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Trata-se da tese que relata sobre a literatura inglesa!
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MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NA LITERATURA E NO CINEMA
por
CARLOS AUGUSTO VIANA DA SILVA
Orientador: Prof. Dr. Dcio Torres Cruz
Co-Orientadora: Prof. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco
SALVADOR 2007
Universidade Federal da Bahia Insti tuto de Letras
Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingstica Rua Baro de Geremoabo, n 147 CEP: 40170-290 Campus Universitrio Ondina Salvador-BA
Tel.: (71) 263-6256 Site: www.ppgll.ufba.br E-mail: [email protected]
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MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NA LITERATURA E NO CINEMA
por
CARLOS AUGUSTO VIANA DA SILVA
Orientador: Prof. Dr. Dcio Torres Cruz
Co-Orientadora: Prof. Dra. Eliana Paes Cardoso Franco
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingstica, da Universidade Federal da Bahia UFBA, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Letras, no Curso de Doutorado em Letras e Lingstica.
SALVADOR 2007
Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras
Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingst ica Rua Baro de Geremoabo, n 147 CEP: 40170-290 Campus Universitrio Ondina Salvador-BA
Tel.: (71) 263-6256 Site: www.ppgll.ufba.br E-mail: [email protected]
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Aos meus pais, Augusto e Neuza
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AGRADECIMENTOS
A todos os colegas, professores e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingstica da UFBA, j que de alguma maneira colaboraram para a elaborao desta tese.
Aos professores das disciplinas que cursei na UFBA Rosa Virginia, Ilza Ribeiro,
Denise Chaeyerl e Florentina Sousa, pelas relevantes discusses sobre Lingstica, Lingstica Aplicada e Estudos Culturais.
s professoras Vera Santiago, pelas importantes sugestes, por ocasio do Exame de Qualificao, e Eliana Franco, pelas contribuies fundamentais na co-orientao desta tese.
CAPES, pela concesso da bolsa, no perodo de 2003 a 2005, para desenvolvimento da pesquisa.
Ao meu amigo D. Henrique, pelas ajudas constantes com o computador e na reviso desta tese.
Aos colegas do colegiado do Curso de Letras da FECLESC/UECE, pelo incentivo.
A todos aqueles que fizeram e fazem parte da minha trajetria, principalmente minha famlia e aos meus amigos o meu grande patrimnio.
E agradeo especialmente ao professor Dr. Dcio Torres Cruz, pelo privilgio de sua valiosa orientao.
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Who would have thought that a book based on the lives of women in three different eras, all connected via a book, Virginia Woolfs Mrs. Dalloway, would become a best-seller and this years darling of the movie awards, winning two Golden Globes for Best Picture and Best Actress and generating a powerful dose Oscar buzz?
(Curt Degenhart)
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RESUMO
Esta tese investiga a reescritura do universo literrio de Virginia Woolf para a literatura e para
o cinema, por meio da observao das reescrituras do romance Mrs. Dalloway (1925): o filme Sra. Dalloway (1997), de Marleen Gorris; o livro As Horas (1998), de Michael Cunningham; e o filme As Horas (2002), de Stephen Daldry. Partimos da hiptese de que as narrativas reescritoras so mais tradicionais, tm novo arranjo linear e no seguem uma tendncia vanguardista, devido, principalmente, ao estilo dos tradutores. Para comprovarmos tal hiptese, analisamos algumas estratgias de traduo, empregadas na criao de imagens de Woolf para os novos pblicos, levantando, em cada narrativa, questes gerais sobre o enredo
e a construo do tempo e do espao. As estratgias observadas, no filme Sra. Dalloway, foram as seguintes: linearidade (organizao narrativa), flashback, voice-over e montagem. No filme As Horas as estratgias foram as seguintes: delineao do enredo (criao de trs histrias paralelas), continuidade de elementos imagticos (montagem), silncio e expresses dos atores/atrizes e mltiplas perspectivas. A anlise levou-nos a concluir que essas narrativas tm formatos prprios (como arranjo linear particular) e no seguem a tendncia vanguardista do texto de Woolf, devido s questes inerentes ao meio cinematogrfico (ampliao de pblico, criao de narrativas lineares, influncia da narrativa clssica hollywoodiana, etc), mas, principalmente, devido ao estilo e concepo de criao dos prprios tradutores. A anlise fundamenta-se na idia de reescritura de Lefevere (1992), como um tipo de traduo, na concepo de traduo dos Estudos Descritivos de Toury (1995) e da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990) e em alguns estudos que tratam da relao literatura e cinema, tais como Bordwell (1985), Vanoye & Goliot-Lt (1994), Aumont et al (1995) e Cruz (1997).
Palavras-chave: Cinema; Literatura; Reescritura; Traduo
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ABSTRACT
This dissertation investigates the rewriting of Virginia Woolfs literary universe to literature and to film, through the analysis of the rewritings of the novel Mrs. Dalloway (1925): the film Mrs. Dalloway (1998), directed by Marleen Gorris, the novel The Hours (1998), by Michael Cunningham, and the film The Hours (2002), directed by Stephen Daldry. Our hypothesis is that the rewriting narratives are more traditional, i.e. they have a new linear arrangement and do not follow an avant-garde tendency due, mainly, to their translators style. In order to confirm such hypothesis, we have analyzed some translation strategies, used in the creation of Woolfs imagery to new audiences. In each narrative, general questions on plot and on the
construction of time and space have been taken into account. The strategies observed in the film Mrs. Dalloway were the following: linearity (narrative organization), flashback, voice-over, and montage; in the film The Hours, the following strategies have been investigated: delineation of plot (the creation of three parallel stories), continuity of image elements (montage), silence and actors/actresss expressions, and multiple perspectives. The analysis led us to conclude that these narratives have their own format (with a particular linear arrangement) and do not follow the avant-garde tendency of Woolfs novel due not only to the questions inherent in the cinematographic medium (the increase of the audience, the creation of linear narratives, influenced by the classic Hollywoodian narratives, etc), but also to the translators style and conception of creation. The analysis is based on Lefeveres idea of rewriting as a sort of translation (1992); on the conception of translation in Tourys Descriptive Studies (1995), on Even-Zohars polysystem theory; and on some studies that deal with the relationship between literature and cinema such as Bordwell (1985), Vanoye & Goliot-Lt (1994), Aumont et al (1995) and Cruz (1997).
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Diagrama triangular de Ogden e Richards .......................................................41
Figura 2 nascemorre ..................................................................................................51
Figura 3 Traduo Intersemitica...............................................................................51
Figura 4 Reproduo de um momento do passado da personagem...............................136
Figura 5 Descrio cnica do aeroplano ......................................................................144
Figura 6 Descrio do presente e do passado da personagem.......................................147
Figura 7 Apresentao do espao da personagem ........................................................150
Figura 8 Alternncia de imagens .................................................................................157
Figura 9 Compra de flores no Mulberrys....................................................................161
Figura 10 Preparao final para a festa ........................................................................162
Figura 11 Primeira situao comum entre as personagens ...........................................192
Figura 12 Atividades individuais das personagens.......................................................199
Figura 13 Ligao entre as personagens ......................................................................200
Figura 14 Flores como elemento de transio..............................................................206
Figura 15 Atitudes reveladoras de comportamentos.....................................................211
Figura 16 Criao de espaos flmicos, do ponto de vista das personagens ..................211
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SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................. 09 1 OS ESTUDOS DE TRADUO, A REESCRITURA E A TRANSMUTAO ....................................................................................... 16
1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DE TRADUO....................................................... 16 1.2 A REESCRITURA QUE UM TIPO DE TRADUO: CONSIDERAES SOBRE A TEORIA DAS REFRAES............................................................................................ 24 1.3 A INTERSEMIOSE ENTRE AS LINGUAGENS LITERRIA E CINEMATOGRFICA.................................................................................................... 39
2 A HIBRIDIZAO DOS GNEROS: UM DILOGO ENTRE O DISCURSO LITERRIO E O DISCURSO CINEMATOGRFICO........ 56
2.1 CONSIDERAES GERAIS ..................................................................................... 56 2.2 A POTICA DA NARRATIVA LITERRIA............................................................. 69 2.3 A POTICA DA NARRATIVA CINEMATOGRFICA ............................................ 83 2.4 O TEMPO E O ESPAO NAS NARRATIVAS LITERRIA E FLMICA .................. 92
3 MRS. DALLOWAY E A REESCRITURA DE VIRGINIA WOOLF NO CINEMA....................................................................................................... 110
3.1 MRS. DALLOWAY, DE VIRGINIA WOOLF............................................................. 110 3.2 SRA. DALLOWAY, DE MARLEEN GORRIS ............................................................ 133
3.2.1 Linearidade (organizao narrativa) .................................................................. 134 3.2.2 Flashback ........................................................................................................... 144 3.2.3 Voice-over .......................................................................................................... 152 3.2.4 Montagem........................................................................................................... 156
4 AS HORAS E A REESCRITURA DE MRS. DALLOWAY NA LITERATURA E NO CINEMA ................................................................. 166
4.1 AS HORAS, DE MICHAEL CUNNINGHAM............................................................ 166 4.2 AS HORAS, DE STEPHEN DALDRY ...................................................................... 189
4.2.1 Delineao do enredo (trs histrias paralelas).................................................. 189 4.2.2 Continuidade de elementos imagticos (montagem) ............................................ 200 4.2.3 Silncios e expresses de atores/atrizes............................................................... 210 4.2.4 Mltiplas perspectivas (o olhar do outro) ........................................................... 215
CONCLUSO .............................................................................................. 225 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................ 229 REFERNCIAS FILMOGRFICAS......................................................... 242
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INTRODUO
A reescritura de textos literrios para outros meios de linguagem tem sido cada
vez mais fonte de discusso pela natureza dialgica existente na relao entre a literatura e
outras mdias. Esse dilogo constante se d pela traduo de linguagem que ocorre na
interao entre os campos. No caso da literatura e do cinema, por exemplo, o processo pode
ter mo dupla, ou seja, algumas obras literrias se transformam em filmes e alguns roteiros
cinematogrficos se transformam em livros. Em ambos os casos, a reescritura favorece a
difuso do texto de origem.
Diante dessa condio de mistura dos gneros (GEERTZ, 2000, p.33) entre os
campos, em que cada vez mais as fronteiras entre as artes se embaralham, a traduo se
estabelece na zona limiar para dar conta das questes relacionadas transposio de uma
linguagem para outra, conforme salientou Cruz (1997, p.2). Nesse sentido, a reescritura do
texto literrio vista nos estudos atuais de traduo como uma instncia do fenmeno
tradutrio. um novo tipo de traduo que legitima as variadas formas pelas quais os textos
so difundidos nos sistemas literrios. Um exemplo pessoal sobre a questo merece destaque.
Na dcada de oitenta, eu ouvia em vinil a cano Wuthering Heights, cantada por Kate
Bush e, durante muito tempo, ela representava para mim apenas uma msica agradvel e,
talvez, romntica, pela melodia, j que, naquele momento, ainda no tinha o conhecimento da
lngua inglesa. Em 1996, estudando Letras, na Universidade Estadual do Cear, cursando a
disciplina Literatura Inglesa I (Prosa em Lngua Inglesa), descobri que, na verdade, a msica
fazia referncia a um dos maiores romances da lngua inglesa (O Morro dos Ventos Uivantes),
escrito por Emily Bront em 1847. A partir de ento, pelo menos para mim, Wuthering
Heights passou a ter duas dimenses: o texto de Bront e a reescritura de Bush. Mas, ser que
para a grande maioria do pblico brasileiro haveria tambm essas mesmas dimenses?
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Provavelmente, no, pois, para esse pblico, a msica divulgada nas mdias da poca continua
sendo o texto o texto de partida.
O reconhecimento de um fenmeno desses como traduo se deve,
principalmente, reformulao das teorias de traduo e ao surgimento de novas propostas de
anlise que levam em considerao no somente o produto, como faziam as anlises
prescritivas, mas tambm o processo.
Com essa nova postura, muitos estudos na rea de traduo audiovisual tentam
sistematizar teorias e mtodos para darem conta do processo e apontam a cada dia novas
possibilidades para entender como se do as reescrituras, seja pela traduo da linguagem
verbal para a no-verbal, isto , a traduo intersemitica, conforme definida por Jakobson
(1991), seja pela traduo da prpria linguagem literria de um contexto para outro.
A investigao da questo da reescritura de obras literrias para outras linguagens
e/ou contextos , certamente, um campo frutfero de estudo, mas ainda pouco explorado no
nosso pas. Se levarmos em conta as inmeras obras da nossa literatura reescritas para as telas
e as inmeras obras das literaturas estrangeiras que foram traduzidas atravs do cinema para o
espectador brasileiro, podemos inferir que o processo de reflexo sobre essas prticas precisa
ser expandido no contexto acadmico. Embora as pesquisas sobre traduo tenham avanado
bastante nesse sentido, ainda a teoria literria e a semitica que se ocupam
predominantemente com essa questo. Talvez esse fato se justifique por uma resistncia, por
parte de alguns estudiosos, principalmente, da literatura, que ainda persiste em relao nova
viso de traduo, que a de dar ao texto traduzido nas telas a condio de texto autnomo e
produtor de significado. E isso, certamente, fere os princpios tradicionais do original. No
difcil observarmos esse fenmeno na crtica cinematogrfica, por exemplo, em que, na
maioria dos comentrios, o filme posto como uma adaptao da obra de partida por meio
de anlises comparativas.
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A traduo intersemitica ou transmutao discute o processamento das duas
linguagens e coloca o texto de partida (o romance, o conto, uma pea etc) no sistema
cinematogrfico, intermediando para o espectador o resultado de uma leitura, permitindo,
ainda, a possibilidade de vrias outras leituras, assim como toda traduo o : uma reescritura,
uma reinterpretao.
Lefevere (1992), ao levantar essa questo da reescritura, discute a multiplicidade
de interpretaes a que um texto submetido ao ser traduzido. O autor argumenta que as
interpretaes se apresentam por meio de vrios textos, tais como resumos, resenhas crticas
em revistas ou jornais, representaes em palcos ou nas telas e pela prpria traduo. Todos
esses textos, produzidos a partir de leituras so, na viso de Lefevere, importantes porque
difundem-se e alcanam leitores de todos os nveis. O romance Mrs. Dalloway (1925), da
escritora inglesa Virginia Woolf, traduzido para o cinema e para a literatura, por exemplo,
insere-se nessas questes, pois o discurso literrio da autora foi traduzido/reescrito para outros
sistemas, criando uma imagem da sua obra para o leitor/espectador.
O presente estudo investiga a reescritura do universo literrio de Virginia Woolf
para os novos meios e contextos de linguagens, por meio da anlise das reescrituras de Mrs.
Dalloway para a literatura e para o cinema. Essas reescrituras so trs narrativas: o filme Sra.
Dalloway (1997), de Marleen Gorris; o livro As Horas (1998), de Michael Cunningham; e o
filme As Horas (2002), de Stephen Daldry.
O romance Mrs. Dalloway apresenta inovaes em sua estrutura, como a
formulao do tempo, do espao, da prpria sintaxe e na sua tessitura como um todo. Dessa
forma, o romance diferencia-se das narrativas tradicionais e passa a ser considerado um
romance de vanguarda. A preocupao desse construto narrativo no na ao narrativa,
propriamente dita, mas na introspeco, na apreenso do mundo particular dos personagens e
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lida, predominantemente, com processos mentais. Por tal razo, essa narrativa tambm
considerada romance impressionista, que apresenta leitura densa e de difcil compreenso.
Devido a esses aspectos particulares da narrativa de Virginia Woolf, levantamos
questes quanto traduo desse complexo universo literrio da autora para a linguagem do
sistema cinematogrfico, ou seja, um conjunto organizado de elementos interrelacionados,
ligados estrutura do texto flmico, e do prprio sistema literrio. O sistema cinematogrfico,
como sabemos, tem como princpio bsico o enredo e a ao, exatamente o que no o mais
importante para o desenvolvimento do discurso literrio de Woolf. Perguntamos, ento, se a
traduo de uma narrativa to particular da escritora, de reconhecimento estilstico marcado,
teria recebido o mesmo tratamento de quebra de paradigma e, consequentemente, semelhante
impacto vanguardista no sistema cinematogrfico ou teria sido transformada numa narrativa
mais aproximada da narrativa clssica? Como os tradutores (escritor, diretores e roteiristas)
lidam com essa narrativa nos novos contextos?
O objetivo da pesquisa , por meio da observao das reescrituras, investigar
estratgias de traduo na reescritura da obra de Woolf na criao de imagens do universo
literrio para novos pblicos. Partimos da hiptese de que as narrativas reescritoras so mais
tradicionais, tm novo arranjo linear e no seguem uma tendncia vanguardista, devido,
principalmente, ao estilo dos diretores. Isso se d, principalmente, pela apresentao de
narrativas com nfase no enredo, redimensionando, assim, o universo literrio da autora para
o espectador. O novo formato dado narrativa impressionista de Woolf reescreve o seu
discurso literrio e consolida, por meio do cinema e da literatura, a sua imagem para outros
sistemas.
A indagao surgiu do estudo da traduo cinematogrfica de Mrs. Dalloway em
minha pesquisa de mestrado, cuja anlise revelou que o novo tratamento dado ao enredo do
filme teria resignificado o texto de Woolf por meio de uma proposta mais linear.
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Um outro motivo que me impulsionou a investigar a questo da reescritura foi a
partir de minha experincia em sala de aula de Literaturas de Lngua inglesa. Ao trabalhar
com os alunos os textos literrios em ingls, comecei a perceber que eles procuravam outras
formas de reescrituras desses textos como antologias, ensaios, resenhas crticas, e,
principalmente, filmes, para suplementar a leitura desse texto. Vale lembrar que se trata de
alunos de graduao e, na sua grande maioria, j professores da lngua, ou seja, so alunos
capazes de lerem na lngua estrangeira.
Diante desse fenmeno, comeamos a nos inquietar e passar a olhar com maior
cuidado o funcionamento dessas reescrituras como fonte importante pela busca dos textos de
partida ou da interpretao deles. Ao contrrio do que pensvamos at ento, a reescritura tem
um papel importante no sistema literrio, pois tem o poder de refratar os textos e pode ser um
forte aliado para o professor de literatura. Parti do seguinte pressuposto: se, para os alunos de
formao em lngua estrangeira, capazes de lerem em ingls, as reescrituras so um meio
importante de entrar em contato com o universo literrio, isso seria ainda mais aplicado ao
leitor comum. Uma outra constatao, fruto da experincia em sala de aula, que para os
textos recomendados para leitura, que so considerados como difceis, h uma grande
tendncia dos alunos a consultarem tambm reescrituras. Nesse caso, enquadra-se a narrativa
de Virginia Woolf que, por utilizar a tcnica do fluxo da conscincia, torna-se um texto
complexo para o leitor no especializado. Esse um outro motivo, pelo qual optamos por
trabalhar com Mrs. Dalloway e suas reescrituras nesta tese.
O corpus da pesquisa constitudo de quatro narrativas: dois romances e dois
filmes: o romance de partida Mrs. Dalloway (1925), escrito por Virginia Woolf; o filme Sra..
Dalloway (1997), dirigido por Marleen Gorris; o romance As Horas (1998), escrito por
Michael Cunningham; e o filme As Horas (2002), dirigido por Stephen Daldry. Para o
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desenvolvimento da anlise desse corpus, partimos do romance Mrs. Dalloway at a
reescritura mais recente pelo fato de tratarmos das imagens por ela criada.
Primeiro, delinearemos o construto narrativo dos romances, com base em aspectos
da construo narrativa: consideraes gerais sobre o enredo, a construo do tempo e do
espao. A escolha desses aspectos se deve importncia que eles exercem na articulao do
discurso literrio de Woolf. Em seguida, discutiremos, tambm, os mesmos aspectos de
construo narrativa para os filmes, mas, alm disso, descreveremos e analisaremos algumas
estratgias de traduo, utilizadas nessa construo. No filme Sra. Dalloway, descreveremos
as seguintes estratgias: linearidade (organizao narrativa); flashback; voice-over; e
montagem. No filme As Horas, as estratgias so as seguintes: delineao do enredo (criao
de trs histrias paralelas); continuidade de elementos imagticos (montagem); silncio e
expresses dos atores/atrizes; e mltiplas perspectivas (o olhar do outro). importante
enfatizar que as estratgias descritas no so, necessariamente, as mesmas nos dois filmes.
Isso se deve ao fato de que a estratgia analisada de acordo com a relevncia que ela tem na
construo de cada uma das narrativas. Finalmente, refletiremos sobre o papel dessas
estratgias e os efeitos por elas causados sobre o formato dos textos reescritores.
Vale ressaltar que as reflexes e as questes levantadas na anlise do corpus so
resultados da minha leitura, tanto da obra de Virginia Woolf quanto das reescrituras. No
entanto, as leituras so reguladas e fundamentadas pelos princpios da literatura (teoria e
crtica), pelas teorias de traduo, pelos estudos flmicos, pela crtica cinematogrfica e pelas
prprias reescrituras dos textos nas diferentes mdias.
O estudo fundamentado em algumas posies tericas que nos possibilitam a
discusso de todas as questes postas e o desenvolvimento da anlise proposta. Os princpios
da traduo intersemitica, discutidos por Plaza (2001), fornecem-nos elementos para o
entendimento do processo de transmutao do signo de um sistema para outro. A viso de
15
traduo como reescritura, de Lefevere (1992), possibilita-nos a perceber a reescritura como
uma traduo do romance de Woolf para a literatura e o cinema como uma reescritura do
universo literrio da autora. A discusso sobre a relao cinema e literatura e sobre os
prprios estudos flmicos so subsidiados por autores, tais como Eisenstein (1929), Bordwell
(1985), Goliot & Lt (1994), Aumont et al (1995), Brito (1995), Coutinho (1996), Cruz
(1997), Metz (1997) e outros. Para a conduo da anlise, os pressupostos dos estudos
descritivos de traduo de Toury (1995) e da teoria dos polissistemas de Even-Zohar (1990)
so importantes e subjazem todas as discusses. O primeiro, pelo fato de considerar o texto
traduzido sob o ponto de vista do sistema de chegada. O segundo, por conceber a traduo
como dilogo constante com as estruturas sociais, o que caracteriza uma ampliao do
conceito.
A tese est subdividida em quatro captulos. Os dois primeiros formam o
arcabouo terico. O primeiro apresenta questes sobre os estudos descritivos de traduo,
sobre a idia de reescritura como um tipo de traduo e sobre a traduo intersemitica. O
segundo descreve as especificidades da literatura e do cinema. Traa um perfil da potica de
cada um dos campos, levando em considerao a estrutura, o discurso e o trnsito dialgico
entre as narrativas literria e cinematogrfica e a articulao do tempo e do espao nas
narrativas literria e flmica.
Os terceiro e quarto captulos apresentam a anlise do corpus. A partir da
delineao do construto narrativo das reescrituras, observamos essa delineao em relao ao
texto de partida, investigando como os tradutores lidaram com a construo de imagens do
universo de Woolf nos textos reescritores.
16
1 OS ESTUDOS DE TRADUO, A REESCRITURA E A TRANSMUTAO
Este captulo prope discutir questes relacionadas traduo intersemitica, ou
seja, a transmutao dos signos verbais por meio de sistemas no-verbais. Para a presente
discusso, levaremos em conta definies, classificaes e, sobretudo, reflexes sobre a
prtica tradutria entre sistemas diferentes de linguagens. Levaremos em conta as discusses
acerca das novas tendncias nos estudos de traduo que abordam no somente o produto,
mas tambm o processo.
O captulo est subdividido em trs sees. A primeira seo trata dos
pressupostos tericos dos estudos descritivos e as novas abordagens de anlises do texto
traduzido. A segunda, discute a reescritura como uma instncia da traduo. A terceira seo
aborda a questo da intersemiose entre as linguagens literria e cinematogrfica.
1.1 OS ESTUDOS DESCRITIVOS DE TRADUO
Com o advento dos estudos das novas teorias da traduo, como a Desconstruo,
os Estudos Descritivos, o conceito de Reescritura como traduo, uma nova atitude se
estabeleceu no processo tradutrio de forma bastante pertinente. Os mtodos de anlise
terico-prescritivos, que davam traduo um carter de transcrio de uma lngua-fonte para
uma lngua-alvo, tinham como base a idia da equivalncia entre os textos. As novas
perpesctivas de anlises passaram, com o avano dessas novas teorias, a ser descritivas. No
se considera, pelo menos luz delas, a traduo como resultado de equivalncias ou
fidedignidade com um texto original, mas sim um estudo que leva, tambm, em
considerao o processo, o contexto e o pblico receptor.
17
Os estudos tradicionais de traduo tinham como caracterstica principal a nfase
na questo da literariedade e da equivalncia, as chamadas teorias lingsticas da traduo.
Cristina Rodrigues (2000, p.25-26) apresenta trs vias produtivas de contato entre lingstica
e traduo: uma via foi a de Nida, a outra, de Catford, e uma terceira seguida pela lingstica
contrastiva.
John Catford estabelece, em seu quadro de anlise, a busca por uma
sistematizao lingstica da traduo, tendo como base a idia de equivalncia. Eugene Nida,
por sua vez, usa a lingstica como um instrumental para anlise e soluo de questes de
traduo. O autor tambm utiliza a idia de equivalncia, mas, diferente de Catford, trata da
equivalncia dinmica, ou seja, sugere que o tradutor precisa manter equilbrio de
redundncia, no sentido de manter proporo semelhante de informao nova e informao
previsvel sem sobrecarregar o canal de comunicao. Nesse sentido, Nida est muito mais
preocupado com o receptor e a reproduo de mensagens equivalentes do que com a
combinao das partes do enunciado, uma vez que se baseia na teoria da comunicao. E a
lingstica contrastiva caracteriza-se pelo uso da traduo para fornecer critrios bsicos para
a comparao entre lnguas.
Para Rosemary Arrojo (2000, p.12), Catford percebe a traduo como um veculo
de substituio do texto da lngua de partida pelo seu equivalente na lngua de chegada. Mary
Snell Hornby (1995, p.15), tambm discutindo a postura terica de Catford, afirma que a
questo central na prtica de traduo, para ele, a procura dos equivalentes, dando teoria o
poder de definir a natureza e a condio dessas equivalncias.
Nessa perspectiva, a traduo passa a ser apenas um transporte de significado de
uma lngua para outra, dando ao texto traduzido uma limitao na sua dimenso interpretativa
por se restringir idia de transferir o mesmo termo para a lngua de chegada, conforme
discute Arrojo:
18
Se pensarmos o processo de traduo como transporte de significados entre lngua A e lngua B, acreditamos ser o texto original um objeto estvel, transportvel, de contornos absolutamente claros, cujo contedo podemos classificar completa e objetivamente. Afinal, se as palavras de uma sentena so como carga contida em vages, perfeitamente possvel determinarmos e controlarmos todo o seu contedo e at garantirmos que seja transposto na ntegra para outro conjunto de vages. Ao mesmo tempo, se compararmos o tradutor ao encarregado do transporte dessa carga, se restringe a garantir que a carga chegue intacta ao seu destino. Assim, o tradutor traduz, isto , transporta a carga de significado, mas no deve interferir nela, no deve interpret-la (ARROJO, 2000, p.12).
A discusso acima sintetiza bem a viso tradicional de se perceber o processo
tradutrio, visto como um fenmeno muito mais lingstico e isolado, resultado de um
processo esttico que no leva em considerao as questes do contexto no qual a traduo
est ocorrendo. A viso de traduo, em questo, torna-se problemtica, pois desconsidera os
fenmenos institucionais, culturais e polticos, que regem o processo tradutrio. Ademais,
forja um apagamento do tradutor como se fosse possvel a sua total invisibilidade diante da
tarefa, j que pressupe a chegada de uma carga intacta a seu destino final, como se o
tradutor no fosse, antes de tudo, um leitor, e o texto a ser traduzido no fosse passvel de
interpretaes.
Walter Benjamin, em 1923, j se posicionava diante desse fato, discutindo os
problemas da literariedade impostos pelas teorias tradicionais de traduo, apontando novas
perspectivas na maneira de conduzir os estudos:
Uma teoria que busca na traduo s a reproduo de sentido no mais parece ser de valia. verdade que seu emprego tradicional sempre toma esses conceitos como uma antinomia insolvel. Pois a que pode propriamente conduzir a fidelidade repetio do sentido? Fidelidade, na traduo, de cada palavra, no assegura que se reproduza o pleno sentido que ela tem no original. Pois este no se esgota em sua significao potica conforme o original, mas a adquire pela forma como o significado se une ao modo de significar a palavra em questo (BENJAMIN, 1992, p.xvii).
Percebemos que, tanto em Arrojo quanto em Benjamin, existem severas crticas
idia de traduo como um simples veculo de transporte de significados de uma lngua para
outra. Tais crticas contribuem para o questionamento sobre os conceitos de equivalncia,
19
literariedade e fidelidade, to enfatizados nas anlises tradicionais. Implicitamente, instaura-se
uma nova proposta, que contribui bastante para o avano nas investigaes sobre o fenmeno
tradutrio.
A partir do final da dcada de setenta, os estudos de traduo se expandiram e se
transformaram em uma disciplina. Esses estudos dialogam com vrias reas do conhecimento
que incluem Lingstica, Literatura, Histria, Antropologia, Psicologia e outras.
Diferentemente das teorias lingsticas, as teorias de traduo nesse novo momento so, de
certa forma, um veculo de difuso de idias em diferentes sistemas do conhecimento. Um
exemplo importante para ilustrar a mudana de perspectiva puramente lingstica nos estudos
de traduo a teoria skopos postulada, principalmente, por Hans Vermeer (1992, p.44-45).
De acordo com os postulados da teoria, a traduo passa a ser vista sob uma perspectiva
funcional e sociocultural. Ou seja, a traduo funcionalmente adaptada aos objetivos e aos
contextos especficos. A teoria skopos contribui para colocar o texto de chegada em foco. A
traduo funciona como um texto e, como tal, no mais determinada primeiramente pelo
texto de partida, mas pelo seu prprio skopos (seu propsito), mudando o olhar sobre os
estudos de traduo. Enquanto as anlises tradicionais se limitavam a avaliar um determinado
texto traduzido, sob o ponto de vista da lngua de partida, observando, principalmente,
aspectos relacionados fidelidade ou no ao texto traduzido, as novas propostas de anlise
levam em conta a traduo numa dimenso muito maior, ou seja, focaliza-se na funo que
ela exercer na comunidade receptora. Na perspectiva tradicional, a anlise se concentrava
sobre o produto da traduo como nico objeto de investigao. Nessa nova perspectiva, a
anlise deve tambm levar em considerao todo o processo tradutrio, e o prprio contexto
passa a ser relevante para se entenderem as estratgias de traduo e a sua recepo no
contexto de chegada.
20
Jos Lambert & Hendrik Van Gorp (1985, p.50-51) tratam dessa abordagem como
sendo de natureza sistmica e reconhecem que a relao da traduo com o contexto
bastante discutida entre os estudiosos. No entanto, acrescentam que preciso combinar e
conectar sistematicamente todos os aspectos tanto nos nveis inter-sistmico quanto no
intrasistmico. Isso que dizer que todos os aspectos do processo de traduo devem ser
descritos e discutidos por meio de uma anlise que considere no somente o sistema que
envolve o autor e o texto, mas tambm o leitor e o sistema receptor da traduo como um
todo.
O princpio dos estudos descritivos de Gideon Toury est associado a essa idia.
O autor, ao postular sua teoria, esclarece:
Se optamos por concentrar esforos nos textos traduzidos e/ou em seus constituintes, em suas relaes intertextuais, em seus modelos e normas de comportamento de traduo ou em estratgias recorrentes soluo de problemas particulares, o que constitui o objeto de uma disciplina propriamente dita de Estudos de Traduo so mais fatos (de observao ou de reconstruo) da vida real do que simplesmente entidades especulativas resultantes de hipteses preconcebidas e modelos tericos. , portanto, por sua prpria natureza, emprico e deve ser trabalhado como tal (TOURY, 1995, p.1).1
Por meio do pensamento acima, Toury esclarece a sua postura em relao s
novas formas de se lidar com os objetos nos estudos de traduo. O objetivo das investigaes
no mais prescrever normas para o processo, nem procurar erros, mas a busca de uma
descrio de comportamentos regulares dos tradutores para que entenda como as tradues
so feitas. Isso seria o cerne das questes tericas, desenvolvidas por esses estudos.
A traduo, na perspectiva de Toury, centra-se no plo receptor e tenta
sistematizar um mtodo de anlise que consolida a interao do texto traduzido com o sistema
1 Todas as tradues sem referncias, ao longo desse trabalho, so do autor.
Whether one chooses to focus ones efforts on translated texts and/or their constituents, on intertextual relationships, on models and norms of translational behaviour or on strategies resorted to in and for the solution of particular problems, what constitutes the subject matter of a proper discipline of Translation Studies is (observable or reconstructable) facts of real life rather than merely speculative entities resulting from preconceived hypotheses and theoretical models. It is therefore empirical by its very nature and should be worked out accordingly.
21
receptor. O mtodo em questo uma elaborao da teoria dos polissistemas desenvolvida
por Itamar Even-Zohar (1990) da escola de Telavive.
De acordo com Else Vieira (1996, p.124), a teoria teve seus alicerces na
orientao histrica dos formalistas de Leningrado, no Estruturalismo de Praga e na semitica
russa. Sua formulao traz grandes contribuies para a contextualizao da traduo, j que
trata da interao entre o meio e o ato de traduzir, considerando, nas anlises, todo o aparato
organizacional social do sistema literrio a que se prope traduzir.
A teoria dos polissistemas pressupe que as normas sociais e as convenes
literrias na cultura de chegada ditam as pressuposies estticas dos tradutores e, como
conseqncia, afetam suas decises no momento da traduo. Nesse contexto, o processo
tradutrio passa a ser bem mais amplo. Como reforam Andr Lefevere (1992) e Toury
(1995), a teoria da traduo parece transcender os aspectos lingsticos. Nessa nova viso, o
processo da traduo tenta descrever no somente o processo de transferncia de um nico
texto, mas o processo de produo de traduo que possa transformar o sistema literrio como
um todo.
Clem Robyns (1994, p.406-409), por meio da noo ampliada de traduo,
corrobora essa idia de transformao do sistema. Ao discutir a traduo e a identidade
discursiva, o autor prope que os discursos de chegada devem ser estudados e no somente as
culturas e os textos isoladamente, pois esses elementos representam apenas tipos especficos
de prticas discursivas que esto inseridas num conjunto de outras prticas dentro de um
sistema cultural. Nesse sentido, a traduo poderia ser redefinida como a migrao e a
transformao de elementos discursivos entre discursos diferentes (literrio, acadmico,
poltico, cinematogrfico, etc) em que cada um desses discursos pode ser descrito como
ocupante de uma posio no sistema maior e como fundador de seu prprio sistema.
22
Even-Zohar (1990, p.12) refere-se teoria dos polissistemas como uma correlao
de sistemas literrios e no-literrios com a sociedade. O autor percebe o sistema literrio
como um conjunto de fenmenos semiticos que so agregados dinmicos e, como um
sistema no apenas sincrnico e diacrnico, ele tambm heterogneo. Assim, o termo
polissistema enfatiza a idia de uma multiplicidade de relaes na heterogeneidade da cultura.
Por considerar essa heterogeneidade cultural, a teoria dos polissistemas rejeita a idia de
julgamento de valor e selees elitistas, e, por essa razo, no tem a preocupao apenas com
obras canonizadas. Entretanto, reconhece a existncia de hierarquias culturais. Ao apoiar-se
no pressuposto de movimento dinmico de estratos dentro de um sistema de Tynianov, Even-
Zohar (1979, p.118) estabelece as relaes centro-periferia para tratar dos movimentos
centrfugos e centrpetos entre diferentes estratos no sistema. Nesse sentido, Even-Zohar
corrobora a idia de Tynianov no que diz respeito s tenses entre foras conservadoras ou
inovadoras, polticas, tipos e modelos dentro da estrutura do sistema como um todo.
Um outro ponto importante para a teoria de Even-Zohar sobre o estatuto
respectivo dos estratos, com base em Klovskij. O autor discute a desigualdade entre os vrios
estratos e a forma como estes se deslocam da posio cannica para a no-cannica e vice-
versa (EVEN-ZOHAR, 1979,119). O postulado de Even-Zohar uma tentativa de explicar a
funo de diferentes tipos de textos numa dada cultura, desde os cnones literrios at os mais
marginais. O pensamento do autor refora a idia de que a traduo de um determinado texto
est ligada a uma rede de relaes sistmicas, condicionadas a fatos sociais. Ou seja, o
processo de traduo sofre limitaes do contexto em que est inserido.
Para apresentar a nova teoria, o autor argumenta que a traduo deve ser
considerada no somente como uma simples reproduo de textos de um sistema para outro.
Ao contrrio, d ao texto traduzido a condio de elemento integrante do sistema literrio de
um pas, introduzindo a idia de que toda traduo tambm faz parte da cultura de chegada.
23
Ao reconhecer todos os aspectos envolvidos no processo como relevantes para a traduo,
Even-Zohar infere que:
[1] O problema da traduzibilidade deve ser reformulado. No to importante descobrir que sempre pouco provvel que um enunciado traduzido seja idntico ao seu original. Uma questo mais satisfatria parece, ao invs, ser sob quais circunstncias e de que forma particular, um enunciado/texto alvo b se relaciona (ou relacionvel) a um enunciado/texto-fonte a.
[2] Visto que os procedimentos de traduo produzem certos objetos num sistema-alvo e que so hipoteticamente envolvidos nos processos de transferncia (e procedimentos) em geral, no h razo para confinar as relaes de traduo somente aos textos propriamente ditos (...) (EVEN-ZOHAR, 1990, p.75).2
2 1) The problem of translability must be reformulated. It is of no great value to discover that it is always of a
lower probability that a translated utterance be identical with its original. A more adequate question seems rather to be under what circumstances, and in what particular way, a target utterance/text b relates (or is relatable) to a source utterance/text a. 2) Since translational procedures produce certain products in a Target system, and since these are hypothesized to be involved with transfer processes (and procedures) in general, there is no reason to confine translational relations only to actualized texts (...).
Percebemos, por meio desse posicionamento, o quanto Even-Zohar contribuiu
para os estudos de traduo, j que mudou uma perspectiva de anlise que ficava no mbito da
comparao de textos. Ao reconhecer as limitaes que esse tipo de anlise dava aos textos
traduzidos, ampliou os estudos para uma compreenso mais histrica, social e cultural do
funcionamento dos textos originais e dos textos traduzidos. Os princpios da teoria dos
polissistemas formalizaram os estudos descritivos de traduo e esto associados ao conceito
de reescritura de Lefevere (1992), o que ser discutido na prxima seo, j que esse conceito
configura-se como resultado de um desenvolvimento da teoria. Os pressupostos tericos, em
questo, so importantes para reforar a nova dimenso contextual do conceito de traduo
aqui proposto, que considera as diferentes leituras de uma obra literria para diferentes meios
de linguagem como prtica tradutria.
24
1.2 A REESCRITURA QUE UM TIPO DE TRADUO: CONSIDERAES SOBRE A TEORIA DAS REFRAES
Um conceito importante para a ampliao das novas abordagens de anlise do
texto traduzido o de reescritura, apresentado por Lefevere (1992), como uma forma de
traduo. Segundo esse conceito, a traduo a reescritura de um texto de partida e as
reescrituras, segundo o autor, afetam profundamente a interpenetrao dos sistemas literrios,
no somente pelo fato de projetar a imagem de um escritor ou uma obra em outra literatura ou
por fracassar em faz-lo, mas tambm por introduzir novos instrumentos no corpo de uma
potica, delineando mudanas. Como exemplo dessas mudanas, Lefevere (1992) aponta o
caso da ode que, segundo o autor, tornou-se um acessrio do sistema literrio francs na
poca da Pliade, por meio de tradues do latim. Uma outra situao parecida ocorreu um
pouco antes na Itlia em que a ode, tambm inspirada nas tradues do latim, tinha
imediatamente assumido o lugar ocupado pela canzone na potica do final da Idade Mdia
(LEFEVERE, 1992, p.38-39).
Com esse posicionamento, Lefevere compactua com os pressupostos tericos que
do prioridade ao plo receptor do sistema de chegada. Assim como Toury e Even-Zohar,
Lefevere concebe a traduo como um sistema de interao com outros sistemas semiticos e
como uma fora de delineao de sua literatura. Segundo Vieira, alm de compartilhar com
essa idia, Lefevere acrescenta novas direes, introduzindo novas dimenses, como a de
poder. A autora complementa:
Ele enfatiza o papel dos agentes de continuidade cultural, do contexto receptor na transformao de textos e criao de imagens de autores e culturas estrangeiras, bem como o da traduo na criao de cnones literrios. Ou seja, as tradues, produzidas dentro dos limites ideolgicos e poetolgicos da cultura receptora, tm tambm um efeito retroverso ao criarem imagens da cultura e cnones transculturais (VIEIRA, 1996, p.138).
25
Nesse sentido, a traduo assume um dilogo permanente com as estruturas
sociais e adquire uma grande autonomia e poder de transformao nas relaes de formao
do cnone de uma determinada obra. Ao ser posta dentro dos princpios da potica de um
certo sistema de chegada, a traduo estabelece dilogos entre fronteiras culturais e se difunde
por meio de diferentes linguagens e cdigos.
Lefevere (1982, p.3), ao discutir a teoria literria e a literatura traduzida, apresenta
algumas fases de abordagem na anlise da traduo literria. At o incio do sculo vinte, os
estudiosos estabeleciam em suas anlises um tipo de esttica estilstica comparativa. A idia
central era observar quo belas ou at sublimes certas expresses ou grupos de frases eram no
texto de partida e quanto dessa beleza perdia-se na traduo. Essa postura, segundo o autor,
favorecia a supervalorizao de uma lngua em detrimento da outra, estabelecendo uma forma
de imperialismo lingstico.
No final do sculo dezenove, os estudiosos acreditavam que a anlise da traduo
literria seria capaz de funcionar como base para afirmaes sobre problemas da filosofia
lingstica ou at da psicologia da lngua. Segundo Lefevere (1982:4), esse tipo de anlise
liderava afirmaes sobre a psicologia de diferentes autores, especialmente naqueles casos em
que um autor original traduzia outro. Como resultado desse tipo de abordagem, o autor
conclui que: isto levou produo de trabalhos do tipo X como tradutor de Y, nos quais
alguma afirmao era feita sobre X ou Y, ou sobre ambos, mas raramente sobre a traduo
(1982, p.4).3
3This led to the production of a number of monographs of the X as translator for Y type, in which some
statement was often made about X or Y, or both, but rarely about translation (LEFEVERE, 1982, p.4).
O desenvolvimento da lingstica moderna mudou radicalmente o estudo de textos
traduzidos. Os lingistas interessados em traduo quase nunca analisavam tradues da
literatura, porque eles as consideravam complexas demais. Nessa perspectiva de anlise, que
lida com elementos puramente lingsticos, esse um ponto de vista totalmente justificvel.
26
As abordagens em questo tentam construir modelos, ou, pelo menos, propor descries do
processo de traduo que fossem relevantes para o ensino da traduo. Um modelo construdo
com base na literatura traduzida teria que levar em conta todos os tipos de complexidades, tais
como conotao, aluses ou caractersticas especficas de certos gneros e formas, elementos
que no estariam presentes, ou pelo menos nesses termos, em textos menos complexos, ou
seja, os no-literrios. Isso refora o uso da noo de equivalncia em que as anlises tinham
como base elementos lingsticos ideais com a utilizao de exemplos normalmente fictcios.
Com o surgimento da traduo automtica de textos, os esforos foram
concentrados no estudo do processo de traduo, simplesmente porque um modelo
operacional desse processo era absolutamente necessrio para o funcionamento da mquina.
Ao se excluir a literatura traduzida do estudo do processo de traduo, os lingistas deram a
impresso de que h mais ou menos dois processos diferentes de traduo: um vlido para a
traduo da literatura e outro para a traduo de qualquer texto no literrio.
A distino entre possveis diferentes processos de traduo levanta uma outra
discusso que a competncia do tradutor nessas duas vertentes. Lefevere (1982, p.5) aponta
que todas as tradues literrias tm sido representadas como arte. Assim, pode-se at
afirmar que certas tradues literrias feitas sob essa competncia tm sido aceitas como
literatura da cultura alvo. Esse argumento parece plausvel se observarmos o nmero de
tradues de escritores estrangeiros em nosso pas que nunca sero lidos, ou pelo menos lidos
por poucos, na lngua de partida. E, no entanto, so bastante lidos e at discutidos por meio da
traduo, e poucos ou quase nenhum desses leitores se preocupam com o fato de tratar-se de
uma traduo.
Porm, a tentativa de isolar a especificidade da traduo literria em relao ao
processo de traduo como um todo vem, na viso de Lefevere (1978, p.5), de um conceito de
literatura ainda tacitamente aceito por muitos lingistas e tericos da literatura, que a idia
27
de linguagem literria em oposio linguagem comum ou coloquial. Essa idia
usada como um critrio para traar uma linha divisria entre os textos literrios e no-
literrios, argumento insustentvel na literatura contempornea. Alguns exemplos que
reforam a quebra da oposio o caso da poesia moderna que usou uma linguagem no
muito distante da linguagem coloquial; e os romances modernos, especialmente os realistas,
que usaram linguagem similar.
Assim, no escopo da traduo, no se pode traar uma distino radical entre
textos literrios e no-literrios. Lefevere (1982, p.5) sugere, em vez disso, uma distino
gradual. Essa distino de natureza gradual tem implicaes para a competncia especfica
dos tradutores literrios. O autor sustenta:
Ser obviamente de um tipo diferente da esperada dos tradutores que lidam com a bioqumica, voltando ao exemplo anterior. Mas isto no necessariamente implica que a competncia esperada do tradutor de literatura deva ser algo concebido como de carter superior. O tradutor de textos histricos, por exemplo, tambm tem a sua competncia que diferente tanto da do tradutor literrio quanto da do tradutor de textos de bioqumica. Porm este no um argumento plausvel para se comear a estabelecer distines entre traduo literria, bioqumica, histrica, nuclear, diettica. A subdiviso do processo de traduo dessa forma somente leva total atomizao: todo tipo de traduo teria que ter o seu prprio processo especfico. 4
Com tal argumento, a discusso de Lefevere, em relao ao fazer tradutrio,
apresenta uma inteno de contextualizar o processo e questiona um discurso de superioridade
dos tradutores literrios. A discusso do impasse sobre a subdiviso ou no do processo de
traduo e sobre a competncia do tradutor torna-se mais produtiva quando o autor pressupe
uma transcendncia aos aspectos lingsticos e insere os fatores extra-lingsticos, como
pontos importantes para a anlise de um texto traduzido, seja literrio ou no-literrio.
4 It will obviously be of a different kind than that expected of translators of texts dealing with biochemistry, to go
back to a previous example. But this does not necessarily imply that the competence expected of the translator of literature should somehow be thought of as being of a higher order. The translator of historical texts, e. g., also has his or her competence, which is different from both that of the translator of literature and the translator of texts on biochemistry. Yet this is no valid reason to start establishing distinctions between literary, biochemical, historical, nuclear, dietetic translating. Subdividing the translation process in this way only leads to total atomization: every kind of translation would have to have its own specific process.
28
Assim, o ponto de vista de Lefevere converge para os princpios da teoria dos
polissistemas de Even-Zohar (1990) e para os estudos descritivos de traduo, apresentados
por Toury (1995). Ao propor a distino gradual dos textos literrios e noliterrios, em vez
da radicalizao na distino, o autor compactua com a idia de que a traduo e o seu
processo no podem mais estar ligados somente a questes lingsticas. Portanto, no podem
ser mais dissociados dos contextos e da cultura.
A especificidade da competncia do tradutor literrio no se apresenta mais
somente no nvel do processo tradutrio, mas tambm na forma como o produto, ou seja, a
traduo, funciona na lngua ou na cultura-alvo. Portanto, para Lefevere (1992, p.6), o estudo
da literatura traduzida no deve contribuir somente para os estudos de traduo, mas tambm
para o estudo da literatura como um todo.
Apesar de Lefevere adotar princpios da teoria dos polissistemas, Vieira (1996,
p.143) vislumbra um novo direcionamento dado pelo autor a essa teoria. Enquanto Even-
Zohar dinamiza a sua teoria pela interao de vrios sub-sistemas literrios, estabelecendo a
posio de domnio que cada sub-sistema busca nos eixos sincrnicos e diacrnicos, Lefevere
dinamiza a sua teoria pelo conceito de crescimento, resultado da interao de fatores
intrnsecos e extrnsecos. Segundo a autora:
Ao invs de sub-sistemas literrios conflitantes, percebemos em Lefevere que a metaliteratura ou as refraes exercem um papel ancilar. que elas propiciam o crescimento e a sobrevivncia dos textos ou determinam seu ostracismo, e o resultado desse papel ancilar que as refraes empurram uma literatura numa certa direo (VIEIRA, 1996, p.143).
Para a sustentao dessa nova proposta, Lefevere (1982:6-13) traa uma separao
fundamental entre dois conceitos de literatura e, conseqentemente, duas vertentes de anlise
nos estudos literrios: o conceito de corpus e o conceito de sistema. A vertente que lida com o
conceito de corpus tem caracterstica prescritiva e restringe a posio que a traduo pode
ocupar no estudo da literatura. Lida com o conceito de traduo boa ou ruim, pois tem
29
como foco principal o texto literrio como produto. Segundo o autor, essa concepo tem
como base dois princpios essencialmente romnticos: a noo de genialidade e a noo de
sacralizao do texto literrio (noes que dividem a traduo literria das outras). Ambos os
conceitos esto ligados aos mesmos princpios dos texto religiosos, ou seja, a genialidade
representa a manifestao de algo divino no autor do texto. E se um texto literrio produto
da genialidade, ele pode ser considerado boa literatura (cannica) e, conseqentemente,
pode ser usado como padro para avaliao ou produo. Qualquer tentativa de deteriorao
desse texto torna-se quase um sacrilgio. , portanto, um texto nico e a sua traduo
representa uma ameaa para o carter nico do original e, portanto, para o conceito exato de
literatura com um corpus. Por isso, o texto no pode ser traduzido.
Podemos perceber que, nessa vertente, h um corpus cannico sagrado como a
noo central da teorizao literria. Para apresentar a sua outra vertente, o autor usa
simplesmente a idia de dessacralizao dos textos literrios e acrescenta o conceito de
sistema literrio (LEFEVERE, 1982, p.13).
Lefevere, de forma alguma, nega a importncia que alguns textos literrios
assumem em determinados sistemas literrios e na sociedade na qual a literatura est inserida.
O que o autor nega o fato de que esses textos existam, para todos os efeitos, somente na sua
forma nica, j que os textos literrios so circundados pelo que ele chama de textos
refratores. Os textos refratores so aqueles processados para determinadas audincias, ou
adaptados para uma determinada potica ou para uma determinada ideologia. Como exemplo
desse tipo de texto, Lefevere apresenta as dissertaes produzidas na Alemanha Oriental entre
1933 e o presente. Os mesmos textos so facilmente adaptados (ele at fala que talvez
reduzidos fosse a melhor palavra para se definir a questo) para os devidos contextos. Em
ambos os casos, as ideologias desses contextos so radicalmente opostas. O processo de
refrao, segundo o autor, para que ambos sobrevivam.
30
Um outro exemplo que poderamos acrescentar para ilustrar a questo da refrao
de um texto por meio da ideologia o caso da reescritura de textos para o pblico infantil. O
stio do Pica Pau Amarelo, com base na obra de Monteiro Lobato, por exemplo, est sendo
reescrito para TV atualmente com leituras diferentes daquelas da dcada de oitenta. Essas
novas releituras levam em conta o contexto sociocultural atual das crianas brasileiras, ao
inserir elementos tais como os novos recursos tecnolgicos (elementos visuais e sonoros) dos
meios de comunicao e a prpria contextualizao da linguagem, que levam em conta a
forma atual de interao entre as crianas.
A releitura de Monteiro Lobato na TV entra em consonncia com um
posicionamento poltico do autor nas dcadas de 30 e 40, por ocasio da tentativa de ampliar o
mercado editorial brasileiro para um pblico maior. Segundo John Milton (2002, p.27),
Lobato buscou popularizar o livro (incluindo as tradues), fazendo com que fosse vendido
como mercadoria em lojas e bancas de jornais, produzindo capas atraentes, reduzindo, assim,
muito da aura que o circundava, pois, para ele, a leitura deveria tornar-se uma atividade
recreativa. A traduo passa, ento, a desempenhar um papel fundamental no sistema literrio
brasileiro, como refora Milton:
O novo consumidor de classe mdia, ou de classe mdia baixa, muito provavelmente no conhecia lnguas estrangeiras, no havia herdado biblioteca, no usufrua capital cultural, mas estaria preparado para ampliar o prprio conhecimento (MILTON, 2002, p.27).
Na concepo de sistema de Lefevere, os textos refratores, ou metatextos, so os
principais responsveis pelo estatuto de canonizao de um corpus, pois a prpria potica de
uma literatura j uma refrao, medida que no momento da sua primeira formulao, ela
reflete implcita ou explicitamente a prtica dominante desse perodo. A partir das
reescrituras, alguns textos literrios saem da periferia do sistema para o centro.
Segundo Vieira (1996, p. 143), em meados da dcada de 80 que Lefevere
gradualmente substitui o termo refrao por reescritura e expande o construto terico de
31
sistema. O uso do termo sistema, segundo Lefevere (1992, p.12), no tem relao com o
termo Sistema (com letra maiscula) nem tampouco com a conotao Kafquiana, no sentido
de referir-se aos aspectos mais sinistros dos poderes. O sistema, para o autor, um termo
neutro, descritivo e usado para designar um conjunto de elementos interrelacionados que por
acaso dividem certas caractersticas que os diferem de outros elementos que no pertencem ao
sistema.5
5 A neutral, descriptive term, used to designate a set of interrelated elements that happen to share certain
characteristics that set apart from other elements perceived as not belonging to the system.
Ao estabelecer a operao do sistema literrio, Lefevere (1992, p.14) aponta um
mecanismo de controle partilhado por dois elementos: um interno e outro externo ao sistema.
O elemento interno representado pelos tradutores que reimprimem determinadas obras que
contrariam a viso predominante do que deveria ser literatura (a potica), ou do que deveria
ser a sociedade (ideologia). Esses profissionais, na maioria das vezes, reescrevem obras
literrias at que elas se tornem aceitas na potica e na ideologia de uma determinada poca
ou lugar. No caso dos filmes, temos os roteiristas e diretores.
O elemento externo representado pelo poder, ou seja, pessoas, editores e
instituies que auxiliam ou impedem a escrita, leitura ou reescritura de uma literatura e
denominado patronagem. Esse elemento est mais interessado na ideologia da literatura do
que na potica e consiste basicamente de trs componentes: o ideolgico, o econmico e o
status. O componente ideolgico diz respeito s limitaes na escolha e no desenvolvimento
do objeto. O componente econmico diz respeito questo da escrita e reescritura como meio
de sobrevivncia. E o status diz respeito aceitabilidade por determinados grupos e seus
estilos.
Os dois elementos representam, na verdade, restries e exercem influncias sobre
a escrita e a reescritura da literatura. Porm, alm das restries, outras tambm se configuram
no cenrio desse processo, tais como a idia do universo do discurso, ou seja, um universo
32
formado pelos conceitos, pessoas, lugares e outros aspectos que afloram nos textos; a prpria
lngua na qual o texto reescrito; e no caso da traduo, o prprio texto de partida. Vieira
(1996, p.144) apresenta a discusso de Lefevere:
Lefevere ressalta tambm que pelo menos uma dessas restries regula as atividades de reescrita literria. A reescrita, por sua vez, influencia os destinos da obra. A historiografia, por exemplo, faz, com a obra, como um todo, o que a crtica faz com textos individuais ou a encaixa na corrente ideolgica ou poetolgica ou a reduz a escritas menores. Na mesma linha de raciocnio, a antologizao tende a refletir os julgamentos da histria literria e a moldar o gosto do pblico, principalmente o dos estudantes que so apresentados aos autores atravs de antologias.
Observamos, por meio dessa posio, a interseo constante entre os textos e as
restries a que so submetidas as suas reescrituras dentro de um sistema. Observamos
tambm que as reescrituras detm um poder importante na formao do cnone e no
estabelecimento do texto enquanto elemento pertencente ao sistema alvo. Nesse contexto, a
traduo tambm uma forma de reescritura, j que est sujeita a todas as modalidades de
restries, mas assume uma dimenso importante como sinal de abertura de um sistema alvo,
por meio da manipulao de conceitos e palavras que representam o poder numa determinada
cultura. Dessa forma, a traduo, na linha terica de Lefevere, concebida, assim como os
estudos descritivos, como fenmeno de cultura pelas observaes conferidas ao produto, j
que a anlise s pode ser feita a partir de um elemento concreto, o texto. Contudo, tambm
concebida como processo, pois esse elemento no a nica fonte a ser considerada.
Portanto, valemo-nos dessa discusso terica de Lefevere para observar e analisar
o nosso corpus. Muitas so as razes pela quais optamos por tais princpios, mas o prprio
fato de estarmos trabalhando com vrias leituras de um romance j parece ser um argumento
suficiente para justificar a escolha. A primeira questo que levantamos o fato de estarmos
lidando tambm, em nossa anlise, com a traduo de objetos de linguagens diferentes, sendo
descartada qualquer possibilidade de emprego de mtodos lingsticos de anlise de traduo.
Esse posicionamento, provavelmente, reduziria a anlise ao estudo de equivalncias entre
33
aspectos da obra original, os romances e os filmes, considerando o grau de fidelidade que o
tradutor teria conferido traduo. A outra questo que, ao lidarmos com a traduo nesses
termos, estamos contribuindo para uma ampliao do prprio conceito de traduo que nos
facilita inserir as anlises de adaptao de obra literria para o cinema nos estudos de traduo
e tratar das reescrituras de uma obra literria como diferentes formas de traduo.
Ao adotarmos essa postura terica, estamos tomando como base princpios da
sistematizao terico-metodolgica dos estudos da adaptao como traduo, de Patrick
Cattrysse (1992). O autor recorre a postulados da teoria dos polissistemas de Even-Zohar
(1990) e aos estudos descritivos de Toury (1995) para defender e consolidar o argumento de
que o processo de transmutao entre signos do texto literrio para o texto cinematogrfico
uma tarefa essencialmente de traduo. Portanto, pelo reconhecimento de tal estatuto, o autor
reivindica a insero dos estudos da adaptao dentro dos estudos de traduo, contribuindo,
assim, para a ampliao do conceito de traduo. Trata-se de uma posio relativamente
recente e, ainda, controversa em alguns setores da academia. Isso se deve, entre outros fatores,
s questes postas acima em que o texto literrio assume uma posio de intocvel e a sua
adaptao para outro meio de linguagem implicaria, necessariamente, na sua desfigurao
enquanto objeto artstico.
Catrysse (1995, p.17) constata que se trata de um erro considerar que, ao contrrio
da adaptao (flmica ou qualquer outra), a traduo seria mais fiel ao texto de partida.
Assim, a adaptao, como a traduo, tambm segue os critrios de aproximao ou
distanciamento de um texto-fonte, por isso, no pode ser dissociada da prtica tradutria. A
idia central que norteia o argumento de Catrysse que a traduo lingstica ou literria e a
adaptao flmica se distinguem sob o ponto de vista do processo de produo, pois o
processo de criao d-se em contextos sociais diferentes, como tambm da recepo, pois o
contexto social de recepo de um texto literrio diferente da leitura e recepo de um
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filme, por exemplo. Dessa forma, Catrysse revisou o conceito de traduo e ampliou o foco de
interesse da disciplina.
Assim como Catrysse, Lefevere tambm teve a sua contribuio na ampliao do
foco nos estudos de traduo. Segundo Paulo Oliveira (1999, p.57), no incio da dcada de
noventa, as propostas de Lefevere relativas s novas noes e categorias para os estudos de
traduo modificaram a abordagem da disciplina. A traduo passa, ento, a ser considerada,
nessa viso, a reescritura de um texto de partida.
Ao observarmos o redimensionamento do romance Mrs. Dalloway, ao ser
traduzido para a literatura e para o cinema, por exemplo, podemos levantar alguns pontos
sobre a idia de reescritura. Explica-se: a obra assumiu uma nova proposta narrativa quando
traduzida para outro sistema, ou para outra linguagem. Ou seja, questes temticas ou at
mesmo estruturais do romance de partida foram enfatizadas, mas os enredos apresentam
traos particulares, ligados ao contexto potico e poltico em que as produes esto inseridas.
Por conseguinte, a reescritura desse texto , de certa forma, manipulada sob o ponto de vista
das interpretaes feitas pelos agentes, envolvidos na traduo (escritor, roteiristas e diretores
etc), j que a realizao de um filme uma tarefa essencialmente coletiva.
Ainda sob essa perspectiva, parece relevante ressaltar tambm o aspecto
manipulador do processo de reescritura. Para justificar esse posicionamento, Lefevere
apresenta o poder das reescrituras para introduzir novos conceitos, gneros, mecanismos
numa determinada sociedade. Para esclarecer como se d o processo de manipulao,
Lefevere (1992, p.1-7) estabelece uma diferena importante entre os leitores comuns e os
especialistas. Segundo o autor, esses especialistas tm uma importncia muito grande na
criao da imagem do texto para o pblico em geral porque so os responsveis pela recepo
e sobrevivncia desses textos. Para ilustrar essa idia, temos:
Quando os leitores comuns de literatura (e deveria ficar claro que o termo no implica julgamento de qualquer natureza. Simplesmente se refere
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maioria dos leitores nas sociedades contemporneas) dizem que eles leram um livro, o que eles querem dizer que tm uma certa imagem deste livro em suas mentes. Este construto sempre livremente baseado em algumas passagens selecionadas do texto propriamente dito do livro em questo (as passagens includas em antologias usadas na educao secundria ou universitria, por exemplo), suplementadas por outros textos que reescrevem o livro de outras formas, tais como resumos em histrias literrias ou em obras de referncia, resenhas em jornais, revistas, ou peridicos, alguns artigos de opinio, apresentaes no palco ou na tela, e por ltimo, mas no menos importante, as tradues.6
6 When non-professional readers of literature (and it should be clear by now that the term does not imply any
value judgment whatsoever. It merely refers to the majority of readers in contemporary societies) say they have read a book, what they mean is that they have a certain image of that book in their heads. That construct is often loosely based on some selected passages of the actual text of the book in question (the passages included in anthologies used in secondary or university education, for instance), supplemented by other texts that rewrite the actual text in one way or another, such as plot summaries in literary histories or reference works, reviews in newspapers, magazines, or journals, some critical articles, performances on stage or screen, and last but not least, translations.
Percebemos, por meio do discurso do autor, que h uma grande variedade de
formas de reescritura de um texto e que essas reescrituras exercem um poder de apresentar,
consagrar e difundir novos parmetros. A traduo assume tambm a condio de criadora de
imagem de um texto, o que amplia radicalmente as distines tradicionais no escopo da
disciplina. O prprio Lefevere afirma:
As tradues so, portanto, apenas um tipo de texto que cria a imagem de um outro texto. Outros tipos seriam a crtica, a historiografia, o comentrio e a antologia, que sero desconsideradas neste espao, mas no deveriam ser desconsiderados nos estudos da traduo (apud OLIVEIRA, 1999, p.58).
As questes de reescritura do texto esto muito ligadas a uma potica do sistema
literrio na qual se estabelecem ideologias e se chega ao prestgio literrio de uma
determinada obra. As reescrituras, segundo Lefevere (1992), tm um papel de grande
relevncia na difuso de uma obra literria num dado sistema. O autor cita como exemplo a
poesia de John Donne que parecia desconhecida e no era lida desde algumas dcadas aps a
sua morte at a sua redescoberta por T. S. Eliot. Ele cita tambm outros escritores modernos e
os clssicos feministas publicados nas dcadas de vinte, trinta e quarenta, reeditados nas
dcadas de setenta e oitenta.
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Quanto ao papel das reescrituras, ainda poderamos apresentar os exemplos das
adaptaes literrias que difundem o universo literrio de alguns autores e fazem renascer os
seus livros. Aqui no Brasil, poderamos citar, entre muitos outros, a minissrie Os Maias
(2001), transmutada do romance de Ea de Queiroz, e os filmes Memrias Pstumas (2001) e
Dom (2003), transmutados do romance de Machado de Assis. Em todos os casos, os textos
reescritos nas telas contriburam para que os livros fossem reeditados, facilitaram a volta aos
textos de partida, motivando a leitura deles.
Um outro exemplo de reescritura a minissrie Presena de Anita, escrita por
Manoel Carlos, que foi ao ar, na Rede Globo, em 2001. A trama foi inspirada no livro
homnimo de Mrio Donato (1948). O romance brasileiro anterior ao clssico Lolita do
escritor russo Wladimir Nabokov, publicado em 1955. Ambos tratam do mesmo assunto, ou
seja, o caso de amor entre uma adolescente e um quarento, mas que tomaram direes
diferentes. O romance de Donato causou muita polmica, provocou tanto a leitura por parte
dos jovens quanto a crtica severa por parte da Igreja. Essa reao dupla de grande aceitao
e, ao mesmo tempo, rejeio se deu pelo fato de o livro abordar um tema considerado tabu
para a sociedade da poca. Segundo Jadyr Pavo (2002, p.116), o romance fez sucesso por
uma dcada. Logo em seguida, juntamente com o escritor, foi esquecido. A traduo para a
TV em 2001, pela Rede Globo, retoma os mesmo temas do romance, mas diferente dele, no
sofre mais rejeio por parte do pblico. Isso porque as questes tratadas so, naquele
momento de sua exibio, temas recorrentes, discutidos abertamente em outros programas,
como as novelas, por exemplo, e no sofrem mais censura institucional, principalmente, por
parte da igreja. Ao contrrio, a srie foi um grande sucesso.
O romance de Nabokov, por sua vez, foi difundido aqui no Brasil por meio da
traduo, tanto na literatura quanto no cinema. As tradues cinematogrficas de Stanley
Kubrick (1962) e Adrian Lyne (1998) ampliaram o pblico receptor da obra literria e
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contriburam para que a personagem Lolita se tornasse um smbolo de jovem sedutora. Esse
fato pode ser interpretado do ponto de vista da interferncia da produo e distribuio
hollywoodiana e do alcance da lngua inglesa nos centros produtores de cultura, conforme
observou Dcio Cruz (2004).
importante ressaltar que embora o romance de Donato j tivesse sido
transmutado para a TV em A Outra Face de Anita (1964) pela TV Excelsior, parece que foi a
obra de Nabokov que ficou como referncia. Uma evidncia clara disso a prpria
reportagem da Revista poca, publicada dias antes da estria da minissrie em 2001,
intitulada A Lolita Brasileira. Vejamos que o romance brasileiro anterior ao romance
norte-americano, mas no parece ter alcanado a dimenso do clssico estrangeiro. Alguns
elementos contextuais podem nos dar suporte para uma explicao do fenmeno. O romance
brasileiro foi alvo de crtica e at da sugesto de recolhimento dos exemplares pela associao
das Senhoras Crists de So Paulo (VELLOSO, 2002, p.116), representando, para a poca,
um produto cultural que subvertia os princpios morais familiares. O romance estrangeiro,
alm de ter sido lido por meio da traduo, ainda foi difundido pelo cinema e pela prpria
crtica literria, j que Nabokov tem o prestgio de bom escritor. E isso explica, de certa
forma, o impacto das reescrituras no estabelecimento da obra no sistema literrio brasileiro.
A minissrie Presena de Anita alcanou uma conquista importante: a motivao
da reedio do livro e, conseqentemente, a volta de sua leitura. Por meio dessa minissrie de
TV, o universo literrio do escritor Mrio Donato foi reescrito num novo contexto para uma
nova audincia, e boa parte dela, provavelmente, seria influenciada a consultar o texto de
partida.
Tratando dessa questo, Cruz (1997, p.3) discute a presena de um grande nmero
de reescrituras das obras de Shakespeare e Jane Austen, na dcada de noventa, nos Estados
Unidos. O autor apresenta alguns dados que corroboram o nosso argumento quanto ao papel
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que as reescrituras assumem nos sistemas de chegada. O filme Sense and Sensibility,
traduzido de um romance de Jane Austen, publicado em 1811, segundo o autor, ficou em
cartaz por vrias semanas, nos Estados Unidos, no ano de 1996, com cinemas lotados. O
romance uma comdia refinada que trata de forma satrica a importncia do dinheiro e do
casamento para a classe mdia inglesa daquela poca. O filme Jeffrey, por outro lado, que
trata de assuntos bem mais atuais como as relaes humanas naquela dcada e o problema da
Aids, ficou poucos dias em cartaz e atraiu um pequeno pblico. Diante desse fato, Cruz faz as
seguintes indagaes:
Qual ser o fator que gera esse interesse? A fuga das complexidades da realidade atual, onde as relaes humanas se tornam cada vez mais complicadas? Ou a busca de uma histria divertida, bem escrita e bem contada? Talvez as duas alternativas (CRUZ, 1997, p.3).
O prprio autor chega concluso de que qualquer que seja a explicao para esse
fenmeno, o sucesso dessas reescrituras, tanto na tela como nos palcos provoca a leitura dos
textos originais e ajuda a manter a literatura viva. Um outro exemplo apresentado por Cruz
o caso do lanamento do filme Quatro casamentos e um Funeral, que colocou uma edio
de poemas de W. H. Auden na lista de best-sellers. Isso se deu pelo fato de, no filme, o nome
do autor ser mencionado e um de seus poemas Funeral Blues declamado. Assim, evidencia-
se tambm o impacto das adaptaes sobre a literatura.
Com essa discusso sobre a definio de reescritura, que engloba diversos gneros
textuais e mecanismos de construo da imagem de outro texto, colocamos o texto
cinematogrfico de Marleen Gorris, o texto literrio de Michael Cunningham e o texto
cinematogrfico de Stephen Daldry como reescrituras do romance de Woolf. Levamos em
considerao, para efeito de nossa anlise, dois pontos importantes defendidos por Lefevere:
as diferentes reescrituras desses textos, por meio da crtica, tanto literria, quanto
cinematogrfica e o novo valor que as adaptaes assumem nos estudos de traduo.
Lefevere (1992, p.9), tentando incluir o audiovisual na sua proposta, diz:
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O mesmo processo bsico de reescritura est em ao na traduo, na historiografia, nas antologias, na crtica e na editorao. Est obviamente tambm em ao em outras formas de reescritura, tais como adaptaes para filme e televiso, mas essas fogem minha rea de competncia e por isso no sero tratadas aqui.7
A idia de traduo como reescritura amplia os estudos de traduo e d traduo intersemitica novas perspectivas de anlise. O termo adaptao, por sua natureza
polissmica, utilizado h muito tempo nos estudos tradicionais como sinnimo de modificao de um texto de um sistema de linguagem para outro. Nessa nova viso, a
adaptao passa a ser considerada uma instncia da traduo, vista no como semelhana, mas, principalmente, como diferena.
Continuando nossas consideraes sobre o ato tradutrio, discutiremos, na prxima seo, questes mais especficas do processo de transmutao do signo. Teremos,
como base, alguns princpios da Traduo Intersemitica.
1.3 A INTERSEMIOSE ENTRE AS LINGUAGENS LITERRIA E CINEMATOGRFICA
Julio Plaza (2001, p.17), na tentativa de formulao de uma teoria prpria da
traduo intersemitica, recorre a princpios da semitica peirceana para tratar de questes
relacionadas ao signo e a sua transmutao nas diferentes linguagens. O autor se apia na
idia de Charles Peirce no que diz respeito ao tratamento do signo no como unidade
monoltica, mas um complexo de relaes tridicas (signo, objeto e interpretante). Essas
relaes esto sempre ocasionando um poder de autogerao, o que caracteriza o processo
sgnico como um contnuo. Essa definio de signo de Peirce, portanto, explica o processo de
ao do signo (semiose) como uma transformao de signos em signos. Dessa forma, tal
fenmeno ocorre por meio de uma relao de momentos num processo sequencial-sucessivo
ininterrupto. Essa relao dinmica assim discutida pelo autor:
7 The same basic process of rewriting is at work in translation, historiography, anthologization, criticism, and
editing. It is obsviously also at work in order forms of rewriting, such as adaptations for film and television, but these are outside of my area of expertise and will therefore not be dealt with here.
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A idia mais simples de terceiridade dotada de interesse filosfico a idia de um signo ou representao. Um signo representa algo para a idia que provoca ou modifica. Ou assim um veculo que comunica mente algo do exterior. O representado seu objeto; o comunicado, a significao; a idia que provoca, o seu interpretante. O objeto de representao que a primeira representao interpreta. Pode conceber-se que uma srie sem fim de representaes, cada uma delas representando a anterior, encontre um objeto absoluto como limite. A significao de uma representao outra representao. Consiste, de fato, na representao despida de roupagens irrelevantes; mas nunca se conseguir despi-la por completo; muda-se apenas de roupa mais difana. Lidamos apenas, ento, com uma regresso infinita. Finalmente, o interpretante outra representao a cujas mos passa o facho da verdade; e como representao tambm possui interpretante. A est nova srie infinita! (PEIRCE, 1980, p.93).
Percebemos por meio do pensamento de Peirce que o processo de ao do signo
uma condio essencial da linguagem, e a prpria atitude humana de pensar se d pela
mediao dos signos, j que pensamos atravs deles. Partindo dessa idia, instaura-se a
primeira relao dessa ao constante dos signos com o fenmeno tradutrio, pois se verifica,
desde ento, um carter de transmutao de signos em signos.
O processo constante de transmutao entre os signos torna o pensamento
necessariamente uma traduo, j que, quando pensamos, traduzimos o que est presente em
nossa conscincia, sejam imagens, sentimentos ou concepes em outras apresentaes que
funcionam tambm como signos. Como conseqncia, qualquer pensamento a traduo de
outro pensamento para o qual ele funciona como interpretante (PLAZA, 2001, p.18).
Essa discusso de Plaza esclarece o posicionamento de Peirce, no que diz
respeito ao processo de significao e classificao do signo, por considerar todo
pensamento como um signo, colocando o prprio homem como um signo tambm. Como
refora Peirce:
que a palavra ou signo usado pelo homem o prprio homem. Se cada pensamento um signo e a vida uma corrente de pensamento, o homem um signo; o fato de cada pensamento ser um signo exterior prova que o homem um signo exterior. Quer dizer, o homem e o signo exterior so idnticos, no mesmo sentido em que as palavras homo e homem so idnticas. A minha linguagem, assim, a soma de mim prprio; porque o homem o pensamento (PEIRCE, 1980, p.82).
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Para entendermos melhor essas relaes constantes de significao que so
imanentes prpria constituio do signo, na sua dinmica de reproduo de significados,
precisamos recorrer aos princpios da relao tridica de Peirce na qual esto apresentadas
questes ligadas problemtica do significado. Com essa relao, o autor estabeleceu que
todo processo sgnico opera entre os trs elementos de semiose.
Dcio Pignatari (1987, p.41)8 se apia no diagrama triangular em que Ogden e
Richards tentaram traduzir a relao tridica de Peirce com relao ao significado para
interpretar os problemas envolvendo os termos signo ou representante, objeto ou referente e
interpretante:
Com base nesse diagrama triangular e com referncia ao signo, ao objeto e ao
interpretante, essas trs tricotomias, consideradas as mais importantes de Peirce, foram
situadas no vrtice-do-signo, no vrtice do objeto e no vrtice-do-interpretante. Para efeito
dessa discusso sobre as questes da traduo intersemitica, concentraremos a ateno no
vrtice do objeto, ou seja, o signo em relao ao seu objeto, que pode ser um cone, um ndice
ou um smbolo.
8 Esse diagrama apresentado por Pignatari uma interpretao e adaptao do diagrama de Ogden e Richards.
Nele, o autor apresenta o terceiro vrtice criado por Peirce, chamado interpretante, que o signo de um signo, pois que engloba no somente Objeto e Signo como a ele prprio, num continuo jogo de espelhos.
Figura 1(Diagrama triangular de Ogden e Richards)
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Os cones so signos que operam pela grande semelhana entre suas qualidades,
seu objeto e seu significado. Os cones so tambm signos de qualidade em relao aos seus
objetos imediatos. Os significados que denotam so meros sentimentos, tais como o
sentimento despertado por uma pea musical ou uma obra de arte. Ao olhar mais
profundamente para esse tipo de signo, Peirce (1980, p.27) estabeleceu tambm os chamados
hipocones, ou cones j materializados, tais como as imagens, os diagramas, as metforas.
As imagens so consideradas aquelas de qualidade primeira; os diagramas so aqueles que
representam relaes didicas e anlogas entre as duas partes constituintes, e as metforas so
aquelas que tendem representao e traam algum paralelismo com algo diverso. Para
Pignatari (1987, p.46), o cone um signo que est no nvel da primeiridade, ou seja, no reino
dos possveis.
Os ndices operam antes de tudo pela contigidade de fato vivida. So signos
determinados pelo seu objeto dinmico que esto para com ele em relao ao real. Ao
considerarmos o ndice em relao ao seu objeto imediato, ele um signo de um existente.
Como exemplo, poderamos citar as fotografias instantneas que, por representarem, em
certos aspectos, os objetos, so instrutivas. Isso se d pelo fato de ter semelhana com a
realidade a qual representam, por corresponder, com detalhes, a essa realidade.
Os smbolos operam, sobretudo, por contigidade institutiva, ou seja, por uma
aproximao existente entre sua parte material e o seu significado. O seu objeto dinmico o
determina apenas no sentido de ser assim interpretado. Dessa forma, o smbolo depende de
uma conveno ou hbito. , portanto, em relao ao seu objeto imediato, um signo de lei.
Percebemos, a partir das definies dessas caractersticas de signos, que eles se
completam no processo de semiose. Assim, o signo no um objeto, mas um processo de
intermediao, que tende comunicao para dentro e autopreservao concretiva para
fora, ou seja, dois movimentos de posies opostas centrfugo e centrpeto. Segundo Plaza
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(2001, p.22), esse processo de dentro para fora, de transformao num outro tem um grande
efeito na dinmica da semiose. Ele afirma:
Esse processo de remessa, para dentro e para fora, de transformao num outro, evidencia, de um lado, o enraizamento do smbolo no-simblico, isto , no ndice e no cone, evidenciando, de outro lado, que s h signos produzindo sentidos para interpretantes, descartada a possibilidade da coisa atravs do signo (o signo torna presente a ausncia do seu objeto), porque esta, a coisa substituda, j signo para um interpretante (PLAZA, 2001, p.22).
Com esse posicionamento do autor, parece clara a condio de continuidade do
signo na produo de sentido e significao. E essa continuidade plena da tricotomia o que
caracteriza a linguagem na sua funo representativa e comunicativa e a relao do signo com
o pensamento.
Lcia Santaella (1985, p.75-78), no intuito de sintetizar a grande quantidade de
definies de signo, algumas mais detalhadas e outras mais simplificadas, distribudas pelos
textos de Peirce, tenta esclarecer que o signo um sinal que representa ou est no lugar de
algo, ou seja, o seu objeto. Assim, algo s poder funcionar como signo se