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Tese de doutorado
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL
Patrcia Spindler
Danando com Pina Bausch: experimentaes contemporneas
Porto Alegre 2007
1
Patrcia Spindler
Danando com Pina Bausch: experimentaes contemporneas
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Psicologia Social e Institucional. Programa de Ps Graduao em Psicologia Social e Institucional. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com apoio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES
Orientadora Tania Mara Galli Fonseca
Porto Alegre 2007
2
Patrcia Spindler A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao (ttulo e subttulo)___________________________________________________________ _____________________________________________________, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertao defendida e aprovada em:__/__/__ Comisso Examinadora:
_________________________________________________________________ (Nome, Assinatura, Titulao e Instituio)
_________________________________________________________________ (Nome, Assinatura, Titulao e Instituio)
_________________________________________________________________ (Nome, Assinatura, Titulao e Instituio)
3
Dedico este trabalho ao meu amor Rafael, companheiro de vida, que
com sua sensibilidade, se fez presente intensamente durante toda esta jornada
e para muito alm dela...
4
AGRADECIMENTOS
Ao Rafael, com todo meu amor, pela ateno e todos os afetos durante esta jornada. Ao meu pai Jaime, pela convivncia enriquecedora que contribui muito para que
chegasse at aqui do jeito que sou. minha me Vera e ao Danton, pela fora sempre positiva, que me ajuda muito a
acreditar em mim mesma. minha orientadora Tania, pela liberdade, vnculo, estmulo e conhecimento
necessrios. minha terapeuta Maria Clia, por me ajudar a reconhecer as minhas foras e a
potncia da nossa profisso. s grandes famlias, Berghan, Spindler e Hoffmann, sempre marcando presena
com incentivos. Cooperativa da Dana, to viva e presente nos estudos, pesquisas e no desejo de danar a vida. Em especial amiga Denise Pacheco pela ajuda de todas as horas e
pelo fundamental emprstimo da sua biblioteca. Aos amigos e colegas, por dividirem pensamentos e as prticas da profisso e da
vida. Aos professores do PPGPSI, pela seriedade e dedicao.
vida, por todas as suas possibilidades.
5
O corpo no muda apenas para se deslocar, ele se transforma por milhares de outras razes possveis; se qualquer impossibilidade surgir como obstculo, ele falha; reage a essa contingncia e se perde, resigna-se ao necessrio e sofre com
isto, contemplando-o, ou melhor ainda, o produz. (Michel Serres)
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Resumo
Atravs desta pesquisa realizou-se um encontro entre a Filosofia da Diferena e a dana de Pina Bausch, recortando e problematizando na cena contempornea este modo de danar, para pensar modos de subjetivar e a experincia do corpo. A partir destes dois eixos, mapeou-se trs analisadores que foram retirados de uma leitura singular da dana-teatro e do processo criativo de Bausch, aproximando-os dos cenrios contemporneos para assim problematizar esta conexo, propondo-se a enxergar e traar alguns efeitos deste acoplamento.
No entanto, necessrio ficar claro que a dana no o campo emprico da pesquisa. Ou seja, no se objetivou pensar a dana propriamente dita, mas pens-la como intercessora para problematizar a experincia do corpo e da subjetividade no contemporneo. Experincia esta, onde o corporal e o subjetivo no esto separados e desvinculados, mas encontram-se num regime de coexistncia, um sendo constituinte do outro e, ao mesmo tempo, se constituindo.
Assim, objetivou-se conhecer mais a obra e o processo de criao da coregrafa em questo, para buscar o fio de Ariadne e pensar o seu jeito de danar como um modo que nos fora a pensar a experincia contempornea. Isto significa caar a linha que perpassa o autor e a obra como fora instituinte e que pode manter seu devir auxiliando a pensar um diagnstico do presente.
Palavras-chaves: contemporneo, corpo, dana, Pina Bausch.
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Abstract
Through this research we made a meeting between the Philosophy of Difference and the dance of Pina Bausch, cutting and problematizing this way of dancing in the contemporary act, in order to think about ways of subjectivizing and the experience of body. From these two axles on, we mapped out three analyzers that were taken from a single reading of the theater-dance and of Bausch's creative process, approaching them of the contemporary scenery, for thus problematizing this connection, proposing to seeing and tracing some effects of this joint.
However, it is necessary to be clear that the dance is not the empiric field of the research. That means, the goal is not thinking about the dance itself, but thinking about that as an intercessor for problematizing the experience of the body and of the subjectivity of contemporary. This experience, in which body and subjective are not separated and untied, but are part of a coexistence system, one being the constituent of the other and, at the same time, consisting itself.
So, the goal was to better know the work and the creation process of the choreographer, in order to seek the thread of Ariadne and think about her way of dancing as a way that makes us consider the contemporary experience. That means to hunt the line that passes by he author and the work as an established force and that can keep its will to be helping to think about a present diagnosis.
Key-Words: contemporary, body, dance, Pina Bausch.
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Lista de Ilustraes
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Sumrio
1. Introduo...................................................................................13
2. Contemporneo: mu-danas......................................................18
2.1 Pesar do Mundo........................................................................................18
2.2 As mudanas da dana.............................................................................27
2.3 O efeito Pina Bausch.................................................................................40
2.4 A dana alem na contaminao do ps-guerra.......................................41
3. Modos de fazer: estratgias de pesquisa...................................53
3.1 Formas Breves...........................................................................................54
3.2 Pesquisar e acontecimentalizar a dana contempornea..........................61
3.3 Pina Bausch: caso-pensamento.................................................................64
4. O acontecimento Pina Bausch: alguns analisadores.................67
4.1 A pesquisadora e a coregrafa..................................................................67
4.2 Analisador 1 Problematizao do social: todo dia ela faz sempre tudo
igual... ........................................................................................................83
4.3 Analisador 2 A obra como plano comum e singular................................96
4.4 Analisador 3 Da materialidade do corpo ao incorporal: o movimento
danado....................................................................................................112
5. Consideraes finais................................................................128
6. Apndice Peas de Pina Bausch..........................................131
7. Referncias Bibliogrficas........................................................134
12
Der Fensterputzer O Limpador de Vidraas (1997)
Foto de Jochen Viehoff
1. Introduo
O objetivo primeiro deste trabalho se colocar a criar maneiras de continuar
inventando o mundo, cavar espaos e tempos possveis de outras formas, de outros
ventos. Ares que permitam continuar ventilando, arejando e no somente um tempo
de espaos com atmosferas viciadas e sufocantes.
Pensar o presente, o grande foco deste trabalho. Porm, este exerccio do
pensar no pretende aliviar ou sanar a angstia do no saber. Esta pesquisa no se
coloca num lugar pretensioso de consolar, objetivando terminar com a aflio do
processo do conhecer. Ao contrrio, o que a ocasio prope sair desta estratgia
simplista para complexificar o pensamento e o conhecimento, de maneira que
multiplique as variaes do pensar e do viver. O saber no serve para consolar,
escreve o filsofo historiador Michel Foucault; ele decepciona, inquieta, secciona,
fere (2000, p. 255). Neste sentido, busca-se fazer uma travessia singular que no
pra de experimentar e inventar a relao entre sujeito e objeto que, desta maneira,
possuem implicaes ticas e polticas. Esta relao se d impulsionando uma
paixo por se transformar sempre em algo diferente do que se . Ou seja, no se
prope aqui construir verdades universais. Pelo contrrio, a inteno justamente
sair dos universais, pois eles no explicam nada, eles prprios devem ser
explicados, conforme os filsofos Gilles Deleuze e Flix Guattari (1992, p. 15), dois
autores que, juntamente com Foucault, se encontram muito atuantes nesta pesquisa.
Com o auxlio destes e de outros autores, esta pesquisa pretende fazer uma
histria efetiva que opera em perspectiva e, por isto, no a nica, mas difere
registrando sua relatividade. No se pode esquecer que nada est dado ou
natural, mas sim construdo por ns, ao mesmo tempo em que nos constri. Por
14
vezes, poderamos dizer, que se naturaliza o tempo-histria limitando suas direes
possveis e impedindo a reinveno das prticas ou das novas formas de viver e de
se subjetivar. Desta maneira, o futuro j estaria traado no nosso passado, nos
deixando fadados ao determinismo dos nossos destinos.
A inteno deste trabalho no mudar um funcionamento molar, macro, mas
tentar escavar, apontar, inventar outros espaos-tempos ainda no to
determinados, duros e fechados. Pois, parece ser no micro, nas molecularidades dos
processos ou nas fendas do existir que podemos nos colocar para pensar outras
possibilidades de vida.
Neste sentido, este estudo proporciona um encontro entre a Filosofia da
Diferena e a dana de Pina Bausch, recortando e problematizando na cena
contempornea este modo de danar, para pensar modos de subjetivar e a
experincia do corpo. A partir destes dois eixos, pretende-se mapear alguns
analisadores que foram retirados das anlises da dana-teatro e do processo criativo
de Bausch aproximando-os dos cenrios contemporneos para assim problematizar
esta conexo, propondo-se a enxergar e traar alguns efeitos deste acoplamento.
Assim, objetiva-se conhecer mais a obra e o processo de criao da
coregrafa em questo, para buscar o fio de Ariadne e pensar o seu jeito de danar
como um modo que nos fora a pensar a experincia contempornea. Isto significa
caar a linha que perpassa o autor e a obra como fora instituinte e que pode manter
seu devir auxiliando a pensar um diagnstico do presente.
Pretende-se, ento, no pensar a dana propriamente dita, ou seja, a dana
no o campo emprico desta pesquisa, mas intenciona-se pens-la como
intercessora para problematizar a experincia do corpo e da subjetividade no
contemporneo. Experincia esta, onde o corporal e o subjetivo no esto
15
separados e desvinculados, mas encontram-se num regime de coexistncia, ou seja,
um sendo constituinte do outro e, ao mesmo tempo, se constituindo.
Em 2006, recentemente findado, foi o ano em que Pina Bausch e o Wuppertal
Tanztheater nos visitaram em Porto Alegre. Com isto, parece surgir um certo
modismo onde o universo pinabauschiano idealizado como produto de exportao
alemo com receita de sucesso. preciso ressaltar que, tanto Pina Bausch e seus
bailarinos, quanto esta pesquisa, diferem desta concepo que parte de efeitos
instantneos com garantias de resultados. Ou seja, diferente disto, esta pesquisa se
fortalece e ganha condies de alar vo na ocasio da qualificao do seu projeto,
onde foi sugerido pela banca, muito bem acolhido por esta autora e sustentado pela
orientadora a viabilidade de fazer um recorte no universo da dana contempornea
escolhendo Bausch, seu processo e sua obra como ferramenta de trabalho,
coincidindo com sua vinda ao pas.
De certa maneira, isto tem facilitado determinadas buscas e encontros com as
mais diferentes fontes de pesquisa, j que por aqui tem se falado muito neste
assunto. Porm, isto tambm pode ser, em alguma medida, um fator que dificulta o
processo de pesquisa. Pois, muito complicado falar ou escrever sobre Pina
Bausch, principalmente num momento em que ela se torna celebridade em nosso
meio cultural e, justamente, porque ela mesma verbaliza muito pouco em funo de
que, conforme suas prprias palavras, tratar-se-ia de coisas que so impossveis de
falar. Colocando de outra maneira, Pina quer falar o que ela diz atravs das suas
obras. A leitura que cada pessoa consegue fazer depende do que cada um
consegue ouvir, sentir e perceber nos espetculos.
Seu processo artstico demonstra uma atitude coerente com estes
apontamentos iniciais, em funo de que Bausch no vende receitas de sucesso
16
garantido. Pina Bausch e o seu teatro de dana de Wuppertal tiveram um comeo
frgil, com enormes riscos de no acontecer, apontando uma espcie de insucesso
que os fizeram trabalhar por muito tempo na fronteira com o abismo, na borda de
uma estrutura frgil que poderia no se sustentar e, a qualquer momento, despencar
e deixar de existir. Portanto, seu trabalho foi se constituindo utopicamente, se
poderia dizer, e se refazendo at hoje, nas prprias descontinuidades dos seus
percursos, construindo e aumentando a potncia de abrir novos espaos no
contemporneo para andar na contramo e poder resistir. Da mesma forma, esta
pesquisa tem trabalhado constantemente sem garantias de descobertas, mas
fazendo tentativas de desbravar possveis invenes de si e do mundo que feito
quando a gente se faz.
17
Para as crianas de ontem, hoje e amanh Pina Bausch em Porto Alegre (2006)
18
2. Contemporneo: mu-danas
Para nos pensarmos atualmente, ou seja, para pensar nossas formas mais
recentes de viver o mundo, precisamos visibilizar o que nos compem, o que est ao
nosso redor, nos percebendo uma forma-efeito das dobraduras que compe nosso
feitio. O pensador talo Calvino (1998) nos adverte que estamos correndo o perigo
de perder uma faculdade humana fundamental que a de pensar por imagens, ou
seja, dar visibilidade aos nossos pensamentos, porque estamos sobrecarregados de
imagens clichs e do pensamento discursivo intencional que predomina impedindo
novas estilsticas, novas fabulaes.
Neste sentido, convidamos o leitor a nos acompanhar num certo jeito de
construir uma leitura do plano no qual estamos inseridos, que chamamos de
contemporneo. Este um jeito, um modo de dar visibilidade, entre tantos outros, de
olhar para o nosso momento. Momento que no somente um aqui e agora, nem
um determinado perodo histrico, mas um modo de habitar o mundo nas suas mais
diversas composies temporo-espaciais criando ontologias e epistemes que nos
abrem o leque das experincias possveis.
2.1 Pesar do Mundo
Msica de Jos Miguel Wisnik e Paulo Neves pesar de tudo pesar de peso
pesar do mundo sobre si mesmo pesar de nuvem
pesar de chumbo pesar de pluma pesar do mundo
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desponta estrela no vo imenso por ti suspenso
tua espera tudo se afronta
pedra com pedra a prpria onda
quando se quebra a melodia
onde meleva onde alivia
onde me pesa? tudo se agita
durante a queda o que sustenta a nossa Terra? e nesse quando
somente um ritmo peso e balano
um som legtimo cano sem medo de voc para mim
meu segredo te rezo assim:
desde o princpio ao ponto cego eu arremesso
um eco sem fim
Uma das experincias contemporneas dar conta do pesar do mundo
sobre si mesmo que os compositores ressaltam na letra da msica colocada acima.
Algo neste tempo pesa e gera, com isto, padecimentos. O que se pode perceber
que, para ser leve no contemporneo preciso tolerar um certo peso. Importncia
que no pouca quando se fala em tempos de mltiplas variedades dos modos de
viver, de consumir, de controlar.
O controle do peso corporal objetivando o leve uma obsesso
contempornea sem precedentes. Ao mesmo tempo em que, muitas adolescentes
morrem pelo peso da magreza, ordenada pela boa forma exigida esteticamente, o
20
ganho de peso ameaa a aproximao da obesidade de maneira, cada vez mais
certeira.
A leveza subjetiva do viver, como aponta a msica, est inscrita no paradoxo
do peso do chumbo e da pluma, da nuvem e do mundo. O etreo e o concreto,
contrapontos que denotam a inconsistncia da leveza e a durabilidade do slido.
Peso este que se encontra em ambas as pontas deste n, ponto cego... um eco
sem fim. Acelerando o tempo e podendo nos impedir, ou dificultar muito, a
possibilidade de sermos mais light. No toa que as prateleiras dos
supermercados esto repletas de produtos deste tipo para serem ingeridos. Estilo de
vida diet-light, algo que pesa numa proporo muito maior e veloz que a produo
da leveza, pois esta se produz de outras formas, por outros caminhos que balanam
num ritmo que ora quebra e queda, ora suspende e sustenta.
Seguindo com Calvino (1998), entre os valores caros que anuncia para o
nosso novo milnio, a leveza um dos que ele atribui estimada importncia. Para o
literato, ela necessria para suportar o insustentvel peso do viver. H uma
necessidade de anular o peso material da corporeidade, para se juntar velocidade
e prometer acesso a um nvel que modifica a realidade como possibilidade de
felicidade. Quanto mais leve, mais veloz. Quanto mais veloz, mais alternativas do
leque podem ser percorridas. Ou seja, todas estas perspectivas, presentes no social,
pesam no corpo, pois este tambm est inserido e, ao mesmo tempo, sendo
construdo por este conjunto de atravessamentos que compem este momento
histrico.
De outra maneira, o socilogo Zygmunt Bauman (2001) descreve a passagem
do capitalismo pesado para o capitalismo leve marcado pelo fordismo que era, mais
do que tudo, uma engenharia social orientada pela ordem. O fordismo era a
21
autoconscincia da sociedade moderna em sua fase pesada, volumosa, ou
imvel e enraizada, slida... O capitalismo pesado era obcecado por volume e
tamanho, e, por isso, tambm por fronteiras, fazendo-as firmes e impenetrveis (p.
69). A fbrica fordista reduziu as atividades humanas a movimentos simples,
rotineiros, predeterminados, para serem seguidos mecanicamente, sem qualquer
espontaneidade e iniciativa. A burocracia, o panptico e o Grande Irmo faziam o
controle numa tentativa totalitria de nada deixar passar, principalmente na fronteira
entre o dentro e o fora da fbrica.
Conforme Bauman, a modernidade pesada foi a era da conquista territorial, o
progresso significava tamanho crescente e expanso espacial. O tempo mtrico da
rotinizao precisava ser amansado para que o espao tambm fosse controlado. A
solidez da modernidade do hardware encorpou os lugares tornando-os,
simultaneamente, viveiro, fortaleza e priso.
No entanto, a mudana na histria moderna do tempo, da era do hardware
para a era do software, se traduziu numa nova irrelevncia do espao, disfarada de
aniquilao do tempo. O software substituiu o hardware na centralidade da cena
contempornea. Da mesma maneira, a instantaneidade descreve a modernidade
leve e lquida, como tambm constatou Bauman. A leveza, a agilidade e a
velocidade, portanto, passaram a preponderar no tempo como atributos que levavam
ao controle e ao comando das estratgias no processo de globalizao da economia
na modernizao do mundo.
O mundo se transformou no Imprio do Efmero em suas mais diferentes
experincias, conforme Gilles Lipovetsky. Pois, a
[...] forma moda que se manifesta em toda sua radicalidade na cadncia acelerada das mudanas de produtos, na instabilidade e na precariedade das coisas industriais. A lgica econmica realmente varreu todo ideal de permanncia, a regra do efmero que governa a produo e o consumo dos objetos. Doravante, a temporalidade curta da moda fagocitou o
22
universo da mercadoria, metamorfoseado, desde a Segunda Guerra Mundial, por um processo de renovao e de obsolescncia programada propcio a revigorar sempre mais o consumo. (Lipovetsky 1989, p. 160).
Ou seja, toda esta acelerao criou a sociedade do consumo que insere o
cotidiano na pragmtica do comprar, reciclando-o em kits e servios expressos. Um
tempo contrado, onde tudo acontece com uma rapidez que cada vez mais se
potencializa, fazendo coexistir os tempos mltiplos. Percebe-se isto na moda, nos
comportamentos, nos objetos, no design do contemporneo. Ao contrrio de querer
homogeneizar esta diversidade, pretende-se mostrar o quanto nossos ltimos anos
foram transformadores tomando um carter mltiplo, complexo, rpido, e, tambm,
ambguo, vago, plstico.
Calvino tambm pontua a multiplicidade como elemento necessrio para
pensar o contemporneo. Para ele, o mundo um sistema de sistemas em que
cada sistema particular condiciona os demais e condicionado por ele. Portanto,
uma complexidade intrnseca que no permite achar concluses, pois vai fazendo
seu traado de maneira a esquivar-se, multiplicando os detalhes ao infinito.
Afina-se com Calvino, Lipovetsky quando pensa a forma moda como o
sistema das pequenas diferenas multiplicadas, engendrando universos de produtos
microdiferenciados. Portanto, o processo de renovaes constantes produz a busca
pelo novo, transitoriedades, frivolidades, flexibilidades, efemeridades,
instantaneidades que fazem do tempo um click do mouse. Assim como tambm,
instabilidade, precariedade, vulnerabilidade, insegurana, fazem parte do rol das
experincias contemporneas. Neste contexto, h um pano de fundo chamado
liberdade individual, que se tenta alcanar a qualquer preo, pois promete infinitas
possibilidades. Com isto, a agonia da escolha parece ser um dos vilos do
contemporneo, tambm porque no h tempo para perder na eleio de
23
alternativas, mas acaba-se muitas vezes, vivendo-se exatamente a, neste processo
da ambivalncia da escolha. A vida paradoxal que joga os sujeitos de um lado ao
outro num disparate de movimentos.
Fazemos uma tentativa de no confundir estas diferenas multiplicadas em
renovaes constantes que estes autores, que nos auxiliam a enxergar com maior
visibilidade o contemporneo nos prescrevem, com o que Bergson (1964) e
Simondon (2003) nos falam da durao do ser e da individuao do vivo que no
param de acontecer na ordem da vida. O esforo que se est fazendo aqui para
tentar pontuar estes processos como diferentes , justamente, porque tambm se
entende que estas questes da evoluo do vivo se confundem com as experincias
contemporneas, potencializando estas vivncias como este disparate de
movimentos efmeros. No entanto, estes so sintomas do nosso tempo, onde o
capitalismo cafetina o desejo decalcando-o, competindo em paralelo evoluo da
vida nua, esta sim criadora.
Vivemos em templos de consumo, com ou sem muros, como shoppings, lojas,
nossas prprias casas servindo para comprar pela televiso, telefone, internet, ou
circulando por onde passamos num comrcio a cu aberto. Uma cultura de
cassino, como disse George Steiner (In: Bauman, 2001), onde o xtase d a ordem,
para que a auto-satisfao instantnea seja constante e irrefletida. Porm, tanto a
chegada da satisfao, quanto sua partida, esto fazendo presso na
transitoriedade do tempo.
As pessoas querem o mundo de maneira completa porque buscam a
construo da identidade como uma imagem de lgica harmnica e consistente,
para no verem a fluidez logo abaixo do fino envoltrio da forma (Bauman, 2001).
Isto acaba gerando uma intensa angstia que leva experincia de desestabilizao
24
constante vivida no contemporneo. As infinitas possibilidades deste suposto
mundo completo geram movimentos ininterruptos, ora contnuos, ora descontnuos,
que fazem da rapidez de incorporar estes processos a chance de inventar um ritmo
de sobrevivncia.
Busca-se a identidade no imediatismo do tempo, na tentativa de no sentir os
colapsos provocados pela experincia contempornea. Por outro lado, a vida
provoca, o tempo inteiro, microcolapsos imanentes ao vivo. Francisco Varela (2003)
fala de microidentidades que so uma espcie de prontido-para-ao adequada
para cada situao especfica vivida. Estas microidentidades possuem uma
situao correspondente que o autor chama de micromundos, ambos construdos
historicamente. Porm, ele salienta que as maneiras novas de se comportar e as
transies entre uma ao pronta a outra, correspondem a microcolapsos que
sofremos constantemente, numa rapidez que parece estar em constante acelerao.
Talvez por isto, a vida humana contempornea tornou fundamental a experincia
das grandes velocidades, pois, neste ritmo pode-se tentar fazer com que estes
microcolapsos no sejam sentidos e, paradoxalmente, tambm pode gerar
sensaes que provoquem e salientem os colapsos ainda mais.
A vertigem, a velocidade, o mergulho, a queda, os desequilbrios de todas as espcies reforam o ilinx1 esportivo, renovando-o. Eles delimitam um universo ldico que curiosamente faz das sensaes de instabilidade uma fonte de prazer, e das desordens que elas procuram uma espcie de busca paradoxal. (Pociello, 1995, p. 118).
Christian Pociello (1995) ressalta que o paradigma de todas as dificuldades
a libertao do peso, mesmo que por um instante. Estas sensaes so muito
ilustradoras do contemporneo e talvez da passagem ps-modernidade. Fala-se
da fluidez que sustenta o tempo em curto prazo da montagem e desmontagem do
1 Pociello coloca que R. Caillois denomina ilinx o conjunto de jogos em que nos abandonamos a um estado fsico e psicolgico incontrolado.
25
mundo, assim como, se usa a metfora do surfar e do danar para apontar que se
vive hoje no capitalismo leve. Estas metforas so bem escolhidas, de acordo com
Bauman, pois sugerem falta de peso, leveza e facilidade de movimentos. Mas o
socilogo ainda aponta,
[...] no h nada de mole na dana ou no surfe dirios. Danarinos e surfistas, e especialmente os que vivem na pista do salo de baile lotado ou na costa batida por altas ondas, precisam ser duros, e no moles. E so duros como poucos de seus predecessores, capazes de ficar parados ou mover-se em trilhas claramente marcadas e bem mantidas, jamais precisaram ser. O capitalismo software no menos firme e duro que seu ancestral hardware. E lquido no quer dizer mole. Basta pensar no dilvio, numa inundao ou na ruptura de um dique. (Bauman, 2001, p. 251).
O contemporneo, portanto, pode ser adjetivado por caractersticas como
multiplicidade, complexidade, leveza, rapidez, agilidade, velocidade, ambigidade,
paradoxal, difuso, incerto, catico, plstico. No se quer aqui, fazer um mapeamento
dos valores contemporneos para apreendermos o bom e o mal, mas pensar alguns
destes atributos que so vivenciados nas prticas deste tempo, para alm do bem e
do mal.
Dar formas ao vivo, nestes tempos, uma arte de viver no labirinto ou na
corda bamba como equilibrista. As formas, portanto, so breves. E no queremos
nos opor a estas brevidades, pelo contrrio, so nelas que precisamos operar,
desacelerando um pouco para que possamos pensar, inventar, sem sair do fluxo no
qual estamos imersos. Pois, neste ponto que nos encontramos, vivemos e,
portanto, deste lugar que podemos nos apropriar para ocup-lo ou tambm, mud-
lo.
26
Komm tanz mit mir
27
2.2 As mudanas da dana
Intencionamos continuar utilizando o danar para prosseguir problematizando
o contemporneo. Ser atravs de lentes de cristais que devemos olhar a dana
contempornea: como um prisma que se abre em mltiplas cores. Ou seja, no
podemos pensar nem ler esta modalidade artstica como se ela fosse um bloco
homogneo. Muito pelo contrrio, a dana contempornea foi se fazendo de uma
maneira to mltipla que as suas formas divergem bastante podendo dizer que
fazem parte de movimentos bem diferentes. Seus criadores e bailarinos foram dando
muitas caras dana que surgiu, de maneira geral, na tentativa de se libertar dos
padres rgidos do bal clssico. Para a pesquisadora de dana Ciane Fernandes
(2002, p. 36), o incio do sculo XX apresentou uma revoluo esttica que rompeu
a barreira entre as artes em movimentos como o Dada e a Bauhaus, originando a
dana moderna como uma rebelio contra o tecnicismo do bal clssico. Foram
muitas formas de danar que surgiram a partir destes rompimentos que foram se
fazendo possveis em funo de movimentos maiores que se davam nas artes em
geral.
No entanto, a dana moderna, mesmo criada com objetivos contestatrios, na
tentativa de sustentar uma arte mais livre, foi se desenvolvendo com cautela ao
longo do conservadorismo poltico e artstico da guerra fria que, nos anos 40 e 50,
se travava tambm com o bal. Houve, ento, uma crescente especializao e
aprimoramento tcnicos na medida em que a dana moderna fazia seu processo de
criao e institucionalizao.
Nos anos 60, novamente os artistas buscaram expandir as fronteiras entre as
artes, rebelando-se contra o modernismo, gerando uma multiplicao das correntes
da dana ps-moderna. Este movimento da contracultura na dcada de 60 foi
28
mundial, ocorrendo em parte significativa da juventude que fez eclodir na
subjetividade da gerao nascida no ps-guerra um incontornvel movimento do
desejo contra a cultura que se separou da vida, na direo de reconquistar o acesso
ao corpo vibrtil como bssola de uma permanente reinveno da existncia. (Suely
Rolnik In: Benilton Bezerra e Carlos Plastino 2001, p. 319). Com relao dana,
isto foi marcante no que diz respeito evidncia que tomaram as diferenas entre o
bal e a dana moderna.
Houve de tudo em nome da vanguarda, do melhor ao pior. Estava em cena a contestao. Danou-se pois para protestar a guerra no Vietn, contra o racismo, contra o sexismo, contra o establishment. E para celebrar a paz, o amor livre, o culto do corpo. Certos espetculos foram autnticos happenings consagrando intelectuais, artistas, hippies. Alguns coregrafos declararam-se a favor do consumo de drogas para aguar a inspirao e a percepo. (Portinari, 1989, p. 161).
Estes diversos movimentos sociais, polticos e artsticos, se multiplicavam a
todo instante, sendo interrompidos e novamente inaugurados, de diferentes
maneiras. Nas artes, isto ocorria medida que os artistas experimentavam uma
liberdade para criar que foi vivenciada pelas frentes precursoras dos movimentos
crticos da sociedade, que geraram no uma nica e grande mudana global, mas
mltiplas transformaes nas diferentes tramas das experimentaes possveis.
Nos Estados Unidos, vrios espaos como pequenos teatros de aluguel
barato, salas de associao de bairro, ptios de escolas e igrejas, museus, praas,
estdios, praias, foram palcos de danas de esprito libertrio que tentavam criar
outras formas de se manifestar artisticamente. Foi no auditrio da igreja protestante
Judson Memorial, no Greenwich Village, em Nova York, que muitos grupos e
coregrafos experimentaram uma srie de trabalhos inusitados para a poca. Alguns
que por ali estiveram foram: Merce Cunningham, Twyla Tharp, Trisha Brown, David
Gordon, Jennifer Muller, Steve Paxton, Douglas Dunn, Meredith Monk, Yvonne
29
Rainer, Elizabeth Keen, Simone Forti, James Waring, Rudy Perez, Lucinda Childs,
Karole Armitage. Teve de tudo, inclusive uma antidana ou no-dana liderada por
Deborah Hay que usava artistas instantneos ou pessoas no-iniciadas, que no
necessitavam de uma tcnica para danar. Na dana moderna made in USA,
esteve presente a dana aleatria que normalmente no era danada no palco, mas
ao mesmo nvel do cho e, em meio ao pblico, em lugares como galerias de teatro,
universidades, etc, fazendo uma tentativa de se colocar no mesmo nvel de quem
passava junto aos bailarinos sem diferenciar uns dos outros. A representante mais
caracterstica desta nouvelle danse foi Twyla Tharp, junto com Merce Cunningham,
que buscava composies formadas por seqncias muito elaboradas, mas que
podem se sobrepor umas s outras, suceder-se em encadeamentos no
obrigatrios, (Paul Bourcier, 2001, p. 286). A post modern, escola americana mais
jovem, tambm era guiada pelo acaso, sendo priorizados os elementos brutos do
movimento como girar, no lugar ou no, andar, correr, saltar em eixos repetitivos.
Era a improvisao e a eventualidade que ditavam as regras, se que se pode dizer
que havia regras.
Para estes inovadores, trata-se de provocar nos executantes estados psicossomticos que podem atingir o espectador que os arranque s noes restritivas da vida cotidiana. Isto implica naturalmente a participao voluntria do pblico a seu condicionamento mental. o retorno dana bruta. Esta tendncia pode ser encontrada, mais ou menos marcada, em todos os danarinos americanos, de qualquer formao. Todos procuram, sem saber design-lo, o estado dionisaco. Assim, o crculo se fecha e a dana volta a seu papel primitivo de transe sagrado. (Bourcier, 2001, p. 287).
Espetculos multimdia faziam furor, bailarinos com macaces esportivos
danando sem msica, intrpretes literalmente subindo pelas paredes (a pea
Walking on the Wall, de Trisha Brown), a mistura de bailarinos com esqueletos de
animais, cactos, espantalhos, como quadros vivos inspirados em pintores como, por
exemplo, Gergia OKeeffe (outra obra de Trisha Brown) danada na Sonnabend
30
Gallery de Nova York. Contedos erticos com pinceladas sadomasoquistas,
misturando o clssico com o punk, simples movimentos como caminhar, sentar,
levantar, deitar que, executados em conjunto, ressaltavam as diferenas entre cada
executante, tambm, espetculos que procuravam focalizar uma viso potica da
cincia, salientando estgios do pensamento que fluem entre contemplao do
cosmo e jogos corporais e ainda obras coreogrficas usando culos especiais para o
emprego de laser gerando efeitos visuais como se fosse um filme de fico
cientfica.
Nesta multiplicidade, por mais de dez anos, a vanguarda da dana nos
Estados Unidos foi comandada pelo movimento da Judson Memorial que, entre
incontveis propostas e resultados desiguais, alguns se tornaram menos radicais
com o correr do tempo e sucesso conquistado, outros acharam mais cmodo aderir
ao establishment a fim de obter subvenes para seus grupos, havendo igualmente
aqueles que desapareceram sem deixar rastros (Portinari, 1989, p. 161). A dana
ps-moderna norte-americana foi se tornando tcnica e especializada, de acordo
com Fernandes, exigindo que neste novo sculo se faa uma maior reflexo a
respeito dessas relaes, at ento dicotmicas, entre a especializao e a
abrangncia artstica, a tcnica e a improvisao (2002, p. 36).
Neste sentido, a dana contempornea teve uma srie de movimentos que se
bifurcavam, ora desaparecendo, ora reaparecendo, mas de qualquer maneira,
gerando diferentes caminhos que se institucionalizavam em territrios mais fixos e
tambm, se desinstitucionalizavam ou se desterritorializavam, transformando-se
numa heterogeneidade caracterstica deste perodo de efervescncia social. Isto, de
alguma maneira, no foi somente uma caracterstica no processo da dana, mas das
artes em geral. Enquanto alguns grupos surgiam, bailarinos despontavam como
31
coregrafos vinculando-se a uma nova formao que estava disposta a trabalhar
com a proposta que de alguma maneira procurava se diferenciar, movimentando o
cenrio hbrido e variado da dana contempornea.
A dana contempornea foi se fazendo num processo que provocou o
desmanchamento das formas, desterritorializaes, uma capacidade de fazer agitar
o novo, de gerar uma movimentao desconhecida. Segundo Isabelle Launay,
(2005)
[...] se ainda pode-se ver a dana contempornea como arte ou prtica minoritria, ela tambm tem a sorte de ser, hoje, ao contrrio do que seria uma prtica de elite, o lugar de um pensamento consoante com as polticas de minorias que tentam fazer arte, e poltica, de modo diferente. Pela proliferao de suas prticas artsticas e de seus grupos de reflexo, ela no se manteve alheia emergncia de diversos movimentos sociais em todas as reas da vida poltica, que resolveram opinar tanto sobre assuntos que lhes dizem respeito quanto sobre assuntos alheios (desde as associaes ligadas luta anti-mundializao, at os ecologistas radicais, ou mesmo a luta contra os transgnicos, a do ativismo feminista americano, ou ainda os grupos de ao contra a AIDS).
Mas, ao que propriamente a dana contempornea voltava-se contra? Esta
dana se construiu, por todos os seus meios, na tentativa de elaborar uma crtica ao
seu tempo social. Sua inteno, com maior ou menor conscincia, era ir contra os
padres ideais estabelecidos na sociedade para o controle dos modos de viver dos
homens e mulheres que queriam buscar suas prprias possibilidades de vida e que,
muitas vezes, eram impedidos. A dana contempornea queria ir contra a captura da
vida, para resistir aos moldes universais que forosamente eram criados para serem
incorporados e para que a vida, digamos assim, fosse ditada fora da singularidade e
do desejo.
A definio da dana contempornea constitui-se em grande discusso, uma
questo central para este domnio artstico, portanto, nos propusemos a conhec-la
um pouco mais. A dana contempornea no deixou de ser, de uma certa forma, um
32
territrio experimental onde vale tudo, como passos e movimentaes das mais
diferentes tcnicas avaliadas por especialistas de toda ordem. Ainda h confuso
Regina Advento se apresenta em O Limpador de Vidraas (1997) Foto de Maarten Vanden Abeele
33
em torno do que seja esta tal de dana contempornea, conforme Airton
Tomazzoni (2006) ressalta como ttulo do seu artigo. Para este pesquisador e
coregrafo, a dana contempornea evidencia que escolhas estticas revelam
posturas ticas. Numa poca de tantas barbries impostas ao corpo, preciso
recuperar esta tica quando se escolhe fazer arte com o corpo seja o seu, seja
(principalmente) o dos outros. Para o autor, quatro fatos auxiliam a identificar a
dana contempornea ou, ao menos, a diferenci-la do que ela no . O primeiro,
que a dana contempornea um jeito de pensar a dana, onde cada projeto
coreogrfico tem que forjar seu suporte tcnico e fazer escolhas coerentes. Sendo
assim, ela no somente uma escola ou um tipo de aula. O segundo fato que no
h modelo ou padro de corpo ou de movimento e, por isto, na dana
contempornea pode-se reconhecer a diversidade e estabelecer o dilogo com
mltiplos estilos, linguagens e tcnicas de treinamento. No h corpos que so
eleitos como os melhores para esta tcnica. Todo corpo instrumento desta dana.
J o terceiro fato constitui que a dana contempornea reafirma a especificidade da
arte da dana, ou seja, dana no teatro, nem cinema, nem literatura, nem msica,
mesmo se enriquecendo muito com a contribuio destas artes. Mas, dana
dana. O corpo em movimento estabelece sua prpria dramaturgia, sua
musicalidade, suas histrias, no precisando de mensagens e at mesmo de trilha
sonora. O quarto e ltimo fato compreendem o que proclamou Yvone Rainer quando
a dana ps-moderna norte-americana abalava o establishment: the mind is a
muscle. Neste sentido, Tomazzoni (2006) afirma que o pensamento se faz no corpo
e o corpo que dana se faz pensamento. Da mesma forma que Katz (2005), aponta
no prefcio do seu livro Um, dois, trs. A dana o pensamento do corpo, quando
se entende a dana como um pensamento do corpo, este o primeiro ganho:
34
consegue-se diferenci-la de todas as outras construes que um corpo faz com o
movimento.
A dana contempornea conta com um perodo frtil da sua histria de
revolues, que ocorreu num perodo igualmente frtil de movimentao social que
foram as dcadas de 60 e 70. Neste perodo foram criadas diversas linhas que
ganharam vrios nomes gerando muitas rupturas e tambm aproximaes ou
reaproximaes dentro do prprio movimento da dana contempornea. Na tentativa
de evidenciar a multiplicidade gerada naquele momento fecundo muitos nomes
foram dados s diferentes correntes que ali surgiam ou que se configuravam, ento,
de outras maneiras, tais como: dana moderna, nova dana, dana ps-moderna,
espao-dana, dana-teatro, etc. De qualquer maneira, estas distintas linhas da
dana contempornea surgiam como contestao ao rigor e s convenes do bal.
Para as pesquisadoras de dana Aline Hass e ngela Garcia, a dana moderna
surge
[...] como necessidade de ser uma arte que promovesse e provocasse a liberdade e a explorao total do corpo a partir de temas abstratos ou concretos; com o despertar do homem para sua prpria natureza, diversificando novas tcnicas corporais e linhas coreogrficas que iam ao encontro das necessidades de expressar acontecimentos de sua poca, seus prprios sentimentos e no apenas de personagens fictcios; a dana da libertao do corpo e de seus movimentos; a dana que retrata todas as experincias vitais da sociedade e dos seres humanos, em que, mais uma vez, esses esto engajados e conscientes no mundo em que vivem. (Hass e Garcia, 2003, p. 101).
Para fins deste estudo, considera-se que a dana contempornea, no
somente o nome de todas as formas de danas existentes hoje (a dana no ou do
contemporneo), mas principalmente nos objetivos que aqui cabem, uma das suas
modalidades que podemos tambm chamar de dana ps-moderna. Estas
definies, ou melhor, estes nomes, ainda carecem de maior pesquisa e
esclarecimentos, pois suas conceituaes no esto suficientemente claras na
35
bibliografia referente ao assunto. Talvez, isto se deva ao fato do que Lia Robatto
salienta na sua prpria concepo de dana contempornea,
[...] as danas contemporneas, participantes que so de um processo em constante renovao, no podem ser amarradas em conceitos estticos de uma esttica com estilo formal, passos e posies corporais determinados. Cada smbolo gestual ou movimento puro que surge criado para apenas aquela determinada obra coreogrfica e, pelo fato de ser nico e original, ter, fatalmente, uma denominao inventada, de uso restrito ao trabalho em processo. Um seu eventual reaparecimento em outras circunstncias, conforme o seu novo significado, poder vir a ter at mesmo uma denominao diversa. (Robatto, 1994, p. 25-26).
Fala-se ento, da dana contempornea no como um bloco nico e
homogneo, mas como movimento que faz bifurcar diferentes linhas que evidenciam
a multiplicidade dos modos de danar durante o ltimo milnio. De maneira geral,
pretende-se tomar a amplitude destes movimentos da dana contempornea, que
marcaram cada vez mais seu espao no social, demandando a possibilidade de
adotar o gesto como uma ferramenta expressiva do corpo e para o corpo. Discute-se
aqui, uma dana que se prope a novas criaes que so prprias de cada contexto,
e so, portanto, singulares e minoritrias funcionando na lgica da inveno, da
experimentao, na criao de elementos estticos e expressivos para dar conta do
movimento finito-ilimitado da vida.
De forma anloga a estas maneiras singulares da expanso da dana
contempornea, o conceito estaria para a filosofia, nos movimentos do pensamento
de Deleuze e Guattari (1992). Ou seja, para fazer filosofia, de acordo com os
autores, necessrio criar conceitos. Toda criao singular, e o conceito como
criao propriamente filosfica sempre uma singularidade. Conceitos que
remetem a outros conceitos, ele uma heterognese, isto , uma ordenao de
seus componentes por zonas de vizinhana... uma intenso presente em todos os
traos que o compem. So intensidades em estado de sobrevo que se
assemelham ao procedimento do gesto e da coreografia quando estes se
36
configuram numa possibilidade minoritria de atingir a criao e a expresso
singular.
Nas palavras de Hass e Garcia,
[...] a dana contempornea, no aspecto coreogrfico, pode ser traduzida como dana que no se funde em regras, passos determinados, existentes, e tcnicas pr-estabelecidas ou fixas, embora possa ser influenciada por determinados princpios; uma dana que se cria e se elabora a partir de uma explorao de movimentos, gerada por uma enorme capacidade criativa cujo objetivo sempre a descoberta do elemento novo, esttico e condutor do que deseja exprimir, expressar. (2003, p. 104).
Podemos entender a dana contempornea de que se fala aqui, no como
qualquer dana contempornea, mas a que cria o gesto minoritrio, ou seja, que faz
de si uma dana menor. Por minoritrio entende-se a criao ou o devir potencial
que desvia do modelo, qualquer que seja seu nmero, conforme Deleuze e Guattari
(1995b). uma variao contnua que busca sempre a fuga, mas no a morte. Ao
contrrio do majoritrio que domina e uma constante do Universal, que se pode
dizer que gerencia Ningum, o minoritrio o devir de todo o mundo que d
passagem a componentes novos, sendo estrangeiro na sua prpria lngua e
compreendendo uma capacidade muito maior de expressar os movimentos da
criao.
Seria como gaguejar na prpria lngua, inventar uma lngua menor dentro da
lngua maior. Deleuze e Guattari (1995b, p. 51), nos dizem: servir-se da lngua
menor para por em fuga a lngua maior. No fazendo desta lngua menor um dialeto
ou novos guetos e regionalismos, pois no assim que nos tornamos
revolucionrios, inventivos, mas, utilizando muitos elementos de minoria,
conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir especfico autnomo,
imprevisto (Deleuze e Guattari, 1995b, p. 53).
nesta provisoriedade da dana contempornea que se pode ter um auxilio
que contribui para pensar a experincia subjetiva contempornea, a sua relao com
37
o corpo e com a vida possvel de ser vivida no presente. Pensar uma dana menor
exige ressaltar as operaes de um modo de subjetivao que trabalha com a
inveno a partir da imanncia e da experimentao. Que rompe com o platonismo
do dualismo gesto e corpo, emergindo um processo de risco que faz tentativa
incessante de fazer da coreografia um procedimento, um caminho para conseguir se
expressar. Fazendo tudo para que o corpo possa se expressar e expresse algo do
seu impensado e do seu imrfico.
Um corpo destes no se encontra nunca pronto e acabado, mas permite dar
passagem ao potencial virtual que contm e pode possibilitar o aumento dos afectos.
Os afectos so os atributos dos corpos que fazem entre eles conexo, associao,
movimento, rizoma, numa espcie de zona de indeterminao, de indiscernibilidade.
Conforme Deleuze e Guattari (1992, p. 224), o afecto no a passagem de um
estado vivido a um outro, mas o devir no humano do homem.
Para Artaud (In: Lins, 1999, p. 51), que criou este conceito de Corpo sem
rgos (CsO), o corpo o corpo e ele est s / e no tem necessidade de rgo / o
corpo no nunca um organismo / os organismos so inimigos do corpo. Deleuze e
Guattari (1996, p. 21) apontam que percebem que o CsO no de modo algum o
contrrio dos rgos. Seus inimigos no so os rgos. O inimigo o organismo. O
CsO no se ope aos rgos, mas a essa organizao dos rgos que se chama
organismo. um repdio organizao orgnica dos rgos. Criar para si um corpo
sem rgos suportar viver na liquidez das formas, deslizar nos fluxos, deixar
rastros, inventando movimentos na dana como prtica de fabricao do
outramento.
Este o movimento de diferenciao da vida, gerador da subjetividade
interessante de ser produzida. O leve e o pesado, conforme j salientado no incio
38
deste captulo, so elementos de um mesmo paradoxo que compreende a
experincia contempornea. Os atributos como leveza, agilidade, velocidade, geram,
tanto o peso que podemos entender como a angstia sentida pelos viventes, quanto
a leveza que conseguimos apreender como a constante desestabilizao da
plasticidade do tempo atual. A vida, portanto, compreende estes dois elementos, que
geram o paradoxo e se constituem no movimento de diferenciao que a faz
acontecer.
Assim como, o gesto menor tambm contm o leve e o pesado, imanentes na
vibrao da dana para que ela possa ocorrer. Retomando a msica... pesar do
mundo... onde alivia... onde me pesa... durante a queda..., e ainda, ...somente um
ritmo... peso e balano... Em suma, o gesto menor e o movimento de diferenciao
que produz subjetividade e inventa vida compreendem o paradoxo contemporneo
da leveza e do peso.
Esta pesquisa, portanto, trabalha na ordem de uma dana menor, uma dana
que abarca seu paradoxo, uma dana que gagueja, que faz tropear seu movimento,
que no faz da queda um erro. Faz da queda, do tropeo, uma dana, ao contrrio
de encontrar-se na esteira de uma forma idealizada e homognea de danar.
Construir um modo de danar atravs de uma poltica do tropeo onde, mesmo o
cho que se abre num abismo, como nos terremotos subjetivos causados pelos
choques cotidianos da contemporaneidade. Assim como se diz dancei!,
evidenciando a instabilidade que a vida e a dana propem. Esta dana que
menor dentro da dana maior, procura ser uma dana que no seja uma
representao do cair, mas uma ontologia da queda, para que haja dana mesmo
39
aps o tropeo, sem medo de continuar, conforme idia de Lepecki2 (2005). Talvez
no mesmo sentido da reflexo do artista que diz por que no ser feliz na incerteza?
Por que no continuar danando aps o tropeo?
2 LEPECKI, A. Tropeando a dana: para uma poltica do movimento. Conferncia apresentada no I Encontro Internacional de Dana e Filosofia O que pode a dana? Rio de Janeiro, 15 a 18 de setembro de 2005.
A danarina Josephine Ann Endicott atua em Os Sete Pecados Capitais (1976
40
2.3 O efeito Pina Bausch
Para o leitor que acompanha esta pesquisa, este um momento de esclarecimento.
Esta parte que se inicia, um mapa para localizar melhor quem tiver necessidade e
interesse na trajetria histrica de Pina Bausch e da companhia, da qual diretora, o
Wuppertal Tanztheater. Faz-se aqui, uma tentativa de traar algumas linhas de um
certo olhar genealgico sobre o trabalho da coregrafa alem.
Com o objetivo de situar o leitor diante da multiplicidade de elementos que
compe o universo pinabauschiano, o caminho que aqui se inicia, orientado por
um mapa que se traou num esforo para elucidar algumas questes que marcaram
o curso da artista e da sua companhia desde sua criao. Sero apontados certos
pontos do fluxo deste movimento, de acordo com a relevncia do percurso e do olhar
singular que esta pesquisa vem traando.
No se pretende esgotar as possibilidades que o trabalho da coregrafa
suscita, nem fazer uma anlise de suas obras, mas percorrer o trajeto que
corresponde justamente aos movimentos possveis que puderam ser realizados
neste momento por esta pesquisadora. A contribuio de autores com suas
respectivas crticas e apreciaes da obra de Bausch serviro para auxiliar nossa
tarefa, porm no algo que aqui se objetiva fazer, pois esta no uma pesquisa
que se situa nas artes cnicas. No ocorrer uma anlise das obras coreogrficas,
mas se tentar apontar as foras que se implicaram na trajetria de Bausch para
situar a atmosfera que gera este acontecimento.
A nfase, portanto, se localiza em suscitar o fio de Ariadne pinabauschiano e
discorr-lo num modo de danar que conceba e nos force a pensar a experincia
contempornea3, considerando-a como intercessora para problematizar o corpo e a
3 Uma das finalidades principais desta pesquisa.
41
subjetividade, questo que compreende o captulo 4 desta dissertao. Assim, sero
lanados neste momento, elementos necessrios para sustentar os efeitos do
acoplamento dos dois eixos que compem esta pesquisa: os efeitos Pina Bausch e
o contemporneo. Ou seja, intenciona-se deixar claro que foras operaram ou ainda
operam para que Pina Bausch, nosso personagem conceitual, Conforme
dissertado no captulo 3 desta pesquisa, seja considerada nesta pesquisa um
acontecimento4.
Este momento pode ser considerado um plat desta pesquisa, que se coloca
atravs da singularidade de leitor. Ou seja, este mapa pode ser lido a qualquer
momento e de acordo com a necessidade do leitor de se localizar historicamente na
genealogia5 traada neste pesquisar.
2.4 A dana alem na contaminao do ps-guerra
Durante todo fervor social dos anos 60 e 70 na Europa, a Alemanha Ocidental
tambm despontou com um movimento forte na dana. Discpula de Kurt Jooss, que
por sua vez foi aluno de Mary Wigman, Pina Bausch e sua companhia Wuppertal
Tanztheater primavam por um repertrio indito de dana-teatro que causou
inicialmente, diferentes reaes tanto do pblico quanto da crtica. Assim como, dos
bailarinos e das pessoas que sustentaram esta iniciativa, como veremos mais
adiante.
Mary Wigman, inspirada pelas aulas de Rudolf Van Laban, criou a dana
expressionista, a Ausdrckstanz, enquanto as artes plsticas tambm viviam o auge
do expressionismo na Alemanha. Wigman buscava mostrar no palco uma situao
que estivesse alm da vida cotidiana, conforme o pesquisador Fabio Cypriano 4 Este conceito est descrito e sustentado teoricamente no captulo 3. 5 As concepes de histria e de genealogia, sustentadas aqui, esto apontadas na parte metodolgica (captulo 3) desta dissertao.
42
(2005), retratando estados emocionais primitivos. Ela primava pela dana livre
buscando expandir todas as possibilidades dos movimentos do corpo tornando-os
exticos, mas ficando restrita sua tcnica. Wigman gerou um antagonismo ao bal
clssico, pois fazia uma busca pelo instintivo, construindo uma maneira de danar
que permitisse abandonar o ego e uma estrutura de personalidade mais formalmente
desenvolvida e civilizada, ressaltando a natureza animal e do ainda no formado no
homem/mulher que dana.
J Kurt Jooss, mesmo se situando num outro ramo da dana alem, tambm
foi aluno de Laban, mas fazia sua dana-teatro dialogar com a corrente artstica da
Nova Objetividade. Nesta linha, ainda que ele tambm tenha sido aluno de Wigman,
tinha uma proposta diferente que era de representar o mundo exterior de maneira
realista (Cypriano, 2005). Ele no precisou recusar o ballet clssico, fazendo um
vnculo deste com a dana contempornea e abafando a richa que se mantinha
quando o ballet era negado. De outra maneira, diferente do modo de Wigman, ele
tambm tirou os movimentos do corpo do convencional sendo o fundador da dana-
teatro que expressava muito fortemente as relaes da dana com a sociedade por
meio da ao dramtica.
Jooss coreografou a Mesa Verde, obra de 1932, que precedeu a II Guerra
Mundial, mas foi criada depois da primeira grande guerra. poca em que o nazismo
estava se formando e, portanto, com o uso de mscaras no marcante figurino
evidenciou as relaes sociais do perodo vigente. Jooss cunhou o termo dana-
teatro na dcada de 20 pois, para ele, dana tambm era teatro. O teatro, na forma
mais original, dava igual importncia a todos os elementos que compunham a pea:
o cenrio, a msica, a obra em si, etc. Por isso, sua dana, de alguma maneira,
43
precisou se aproximar do teatro para enaltecer algumas destas noes, assim como
tambm poder utilizar a fala e enfatizar esta relao.
Lutz Frster6, bailarino h bastante tempo do Wuppertal Tanztheater, nos
esclarece que, hoje em dia, o que faz este grupo que Bausch coordena, se poderia
chamar somente de dana. Todavia, fazem dana-teatro mas, ensinam dana
contempornea. Enfim, questes de ajustes de nomenclatura. Talvez as menos
importantes das contribuies deste domnio artstico, pois ser desta corrente de
Jooss que Bausch se influenciou com propriedade.
O teatro de Bertolt Brecht tambm exerceu influncia na dana-teatro alem.
Atravs do gesto socialmente significante, no ilustrativo ou expressivo, o teatro
pico de Brecht instigava o reconhecimento de situaes cotidianas pelo espectador
e sua ao para mud-las (Fernandes, 2000). Diferentemente da esttica clssica, a
subjetividade e a reflexo social-antropolgica comandavam a criao do gesto.
Conforme a pesquisadora, bailarina e coregrafa Ciane Fernandes, o efeito de
distanciamento, a tcnica de montagem e os momentos cmicos inesperados
tambm so influncias brechtianas.
Pina Bausch nasceu no dia 27 de julho de 1940 em Soligen no sudoeste da
Alemanha. Seus pais eram proprietrios de restaurante, muito ocupados com o ps-
guerra, o que gerou uma infncia com maior liberdade para a filha. Desde pequena,
Pina observava as pessoas que freqentavam o restaurante da famlia,
estabelecendo uma forma de comunicao com o mundo atravs do olhar. Este
senso de observao foi desenvolvido ainda bem jovem fazendo a menina Pina
intuir o que existia dentro das cabeas das pessoas. Este dentro das cabeas
correspondia s expresses da subjetividade que fez do seu trabalho uma pesquisa
6 Informao verbal colhida em entrevista informal com Lutz Frster, em Porto Alegre, durante o 26 Poa em Cena (14/09/2006).
44
sobre as questes existenciais do ser humano (Cypriano, 2005). Sua infncia,
portanto, foi pautada pela atmosfera do ps-guerra, onde as pessoas provavelmente
deveriam ainda falar disto, ao mesmo tempo em que queriam se distrair daquilo que
tinha arrasado seu pas.
Philippine Bausch, enquanto estudante, havia sido muito valorizada por Jooss
como um grande talento. E foi a partir dele e da linguagem que ele inaugurou, que a
bailarina mais conhecida como Pina Bausch, potencializou a tenso entre dana e
teatro.
Bausch fez formao na Folkwang Hochschule, em Essen, escola em que
Jooss era diretor, fazendo um percurso tambm na Juilliard School em Nova York
com professores como Jos Limon, tornando-se bailarina do Metropolitan Opera.
Estas duas fontes permitiram sua relao ntima com a dana moderna norte-
americana e com a escola alem de dana-teatro provocando tambm um dilogo
entre as disciplinas, o que sustenta sua prtica multidisciplinar. A dana-teatro
alem, portanto, se desenvolveu num contexto interativo, influenciada pelas
experincias norte-americana e europia.
Bausch volta Alemanha em 1962 para retornar ao bal da Folkwang,
comeando alguns anos depois a criar suas primeiras coreografias e, em 1969,
tornando-se diretora artstica da companhia, aps aposentadoria de Jooss. Mas, foi
como diretora do Tanztheater da cidade de Wuppertal, em 1973, que a coregrafa
concebeu o novo conceito de dana-teatro. Levando a dana para fora das suas
velhas formas, no sentido de proporcionar ao corpo novas ferramentas expressivas
menos formatadas esttica vigente, Bausch tentou em Wuppertal, agregar o que
estava segmentado naquela poca, nos teatros estatais da Alemanha: pera, teatro
e dana.
45
Neste ano de 2006, em que Pina Bausch e o Wuppertal Tanztheater nos
visitaram em Porto Alegre, parece surgir um certo modismo onde o universo
pinabauschiano idealizado como produto de exportao alemo com receita de
sucesso. Porm, no esta a proposta artstica da coregrafa e sua companhia.
Ao contrrio disto, esta pesquisa quer fazer uma aproximao desta obra de
tal maneira que se faa uma tentativa de tirar deste processo as suas evidncias.
Salienta-se a importncia de compor um caminho que permita desnaturalizar este
sucesso garantido em funo de que no se vende receitas que comprovam ou
universalizam estes procedimentos numa frmula nica. Faz-se necessrio ento, a
retomada de foras outras que estavam em jogo quando o Wuppertal Tanztheater se
formou e um certo mapeamento das linhas que se fazem at hoje ou podem estar
por se fazer.
Pina Bausch e o seu teatro de dana de Wuppertal tiveram um comeo frgil,
com enormes riscos de no acontecer, apontando uma espcie de insucesso que a
fez trabalhar por muito tempo na fronteira do abismo, na borda de uma estrutura
frgil que poderia no se sustentar e, a qualquer momento, despencar e deixar de
existir. Por que? Vamos adiante.
J na poca de Jooss, ps I Guerra, os bailarinos que voltaram Alemanha,
conforme o bailarino Frster (2006), tiveram que voltar para escolas de bal clssico,
pois era o que poderia ser executado e mostrado naquele perodo to difcil e de
tanto ressentimento provocado pelas batalhas ocorridas. O bal clssico, neste
sentido, era muito menos danoso e provocativo para o que estava em vigor no
momento: um total sentimento de destruio que deveria esconder seus estragos
pela beleza e harmonia da maioria dos espetculos daquela ocasio.
46
No entanto, Jooss e seu sucessor acreditaram no trabalho que j ocorria em
Essen e, portanto, foi a nica escola que no era uma companhia de bal que existia
como alternativa para os bailarinos e para o pblico ainda bastante temeroso. De
acordo com Frster (2006), todo movimento expressionista que havia sido iniciado
antes da guerra foi cortado em funo de toda a tirania que se travou,
impossibilitando que esta arte auxiliasse na restaurao subjetiva dos ferimentos
provocados pelo desastre concreto e macio da guerra.
Nos anos 60, perodo em que Pina Bausch voltou dos Estados Unidos, seu
pas se encontrava no milagre da reconstruo, porque tinha sido destrudo aps a II
Guerra Mundial. Esta reconstruo intencionava no somente levantar o pas
novamente, mas apagar os rastros deixados pelo perodo anterior. No entanto, Pina
como outros artistas de vanguarda, no conseguia esconder as feridas que
acabavam vindo tona nas suas criaes.
Conforme Portinari (1989, p. 166), Bausch terminava brigando com a esttica
convencional, seja porque ela utilizava atores-bailarinos que no precisavam
esconder a barriga saliente, as costas arqueadas, os cabelos do corpo e os culos
de mope, como tambm, porque as peas criadas tratavam de temas que, de
alguma maneira, faziam as feridas serem sentidas outra vez, pois elas no estavam
cicatrizadas, mesmo com o esforo realizado para que isto acontecesse. Ou melhor,
o empenho era para que estas seqelas fossem removidas num curto perodo de
tempo retirando qualquer efeito danoso ou vergonhoso. A inteno naquele
momento era que os ferimentos causados no deixassem rastro algum aps a
arquitetura do pas ser renovada. Os olhos no podiam ver o que se havia
suportado.
47
Neste sentido, nada melhor que edificar a sociedade do espetculo, conforme
o filsofo Guy Debord (1997), com apresentaes artsticas que foram obtendo
poder numa proposta de manter a ordem estabelecida cumprindo sua funo de,
no somente entreter, como enredar o povo. Para Debord, a ideologia que fez a
sociedade do espetculo imperar no s transformou economicamente o mundo,
mas transformou policialmente a percepo. Uma tentativa de controle da percepo
do povo, para que de alguma maneira, o poder se ramificasse mantendo os sentidos
domesticados e os corpos docilizados. Conforme o filsofo (1997, p. 16), o
espetculo afirmao da aparncia e a afirmao de todo vida humana isto ,
social como simples aparncia. Mas a crtica que atinge a verdade do espetculo o
descobre como a negao visvel da vida; como negao da vida que se tornou
visvel. Este conceito, concebido ps-maio de 68, sustenta o quanto que os
espetculos suscitaram a organizao consciente e sistemtica do imprio da
passividade moderna.
Naquele momento, os temas de Pina e a forma em que eram apresentados
causavam uma reao do pblico que teve um alto custo para ela e sua equipe. Os
bailarinos se queixavam que no eram entendidos pelo pblico que muitas vezes
deixava a platia vazia antes do final do espetculo. A prpria Pina tambm foi
vtima de ameaas que intimidavam a ela e a sua famlia pela criao e execuo
das obras. Neste sentido, a ruptura com as tradies foi uma tarefa rdua, pois a
ousadia da vanguarda da jovem coregrafa chocou inicialmente grande parte do
pblico e da crtica. De diferentes maneiras, Bausch fazia ver, foi uma mquina de
fazer ver. Contudo, atravs dela no se via as formas bem estabelecidas, mas o
contrrio disto, as anamorfoses dos corpos e dos comportamentos do perodo
vigente, que estavam transformando os sujeitos vertiginosamente nestes perodos
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de reconstruo. Pina Bausch vazia ver os horrores do qual seus olhos estavam
cheios, de tudo os sobreviventes e seus descendentes tinham visto, vivido e
imaginado.
Foi neste clima que, chegando em Wuppertal, Pina desabafou: O que vou
fazer numa fbrica destas? (2002, dvd). De alguma maneira, no sabendo muito
como fazer para iniciar seu trabalho, ela demonstrou seu parecer sobre a cidade
enclausurada na produo fabril que anestesiava a vida lembrando mais a morte.
Arno Weistenhofer, diretor do teatro, foi uma das pessoas que deu confiana a ela,
porque acreditava no seu trabalho. Isto foi muito importante, pois foi o que deu uma
proteo necessria para que pudesse comear suas criaes naquele espao,
possibilitando tambm que ela conhecesse pessoas.
No incio da constituio do Wuppertal Tanztheater, portanto, no havia
evidncias do sucesso que a companhia faz atualmente. No foi um grupo que
nasceu para entreter e brilhar, como os espetculos artsticos, um tanto romntico,
que prevaleciam na poca. Certamente se Pina Bausch no tivesse alguns poucos,
mas fundamentais apoiadores na poca, ela e seu grupo poderiam no ter resistido
frente ao pblico da cidade e da poltica do Estado que subvencionava o teatro. As
questes que predominaram e as foras que se atravessavam tendiam o trabalho a
episdios de fracassos, de insucessos, de maneira a enfraquecer uma certa
tentativa que resistia, se opondo esfera molar que imperava e era socialmente
aceita.
No seu incio, Pina tambm no tinha o objetivo claro de ser coregrafa. Este
processo foi se constituindo como um fluxo de foras que se encaminhou para isto
resistindo aos obstculos que apareciam a todo o momento. Com suas prprias
palavras, afirmou:
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Isto na verdade, nunca foi idia de que agora sou uma coregrafa. Fiz minhas primeiras peas porque eu queria danar, porque no havia ningum que fizesse algo suficiente, e eu queria danar um pouco eu mesma, por isso tentei fazer uma pequena pea, e ento outros queriam participar, e ento eu disse: sim, est bem, poderemos tentar. (2002, dvd).
Ela sabia que queria trabalhar de um jeito diferente. Este jeito foi se ocupar de
algo que permite ir se transformando e que vai gerando a ela outras lembranas e o
processo ento, comea a se construir7. Pina portanto, nunca teve uma inteno,
filosoficamente falando, de criar a nova dana alem. No entanto, foi o que acabou
acontecendo naquele momento que as foras da guerra talvez no fossem mais to
visveis a olho nu, porm, ainda estavam potencialmente atuantes. A arte de Pina
Bausch denunciou que o sofrimento, o padecimento, a morte, perduravam naqueles
que permaneceram vivos, ou melhor, que sobreviveram catstrofe.
Neste sentido, Pina Bausch e o Wuppertal Tanztheater constituram um
processo de trabalho que foi se estabelecendo utopicamente. Aponta-se aqui uma
utopia do fracasso, conforme Ernst Bloch (2005), do que foi ou poderia ser
interrompido a qualquer momento, se refazendo nas descontinuidades dos
percursos, mas que tem a potncia de abrir novos espaos para andar na contramo
e poder resistir. Poderamos dizer que, hoje em dia, Pina Bausch produto de
exportao porque no conseguiram extermin-la com ela, confirmando que este
vendvel do produto pinabauschiano foi construdo historicamente e tornou-se hoje
uma evidncia de sucesso para pessoas que jamais teriam apostado nesta arte
naquele momento. No s no apostado como possivelmente teriam ido contra.
Quando se pensa no leque de patrocinadores que atualmente vemos investindo no
mercado da arte, a obra de Bausch apontava para algo que naquele momento era
fortemente vetado.
7 Singular processo de criao de Bausch, j evidenciado em captulo anterior.
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Conforme Norbert Servos (In: Carter) o debut da inovadora dana-teatro, no
foi facilmente integrada dentro dos valores e categorias existentes. O contraste com
a dana de costume foi fortssimo, as barreiras entre os gneros foram quebradas na
dana de Bausch, assim como, as linhas demarcatrias que tradicionalmente
separavam a dana, o teatro falado, o teatro musical, foram abolidas, resistindo a
qualquer tentativa de padronizao por categorias. Admitia-se que a artista tinha
imaginao e talento, porm, o trabalho mantinha-se misterioso e inacessvel.
Mesmo com um certo aumento da popularidade os argumentos cresceram
proporcionalmente na linha do apelo e da rejeio em funo de tudo que Pina fazia
ver, de tudo que era mostrado nos seus trabalhos como as dores dos horrores da
guerra.
Todavia, conforme Marcus Bsch (2005), Pina Bausch no se deixou
persuadir de sua concepo de dana, para a qual no existem instrues de uso.
No entanto, Bsch (2005) ainda salienta,
[...] embora a coregrafa j tenha encenado mais de trinta peas e criado uma nova linhagem da dana, seu trabalho no se torna rotineiro e sempre est ligado a um certo risco. O medo no cessa: medo de fracassar, medo de no terminar a tempo. Afinal, no princpio era o nada.
E parece que foi mesmo de um certo nada que Pina Bausch foi traando
seus caminhos, de intervenes marcantes com sutilezas que tambm se
acentuavam. Somente quando Wuppertal se tornou local de peregrinao de fs e
de pessoas famosas do teatro, que seu povo reconheceu a importncia da
companhia (2002, dvd). No final dos anos 70, estavam comemorando triunfos em
festivais internacionais e em inmeras turns.
Este percurso sempre influenciou demasiadamente suas obras fazendo com
que Bausch tornasse visvel a oscilao dos homens nos momentos crucias das
suas existncias. Pois, nas fendas deste movimento de insucesso, de fragilidade,
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de risco, de quedas e de tropeos, ou seja, onde as fragilidades humanas e da vida
aparecem, que seu trabalho acontece. Ao menos foi desta maneira que Pina Bausch
e seu grupo foram traando seu caminho e mostrando sua arte.
Porm, de alguma maneira, Pina consegue contemplar a humanidade com
um sorriso esperanoso, descrevendo o imperceptvel do nosso tempo. Talvez como
Arnaldo Jabor (2006, p. 12) tenha colocado no Jornal O Sul, no seu comentrio ps-
espetculo, neste ano de 2006 quando a companhia esteve no Brasil: Pina Bausch
nos fortalece contra o horror... uma rara mistura de melancolia com esperana. Um
horror vivido na guerra, mas que ressoa de outras maneiras, na experimentao das
formas de viver atuais. O seu modo de danar e de criar, ou seja, o efeito Pina
Bausch, a produo que a coregrafa faz a partir do seu contato com o mundo,
amplifica certas vivncias do contemporneo, expondo contradies, paradoxos de
um tempo que germinou pautado pela guerra.
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3. Modos de fazer: estratgias de pesquisa
O que fazemos depende daquilo que somos; mas necessrio acrescentar que somos, em certa medida, aquilo que fazemos, e que nos
criamos continuamente a ns prprios (Bergson, 1964, p. 46).
Melanie Maurin dana em gua (2001) Foto de Maarten Vanden Abeele
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3.1 Formas Breves8
Pensar quem somos, onde nos encontramos, como so os espaos que
ocupamos e compomos atualmente, como estamos neste nosso momento preciso
ou em que estamos nos tornando so tarefas que, em parte, esta pesquisa se
ocupa. Levantar estas questes significa aproximar-se do universo que o filsofo-
historiador Michel Foucault pontuou para pensar as condies nas quais ns,
viventes do contemporneo, problematizamos o que somos e o que fazemos. Em
outras palavras, para Foucault (1979), traduzir este processo fazer uma histria
efetiva ou histria do presente. De acordo com o autor,
[...] a histria ser efetiva na medida em que ela reintroduz o descontnuo em nosso prprio ser... ela faz ressurgir o acontecimento no que ele pode ter de nico e agudo. preciso entender por acontecimento no uma deciso, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas uma relao de foras que se inverte, um poder confiscado, um vocabulrio retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominao que se enfraquece, se distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada mascarada. (Foucault 1979, p. 27/28).
Conforme Foucault (1984), o papel do intelectual seria exatamente este, de
fazer um diagnstico do presente, a partir de um ceticismo que nos previna do
moralismo, que leva a pensar o agora como algo maior ou melhor que o passado. O
texto do filsofo Immanuel Kant, O que o Iluminismo evidencia, para Foucault, a
questo do presente e permite aprofundar a reflexo filosfica. Fazendo-se
questionamentos tais como: o que que se passa hoje?, o que que se passa
agora?, e o que este agora, no interior do qual estamos uns e outros; e quem
define o momento em que escrevo?, Foucault constri uma percepo do presente
8 Formas Breves foi escolhido como subttulo, pois menciona uma obra de dana contempornea da coregrafa Lia Rodrigues. Esta escolha se efetivou em funo deste ttulo fazer conexo com conceitos e idias contidos nesta dissertao que se prope a trabalhar alguns apontamentos esttica do viver no contemporneo.
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que densa. Percepo esta carregada e saturada de variados elementos, tantos
quanto se conseguir dar visibilidade. Sempre com a inteno de poder continuar
problematizando ainda mais, ao invs de usar esta densidade como um imperativo
que dita o que se deve fazer na ordem do dia ou para prever o futuro.
Pensar o presente, mais do que fazer histria, questionar como foi que
chegamos at aqui e tambm, refletir sobre quais so hoje as condies de prticas
possveis. Busco Foucault e suas perguntas kantianas como um dos meus
companheiros de jornada, permitindo-me fazer minhas tambm estas questes que
pontuo como centrais e propulsoras desta pesquisa. O autor permite fazer um
diagnstico que auxilia na construo no de um olhar que sobrevoa, que do alto,
do divino, mas um olhar que tenta se desfazer do que obscurece a atualidade,
traando um ponto decisivo que enxerga alm do que se v normalmente, fazendo
aparecer o que est perto, imanente. Fazer pesquisa desta maneira praticar um
trabalho intelectual onde a tica e a poltica se cruzam o tempo inteiro, permitindo
uma crtica sobre si mesmo, sobre as nossas prprias questes. Uma anlise que
no militante ou denuncista, mas positiva no sentido de inventar uma artesania
que prove as mltiplas alternativas disponveis, possibilitando criar condies de
fazer diferente, numa tentativa recorrente de se libertar das estruturas e das
essencialidades. Conforme Gilles Deleuze e Flix Guattari a crtica implica novos
conceitos (da coisa criticada), tanto quanto a criao mais positiva. Os conceitos
devem ter contornos irregulares, moldados sobre sua matria viva (1992, p. 108).
Neste sentido, pesquisar, filosofar e pensar so uma coisa s para estes
pensadores, pois vo se fazendo numa espcie de operao-artista, tentando com
que a vida no seja aprisionada na razo que rege o caminho da representao do
mundo.
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Para Deleuze (2005), pensar criar, inventar conceitos, fazer invenes de si
mesmo e do mundo. Ele evidenciou que Foucault tambm tratou do pensamento nas
trs fases da sua obra, retomando uma pergunta colocada por Heidegger: o que
significa pensar? o que se chama pensar?. No percurso foucaultiano, pensar no
comunicar, mas experimentar, problematizar. O saber, o poder e o si, so a
tripla raiz de uma problematizao do pensamento (Deleuze, 2005). Tomando o
saber como problema, pensar ver e falar que so mais que o olho e a linguagem,
so as visibilidades e as dizibilidades ou os enunciados,
[...] mas pensar se faz no entremeio, no interstcio ou na disjuno do ver e do falar. , a cada vez, inventar o entrelaamento, lanar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um claro de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visveis. (Deleuze, 2005, p. 124).
Pensar tambm poder, se tomarmos este como problema, conforme
Foucault fez na segunda parte da sua obra. Pensar no inato ou adquirido. emitir
singularidades, lanando os dados para que se d relaes das foras com outras
foras, ativas e reativas, relaes destas foras com o ser ou objeto num acaso que
no pr-determine as condies.
Deleuze ainda coloca que, para Foucault, pensar dobrar, duplicar o fora
com um dentro que lhe coextensivo (Deleuze, 2005, p. 126). Este espao do lado
de dentro est em contato com o lado de fora que por sua vez, o prprio
impensado. Nesta fronteira, nesta zona que se do os processos de subjetivao,
produo de novas possibilidades de vida, de modos de existncia que, para
Foucault, vo traando um pensamento-artista que inventa uma tica vinculada com
a esttica. Nestes movimentos, o pensamento pensa sua prpria histria (passado),
mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, pensar de outra
forma (futuro) (Deleuze, 2005, p. 127).
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Foucault aponta tambm que, no advento da episteme moderna, o homem se
problematizou colocando-se como objeto central do conhecimento. Na sua
arquigenealogia das cincias humanas, ele assinala que Deus foi tirado desta
centralidade acabando com a idade da representao, onde havia uma relao de
transparncia entre as palavras e as coisas. Isto deixou de ocorrer e, desta maneira
no contemporneo, o homem vira a ordem das coisas reivindicando o conhecimento
total em virtude das suas prprias limitaes, evidenciando o apogeu do
conhecimento sobre a vida. O homem fez destes obstculos, positividades que, de
alguma maneira, tentam negar sua finitude, pois esta posio principal tambm
anunciou sua morte. H, a partir disto, um desinteresse pela forma homem que
comea a se desintegrar.
No entanto, ao mesmo tempo, o homem se lana a pensar suas novas
formas. Conforme Deleuze (2005, p. 140), Nietzsche dizia: o homem aprisionou a
vida, o super-homem aquele que libera a vida dentro do prprio homem, em
proveito de uma outra forma... Esta pesquisa tem em seu germe uma tentativa de
buscar esboar novos compostos de relaes de foras que podem tentar ser
evidenciados a partir de um diagnstico do presente.
Quais seriam as foras em jogo, com as quais as foras do homem entrariam ento em relao? No seria mais a elevao ao infinito, nem a finitude, mas um finito-ilimitado, se dermos esse nome a toda situao de fora em que um nmero finito de componentes produz uma diversidade praticamente ilimitada de combinaes. (Deleuze, 2005, p. 141).
Portanto, faz-se um esforo aqui para criar estratgias de um pesquisar que
se quer mltiplo, plural e para evidenciar as condies de possibilidade ou o campo
de opes possveis, sempre no sentido da vida se expandir.
No se est pretendendo, portanto, situar esta investigao numa histria
das mentalidades ou histria das idias, ou seja, num tempo flecha, linear, pois
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estas tm um modo comparativo e regressivo de pensar os comportamentos de hoje
comparando-os com os do passado, desempenhando uma histria das
representaes que acaba, muitas vezes, fazendo o julgamento moral do tempo que
evoluiu e das ordens que progrediram. Acaba-se, nestes percursos, pensando o
presente naturalizado, como se sua construo fosse a nica possvel, justamente
por que chegamos aqui nesta forma ou desta maneira. Foucault (1979, p. 26), faz
uma trajetria diferente da histria dos historiadores que constri um ponto de apoio
fora do tempo; ela pretende tudo julgar segundo uma objetividade apocalptica; mas
que ela sups uma verdade eterna, uma alma que no morre, uma conscincia
sempre idntica a si mesma.
Na ocasio desta anlise, pretende-se fazer uma histria efetiva que opera
em perspectiva e por isto, no a nica, mas difere registrando sua relatividade e
multiplicidade. No podemos esquecer de que nada est dado ou natural, mas sim
construdo por ns, ao mesmo tempo em que nos constri. Muitas vezes, naturaliza-
se o tempo-histria limitando suas direes possveis e impedindo a reinveno das
prticas ou das novas formas de viver e de se subjetivar. Desta forma, o futuro j
est traado no nosso passado, nos deixando fadados ao determinismo dos nossos
destinos.
Foucault (1979) compartilha com Nietzsche o verdadeiro sentido histrico que
seria uma anti-histria, reconhecendo que ns vivemos em mirades de
acontecimentos perdidos, sem referncias ou sem coordenadas originrias. A
inteno desta pesquisa aproxima-se disto, tentando escavar, apontar, inventar
outros espaos-tempos ainda no to determinados, duros e fechados.
Desburocratizar o amanh (Sousa, 2006) abrindo espao para a utopia como
necessidade tica de buscar um outro mundo a partir de uma crtica ao presente.
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Utopia do inacabado, da reinveno permanente que abre brechas na antecipao
cruel do tempo que se apodera e controla a vida. Este trabalho vai na linha das
tentativas de fazer um diagnstico do presente que possa ensaiar e contribuir para
pensar novas formas possveis ao homem.
Neste sentido, a perspectiva genealgica do vis foucaultiano de fazer histria
e de pesquisar os processos de subjetivao, faz uma cartografia das linhas de fuga,
busca as descontinuidades, faz ressurgir o acontecimento, caa as foras em jogo e,
portanto, valorizam a multiplicidade, as fissuras do percurso, os tropeos, as
singularidades. So nestas fendas do existir que nos colocamos para pensar outras
possibilidades de vida. Aonde a forma homem vai morrendo para poder esboar
discretamente uma busca de transcendncia em outras formas breves que se
compem e desmancham com a volatilidade do tempo.
uma tentativa, portanto, de pensar o tempo. No somente cont-lo,
comunic-lo numa concepo linear de tradio iluminista que faz progredir o
evolucionismo, estratificando-o e classificando os acontecimentos para sair do
primitivo em direo ao desenvolvido. Pretende-se, aqui, pensar como devir e no
somente como histria.
Na concepo bergsoniana o futuro s nasce no momento em que vivido.
O futuro aparece ento como dilatao do presente. No estava portanto contido no presente sob a forma de fim representado. E no obstante, uma vez realizado, explicar o presente, da mesma forma que o presente o explicava, e mesmo mais; dever ser tido tanto e mais como fim do que como resultado. (Bergson, 1964, p. 83/84).
Tentando fugir da imagem da ampulheta, mas buscando a do novelo de l, do
emaranhado do tempo intensivo que jorra, que Bergson (1964), nos ajuda a
perceber que a vida evolui em direes divergentes e no numa linha nica.
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Aproximando-o da perspectiva genealgica foucaultiana, trata-se ento, de
buscar problemas que emergem das prprias redes que vo se criando. No se opor
histria, mas fazer uma meta-histria que resiste pesquisa da origem. Pois, para
procurar uma origem, necessrio descartar tudo que acidental, tudo que no
ocorreu, como externo ao aquilo mesmo que aconteceu (Foucault, 1979). Como se
pudssemos contar uma nica forma de ver as coisas ou os ocorridos, porque
estaramos falando de uma identidade fechada e acabada que permite desvelar a
essncia da verdade em busca do paraso perdido da perfeio do incio da criao.
Diferentemente, intenciona-se fazer aqui, uma historiografia dos
acontecimentos no grandioso