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DISCURSO DO MÉTODO René Descartes Tradução MARIA ERMANTINA GALVAo Revisão da tradução MONICA STAHEL Martins Fontes São Paulo 2003 .,' .'. ,- .:-0" -" . ,.

TEXTO 2-DeSCARTES,René. O Discurso Do Método

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DISCURSO DO MÉTODORené Descartes

TraduçãoMARIA ERMANTINA GALVAo

Revisão da traduçãoMONICA STAHEL

Martins FontesSão Paulo 2003

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indice

Prefácio.. VIICronologia , : ", .." XXXINota desta Edição .." : , ,.., , ,..,XXXIX

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Traduçlo .MAR/A ER/tIA.NTINA GALVÃO

R.vl.lo d. tnduçioMOlllra Sltlhd

Revlslo snl.neaÃmI Maria d, Olfvtlra MtMtl"BarbolD

Scltm,r Mar1;n.Produ~C1In!.nl::ll

GtrrJldoA/1i~1

Dados lnlmmdanJb de c.laIopçIo lIAPublkllçAo (ClPl(eimaM. I1n.s1ldra do Um), sr, BI1ISll)

Of;scarttl, Ren!, 1596-1650.D1K'UROdo rntrodo IRenHle.c'anel : [ll'Iduçlo MtrI. Etmanllna

Ollvlo]. - Slo PIIulo: M.rtJm Fon~I. 1996. - (Qinla:ts)

ISBN SS.336-0SSl.X

I. ~Icultl, Rem, 1596-16502. Filolofla (n100eII_ Skulo 171.Tlllllo. 11.Strle.

DISCURSO DO MÉTODO .Primeira Pane .., , , , ,"Segunda Pane , , , , , " ..,Terceira Pane .., , ,.., , , , .Quana Pane , , , " .Quinta Pane."", .." , ,' ,' .Sexta Parte .

Notas ," , ,' , .

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UVrtJrld Mariln,:Font" Editoro Lida.Rua Conulhllro Ramalho. 3301340 0J325.{J(){} S60 Paulo SI' Brosil

TtI, (11, J241J6n Fax (11) J105.6867l-moU: In/o@nrorlflrsjouII:I,('om.br Irllp:IJM'M'M'morlinIjonlt's.c-om.br

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Primeira Parte

o bom senso é a coisa mais bC111 distribuída uumundo:' pois cada um pensa estar tão bem providodele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satis-fazerem com qualquer outra coisa não cosrumamdesejar mais bom senso do .que têm. Assim, não éverossímil que todos se enganem; mas, pelo contrá-rio, isso demonstra que o poder de bem julgar e dedistinguir o verdadeiro do falso, que é propriamen-te o que se denomina bom senso ou razão, é pornarureza igual em todos os homens; e portanto qtlea diversidade de nossas opiniões não decorre deuns serem mais razoáveis que os outros, mas so-mente de que conduzimos nossos pensamentos pordiversas vias, e não consideramos as mesmas coi-sas. Pois não basta ter o espírito bom, mas o:prin-cipal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazesdos maiores vícios, assim como das maiores yirtu-des; e aquel~s que só caminham muito lentamentepodem avançar muito mais, se sempre seguirem ocaminho certo, do que. aqueles que correm e delese afastam. , I / / ,,//~~e d-o~~lIdP,

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_ Discurso do Mdtodo _

Quanto a mim, jamais presumi que meu espíritofoSse em nada mais perfeito que o do comum doshomens; muitas vezes até desejei ter o pensamentotão pronto ou a imaginação tão nítida e distinta, oua memória tão ampla ou tão. presente como algunsoutros. E não conheço outras qualidades, além des-tas, que sirvam para a perfeição do espírito; pois,quanto à razão ou senso, visto que é a única coisaque nos torna homens e nos distingue dos animais,quero crer que está inteira em cada um, nisto se-guindo a opinião comum dos filósofos, que dizemque s6 há mais e menos entre os acidentes, e nãoentre as formas ou naturezas dos indivíduos deuma mesma espécie'.Mas não recearei dizer que penso ter tido muita

sorte por me ter encontrado, desde a juventude, emcertos caminhos que me conduziram a considera-ções e máximas com as quais formei um métodoque me parece fornecer um meio de aumentar gra--.dualmente meu conhecimento e de elevá-lo pouco. a pouco ao ponto mais alto que a mediocridade demeu espírito e a curta duração de minha vida lhe. permitirão alcançar. Pois dele já colhi frutos taisque, .embora nos juízos que faço de mim mesmosempre procure inclinar-me mais para o lado dadesconfiança que para o da presunção, e emboraconsiderando com olhos de filósofo as diversasações e empreendimentos de todOi.OShomens nãohaja quase nenhum que não me pareça vlio e inú-til, não deixo de sentir liina imensa satisfação pelo\.L _ .1--,

_______ ~_PrlmetraPat1e _

progresso que penso já ter feito na procura da ver-dade, e de conceber tamanhas esperanças para ofuturo que, se entre as ocupações dos homens pu-ramente homens' há alguma que seja solidamenteboa e importante, atrevo-me a crer que éa que es-colhi. .Todavia, pode ser que me engane e talvez não

passe de um pouco de cobre e de vidro o que tomopor ouro e diamantes. Sei o quanto estamos sujei-tos a nos enganar naquilo que nos diz respeito, etambém o quanto os pensamentos de nossos ami-gos nos devem ser suspeitos, quando são a nossofavor. Mas gostaria muito de mostrar, neste discur-so, quais são os caminhos que segui, e de nelerepresentar minha vida como num quadro, para quetodos possam julgá-la e para que, tomando conhe-cimento, pelo rumor comum, das opiniões que seterão sobre ele, seja isso um novo meio de instruir-me, que acrescentarei àqueles de que me costumoservir.

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Assim, meu propósito não é ensinar aqui o méto-do que cada um deve seguir para bem conduzir suarazão, mas somente mostrar de que modo procureiconduzir a minha. Aqueles que se metem a dar pre-ceitos devem achar-se mais hábeis do que aquelesa quem os dão; e, se falham na menor coisa, são

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Por isso censuráveis. Mas, propondo este escritoapenas como uma hist6ria, ou, se preferif?es, ape-nas como uma fábula, na qual, dentre alguns exem-plos que podem ser imitados, talvez também se,

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________ Discurso do Método _

lencontrcm vários outros que se terá razão em nãoseguir, espero que ele seja útil a alguns sem ser no-civo a ninguém, e que todos apreciem minha fran-queza.Fui alimentado com as letras desde minha infân-

cia, e, por me terem persuadido de que por meiodelas podia-se adquirir um conhecimento claro eseguro de tudo o que é útil à vida, tinha um imen-so desejo de aprendê-las. Mas, assim que termineitodo esse ciclo de estudos, no termo do qual secostuma ser acolhido nas fileiras dos doutos, mudeiinteiramente de opinião. Pois encontrava-me enre-dado em tantas dúvidas e erros, que me parecia nãoter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me,senão o de 'ter descoberto cada vez mais minhaignorância. E, no entanto, estàva numa das maiscélebres escolas da Europa, onde pensava que de-via haver homens sábios, se é que os há em algumlugar da terra. Nela aprendera tudo o que os outrosaprendiam; e mesmo, não me tendo contentadocom as ciências que nos ensinavam, percorreratodos os livros que me caíram nas mãos, que trata-vam daquelas consideradas mais curiosas e maisraras'. Com isso, conhecia os juízos que os outrosfaziam de mim; e nâo notava que me consideras-sem inferior a meus condiscípulos, en1bora já hou~vesse entre eies aiguns destinados a assumirem oiugar de nossos mestres, E, enfIm, 'lOSSO século pa-recia-me tão florescente e tão fértil em bons espíri-tos como qualquer um dos precedentes. O que me

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_ Primeil-a Parle _

levava a tomar a liberdadc dc julgar por mim todos

los o,utros, e de pensar que nâo havia doutrina' algu-ma no mundo que fosse tal como antes me haviamfeito esperar.Não deixava, todavia, de apreciar os exercícios

com os quais nos ocupamos nas escolas. Sabia queas linguas que nelas aprendemos são necessáriaspara a inteligência dos livros antigos; que a 'delica-deza das fábulas desperta o espírito, que os feitosmemoráveis das histórias o elevam, e que, sendolidas com discernimento, ajudam a formar o juízo,que a leitura de todos os bons livros é como umaconversa com as pessoas mais ilustres dos séculospassados, que foram seus autores, e mesmo umaconversa refletida na qual eles só 'nos revelam seusmelhores pensamentos; que a eloqüência tem for-ças e belezas incomparáveis; que a poesia tem deli-cadezas e doçuras encantadoras; que as matemáti-cas têm inve:Jç:õesmuito sutis e que muito podemselvir, tanto para contentar os curiosos quanto parafacilitar todas as artes' e diminuir o trabalho doshomens; que os escritos que tratam dos costumescontêm vários ensinamentos ,e várias exortaç6es àvirtude que sào muito úteis; que a teologia ensinaa ganhar o céu; que a filosofia' proporciona meiosde falar com verossimilhança de todas as coisas, ede se fazer admirar pelos menos sábios; que a juris-prudência, a medicina e as outras ciências trazemhonras e riquezas àqueles que as cultivam; e', enfim,que é bom t.er"examinado todas elas, mesmo as

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________ Discurso do Método _

mais supersticiosas e mais falsas, a fim de conhecerseu justo valor e evitar ser por elas enganado.Mas eu acreditava já ter dedicado bastante tempo

às línguas, e também à leitura dos livros antigos, àssuas histórias e às suas fábulas. Pois conversar comas pessoas dos outros séculos é quase o mesmoque viajar. É bom saber alguma coisa dos costumesde vários povos para julgarmos os nossos mais salu-tarmente, e para não pensarmos que tudo o que écontra. nossos modos é ridículo e contra a razão,como costumam fazer os que nada viram. Mas,quando empregamos muito tempo viajando, acaba-mos por nos tornar estrangeiros em nosso própriopaís; e, quando somos curiosos demais d3s coisasque se praticavam nos séculos passados, geraimen-te permanecemos muito ignorantes das que se pra-ticam neste. Além do mais, as fábulas nos fazemimaginar como possíveis vários acontecimentos quenão o são, e mesmo as histórias mais fiéis, se nãomudam nem aumentam o valor das coisas para tor-.ná-las mais dignas de. serem lidas, pelo menos omi-tem quase sempre as mais baixas e menos ilustrescircunstâncias: daí resulta que o resto não pareça talcomo é, e que aqueles que regulam seus costumespelos exemplos que extraem delas estejam sujeitosa cair nas extravagâncias dos Paladinos de nossosromances, e a conceber prop6sitos que ultrapassamsuas. forças..Apreciava muito a eloqüência, e era apaixonado

pela poesia; mas pensava que ambas eram mais

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. --Primeira Par1e _

dons do espírito do que frutos do estudo. Os quetêm o raciocínio mais forte e melhor digerem seuspensamentos, a fim de torná-los claros e inteligí-veis, sempre são os que melhor podem persuadirdo que propõem, ainda que s6 falem baixo bretãoe nunca tenham aprendido ret6rica. E os que têmas invenções mais agradáveis, e sabem expressá-lascom mais ornamento e doçura, não deixariam deser os melhores poetas, ainda que a arte poéticalhes fosse desconhecida.Compmzia-me sobretudo com as matemáticas,

por causa da certeza e da evidência de suas razões;mas não percebia ainda seu verdadeiro uso e, pen-sando que s6 serviam para as artes mecânicas, es-pantava-me de que, sendo tão firmes e s6lidos osseus fundamentos, nada de mais elevado se tivesseconstruído sobre eles'. Assim como, ao contrário,eu comparava os escritos dos antigos pagãos; quetratam dos costumes, a palácios muito soberbos emagníficos, que eram construídos apenas sobre areiae lama..Eles enaltecem muito as virtudes, e as fa-ze:mpare:ce:rmais e:stimáv<:Ísdo que: todas as coisasdo mundo, mas não ensinam suficientemente a co-nhecê-las, e amiúde o que chamam de tão belo no-me não passa de uma insensibilidade, ou de um or-gulho, ou de um desespero, ou de um parricídio'.Eu revenerava nossa teologia, e pretendia, tanto

quanto qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendoaprendido, como coisa muito certa, que o caminhonão é menos aberto aos mais ignorantes do que aos

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mais doutos, e que as verdades reveladas, que a eleconduzem, estão acima de nossa inteligência, nãoteria ousado submetê-las ã fraqueza de meus racio-cínios, e pensava que, para empreender examiná-las e ser bem-sucedido, era necessário ter algumaassistência extraordinária do céu, e ser mais que umhomem.Nada direi da filosofia, a não ser que, vendo que

foi cultivada pelos mais excelentes espíritos que vi-veram desde há vários séculos, e que, não obstan-te, nela não se encontra coisa alguma sobre a qualnão se discuta e, por conseguinte, que não sejaduvidosa, eu não tinha tanta presunção para espe-rar me sair melhor do que os outros; e que, consi-derando quantas opiniões diversas pode haver so-bre uma mesma matéria, todas sustentadas por pes-soas doutas, sem que jamais possa haver mais deuma que seja verdadeira, eu reputava quase comofalso tudo o que era apenas verossímil.

o Depois, quanto às outras ciências', na medida emque tiram seus princípios da filosofia, eu julgavaque p.adi de sólido se podia ter construído sobrefundamentos tão pouco firmes. E nem a homa nemo ganho que elas prometem eram suficientes paralevar-me a aprendê-las; pois não me encontrava,graças a Deus, em condições que me obrigasse afazer da ciência um ofício para o alívio de minhafortuna; e, embora não fizesse profissão de despre-zar a gl6ria como um cínico, dava pouca importân-cia àquela que só podia ésperar adquirir a falso títu-

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Prlmeim Parte_~_~ _

10.E, finalmente, quanto ãs más doutrinas, pensavajá conhecer bem o que valiam, para não mais estarsujeito a ser enganado nem pelas promessas de umalquimista, nem pelas predições de um astrólogo,nem pelas imposturas de um mago, nem pelos arti-fícios ou pelas gabolices de um daqueles que fazemprofiooão de saber mais do que sabem.Por isso, assim que a idade me permitiu sair da

sujeição de meus preceptores, deixei completamen-te o estudo d,,, lctra.s.E, resulvemlo-me a nao maisprocurar outra ciência além da que poderia encon-trar-se em mim mesmo, ou então no grande livro domundo, empreguei ci resto da juventude em viajar,em ver cortes e exércitos, em conviver com pessoasde diversos temperamentos e condições, em reco-lher várias experiências, em experimentar-me a minimesmo nos encontros que o acaso me propunha, e,por toda parte, em refletir sobre as coisas de ummodo tal que pudesse tirar algum proveito. Poisparecia-me que poderia encontrar muito mais verda-de nos racioc'rllos que cada qual faz sobre os assun-tos que lhe dizem respeito, e cujo desfecho devepuni-lo logo depois, se juigoumal, do que naquelesque um homem de letras faz em seu gabinete, sobreespeculações que não produzem nenhum efeito, eque não terão outra conseqüência a não ser, talvez,a de que extrairá delas tanto mais vaidade quantomais afastadas estiverem do senso comum, p'~lofatode ter tido de empregar tanto mais espírito e artifí-cio para torná-las verossímeis. E eu tinha sempre um

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________ Discurso do Método _

Iimenso desejo de aprender a distinguir o verdadei-ro do falso, para ver claro em minhas ações, e cami-nhar com segurança nesta vida.

É verdade que, enquanto me limitei a consideraros costumes dos outrós homens, quase naáa encon-t.rei que me desse segurança, e notava quase tantadiversidade quanto antes observara entre as opi-niões dos filósofos. De forma que o maior proveitoque disso tirava era que, vendo várias coisas que,embora nos pareçam muito extravagantes e ridícu-las não deixam de ser comumente aceitas e apro-vadas por outros grandes povos, aprendia a nãocrer com muita ftrmeza em nada do que só me forapersuadido pelo exemplo e pelo costumc; e assimdesvencilhava-me pouco a pouco de muitos erros,que podem ofuscar nossa luz natural e 1I0S tornarmenos capazes de ouvir a razão. Mas, depois de terempregado alguns anos estudando assim no livrodo mundo e procurando adquirir alguma experiên-cia, tomei um dia a resolução de estudar também amim mesmo e de empregar todas as forças de meuespirito escolhendo' os caminhos que deveria se-guir. O que me deu melhor resultado, ao que meparece, do que se nunca me tivesse afastado nemde meu país, nem de meus livro.<\.

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Segunda Parte

Estava então na Alemanha, para onde a ocorrên-cia das guerras, que lá ainda não terminaram, havia'me chamado, e, quando estava voltando da coroa-ção do imperadorl para o exército, o começo do in-verno reteve-me numa caserna onde, não encon-trando nenhuma conversa que me distraisse, e nãotendo, aliás felizmente, nenhuma preocupação nempaixão que me perturbasse, ficava o dia inteiro so-zinho fechado num quarto aquecido, onde tinhabastante tempo disponivel para entreter-me commeus pensamentos. Entre esses, um dos primeirosfoi a consideração de que freqüentemente não hátanta perfeição nas obras compostas de várias pe-ças, e feitas pelas mãos de vários mestres, como na-quelas em que apenas um trabalhou. Assim, \(ê-seque os edifícios iniciados e terminados. por um:úni-co arquiteto costumam ser mais belos e mais bemordenados do que aqueles que muitos procuraramreformar, servindo-se de velhas muralhas qu~ ha-viam sido construidas para outros fins. Assirrl: as an-tigas cidades, tendo sido no começo apenas aldeias,

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_________ Dtscurso do Método _

e se transformando com o passar do tempo cmgrandes cidades, são comumente tão mal propor-cionadas em comparação com as praças regularesque um engenheiro traça à sua vontade, numa pla-nície que embora considerando seus edifícios se-, ,paradamente, neles encontremos amiúde tanta oumaisarte do que naqueles das outras; entretanto, aovermos como estão dispostos, um grande aqui, umpequeno ali, e como tornam as ruas curvas e desi-guais, diríamos que é mais o acaso do que a von-tade de alguns homens, usando da razão, que assimos dispôs, E, se considerarmos que sempre houve,no entanto, alguns funcionários encarregados de vi-giarem os edifícios dos particulares para fazê-losservir ao embelezamento público, reconheceremoscomo é difícil, ao se trabalhar apenas sobre as obrasdos outros, fazer coisas muito bem acabadas, As-sim, imaginei que os povos que, tendo sido outrorasetni-selvagens e tendo-se civilizado apenas pouco, a pouco, foram fazendo suas leis somente à medi-da que a incomodidade dos crimes e das querelasa isso os' forçou não poderiam ser tão bem policia-dos como aqueles que, desde o momento em quese reuniram, observaram as constituições de algumprudente legislador, Como é muito certo que o esta-do da verdadeira religião, cujos mandamentos Deusfez sozinho, deve ser incomparavelmente mais bemregulamentado que todos os outJ;.os,E, para falardas coisas humanas, acredito que, se Esparta foi ou-trora tão florescente~não' foi por causa da bondade

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---- Segul1da?arte _

de cada uma d',~suas leis em particular, visto quemuitas eram muito estranhas e até contrárias aosbons costumes; mas foi porque, tendo sido inven-tadas por um Só individuo', todas tendiam ao mescmo fim, E assim pensei que as ciências dos livros,pelo menos aquelas cujas razões são apenas prová-veis, e que não têm nenhuma demonstração', sendocompostas e aumentadas pouco a pouco pelas o.pi-niões de muitas pessoas diferentes, não se aproxi-mam tanto. da verdade quanto os simples raeiocí-nios que 'um ho.mem de bom senso pode fazer nacturalmente sob':e as coisas que se lhe apresentam,E assim também pensei que, por todo.s nós termossido crianças antes de sermos homens, e por ter-mos precisado ser governados muito tempo pornossos apetites e por nossos preceptores, freqüen-temente contrário.s uns aos outros, e porque uns eoutros talvez nem sempre nos aconselhassem o'me-lhor, é quase impossível que nossos juízos sejamtão puros e tão sólidos como. teriam sido se tivésse-mos tido inteiro uso de nossa razão desde a hora denosso nascimento, e se tivéssemos sido conduzidossempre por ela,

É verdade que não vemos demolirem-se todas ascasas de uma cidade só com o propósito de refazê-las de outra forma e ,de tornar as ruas, mais belas,mas não é incomum vermos muitos mandarem der-rubar as suas para reconstruí-Ias, e até, por v.\~z~s,aisso são obrigados quando elas correm o risco decair por si mesmas e os alicerces não estão muito

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________ Discurso do Método _

firmes. Com esse exemplo me persuadi de que nãoteria cabimento um particular propor-se a reformarum Estado mudando-lhe tudo desde os alicerces ederrubando-o para reerguê-lo; nem mesmo, tam-bém, a reformar o corpo das ciências ou a ordemestabelecida nas escolas para as ensinar; mas, quan-to às opiniões que até então eu aceitara, o melhorqu~ podia fazer era suprimi-las de uma vez portodas, a fim de substituí-las depois, ou por outrasmelhores, ou então pelas mesmas, quando eu astivesse ajustado ao nível da razão. E acreditei firme-mente que, desta forma, conseguiria conduzir mi-nha vida muito melhor do que se apenas construíssesobre velhos alicerces e só me apoiasse nos princí-pios de que me deixara persuadir em minha juven-tude, sem nunca ter examinado se eram verdadeiros.Pois; embora observasse nisso diversas dificulda-des, elas não eram, entretanto, irremediáveis, nemcomparáveis às que se encontram na reforma dasmenores coisas referentes ao público'. Esses gran-des corpos são muito difíceis de reerguer quandoderrubados, ali mesmo de manter quando abala-dos, e suas quedas só podem ser muito violentas.Ademais, quanto às suas imperfeições, se as têm, ea própria diversidade que existe entre eles é sufi-ciente para garantir que vários as têm, o uso porcerto as amenizou muito e até evitou ou corrigiupouco a pouco grande número delas que não se po-deriam prover tão bem pela prudência; e, enfim,elas são quase sempre mais suportáveis do que se-

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--- SegundaParte _

ria a sua mudança, da mesma maneira que os gran-des caminhos que serpenteiam entre montanhas tor-nam-se pouco a pouco tão uniformes e tão cômo-dos, à força de serem freqüentados, que é muitomelhor segui-los do que empreender um caminhomais reto, galgando por cima dos rochedos e des-cendo até o fundo dos precipícios. .'

Por isso eu não poderia de modo algum aprovaresses temperamentos turbulentos e inquietos que,não sendo chamados nem pelo nascimento nempela fortuna ao manejo dos negócios públicos, nãodeixam de neles sempre fazer em pensamentos al-guma nova reforma; e, se eu pensasse que houves-se a menor coisa neste escrito pela qual pudesse sersuspeito dessa loucura, ficaria contrariado por ha-ver permitido sua publicação. Nunca meu propósi-to foi mais do que procurar reformar meus própriospensamentos e construir um terreno que é todomeu. E se, tendo minha obra me agradado bastan-te, mostro-vos aqui o seu madelo, isto não quer di-zer que queria aconselhar alguém a imitá-la. Aque-les a quem Deus melhor dotou de suas graçasterão, talvez, propósitos mais elevados; mas temoque este seja ousado demais para muitos. A meraresolução de se desfazer de todas as opiniões ,intesaceitas como verdadeiras não é um, exemplo quetodos devam seguir. E o mundo compõe-se de certomodo de apenas duas espécies de espírito aos quaisele não convém de modo algum, a saber, 'aquelesque, julgando-se mais hábeis do que são, não con-

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________ Diseurso do Método. _

seguem impedir-se de fazer juízos precipitados, nemter bastante paciência para conduzir ordenadamen-te todos os seus pensamentos; daí resulta que,. setomassem alguma vez a liberdade de duvidar dosprincípios que receberam e, de se afastar do cami-nho comum, nunca poderiam manter-se no atalhoque é preciso tomar para caminhar mais reto, e fica-riam'perdidos por toda a vida', e aqueles que, ten-do bastante razão ou modéstia para julgar que sãomenos capazes de distinguir o verdadeiro do falsodo que alguns outros por quem podem ser instruí-dos, devem antes .contentar-se em seguir as opi-niões desses outros do que procurar por si mesmosoutras melhores'.E, quanto a mim, decerto faria parte do número

destes últimos se tivesse tido sempre apenas ummestre ou se desconhecesse as diferenças que sem-pre existiramentre os mais doutos; mas, tendo apren-dido já no colégio que não se poderia imaginar

'. nada de tão estranho e de tão pouco crível que nãotivesse sido dito por algum dos filósofos; e depoisdisso, ao viajar, tendo reconhecido que todos osque têm sentimentos muito contrários aos nossosnem por isso são bárbaros nem selvagens, mas quevários usam tanto ou mais que nós a razão; e tendoconsiderado como um mesmo home.m1 com seumesmo espírito, tendo sido criado desde a infânciaentre franceses ou alemães, torn~-se diferente doque seria se tivesse sempre vivido entre chineses oucanibais; e como, até nas modas de nossas roupas,

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_________ Segwlda Pa/1e _

a mesma "oisa que nos agradou há dez anos, e quetalvez nos agrade também daqui a menos de dezanos, parece-n()s agora extravagante e ridícula; desorte que é muito mais o costume e o exemplo quenos persuadem do que algum conhecimento certo,e, não obstante, a pluralidade de opiniões não éuma prova que valha para as verdades um poucodifíceis de descobrir, porque é muito mais verossí-mil que um s6 homem as tenha encontrado do queum povo inteiro; eu não podia escolher ninguémcujas opiniões parecessem preferíveis ãs dos outros,e achei-me como que forçado a empreender con-duzir-me a mim mesmo.Mas, como um homem que caminha sozinho e

nas trevas, resolvi caminhar tão lentamente e usartanta circunspecção em todas as coisas que, embo-ra s6 avançasse muito pouco, pelo menos evitariacair. Nem quis começar a rejeitar totalmente nenhu-ma das opiniões que outrora conseguiram insinuar-se em minha crença sem terem sido nela introduzi-das pela razão, antes que tivesse empregado bas-tante tempo em projetar a obra que estava empre-endendo, c em buscar o verdadeiro método parachegar ao conhecimento de todas as coisas de quemeu espírito seria capaz'.Estudara um pouco, quando jovem, entre as par-

tes da filosofia, a 16gica, e, entre as matemáticas, aanálise dos geômetras e a álgebra, três artes ouciências que pareciam dever contribuir um tanto aomeu prop6sito. Mas, ao examiná-las, atentei que,

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Discurso do Método __ ~ _

quanto à lógica', seus silogismos e a maiol' parte desuas outras instruções servem mais para explicaraos outros as coisas que se sabem, ou mesmo, comoa arte de Lúlio', para falar sem discernimento da-quelas que se ignoram, do que para aprendê-las; e,embora ela contenha efetivamente preceitos muitoverdadeiros e muito bons, existem, misturados aeles; tantos outros que são nocivos ou supérfluos,que é quase tão difícil separá-los quanto tirar umaDiana ou uma Minerva de um bloco de mármoreque ainda não está esboçado. Depois, quanto ã aná-lise dos antigos" e ã álgebra dos modernos, além des6 se estenderem a matérias muito abstratas, e queparecem de nenhuma utilidade, a primeira estásempre tão restrita à consideração das figuras quenão pode exercitar o entendimento sem fatigar mui-to a imaginação; e na última ficamos tão sujeitos acertas regras e a certos sinaisll, que dela se fez umaarte confusa e obscura que embaraça o espírito, aoinvés de uma ciência que o cultive. Foi isto que me

. levou a pensar que cumpria procurar algum outrométodo que, compreendendo as vantagens dessestrês, fosse isento de seus defeitos. E, como a multi-plicidade de leis freqüentemente fornece desculpasaos vícios, de modo que um Estado é muito maisbem regrado quando, tendo pouquíssimas leis, elassão rigorosamente observadas; assim, em vez dessegrande número de preceitos de que a lógica é com-posta, acreditei que me bastariam os quatro seguin-tes, contanto que tomasse a firme e constante reso-lução de não deixai' uma única vez de observá-los.

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a primeiro era de nunca aceitar coisa alguma co-mo verdadeira sem que a conhecesse evidentemen-te como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a preci-pitação e a prevenção, e não incluir em meus juí-zos nada além daquilo que se apresentasse tão clarae distintamente a meu espírito, que eu não tivessenenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. ,O segundo, dividir cada uma das dificuldades que

examinasse em tantas parcelas quantas fosse possí-vel e necessário para melhor resolvê-las,a terceiro, conduzir por ordem meus pensamen-

tos, começando pelos objetos mais simples e maisfáceis de conhecer"; para subir pouco a pouco,como por degraus, até o conhecimento dos maiscompostos; e supondo certa ordem mesmo entreaqueles que não se 'precedem naturalmente uns aosoutros.E, o último, fazer em tudo enumerações tão com-

pletas, e revisões tão gerais, que eu tivesse certezade nada omitir .Essas longas cadeias de razões, tão simples e fá-

ceis, de que os geômetras costumam servir-separachegar às suas mais difíceis demonstrações, leva-ram-me a imaginar que todas as coisas que podemcair sob o conhecimento dos homens "nc."deiam-seda mesma maneira, e que, com a única condição denos abstermos de aceitar por verdadeira alguma quenão o seja, e de observarmos sempre a ordem ne-cessária para deduzi-las umas das outras, não podehaver nenhuma tão afastada que não acabemos por

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chegar a ela e nem tão escondida que não a descu-bramos. E não tive muita dificuldade em concluirpor quais era necessário começar, pois já sabia queera pelas mais simples e mais fáceis de conhecer; e,considerando que entre todos aqueles que até ago-ra procuraram a verdade nas ciências, só os ma-temáticos puderam encontrar algumas demonstra-ções, isto é, algumas razões certas e evidentes, nãoduvidei de que deveria começar pelas mesmas coi-sas que eles examinaram; embora delas não espe-rasse nenhuma outra utilidade a não ser a de acos-tumarem meu espírito a alimentar-se de verdades ea não se contentar com falsas razões. Mas com issonão tive a intenção de procurar aprender todasessas ciências particulares chamadas comumentematemáticas"; e, vendo que embora seus objetossejam diferentes todas coincidem em só considera-rem as diversas relações e proporções que neles seencontram, pensei que era melhor examinar so-mente essas proporções em geral, supondo-as ape-nas nas matérias que servissem para tornar-me seuconhecimento mais fácil;mesmo assim, sem as limi-tar de modo algum a essas matérias, a fim de podermelhor aplicá-las depois a todas as outras ãs quaisconviessem. Depois, tento atentado que, para co-nhecê-las, eu precisaria às v<e7esconsiderar cadauma em particular, e outras vezes somente decorá-las, ou compreender várias ao me~mo tempo, pen-sei que, para. melhor considerá-las em particular,teria de supô-las como 'linhas, porque não encon-

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__________ Segunda Parte, _

trava nada mais simples nem que pudesse' repre-sentar mais distintamente à minha imaginação e aosmeus sentidos; mas, para reter e compreender vá-rias ao mesmo tempo, eu precisava explicá-las poralguns sinais, os mais curtos possíveis, e que, destemodo, aproveitaria o melhor da análise geométricae da álgebra e corrigiria todos os defeitos çle umapela outra!'.De fato, ouso dizer que a exata observação des-

ses poucos preceitos que escolhera deu-me tama- ',,"'.,nha facilidade para destrinçar todas as questõesabrangidas por essas duas ciências que, nos dois outrês meses que empreguei em examiná-las, tendocomeçado pelas mais simples e mais gerais, e sendocada verdade que encontrava uma regra que meservia depois para encontrar outras,' não só conse-gui resolver muitas que outrora julgara muito difí-ceis, mas também pareceu-me, mais ao final, quepodia determinar, mesmo naquelas que ignorava,por que meios e até onde era possível resolvê-las.Nisso talvez eu não vos pareça muito vão se consi-derardes que, havendo apenas uma verdade decada coisa, quem quer quc. a encontre sabe delatudo o que se pode saber; e que, por exemplo, umacriança instruída em aritmética, tendo feito unia adi-ção de acordo com suas regras, pode estar segurade ter encontrado, sobre a soma que examinava,tudo o que o espírito humano poderia encontrar,Pois, enfim, o método que ensina a segllifa verda-deira ordem e a enumerar exatamente todas as cir-

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cunstâncias do que se procura contém tudo o quedá certeza às regras de aritmética.Mas o que mais me contentava nesse método era

qu~ por meio dele tinha a certeza de usar em tudominha razão, se não perfeitamente, pelo menos damelhor forma em meu poder; ademais, sentia, aopraticá-Ia, que meu espírito acostumava-se pouco apouco a conceber mais nítida e distintamente seusobjetos; e que, não o tendo sujeitado a nenhumamatéria palticular, prometia-me aplicá.lo tão util-mente às dificuldades das outras ciências" como ofizera às da álgebra. Não que, por isso, ousasse lo-go empreender o exame de todas as que se apre-sentassem, mesmo porque isto seria contrário à or-dem que ele prescreve. Mas, tendo percebido quetodos os seus princípios deviam ser extraídos dafilosofia, na qual eu ainda não encontrava nenhumprincípio seguro, pensei que era preciso, antes demais nada, empenhar-me em nela estabelecê-los; eque, sendo isso a coisa mais importante do mundo,e em que a precipitação e a prevenção eram o quemais se tinha a temer, eu não devia realizar essaempreitada antes de ter atingido uma idade bemmais madura que os vinte e três anos que eu tinhaentão; e antes de ter empregado muito tempo pre-parando-me para isso, tanto desenraizando de meuespírito todas as más opiniões que recebera atéentão, quanto acumulando muitas experiências queseriam mais tarde a matéria de meus raciocínios, eexercitando-me sempre no método que me pres-crevera a fim de nele firmar-me cada vez mais,

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