Upload
others
View
2
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1176
SEX MACHINE Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
SEX MACHINE Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO
Sex Machine apresenta o processo de trabalho da artista Analu Cunha a partir das dificulda-des que encontrou em conciliar som e imagem em seus vídeos. A autora parte das especifi-cidades dos órgãos perceptivos e dos elementos constitutivos do audiovisual – som e ima-gem –, para abordá-los por meio de seus conflitos e porosidades. PALAVRAS-CHAVE
arte contemporânea; audiovisual; videoarte; imagens sonoras SOMMAIRE
Sex Machine présente le processus de travail de l'artiste Analu Cunha à partir des difficultés qu’elle a rencontrées à concilier son et image dans ses vidéos. L’auteur part des spécificités des organes perceptifs et des éléments constitutifs de l'audiovisuel – le son et l’image -, pour les aborder à partir de leurs conflits et leurs porosités. MOTS-CLÉS
art contemporain; audiovisuel; art vidéo; images sonores
1177
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
Wait a minute! Shake your arm, then use your form
Stay on the scene like a sex machine You got to have the feeling sure as you're born
Get it together, right on, right on
James Brown, Bobby Byrd e Ron Lenhoff 1
Se há uma dupla presente em grande parte dos acontecimentos observados na co-
nexão dos humanos com o mundo nos últimos 80 e poucos anos, é a formada pela
combinação entre som e imagem. O audiovisual, mais que uma relação entre ele-
mentos técnicos, aponta para uma síntese das principais modificações operadas no
modo como percebemos o que nos cerca. Aos poucos, ao longo do século 20, a du-
pla não somente organizou a atenção dos nossos sentidos, como concentrou em si
mesma o interesse que dedicávamos a todas as outras coisas. De um homem pers-
pectivado que investigava o sentido do mundo diante da janela renascentista, hoje
vemos seres humanos diante de múltiplas telas com inúmeras informações audiovi-
suais que, dentro de um espectro estrito, nunca lhes oferecerão sentido único, mas
fragmentos de muitos. Quando de seu aparecimento, o cinema não pareceu oferecer,
aos seus principais criadores, sequer um futuro junto ao interesse do público.2 O que
os irmãos Lumière ignoravam é que o cinematógrafo estava muito mais estruturado
social e historicamente do que podiam supor. Podemos verificar isso a cada segun-
do de nossa existência no século 21.
1178
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
Analu Cunha Sex Machine, 2014
Vídeo digital, P&B, som, 2”36 3
O que moveu esta pesquisa foi minha surpresa diante das dificuldades que encontrei
em realizar o que me parecia ser a união mais simples e natural para uma pessoa
nascida mais de três décadas depois do advento do cinema sonoro e que teve seus
ídolos musicais mediados por videoclipes: encontrar o áudio adequado para meu
primeiro vídeo exigiu um investimento que acreditava desnecessário e que, no en-
tanto, me apresentou a um universo de relações que não se esgota nas diferenças
perceptivas entre os órgãos da visão e os da audição. Em minhas leituras até então,
só conhecia duas formas de abordá-los: o som submetido às imagens no cinema
clássico hollywoodiano e a imagem submetida ao som, caso dos videoclipes. Não
era em absoluto o que verificava nos trabalhos que me atraíam no cinema experi-
mental e na videoarte – e menos ainda o que desejava reproduzir em meus vídeos.
Minha primeira preocupação foi a de tratá-los em bases igualitárias e procurar, em
suas especificidades, o modo como atuam quando combinados: suas porosidades,
interpenetrações e, sobretudo, seus fantasmas associados.
1179
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
A dupla
Já no curso de doutorado, convidei um músico, o baixista Bruno de Lullo, para cri-
armos juntos trabalhos audiovisuais. Não foi a primeira vez que delegava o áudio a
outra pessoa (sob minhas orientações, Marcio Shimabukuro criou a música para
meu primeiro vídeo, Theo e as coisas, 20044), mas era a primeira vez que, ao me-
nos na metade dos vídeos, eu não tinha controle total sobre o material produzido. No
vídeo, uma criança brinca com o vento na janela do carro. Originalmente, para o tra-
velling de 4 minutos, havia pensado em uma música com instrumentos de corda ca-
pazes de criar imagens associadas ao deslocamento de ar. Semanas se passaram e
nenhuma música conversava satisfatoriamente com as imagens. Acabei solicitando
a um músico que compusesse trechos em que o som dos instrumentos produzisse
desenhos como os que a mão da criança gerava no quadro.5
Diante das dificuldades que enfrentamos, me interessei em pesquisar como a parce-
ria som / imagem foi historicamente pensada e construída e de que modo se apre-
senta no universo audiovisual em que vivemos. Nos anos seguintes, minha produ-
ção em vídeo confirmou a grande dificuldade de estabelecer uma relação consisten-
te entre som e imagem. Fiz tentativas das mais variadas: músicas apropriadas: le-
tras de músicas em subtítulos; vídeos com o áudio e imagem distorcidos simultane-
amente; vídeos com áudio original; áudio original distorcido; áudio direto editado;
áudio trocado; áudio sem imagens; vídeos com voz editada; som estruturando as
imagens; vídeos sem som algum.
Quando comecei a trabalhar com Bruno Di Lullo por ocasião de uma exposição, pro-
pus que tentássemos constituir relações em iguais condições entre a imagem que eu
criava e o som que ele produzia: imagens sonoras e visuais de igual potência. Nem
trilha, nem videoclipe, nem música submetida à imagem, nem imagem submetida ao
som. Combinamos de fazer metade dos vídeos com a imagem sendo criada após a
música, e na outra metade, o inverso, a música entrando depois da imagem. Fize-
mos sete vídeos de um minuto, uma das condições que nos impusemos, excetuando
Batidance, 20106, com dois minutos. Era curioso observar como a criação ocorria,
sobretudo, quando se dava a partir das imagens sonoras (no meu caso). Oficialmen-
te, a criação de imagens está relacionada à visão, e era assim que eu trabalhava até
1180
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
então. Eu precisava inverter isso e investigar se, em quê e como as imagens sono-
ras transformavam minha prática.
Nos vídeos que produzi a partir da música, procurei uma aproximação conceitual
dos procedimentos utilizados pelo Bruno: o primeiro deles foi Teremini, 20107, em
que ele me passou uma peça composta com um teremim8 infantil. As imagens foram
feitas por mim, deitada na cama de um quarto de criança. Como o som foi gerado a
partir da movimentação gestual do músico, procurei movimentar a câmera como se
o olhar da criança hipotética também gesticulasse, obsessiva e desesperadamente.
O resultado remete a um clima de pesadelo infantil, de quarto à noite, cheio de fan-
tasmas. Em Case Project, 20109, recebi uma peça composta com os ruídos produzi-
dos por uma mesa de som e nela acresci imagens geradas por minha ferramenta de
trabalho, o computador. No meu entender, nesse vídeo ocorre o casamento som /
imagem de caráter mais fusional, com as imagens excessivamente coladas ritmica-
mente ao som. No último dos vídeos que produzi posteriormente ao som, Loop,
201010, acredito ter encontrado a síntese da relação entre imagens sonoras e visuais.
Bruno me entregou o arquivo loop com a informação que se tratava de loops eletrô-
nicos produzidos por ele. A estrutura da música, contudo, não me pareceu estrita-
mente circular, mas obedecer certa progressão. Lembrei-me na ocasião de um pro-
jeto meu de 1999, nunca realizado, de filmar um looping de dentro de um avião. Pro-
curando na web, achei as sequências do filme Roberto Carlos em ritmo de aventura,
196811, de Roberto Farias, de um looping que não se completa. Era isso: de fato, o
casamento som e imagem só era possível na incompletude. A ruína era sua condi-
ção de possibilidade: um projeto antigo; a apropriação do arquivo digitalizado de um
filme de mais de 40 anos; um looping de quatro aviões interrompido por um corte na
edição; uma composição musical de loops que se desfazem.12
Durante a parceria, fui compreendendo o que o cineasta Robert Bresson quis dizer
quando denominou o audiovisual de “o casamento do século”: necessariamente uma
relação entre elementos de igual potência. Não há lugar para submissões. Ambos
são capazes de produzir sentido e de criar redes de significados intercambiáveis:
trata-se de uma relação entre pares. Compreendida a necessidade de abordar os
dois sentidos envolvidos no audiovisual de igual para igual, passei a considerar o
1181
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
vínculo entre o que se ouve e o que se vê nessa experiência como uma relação en-
tre imagens de diferentes naturezas: imagens visuais e imagens sonoras que se in-
vadem, se implicam e se perdem.
Aos poucos, comecei a observar que, a despeito do que as representações bidimen-
sionais nos aplicativos de edição das bandas visuais e sonoras supõem, elas não se
situam lado a lado, não ocupam o mesmo plano. Inversamente, há entre elas uma
espécie de avessamento recíproco, onde cada uma produz espacialidades distintas,
em um dentro e um fora simbólicos e necessariamente contaminados. O encontro
entre elas gera no espectador terceiras e inúmeras outras imagens. Conceituar a
natureza desse encontro não foi difícil, vários autores já o haviam feito. Por sua vez,
entender a imagem gerada pelo som não foi tão simples quanto me pareceu.
A imagem sonora
Os gregos usavam a palavra acusmática para o som livre de seu referencial visual.
Com o aparecimento da música concreta, no final dos anos 1940, o termo foi reto-
mado. Criada pelo músico e então radialista Pierre Schaeffer, seu surgimento foi
possível a partir do desenvolvimento das técnicas e instrumentos de gravação e di-
fusão sonoras. Segundo Shaeffer, o som acusmático é aquele em que a causalidade
fica em suspenso: ouvimos o som sem ver o que o provocou. Nesses termos, um
concerto “ao vivo” exibe microfones, amplificadores, mesas e caixas de som. Em
síntese, não é mais um espetáculo audiovisual no sentido causa (o instrumento) e
efeito (o som). O som ouvido pode ter qualquer procedência. É uma imagem.
Para Schaeffer, a escuta acusmática evidenciaria determinadas características do
som, em detrimento de outras, com o objetivo de “revelar o som em todas as suas
dimensões” (CHION, 2008, p. 29–32). Segundo ele, nesse momento a escuta acus-
mática passaria a ser conhecida como “escuta reduzida” (o que necessariamente
implica a gravação do som, que assim ascende à condição de “objeto sonoro”). Em
linhas gerais, a escuta reduzida é uma escuta que leva em conta a experiência sub-
jetiva, fenomenológica. Para Chion, a escuta reduzida “trata das qualidades e das
formas específicas do som, independentemente da sua causa e do seu sentido; e
1182
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
que considera o som – verbal, instrumental, anedótico ou qualquer outro – como ob-
jeto de observação, em vez de o atravessar, visando através dele outra coisa.”
No cinema, a acusmática pode ocorrer de diferentes modos: o som acusmático iso-
lado (o sino, o despertador), o som acusmático e depois visualizado, e o inverso.
Uma vez agregado à imagem, o som parece se originar dela, ocorre uma espécie de
fusão perceptiva. Como na imagem sonora não há nada ao alcance do olho, é preci-
samente esse aspecto que irá oferecer novos modos de ver imagens visuais. Asso-
ciar (como no cinema clássico) ou dissociar o som (atitude comum no cinema expe-
rimental e na videoarte), eis a questão: percebi que a dificuldade em harmonizar (ou
desarmonizar) som e imagem talvez residisse antes no que os aproxima – a produ-
ção de imagens – do que naquilo que os diferencia. Restava indagar a natureza
dessa produção em cada um dos elementos.
Os músicos concretos perceberam a capacidade imagética dos sons: quando a ex-
periência auditiva prescinde da visualização da fonte sonora, o espectador passa a
criar imagens mentais. O compositor concreto François Bayle foi o primeiro a concei-
tuar a imagem sonora, o I-son. Ao contrário do objeto sonoro shaefferiano, que aspi-
ra a opacidade, o I-son é necessariamente mediado: é imperativo que passe pelo
universo dos aparelhos de registro, manipulação e difusão sonora. É uma definição
técnica, portanto.
“O tímpano é uma tela” afirma o músico e pesquisador Rodolfo Caesar. Ao destacar
o fato de o som ser percebido por todo o corpo, ele ressalva que é no tímpano que
as imagens sonoras são produzidas:
é sobre aquela pele esticada separando ouvido externo de ouvido médio que se percebe uma complexidade, uma confusão, uma falta de limites claros entre as percepções, os sentidos, as emoções. É no tímpano que se desenvolve uma especialidade: ele adquiriu maior re-finamento para a formação (ou projeção) de imagens. (CAESAR,
2008, p. 3)
Caesar ressalva contudo que tomar os sentidos de forma isolada ou lançar mão de
oposições entre eles não são as melhores maneiras de abordar as forças que atuam
no audiovisual. Fato é que há várias outras características relacionadas aos senti-
dos. A visão, por exemplo, é considerada o sentido da distância e a audição, o sen-
1183
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
tido da proximidade. O filósofo Theodor Adorno fez sua análise da escuta a partir de
suas diferenças fisiológicas: “A orelha é passiva. O olho é coberto pela pálpebra,
deve-se abri-la; a orelha está aberta: mais do que voltar-se para os estímulos com
atenção, deles deve se proteger…” (ADORNO, 1995, p. 56).13 Guardadas todas as
diferenças, o que une os dois órgãos do sentido é a produção de imagens, e o moti-
vo é um só: “O som é imagem mesmo quando o único suporte disponível é o cére-
bro” (CAESAR, 2012, p. 60), como assegura Caesar.
Inversamente a Michel Chion, que afirmou que no cinema “não existe banda sonora”,
no sentido que “não há solidariedade estrutural entre diferentes sons do filme e (…)
tudo acontece na relação particular de cada elemento sonoro com a imagem” (CHI-
ON, 1991–1999, p. 2)14, o professor, engenheiro e realizador sonoro Daniel Deshay,
propõe a valorização do som no cinema a partir, dentre outras coisas, da substitui-
ção do termo “audiovisual” por “imagem sonora” – dado que a imagem, é que ante-
cede o som e não o inverso –, e do uso do verbo bander le son.15 Ele, sugere ainda
considerar, como em Bataille, o som como despesa (dépense), “ou seja, um luxo”
(DESHAY, 2010, p. 11).16
Quando acabamos de assistir a um filme – ou qualquer outra obra audiovisual – é
habitual que interroguemos o roteiro, a atuação e a fotografia e não nos lembremos
do que ouvimos. A percepção, como nota Chion, opera de forma global. Mas, o fato
de não deixar rastros conscientes, de agir sub-repticiamente, é o que torna magnéti-
ca a imagem sonora, mas é também o que a põe sob suspeita: “A música de cinema
não é feita para ser ouvida” (ADORNO, 2001, p. 18)17, observou Adorno. É contra
essa prática que Deshay propõe enfatizar a escuta, bander le son. Para que a músi-
ca fique audível, o espectador tem que indagar o som em suas astúcias. “É preciso
finalmente se tornar ouvinte, mesmo que para apenas entrever a riqueza deste pa-
trimônio fantasmagórico” (DESHAY, 2010, p.50).18
Sex Machine
Pode-se vê-los juntos, já que atuam no mesmo plano: um homem e uma mulher
dançam. Os dois estão lado a lado, mas não dividem o mesmo quadro. Não execu-
tam um pas-de-deux, antes formam com o espectador os vértices de um triângulo,
1184
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
um ponto de fuga, uma fantasia: olhos na câmera, é para ela que se exibem, é para
o espectador que dirigem o convite. Há algo a partilhar, mas o quê? O único som
que se escuta é o arrastar cadenciado dos pés de ambos no chão. Com fones de
ouvido, não se sabe o que ouvem. Dançam livremente, sem coreografia, mas em
alguns movimentos parecem estranhamente sincronizados. O mesmo ritmo, quase
os mesmos gestos, às vezes: é a mesma música que escutam.
O parágrafo acima descreve um projeto muito simples de vídeo que concebi em
2011 e que exibi no dia da defesa da tese: Sex Machine. Não saberia mensurar a
que ponto esse projeto ajudou a encontrar caminhos para a pesquisa e vice-versa.
Prefiro pensar que a tese é Sex Machine 19 em outro suporte. E não só a versão es-
crita de Sex Machine como a de todos os trabalhos que me conduziram até aqui.
O Soul Train
A música Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine de James Brown, Bobby Byrd e
Ron Lenhoff, foi lançada em 1970 com Brown e Byrd nos vocais. No mesmo ano
alcançou a 15º posição no ranking Hot 100 da Billboard; em 2004, ocupava a 326º
posição entre as 500 melhores canções de todos os tempos e desde então foi regra-
vada e sampleada por diferentes músicos. Ela obedece à estrutura, comum na mú-
sica soul, do canto responsorial. Conhecido no ocidente em cânticos religiosos ju-
daicos e cristãos, é geralmente apresentado na forma de perguntas e respostas en-
tre o vocalista e o coro. No canto responsorial de tradição africana porém, é mais
comum a estrutura de duas vozes.20
Há alguns anos frequento Bailes Charme (ou Bailes Soul) e quando criança assisti
um inesquecível Tony Tornado – um dos precursores da Black Music no Brasil –,
cantar BR3 21 no Festival Internacional da Canção no Maracanãzinho, Rio de Janeiro.
Não conhecia nada de música negra americana e nunca havia visto ninguém se mo-
vimentar como Tornado.22 Só bem mais tarde percebi, assistindo ao grupo Jackson
Five, que seu vocabulário corporal era ativado por códigos de uma cultura, a Black
Music, que não era a minha – ainda. A Soul Music surgiu nos EUA do rhythm and
blues e do gospel norte-americanos no final da década de 1950. O termo Soul (al-
ma), era utilizado na época como uma referência ampla a manifestações afro-
1185
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
americanas (soul food, soul music etc). A palavra Charme, por sua vez, relacionada
à sedução e à elegância, foi usada no Brasil para o rhythm and blues de um modo
geral 23 e pouco a pouco passou a designar os bailes de Black Music. Seus frequen-
tadores – os “charmeiros” – são comumente ligados a movimentos do “orgulho
black”: é habitual que dancem vestidos formalmente como modo de distinção e afir-
mação da autoestima. O mais conhecido dos bailes acontece desde 1993 embaixo
do viaduto de Madureira, subúrbio do Rio. Além do Charme, o local reúne manifes-
tações relacionadas à cultura e identidade afro-brasileiras, como funk, hip-hop, sam-
ba-rock, samba-funk, capoeira, partido alto, pagode, candomblé etc. No Brasil a mo-
vimentação dos dançarinos incorporou o gestual destas (o funk, sobretudo) e outras
manifestações corporais, como o frevo.
Em 1971, surgiu na TV americana o programa Soul Train24, que popularizou o gêne-
ro. Nos programas, as duplas dançavam (em fileiras e “trenzinhos”) em direção à
câmera, estratégia que me remete de imediato à origem do cinema.25 Trens que se
dirigem ao espectador não o assustam mais e nem apontam para um ponto de fuga
ainda possível no cinema analógico. Na imagem videográfica da TV, o trem se mo-
vimenta no mesmo fluxo de elétrons, estão todos no mesmo plano, no mesmo ambi-
ente, não há como fugir.
Os dançarinos não dançam para ou com o outro, não se movimentam um em frente
ao outro, mas lado a lado. Não interagem, portanto, entre si, mas podem executar
alguns movimentos simultâneos, quando ensaiados. A reflexão aqui deve incluir
elementos encontrados na dança de origem afro-americana Cakewalk, que posteri-
ormente ganhou música própria: o Ragtime. A dança surgiu entre os escravos no
século 19 como uma sátira às danças dos brancos e se disseminou pelo mundo.26
Os brancos, por sua vez, achavam que a Cakewalk era uma tentativa mal-sucedida
de dançar as coreografias europeias. Originalmente, pois, a formação em corredor
(o trem) era uma apropriação, por parte dos escravos, dos códigos corporais desse
outro com quem tinham uma relação desnivelada. Se no início a manifestação obje-
tivava a sátira do outro entre os membros do grupo, em um segundo momento pas-
sa a ser uma apresentação para aqueles que satirizam. Não há diálogos entre indi-
víduos, portanto. Se há perguntas, as respostas são sempre coletivas. No Soul Train
1186
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
o pas-de-deux ocorre com a câmera e o coletivo nela incluído: o público – seja ele
de amigos ou não, o que é ofertado é sempre o melhor de cada um. Música e dança
aqui agem como dispositivos catalisadores do gestual e demais códigos coletivos.
O casamento
Em 2005 realizei o vídeo Bubbles.27 Quando subi o vídeo na internet, acrescentei a
seguinte sinopse: “Em meio ao trânsito, uma jovem mulher lembra-se que, esquecidas
em seu pescoço, estão penduradas algumas conexões para um terreno de prazero-
sas possibilidades.” A personagem está imóvel na rua, esperando algo ou alguém. A
jovem põe os fones de ouvido de um Discman, mas somente quando toca determina-
da música ela passa a compartilhar com o espectador o que ouve. Nesse momento,
passa a dançar no mesmo lugar. O vídeo termina quando ela finalmente se desloca e
atravessa a rua. Voltando a Sex Machine: há no vídeo um espaço de clausura, em
parte provocado pelo uso dos fones, como em Bubbles, porém ainda mais demarcado.
Como no vídeo de 2005, os dançarinos são captados com a câmera na mão de modo
a imprimir no enquadramento a instabilidade dos “fantasmas […] que assombram e
alucinam as bordas da imagem” (BONITZER, 1999, p. 75)28, na bela sentença do o
teórico e diretor de cinema Pascal Bonitzer. Estou ouvindo a música ao mesmo tempo
que os dançarinos, e, como eles, em fones de ouvido. O ritmo das imagens com o uso
da câmera na mão possibilita ao espectador que enquadre o casal no ritmo do meu
corpo – no ritmo da música, por extensão. Em Bubbles, mesmo com enquadramento
ainda mais fechado que em Sex Machine, vários elementos ampliam as informações
contidas no quadro: o espaço público (e a escala da cidade), a música (letra, ritmo
etc.), o zoom (que provoca instabilidade) e o comportamento do foco automático dian-
te do movimento dos carros (que ao focar e desfocar cria uma vibração na profundi-
dade do plano). Isso tudo provoca uma agitação que suscita, em parte, uma falsa im-
pressão de amplitude no espectador. Inversamente, é a escassez de elementos no
exíguo espaço que Sex Machine lhe oferece, que encontra vazios para preencher
com seus fantasmas. A câmera opera uma redução do visualizável e está fechada
nos corpos dos dançarinos. “Se a visão é parcial, o inimigo está virtualmente em todos
os lugares” (BONITZER, 1999, p. 68)29, afirma Bonitzer. Essa economia do enqua-
dramento amplia, segundo ele, a possibilidade de atuação do espectador: “A visão
1187
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
parcial põe o espaço do filme em questão, mas também o espectador” (BONITZER,
1999, p. 72).30 O fora de quadro, o extracampo, ou o que Bonitzer chama de “campo
cego”, ou seja, tudo aquilo que não é visto no quadro mas pode ser presumido, imagi-
nado, ou ainda construído, cresce inversamente ao fechamento dos planos. Mas que
tipo de campo cego temos em Sex Machine?
O pintor flamengo Jan van Eyck nos apresenta outro casal, pintado em 1434, em O
casamento dos Arnolfini:
Para olhares desavisados, a aparência da casa ali representada não condiz com uma data tão especial: a presença do cachorro, as frutas na janela, chinelos e tamancos largados, a visão do leito. A cena, no entan-to, foi cuidadosamente organizada para retratar a imanência do sagrado no universo doméstico. Os noivos estão descalços em reverência ao so-lo da ocasião: um ritual de casamento. A mão erguida do noivo promete fidelidade, enfatizada pela presença do cachorro, que também anuncia a amizade entre os noivos. Os pêssegos amadurecendo ao sol garan-tem a fertilidade, e Santa Margareth, no espaldar da cama, o bom parto. Na parede ao fundo, um espelho convexo permite a visão ampla da ce-na composta pelo pintor: os anfitriões de costas e dois hóspedes que a frase sob o espelho “Jan van Eyck esteve aqui 1434” faz supor ser o próprio autor e seu assistente. (CUNHA, 2007, p. 79–80)
Há no quadro uma série de elementos que reafirmam o casal como parte do coletivo,
em momento reconhecido e firmado pelo pintor. A pintura, mais que testemunha, é a
anfitriã do universo invisível das coisas. Como convidada, ela explicita o caráter mágico
do ritual e, simultaneamente, hospeda seus códigos. Em seu espaço simbólico, o qua-
dro inclui todo o campo cego, tudo o que representa o pertencimento a um espaço físico
e social. É uma partilha: da intimidade, dos símbolos, dos códigos e do sagrado comum.
Tal como toda obra de arte, Sex Machine oferece ao espectador um fluxo de ele-
mentos invisíveis e residuais presentes dentro e fora de quadro: vídeo digital em co-
res, som direto sem música, com um casal (e respectivos estilos de vestuário) que
dança ocupando dois quadros, filmados frontalmente por uma câmera na mão –
dentro do quadro; a música negra norte-americana (inclusos escravidão, movimento
negro, identidade etc.); a liberação sexual e o contexto extremamente instável dos
anos 1960/1970; o canto responsorial (que inclui manifestações religiosas) o gestual
combinado de brancos e negros na coreografia; e, finalmente, o resultado disso tudo
devidamente antropofagizado pelos dançarinos brasileiros e pelo meu ponto de vista.
1188
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
Estes ruídos percorrem o vídeo, mas não são visíveis. Para que façam sentido, é
necessário que criem algum atrito com os ruídos internos do espectador, que este
admita indagá-los em suas sutilezas que, por sua vez, permitam então a construção,
ainda que efêmera e precária, do sentido – dentre inúmeras outras coisas –, de viver
no mundo globalizado.
Há em Sex Machine essa invisibilidade que ocupa as frestas do comum, que percor-
re as partilhas: o espaço simbólico coletivo, com seus códigos percebidos em rastros,
no momento mesmo em que ocorre a experiência. São eles que dão a voz da ima-
gem na qual o espectador encontra seu espaço de interpelação, para ouvir e ser
ouvido.
Notas 1 Em português: Espera um pouco! / Balance seu braço e use suas formas / mantenha-se em cena como uma
máquina de sexo / você tem que sentir isso / com a mesma certeza de estar vivo / conseguimos isso juntos.
2 Os irmãos Lumière chegaram a afirmar que “o cinema é uma invenção sem futuro”.
3 Com a participação dos dançarinos Anderson Luiz e Ana Paula Kamozaki.
4 Os vídeos citados podem ser visualizados em https://vimeo.com/analucunha.
5 Movimentos percebidos no volume do som e nas entradas e saídas dos instrumentos.
6 Analu Cunha & Bruno Di Lullo – Batidance, 2010. Nos trabalhos feitos em dupla, o nome que vem primeiro é o
de quem iniciou a parceria. Neste caso, foi eu quem propôs a imagem ao Bruno. No exemplo da nota seguinte, o inverso.
7 Bruno Di Lullo & Analu Cunha – Teremini, 2010.
8 Um dos instrumentos responsáveis pelo surgimento da música eletrônica, o teremim se baseia em antenas que
captam e transformam movimentos em impulsos elétricos amplificados. Ele foi criado pelo russo Lev Theremin nos anos 1920 e patenteado em 1928.
9 Bruno Di Lullo & Analu Cunha – Case Project, 2010.
10 Bruno Di Lullo & Analu Cunha – Loop, 2010.
11 Roberto Farias – Roberto Carlos em ritmo de aventura, 1968, trecho entre 1h e 1h02 de filme.
12 Sobre o uso do looping, o artista Bruce Nauman comentou “(…) enquanto o filme tinha um limite de tempo,
aproximadamente 10 minutos cada rolo, o vídeo possibilitava imagens contínuas de até uma hora. Com o uso do looping, esse tempo podia se estender ilimitadamente.” Não sem razão, o apreço de Nauman pelo looping parte da música que ouvia na época: “Me atraíam muito as primeiras composições de Phil Glass e La Monte Young, cuja ideia de música era de algo que simplesmente estava ali; gosto muito dessa ideia, dessa maneira de estru-turar o tempo. Então, não é somente um interesse no conteúdo, na imagem, mas sim na forma de ocupar o es-paço e tomar o tempo.” (KRAYNAK, 2003, p. 326 apud TONE, LEONZINI, 2005, p. 17).
13 (L’oreille est passive. L’oeil est recouvert par la paupière, on doit l’ouvrir; l’oreille est ouverte: plus que se tour-
ne vers des stimulus d’une manière attentionnelle, elle doit s’en protéger… [apud SZENDY, 2007, p. 48]). Nessa e nas demais citações em idioma estrangeiro foi feita tradução livre pela autora, transcrevendo-se em nota o original.
https://vimeo.com/39629651https://vimeo.com/39630255https://vimeo.com/39629946https://vimeo.com/39630481
1189
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
14
[(…) qu’il n'y a pas de solidarité structurelle des différents sons du film (…) et tout se joue dans le rapport de chaque élément sonore particulier avec l'image.]
15 A expressão é intraduzível. Em francês, o verbo bander tem duplo sentido: quando transitivo, apresenta o
sentido de enfaixar, envelopar etc.; no modo intransitivo tem a conotação de excitação sexual, ereção, sentido que certamente Deshay desejou explorar.
16 (“c’est à dire, comme un luxe.).
17 (la musique de cinéma n’est pas faite pour être entendue).
18 (Il y a nécessité de devenir enfin auditeur, ne serait-ce que pour entrevoir seulement ce qu’il en est de la ri-
chesse de ce patrimoine fantomatique).
19 Sobre a relação entre a tese e o trabalho: a ideia inicial do vídeo permaneceu invariável durante a escrita da
tese: casal dançando para a câmera a música Sex Machine ouvida por headphones. A pesquisa, contudo, ofere-ceu possibilidades de leituras que excluíram certas dúvidas, como por exemplo: 1) a frontalidade da câmera; 2) o gênero do casal; 3) o número de participantes e de janelas.
20 No Brasil, os escravos de origem angolana entoavam canto responsorial conhecido como vissungo nas minas
de ouro e diamante do Estado de Minas Gerais.
21 Música de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar com Tony Tornado e Trio Ternura no backing vocal, formação
clássica da Black Music.
22 Fã de James Brown, Tornado chegara de Nova York em 1969, após morar 5 anos na cidade trabalhando co-
mo gigolô e traficante.
23 O termo foi popularizado pelo DJ Corello nos anos 1980 nos bailes do Clube Mackenzie no Méier, zona norte
do Rio: “Chegou a hora do charminho, transe seu corpo bem devagarinho”.
24 Soul Train, criado por Dom Cornelius para o Canal norte-americano CBS.
25 Refiro-me ao primeiro filme realizado pelos Irmãos Lumière – L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat, 1895.
26 Disponível em: http://shdestherrense.com/ . Acesso em: jun. 2014. Mais informações em: http://www.npr.org/
(acesso em: jun. 2014) e no filme de Georges Méliès, Cake-walk infernal, 1903. Dois documentários mostram a evolução da dança entre os negros americanos: The Spirit Moves: A History of Black Social Dance, filme de Mura Dehn realizado em 1987 e Jazz Dance, 1954, de Roger Tilton.
27 Analu Cunha, Bubbles, 2005.
28 (les fantômes (…) qui hantent et hallucinent les bords de l’image.).
29 (L’ennemi est virtuellement partout si la vision est partielle.)
30 (La vision partielle met l’espace du film à la question, mais le spectateur aussi.).
Referências
ADORNO, Theodor. Musique de cinema, Paris, L’Arche, 2001.
______. Introduction à la sociologie de la musique. Paris: Contrechamps, 1995.
BAYLE, François: Je suis né un jour par l'écoute. Entrevista para a rádio France Culture em
13/06/2012. Disponível em: http://www.franceculture.fr/blog_fo_liste_posts_blog/4298435/201206. Aces-so em: nov. 2013.
BONITZER, Pascal. Le champ aveugle – Essais sur le réalisme au cinéma. Paris: Cahiers
du Cinéma, 1999.
CAESAR, Rodolfo. O som como imagem. IV Seminário Música Ciência e Tecnologia: Fron-
teiras e Rupturas, 2 a 4 de julho de 2012. Disponível em https://www.academia.edu/. Acesso em: jun. 2013.
1190
SEX MACHINE
Ana Luísa de Lima Cunha / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
______. Uma terceira versão do texto O tímpano é uma tela. Disponível em http://ufrj.academia.edu/RodolfoCaesar/Papers/ . Texto para o Catálogo da exposição Arte & Música, na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro, 14 de outubro a 23 de novembro de 2008. Acesso em: jun. 2012.
CHION, Michel. A audiovisão: som e imagem no cinema, Lisboa: Edições Texto e Grafia,
2008.
______. Textes sur la question de la description du son dans l’analyse audio-visuelle. In Cours de cinéma, 1991–1999.
Disponível em: http://www.michelchion.com/cours/la_description_du_son.pdf. Acesso em: nov. 2012.
CUNHA, Analu. A arte, o canto e a esquina: sobre intimidade, exposição e suas ocasiões de permeabilidade, mesmo. Dissertação de mestrado em Linguagens Visuais, orientação Prof. Dr. Milton Machado. PPGAV/EBA-UFRJ, 2007.
DESHAY, Daniel. Entendre le cinéma. Paris: Klincksieck, 2010.
KRAYNAK, Janet (ed.). Please Pay Attention Please: Bruce Nauman’s Words. Cambridge e Londres: MIT Press, 2003.
SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux. Paris: Editions du Seuil, 1966.
SZENDY, Peter. Sur écoute – Esthétique de l’espionnage, Paris: Les Éditions de Minuit,
2007.
TONE, Lilian e LEONZINI, Nessia. Circuito fechado: filmes e vídeos de Bruce Nauman. Rio
de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 2005.
Ana Luzia de Lima Cunha [Analu Cunha] Artista e professora da EAV/Parque Lage, com Pós-Doutorado em andamento na EBA/PPGAV/UFRJ supervisionado pela Prof. Dra. Livia Flores. Este artigo foi desenvolvido a partir do capítulo de igual título de sua tese A tempestade: silêncio e invisibilidade na vide-oarte (Linguagens Visuais – EBA/PPGAV/UFRJ, 2014), orientada pela Prof. Dra. Glória Fer-
reira.