Tese Eneida Desiree Salgado

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO

    ENEIDA DESIREE SALGADO

    PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL

    CURITIBA

    2010

  • ENEIDA DESIREE SALGADO

    PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL

    Tese apresentada como requisito parcial para a

    obteno do grau de Doutor em Direito no

    Programa de Ps-Graduao em Direito, Curso de

    Doutorado em Direito do Estado, Universidade

    Federal do Paran.

    Ori entador: Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho

    CURITIBA

    2010

  • i

    TERMO DE APROVAO

    ENEIDA DESIREE SALGADO

    PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL

    Tese aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Direito no

    Programa de Ps-Graduao em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado,

    Universidade Federal do Paran.

    Banca examinadora:

    Orientador:

    __________________________________

    Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho

    Universidade Federal do Paran

    Membros:

    ___________________________________

    Prof. Dr. Celso Antnio Bandeira de Mello

    Pontifcia Universidade Catlica de S. Paulo

    __________________________________

    Prof. Dr. Orides Mezzaroba

    Universidade Federal de Santa Catarina

    __________________________________

    Prof. Dr. Alcides Munhoz da Cunha

    Universidade Federal do Paran

    __________________________________

    Prof. Dr. Clmerson Merlin Clve

    Universidade Federal do Paran

    Curitiba, 26 de fevereiro de 2010.

  • ii

    A Joo Luiz e Ana Clara, os meus

    que me fazem eu. E gracias a la

    vida, que me ha dado tanto...

  • iii

    AGRADECIMENTOS

    A elaborao de um trabalho acadmico se d em um processo intrincado, com idas e

    vindas, restruturaes do projeto, abandono de certezas, intuies e inspiraes, frustraes e

    recompensas e muito cansao. Ao menos essa tese foi assim. E neste caminho que se faz ao

    caminhar o pesquisador tem que contar com um conjunto de pessoas, sem as quais a solido

    da pesquisa e da redao torna-se insuportvel.

    Devo, em primeiro lugar, fazer meno quele que me fez descobrir minha vocao,

    que me encorajou a tomar algumas das decises mais importantes da minha vida acadmica e

    que, por generosidade e por uma confiana quase temerria, me recebeu entre seus discpulos.

    Ao mestre e mentor Romeu Felipe Bacellar Filho, minha gratido ser sempre insuficiente.

    Alguns professores, durante minha formao acadmica, foram decisivos. Celso Luiz

    Ludwig mostrou-me como possvel alcanar o justo equilbrio entre o saber muito e o

    ensinar bem e espero passar ainda muitos anos entre os seus alunos para, a cada aula,

    descobrir o que ainda me falta. Clmerson Merlin Clve me trouxe a paixo pelo Direito

    Constitucional, me guiou nas primeiras leituras e me fez conhecer o valor do estudo e da

    defesa da Constituio. Ricardo Marcelo Fonseca me ensinou, pacientemente, a pesquisar e a

    pensar alm, a questionar o que j se tem como certo e a revisar, sempre, as perguntas. Vera

    Karam de Chueiri, com a sua hbil descontruo de cada um dos meus argumentos em todo o

    debate que travamos, me fez ler muito e boa parte da tese foi construda a partir de suas

    provocaes.

    A tese apresentada foi parcialmente moldada pelas observaes da banca de

    qualificao. A Alcides Munhoz da Cunha devo a indicao do primeiro princpio eleitoral

    apresentado, sem o qual, certamente, a tese restaria frgil. Orides Mezzaroba, com suas

    observaes, me levou ao estudo da representao poltica e dos partidos polticos. E a Vera

    Karam de Chueiri devo o cuidado com a terminologia e com o senso comum, alm de toda a

    leitura dos constitucionalistas estadunidenses.

    exatamente meu professor, embora s vezes efetivamente o seja e outras vezes pense ser.

    Mais que um amigo, , intelectualmente,

    sua teimosia colaboraram grandemente na construo da tese. A ele meus agradecimentos

    sero sempre parciais, pois sempre haver mais um motivo.

  • iv

    Aos amigos professores que questionaram as minhas certezas, agradeo a Amlia

    Rossi, Anderson Marcos dos Santos, Estefnia Maria de Queiroz Barbosa, Fabrcio Tomio,

    Lgia Maria de Mello Casimiro, Luciane Moessa de Souza, Rafael Garcia Rodrigues, Ozias

    Paese Neves e Tarso Cabral Violin. Aos jovens constitucionalistas Jos Arthur Castillo de

    Macedo e Miguel Godoy e aos ex-alunos Ana Claudia Santano e Cassio Leite, a ajuda com a

    pesquisa, as discusses e as referncias. A Andrea Roloff, pela reviso atenciosa da tese e

    pelo auxlio com as normas tcnicas.

    Sem as Mulheres de Frases e sua compreenso, sem o Min. Flvio Bierrenbach e sua

    disponibilidade, sem a ajuda das bibliotecrias Roseli Bill e Maria Teresa Ferlini Machado e

    de Marden Machado, Francisco Carlos Duarte, Horley Clve Costa e Josnir Jesus da Silva, a

    tese no seria a mesma.

    s famlias Salgado e Costa Lopes, por entenderem os momentos de concentrao e

    de tenso e as minhas ausncias e pelo incentivo; aos meus pais, Enio e Neuza, por me

    deixarem escolher meus caminhos e me possibilitarem as ferramentas para fazer o que escolhi

    e, in memorian, ao meu av Agenor Salgado, de quem herdei a paixo pelo Direito, apresento

    meus agradecimentos.

    E, finalmente, a Joo Luiz, companheiro combativo s minhas abstraes, que teve

    que assumir obrigaes familiares extras em tempos de pesquisa e redao, e a Ana Clara, que

    nasceu e cresceu com a tese, cantando ao p da mesa e sublinhando seus livros de estrias

    com lpis de cor, muito obrigada.

  • v

    pelos caminhos que ando

    um dia vai ser

    s no sei quando

    Paulo Leminski,

    Distrados venceremos

  • vi

    SUMRIO

    RESUMO viii

    ABSTRACT ix

    APRESENTAO 1

    PARTE I PREMISSAS LEGITIMAT RIAS DOS PRINCPIOS

    CONSTITUCIONAIS ESTR UTURANTES DO DIREITO ELEITORAL

    BRASILEIRO 8

    1 A CONSTITUI O DE 1988 CONSAGRA UM ESTADO DE DIREITO

    FUNDADO NO PRINCPIO DEMOCRTICO E NO IDE AL REPUBLICANO 15

    1.1 UMA NOO DE DEMOCRACIA ADEQUADA CONSTITUIO DE 1988 20

    1.2 A REPRESENTAO POLTICA E SUA MITOLOGIA 29 1.3 O IDEAL REPUBLICANO E SEUS PARADOXOS 46

    2 A CONSTITUIO DE 19 88 INSTITUI O ESTADO BRASILEIRO A

    PARTIR DE PRINCPIOS ESTRUTURANTES INTANG VEIS 55

    2.1 OS PRINCPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO BRASILEIRO 58

    2.2 A CONTROVERSA QUESTO ENTRE DEMOCRACIA E

    CONSTITUCIONALISMO 67

    2.3 OS LIMITES EXPLCITOS E IMPLCITOS AOS PROCESSOS

    FORMAIS E INFORMAIS DE MUDANA DA CONSTITUIO 88

    PARTE II PRINCPIOS CONSTITUC IONAIS ESTRUTURANTES DO

    DIREITO ELEI TORAL BRASILEIRO 101

    1 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA AUTENTICID ADE ELEITORAL 108

    1.1 VOTO 116

    1.2 A VERACIDADE DO ESCRUTNIO 122

    1.3 A FIDEDIGNIDADE DA REPRESENTAO POLTICA 128

  • vii

    2 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA LIBERDADE PARA O

    EXERCCIO DO MANDATO 143

    2.1 A VEDAO AO MANDATO IMPERATIVO 150

    2.2 A INCONSTITUCIONALID 160

    2.3 A IMPOSSIBILIDADE DE PERDA DO MANDATO POR

    DESFILIAO PARTIDRIA 176

    3 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA NECESSRIA PARTIC IPAO

    DAS MINORIAS NO DEBA TE PBLICO E NAS INSTITUIES

    POLTICAS 217

    3.1 O SISTEMA ELEITORAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO 219

    3.2 A INCONSTITUCIONALIDADE DO SISTEMA DISTRITAL 234

    3.3 A PROIBIO DE UMA CLUSULA DE DESEMPENHO 242

    4 O PRINCPIO CONSTITUCIONAL DA MXIMA IGUALDADE NA

    DISPUTA ELEITORAL 247

    4.1 A REGULAO DA PROPAGANDA ELEITORAL E O USO

    INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAO SOCIAL 259

    4.2 A ATUAO DOS AGENTES PBLICOS E O USO DO PODER

    POLTICO 272

    4.3 O CONTROLE DO FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS

    ELEITORAIS E O ABUSO DO PODER ECONMICO 278

    5 O PRINCPIO CONSTITU CIONAL DA LEGALIDADE ESPECFICA EM

    MATRIA ELEITORAL 285

    5.1 A ANTERIORIDADE CONSTITUCIONAL EM MATRI A

    ELEITORAL 289

    5.2 O PARLAMENTO 297

    5.3 NAL SUPERIOR

    ELEITORAL 301

    CONCLUSO 315

    REFERNCIAS 317

  • viii

    RESUMO

    O trabalho analisa as principais temticas que envolvem o Direito Eleitoral na atualidade,

    utilizando-se, para tanto, de uma perspectiva de valorizao dos ditames constitucionais a

    respeito do assunto. Foca as questes polmicas que vm sendo debatidas no somente na

    doutrina nacional e internacional, mas tambm na jurisprudncia brasileira. Trata de temas

    como a democracia, o processo eleitoral, a opinio pblica e os partidos polticos. Divide-se

    em duas partes fundamentais: a primeira procura identificar as premissas legitimatrias dos

    princpios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro, partindo de uma

    metodologia descritivo-comparativa, com o objetivo de construo de um substrato para o

    melhor entendimento da tese; a segunda procura retratar e fundamentar a identificao dos

    princpios em si, quais sejam: 1. o princpio constitucional da autenticidade eleitoral; 2. o

    princpio constitucional da liberdade para o exerccio do mandato; 3. o princpio

    constitucional da necessria participao das minorias no debate pblico e nas instituies

    polticas; 4. o princpio constitucional da mxima igualdade na disputa eleitoral; e 5. o

    princpio constitucional da legalidade especfica em matria eleitoral. Seu foco na questo

    jurdica; todavia, utiliza-se de conhecimentos interdisciplinares, notadamente da cincia

    poltica e da histria. A concluso final extrada da pesquisa realizada pode ser resumida na

    assertiva de que os fundamentos principiolgicos do Direito eleitoral brasileiro somente

    podem ser reconhecidos a partir do sistema constitucional positivo, nos termos e limites

    extraveis do processo constituinte e da realidade democrtica nacional. Por consequncia,

    elabora uma crtica s recentes decises judiciais e administrativas a respeito da temtica,

    notadamente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.

    Palavras-chave: Direito Eleitoral. Princpios constitucionais. Autenticidade eleitoral. Mandato

    representativo. Sistema eleitoral. Igualdade eleitoral. Legalidade eleitoral.

  • ix

    ABSTRACT

    This thesis analyses the main themes regarding Electoral Law nowadays, using, for this

    purpose, a perspective of emphasis on the constitutional guidelines in this area. It focuses the

    controversial matters that are being discussed both in the national and international doctrines

    and in Brazilian courts. It discusses matters such as democracy, electoral process, public

    opinion and political parties. It is divided into two elementary parts: the first part aims to

    identify the premises which legitimate the structuring principles of Brazilian Electoral Law,

    using a descriptive-comparative methodology, with the purpose of building a substract to

    better comprehension of the thesis; the second one aims to describe and give the grounds to

    the identification of the principles themselves: 1. the principle of electoral authenticity; 2. the

    constitutional principle of freedom for the exercise of the mandate; 3. the principle of the

    necessary participation of the minorities in the public debate and in the political institutions;

    4. the constitutional principle of the maximum equality in the election; 5. the constitutional

    principle of strict legality in electoral matter. Its focus is on the legal aspect, but it also uses

    interdisciplinary knowledge, mainly from political science and history. The final conclusion

    that can be inferred can be synthesized in the statement that the grounds and principles of

    Brazilian Electoral Law only can be recognized when they are based on positive

    constitucional law, in the terms and limits that can be inferred from the process of elaboration

    of the Constitution and considering the national democratic reality. As a consequence, it

    builds a critical point of view concerning the recent judicial and administrative decisions on

    this area, especially from the Supreme Court and from the Superior Electoral Court.

    Keywords: Electoral Law. Constitutional principles. Electoral authenticity. Representative

    mandate. Electoral system. Electoral equality. Electoral legality.

  • 1

    APRESENTAO

    A tese aqui desenvolvida deriva de um conjunto de inquietaes, decorrentes de uma

    atividade cotidiana no Direito Eleitoral e de uma proximidade com a sua aplicao h quase

    quinze anos, bem como de uma srie de perplexidades em relao ausncia marcante de um

    tratamento jurdico adequado sobre os fundamentos constitucionais do Direito Eleitoral.

    Somada a isso, est uma preocupao basilar com a questo da representao poltica e de seu

    (inexistente) controle, com a consequente crise (fundante) da categoria e com a insatisfao

    social quanto ao seu funcionamento.

    A pesquisa parte tambm de uma percepo de que a atuao do Tribunal Superior

    Eleitora

    jurdica e a previsibilidade das regras de disputa eleitoral, fundamental para a configurao

    democrtica de um regime poltico. No Direito Eleitoral, brao estrutural do Direito

    Constitucional, pela atuao da corte sustentada pelo tribunal mximo, parece persistir uma

    prtica jurisdicional de construo da regra pelo Poder Judicirio, sem respeito aos

    precedentes, sem coerncia, sem consistncia e sem unidade.1 Uma mistura pragmtica

    (talvez esquizofrnica) entre commom law e civil law.

    Esse comportamento, de absoluto desrespeito s regras jurdicas e aos princpios

    constitucionais, se revela, paradigmaticamente, na questo da fidelidade partidria. Talvez

    porque as decises tenham sido proferidas quando a pesquisa estava sendo realizada, a criao

    jurisprudencial da hiptese de perda de mandato eletivo por desfiliao partidria sem justa

    causa ocupa um espao privilegiado neste trabalho.

    Simbolicamente, o tema representa o motivo e a importncia desta pesquisa. Ele

    evidencia um protagonismo judicirio sem limites, envolto por argumentos morais subjetivos

    1 A construo do Direito a partir da jurisprudncia caracterstica do common law. Esse sistema se

    diferencia do sistema romano-germnico, ou civil law, por ser, de regra, um direito no codificado e que assim

    confere um maior campo de discricionariedade aos juzes (embora vinculados aos precedentes), por no levar em

    conta a distino entre direito pblico e direito privado nem contar com tribunais distintos para a apreciao de causas envolvendo a Administrao Pblica, pelo papel e pelo prestgio dos juzes como fundamentadores das

    writs e pela

    nfase no princpio acusatrio como orientador da postura do juiz (CAENEGEM, Raoul C. van. I sistemi

    giuridici europei. Traduo: Emmanuela Bertucci. Bologna: Il Mulino, 2003, p. 49-64). Para Pietro Costa, o

    common law se vincula a uma tradio em que o sistema normativo visto como relacionado ordem objetiva

    das coisas, a uma ordem normativa contnua e imemorvel (COSTA, Pietro. Democrazia politica e Stato

    costituzionale

    anglo-saxo o direito mantm maior auton commom

    law (PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Traduo: Ivone C. Benedetti. So Paulo: Martins Fontes,

    2005 [1996], p. 42).

  • 2

    e por uma viso perfeccionista da Constituio e do cidado, um descaso com o texto

    constitucional e com a sua construo democrtica, um desprezo em relao ao Poder

    mudana da sociedade, iniciando uma eterna reforma poltica em face do legislador indolente,

    sem enfrentar o debate pblico na arena parlamentar, formada por representantes de distintas

    correntes ideolgicas, e sem observar o processo constitucional de alterao de seu texto.

    Para tentar justificar seus argumentos, apresenta um conjunto de conceitos ocos,

    leituras falhas, vises distorcidas. Escapa da discusso jurdica central a Constituio no

    prev, embora tenha sido longamente discutido na Assembleia Nacional Constituinte, a perda

    de mandato nesta hiptese e, criativamente, traz figuras como perda de mandato sem carter

    de sano, a renncia tcita, o sacrifcio de direito, a titularidade partidria do mandato, todas

    inadequadas. Dedica-se com mais afinco aos argumentos fticos, a partir de premissas

    completamente equivocadas: aduz que o eleitor vota em partido e no no candidato, que

    decide seu voto pela corrente partidria, que estabelece uma relao com o partido. Nada

    disso se sustenta na realidade brasileira.

    Como o eleitor brasileiro no se ajusta sua leitura especfica do texto constitucional e

    da mentalidade poltica nacional, o Poder Judicirio constri um eleitor padro. Como os

    so, mas 2 E como os filsofos, agora com Plato,

    devem ser os monarcas soberanos, feitos de ouro, capazes de governar com a razo e fazer a

    humanidade melhor: os filsofos devem governar, estabelecer as leis e aplicar a justia.3

    Exatamente o papel que o Poder Judicirio se arvora.

    Mas a tese no sobre a leitura jurisprudencial sobre a fidelidade partidria. Ou no

    apenas sobre isso. O Poder Judicirio, em matria eleitoral, decide sobre outros temas de

    maneira igualmente descompromissada e inconsistente. Deixou de ser uma anedota a

    existncia, em um mesmo tribunal eleitoral e na mesma sesso, de julgamentos sobre questes

    assemelhadas, sempre por unanimidade, mas em sentidos opostos, a partir da distino entre

    os relatores. cotidiano.

    A viso da Justia Eleitoral sobre a autenticidade eleitoral desconcertante. H uma

    preocupao quase obsessiva com o escrutnio e, atualmente, com a identificao do eleitor,

    buscando acabar com as fraudes no momento da votao e na contagem dos votos, custe o que

    2 SPINOZA, Baruch. Tratado poltico. Traduo: Norberto de Paula Lima. So Paulo: cone, 1994

    [1677], p. 23. 3 PLATO. A Repblica

    nicos capazes de alcanar a essncia das coisas, a sabedoria, que est alm do entendimento e muito alm da

    opinio...

  • 3

    custar. Esse desassossego no se repete, no entanto, quanto formao do voto. No obstante

    no a do

    enfraquece o j frouxo ordenamento jurdico eleitoral. Contudo,

    basta prova testemunhal em relao compra de apenas um voto (ainda que por interposta

    pessoa, apesar do comando normativo) ou a alterao de partido (ainda que dentro da

    coligao que disputou a eleio) para a desconsiderao completa da vontade manifestada

    nas urnas.

    No h, tampouco, uma viso adequada sobre a liberdade para o exerccio do mandato,

    marca das democracias representativas. A partir do senso comum, contestada a defesa de tal

    princpio. A alegao que isso implicaria um cheque em branco ao representante. Pois bem,

    para alm das possveis refutaes prticas que se poderia apresentar, trata-se de um princpio

    constitucional. Deriva dos contornos dados ao mandato e relao entre representante,

    partido poltico e eleitorado pelos dispositivos constitucionais estabelecidos. E a liberdade

    deve ser adequadamente compreendida. No h vnculo jurdico entre eleitor e deputado, nem

    obrigaes jurdicas entre eles e entre eles e os partidos; mas h o necessrio respeito s

    regras constitucionais e ao interesse pblico, objetivado no ordenamento jurdico. Nesse

    espao, nem to amplo, nem to livre, que o representante pode atuar sem amarras.

    O sistema eleitoral brasileiro origem de desconfortos e reclamaes. Em nome da

    governabilidade, do absurdo do multipartidarismo, afirma-se ser imperioso afastar a

    representao proporcional e adotar o modelo alemo.4 Ora, em outros tempos, bastaria dizer

    que a adoo do princpio majoritrio para todos os cargos inconstitucional. Em pocas de

    desconsiderao da Constituio, no entanto, outros argumentos so exigidos. E so expostos

    nest

    participao das minorias do debate pblico e nas instituies polticas o . O nmero de

    partidos no caracteriza a democracia, o direito de oposio o faz. Isso deve ser considerado

    na diviso do fundo partidrio, no acesso ao rdio e na televiso e na avaliao de uma

    clusula de desempenho.

    Tanto a legislao eleitoral como as decises judiciais devem ter como fundamento

    tambm o princpio da mxima igualdade na disputa eleitoral, decorrncia do princpio

    4

    do sistema eleitoral brasileiro. Pretende-se importar uma soluo tedesca para uma realidade completamente

    distinta, como um turbante na corte brasileira, na leitura de Celso Antnio Bandeira de Mello (BANDEIRA DE

    MELLO, Celso Antnio. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 1051-1052).

  • 4

    republicano e que impe o afastamento dos fatores irrelevantes na disputa eleitoral. No , ou

    no pode ser, pelo ordenamento constitucional, o poder econmico o fator determinante para

    o sucesso eleitoral. De igual forma o acesso aos meios de comunicao ou a ocupao de

    cargos pblicos. Nesse ponto, vale ressaltar, o texto constitucional presente macula-se de

    inconstitucionalidade: o pargrafo quinto do artigo 14, com a redao dada pela Emenda

    Constitucional 16/97, inconstitucional. Inconstitucionalidade potencializada pela leitura

    respeitosa e tmida do Poder Judicirio em face de sua incoerncia com o pargrafo sexto, que

    impe o afastamento definitivo dos chefes do Poder Executivo para concorrer a outros

    cargos.5 Embora o Supremo Tribunal Federal tenha definido que constitucional, a reeleio

    para os cargos do Poder Executivo ofende a um princpio constitucional a igualdade em

    sua derivao estruturante no mbito eleitoral: a igualdade na disputa eleitoral.

    Outro ponto que impe uma anlise acurada o relativo produo das regras

    eleitorais. Pode-se medir a qualidade da Constituio, como afirma Konrad Hesse, por sua

    capacidade de possibilitar e garantir um processo poltico livre o que se relaciona

    fortemente com a normatizao da disputa eleitoral constituir, de estabilizar, de

    racionalizar, de limitar el poder6 Pois a Constituio o

    faz, ao determinar uma anterioridade especfica para a legislao eleitoral e uma reserva de

    deliberao parlamentar sobre as regras do jogo. Todavia, o Poder Judicirio assim no tem

    compreendido e atua, largamente, a partir de consultas e resolues, na alterao das normas e

    na construo de restries a direitos.

    A partir dessa problemtica, esta pesquisa prope-se apontar princpios constitucionais

    estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro7 a serem utilizados como critrios para a

    verificao da legislao eleitoral e das decises judiciais neste mbito. So cinco os

    princpios constitucionais: o princpio constitucional da autenticidade eleitoral, o princpio

    constitucional da liberdade para o exerccio do mandato eletivo, o princpio constitucional da

    necessria participao das minorias no debate pblico e nas instituies polticas, o princpio

    constitucional da mxima igualdade na disputa eleitoral e o princpio constitucional da

    5 Veja-se a deciso do Supremo Tribunal Federal na medida cautelar da ao direta de

    inconstitucionalidade 1805, julgada em 26 de maro de 1998 e de relatoria do Ministro Jos Nri da Silveira. O

    afastamento do cargo, no prazo por ela definido, como condio para concorrer reeleio prevista no 5 do

    a perda de mandato por infidelidade partidria sem comando constitucional expresso. 6 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Seleo, traduo e introduo: Pedro Cruz

    Villalon. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1992 [1966/1959/1974], p. 21. 7 Compartilha-se da concepo de Alcides Munhoz

    (CUNHA, Alcides Munhoz da. Justia Eleitoral e autenticidade do sistema representativo. Paran Eleitoral,

    Curitiba, n. 33, p. 23-33, jul. 1999).

  • 5

    legalidade especfica em matria eleitoral. A tese aqui apresentada a afirmao destes

    Sero analisados os contedos dos princpios e suas derivaes, em um panorama

    jurdico que pretende dar conta das principais regras eleitorais, relacionando-as com essas

    decises polticas fundamentais e apontando sua adequao ou sua desconformidade. A

    aspirao, talvez bastante exagerada, tentar estabelecer uma costura coerente entre as

    disposies que normatizam a disputa eleitoral, a partir, sempre, das disposies

    constitucionais.

    So, portanto, duas preocupaes que atravessam este texto: trazer elementos para

    8 e buscar elementos para estabelecer uma coerncia das regras jurdicas do jogo

    eleitoral.

    H uma ressalva que precisa preceder o texto: a pesquisa tem como base as escolhas

    realizadas na Assembleia Nacional Constituinte e que passaram a compor o texto

    constitucional brasileiro. Assim, a anlise sobre os princpios constitucionais estruturantes do

    Direito Eleitoral realizada a partir do texto constitucional. No uma construo terica

    com pretenses perfeccionistas. Como Bruce Ackerman ressalta ao tratar da Constituio

    estadunidense,9 esta pesquisa no parte d describir lo

    mejor de todos los mundos posibles

    deliberaes da Assembleia Nacional Constituinte, mesmo que seja possvel pensar em

    escolhas diferentes.

    A pesquisa se coloca, em um momento em que isso pode parecer reacionrio, em uma

    posio de defesa da Constituio de 1988. De resistncia s alteraes formais e informais de

    seu contedo, ao quebrantamento dos seus princpios, ao desprezo pelas decises

    fundamentais e pelo momento constituinte que d origem ao texto, ao pragmatismo dos

    8 Conforme expresso de Paulo Bonavides (BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia

    participativa. So Paulo: Malheiros, 2001, p. 28). 9 Estas respuestas neofederalistas no son las mismas que yo dara si estuviera escribiendo sobre una tabla rasa. En realidad, si solo me interesara por describir el mejor de todos los mundos posibles, no perderia

    prcticas de mis propios ideales polticos (...). Sin embargo, el hecho es que no estoy escribiendo sobre una

    tabla rasa. Como estadunidense que vive durante el bicentenario de la Constitucin, me encuentro rodeado por

    un complejo histrico de smbolos constitucionales y de estructuras institucionales que se originaron en el

    perodo federalista. Nos guste o no, son estos smbolos y estructuras (ninguno de los cuales invent yo) los que

    fijan los trminos de mis propios esfuerzos de comunicacin poltica com mis ciudadanos ACKERMAN,

    Bruce Um neofederalismo? In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.). Constitucionalismo y democracia.

    Traduo: Monica Utrilla de Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Econmica, 1999 [1988], p. 176-216,

    p. 178-179.

  • 6

    Poderes Executivo e Judicirio que desprestigia a Constituio e o Direito, que em geral

    tambm propugna pela reduo do papel do Estado na promoo dos direitos.

    Para que no se compreenda equivocadamente as crticas atuao do Poder

    Judicirio, faz-

    atenha a uma falsa singela subsuno do fato regra e no considere os valores e princpios

    constitucionais. Ao contrrio, deseja-se um magistrado comprometido com as promessas da

    Constituio, com o projeto de sociedade ali proposto. Juzes que atuem, efetivamente, na

    concretizao dos direitos sociais. Um Poder Judicirio que respeite a Constituio, que a

    defenda e a realize, nos termos por ela estabelecidos. O que se recusa, veementemente, um

    ativismo que escolhe onde inovar ainda que diretamente ofensivo ao texto constitucional

    pela repercusso social que as decises possam ter.

    Como ressalva metodolgica, saliente-se que o trabalho de uma pesquisadora, e no

    de quem toma a deciso de estabelecer a regra nem quem decide quando da sua aplicao.10

    Trabalha-se sobre uma construo de princpios que esto, implcita ou explicitamente, no

    texto constitucional. E sobre eles se descreve e se argumenta. Trata-se de um trabalho de

    fundamentao e no de aplicao. No se discutem mtodos de aplicao dos princpios, no

    se debrua longamente sobre a teoria dos princpios, no se trata da compatibilizao entre

    eles.

    No h um marco terico, um autor determinado ou uma escola de pensamento

    especfica que fundamente esta pesquisa. Parte-se do texto constitucional brasileiro e utiliza-

    se, para a construo dos argumentos, uma diversidade de autores, afastados no tempo e no

    espao, que se debruaram sobre ideias de Direito, textos constitucionais, demandas sociais e

    configuraes jurdicas distintas.11

    Ao lado disso, so utilizados autores que por vezes partem de outra realidade e que

    fazem a defesa de instituies a partir de diferentes premissas. Suas categorias e conceitos

    so, portanto, instrumentalizados, apropriados e costurados entre si com liberdade e com certa

    10 Me parece que no es menester aclarar y repetir que escribo como investigador y no como quien

    decide, aunque es muy difcil para muchos distinguir entre comprobar lo que es y aprobar, o desaprobar, lo que puede llegar a ser. Es cierto que quien ensea poltica tiene que prepararse ante protestas u oposiciones. Ahora

    bien, quien me contradiga, que intente criticar mis conocimientos y competencia, antes que mis convicciones

    JELLINEK, Georg. Reforma y mutacin de la Constitucin. Traduo: Christian Frster. Madrid: Centro de

    Estudios Constitucionales, 1991 [1906], p. 4. 11

    os

    preocupamos, nesse sentido, com a coerncia limitadora; ao contrrio, faremos uso da contribuio de autores

    que, considerados sob uma tica orgnica e totalizadora, so inconciliveis. que arriscamos o uso de parte do

    universo conceitual deste autor, CLVE, Clmerson Merlin. Temas de

    Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). So Paulo: Acadmica, 1993, p. 185.

  • 7

    transcendncia. Essa postura harmoniza com a inveno paulatina do tema, com suas

    descobertas dirias e suas refundaes episdicas.

    Vale ressaltar, ainda, que a tese consiste, de fato, na segunda parte do trabalho, com o

    elenco e o desenvolvimento dos princpios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral

    brasileiro. A primeira parte, que trata das premissas legitimatrias, formada por um conjunto

    de quase resenhas, sobre temas fundamentais do Direito Constitucional e da teoria poltica,

    pressupostos do desenvolvimento dos princpios constitucionais estruturantes do Direito

    Eleitoral. Embora sejam questes de absoluta importncia, no compem o objeto central da

    tese. Por conta disso, h uma seleo bastante arbitrria do enfoque e dos autores trabalhados,

    permitindo apenas a instrumentalizao de conceitos e categorias utilizados na segunda parte.

    Assim, a insuficincia do tratamento dos assuntos evidente apenas indicam a base terica

    da qual se parte para a anlise do texto constitucional brasileiro.

  • 8

    PARTE I

    PREMISSAS LEGITIMATRIAS DOS PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS

    ESTRUTURANTES DO DIREITO ELEITORAL BR ASILEIRO

    A construo da anlise dos princpios estabelecidos pela Constituio, implcita ou

    explicitamente, como estruturantes do Direito Eleitoral brasileiro, exige colocar em evidncia

    suas premissas. Para permitir a avaliao da conformidade da descrio e do desenvolvimento

    desses princpios, faz-se necessrio expor alguns entendimentos pressupostos linha de

    pensamento percorrida.

    O elenco dos princpios apresentados na segunda parte do trabalho fundamenta-se em

    determinadas concepes e s a partir delas pode ser compreendido. Nessa primeira parte,

    pretende-se inicialmente evidenciar a noo de democracia que se acredita ter sido

    incorporada na Constituio, o tratamento constitucional dado representao poltica e o

    significado sempre complexo do ideal republicano trazido pelo texto de 1988. Em seguida,

    sero analisados com brevidade os princpios estruturantes do Estado brasileiro, a tenso entre

    constitucionalismo e democracia e, ainda, o alcance de decises tomadas por intangveis

    quando da elaborao da Constituio.

    Conforme sublinhado na apresentao desse trabalho, as anlises desenvolvidas nesta

    primeira parte tm a extenso de pequenas resenhas, ainda que tratem de temas vastos da

    teoria poltica e da teoria constitucional. No se busca construir uma nova teoria sobre essas

    questes nem se pretende apresentar uma leitura original de sua problemtica. Trata-se,

    singelamente, de expor os conceitos implicados na elaborao dos argumentos expostos na

    segunda parte do trabalho. Assim, no sero esgotados os assuntos e nem sero trazidos todos

    os autores relevantes. Em um recorte pessoal e arbitrrio, sero apresentadas algumas ideias

    que, para a pesquisa, se apresentam adequadas Constituio brasileira.

    Antes, no entanto, impe-se evidenciar o que se comprende por princpios.

    As decises constituintes que estruturam o Estado se revelam como valores, como

    princpios ou como regras constitucionais. Faz-se necessria uma compreenso de

    Constituio como um conjunto de valores, princpios e regras, que conformam o

    ordenamento jurdico e a vida em sociedade, com fora normativa e concepo democrtica.

    Os valores constitucionais se evidenciam no prembulo e nos primeiros artigos da

    Constituio: a justia, a liberdade, a igualdade, a dignidade, a segurana, o bem comum, o

    desenvolvimento, a solidariedade, o pluralismo e a garantia do exerccio dos direitos sociais e

  • 9

    individuais. Esses fins formam o escopo da atuao dos poderes pblicos e devem informar

    tambm as relaes privadas.

    Embora os valores se manifestem em termos bastante abertos, fluidos, isso no leva

    sua superfluidade. Ainda que, de incio, no se possa afirmar exatamente o que signifiquem,

    nem se possa retirar deles uma conduta determinada, o significado dos termos limita, ao

    menos negativamente, o agir dos rgos de soberania. Alm disso, esses fins ltimos so

    traduzidos em princpios constitucionais, que definem a ao ou o juzo.

    Gustavo Zagrebelsky afirma que o princpio orienta normativamente a ao ou o juzo,

    sendo seu critrio de validade, exigindo um clculo de adequao que torna a ao ou o juzo

    previsveis, ao menos em sua direo.12

    So enunciados normativos, e embora apresentem

    uma textura aberta, no permitem o arbtrio do intrprete, que est vinculado a vontades da

    Constituio, do constituinte preexistentes reveladas pelos valores constitucionais.13

    A eleio de valores pelo constituinte, e sua eventual concretizao por princpios

    densificadores e regras, no deve ser ignorada sob pena de a atuao do leitor e aplicador da

    Constituio esvair-se de legitimidade.14

    Os valores constitucionais se condensam em princpios constitucionais,15

    dando aos

    fins um sentido especfico, apresentando um feixe de possibilidades e excluindo determinados

    meios. Valores e princpios atuam de maneira distinta na efetivao do Direito.

    Enquanto os valores servem como baliza para a interpretao de uma norma e para o

    desenvolvimento legislativo, os princpios esto ao alcance do legislador e do juiz, se inexiste

    regra especfica. Ao legisla

    dos valores positivados. No entanto, em relao aos princpios, o leque de opes do

    12 La massima del principio : agisci in ogni situazione concreta che ti si presenta in modo che nella tua

    (ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori,

    principi o regole? (a proposito della dottrina dei principi di Ronald Dworkin). Quaderni Fiorentini per la storia

    del pensiero giuridico moderno, Firenze, t. 1, n. 31, p. 865-897, 2002, p. 873). 13 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. So Paulo: Max Limonad,

    2003, p. 143. 14 No se ignoram as opes valorativas inerentes ao processo de aplicao do direito, ainda que

    determinado por regras, em virtude da textura aberta da linguagem (NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y

    Poltica: Una revisin de la teora general del Derecho. Barcelona: Ariel, 1994, p. 87-100). O que no pode ser admitido a substituio dos valores plasmados na Constituio por valores subjetivos, mascarados de

    argumentos tcnicos ou de uma concepo pessoal de justia. No se nega, tampouco, o carter constitutivo da

    interpretao do Direito (GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988. 11. ed. So Paulo:

    Malheiros, 2006, p. 163), embora se reconhea a necessidade de respeitar as opes do constituinte e do

    legislador democrtico. 15

    ordenamento jurdico como um todo considerado. Do contrrio, com o tempo, fragiliza-se a prpria vontade da

    CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributrio. 25. ed. rev., ampl. e

    atual. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 54).

  • 10

    legislador reduzido, pois as regras que podem ser abarcadas pela projeo normativa esto

    delineadas (mas no pr-determinadas) pelo significado do enunciado principiolgico. O juiz

    pode acessar diretamente o princpio, projetando-o normativamente, quando no h

    desenvolvimento legislativo que apresente uma regra para o caso em apreciao.16

    Os princpios so concretizados pelo legislador ou pelo juiz, no pela criao de um

    direito novo, mas pela derivao de comandos normativos especficos a partir do leque de

    possibilidades estabelecido pelos prprios princpios. A preferncia para a concretizao, no

    entanto, do legislador, e sempre h um contedo mnimo a ser respeitado.

    Essa distino entre valores e princpios precisa ser mais esclarecida. Para Manuel

    Aragon, os valores no estabelecem, no predizem o contedo da sua projeo normativa. J

    frmulas de derecho fuertemente condensadas que albergan en su seno

    indicios o grmenes de reglasLas reglas derivadas de un principio estn indeterminadas

    en l, p

    discricionariedade do legislador, mas no pode inventar uma regra jurdica, embora possa

    - .17

    As regras tambm orientam aes e decises, mas indicam uma consequncia jurdica

    determinada. Derivam dos princpios como esses dos valores, em uma relao de inferncia.18

    A regra deve remeter-se a um princpio para sua justificao; caso seja contrria a um

    princpio, antes de incon

    19

    A compreenso exposada pela pesquisa no se coaduna com a viso de Robert Alexy e

    de Ronald Dworkin em relao teoria dos princpios. A viso de que o princpio se

    diferencia da regra porque essa se aplica segundo uma lgica do tudo ou nada20

    ou porque o

    16 ARAGN, Manuel. La eficacia jurdica del principio democrtico. Revista Espaola de Derecho

    Constitucional, Madrid, a. 8, v. 24, p. 9-45, sep./dec. 1985, p. 26. 17 Ibid., p. 28. 18 La regola che vieta la tortura presuppone il principio

    E,

    mais enfaticamente, afirma que a congruncia entre valores-princpios-regras constitutiva da validade do

    ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori, principi o regole? (a proposito della dottrina dei principi di Ronald Dworkin). Op. cit., p. 877).

    ESPNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princpios

    constitucionais. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 75). 19 ZAGREBELSKY, Gustavo. Diritto per: valori, principi o regole? (a proposito della dottrina dei

    principi di Ronald Dworkin). Op. cit., p. 877. 20 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. Traduo: Jefferson Luiz Camargo. So Paulo:

    -ou-

    e dos princpios no decorrem automaticamente consequncias jurdicas (p. 36 e 39-40). Na leitura de

  • 11

    princpio configura um mandado de otimizao21

    no corresponde viso aqui compartilhada

    da funo dos princpios. Pela leitura de Alexy e Dworkin, o comando constitucional

    constante no artigo 5, XXXIX no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem

    prvia cominao legal configuraria regra: no h possibilidade de sua aplicao ser

    , e sua lgica de obedincia ou desrespeito ao comando. Na

    leitura aqui desenvolvida, o dispositivo normativo corresponde a um princpio, que deriva de

    um valor (a liberdade) e estrutura todo o desenvolvimento das regras jurdicas que a ele se

    vinculam (o Direito Penal, no exemplo apresentado).

    H, portanto, uma noo distinta de princpio que perspassa esta pesquisa.22

    Nesta

    perspectiva no h conflito entre os princpios, pois seu significado e seu alcance so

    determinados concomitantemente, a partir do significado e do alcance dos demais. E os

    princpios so o fundamento do sistema jurdico.

    direito sem princpios. As simples regras jurdicas de nada valem se no estiverem apoiadas

    os princpios constitucionais so intangveis, so inalcanveis at

    pelo poder de reforma da Constituio.23

    Para Ataliba, os princpios qualificam a ordenao

    jurdica, dando comunidade estatal uma determinada fisionomia poltico-social.24

    Assim

    tambm em Celso Antnio Bandeira de Mello, os princpios, sobre serem normas, conferem a

    normatividade expressa na totalidade do sistema

    limites ao poder (PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Op. cit., p. 329 e 336-337). Herbert L. A.

    Hart critica a viso de Dworkin, afirmando que a regra nunca traz todos os elementos par

    As regras no funcionam na lgica do tudo ou nada, pois podem ser afastadas apenas em um caso concreto, sem perder sua validade (HART, Herbert L. A. Ps-escrito. In:_____. O conceito de Direito. 4. ed. Traduo: A.

    Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005 [1994], p. 299-339, p. 320 e ss). 21 principles are norms requiring that something be realized to the greatest extent possible,

    given the factual and legal possibilitiesALEXY, Robert. Balancing, constitutional review, and representation.

    International Journal of Constitutional Law, New York, n. 3, p. 572-581, 2005, p. 573; ALEXY, Robert. Teora

    de los Derechos Fundamentales. Traduo: Ernesto Garzn Valds. Madrid: Centro de Estudios

    Constitucionales, 1997 [1986]). A efetivao dos princpios, conforme sua compreenso esposada neste trabalho,

    22 A noo de princpio, neste trabalho, aquela apontada tradicionalmente pela literatura jurdica

    brasileira, como afirma Lus Virglio Afonso da Silva (SILVA, Virglio Afonso da. Princpios e regras: mitos e

    equvocos acerca de uma distino. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 1, p. 607-630, jan./jun. 2003, p. 612). O autor assinala as diferenas entre as concepes de Alexy e Dworkin e a

    compreenso aqui compartilhada e utiliza o mesmo exemplo da legalidade em matria penal. 23 ATALIBA, Geraldo. Mudana da Constituio. Revista de Direito Pblico, So Paulo, n. 86, p. 181-

    a Constituio (REIS, Sebastio Alves dos. Comentrios sobre princpios constitucionais fundamentais. In:

    VELLOSO, Carlos Mrios da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do (Coords.).

    Princpios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins.

    So Paulo: Lex, 2005, p. 929-936, p. 936). 24 ATALIBA, Geraldo. A lei complementar na Constituio. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p.

    23.

  • 12

    direo do sistema jurdico e quem o ofende ou desconsidera na interpretao de uma norma

    25

    Todos os princpios constitucionais estruturantes, gerais e setoriais, esto para alm da

    possibilidade de sua alterao pelos poderes constitudos. Em seu conjunto, tais princpios do

    identidade Constituio e alter-los implica modificar a essncia da Constituio.

    Afastando-os ou reduzindo-os, a Constituio passa a ser outra.

    Entre as funes dos princpios, destaca Romeu Felipe Bacellar Filho, est a

    26

    No h mais questionamento sobre a normatividade dos princpios jurdicos no

    chamado ps-positivismo.27

    So normas jurdicas, que identificam valores ou fins, revelando

    um contedo axiolgico ou uma deciso poltica, como afirmam Lus Roberto Barroso e Ana

    Paula de Barcellos.28

    O sistema jurdico um sistema aberto de regras e princpios, todos dotados de

    normatividade.29

    Os princpios informam a leitura adequada das normas jurdicas.30

    So eles

    31

    32 Os princpios tm eficcia direta (incidncia imediata sobre o

    caso), eficcia interpretativa (do o sentido e o alcance do significado possvel das normas

    25 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Consideraes em torno dos princpios hermenuticos.

    Revista de Direito Pblico, So Paulo, n. 21, p. 141-147, jul./set. 1972, p. 144. Assim tambm a posio de

    todas as direes para as quais prete

    do bem de todos. In: VELLOSO, Carlos Mrios da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos

    Rodrigues do (Coords.). Princpios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva Martins. So Paulo: Lex, 2005, p. 989-998, p. 994). 26 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Reflexes sobre Direito Administrativo. Belo Horizonte: Frum,

    2009, p. 23. Andr Ramos Tavares tambm acentua a funo dos princpios como vetores da interpretao

    (TAVARES, Andr Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed, rev. e atual. So Paulo: Saraiva, 2007, p.

    100). 27 ESPNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princpios constitucionais. Op. cit., p. 75 28 BARROSO, Lus Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da histria. A nova interpretao

    constitucional e o papel dos princpios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Lus Roberto (Org.). A nova

    interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Renovar,

    2006, p. 327-378, p. 340. 29 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1085. 30 Gustavo Zagrebelsky afasta a compreenso do positivismo tradicional que atribui aos princpios apenas

    contradio de destinar s normas de maior densidade de contedo os princpios uma funo puramente

    acessria da que desempenham as normas cuja densidade menor as regras (ZAGREBELSKY, Gustavo.

    El derecho dctil: Ley, derechos, justicia. 7. ed. Traduo: Marina Gascn. Madrid: Trotta Editorial, 2007

    [1992], p. 117). 31 BARROSO, Lus Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporneo. So Paulo: Saraiva, 2009,

    p. 209. 32 GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988. Op. cit., p. 167.

  • 13

    jurdicas) e eficcia negativa (afastam a aplicao de normas em desconformidade com seu

    comando.33

    A questo sobre a concretizao dos princpios, pela determinao do seu significado e

    de seu alcance, encontra-se no centro da tenso entre democracia e jurisdio constitucional.34

    Ainda que no se possa negar a necessidade de reservar ao Poder Judicirio a capacidade de

    dar um contedo concreto aos princpios para sua aplicao a um caso concreto (sob pena de

    enfraquecer a normatividade dos princpios), deve-se reconhecer a primazia do consenso

    democrtico na concretizao dos princpios, quando do seu adequado e consistente

    desdobramento em outros princpios e em regras constitucionais e infraconstitucionais.

    Os princpios podem se configurar como princpios jurdicos fundamentais, princpios

    polticos constitucionalmente conformadores, princpios constitucionais impositivos e

    princpios-garantia.

    valor

    nucleares. Neles esto includos os princpios definidores da forma de Estado, os princpios

    estruturantes do regime poltico e os princpios caracterizadores da forma de governo e da

    organizao poltica, e, entre esses, os princpios eleitorais. Os princpios so densificados por

    princpios constitucionais gerais e estes por princpios constitucionais especiais, que so, por

    sua vez, densificados por regras. Assim, segundo Jos Joaquim Gomes Canotilho, o princpio

    democrtico condensado pelos princpios da soberania popular, da separao e

    interdependncia dos rgos de soberania, da participao democrtica dos cidados e do

    sufrgio universal. Este ltimo princpio

    da liberdade de propaganda, igualdade de oportunidades e imparcialidade nas campanhas

    35

    O princpio democrtico se relaciona com o direito de sufrgio, e este se conforma

    pelos princpios da universalidade (em relao ao voto e elegibilidade), da imediaticidade36

    (o cidado d a primeira e a ltima palavra), da liberdade de voto (que tambm se revela no

    33 BARROSO, Lus Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporneo. Op. cit., p. 318-320. 34 Tenso invencvel (definitivamente, mas que exige respostas provisrias) de uma oposio inconcilivel, segundo Vera Karam de Chueiri (CHUEIRI, Vera Karam de. O discurso do constitucionalismo:

    governo das leis versus governo do povo. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (Org.). Direito e discurso: discursos

    do direito. Florianpolis: Fundao Boiteux, 2006, p. 161-171, p. 169-170). 35 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Op. cit., p.

    1090-1100. 36 Canotilho analisa o abandono do partido pelo representante sob o princpio da imediaticidade,

    apresentando argumentos nos dois sentidos, sem defender nenhum deles: a favor da manuteno do mandato, o

    princpio da representao (o deputado representante do povo e no os partidos e pode ser, no sistema

    portugus, um candidato independente) e a favor da perda de mandato, a renncia ftica ao mandato por parte do

    representante que abandona o partido (Ibid., p. 295).

  • 14

    princpio do voto secreto), da igualdade de voto (mesmo peso e mesmo valor de resultado37

    ),

    da periodicidade e da unicidade.38

    Manuel Aragon ressalta que todo o Direito principialista, mas o Direito

    Constitucional o mais fortemente, por conta de seu carter genrico e seu lugar central, que

    faz com que seus princpios fundamentais sustentem os demais ramos do Direito.39

    Tal compreenso dos princpios e do carter principiolgico da Constituio e do

    ordenamento jurdico no combina com uma concepo puramente procedimental da

    Constituio: impe-se o reconhecimento de uma dimenso fortemente material aos

    princpios constitucionais.40

    Cabe ressaltar ainda que a Constituio contm espaos para a conformao do

    legislador. Em algumas matrias, o texto constitucional traz apenas grandes linhas, deixando

    propositalmente questes para serem debatidas e decididas posteriormente na esfera

    democrtica. Alm disso, a utilizao de conceitos abertos permite a adaptao da

    Constituio s mudanas sociais.41

    establece, con carcter

    vinculante, lo que no debe quedar abierto

    princpios reitores, a estrutura estatal, as competncias de seus rgos e o procedimento para a

    tomada de decises. Isso se considera decidido, fora do alcance do debate poltico.42

    Esse desenho do que a Constituio insere no debate democrtico e o que ela estabiliza

    a partir da definio constituinte estabelece os contornos da questo entre o

    constitucionalismo e a democracia.

    37 Nesse ponto, Canotilho proclama a tendencial desigualdade do sistema majoritrio quanto ao valor de

    resultado dos votos, alm de afirmar que o princpio da igualdade de voto afasta a possibilidade de adoo de

    .

    297). 38 Ibid., p. 294-298. 39 ARAGON, Manuel. La eficacia jurdica del principio democrtico. Op. cit., p. 14. 40 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. [Anais de teleconferncia]. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de

    Miranda (Org.). Canotilho e a Constituio dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 24-25. 41 HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Op. cit., p. 18. 42 Ibid., p. 19.

  • 15

    1 A CONSTITUIO DE 1988 CONSAGRA UM ESTADO DE DIREITO

    FUNDADO NO PRINCPIO DEMOCRTICO E NO IDEAL REPUBLICANO

    Para sustentar a afirmao de que a Constituio de 1988 estabelece um Estado de

    Direito de cunho democrtico e republicano, vale trazer algumas noes sobre a ideia de

    Constituio, tomada aqui, simultaneamente, como deciso poltica fundamental43

    e como

    norma jurdica de hierarquia suprema.44

    Segundo a teoria do poder constituinte e suas fices, a Constituio funda o Estado,

    estabelecendo desde o incio, ab ovo, uma configurao poltica a partir da organizao do

    poder e de sua limitao, por meio da garantia de direitos, da estrutura dos rgos de

    soberania e da determinao de fins a serem perseguidos tanto pelas autoridades estatais como

    pela sociedade.45

    A noo de Constituio se vincula indissociavelmente noo de liberdade e de

    liberdades. Sua formulao por um documento solene, escrito e protegido contra alteraes

    cotidianas, revela a inteno de proteo de um conjunto de direitos e garantias, bem como o

    estabelecimento da organizao e do funcionamento do Estado.

    Maurizio Fioravanti aponta os distintos modelos tericos adequados s Constituies

    que derivaram das Revolues Francesa e dos Estados Unidos e, posteriormente, do

    desenvolvimento da noo de Estado de Direito na Europa. Enquanto na primeira pensava-se

    a liberdade por uma doutrina individualista, estatalista e anti-historicista, na segunda a

    doutrina combinava elementos individualistas, historicistas e antiestatalistas. O Estado de

    Direito, pensado a partir do sculo XIX, afasta o elemento individualista, com a combinao

    de estatalismo e historicismo.46

    O historicismo pressupe um pensamento sobre as liberdades que parte da fora

    imperativa dos direitos, confirmados pelo tempo, pela histria, que ficam para alm da

    vontade poltica contingente. A finalidade da associao poltica est na proteo das posies

    43 SCHMITT, Carl. Constitucional Theory. Traduo: Jeffrey Seitzer. Chicago: Duke University Press,

    2008 [1928], 3. 44 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo: Lus Carlos Borges. So Paulo:

    Martins Fontes, 2000 [1945], primeira parte, captulo X. 45 Para Maurice Hauriou, a formao da Constituio vem da virtude jurdica do poder constituinte,

    combinada com a liberdade dos sditos e com uma ideia hay una fundacin del poder, que realiza una

    idea objetiva y del cual se han apoderado los ciudadanos en condiciones tales que la fundacin no es revocable

    y que el poder no est ligado por su propia voluntad, sino por la de los sbditos y por el ascendiente de la idea

    objetiva HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Pblico y Constitucional. 2. ed. Traduo: Carlos Ruiz

    del Castillo. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1927, p. 19). 46 FIORAVANTI, Maurizio. Appunti di storia delle costituzioni moderne. Le libert fondamentali. 2. ed.

    Torino: G. Giappichelli, 1995, p. 17.

  • 16

    adquiridas historicamente, sem que haja a possibilidade de estabelecer ignorando os direitos

    histricos posies jurdicas iniciais, a partir de um acordo de vontades. Essa concepo no

    se coaduna com uma noo plena de poder constituinte. Segundo o autor, o modelo

    individualstico coloca o indivduo como o titular dos direitos, e tem as constituies como

    instrumentos para garantir esses direitos e as liberdades individuais. A lei do Estado a nica

    autoridade reconhecida, pensada a partir do contratualismo. A limitao dos direitos

    individuais se coloca a partir dos demais direitos individuais e no de uma demanda social. O

    poder constituinte aparece como originrio e fundamental. Finalmente, o estatalismo v o

    Estado como condio de nascimento dos direitos e das liberdades. O pacto substitui o

    contrato e o Estado, que se origina desse pacto, tomado como absolutamente necessrio para

    a existncia do corpo poltico. O poder e a liberdade nascem juntos, no se contrapem.47

    As combinaes entre os elementos refletem a concepo de liberdade e de direitos, a

    noo de Estado e de Constituio. O contedo das constituies d pistas desses modelos e

    de sua incorporao. O constitucionalismo contemporneo, compreendido a partir da

    Revoluo dos Estados Unidos, com o estabelecimento de um texto normativo de hierarquia

    superior em forma de um documento solene, tem como contedos necessrios aspectos

    relacionados limitao e organizao do poder e dos rgos de soberania, com a construo

    de um Estado cuja ao est vinculada ao Direito.

    Eduardo Garca de Enterra acentua que a noo de Constituio se origina, na

    Revoluo Francesa e na Revoluo dos Estados Unidos, com um contedo definido e a partir

    de determinados pressupostos. Sua existncia, segundo o artigo 16 da Declarao dos Direitos

    do Homem e do Cidado,48

    est vinculada garantia dos direitos individuais e separao

    dos poderes, e sua origem deve ser popular ou comunitria.49

    Esse sentido perde-se durante quase todo o sculo XIX. A origem e o contedo no

    como una mera exigencia lgica de la

    unidad del ordenamiento alquer poca e em qualquer regime. O

    conceito se formaliza e se torna abstrato.50

    A indispensabilidade de determinados contedos,

    no entanto, parece ressurgir na segunda dcada do sculo XX, com a compreenso de um

    Estado vinculado a determinadas tarefas, impostas pelo texto constitucional.

    47 Ibid., p. 18-28, 28-41 e 41-49. 48

    separao dos poderes no tem Constitui 49 GARCA DE ENTERRA, Eduardo. La Constitucin como norma y el Tribunal Constitucional.

    Madrid: Civitas, 1983, p. 41. 50 Ibid., p. 42-43.

  • 17

    Maurice Hauriou aponta trs elementos da ordem constitucional as ideias morais,

    polticas e sociais; o Direito da Constituio; e a organizao constitucional dos poderes e

    trs crenas constitucionais, crenas poltico-morais que so a fora do sistema constitucional:

    a ordem individualista (que limita inclusive a soberania do Estado e tem como princpio que

    cada cual viva su vida, con sus riesgos y peligros; a doutrina do poder (que o divide em

    poder minoritrio, relacionado com a elite poltica e com as instituies, e poder majoritrio,

    que extrai sua legitimidade da eleio popular); e a liberdade poltica (concebida como

    participao dos cidados no poder e no emanao de todos os poderes da nao).51

    A Constituio, para Karl Loewenstein, deve conter a diviso das tarefas estatais em

    diferentes rgos, um mecanismo de cooperao entre os detentores de poder e um para

    resolver os impasses entre estes (relacionado soberania popular no constitucionalismo

    democrtico), um mtodo de adaptao s mudanas sociais; e o reconhecimento expresso de

    uma esfera de autodeterminao individual, com garantias para sua proteo.52

    Georges

    Burdeau acentua as regras de designao dos governantes previstas no texto constitucional,

    que conformam a legitimidade dos governantes, instituem sua autoridade e determinam sua

    competncia.53

    Com a configurao de um modelo de Estado que traz como finalidade a reduo das

    desigualdades sociais, a Constituio passa a incorporar outros elementos, relacionados

    garantia de direitos de igualdade. A partir dessa compreenso, no cabe dissociao entre os

    54 pois os

    elementos dessa frmula definidora so inter-relacionados e se definem mutuamente.

    A Constituio brasileira de 1988 traz, em seu conjunto de decises polticas

    fundamentais, os contornos do Estado e da democracia. Estabelece a diviso das tarefas do

    Estado, os direitos e as garantias individuais, a previso de sua modificao dentro de

    determinados limites e as regras para a legitimao do exerccio do poder poltico. Alm

    disso, o texto constitucional apresenta as posies polticas constitutivas,55

    que configuram os

    51 HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Pblico y Constitucional. Op. cit., p. 12-15, 49, 113, 187 e

    203. Para o autor, o poder minoritrio limita o poder majoritrio, exceto na atuao revolucionria deste,

    vinculada legtima defesa, direitos de resistncia opresso e de insurreio e direitos de resistncia ativa (p. 204-209). 52 LOEWENSTEIN, Karl. Teora de la Constitucin. Traduo: Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed.

    Barcelona: Ariel, 1976 [1961], p. 153-154. Para o autor, o constitucionalismo representa a exigncia de

    responsabilidade do governo (p. 71). 53 BURDEAU, Georges. Derecho constitucional e instituciones polticas. Traduo de Ramn Falcn

    Tello. Madrid: Editora Nacional, 1981 [1977], p. 79 e 91. 54 ARAGN, Manuel. La eficacia jurdica del principio democrtico. Op. cit., p. 9-45. 55 Ronald Dworkin refere-se noo de teoria poltica compreensiva como um conjunto sistemtico de

    posies polticas concretas e abstratas, formada por posies polticas constitutivas (valoradas em si mesmo,

    que podem ser matizadas em face de outra posio poltica constitutiva) e posies polticas derivadas (que so

  • 18

    contornos do Estado e da concepo de democracia e de repblica, no prembulo56

    e no artigo

    1.57

    Assim, estabelece o Estado de Direito como fundamento da cidadania contempornea,

    uma noo de democracia, uma concepo de representao poltica, indicando os contornos

    dessa relao, e um ideal republicano, a partir de uma forte noo de liberdade e de igualdade,

    com a assuno de direitos e deveres de cidadania.58

    Para Paulo Bonavides, a Constituio

    portanto, 59

    Trata-se de um Estado de Direito qualificado, que no se harmoniza com qualquer

    contedo legal. Os poderes pblicos e os particulares se submetem lei regularmente

    elaborada, mas desde que observados os valores e princpios constitucionais,

    substancialmente considerados. Como afirma Luigi Ferrajoli, essa dimenso qualificada do

    Estado de Direito importa, tambm, em uma alterao da natureza da democracia, que passa a

    ser limitada e completada pelos direitos fundamentais.60

    Com Jrgen Habermas, o Estado constitucional democrtico configura-se como uma

    ordem desejada pelo povo e legitimada pela sua livre formao de opinio e de vontade, que

    permite aos destinatrios da ordem jurdica se verem como seus autores. A atuao estatal no

    cumprimento de suas tarefas constitucionais, buscando pelo direito dar conta da desigualdade

    ftica, permite a efetivao igualitria dos direitos. E a amplitude dessa atuao elastece a

    meios para atingir as posies polticas constitutivas, e que podem ser protegidas e absolutas). DWORKIN,

    Ronald. Liberalismo, Constitucin y Democracia. Traduo: Julio Montero y Alfredo Stolarz. Buenos Aires: La

    isla de la luna, 2003 [1980/1990], p. 12-15, nr 1. 56

    um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade

    fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e

    internacional, com a soluo pacfica das controvrsias, promulgamos, sob a proteo de Deus, a seguinte

    57

    do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II -

    a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o

    pluralismo poltico. Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes

    58 democracia

    tem no seu cerne o anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que ela, e portanto um regime do desejo, a repblica tem no seu mago uma disposio ao sacrifcio, proclamando

    democracia quando o povo se responsabiliza por suas decises, o que exige um forte componente republicano.

    RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus Repblica: a questo do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO,

    Newton (Org.). Pensar a Repblica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 13-25, p. 18 e 21-22. 59 BONAVIDES, Paulo. Jurisdio constitucional e legitimidade (algumas observaes sobre o Brasil). In:

    FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Orgs.). Estudos de Direito Pblico em homenagem a Celso

    Antnio Bandeira de Mello. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 520-549, p. 520. 60 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Traduo: Pilar Allegue. In:

    CARBONELL, Miguel (ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29, p. 19.

  • 19

    possibilidade de autolegislao democrtica, intensificando a capacidade de autoconduo da

    sociedade.61

    A Constituio passa a incorporar um projeto de ordem poltica, social e jurdica, que

    virtude da afirmao de um 62

    No se trata, no entanto, de plasmar no texto constitucional um ideal de vida boa e impor aos

    cidados. H, republicanamente, a escolha de valores objetivos, que permite que o indivduo

    possa realizar seus projetos e levar a sua vida, desde que no impea os demais sujeitos de

    igualmente o fazerem.63

    A Constituio deve assegurar a garantia dos direitos fundamentais de qualquer

    pessoa, indo alm da representao de uma pretensa vontade geral ou de um segmento dela.64

    Como aponta Luigi Ferrajoli, a Constituio serve para garantir o direito de todos, at mesmo

    diante da vontade popular, para assegurar a convivncia entre interesses diversos em uma

    sociedade heterognea.65

    61 HABERMAS, Jrgen. A constelao ps-nacional e o futuro da democracia. In:_____. A Constelao

    ps-nacional. Ensaios polticos. Traduo: Mrcio Seligmann-Silva. So Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 75-142.

    alidao normas que

    -

    se condies para o discurso: o acordo deve ser motivado por razes epistmicas, no pode haver coao na

    aceitao das consequncias presumveis e dos efeitos secundrios, todos devem poder apresentar seus argumentos e a argumentao deve ser dar de maneira honesta (HABERMAS, Jrgen. Uma viso genealgica do

    teor cognitivo da moral. In:_____. A Incluso do outro: Estudos de teoria poltica. Traduo: Paulo Astor Soethe

    e George Sperber. So Paulo: Loyola, 2004 [1996], p. 13-62, p. 49 e 58-

    fundamento da tica discursiva habermasiana tem em conta que somente interesses universalizveis podem

    servir de base para a justificao de normas. A tica discursiva parte do suposto de que as normas so

    racionalmente validveis. So vlidas as normas sobre as quais h consenso, obtido por meio do discurso prtico.

    No se trata, no entanto, de qualquer forma de consenso. Ser fundado o consenso obtido nos termos do critrio

    LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurdica da libertao: paradigmas da filosofia

    da libertao e direito alternativo. Florianpolis: Conceito Editorial, 2006, p. 110-111). 62 PALOMBELLA, Gianluigi. Filosofia do Direito. Op. cit., p. 181. 63 Para Emerson Gabardo, a Constituio de 1988 traz um ideal de vida boa, relacionado felicidade dos indivduos e garantido por uma srie de dispositivos constitucionais, como o que prev o salrio mnimo e a

    prestao de servios pelo Estado. Esse ideal, no entanto, no ofende a liberdade do indivduo, pois se baseia em

    conceitos e valores objetivos (GABARDO, Emerson. Interesse Pblico e Subsidiariedade: o Estado e a

    Sociedade Civil para alm do bem e do mal. Belo Horizonte: Frum, 2009, p. 325-372). 64 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Princpios constitucionais fundamentais uma digresso

    prospectiva. In: VELLOSO, Carlos Mrios da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do

    (Coords.). Princpios constitucionais fundamentais. Estudos em homenagem ao professor Ives Gandra da Silva

    Martins. So Paulo: Lex, 2005, p. 327-342, p. 333. 65 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Traduo: Pilar Allegue. In:

    CARBONELL, Miguel (Ed.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29, p. 28.

  • 20

    1.1 UMA NOO DE DEMOCRACIA ADEQUADA CONSTITUIO DE 1988

    A Constituio brasileira de 1988 traz uma concepo de democracia, com contornos

    singulares, que se marca profundamente pelas noes de liberdade e igualdade, pela soberania

    popular e pelo pluralismo poltico. No descura do ideal republicano, da noo de interesse

    pblico e da responsabilidade dos cidados pelas decises polticas, tomadas diretamente ou

    pela atuao dos representantes.

    A democracia na Constituio, ressalta Carlos Ayres Britto, princpio, meio e fim.

    Como princpio, est revelada no artigo 1.66

    Sua instrumentalizao reside no artigo 2.67

    Seu

    fim, seu escopo, resta no artigo 3 da Carta.68

    valor continente, que repassa seu contedo

    para as demais normas constitucionais. 69

    A partir do desenho constitucional, pode-se combinar na apreciao da democracia

    brasileira as noes de Ronald Dworkin e de Carlos Santiago Nino. Para Dworkin,70

    a

    democracia exige, em primeiro lugar, tratamento dos cidados com igual respeito e

    considerao e a possibilidade de que cada um tenha seus juzos prprios de moralidade

    pessoal. A democracia implica uma ao coletiva que no se confunde com aes individuais,

    mas que exige a conscincia individual de pertencimento ao grupo, a quem a ao

    imputada.71

    As decises do grupo no so formadas a partir da leitura individual de cada

    cidado, dos seus desejos e preferncias.

    Tal leitura bastante adequada democracia constitucional brasileira. O valor da

    igualdade e da liberdade, com os princpios normativos deles derivados e as inmeras regras

    constitucionais que os concretizam demonstram essa noo. No h um projeto de vida boa

    adotado pelo Estado que exclua os projetos pessoais de vida, impondo uma viso

    66

    do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II -

    a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o

    pluralismo poltico. Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes

    67

    68 do Brasil: I - construir uma

    sociedade livre, justa e solidria; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos

    de orige 69 BRITTO, Carlos Ayres. Democracia como princpio, meio e fim. Palestra proferida na Jornada jurdica

    em homenagem ao professor Jorge Miranda: os 20 anos da Constituio Brasileira de 1988, Braslia, 03 out.

    2008. 70 DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitucin y Democracia. Op. cit. Mais precisamente no artigo

    Igualdad, Democracia y Constitucin: nosotros, el pueblo, en los estrados. 71 Essa noo ajusta-se com a noo de cidado de Clmerson Merlin Clve, no como aquele que pode

    (CLVE, Clmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). Op. cit., p. 16).

  • 21

    perfeccionista. Ao mesmo tempo, de maneira complementar, a Constituio evidencia um

    contedo republicano, que parte de uma comunidade de pessoas que partilham o mesmo

    passado e o mesmo destino e que, portanto, impe solidariedade e responsabilidade pelas

    decises coletivas. Ou seja, a Constituio no possui uma concepo axiolgica totalizante,

    mas contempla um projeto de alterao da realidade.72

    A essa noo pode ser agregada a concepo deliberativa da democracia epistmica de

    Carlos Santiago Nino,73

    tambm consistente com o texto constitucional. A justificao moral

    da democracia reside em seu poder de transformar os interesses das pessoas de um modo

    moralmente aceitvel, entendendo a deliberao coletiva como capaz de alterar os interesses

    individuais.74

    Tal configurao democrtica exige que todas as partes interessadas participem

    na discusso e na deciso, de maneira razoavelmente igual e sem coero, em que possam

    expressar seus interesses e justific-los com argumentos genunos; que o grupo tenha uma

    dimenso apropriada para permitir a maximizao da probabilidade de um resultado correto;

    que as maiorias e minorias se formem a cada matria discutida e nenhuma minoria reste

    isolada; e que os indivduos no se encontrem sujeitos a emoes extraordinrias.75

    Nino aposta no carter moral da democracia, a partir de contedos morais e de

    procedimentos deliberativos tambm configurados como morais.76

    E ambos os autores retiram

    parte do conjunto normativo superior do alcance das maiorias democrticas.

    A Constituio brasileira de 1988 apresenta os contornos dessas condies da

    democracia: a configurao dos direitos polticos e das liberdades polticas, com o sufrgio

    universal e com os instrumentos de participao direta, a adoo de princpios que impem a

    igualdade na disputa eleitoral, a liberdade para a criao de partidos polticos e a garantia do

    72 Para Emerson Gabardo, esse projeto contm uma proposta de felicidade para todos os seres humanos. A

    felicidade, fundamento poltico do Estado e fim caracterstico do Estado social contemporneo, deve ser

    objetivamente considerada (GABARDO, Emerson. Interesse Pblico e Subsidiariedade: o Estado e a Sociedade

    Civil para alm do bem e do mal. Op. cit.). 73 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1996. 74 Da sua nfase no carter epistmico da democrac [l]a democracia tendra un valor

    intrnseco no por lo que es, sino por lo que permite conocer GREPPI, Andrea. Consenso e imparcialidad.

    Sobre la justificacin moral de la democracia en el pensamiento de C. S. Nino. In: ROSENKRANTZ, Carlos; VIGO, Rodolfo L. (Comp.). Razonamiento jurdico, ciencia del derecho y democracia en Carlos S. Nino.

    Ciudad de Mexico: Fontamara, 2008, p. 229-259, p. 242). Essa compreenso de democracia afasta a afirmao

    de Herbert L. A. Hart de que as regras ou princpios jurdicos cujo contedo seja moralmente inquo possam ser

    vlidos (HART, Herbert L. A. Ps-escrito. In:_____. O conceito de Direito. 4. ed. Traduo: A. Ribeiro Mendes.

    Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2005 [1994], p. 299-339, p. 331). 75 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 180. 76 Roberto Gargarella defende a democracia deliberativa, afirmando que ela impe o tratamento de todos

    como igual considerao e assim favorece a tomada de decises imparciais, valorando o processo que antecede a

    deciso (GARGARELLA, Roberto. La justicia frente al gobierno: Sobre el carcter contramayoritario del poder

    judicial. Barcelona: Ariel, 1996, p. 157-158).

  • 22

    acesso direito de antena e ao fundo partidrio, o sistema eleitoral proporcional e a diviso

    federativa das atribuies.77

    A democracia deve ser entendida como um mtodo o melhor para, mediante o

    dilogo, transformar os interesses particulares em preferncias imparciais78

    e, a partir da sua

    adoo pelo constituinte, como um princpio normativo que condiciona a legitimidade do

    poder poltico busca de fins e realizao de valores determinados pela Constituio e a sua

    legitimao observncia de regras e procedimentos.79

    Para a concepo de democracia aqui compartilhada, a participao direta dos

    indivduos na tomada de decises polticas obrigatria sempre que possvel, para minimizar

    as distores da representao e o hiato no processo de deliberao.80

    Mas no se ignora que

    os dois componentes principais da democracia contempornea so os partidos polticos e as

    eleies peridicas.81

    A democracia, apontam Ftima Anastasia, Carlos Ranufo Melo e Fabiano Santos,

    onsivo ao interesse pblico (dimenso da responsiveness) e um poder

    que exercido em pblico e, por consequncia, passvel de controle pblico (dimenso da

    accountability

    accountability e representatividade.82

    O Direito e a poltica so intimamente relacionados com a moral, no apenas na

    aplicao das normas a partir da construo das proposies para um raciocnio

    77 Carlos Santiago Nino apresenta os obstculos implementao da democracia deliberativa a estrutura

    exclusivamente representativa, a apatia poltica, a baixa qualidade do debate pblico, a disperso da soberania

    causada pela descentralizao, a intermediao imperfeita dos sistemas eleitorais, o sistema presidencialista e o

    exagero no controle judicial da constitucionalidade. Apresenta como soluo a adoo de instrumentos de democracia direta no reduzidos a respostas monossilbicas, com a reduo das unidades polticas, a exigncia

    de participao poltica (sem ser excessiva para no implicar uma viso perfeccionista de virtude cvica),

    proibio absoluta do financiamento privado e garantia de acesso aos meios de comunicao), tomada de deciso

    em mbito local e implementao em nvel federal, a mudana para o parlamentarismo e a reduo do controle

    judicial de constitucionalidade proteo das condies do procedimento democrtico, da autonomia pessoal e

    da constituio histrica, ou prtica social constitucional (NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la

    democracia deliberativa. Op., cit., p. 202-293). No se defendem aqui alteraes na configurao constitucional

    da democracia brasileira, pois parte-se do desenho constituinte para se evidenciar os princpios constitucionais

    estruturantes do Direito eleitoral. 78 Ibid., p. 202. Por assumir o carter deliberativo da democracia brasileira, com todas as suas condies e

    exigncias, afastam-se as leituras elitistas da democracia, que veem a democracia como uma competio entre elites, embora no necessariamente a propugne, bem como aquelas que defendem o papel fundamental dos

    partidos polticos na deliberao democrtica. 79 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Op. cit., p. 281. 80 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 204-205. 81 ABAL MEDINA, Juan. La muerte y la resurreccin de la representacin poltica. Buenos Aires: Fondo

    de Cultura Econmica, 2004, p. 14. 82 ANASTASIA, Ftima; MELO, Carlos Ranufo; SANTOS, Fabiano. Governabilidade e representao

    poltica na Amrica do Sul. So Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 11 e 15. As noes de responsiveness e

    accountability no possuem uma traduo em portugus. Responsiveness se relaciona capacidade de responder

    a demandas e accountability se refere possibilidade de controle e fiscalizao.

  • 23

    justificatrio,83

    mas tambm na determinao do contedo do Direito do Estado, pois a

    justificao da Constituio depende de seu contedo refletir princpios morais.84

    A enumerao dos objetivos da Repblica Federativa do Brasil, no artigo 3 do texto

    constitucional, aponta para a adoo de princpios morais, relacionados liberdade, justia,

    solidariedade,85

    igualdade e dignidade. De igual forma o fazem o prembulo, o artigo 1,

    o artigo 5 e seus incisos e outras disposies constitucionais que justificam o reconhecimento

    da Constituio como norma jurdica mxima. H compartilhamento de uma moralidade, mas

    de uma moralidade objetiva, relacionada aos valores pblicos, sem que isso derive da

    imposio estatal de um contedo especfico.

    A democracia no aniquila o espao de autonomia individual. Antes o garante, ao

    permitir que, democraticamente, o cidado possa se expressar no debate poltico e expor ou

    no suas convices pessoais a respeito do que deve ser o contedo da ordem jurdica e da

    atuao do Estado. A exigncia da responsabilidade pelas decises tomadas pela sociedade

    no uma ofensa autonomia faz parte do ideal republicano, da ao coletiva comum.

    A concepo democrtica tampouco abarca todas as opes e possibilidades

    individuais. O debate poltico e a definio por decises coletivas limitam-se s instituies e

    prescries de condutas necessrias para a convivncia social que assegure tratamento com

    igual considerao e respeito a todos os cidados.86

    H, portanto, questes que no so e no

    podem ser colocadas no debate democrtico. H temas que a deliberao democrtica no

    alcana, pois esto para alm do espao de determinao coletiva.

    As prticas democrticas no asseguram por si a legitimidade das decises polticas. A

    deciso no se legitima apenas pelo seu procedimento, embora a ateno ao mtodo

    democrtico de tomada de decises polticas exigido pela Constituio seja elemento

    essencial. Os indivduos mantm liberdades e garantias, um espao de escolha, cujo contedo

    e alcance no so passveis de deliberao, cuja proteo e intangibilidade so alheias s

    maiorias democrticas.

    83 NINO, Carlos Santiago. Derecho, Moral y Poltica: Una revisin de la teora general del Derecho. Op.

    cit., p. 87-100. 84 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 44-45. 85 Compreende-se aqui a solidariedade de maneira objetiva, com o cumprimento de deveres jurdicos,

    exigindo-se do cidado menos do que a incorporao de um sentimento solidrio pessoal. No se compartilha a

    viso de Srgio Luiz Souza Ara

    primeiro lugar, que o indivduo crie uma espcie de justia interior, institucionalizada, obrigatria, que torne

    efetiva a solidariedade, isto , que procure vencer em si mesmo ARAJO, Srgio Luiz

    Souza. O Prembulo da Constituio brasileira de 1988 e sua ideologia. Revista de Informao Legislativa,

    Braslia, a. 36, n. 143, jul./set., p.5-14, 1999, p. 11). 86 Dico de Ronald Dworkin. DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitucin y Democracia. Op. cit., p.

    21.

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    Assim tambm se configuram as decises polticas estruturantes na instituio de um

    Estado democrtico. Essas disposies constitucionais estruturais, que estabelecem de forma

    democrtica e com contedo democrtico a organizao do Estado e dos rgos de soberania,

    as tarefas estatais, o estatuto de direitos e garantias e os princpios da disputa democrtica,

    garantem e fortalecem a democracia. Devem ser protegidas das maiorias eventuais, por serem

    compartilhadas pelos membros da sociedade e refletirem ideais comuns e por permitirem a

    produo e manuteno do povo como agente comunitrio integrado formado por

    cidados iguais.87

    Essa noo permite combinar os trs elementos do constitucionalismo em um sistema

    de apoios recprocos. O processo democrtico, o respeito aos direitos individuais e a

    preservao da prtica jurdica no se encontram em tenso, mas se complementam e

    fortalecem: a discusso moral, base do processo democrtico, tem como pressupostos a

    autonomia, a inviolabilidade e a dignidade e gera uma constituio ideal de direitos densa que

    permite maximizar o valor epistmico da democracia; assim tambm a proteo prtica

    constitucional assegura a eficcia das decises democrticas e garante os direitos

    reconhecidos por essa prtica e pelas decises, bem como a discusso coletiva e o respeito aos

    direitos geram um consenso que promove a prtica constitucional.88

    A Constituio traz em si esses elementos, permitindo, e at certo ponto promovendo,

    o constitucionalismo assim concebido. As condies normativas esto postas. A realidade,

    possivelmente por uma falta de identificao do autor com a sua obra, do povo com a

    Constituio, e pela fraca percepo do papel normativo do texto constitucional, ainda no se

    mostra assim.

    A democracia constitucional brasileira no se caracteriza simplesmente pela

    identificao com a vontade da maioria.89

    Ainda que adote, nas hipteses de decises polticas

    submetidas ao debate pblico, a regra da maioria e algumas vezes exija uma maioria

    qualificada para determinadas matrias a Constituio no se contenta com esse mecanismo.

    Parte de uma democracia inclusiva, evidenciada pelo princpio do pluralismo poltico (e pelo

    87 Ibid., p. 45, 51 e 64. 88 NINO, Carlos Santiago. La constitucin de la democracia deliberativa. Op. cit., p. 296-303. Assim

    tambm para Ronald Dworkin, que v em sua concepo communal de democracia a harmonia entre a excluso

    de determinadas matrias da arena poltica e a democracia (DWORKIN, Ronald. Liberalismo, Constitucin y

    Democracia. Op. cit., p. 78). 89 Stephen Holmes afirma que a democracia no se identifica com a imposio da vontade majoritria,

    mas revela-se como o governo por discusso pblica, constituda pelo dissenso pblico. A vontade democrtica

    e, portanto, soberana a que deriva de um debate robusto e aberto, no qual a oposio tenha participao

    efetiva na defesa de seus pontos de vista (HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia.

    In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Orgs.). Constitucionalismo y democracia. Traduo: Monica Utrilla de

    Neira. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Econmica, 1999 [1988], p. 217-262, p. 254-255).

  • 25

    consequente pluralismo partidrio) e pela adoo do sistema eleitoral proporcional, que impe

    a convivncia institucional de distintos modos de pensar e garante um espao poltico efetivo

    para as concepes de vida no hegemnicas.

    A democracia brasileira demonstra-se capaz de realizar suas promessas deliberativas.

    Para Fvila Ribeiro,

    90 A

    Constituio brasileira assim configura o regime democrtico, permitindo a participao das

    minorias no debate poltico e nas instituies e promovendo a convivncia de discursos

    dissonantes sobre o que est para alm dos princpios estruturantes do Estado brasileiro.

    Alm desse aspecto fundante da forma de convivncia da sociedade brasileira e da

    determinao dos limites do poder pblico e da prpria ordem jurdica, a democracia tambm

    se reflete em um princpio jurdico.

    Para Manuel Aragon, o princpio democrtico atua como princpio material e como

    princpio estruturante: a democracia material complementada pela democracia

    procedimental. o princpio mais fundamental de todos,91

    e , ao mesmo tempo, um princpio

    sobre a Con

    sua alterao), um princpio jurdico da Constituio (que juridifica o poder constituinte e a