. Brasil. Atualmente, é professor na AFARP-UNIESP (Associação Faculdade de Ribeirão Preto). E-mail: [email protected].

Em O Fantástico (2006), Remo Ceserani distingue do crescimento dos estudos

teóricos e das diversas antologias sobre o tema, duas abordagens predominantes. Uma

reduz o campo da ação do fantástico, identificando-o como um gênero literário

historicamente limitado a algumas obras e escritores do século XIX do romantismo

europeu. A outra abordagem alarga o campo da ação do fantástico, deixando-o sem

limites históricos, abarcando uma quantidade de textos heterogêneos, como a Bíblia, as

obras de Homero, as de ficção científica, entre outros2.

No livro anteriormente citado, Ceserani propõe uma sutil mudança metodológica

ao não considerar a literatura fantástica um gênero, mas um “modo” literário, isto é, um

conjunto de procedimentos retórico-formais, comportamentos cognoscitivos e

associações temáticas que se situou em diversos gêneros e subgêneros. O fantástico,

nesse sentido, não é nem caracterizado simplesmente como um evento que transcende,

nega e/ou se opõe à “realidade” tal qual a conhecemos, nem por procedimentos formais

e temas isolados considerados exclusivos de um gênero, tal como concebe Tzvetan

Todorov em Introdução à literatura fantástica, publicado pela primeira vez em 1970.

O crítico italiano (2006), assim como muitos outros teóricos, aponta como o

surgimento dessa modalidade a transição entre o antigo regime e a modernidade. De

acordo com Ceserani, a literatura fantástica não pode se restringir aos elementos ou às

estruturas retórico-formais e a temas específicos, uma vez que um escritor pode se

apropriar de diversos procedimentos existentes na história da literatura e criar outros

com o objetivo de discutir os limites da “realidade”. Ao enfatizar, em sua análise, o

estudo de estruturas retóricas e temáticas predominantes nesta modalidade, o crítico

italiano associa o fantástico apenas às abordagens intrínsecas e imanentes da literatura,

ignorando o fato de que o fantástico também estabelece relações com o contexto

histórico.

Nesse estudo, analisamos um conto de Edgar Allan Poe à luz das considerações

feitas por Mikhail Bakhtin sobre a sátira menipeia. Em “Pequena conversa com uma

múmia” (1981)3, Poe utiliza a figura de uma múmia para desenvolver a temática da

viagem no tempo e a do “diálogo dos mortos”. A múmia é utilizada pelo escritor para

2 Nesta abordagem, o peso teórico é conferido, sobretudo, pela coletânea realizada pelos escritores Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e Adolfo Bioy Casares denominado Antologia da literatura fantástica, publicado pela primeira vez em 1977. 3 Neste artigo utilizamos a tradução feita por Oscar Mendes e Milton Amado em “Ficção Completa, Poesia & Ensaio”, 1981.

satirizar a modernidade, problematizando a experiência de tempo como progresso. Os

elementos que compõem o fantástico são articulados por Poe para deixar entrever uma

precisa relação com o contexto histórico, revelando críticas à modernidade de um país

que caminhava rumo ao industrialismo. Mesmo sendo uma modalidade que pretende

deslocar os limites da “realidade”, as obras fantásticas estão intimamente ligadas ao

contexto em que foram elaboradas. Ao desenvolver elementos fantásticos para criticar

aspectos da sociedade norte-americana, a narrativa de Poe manifesta os medos e os

receios de indivíduos que viveram em um período repleto de incertezas.

O fantástico e a sátira menipeia

As narrativas do escritor Edgar Allan Poe (1809-1849) se destacaram não só

devido ao apreço dos leitores pelo gótico, pelo macabro e pelo grotesco, mas também

pelo modo como o escritor concilia o imaginário às questões filosóficas. As obras de

Poe marcaram a consolidação de uma precisa tradição textual “na qual o modo

fantástico é usado para organizar a estrutura fundamental da representação e para

transmitir de maneira forte e original experiências inquietantes à mente do leitor.”

(2006, p. 12). Contos como “A queda da casa de Usher” (1839) e “William Wilson”

(1834), para não citar outros, são exemplos de obras fantásticas que contribuíram para

tornar Poe a figura norte-americana mais representativa do século XIX nesta tradição

literária.

Articulando de um modo específico as estruturas formais e os sistemas

temáticos, as obras de Poe revelam algumas inquietações do homem do século XIX. De

acordo com Walter Benjamin em “O Flâneur”,

Poe foi um dos maiores técnicos da literatura moderna. Pela primeira

vez, como nos observa [Paul] Galery, fez experiências [...] com a

moderna cosmogonia, [e] com a descrição de fenômenos patológicos.

Tais gêneros valiam para ele como produções exatas de um método

para o qual reivindicava validez universal. (BENJAMIN, 2000, p. 40).

No que concerne às estruturas formais, são desenvolvidas nas narrativas de Poe a

“unidade de efeito”, que consiste na relação entre a extensão do conto e a reação que a

leitura provoca no leitor. Muitos dos temas presentes nas obras de Poe podem ser

associados ao terror. Além dos textos em que os artifícios temático-composicionais são

utilizados para causarem medo ou surpresa no leitor, existe ainda uma corrente na sua

ficção composta por textos satíricos e humorísticos. Precisamente nesta linha que

melhor pode ser situado o conto intitulado “Pequena conversa com uma múmia”, escrito

em 1845. Neste conto, o fantástico é aliado às questões filosóficas não para suscitar

terror, mas comicidade, o que nos permite entrever o dialogismo entre o fantástico e a

sátira menipeia. Antes de analisarmos este conto de Poe, parece-nos central apresentar

algumas características sobre a sátira menipeia elaboradas por Mikhail Bakhtin a

propósito da assimilação singular feita por Dostoiévski deste gênero da Antiguidade

Clássica, na época do helenismo.

De acordo com Bakhtin (1981), a sátira menipeia é um dos diversos gêneros que

compõe o campo cômico-sério. Esse campo é caracterizado por sua profunda relação

com o folclore carnavalesco, cuja estrutura básica é a cosmovisão carnavalesca “que

penetra totalmente esses gêneros, determina[ndo]-lhes as particularidades fundamentais

e coloca[ndo]-lhes a imagem e a palavra numa relação especial com a realidade” (p. 92).

A sátira é um recurso recorrente em obras literárias que criticam a sociedade de que o

escritor faz parte, como ocorre, por exemplo, em As viagens de Gulliver (1735) de

Jonathan Swift.

Este gênero é caracterizado por abordar as questões da vida e da morte com

extrema universalidade e, muitas vezes, as personagens encontram-se nesse limiar. Eis o

ponto convergente mais evidente entre o conto de Poe e a sátira menipeia, pois, como

fica explícito no título do conto, o relato apresenta a figura da múmia como elemento

principal. A múmia é a própria imagem do limiar, por seu caráter ambíguo: o de não

estar nem viva e nem morta, e por ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Karen E.

Macfarlane (2010), ao analisar a imagem das múmias nas ficções imperialistas do

século XIX, ressalta que no momento que elas saem da posição de artefato ou relíquias

e entram na ordem simbólica do Ocidente, como sujeitos atuantes (apesar de

condicionalmente), elas representam um conflito entre Oriente e Ocidente, passado e

presente, entre cognoscível e incognoscível. Como demonstraremos ao longo de nossa

análise, a múmia é articulada no conto de Poe para desenvolver o conflito entre antigos

e modernos.

A característica fundamental da narrativa de Poe é a ironia, feita ora pelo

narrador, ora pela múmia. Essa característica é desenvolvida no início do relato por

meio do narrador-personagem, que, apesar de almejar fazer “uma ceia leve”, acaba

ingerindo uma quantidade duvidosa de cervejas, o que torna o relato não confiável. Ele

é um homem burguês e, como veremos posteriormente, terá suas crenças, costumes e

convicções ridicularizados pela múmia.

Depois da “refeição frugal”, o narrador deita-se na esperança de dormir até tarde

do outro dia. No entanto, seu sono é interrompido e ele faz a seguinte pergunta que

caracteriza a ideia central da narrativa: “Mas quando teve a humanidade satisfeitas as

suas esperanças?” (1981, p. 595). A pergunta revela a insatisfação do homem diante de

sua condição de sujeito burguês, prisioneiro dos costumes, dos valores e das crenças do

seu tempo e de sua sociedade. O pessimismo e a melancolia, presentes no narrador-

personagem, são características das personagens das narrativas de Poe, que carregam

consigo a própria condição de seres marginais e excêntricos.

O sono do narrador foi interrompido por um mensageiro que trazia um bilhete a

mando de seu amigo Ponnonner, dizendo que havia conseguido permissão para

examinar a múmia. O sugestivo nome da múmia, Allamistakeo (desmembrado, o nome

em inglês, revela-se “all a mistake o”, que pode ser traduzido como “tudo um erro”),

nos dá uma sugestão da importância da múmia na narrativa. O tom sério e ao mesmo

tempo zombeteiro se torna explícito na seguinte fala do narrador-personagem:

A aplicação da eletricidade a uma múmia, velha de três ou quatro mil

anos pelo menos, era uma ideia, se não bastante sensata, contudo

suficientemente original e todos a acolhemos sem detença. Com quase

um décimo de seriedade e nove décimos de troça, dispusemos uma

bateria no gabinete do doutor e para lá levamos o egípcio. (POE,

1981, p. 598)

A junção dos elementos sérios e cômicos também permite aproximar o conto à

sátira menipeia, pois, segundo Mikhail Bakhtin (1981), tais características remontam ao

folclore carnavalesco. De acordo com o teórico russo, um dos elementos fundamentais

de toda a literatura carnavalizada é o riso carnavalesco, que na literatura do século

XVIII e XIX é consideravelmente reduzido, chegando à ironia e ao humor. Nesse

sentido, podemos determinar não só a passagem anterior como uma evidência menor do

riso reduzido, como também na passagem subsequente, momento em que os homens

veem fechado o glóbulo da múmia, o qual, até então, estivera aberto, e a seguinte cena é

descrita:

Não posso dizer que fiquei alarmado diante do fenômeno porque, no

meu caso, “alarmado” não é bem o termo. É possível, porém, que, sem

as cervejas pretas, talvez me tivesse sentido um pouco nervoso.

Quanto a meus companheiros, não tentaram ocultar o terror

inequívoco que deles se apossara. O Dr. Ponnonner fazia lástima. O

Sr. Gliddon, graças a não sei que processo peculiar, tornara-se

invisível. Presumo que o Sr. Silk Buckingham não terá por certo a

coragem de negar que se arrastou de quatro pés para baixo da mesa.

(POE, 1981, p. 598)

Além do riso reduzido, presente na narrativa através da ironia e comicidade, é

possível destacar na passagem acima algumas características presentes na literatura

carnavalizada, como o que Bakhtin denomina por “pluritonalidade de estilos”, que

consiste na “fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico”. (1981, p. 93). Nessa

passagem, o sério e o cômico se fundem de tal modo que o espanto das personagens –

que na maior parte dos relatos fantásticos causaria medo aos leitores – possibilita o riso.

Desse modo, Poe articula os elementos fantásticos associando-os ao humor.

Como aponta Bakhtin, o carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e tudo

renova, e tal característica é vista na simbologia de coroação e destronamento. Esse

ritual consiste no coroamento e destronamento de um escravo como rei carnavalesco,

invertendo as ordens hierárquicas, instaurando o que Bakhtin denomina de “mundo às

avessas”. A praça pública aproxima os homens que, na vida cotidiana, estão separados

por uma intransponível barreira hierárquica. Esse ritual se manifesta no conto de Poe de

duas maneiras: ao colocar passado e presente em uma mesma realidade, Poe aproxima

homens que estão temporalmente distantes, subvertendo as ordens temporais. A

segunda leitura possível consiste no prosseguimento ao conto, quando a múmia começa

o seu discurso:

– Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou tão surpreso quanto

mortificado pela vossa conduta. Do Dr. Ponnonner nada de melhor se

poderia esperar. É um pobre tolheirão que nada sabe de nada. Tenho

pena dele e perdoo-lhe. Mas vós, Sr. Gliddon... e vós, Silk (...). Vós, a

quem sempre fui levado a olhar, como amigo fiel das múmias...

realmente esperava de vós uma conduta mais cavalheiresca! Que devo

pensar de vossa atitude tranquila vendo-me assim tão estupidamente

tratado? Que devo supor de vós, consentindo que Fulano, Sicrano e

Beltrano me arranquem dos meus caixões, tirem-me as roupas, neste

clima miseravelmente frio? (POE, 1981, p. 599)

Na sátira menipeia, os rituais de coroação-destronamento instauram o “mundo às

avessas” devido à inversão hierárquica. No conto de Poe, essa inversão é manifestada

no comportamento da múmia e dos homens. Esperava-se que a múmia, por estar morta

e ser de outro tempo, agisse de um modo bárbaro e desumano. No entanto, a múmia não

só se mostra completamente civilizada, como também exibe repulsa perante as atitudes

dos “vândalos”. Portanto, o aspecto cômico da narrativa é resultado da inversão de

papéis na medida em que os homens modernos são caracterizados como bárbaros e a

múmia como civilizada.

Diante de uma situação insólita, a conduta natural dos homens, segundo o

narrador-personagem, deveria ser, mais uma vez, sair correndo, cair em ataques

histéricos ou então desmaiarem. Mas,

[...] não posso compreender como ou por que foi que não fizemos nem

uma coisa nem outra. Mas, talvez, a verdadeira razão esteja no espírito

deste tempo que procede totalmente de acordo com a regra dos

contrários e é agora usualmente admitida como solução de todos os

paradoxos e impossibilidades. (POE, 1981, p. 599/600)

Há, em algumas narrativas de Poe, a convergência entre imaginação, filosofia e

crítica social. O escritor viveu uma época em que os Estados Unidos não só

caminhavam em direção ao industrialismo e ao progresso, como também viviam um

crescimento demográfico. Algumas narrativas do escritor manifestam as marcas da

modernidade dos Estados Unidos, o que permite aproximá-las ao contexto histórico,

uma vez que elas revelam as transições do país naquele período.

Se não bastassem todas essas características que correlacionam o conto de Poe à

sátira menipeia, o ponto alto da carnavalização na narrativa é o momento em que a

múmia sente um tremor de frio e é vestida com roupas dos homens modernos. Apesar

da disparidade de tamanho entre a múmia e o dono das roupas proporcionar uma

imagem grotesca, na visão do narrador-personagem “podia-se dizer que ele estava bem

vestido”. (1981, p. 601). A múmia se traveste, como ocorre no ritual carnavalesco, de

peculiares vestimentas, instaurando o “mundo às avessas”. Vários elementos da sátira

menipeia são articulados no conto de Poe, como o riso reduzido, o sarcasmo, entre

outros, para instaurar o “mundo às avessas”, que permite a Poe, por meio da figura da

múmia, revisar o passado e ironizar o presente.

A viagem no tempo

Em Introdução à literatura fantástica (2004), Todorov preocupou-se em

desenvolver um estudo imanente, “baseado [...] unicamente em unidades internas” (p.

166) das narrativas. Sua análise sustenta-se em três aspectos: o aspecto verbal, que

reside nas frases concretas que constituem o texto; o segundo é o sintático, isto é, as

relações entre as unidades que se referem à apreciação das personagens sobre os

acontecimentos da narrativa, e por fim, o semântico, ou seja, os temas das obras.

Todorov, no final de seu estudo, reconhece que o fantástico também apresentou

uma função social, pois se constituiu como uma ferramenta para os escritores poderem

debater certos tabus ou, pelo menos, discutir certas censuras. No entanto, acreditamos

que a relação do fantástico com o contexto não deve ser elaborada por critérios tão

específicos e rígidos, como faz Todorov ao restringir o fantástico como tendo apenas

essa função. À luz do contexto de uma obra, devem-se ampliar os modos de abordagens

do insólito para reconhecer que o fantástico pode apresentar distintas “funções sociais”.

Para compreender o modo como o fantástico se desenvolve neste conto de Poe, é

necessário analisar não só a temática e as estruturas que regem o discurso literário, mas

também as relações que esta obra apresenta com o contexto histórico. No conto, Poe

problematiza a experiência do tempo, por meio de uma múmia, que é inserida na

narrativa para questionar o presente e romper com a visão progressista do tempo. A

necessidade de analisar o fantástico a partir de suas relações com outros discursos

consiste em reconhecer que o fantástico é um modo de criticar e debater vários aspectos

da sociedade, como a política, a moralidade e, neste conto, a modernidade e o

progresso.

Um dos núcleos temáticos desenvolvidos pela literatura fantástica é a “vida dos

mortos”4. Apesar de não ser um tema novo, já que a temática está presente nas visitas ao

além-mundo que ocorre em Odisseia de Homero, na modalidade fantástica tal núcleo se

constrói com novos aspectos. Nos dizeres de Ceserani, a temática “liga-se a novas

explorações filosóficas e experimentações pseudocientíficas, com o desenvolvimento

das filosofias materialistas e sensitivas, das filosofias da vida e da força, dos

experimentos sobre o magnetismo”. (2006, p. 80). No conto, apesar de a múmia afirmar

aos modernos que ela não havia morrido, a sua imagem suscita uma inevitável relação

4 A temática também é denominada por “diálogo dos mortos”, dependendo da escolha do tradutor.

com a morte. No século XIX, tal temática ganha uma nova dimensão e complexidade,

sobretudo devido aos experimentos de Luigi Galvani, tal como é citado no conto por

Poe. O galvanismo sugeriu a possibilidade de reanimar os mortos por meio de corrente

elétrica, o que instigou a imaginação de escritores como Mary Shelley ao escrever

Frankenstein (1831).

A análise do fantástico, relacionando-o com o contexto da obra, se faz

importante no conto de Poe, sobretudo porque o autor manipula os elementos da

narrativa, aproximando o insólito à sátira menipeia com o objetivo de satirizar a

modernidade dos Estados Unidos. Neste sentido, como afirma o crítico Zabel, as obras

do escritor norte-americano vão além da imaginação, pois,

Em suas fantasias humorísticas, Poe torna-se um historiador e um

crítico social, e muito nos tem a contar sobre os males crescentes e as

perigosas possibilidades pelas quais passaram os Estados Unidos ao se

fundirem numa só nação, com todos os elementos raciais e morais

concebíveis do mundo. (ZABEL, 1949, p. 95)

As críticas de Poe são desenvolvidas por meio do tema da viagem do tempo da

múmia, que dinamiza a relação conflituosa entre o passado e o presente. As críticas aos

seus contemporâneos são abordadas por meio da discussão entre os homens e a múmia,

que prossegue na segunda parte do conto. Como fica evidente por meio do narrador-

personagem e das outras personagens, Poe ridiculariza a classe burguesa da qual faz

parte, como no momento em que o narrador afirma que as ações e o espírito de seu

tempo são motivados pela “regra dos contrários”. Desse modo, Poe critica os valores

morais e científicos de sua sociedade, sobretudo no que diz respeito aos avanços de seu

país, dos quais muitos se orgulhavam.

A querela entre o antigo e os modernos é permeada de ironia e sarcasmo. Outro

exemplo da visão escarnecedora com a qual a modernidade é abordada está no tom de

arrogância e de presunção com que a múmia critica o conhecimento e os avanços dos

homens modernos, ao afirmar: “- Ah percebo! Deplorável estado de ignorância!” (p.

602). Os homens do século XIX querem provar à múmia “a acentuada inferioridade dos

velhos egípcios em todos os ramos da ciência, quando comparados com os modernos, e

mais especialmente com os ianques”. (p. 605). Para isso, os homens recorrem à

arquitetura, aos saberes astrológicos, metafísicos e à democracia. Mas a múmia

ridiculariza e destrói a visão de superioridade dos modernos em relação aos antigos, no

que diz respeito aos avanços da ciência e da sociedade.

De acordo com o narrador, a múmia mostra aos espectadores modernos que

“Grandes Movimentos eram coisas excessivamente comuns no seu tempo”. (p. 607). Os

modernos utilizam a democracia – por julgarem ser a conquista máxima de seu tempo

em relação às civilizações antigas – com o intuito de provar que a sua sociedade não

está fadada a desaparecer como a do egípcio. Sobre a democracia, a múmia relata que

treze províncias egípcias resolveram libertar-se e criaram a “mais engenhosa

constituição que é possível conceber-se”, mas a coisa acabou “no mais odioso e

insuportável despotismo de que jamais se ouviu falar na superfície da terra” (p. 608).

Não sem ironia, o nome do tirano era Populaça. Ao apresentar a democracia como um

regime falido e fracassado em seu tempo, a múmia, aos poucos, vai destruindo a visão

de superioridade dos modernos, rompendo assim com a visão progressista da

experiência de tempo.

O conto é finalizado com uma reviravolta inesperada no debate entre o antigo e

os modernos, em que a múmia é derrotada pelo argumento das vestimentas que ela

própria, tão comodamente, havia aceitado. Assim, o satírico é levado ao extremo na

medida em que a vitória dos modernos não se deve aos méritos que eles julgavam como

marcas do progresso do seu tempo, mas às roupas. A vitória dos homens faz com que a

múmia se mortifique, transformando-se em pó diante dos olhos dos mesmos sujeitos

que ressuscitaram o antigo. Apesar do desvanecimento da múmia, a presença da ironia

torna a passagem ambígua, dificultando determinar quem ganhou o debate. Em um tom

irônico, ao eleger as roupas como fator máximo de “modernidade”, Poe demonstra

como sua sociedade está presa às superficialidades.

Além disso, ao invés da “mortificação” da múmia ocasionar uma sensação de

soberania e de vitória, o narrador é tomado por um imenso vazio, como é demonstrado

na seguinte passagem:

Ao chegar em casa, descobri que já passava das quatro horas e fui

imediatamente para a cama. São agora dez horas da manhã. Estou de

pé desde as sete, rabiscando estas notas em benefício de minha família

e da humanidade. [...]. A verdade é que estou absolutamente

convencido de que tudo vai mal. Além disso, anseio por saber quem

será o presidente em 2045. Portanto, tão logo acabe de barbear-me e

de engolir uma xícara de café, irei à casa de Ponnonner fazer-me

embalsamar por uns duzentos anos. (POE, 1981, p. 608).

Ao se convencer de que “tudo vai mal”, o narrador-personagem transforma-se

num sujeito melancólico, sentimento presente em sujeitos modernos. Desse modo, Poe

narra a história de um homem que viu todas as suas crenças se diluírem diante de seus

olhos, o que ocasionou sua fatal transformação. O pessimismo com que o progresso é

retratado, e incorporado pelo narrador, é uma forma não só de questionar os avanços do

país, mas também de ironizar o modo como as pessoas lidam com tais avanços.

Incapacitado de ver sentido em sua sociedade, o narrador-personagem vê no

embalsamento o seu destino, transformando-se, assim como a múmia, em um viajante

do tempo.

Ao escolher a múmia como o elemento central da narrativa, Poe problematiza a

relação conflituosa de tempos distintos, representando o progresso de sua sociedade

com grande pessimismo. Antoine Compagnon em Cinco Paradoxos da Modernidade

(2010) ressalta que “essa dimensão melancólica e desesperada, que ficará inseparável da

fé moderna no progresso e do reconhecimento de nossa historicidade sem fim” (p. 22) é

uma constante nas narrativas modernas, que tem como principais representantes as

obras do poeta francês Charles Baudelaire e as de Edgar Allan Poe.

Conclusão

Todas as nossas considerações anteriores a respeito de uma dimensão fantástica

que se integra às questões filosóficas, desenvolvidas com minúcia em nossa análise,

assim como a ênfase que atribuímos à comicidade ou ao humor predominante no conto,

levaram à aproximação com a sátira menipeia. Trata-se de uma aproximação que

esclarece a combinação desses traços no conto de Poe. Com esse passo, não se pretende

aqui encerrar definitivamente as questões relacionadas à interpretação de “Pequena

conversa com uma múmia”, mas estabelecer uma aproximação que se mostra inevitável.

O conto de Poe associa o fantástico ao contexto histórico ao utilizar a múmia

para satirizar a modernidade. As narrativas do escritor norte-americano apresentam

valiosas contribuições para a literatura moderna na medida em que permitem entrever

relações com o contexto em que a obra foi escrita, sobretudo no que tange à

caracterização pessimista ao associar o progresso à decadência. A necessidade de

abordar o modo como o contexto é vislumbrado na obra se deve ao fato de o fantástico

permitir a discussão de alguns aspectos históricos e sociais importantes, como a

democracia norte-americana e a própria experiência de tempo como progresso.

O fantástico, assim como a sátira menipeia, é um jogo de experiências dos

limites entre o racional e o irracional, entre a imaginação e a realidade. Outras

polaridades se unem a essas, tais quais: a vida e a morte, o trágico e o cômico, o sublime

e o vulgar, de modo que as barreiras que separam tão fixamente tais polaridades são

dissolvidas nos contos fantásticos e nas sátiras menipeias, produzindo novas

experiências. Desse modo, somos levados a uma última aproximação entre o fantástico

do conto de Poe e a sátira menipeia: o fantástico foi utilizado por Poe para, como

lembrou Benjamin, “reivindicar a validez universal”. A menipeia, ao ser associada ao

campo do cômico-sério, proclama a alegre relatividade da cosmovisão carnavalesca em

que “debilitam-se a sua seriedade retórica unilateral, a racional, a univocidade e o

dogmatismo.” (1981, p. 92). Portanto, o fantástico do conto de Poe, assim como a

menipeia, como afirmou Bakhtin, nada absolutizam, mas proclamam a relatividade de

tudo.

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