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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO
ENEIDA DESIREE SALGADO
PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
CURITIBA
2010
ENEIDA DESIREE SALGADO
PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
Tese apresentada como requisito parcial para a
obteno do grau de Doutor em Direito no
Programa de Ps-Graduao em Direito, Curso de
Doutorado em Direito do Estado, Universidade
Federal do Paran.
Ori entador: Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho
CURITIBA
2010
i
TERMO DE APROVAO
ENEIDA DESIREE SALGADO
PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
Tese aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Direito no
Programa de Ps-Graduao em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado,
Universidade Federal do Paran.
Banca examinadora:
Orientador:
__________________________________
Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho
Universidade Federal do Paran
Membros:
___________________________________
Prof. Dr. Celso Antnio Bandeira de Mello
Pontifcia Universidade Catlica de S. Paulo
__________________________________
Prof. Dr. Orides Mezzaroba
Universidade Federal de Santa Catarina
__________________________________
Prof. Dr. Alcides Munhoz da Cunha
Universidade Federal do Paran
__________________________________
Prof. Dr. Clmerson Merlin Clve
Universidade Federal do Paran
Curitiba, 26 de fevereiro de 2010.
ii
A Joo Luiz e Ana Clara, os meus
que me fazem eu. E gracias a la
vida, que me ha dado tanto...
iii
AGRADECIMENTOS
A elaborao de um trabalho acadmico se d em um processo intrincado, com idas e
vindas, restruturaes do projeto, abandono de certezas, intuies e inspiraes, frustraes e
recompensas e muito cansao. Ao menos essa tese foi assim. E neste caminho que se faz ao
caminhar o pesquisador tem que contar com um conjunto de pessoas, sem as quais a solido
da pesquisa e da redao torna-se insuportvel.
Devo, em primeiro lugar, fazer meno quele que me fez descobrir minha vocao,
que me encorajou a tomar algumas das decises mais importantes da minha vida acadmica e
que, por generosidade e por uma confiana quase temerria, me recebeu entre seus discpulos.
Ao mestre e mentor Romeu Felipe Bacellar Filho, minha gratido ser sempre insuficiente.
Alguns professores, durante minha formao acadmica, foram decisivos. Celso Luiz
Ludwig mostrou-me como possvel alcanar o justo equilbrio entre o saber muito e o
ensinar bem e espero passar ainda muitos anos entre os seus alunos para, a cada aula,
descobrir o que ainda me falta. Clmerson Merlin Clve me trouxe a paixo pelo Direito
Constitucional, me guiou nas primeiras leituras e me fez conhecer o valor do estudo e da
defesa da Constituio. Ricardo Marcelo Fonseca me ensinou, pacientemente, a pesquisar e a
pensar alm, a questionar o que j se tem como certo e a revisar, sempre, as perguntas. Vera
Karam de Chueiri, com a sua hbil descontruo de cada um dos meus argumentos em todo o
debate que travamos, me fez ler muito e boa parte da tese foi construda a partir de suas
provocaes.
A tese apresentada foi parcialmente moldada pelas observaes da banca de
qualificao. A Alcides Munhoz da Cunha devo a indicao do primeiro princpio eleitoral
apresentado, sem o qual, certamente, a tese restaria frgil. Orides Mezzaroba, com suas
observaes, me levou ao estudo da representao poltica e dos partidos polticos. E a Vera
Karam de Chueiri devo o cuidado com a terminologia e com o senso comum, alm de toda a
leitura dos constitucionalistas estadunidenses.
exatamente meu professor, embora s vezes efetivamente o seja e outras vezes pense ser.
Mais que um amigo, , intelectualmente,
sua teimosia colaboraram grandemente na construo da tese. A ele meus agradecimentos
sero sempre parciais, pois sempre haver mais um motivo.
iv
Aos amigos professores que questionaram as minhas certezas, agradeo a Amlia
Rossi, Anderson Marcos dos Santos, Estefnia Maria de Queiroz Barbosa, Fabrcio Tomio,
Lgia Maria de Mello Casimiro, Luciane Moessa de Souza, Rafael Garcia Rodrigues, Ozias
Paese Neves e Tarso Cabral Violin. Aos jovens constitucionalistas Jos Arthur Castillo de
Macedo e Miguel Godoy e aos ex-alunos Ana Claudia Santano e Cassio Leite, a ajuda com a
pesquisa, as discusses e as referncias. A Andrea Roloff, pela reviso atenciosa da tese e
pelo auxlio com as normas tcnicas.
Sem as Mulheres de Frases e sua compreenso, sem o Min. Flvio Bierrenbach e sua
disponibilidade, sem a ajuda das bibliotecrias Roseli Bill e Maria Teresa Ferlini Machado e
de Marden Machado, Francisco Carlos Duarte, Horley Clve Costa e Josnir Jesus da Silva, a
tese no seria a mesma.
s famlias Salgado e Costa Lopes, por entenderem os momentos de concentrao e
de tenso e as minhas ausncias e pelo incentivo; aos meus pais, Enio e Neuza, por me
deixarem escolher meus caminhos e me possibilitarem as ferramentas para fazer o que escolhi
e, in memorian, ao meu av Agenor Salgado, de quem herdei a paixo pelo Direito, apresento
meus agradecimentos.
E, finalmente, a Joo Luiz, companheiro combativo s minhas abstraes, que teve
que assumir obrigaes familiares extras em tempos de pesquisa e redao, e a Ana Clara, que
nasceu e cresceu com a tese, cantando ao p da mesa e sublinhando seus livros de estrias
com lpis de cor, muito obrigada.
v
pelos caminhos que ando
um dia vai ser
s no sei quando
Paulo Leminski,
Distrados venceremos
vi
SUMRIO
RESUMO viii
ABSTRACT ix
APRESENTAO 1
PARTE I PREMISSAS LEGITIMAT RIAS DOS PRINCPIOS
CONSTITUCIONAIS ESTR UTURANTES DO DIREITO ELEITORAL
BRASILEIRO 8
1 A CONSTITUI O DE 1988 CONSAGRA UM ESTADO DE DIREITO
FUNDADO NO PRINCPIO DEMOCRTICO E NO IDE AL REPUBLICANO 15
1.1 UMA NOO DE DEMOCRACIA ADEQUADA CONSTITUIO DE 1988 20
1.2 A REPRESENTAO POLTICA E SUA MITOLOGIA 29 1.3 O IDEAL REPUBLICANO E SEUS PARADOXOS 46
2 A CONSTITUIO DE 19 88 INSTITUI O ESTADO BRASILEIRO A
PARTIR DE PRINCPIOS ESTRUTURANTES INTANG VEIS 55
2.1 OS PRINCPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO BRASILEIRO 58
2.2 A CONTROVERSA QUESTO ENTRE DEMOCRACIA E
CONSTITUCIONALISMO 67
2.3 OS LIMITES EXPLCITOS E IMPLCITOS AOS PROCESSOS
FORMAIS E INFORMAIS DE MUDANA DA CONSTITUIO 88
PARTE II PRINCPIOS CONSTITUC IONAIS ESTRUTURANTES DO
DIREITO ELEI TORAL BRASILEIRO 101
1 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA AUTENTICID ADE ELEITORAL 108
1.1 VOTO 116
1.2 A VERACIDADE DO ESCRUTNIO 122
1.3 A FIDEDIGNIDADE DA REPRESENTAO POLTICA 128
vii
2 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA LIBERDADE PARA O
EXERCCIO DO MANDATO 143
2.1 A VEDAO AO MANDATO IMPERATIVO 150
2.2 A INCONSTITUCIONALID 160
2.3 A IMPOSSIBILIDADE DE PERDA DO MANDATO POR
DESFILIAO PARTIDRIA 176
3 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA NECESSRIA PARTIC IPAO
DAS MINORIAS NO DEBA TE PBLICO E NAS INSTITUIES
POLTICAS 217
3.1 O SISTEMA ELEITORAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO 219
3.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DISTRITAL 234
3.3 A PROIBIO DE UMA CLUSULA DE DESEMPENHO 242
4 O PRINCPIO CONSTITUCIONAL DA MXIMA IGUALDADE NA
DISPUTA ELEITORAL 247
4.1 A REGULAO DA PROPAGANDA ELEITORAL E O USO
INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAO SOCIAL 259
4.2 A ATUAO DOS AGENTES PBLICOS E O USO DO PODER
POLTICO 272
4.3 O CONTROLE DO FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS
ELEITORAIS E O ABUSO DO PODER ECONMICO 278
5 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA LEGALIDADE ESPECFICA EM
MATRIA ELEITORAL 285
5.1 A ANTERIORIDADE CONSTITUCIONAL EM MATRI A
ELEITORAL 289
5.2 O PARLAMENTO 297
5.3 NAL SUPERIOR
ELEITORAL 301
CONCLUSO 315
REFERNCIAS 317
viii
RESUMO
O trabalho analisa as principais temticas que envolvem o Direito Eleitoral na atualidade,
utilizando-se, para tanto, de uma perspectiva de valorizao dos ditames constitucionais a
respeito do assunto. Foca as questes polmicas que vm sendo debatidas no somente na
doutrina nacional e internacional, mas tambm na jurisprudncia brasileira. Trata de temas
como a democracia, o processo eleitoral, a opinio pblica e os partidos polticos. Divide-se
em duas partes fundamentais: a primeira procura identificar as premissas legitimatrias dos
princpios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro, partindo de uma
metodologia descritivo-comparativa, com o objetivo de construo de um substrato para o
melhor entendimento da tese; a segunda procura retratar e fundamentar a identificao dos
princpios em si, quais sejam: 1. o princpio constitucional da autenticidade eleitoral; 2. o
princpio constitucional da liberdade para o exerccio do mandato; 3. o princpio
constitucional da necessria participao das minorias no debate pblico e nas instituies
polticas; 4. o princpio constitucional da mxima igualdade na disputa eleitoral; e 5. o
princpio constitucional da legalidade especfica em matria eleitoral. Seu foco na questo
jurdica; todavia, utiliza-se de conhecimentos interdisciplinares, notadamente da cincia
poltica e da histria. A concluso final extrada da pesquisa realizada pode ser resumida na
assertiva de que os fundamentos principiolgicos do Direito eleitoral brasileiro somente
podem ser reconhecidos a partir do sistema constitucional positivo, nos termos e limites
extraveis do processo constituinte e da realidade democrtica nacional. Por consequncia,
elabora uma crtica s recentes decises judiciais e administrativas a respeito da temtica,
notadamente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.
Palavras-chave: Direito Eleitoral. Princpios constitucionais. Autenticidade eleitoral. Mandato
representativo. Sistema eleitoral. Igualdade eleitoral. Legalidade eleitoral.
ix
ABSTRACT
This thesis analyses the main themes regarding Electoral Law nowadays, using, for this
purpose, a perspective of emphasis on the constitutional guidelines in this area. It focuses the
controversial matters that are being discussed both in the national and international doctrines
and in Brazilian courts. It discusses matters such as democracy, electoral process, public
opinion and political parties. It is divided into two elementary parts: the first part aims to
identify the premises which legitimate the structuring principles of Brazilian Electoral Law,
using a descriptive-comparative methodology, with the purpose of building a substract to
better comprehension of the thesis; the second one aims to describe and give the grounds to
the identification of the principles themselves: 1. the principle of electoral authenticity; 2. the
constitutional principle of freedom for the exercise of the mandate; 3. the principle of the
necessary participation of the minorities in the public debate and in the political institutions;
4. the constitutional principle of the maximum equality in the election; 5. the constitutional
principle of strict legality in electoral matter. Its focus is on the legal aspect, but it also uses
interdisciplinary knowledge, mainly from political science and history. The final conclusion
that can be inferred can be synthesized in the statement that the grounds and principles of
Brazilian Electoral Law only can be recognized when they are based on positive
constitucional law, in the terms and limits that can be inferred from the process of elaboration
of the Constitution and considering the national democratic reality. As a consequence, it
builds a critical point of view concerning the recent judicial and administrative decisions on
this area, especially from the Supreme Court and from the Superior Electoral Court.
Keywords: Electoral Law. Constitutional principles. Electoral authenticity. Representative
mandate. Electoral system. Electoral equality. Electoral legality.
1
APRESENTAO
A tese aqui desenvolvida deriva de um conjunto de inquietaes, decorrentes de uma
atividade cotidiana no Direito Eleitoral e de uma proximidade com a sua aplicao h quase
quinze anos, bem como de uma srie de perplexidades em relao ausncia marcante de um
tratamento jurdico adequado sobre os fundamentos constitucionais do Direito Eleitoral.
Somada a isso, est uma preocupao basilar com a questo da representao poltica e de seu
(inexistente) controle, com a consequente crise (fundante) da categoria e com a insatisfao
social quanto ao seu funcionamento.
A pesquisa parte tambm de uma percepo de que a atuao do Tribunal Superior
Eleitora
jurdica e a previsibilidade das regras de disputa eleitoral, fundamental para a configurao
democrtica de um regime poltico. No Direito Eleitoral, brao estrutural do Direito
Constitucional, pela atuao da corte sustentada pelo tribunal mximo, parece persistir uma
prtica jurisdicional de construo da regra pelo Poder Judicirio, sem respeito aos
precedentes, sem coerncia, sem consistncia e sem unidade.1 Uma mistura pragmtica
(talvez esquizofrnica) entre commom law e civil law.
Esse comportamento, de absoluto desrespeito s regras jurdicas e aos princpios
constitucionais, se revela, paradigmaticamente, na questo da fidelidade partidria. Talvez
porque as decises tenham sido proferidas quando a pesquisa estava sendo realizada, a criao
jurisprudencial da hiptese de perda de mandato eletivo por desfiliao partidria sem justa
causa ocupa um espao privilegiado neste trabalho.
Simbolicamente, o tema representa o motivo e a importncia desta pesquisa. Ele
evidencia um protagonismo judicirio sem limites, envolto por argumentos morais subjetivos
1 A construo do Direito a partir da jurisprudncia caracterstica do common law. Esse sistema se
diferencia do sistema romano-germnico, ou civil law, por ser, de regra, um direito no codificado e que assim
confere um maior campo de discricionariedade aos juzes (embora vinculados aos precedentes), por no levar em
conta a distino entre direito pblico e direito privado nem contar com tribunais distintos para a apreciao de causas envolvendo a Administrao Pblica, pelo papel e pelo prestgio dos juzes como fundamentadores das
writs e pela
nfase no princpio acusatrio como orientador da postura do juiz (CAENEGEM, Raoul C. van. I sistemi
giuridici europei. Traduo: Emmanuela Bertucci. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 49-64). Para Pietro Costa, o
common law se vincula a uma tradio em que o sistema normativo visto como relacionado ordem objetiva
das coisas, a uma ordem normativa contnua e imemorvel (COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato
costituzionale
anglo-saxo o direito mantm maior auton commom
law (PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Traduo: Ivone C. Benedetti. So Paulo: Martins Fontes,
2005 [1996], p. 42).
2
e por uma viso perfeccionista da Constituio e do cidado, um descaso com o texto
constitucional e com a sua construo democrtica, um desprezo em relao ao Poder
mudana da sociedade, iniciando uma eterna reforma poltica em face do legislador indolente,
sem enfrentar o debate pblico na arena parlamentar, formada por representantes de distintas
correntes ideolgicas, e sem observar o processo constitucional de alterao de seu texto.
Para tentar justificar seus argumentos, apresenta um conjunto de conceitos ocos,
leituras falhas, vises distorcidas. Escapa da discusso jurdica central a Constituio no
prev, embora tenha sido longamente discutido na Assembleia Nacional Constituinte, a perda
de mandato nesta hiptese e, criativamente, traz figuras como perda de mandato sem carter
de sano, a renncia tcita, o sacrifcio de direito, a titularidade partidria do mandato, todas
inadequadas. Dedica-se com mais afinco aos argumentos fticos, a partir de premissas
completamente equivocadas: aduz que o eleitor vota em partido e no no candidato, que
decide seu voto pela corrente partidria, que estabelece uma relao com o partido. Nada
disso se sustenta na realidade brasileira.
Como o eleitor brasileiro no se ajusta sua leitura especfica do texto constitucional e
da mentalidade poltica nacional, o Poder Judicirio constri um eleitor padro. Como os
so, mas 2 E como os filsofos, agora com Plato,
devem ser os monarcas soberanos, feitos de ouro, capazes de governar com a razo e fazer a
humanidade melhor: os filsofos devem governar, estabelecer as leis e aplicar a justia.3
Exatamente o papel que o Poder Judicirio se arvora.
Mas a tese no sobre a leitura jurisprudencial sobre a fidelidade partidria. Ou no
apenas sobre isso. O Poder Judicirio, em matria eleitoral, decide sobre outros temas de
maneira igualmente descompromissada e inconsistente. Deixou de ser uma anedota a
existncia, em um mesmo tribunal eleitoral e na mesma sesso, de julgamentos sobre questes
assemelhadas, sempre por unanimidade, mas em sentidos opostos, a partir da distino entre
os relatores. cotidiano.
A viso da Justia Eleitoral sobre a autenticidade eleitoral desconcertante. H uma
preocupao quase obsessiva com o escrutnio e, atualmente, com a identificao do eleitor,
buscando acabar com as fraudes no momento da votao e na contagem dos votos, custe o que
2 SPINOZA, Baruch. Tratado poltico. Traduo: Norberto de Paula Lima. So Paulo: cone, 1994
[1677], p. 23. 3 PLATO. A Repblica
nicos capazes de alcanar a essncia das coisas, a sabedoria, que est alm do entendimento e muito alm da
opinio...
3
custar. Esse desassossego no se repete, no entanto, quanto formao do voto. No obstante
no a do
enfraquece o j frouxo ordenamento jurdico eleitoral. Contudo,
basta prova testemunhal em relao compra de apenas um voto (ainda que por interposta
pessoa, apesar do comando normativo) ou a alterao de partido (ainda que dentro da
coligao que disputou a eleio) para a desconsiderao completa da vontade manifestada
nas urnas.
No h, tampouco, uma viso adequada sobre a liberdade para o exerccio do mandato,
marca das democracias representativas. A partir do senso comum, contestada a defesa de tal
princpio. A alegao que isso implicaria um cheque em branco ao representante. Pois bem,
para alm das possveis refutaes prticas que se poderia apresentar, trata-se de um princpio
constitucional. Deriva dos contornos dados ao mandato e relao entre representante,
partido poltico e eleitorado pelos dispositivos constitucionais estabelecidos. E a liberdade
deve ser adequadamente compreendida. No h vnculo jurdico entre eleitor e deputado, nem
obrigaes jurdicas entre eles e entre eles e os partidos; mas h o necessrio respeito s
regras constitucionais e ao interesse pblico, objetivado no ordenamento jurdico. Nesse
espao, nem to amplo, nem to livre, que o representante pode atuar sem amarras.
O sistema eleitoral brasileiro origem de desconfortos e reclamaes. Em nome da
governabilidade, do absurdo do multipartidarismo, afirma-se ser imperioso afastar a
representao proporcional e adotar o modelo alemo.4 Ora, em outros tempos, bastaria dizer
que a adoo do princpio majoritrio para todos os cargos inconstitucional. Em pocas de
desconsiderao da Constituio, no entanto, outros argumentos so exigidos. E so expostos
nest
participao das minorias do debate pblico e nas instituies polticas o . O nmero de
partidos no caracteriza a democracia, o direito de oposio o faz. Isso deve ser considerado
na diviso do fundo partidrio, no acesso ao rdio e na televiso e na avaliao de uma
clusula de desempenho.
Tanto a legislao eleitoral como as decises judiciais devem ter como fundamento
tambm o princpio da mxima igualdade na disputa eleitoral, decorrncia do princpio
4
do sistema eleitoral brasileiro. Pretende-se importar uma soluo tedesca para uma realidade completamente
distinta, como um turbante na corte brasileira, na leitura de Celso Antnio Bandeira de Mello (BANDEIRA DE
MELLO, Celso Antnio. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 1051-1052).
4
republicano e que impe o afastamento dos fatores irrelevantes na disputa eleitoral. No , ou
no pode ser, pelo ordenamento constitucional, o poder econmico o fator determinante para
o sucesso eleitoral. De igual forma o acesso aos meios de comunicao ou a ocupao de
cargos pblicos. Nesse ponto, vale ressaltar, o texto constitucional presente macula-se de
inconstitucionalidade: o pargrafo quinto do artigo 14, com a redao dada pela Emenda
Constitucional 16/97, inconstitucional. Inconstitucionalidade potencializada pela leitura
respeitosa e tmida do Poder Judicirio em face de sua incoerncia com o pargrafo sexto, que
impe o afastamento definitivo dos chefes do Poder Executivo para concorrer a outros
cargos.5 Embora o Supremo Tribunal Federal tenha definido que constitucional, a reeleio
para os cargos do Poder Executivo ofende a um princpio constitucional a igualdade em
sua derivao estruturante no mbito eleitoral: a igualdade na disputa eleitoral.
Outro ponto que impe uma anlise acurada o relativo produo das regras
eleitorais. Pode-se medir a qualidade da Constituio, como afirma Konrad Hesse, por sua
capacidade de possibilitar e garantir um processo poltico livre o que se relaciona
fortemente com a normatizao da disputa eleitoral constituir, de estabilizar, de
racionalizar, de limitar el poder6 Pois a Constituio o
faz, ao determinar uma anterioridade especfica para a legislao eleitoral e uma reserva de
deliberao parlamentar sobre as regras do jogo. Todavia, o Poder Judicirio assim no tem
compreendido e atua, largamente, a partir de consultas e resolues, na alterao das normas e
na construo de restries a direitos.
A partir dessa problemtica, esta pesquisa prope-se apontar princpios constitucionais
estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro7 a serem utilizados como critrios para a
verificao da legislao eleitoral e das decises judiciais neste mbito. So cinco os
princpios constitucionais: o princpio constitucional da autenticidade eleitoral, o princpio
constitucional da liberdade para o exerccio do mandato eletivo, o princpio constitucional da
necessria participao das minorias no debate pblico e nas instituies polticas, o princpio
constitucional da mxima igualdade na disputa eleitoral e o princpio constitucional da
5 Veja-se a deciso do Supremo Tribunal Federal na medida cautelar da ao direta de
inconstitucionalidade 1805, julgada em 26 de maro de 1998 e de relatoria do Ministro Jos Nri da Silveira. O
afastamento do cargo, no prazo por ela definido, como condio para concorrer reeleio prevista no 5 do
a perda de mandato por infidelidade partidria sem comando constitucional expresso. 6 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Seleo, traduo e introduo: Pedro Cruz
Villalon. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1992 [1966/1959/1974], p. 21. 7 Compartilha-se da concepo de Alcides Munhoz
(CUNHA, Alcides Munhoz da. Justia Eleitoral e autenticidade do sistema representativo. Paran Eleitoral,
Curitiba, n. 33, p. 23-33, jul. 1999).
5
legalidade especfica em matria eleitoral. A tese aqui apresentada a afirmao destes
Sero analisados os contedos dos princpios e suas derivaes, em um panorama
jurdico que pretende dar conta das principais regras eleitorais, relacionando-as com essas
decises polticas fundamentais e apontando sua adequao ou sua desconformidade. A
aspirao, talvez bastante exagerada, tentar estabelecer uma costura coerente entre as
disposies que normatizam a disputa eleitoral, a partir, sempre, das disposies
constitucionais.
So, portanto, duas preocupaes que atravessam este texto: trazer elementos para
8 e buscar elementos para estabelecer uma coerncia das regras jurdicas do jogo
eleitoral.
H uma ressalva que precisa preceder o texto: a pesquisa tem como base as escolhas
realizadas na Assembleia Nacional Constituinte e que passaram a compor o texto
constitucional brasileiro. Assim, a anlise sobre os princpios constitucionais estruturantes do
Direito Eleitoral realizada a partir do texto constitucional. No uma construo terica
com pretenses perfeccionistas. Como Bruce Ackerman ressalta ao tratar da Constituio
estadunidense,9 esta pesquisa no parte d describir lo
mejor de todos los mundos posibles
deliberaes da Assembleia Nacional Constituinte, mesmo que seja possvel pensar em
escolhas diferentes.
A pesquisa se coloca, em um momento em que isso pode parecer reacionrio, em uma
posio de defesa da Constituio de 1988. De resistncia s alteraes formais e informais de
seu contedo, ao quebrantamento dos seus princpios, ao desprezo pelas decises
fundamentais e pelo momento constituinte que d origem ao texto, ao pragmatismo dos
8 Conforme expresso de Paulo Bonavides (BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia
participativa. So Paulo: Malheiros, 2001, p. 28). 9 Estas respuestas neofederalistas no son las mismas que yo dara si estuviera escribiendo sobre una tabla rasa. En realidad, si solo me interesara por describir el mejor de todos los mundos posibles, no perderia
prcticas de mis propios ideales polticos (...). Sin embargo, el hecho es que no estoy escribiendo sobre una
tabla rasa. Como estadunidense que vive durante el bicentenario de la Constitucin, me encuentro rodeado por
un complejo histrico de smbolos constitucionales y de estructuras institucionales que se originaron en el
perodo federalista. Nos guste o no, son estos smbolos y estructuras (ninguno de los cuales invent yo) los que
fijan los trminos de mis propios esfuerzos de comunicacin poltica com mis ciudadanos ACKERMAN,
Bruce Um neofederalismo? In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.). Constitucionalismo y democracia.
Traduo: Monica Utrilla de Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Econmica, 1999 [1988], p. 176-216,
p. 178-179.
6
Poderes Executivo e Judicirio que desprestigia a Constituio e o Direito, que em geral
tambm propugna pela reduo do papel do Estado na promoo dos direitos.
Para que no se compreenda equivocadamente as crticas atuao do Poder
Judicirio, faz-
atenha a uma falsa singela subsuno do fato regra e no considere os valores e princpios
constitucionais. Ao contrrio, deseja-se um magistrado comprometido com as promessas da
Constituio, com o projeto de sociedade ali proposto. Juzes que atuem, efetivamente, na
concretizao dos direitos sociais. Um Poder Judicirio que respeite a Constituio, que a
defenda e a realize, nos termos por ela estabelecidos. O que se recusa, veementemente, um
ativismo que escolhe onde inovar ainda que diretamente ofensivo ao texto constitucional
pela repercusso social que as decises possam ter.
Como ressalva metodolgica, saliente-se que o trabalho de uma pesquisadora, e no
de quem toma a deciso de estabelecer a regra nem quem decide quando da sua aplicao.10
Trabalha-se sobre uma construo de princpios que esto, implcita ou explicitamente, no
texto constitucional. E sobre eles se descreve e se argumenta. Trata-se de um trabalho de
fundamentao e no de aplicao. No se discutem mtodos de aplicao dos princpios, no
se debrua longamente sobre a teoria dos princpios, no se trata da compatibilizao entre
eles.
No h um marco terico, um autor determinado ou uma escola de pensamento
especfica que fundamente esta pesquisa. Parte-se do texto constitucional brasileiro e utiliza-
se, para a construo dos argumentos, uma diversidade de autores, afastados no tempo e no
espao, que se debruaram sobre ideias de Direito, textos constitucionais, demandas sociais e
configuraes jurdicas distintas.11
Ao lado disso, so utilizados autores que por vezes partem de outra realidade e que
fazem a defesa de instituies a partir de diferentes premissas. Suas categorias e conceitos
so, portanto, instrumentalizados, apropriados e costurados entre si com liberdade e com certa
10 Me parece que no es menester aclarar y repetir que escribo como investigador y no como quien
decide, aunque es muy difcil para muchos distinguir entre comprobar lo que es y aprobar, o desaprobar, lo que puede llegar a ser. Es cierto que quien ensea poltica tiene que prepararse ante protestas u oposiciones. Ahora
bien, quien me contradiga, que intente criticar mis conocimientos y competencia, antes que mis convicciones
JELLINEK, Georg. Reforma y mutacin de la Constitucin. Traduo: Christian Frster. Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 4. 11
os
preocupamos, nesse sentido, com a coerncia limitadora; ao contrrio, faremos uso da contribuio de autores
que, considerados sob uma tica orgnica e totalizadora, so inconciliveis. que arriscamos o uso de parte do
universo conceitual deste autor, CLVE, Clmerson Merlin. Temas de
Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). So Paulo: Acadmica, 1993, p. 185.
7
transcendncia. Essa postura harmoniza com a inveno paulatina do tema, com suas
descobertas dirias e suas refundaes episdicas.
Vale ressaltar, ainda, que a tese consiste, de fato, na segunda parte do trabalho, com o
elenco e o desenvolvimento dos princpios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral
brasileiro. A primeira parte, que trata das premissas legitimatrias, formada por um conjunto
de quase resenhas, sobre temas fundamentais do Direito Constitucional e da teoria poltica,
pressupostos do desenvolvimento dos princpios constitucionais estruturantes do Direito
Eleitoral. Embora sejam questes de absoluta importncia, no compem o objeto central da
tese. Por conta disso, h uma seleo bastante arbitrria do enfoque e dos autores trabalhados,
permitindo apenas a instrumentalizao de conceitos e categorias utilizados na segunda parte.
Assim, a insuficincia do tratamento dos assuntos evidente apenas indicam a base terica
da qual se parte para a anlise do texto constitucional brasileiro.
8
PARTE I
PREMISSAS LEGITIMATRIAS DOS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS
ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL BR ASILEIRO
A construo da anlise dos princpios estabelecidos pela Constituio, implcita ou
explicitamente, como estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro, exige colocar em evidncia
suas premissas. Para permitir a avaliao da conformidade da descrio e do desenvolvimento
desses princpios, faz-se necessrio expor alguns entendimentos pressupostos linha de
pensamento percorrida.
O elenco dos princpios apresentados na segunda parte do trabalho fundamenta-se em
determinadas concepes e s a partir delas pode ser compreendido. Nessa primeira parte,
pretende-se inicialmente evidenciar a noo de democracia que se acredita ter sido
incorporada na Constituio, o tratamento constitucional dado representao poltica e o
significado sempre complexo do ideal republicano trazido pelo texto de 1988. Em seguida,
sero analisados com brevidade os princpios estruturantes do Estado brasileiro, a tenso entre
constitucionalismo e democracia e, ainda, o alcance de decises tomadas por intangveis
quando da elaborao da Constituio.
Conforme sublinhado na apresentao desse trabalho, as anlises desenvolvidas nesta
primeira parte tm a extenso de pequenas resenhas, ainda que tratem de temas vastos da
teoria poltica e da teoria constitucional. No se busca construir uma nova teoria sobre essas
questes nem se pretende apresentar uma leitura original de sua problemtica. Trata-se,
singelamente, de expor os conceitos implicados na elaborao dos argumentos expostos na
segunda parte do trabalho. Assim, no sero esgotados os assuntos e nem sero trazidos todos
os autores relevantes. Em um recorte pessoal e arbitrrio, sero apresentadas algumas ideias
que, para a pesquisa, se apresentam adequadas Constituio brasileira.
Antes, no entanto, impe-se evidenciar o que se comprende por princpios.
As decises constituintes que estruturam o Estado se revelam como valores, como
princpios ou como regras constitucionais. Faz-se necessria uma compreenso de
Constituio como um conjunto de valores, princpios e regras, que conformam o
ordenamento jurdico e a vida em sociedade, com fora normativa e concepo democrtica.
Os valores constitucionais se evidenciam no prembulo e nos primeiros artigos da
Constituio: a justia, a liberdade, a igualdade, a dignidade, a segurana, o bem comum, o
desenvolvimento, a solidariedade, o pluralismo e a garantia do exerccio dos direitos sociais e
9
individuais. Esses fins formam o escopo da atuao dos poderes pblicos e devem informar
tambm as relaes privadas.
Embora os valores se manifestem em termos bastante abertos, fluidos, isso no leva
sua superfluidade. Ainda que, de incio, no se possa afirmar exatamente o que signifiquem,
nem se possa retirar deles uma conduta determinada, o significado dos termos limita, ao
menos negativamente, o agir dos rgos de soberania. Alm disso, esses fins ltimos so
traduzidos em princpios constitucionais, que definem a ao ou o juzo.
Gustavo Zagrebelsky afirma que o princpio orienta normativamente a ao ou o juzo,
sendo seu critrio de validade, exigindo um clculo de adequao que torna a ao ou o juzo
previsveis, ao menos em sua direo.12
So enunciados normativos, e embora apresentem
uma textura aberta, no permitem o arbtrio do intrprete, que est vinculado a vontades da
Constituio, do constituinte preexistentes reveladas pelos valores constitucionais.13
A eleio de valores pelo constituinte, e sua eventual concretizao por princpios
densificadores e regras, no deve ser ignorada sob pena de a atuao do leitor e aplicador da
Constituio esvair-se de legitimidade.14
Os valores constitucionais se condensam em princpios constitucionais,15
dando aos
fins um sentido especfico, apresentando um feixe de possibilidades e excluindo determinados
meios. Valores e princpios atuam de maneira distinta na efetivao do Direito.
Enquanto os valores servem como baliza para a interpretao de uma norma e para o
desenvolvimento legislativo, os princpios esto ao alcance do legislador e do juiz, se inexiste
regra especfica. Ao legisla
dos valores positivados. No entanto, em relao aos princpios, o leque de opes do
12 La massima del principio : agisci in ogni situazione concreta che ti si presenta in modo che nella tua
(ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori,
principi o regole? (a proposito della dottrina dei principi di Ronald Dworkin). Quaderni Fiorentini per la storia
del pensiero giuridico moderno, Firenze, t. 1, n. 31, p. 865-897, 2002, p. 873). 13 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. So Paulo: Max Limonad,
2003, p. 143. 14 No se ignoram as opes valorativas inerentes ao processo de aplicao do direito, ainda que
determinado por regras, em virtude da textura aberta da linguagem (NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y
Poltica: Una revisin de la teora general del Derecho. Barcelona: Ariel, 1994, p. 87-100). O que no pode ser admitido a substituio dos valores plasmados na Constituio por valores subjetivos, mascarados de
argumentos tcnicos ou de uma concepo pessoal de justia. No se nega, tampouco, o carter constitutivo da
interpretao do Direito (GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988. 11. ed. So Paulo:
Malheiros, 2006, p. 163), embora se reconhea a necessidade de respeitar as opes do constituinte e do
legislador democrtico. 15
ordenamento jurdico como um todo considerado. Do contrrio, com o tempo, fragiliza-se a prpria vontade da
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributrio. 25. ed. rev., ampl. e
atual. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 54).
10
legislador reduzido, pois as regras que podem ser abarcadas pela projeo normativa esto
delineadas (mas no pr-determinadas) pelo significado do enunciado principiolgico. O juiz
pode acessar diretamente o princpio, projetando-o normativamente, quando no h
desenvolvimento legislativo que apresente uma regra para o caso em apreciao.16
Os princpios so concretizados pelo legislador ou pelo juiz, no pela criao de um
direito novo, mas pela derivao de comandos normativos especficos a partir do leque de
possibilidades estabelecido pelos prprios princpios. A preferncia para a concretizao, no
entanto, do legislador, e sempre h um contedo mnimo a ser respeitado.
Essa distino entre valores e princpios precisa ser mais esclarecida. Para Manuel
Aragon, os valores no estabelecem, no predizem o contedo da sua projeo normativa. J
frmulas de derecho fuertemente condensadas que albergan en su seno
indicios o grmenes de reglasLas reglas derivadas de un principio estn indeterminadas
en l, p
discricionariedade do legislador, mas no pode inventar uma regra jurdica, embora possa
- .17
As regras tambm orientam aes e decises, mas indicam uma consequncia jurdica
determinada. Derivam dos princpios como esses dos valores, em uma relao de inferncia.18
A regra deve remeter-se a um princpio para sua justificao; caso seja contrria a um
princpio, antes de incon
19
A compreenso exposada pela pesquisa no se coaduna com a viso de Robert Alexy e
de Ronald Dworkin em relao teoria dos princpios. A viso de que o princpio se
diferencia da regra porque essa se aplica segundo uma lgica do tudo ou nada20
ou porque o
16 ARAGN, Manuel. La eficacia jurdica del principio democrtico. Revista Espaola de Derecho
Constitucional, Madrid, a. 8, v. 24, p. 9-45, sep./dec. 1985, p. 26. 17 Ibid., p. 28. 18 La regola che vieta la tortura presuppone il principio
E,
mais enfaticamente, afirma que a congruncia entre valores-princpios-regras constitutiva da validade do
ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori, principi o regole? (a proposito della dottrina dei principi di Ronald Dworkin). Op. cit., p. 877).
ESPNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princpios
constitucionais. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 75). 19 ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori, principi o regole? (a proposito della dottrina dei
principi di Ronald Dworkin). Op. cit., p. 877. 20 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. Traduo: Jefferson Luiz Camargo. So Paulo:
-ou-
e dos princpios no decorrem automaticamente consequncias jurdicas (p. 36 e 39-40). Na leitura de
11
princpio configura um mandado de otimizao21
no corresponde viso aqui compartilhada
da funo dos princpios. Pela leitura de Alexy e Dworkin, o comando constitucional
constante no artigo 5, XXXIX no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem
prvia cominao legal configuraria regra: no h possibilidade de sua aplicao ser
, e sua lgica de obedincia ou desrespeito ao comando. Na
leitura aqui desenvolvida, o dispositivo normativo corresponde a um princpio, que deriva de
um valor (a liberdade) e estrutura todo o desenvolvimento das regras jurdicas que a ele se
vinculam (o Direito Penal, no exemplo apresentado).
H, portanto, uma noo distinta de princpio que perspassa esta pesquisa.22
Nesta
perspectiva no h conflito entre os princpios, pois seu significado e seu alcance so
determinados concomitantemente, a partir do significado e do alcance dos demais. E os
princpios so o fundamento do sistema jurdico.
direito sem princpios. As simples regras jurdicas de nada valem se no estiverem apoiadas
os princpios constitucionais so intangveis, so inalcanveis at
pelo poder de reforma da Constituio.23
Para Ataliba, os princpios qualificam a ordenao
jurdica, dando comunidade estatal uma determinada fisionomia poltico-social.24
Assim
tambm em Celso Antnio Bandeira de Mello, os princpios, sobre serem normas, conferem a
normatividade expressa na totalidade do sistema
limites ao poder (PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Op. cit., p. 329 e 336-337). Herbert L. A.
Hart critica a viso de Dworkin, afirmando que a regra nunca traz todos os elementos par
As regras no funcionam na lgica do tudo ou nada, pois podem ser afastadas apenas em um caso concreto, sem perder sua validade (HART, Herbert L. A. Ps-escrito. In:_____. O conceito de Direito. 4. ed. Traduo: A.
Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005 [1994], p. 299-339, p. 320 e ss). 21 principles are norms requiring that something be realized to the greatest extent possible,
given the factual and legal possibilitiesALEXY, Robert. Balancing, constitutional review, and representation.
International Journal of Constitutional Law, New York, n. 3, p. 572-581, 2005, p. 573; ALEXY, Robert. Teora
de los Derechos Fundamentales. Traduo: Ernesto Garzn Valds. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997 [1986]). A efetivao dos princpios, conforme sua compreenso esposada neste trabalho,
22 A noo de princpio, neste trabalho, aquela apontada tradicionalmente pela literatura jurdica
brasileira, como afirma Lus Virglio Afonso da Silva (SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e regras: mitos e
equvocos acerca de uma distino. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 1, p. 607-630, jan./jun. 2003, p. 612). O autor assinala as diferenas entre as concepes de Alexy e Dworkin e a
compreenso aqui compartilhada e utiliza o mesmo exemplo da legalidade em matria penal. 23 ATALIBA, Geraldo. Mudana da Constituio. Revista de Direito Pblico, So Paulo, n. 86, p. 181-
a Constituio (REIS, Sebastio Alves dos. Comentrios sobre princpios constitucionais fundamentais. In:
VELLOSO, Carlos Mrios da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do (Coords.).
Princpios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins.
So Paulo: Lex, 2005, p. 929-936, p. 936). 24 ATALIBA, Geraldo. A lei complementar na Constituio. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p.
23.
12
direo do sistema jurdico e quem o ofende ou desconsidera na interpretao de uma norma
25
Todos os princpios constitucionais estruturantes, gerais e setoriais, esto para alm da
possibilidade de sua alterao pelos poderes constitudos. Em seu conjunto, tais princpios do
identidade Constituio e alter-los implica modificar a essncia da Constituio.
Afastando-os ou reduzindo-os, a Constituio passa a ser outra.
Entre as funes dos princpios, destaca Romeu Felipe Bacellar Filho, est a
26
No h mais questionamento sobre a normatividade dos princpios jurdicos no
chamado ps-positivismo.27
So normas jurdicas, que identificam valores ou fins, revelando
um contedo axiolgico ou uma deciso poltica, como afirmam Lus Roberto Barroso e Ana
Paula de Barcellos.28
O sistema jurdico um sistema aberto de regras e princpios, todos dotados de
normatividade.29
Os princpios informam a leitura adequada das normas jurdicas.30
So eles
31
32 Os princpios tm eficcia direta (incidncia imediata sobre o
caso), eficcia interpretativa (do o sentido e o alcance do significado possvel das normas
25 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Consideraes em torno dos princpios hermenuticos.
Revista de Direito Pblico, So Paulo, n. 21, p. 141-147, jul./set. 1972, p. 144. Assim tambm a posio de
todas as direes para as quais prete
do bem de todos. In: VELLOSO, Carlos Mrios da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos
Rodrigues do (Coords.). Princpios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins. So Paulo: Lex, 2005, p. 989-998, p. 994). 26 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexes sobre Direito Administrativo. Belo Horizonte: Frum,
2009, p. 23. Andr Ramos Tavares tambm acentua a funo dos princpios como vetores da interpretao
(TAVARES, Andr Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed, rev. e atual. So Paulo: Saraiva, 2007, p.
100). 27 ESPNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princpios constitucionais. Op. cit., p. 75 28 BARROSO, Lus Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da histria. A nova interpretao
constitucional e o papel dos princpios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Lus Roberto (Org.). A nova
interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 327-378, p. 340. 29 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1085. 30 Gustavo Zagrebelsky afasta a compreenso do positivismo tradicional que atribui aos princpios apenas
contradio de destinar s normas de maior densidade de contedo os princpios uma funo puramente
acessria da que desempenham as normas cuja densidade menor as regras (ZAGREBELSKY, Gustavo.
El derecho dctil: Ley, derechos, justicia. 7. ed. Traduo: Marina Gascn. Madrid: Trotta Editorial, 2007
[1992], p. 117). 31 BARROSO, Lus Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporneo. So Paulo: Saraiva, 2009,
p. 209. 32 GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988. Op. cit., p. 167.
13
jurdicas) e eficcia negativa (afastam a aplicao de normas em desconformidade com seu
comando.33
A questo sobre a concretizao dos princpios, pela determinao do seu significado e
de seu alcance, encontra-se no centro da tenso entre democracia e jurisdio constitucional.34
Ainda que no se possa negar a necessidade de reservar ao Poder Judicirio a capacidade de
dar um contedo concreto aos princpios para sua aplicao a um caso concreto (sob pena de
enfraquecer a normatividade dos princpios), deve-se reconhecer a primazia do consenso
democrtico na concretizao dos princpios, quando do seu adequado e consistente
desdobramento em outros princpios e em regras constitucionais e infraconstitucionais.
Os princpios podem se configurar como princpios jurdicos fundamentais, princpios
polticos constitucionalmente conformadores, princpios constitucionais impositivos e
princpios-garantia.
valor
nucleares. Neles esto includos os princpios definidores da forma de Estado, os princpios
estruturantes do regime poltico e os princpios caracterizadores da forma de governo e da
organizao poltica, e, entre esses, os princpios eleitorais. Os princpios so densificados por
princpios constitucionais gerais e estes por princpios constitucionais especiais, que so, por
sua vez, densificados por regras. Assim, segundo Jos Joaquim Gomes Canotilho, o princpio
democrtico condensado pelos princpios da soberania popular, da separao e
interdependncia dos rgos de soberania, da participao democrtica dos cidados e do
sufrgio universal. Este ltimo princpio
da liberdade de propaganda, igualdade de oportunidades e imparcialidade nas campanhas
35
O princpio democrtico se relaciona com o direito de sufrgio, e este se conforma
pelos princpios da universalidade (em relao ao voto e elegibilidade), da imediaticidade36
(o cidado d a primeira e a ltima palavra), da liberdade de voto (que tambm se revela no
33 BARROSO, Lus Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporneo. Op. cit., p. 318-320. 34 Tenso invencvel (definitivamente, mas que exige respostas provisrias) de uma oposio inconcilivel, segundo Vera Karam de Chueiri (CHUEIRI, Vera Karam de. O discurso do constitucionalismo:
governo das leis versus governo do povo. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.). Direito e discurso: discursos
do direito. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006, p. 161-171, p. 169-170). 35 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Op. cit., p.
1090-1100. 36 Canotilho analisa o abandono do partido pelo representante sob o princpio da imediaticidade,
apresentando argumentos nos dois sentidos, sem defender nenhum deles: a favor da manuteno do mandato, o
princpio da representao (o deputado representante do povo e no os partidos e pode ser, no sistema
portugus, um candidato independente) e a favor da perda de mandato, a renncia ftica ao mandato por parte do
representante que abandona o partido (Ibid., p. 295).
14
princpio do voto secreto), da igualdade de voto (mesmo peso e mesmo valor de resultado37
),
da periodicidade e da unicidade.38
Manuel Aragon ressalta que todo o Direito principialista, mas o Direito
Constitucional o mais fortemente, por conta de seu carter genrico e seu lugar central, que
faz com que seus princpios fundamentais sustentem os demais ramos do Direito.39
Tal compreenso dos princpios e do carter principiolgico da Constituio e do
ordenamento jurdico no combina com uma concepo puramente procedimental da
Constituio: impe-se o reconhecimento de uma dimenso fortemente material aos
princpios constitucionais.40
Cabe ressaltar ainda que a Constituio contm espaos para a conformao do
legislador. Em algumas matrias, o texto constitucional traz apenas grandes linhas, deixando
propositalmente questes para serem debatidas e decididas posteriormente na esfera
democrtica. Alm disso, a utilizao de conceitos abertos permite a adaptao da
Constituio s mudanas sociais.41
establece, con carcter
vinculante, lo que no debe quedar abierto
princpios reitores, a estrutura estatal, as competncias de seus rgos e o procedimento para a
tomada de decises. Isso se considera decidido, fora do alcance do debate poltico.42
Esse desenho do que a Constituio insere no debate democrtico e o que ela estabiliza
a partir da definio constituinte estabelece os contornos da questo entre o
constitucionalismo e a democracia.
37 Nesse ponto, Canotilho proclama a tendencial desigualdade do sistema majoritrio quanto ao valor de
resultado dos votos, alm de afirmar que o princpio da igualdade de voto afasta a possibilidade de adoo de
.
297). 38 Ibid., p. 294-298. 39 ARAGON, Manuel. La eficacia jurdica del principio democrtico. Op. cit., p. 14. 40 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. [Anais de teleconferncia]. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de
Miranda (Org.). Canotilho e a Constituio dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 24-25. 41 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 18. 42 Ibid., p. 19.
15
1 A CONSTITUIO DE 1988 CONSAGRA UM ESTADO DE DIREITO
FUNDADO NO PRINCPIO DEMOCRTICO E NO IDEAL REPUBLICANO
Para sustentar a afirmao de que a Constituio de 1988 estabelece um Estado de
Direito de cunho democrtico e republicano, vale trazer algumas noes sobre a ideia de
Constituio, tomada aqui, simultaneamente, como deciso poltica fundamental43
e como
norma jurdica de hierarquia suprema.44
Segundo a teoria do poder constituinte e suas fices, a Constituio funda o Estado,
estabelecendo desde o incio, ab ovo, uma configurao poltica a partir da organizao do
poder e de sua limitao, por meio da garantia de direitos, da estrutura dos rgos de
soberania e da determinao de fins a serem perseguidos tanto pelas autoridades estatais como
pela sociedade.45
A noo de Constituio se vincula indissociavelmente noo de liberdade e de
liberdades. Sua formulao por um documento solene, escrito e protegido contra alteraes
cotidianas, revela a inteno de proteo de um conjunto de direitos e garantias, bem como o
estabelecimento da organizao e do funcionamento do Estado.
Maurizio Fioravanti aponta os distintos modelos tericos adequados s Constituies
que derivaram das Revolues Francesa e dos Estados Unidos e, posteriormente, do
desenvolvimento da noo de Estado de Direito na Europa. Enquanto na primeira pensava-se
a liberdade por uma doutrina individualista, estatalista e anti-historicista, na segunda a
doutrina combinava elementos individualistas, historicistas e antiestatalistas. O Estado de
Direito, pensado a partir do sculo XIX, afasta o elemento individualista, com a combinao
de estatalismo e historicismo.46
O historicismo pressupe um pensamento sobre as liberdades que parte da fora
imperativa dos direitos, confirmados pelo tempo, pela histria, que ficam para alm da
vontade poltica contingente. A finalidade da associao poltica est na proteo das posies
43 SCHMITT, Carl. Constitucional Theory. Traduo: Jeffrey Seitzer. Chicago: Duke University Press,
2008 [1928], 3. 44 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo: Lus Carlos Borges. So Paulo:
Martins Fontes, 2000 [1945], primeira parte, captulo X. 45 Para Maurice Hauriou, a formao da Constituio vem da virtude jurdica do poder constituinte,
combinada com a liberdade dos sditos e com uma ideia hay una fundacin del poder, que realiza una
idea objetiva y del cual se han apoderado los ciudadanos en condiciones tales que la fundacin no es revocable
y que el poder no est ligado por su propia voluntad, sino por la de los sbditos y por el ascendiente de la idea
objetiva HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Pblico y Constitucional. 2. ed. Traduo: Carlos Ruiz
del Castillo. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1927, p. 19). 46 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni moderne. Le libert fondamentali. 2. ed.
Torino: G. Giappichelli, 1995, p. 17.
16
adquiridas historicamente, sem que haja a possibilidade de estabelecer ignorando os direitos
histricos posies jurdicas iniciais, a partir de um acordo de vontades. Essa concepo no
se coaduna com uma noo plena de poder constituinte. Segundo o autor, o modelo
individualstico coloca o indivduo como o titular dos direitos, e tem as constituies como
instrumentos para garantir esses direitos e as liberdades individuais. A lei do Estado a nica
autoridade reconhecida, pensada a partir do contratualismo. A limitao dos direitos
individuais se coloca a partir dos demais direitos individuais e no de uma demanda social. O
poder constituinte aparece como originrio e fundamental. Finalmente, o estatalismo v o
Estado como condio de nascimento dos direitos e das liberdades. O pacto substitui o
contrato e o Estado, que se origina desse pacto, tomado como absolutamente necessrio para
a existncia do corpo poltico. O poder e a liberdade nascem juntos, no se contrapem.47
As combinaes entre os elementos refletem a concepo de liberdade e de direitos, a
noo de Estado e de Constituio. O contedo das constituies d pistas desses modelos e
de sua incorporao. O constitucionalismo contemporneo, compreendido a partir da
Revoluo dos Estados Unidos, com o estabelecimento de um texto normativo de hierarquia
superior em forma de um documento solene, tem como contedos necessrios aspectos
relacionados limitao e organizao do poder e dos rgos de soberania, com a construo
de um Estado cuja ao est vinculada ao Direito.
Eduardo Garca de Enterra acentua que a noo de Constituio se origina, na
Revoluo Francesa e na Revoluo dos Estados Unidos, com um contedo definido e a partir
de determinados pressupostos. Sua existncia, segundo o artigo 16 da Declarao dos Direitos
do Homem e do Cidado,48
est vinculada garantia dos direitos individuais e separao
dos poderes, e sua origem deve ser popular ou comunitria.49
Esse sentido perde-se durante quase todo o sculo XIX. A origem e o contedo no
como una mera exigencia lgica de la
unidad del ordenamiento alquer poca e em qualquer regime. O
conceito se formaliza e se torna abstrato.50
A indispensabilidade de determinados contedos,
no entanto, parece ressurgir na segunda dcada do sculo XX, com a compreenso de um
Estado vinculado a determinadas tarefas, impostas pelo texto constitucional.
47 Ibid., p. 18-28, 28-41 e 41-49. 48
separao dos poderes no tem Constitui 49 GARCA DE ENTERRA, Eduardo. La Constitucin como norma y el Tribunal Constitucional.
Madrid: Civitas, 1983, p. 41. 50 Ibid., p. 42-43.
17
Maurice Hauriou aponta trs elementos da ordem constitucional as ideias morais,
polticas e sociais; o Direito da Constituio; e a organizao constitucional dos poderes e
trs crenas constitucionais, crenas poltico-morais que so a fora do sistema constitucional:
a ordem individualista (que limita inclusive a soberania do Estado e tem como princpio que
cada cual viva su vida, con sus riesgos y peligros; a doutrina do poder (que o divide em
poder minoritrio, relacionado com a elite poltica e com as instituies, e poder majoritrio,
que extrai sua legitimidade da eleio popular); e a liberdade poltica (concebida como
participao dos cidados no poder e no emanao de todos os poderes da nao).51
A Constituio, para Karl Loewenstein, deve conter a diviso das tarefas estatais em
diferentes rgos, um mecanismo de cooperao entre os detentores de poder e um para
resolver os impasses entre estes (relacionado soberania popular no constitucionalismo
democrtico), um mtodo de adaptao s mudanas sociais; e o reconhecimento expresso de
uma esfera de autodeterminao individual, com garantias para sua proteo.52
Georges
Burdeau acentua as regras de designao dos governantes previstas no texto constitucional,
que conformam a legitimidade dos governantes, instituem sua autoridade e determinam sua
competncia.53
Com a configurao de um modelo de Estado que traz como finalidade a reduo das
desigualdades sociais, a Constituio passa a incorporar outros elementos, relacionados
garantia de direitos de igualdade. A partir dessa compreenso, no cabe dissociao entre os
54 pois os
elementos dessa frmula definidora so inter-relacionados e se definem mutuamente.
A Constituio brasileira de 1988 traz, em seu conjunto de decises polticas
fundamentais, os contornos do Estado e da democracia. Estabelece a diviso das tarefas do
Estado, os direitos e as garantias individuais, a previso de sua modificao dentro de
determinados limites e as regras para a legitimao do exerccio do poder poltico. Alm
disso, o texto constitucional apresenta as posies polticas constitutivas,55
que configuram os
51 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Pblico y Constitucional. Op. cit., p. 12-15, 49, 113, 187 e
203. Para o autor, o poder minoritrio limita o poder majoritrio, exceto na atuao revolucionria deste,
vinculada legtima defesa, direitos de resistncia opresso e de insurreio e direitos de resistncia ativa (p. 204-209). 52 LOEWENSTEIN, Karl. Teora de la Constitucin. Traduo: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.
Barcelona: Ariel, 1976 [1961], p. 153-154. Para o autor, o constitucionalismo representa a exigncia de
responsabilidade do governo (p. 71). 53 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones polticas. Traduo de Ramn Falcn
Tello. Madrid: Editora Nacional, 1981 [1977], p. 79 e 91. 54 ARAGN, Manuel. La eficacia jurdica del principio democrtico. Op. cit., p. 9-45. 55 Ronald Dworkin refere-se noo de teoria poltica compreensiva como um conjunto sistemtico de
posies polticas concretas e abstratas, formada por posies polticas constitutivas (valoradas em si mesmo,
que podem ser matizadas em face de outra posio poltica constitutiva) e posies polticas derivadas (que so
18
contornos do Estado e da concepo de democracia e de repblica, no prembulo56
e no artigo
1.57
Assim, estabelece o Estado de Direito como fundamento da cidadania contempornea,
uma noo de democracia, uma concepo de representao poltica, indicando os contornos
dessa relao, e um ideal republicano, a partir de uma forte noo de liberdade e de igualdade,
com a assuno de direitos e deveres de cidadania.58
Para Paulo Bonavides, a Constituio
portanto, 59
Trata-se de um Estado de Direito qualificado, que no se harmoniza com qualquer
contedo legal. Os poderes pblicos e os particulares se submetem lei regularmente
elaborada, mas desde que observados os valores e princpios constitucionais,
substancialmente considerados. Como afirma Luigi Ferrajoli, essa dimenso qualificada do
Estado de Direito importa, tambm, em uma alterao da natureza da democracia, que passa a
ser limitada e completada pelos direitos fundamentais.60
Com Jrgen Habermas, o Estado constitucional democrtico configura-se como uma
ordem desejada pelo povo e legitimada pela sua livre formao de opinio e de vontade, que
permite aos destinatrios da ordem jurdica se verem como seus autores. A atuao estatal no
cumprimento de suas tarefas constitucionais, buscando pelo direito dar conta da desigualdade
ftica, permite a efetivao igualitria dos direitos. E a amplitude dessa atuao elastece a
meios para atingir as posies polticas constitutivas, e que podem ser protegidas e absolutas). DWORKIN,
Ronald. Liberalismo, Constitucin y Democracia. Traduo: Julio Montero y Alfredo Stolarz. Buenos Aires: La
isla de la luna, 2003 [1980/1990], p. 12-15, nr 1. 56
um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a soluo pacfica das controvrsias, promulgamos, sob a proteo de Deus, a seguinte
57
do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II -
a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo poltico. Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
58 democracia
tem no seu cerne o anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que ela, e portanto um regime do desejo, a repblica tem no seu mago uma disposio ao sacrifcio, proclamando
democracia quando o povo se responsabiliza por suas decises, o que exige um forte componente republicano.
RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus Repblica: a questo do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO,
Newton (Org.). Pensar a Repblica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 13-25, p. 18 e 21-22. 59 BONAVIDES, Paulo. Jurisdio constitucional e legitimidade (algumas observaes sobre o Brasil). In:
FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Orgs.). Estudos de Direito Pblico em homenagem a Celso
Antnio Bandeira de Mello. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 520-549, p. 520. 60 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Traduo: Pilar Allegue. In:
CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29, p. 19.
19
possibilidade de autolegislao democrtica, intensificando a capacidade de autoconduo da
sociedade.61
A Constituio passa a incorporar um projeto de ordem poltica, social e jurdica, que
virtude da afirmao de um 62
No se trata, no entanto, de plasmar no texto constitucional um ideal de vida boa e impor aos
cidados. H, republicanamente, a escolha de valores objetivos, que permite que o indivduo
possa realizar seus projetos e levar a sua vida, desde que no impea os demais sujeitos de
igualmente o fazerem.63
A Constituio deve assegurar a garantia dos direitos fundamentais de qualquer
pessoa, indo alm da representao de uma pretensa vontade geral ou de um segmento dela.64
Como aponta Luigi Ferrajoli, a Constituio serve para garantir o direito de todos, at mesmo
diante da vontade popular, para assegurar a convivncia entre interesses diversos em uma
sociedade heterognea.65
61 HABERMAS, Jrgen. A constelao ps-nacional e o futuro da democracia. In:_____. A Constelao
ps-nacional. Ensaios polticos. Traduo: Mrcio Seligmann-Silva. So Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 75-142.
alidao normas que
-
se condies para o discurso: o acordo deve ser motivado por razes epistmicas, no pode haver coao na
aceitao das consequncias presumveis e dos efeitos secundrios, todos devem poder apresentar seus argumentos e a argumentao deve ser dar de maneira honesta (HABERMAS, Jrgen. Uma viso genealgica do
teor cognitivo da moral. In:_____. A Incluso do outro: Estudos de teoria poltica. Traduo: Paulo Astor Soethe
e George Sperber. So Paulo: Loyola, 2004 [1996], p. 13-62, p. 49 e 58-
fundamento da tica discursiva habermasiana tem em conta que somente interesses universalizveis podem
servir de base para a justificao de normas. A tica discursiva parte do suposto de que as normas so
racionalmente validveis. So vlidas as normas sobre as quais h consenso, obtido por meio do discurso prtico.
No se trata, no entanto, de qualquer forma de consenso. Ser fundado o consenso obtido nos termos do critrio
LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurdica da libertao: paradigmas da filosofia
da libertao e direito alternativo. Florianpolis: Conceito Editorial, 2006, p. 110-111). 62 PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Op. cit., p. 181. 63 Para Emerson Gabardo, a Constituio de 1988 traz um ideal de vida boa, relacionado felicidade dos indivduos e garantido por uma srie de dispositivos constitucionais, como o que prev o salrio mnimo e a
prestao de servios pelo Estado. Esse ideal, no entanto, no ofende a liberdade do indivduo, pois se baseia em
conceitos e valores objetivos (GABARDO, Emerson. Interesse Pblico e Subsidiariedade: o Estado e a
Sociedade Civil para alm do bem e do mal. Belo Horizonte: Frum, 2009, p. 325-372). 64 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Princpios constitucionais fundamentais uma digresso
prospectiva. In: VELLOSO, Carlos Mrios da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do
(Coords.). Princpios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva
Martins. So Paulo: Lex, 2005, p. 327-342, p. 333. 65 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Traduo: Pilar Allegue. In:
CARBONELL, Miguel (Ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29, p. 28.
20
1.1 UMA NOO DE DEMOCRACIA ADEQUADA CONSTITUIO DE 1988
A Constituio brasileira de 1988 traz uma concepo de democracia, com contornos
singulares, que se marca profundamente pelas noes de liberdade e igualdade, pela soberania
popular e pelo pluralismo poltico. No descura do ideal republicano, da noo de interesse
pblico e da responsabilidade dos cidados pelas decises polticas, tomadas diretamente ou
pela atuao dos representantes.
A democracia na Constituio, ressalta Carlos Ayres Britto, princpio, meio e fim.
Como princpio, est revelada no artigo 1.66
Sua instrumentalizao reside no artigo 2.67
Seu
fim, seu escopo, resta no artigo 3 da Carta.68
valor continente, que repassa seu contedo
para as demais normas constitucionais. 69
A partir do desenho constitucional, pode-se combinar na apreciao da democracia
brasileira as noes de Ronald Dworkin e de Carlos Santiago Nino. Para Dworkin,70
a
democracia exige, em primeiro lugar, tratamento dos cidados com igual respeito e
considerao e a possibilidade de que cada um tenha seus juzos prprios de moralidade
pessoal. A democracia implica uma ao coletiva que no se confunde com aes individuais,
mas que exige a conscincia individual de pertencimento ao grupo, a quem a ao
imputada.71
As decises do grupo no so formadas a partir da leitura individual de cada
cidado, dos seus desejos e preferncias.
Tal leitura bastante adequada democracia constitucional brasileira. O valor da
igualdade e da liberdade, com os princpios normativos deles derivados e as inmeras regras
constitucionais que os concretizam demonstram essa noo. No h um projeto de vida boa
adotado pelo Estado que exclua os projetos pessoais de vida, impondo uma viso
66
do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II -
a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o
pluralismo poltico. Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
67
68 do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidria; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos
de orige 69 BRITTO, Carlos Ayres. Democracia como princpio, meio e fim. Palestra proferida na Jornada jurdica
em homenagem ao professor Jorge Miranda: os 20 anos da Constituio Brasileira de 1988, Braslia, 03 out.
2008. 70 DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitucin y Democracia. Op. cit. Mais precisamente no artigo
Igualdad, Democracia y Constitucin: nosotros, el pueblo, en los estrados. 71 Essa noo ajusta-se com a noo de cidado de Clmerson Merlin Clve, no como aquele que pode
(CLVE, Clmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). Op. cit., p. 16).
21
perfeccionista. Ao mesmo tempo, de maneira complementar, a Constituio evidencia um
contedo republicano, que parte de uma comunidade de pessoas que partilham o mesmo
passado e o mesmo destino e que, portanto, impe solidariedade e responsabilidade pelas
decises coletivas. Ou seja, a Constituio no possui uma concepo axiolgica totalizante,
mas contempla um projeto de alterao da realidade.72
A essa noo pode ser agregada a concepo deliberativa da democracia epistmica de
Carlos Santiago Nino,73
tambm consistente com o texto constitucional. A justificao moral
da democracia reside em seu poder de transformar os interesses das pessoas de um modo
moralmente aceitvel, entendendo a deliberao coletiva como capaz de alterar os interesses
individuais.74
Tal configurao democrtica exige que todas as partes interessadas participem
na discusso e na deciso, de maneira razoavelmente igual e sem coero, em que possam
expressar seus interesses e justific-los com argumentos genunos; que o grupo tenha uma
dimenso apropriada para permitir a maximizao da probabilidade de um resultado correto;
que as maiorias e minorias se formem a cada matria discutida e nenhuma minoria reste
isolada; e que os indivduos no se encontrem sujeitos a emoes extraordinrias.75
Nino aposta no carter moral da democracia, a partir de contedos morais e de
procedimentos deliberativos tambm configurados como morais.76
E ambos os autores retiram
parte do conjunto normativo superior do alcance das maiorias democrticas.
A Constituio brasileira de 1988 apresenta os contornos dessas condies da
democracia: a configurao dos direitos polticos e das liberdades polticas, com o sufrgio
universal e com os instrumentos de participao direta, a adoo de princpios que impem a
igualdade na disputa eleitoral, a liberdade para a criao de partidos polticos e a garantia do
72 Para Emerson Gabardo, esse projeto contm uma proposta de felicidade para todos os seres humanos. A
felicidade, fundamento poltico do Estado e fim caracterstico do Estado social contemporneo, deve ser
objetivamente considerada (GABARDO, Emerson. Interesse Pblico e Subsidiariedade: o Estado e a Sociedade
Civil para alm do bem e do mal. Op. cit.). 73 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1996. 74 Da sua nfase no carter epistmico da democrac [l]a democracia tendra un valor
intrnseco no por lo que es, sino por lo que permite conocer GREPPI, Andrea. Consenso e imparcialidad.
Sobre la justificacin moral de la democracia en el pensamiento de C. S. Nino. In: ROSENKRANTZ, Carlos; VIGO, Rodolfo L. (Comp.). Razonamiento jurdico, ciencia del derecho y democracia en Carlos S. Nino.
Ciudad de Mexico: Fontamara, 2008, p. 229-259, p. 242). Essa compreenso de democracia afasta a afirmao
de Herbert L. A. Hart de que as regras ou princpios jurdicos cujo contedo seja moralmente inquo possam ser
vlidos (HART, Herbert L. A. Ps-escrito. In:_____. O conceito de Direito. 4. ed. Traduo: A. Ribeiro Mendes.
Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005 [1994], p. 299-339, p. 331). 75 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 180. 76 Roberto Gargarella defende a democracia deliberativa, afirmando que ela impe o tratamento de todos
como igual considerao e assim favorece a tomada de decises imparciais, valorando o processo que antecede a
deciso (GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: Sobre el carcter contramayoritario del poder
judicial. Barcelona: Ariel, 1996, p. 157-158).
22
acesso direito de antena e ao fundo partidrio, o sistema eleitoral proporcional e a diviso
federativa das atribuies.77
A democracia deve ser entendida como um mtodo o melhor para, mediante o
dilogo, transformar os interesses particulares em preferncias imparciais78
e, a partir da sua
adoo pelo constituinte, como um princpio normativo que condiciona a legitimidade do
poder poltico busca de fins e realizao de valores determinados pela Constituio e a sua
legitimao observncia de regras e procedimentos.79
Para a concepo de democracia aqui compartilhada, a participao direta dos
indivduos na tomada de decises polticas obrigatria sempre que possvel, para minimizar
as distores da representao e o hiato no processo de deliberao.80
Mas no se ignora que
os dois componentes principais da democracia contempornea so os partidos polticos e as
eleies peridicas.81
A democracia, apontam Ftima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e Fabiano Santos,
onsivo ao interesse pblico (dimenso da responsiveness) e um poder
que exercido em pblico e, por consequncia, passvel de controle pblico (dimenso da
accountability
accountability e representatividade.82
O Direito e a poltica so intimamente relacionados com a moral, no apenas na
aplicao das normas a partir da construo das proposies para um raciocnio
77 Carlos Santiago Nino apresenta os obstculos implementao da democracia deliberativa a estrutura
exclusivamente representativa, a apatia poltica, a baixa qualidade do debate pblico, a disperso da soberania
causada pela descentralizao, a intermediao imperfeita dos sistemas eleitorais, o sistema presidencialista e o
exagero no controle judicial da constitucionalidade. Apresenta como soluo a adoo de instrumentos de democracia direta no reduzidos a respostas monossilbicas, com a reduo das unidades polticas, a exigncia
de participao poltica (sem ser excessiva para no implicar uma viso perfeccionista de virtude cvica),
proibio absoluta do financiamento privado e garantia de acesso aos meios de comunicao), tomada de deciso
em mbito local e implementao em nvel federal, a mudana para o parlamentarismo e a reduo do controle
judicial de constitucionalidade proteo das condies do procedimento democrtico, da autonomia pessoal e
da constituio histrica, ou prtica social constitucional (NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la
democracia deliberativa. Op., cit., p. 202-293). No se defendem aqui alteraes na configurao constitucional
da democracia brasileira, pois parte-se do desenho constituinte para se evidenciar os princpios constitucionais
estruturantes do Direito eleitoral. 78 Ibid., p. 202. Por assumir o carter deliberativo da democracia brasileira, com todas as suas condies e
exigncias, afastam-se as leituras elitistas da democracia, que veem a democracia como uma competio entre elites, embora no necessariamente a propugne, bem como aquelas que defendem o papel fundamental dos
partidos polticos na deliberao democrtica. 79 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Op. cit., p. 281. 80 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 204-205. 81 ABAL MEDINA, Juan. La muerte y la resurreccin de la representacin poltica. Buenos Aires: Fondo
de Cultura Econmica, 2004, p. 14. 82 ANASTASIA, Ftima; MELO, Carlos Ranufo; SANTOS, Fabiano. Governabilidade e representao
poltica na Amrica do Sul. So Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 11 e 15. As noes de responsiveness e
accountability no possuem uma traduo em portugus. Responsiveness se relaciona capacidade de responder
a demandas e accountability se refere possibilidade de controle e fiscalizao.
23
justificatrio,83
mas tambm na determinao do contedo do Direito do Estado, pois a
justificao da Constituio depende de seu contedo refletir princpios morais.84
A enumerao dos objetivos da Repblica Federativa do Brasil, no artigo 3 do texto
constitucional, aponta para a adoo de princpios morais, relacionados liberdade, justia,
solidariedade,85
igualdade e dignidade. De igual forma o fazem o prembulo, o artigo 1,
o artigo 5 e seus incisos e outras disposies constitucionais que justificam o reconhecimento
da Constituio como norma jurdica mxima. H compartilhamento de uma moralidade, mas
de uma moralidade objetiva, relacionada aos valores pblicos, sem que isso derive da
imposio estatal de um contedo especfico.
A democracia no aniquila o espao de autonomia individual. Antes o garante, ao
permitir que, democraticamente, o cidado possa se expressar no debate poltico e expor ou
no suas convices pessoais a respeito do que deve ser o contedo da ordem jurdica e da
atuao do Estado. A exigncia da responsabilidade pelas decises tomadas pela sociedade
no uma ofensa autonomia faz parte do ideal republicano, da ao coletiva comum.
A concepo democrtica tampouco abarca todas as opes e possibilidades
individuais. O debate poltico e a definio por decises coletivas limitam-se s instituies e
prescries de condutas necessrias para a convivncia social que assegure tratamento com
igual considerao e respeito a todos os cidados.86
H, portanto, questes que no so e no
podem ser colocadas no debate democrtico. H temas que a deliberao democrtica no
alcana, pois esto para alm do espao de determinao coletiva.
As prticas democrticas no asseguram por si a legitimidade das decises polticas. A
deciso no se legitima apenas pelo seu procedimento, embora a ateno ao mtodo
democrtico de tomada de decises polticas exigido pela Constituio seja elemento
essencial. Os indivduos mantm liberdades e garantias, um espao de escolha, cujo contedo
e alcance no so passveis de deliberao, cuja proteo e intangibilidade so alheias s
maiorias democrticas.
83 NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y Poltica: Una revisin de la teora general del Derecho. Op.
cit., p. 87-100. 84 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 44-45. 85 Compreende-se aqui a solidariedade de maneira objetiva, com o cumprimento de deveres jurdicos,
exigindo-se do cidado menos do que a incorporao de um sentimento solidrio pessoal. No se compartilha a
viso de Srgio Luiz Souza Ara
primeiro lugar, que o indivduo crie uma espcie de justia interior, institucionalizada, obrigatria, que torne
efetiva a solidariedade, isto , que procure vencer em si mesmo ARAJO, Srgio Luiz
Souza. O Prembulo da Constituio brasileira de 1988 e sua ideologia. Revista de Informao Legislativa,
Braslia, a. 36, n. 143, jul./set., p.5-14, 1999, p. 11). 86 Dico de Ronald Dworkin. DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitucin y Democracia. Op. cit., p.
21.
24
Assim tambm se configuram as decises polticas estruturantes na instituio de um
Estado democrtico. Essas disposies constitucionais estruturais, que estabelecem de forma
democrtica e com contedo democrtico a organizao do Estado e dos rgos de soberania,
as tarefas estatais, o estatuto de direitos e garantias e os princpios da disputa democrtica,
garantem e fortalecem a democracia. Devem ser protegidas das maiorias eventuais, por serem
compartilhadas pelos membros da sociedade e refletirem ideais comuns e por permitirem a
produo e manuteno do povo como agente comunitrio integrado formado por
cidados iguais.87
Essa noo permite combinar os trs elementos do constitucionalismo em um sistema
de apoios recprocos. O processo democrtico, o respeito aos direitos individuais e a
preservao da prtica jurdica no se encontram em tenso, mas se complementam e
fortalecem: a discusso moral, base do processo democrtico, tem como pressupostos a
autonomia, a inviolabilidade e a dignidade e gera uma constituio ideal de direitos densa que
permite maximizar o valor epistmico da democracia; assim tambm a proteo prtica
constitucional assegura a eficcia das decises democrticas e garante os direitos
reconhecidos por essa prtica e pelas decises, bem como a discusso coletiva e o respeito aos
direitos geram um consenso que promove a prtica constitucional.88
A Constituio traz em si esses elementos, permitindo, e at certo ponto promovendo,
o constitucionalismo assim concebido. As condies normativas esto postas. A realidade,
possivelmente por uma falta de identificao do autor com a sua obra, do povo com a
Constituio, e pela fraca percepo do papel normativo do texto constitucional, ainda no se
mostra assim.
A democracia constitucional brasileira no se caracteriza simplesmente pela
identificao com a vontade da maioria.89
Ainda que adote, nas hipteses de decises polticas
submetidas ao debate pblico, a regra da maioria e algumas vezes exija uma maioria
qualificada para determinadas matrias a Constituio no se contenta com esse mecanismo.
Parte de uma democracia inclusiva, evidenciada pelo princpio do pluralismo poltico (e pelo
87 Ibid., p. 45, 51 e 64. 88 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 296-303. Assim
tambm para Ronald Dworkin, que v em sua concepo communal de democracia a harmonia entre a excluso
de determinadas matrias da arena poltica e a democracia (DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitucin y
Democracia. Op. cit., p. 78). 89 Stephen Holmes afirma que a democracia no se identifica com a imposio da vontade majoritria,
mas revela-se como o governo por discusso pblica, constituda pelo dissenso pblico. A vontade democrtica
e, portanto, soberana a que deriva de um debate robusto e aberto, no qual a oposio tenha participao
efetiva na defesa de seus pontos de vista (HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia.
In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.). Constitucionalismo y democracia. Traduo: Monica Utrilla de
Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Econmica, 1999 [1988], p. 217-262, p. 254-255).
25
consequente pluralismo partidrio) e pela adoo do sistema eleitoral proporcional, que impe
a convivncia institucional de distintos modos de pensar e garante um espao poltico efetivo
para as concepes de vida no hegemnicas.
A democracia brasileira demonstra-se capaz de realizar suas promessas deliberativas.
Para Fvila Ribeiro,
90 A
Constituio brasileira assim configura o regime democrtico, permitindo a participao das
minorias no debate poltico e nas instituies e promovendo a convivncia de discursos
dissonantes sobre o que est para alm dos princpios estruturantes do Estado brasileiro.
Alm desse aspecto fundante da forma de convivncia da sociedade brasileira e da
determinao dos limites do poder pblico e da prpria ordem jurdica, a democracia tambm
se reflete em um princpio jurdico.
Para Manuel Aragon, o princpio democrtico atua como princpio material e como
princpio estruturante: a democracia material complementada pela democracia
procedimental. o princpio mais fundamental de todos,91
e , ao mesmo tempo, um princpio
sobre a Con
sua alterao), um princpio jurdico da Constituio (que juridifica o poder constituinte e a