16
31 ~ Microtextualidades. Revista Internacional de microrrelato y minificción. N. 9 pp. 31-46 ISSN: 2530-8297 Rui Nunes, ou a pequena história dos gestos Rui Nunes, or the brief story of gestures Diogo André BARBOSA MARTINS Universidade do Porto [email protected] ID ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0976-1642 RESUMO Na literatura portuguesa contemporânea, Rui Nunes (n. 1945) destaca-se pela singularidade inclassificável da sua escrita, na qual a crise da representação do humano, da identidade, do corpo, é levada a uma zona limite que torna indiscerníveis, porque mutuamente implicados, uma radical crise genológica e as fragilidades físicas do próprio autor: uma miopia progressiva leva-o a exacerbar a monstruosidade do pormenor, do descontínuo e do fragmento, em detrimento das “grandes coesões” textuais, orgânicas ou metafísicas. Desfazendo o mundo, dos objectos às personagens, em “escombros” e “ruínas”, o humano é reconduzido ao absurdo da “carne”, esvaziada de qualquer fundamento ontológico. É essa escrita-olhar que está no âmago deste ensaio, articulando-se, para o efeito, com o “momento qualquer” na literatura segundo Jacques Rancière, o poeta Henri Lefebvre, um poema de Rilke e o problema do “corpo paliativo” segundo Byung-Chul Han. PALAVRAS-CHAVE: Rui Nunes; olhar; escrita; gesto; corpo; ruína. ABSTRACT In Portuguese contemporary literature, Rui Nunes (b. 1945) stands out for the unclassifiable singularity of his writing, in which the crisis of representation (what it means to be human, to have an identity, to understand one’s body) is taken to a limit zone. In fact, a radical genological crisis and the physical weaknesses of the author himself turn indiscernible: due to his progressive myopia, Rui Nunes exacerbates the monstrosity of detail, discontinuity and fragment, in detriment of textual, organic or metaphysical “great cohesions”. From objects to characters, his world is a wasteland, made of “havoc” and “ruins”, bringing the human back to the absurdity of his “flesh”, emptied of any ontological foundations. This writing-look is at the heart of this essay, exploring its connections to “the random occurrence” in literature according to Jacques Rancière, the poet Henri Lefebvre, a poem by Rilke, and the contemporary “palliative body” according to Byung-Chul Han. KEYWORDS: Rui Nunes; look; writing; gesture; body; ruin. Artículo recibido: Febrero 2021 Artículo aceptado: Abril 2021 Número 9 pp. 31-46 DOI: https://doi.org/10.31921/microtextualidades.n9a 3 ISSN: 2530-8297 @ 2021 Microtextualidades Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificción Directora Ana Calvo Revilla Editor adjunto Ángel Arias Urrutia

Rui Nunes, ou a pequena história dos gestos Rui Nunes, or

  • Upload
    others

  • View
    6

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

31 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos

Rui Nunes or the brief story of gestures

Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS Universidade do Porto

diogobarbosamartinsgmailcom

ID ORCID httpsorcidorg0000-0003-0976-1642

RESUMO

Na literatura portuguesa contemporacircnea Rui

Nunes (n 1945) destaca-se pela singularidade

inclassificaacutevel da sua escrita na qual a crise da representaccedilatildeo do humano da identidade do

corpo eacute levada a uma zona limite que torna

indiscerniacuteveis porque mutuamente implicados uma radical crise genoloacutegica e as fragilidades

fiacutesicas do proacuteprio autor uma miopia progressiva

leva-o a exacerbar a monstruosidade do pormenor do descontiacutenuo e do fragmento em

detrimento das ldquograndes coesotildeesrdquo textuais

orgacircnicas ou metafiacutesicas Desfazendo o mundo dos objectos agraves personagens em ldquoescombrosrdquo e

ldquoruiacutenasrdquo o humano eacute reconduzido ao absurdo da

ldquocarnerdquo esvaziada de qualquer fundamento ontoloacutegico Eacute essa escrita-olhar que estaacute no

acircmago deste ensaio articulando-se para o efeito

com o ldquomomento qualquerrdquo na literatura segundo Jacques Ranciegravere o poeta Henri

Lefebvre um poema de Rilke e o problema do

ldquocorpo paliativordquo segundo Byung-Chul Han

PALAVRAS-CHAVE Rui Nunes olhar

escrita gesto corpo ruiacutena

ABSTRACT

In Portuguese contemporary literature Rui Nunes (b 1945) stands out for the

unclassifiable singularity of his writing in

which the crisis of representation (what it means to be human to have an identity to

understand onersquos body) is taken to a limit zone

In fact a radical genological crisis and the physical weaknesses of the author himself turn

indiscernible due to his progressive myopia

Rui Nunes exacerbates the monstrosity of detail discontinuity and fragment in detriment

of textual organic or metaphysical ldquogreat

cohesionsrdquo From objects to characters his world is a wasteland made of ldquohavocrdquo and

ldquoruinsrdquo bringing the human back to the

absurdity of his ldquofleshrdquo emptied of any ontological foundations This writing-look is at

the heart of this essay exploring its

connections to ldquothe random occurrencerdquo in literature according to Jacques Ranciegravere the

poet Henri Lefebvre a poem by Rilke and the

contemporary ldquopalliative bodyrdquo according to

Byung-Chul Han

KEYWORDS Rui Nunes look writing

gesture body ruin

Artiacuteculo recibido Febrero 2021

Artiacuteculo aceptado Abril 2021

Nuacutemero 9 pp 31-46 DOI

httpsdoiorg1031921microtextualidadesn9a

3

ISSN 2530-8297 2021 Microtextualidades

Microtextualidades

Revista Internacional de

microrrelato y minificcioacuten

Directora Ana Calvo Revilla

Editor adjunto Aacutengel Arias Urrutia

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

32 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

1 Alguns meses antes de morrer numa entrevista o poeta e tradutor Rui Caeiro

descreveu Rui Nunes (n 1945) da seguinte maneira

O Rui Nunes eacute daqueles casos em que eu costumo dizer lsquo[hellip] haacute aiacute uns tipos a escrever

umas coisas e que pretendem ser escritores agora o Rui Nunes eacute outra coisa esse eacute um

escritor a seacuterio natildeo faz coisinhas esse lida com a literatura luta com a literatura tem

raiva agrave literaturarsquo Eacute preciso ter raiva agrave literatura para se fazer alguma coisa interessante

neste campo porque de outra maneira estatildeo apenas a repetir-se as banalidades que andam

no ar (Caeiro 17 de Abril de 2018 em linha)

Lidar com lutar com ter raiva este ensaio mais natildeo eacute do que uma demorada (e

sofrida) aproximaccedilatildeo a esse clima visceralmente tenso que caracteriza a escrita de Rui

Nunes Nos seus livros como veremos a coesatildeo textual eacute desconjuntada com violecircncia desfeita em ldquobocadosrdquo ou ldquoescombrosrdquo dedicando-se uma extrema minuacutecia agrave

ocorrecircncia simultacircnea quase sempre caoacutetica de muacuteltiplos micro-acontecimentos O que

os liga Talvez esta foacutermula extrema para os tempos extremos desta eacutepoca a

ldquointimidade de uma ruiacutenardquo (Nunes 2020 28)

Por sua vez Rui Caeiro conclui aquela descriccedilatildeo dizendo que o autor de O Anjo

Camponecircs ldquo[hellip] tem outra caracteriacutestica que eu aprecio muito a pessoa e o poeta satildeo parecidos que eacute uma coisa que nem sempre acontecerdquo (ibidem) O regime das

semelhanccedilas eacute problemaacutetico sobretudo quando o que estaacute em jogo nesta afirmaccedilatildeo

decorre intimamente da subjectividade do entrevistado e dos laccedilos afectivos que os

unem Mas a parecenccedila aqui talvez seja o termo mais coloquial e por isso mais eficaz

para esboccedilar o efeito de contaacutegio entre a escrita e quem a escreve ndash sobretudo quando lendo os seus textos constatamos que ldquoa pessoa e o poetardquo estatildeo indiscernivelmente

ligados ao olhar aos seus constrangimentos e debilidades E os olhos de Rui Nunes

vecircem muito mal Mas vecircem vecircem o mal ou uma feiccedilatildeo imanente desse mal a

malignidade inscrita nas coisas nas palavras e nas relaccedilotildees humanas Em A margem de

um livro aponta

Os olhos na sua contiacutenua destruiccedilatildeo vecircem a luz

Satildeo os olhos destruiacutedos a luz

satildeo os olhos a destruiccedilatildeo da luz

(Nunes 2017a 46)

Destruir enquanto vocaccedilatildeo inerente ao acto de ver enquanto condiccedilatildeo inescapaacutevel

da doenccedila com que se nasce a doenccedila de ver muitiacutessimo mal E o que faz um homem que vecirc muitiacutessimo mal e que apesar disso ou ateacute forccedilosamente por isso escreve O que

diz a cegueira funcional de uma escrita que resiste agrave sua proacutepria anulaccedilatildeo que se

esforccedila letra a letra por perseverar E que resta da destruiccedilatildeo que um par de olhos

inflige sobre o mundo para desesperadamente ousar esclarececirc-lo no mesmo movimento

em que o corrompe

Por fim repare-se neste detalhe Rui Caeiro diz ldquoo poetardquo e natildeo ldquoo escritorrdquo quando descreve Rui Nunes Escritores satildeo os outros esses ldquotiposrdquo que escrevem ldquoumas

coisasrdquo Para demarcar uma niacutetida clivagem entre dois modos de relaccedilatildeo com a palavra

escrita o ldquopoetardquo surge como aquele cujos usos da palavra iluminam uma ideia de

verdade um comprometimento poliacutetico da palavra eacutetica e esteacutetica indissociavelmente

Ao longo deste ensaio veremos aonde isso nos leva a escrita o olhar a verdade ou a

intimidade da ruiacutena

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

33 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2 ldquoJames Joyce e John Milton escreveram as suas obras-primas Finneganrsquos

Wake e Paradise Lost enquanto perdiam a visatildeordquo (Lefebvre 2019 27) Idecircntico comentaacuterio poderia ser feito acerca de Rui Nunes que natildeo tem feito outra coisa durante

mais de meio seacuteculo senatildeo escrever livros enquanto se foi esbatendo a visatildeo Uma

miopia progressiva que vem desde tenra idade somando-se essa a outras doenccedilas

obrigou o autor a conviver de perto com a falecircncia do corpo experimentando o corpo

senatildeo como invoacutelucro de crise sempre na iminecircncia de falhar de doer de exacerbar o seu deacutefice A sua escrita natildeo poderia estar senatildeo no limite ldquoNo limite da narrativa no

limite da linguagem no limite da visatildeo no limite das forccedilasrdquo (Coelho 2003 78) Uma

escrita-limite cujo condatildeo de representar o mundo ndash representar efabular urdir intrigas

e enredos ndash eacute obsessivamente assediado pela impotecircncia fundacional das palavras ou

melhor pela sua inerente cegueira (cf Derrida 2010) com um claro efeito devastador

As palavras morreram com os olhos

Morreram quando os olhos Distanciaram

Morreram os olhos quando distanciaram

Falamos palavras mortas

acumuladas no tempo de todos os mortos

Morremos E natildeo somos

mais do que o estrume de outras palavras mortas

Algumas vezes o ranho a merda e o choro

o gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeo

eacute o que conseguimos

mais proacuteximo de ser verdade

(Nunes 2016 29-30)

A escrita de Rui Nunes insiste nesta exasperaccedilatildeo a de um mundo que apoacutes ter

conhecido piacutencaros de loucura destrutiva natildeo tem mais com que nos enganar E a

literatura ou diz esse engano sem reservas nem truques eufemiacutesticos ou eacute ela proacutepria

nada mais do que a consolidaccedilatildeo da infacircmia feita de palavras mortas e que cavam cada

vez mais longas distacircncias entre si e o mundo esse ldquoestrumerdquo a que nos vemos impiedosamente reduzidos Natildeo haacute uma saiacuteda faacutecil nenhum plano B Ter perdido a

esperanccedila mas sem desesperar eis a vereda pela qual esta escrita abre caminho numa

luacutecida acidez Foram-se acabando os mundos uns atraacutes dos outros a humanidade resta

como o eco de uma palavra destroccedilada pela sua tatildeo abusada quanto abusiva eloquecircncia

Morrem palavras cegam-se os olhos E ldquoo que conseguimos mais proacuteximo de ser verdaderdquo eacute apenas ldquoo gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeordquo (ibidem) Natildeo a matildeo

iacutendice dessa continuidade ilusoacuteria que o corpo eacute enquanto organismo na sua plenitude

figurativa Natildeo a matildeo mas o gesto evanescecircncia o desenho no ar do que natildeo deixa

rasto A impressatildeo de um ritmo a inscriccedilatildeo de um movimento no corpo da escrita fazer

com as palavras o que uma matildeo desfaz no puro acontecer dos seus gestos Uma escrita que funcione como esses gestos tatildeo impossiacutevel quanto isso como um gesto fixado pelo

gesso da escrita ou uma labareda que o gelo preservasse Uma contradiccedilatildeo insuperaacutevel

como eacute a de um homem capturado no seu ldquoesbracejarrdquo Esse caldo aflitivo de gestos

seraacute para o autor o seu retrato mais verdadeiro mas mais verdadeiro natildeo significa que

seja menos terriacutevel

O fogo natildeo tem um desenho propaga-se ateacute agrave cinza o sinal do vento Um homem

confunde-se com a chama Instaacutevel como ela nos movimentos desconexos Na sua

afliccedilatildeo esbraceja Eacute um instante completo o esbracejar de um homem (idem 36-7)

3 Se eacute verdade que todos os livros de Rui Nunes constituem uma forma de

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia

narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute

na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha

(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento

da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende

para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos

negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como

gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de

funcionar como frase

Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio

O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)

Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo

meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural

como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito

instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura

inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando

muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre

imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves

quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de

irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior

a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo

mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em

sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo

(Coelho 2003 78)

E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a

impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo

dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da

entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo

segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa

um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de

cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada

elemento contra a transcendecircncia da realidade

o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o

que vejo amontoo nomes eis o caos

os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de

jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos

se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram

foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999

26-7)

4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes

quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa

A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das

aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela

dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um

encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos

acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o

romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem

objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos

efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma

mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)

O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs

Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama

narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo

estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um

pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras

dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas

inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes

Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do

realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos

olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele

que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua

obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os

referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria

ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade

Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia

difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis

(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia

Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia

de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-

se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho

interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as

hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes

humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em

luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua

transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta

Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a

possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia

das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava

exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais

diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes

quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2001 497)

5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri

Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-

achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida

comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On

the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto

(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio

de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se

escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar

especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser

O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance

aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma

memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos

seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na

montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi

destruiacuteda (idem 34)

Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo

benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-

limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele

segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de

esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se

perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas

Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo

deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin

com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os

livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta

passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos

ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo

O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk

Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf

do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de

Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a

escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a

dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha

matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que

sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute

isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um

bocado (Nunes 2017b 13-4)

Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as

visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua

unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das

coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo

potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo

que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados

os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala

assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando

os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas

uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora

coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase

se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida

autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos

princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos

ndash o seu cafeacute

a matildeo surgiu e desapareceu

A chaacutevena

Levo-a agrave boca

Os laacutebios tocam-lhe

Afasto-a

Volto a aproximaacute-la

Afasto-a de novo

Ateacute natildeo ter medo

Ateacute

(idem 2011 46)

Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica

que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta

Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da

imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se

aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo

desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos

ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo

ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a

magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma

legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria

do poder

as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do

sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua

integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo

pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se

torna monstruoso e doente

(ou natildeo vejo ou vejo a morte)

natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a

uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular

uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)

Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude

ontoloacutegica

Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu

incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais

iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

32 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

1 Alguns meses antes de morrer numa entrevista o poeta e tradutor Rui Caeiro

descreveu Rui Nunes (n 1945) da seguinte maneira

O Rui Nunes eacute daqueles casos em que eu costumo dizer lsquo[hellip] haacute aiacute uns tipos a escrever

umas coisas e que pretendem ser escritores agora o Rui Nunes eacute outra coisa esse eacute um

escritor a seacuterio natildeo faz coisinhas esse lida com a literatura luta com a literatura tem

raiva agrave literaturarsquo Eacute preciso ter raiva agrave literatura para se fazer alguma coisa interessante

neste campo porque de outra maneira estatildeo apenas a repetir-se as banalidades que andam

no ar (Caeiro 17 de Abril de 2018 em linha)

Lidar com lutar com ter raiva este ensaio mais natildeo eacute do que uma demorada (e

sofrida) aproximaccedilatildeo a esse clima visceralmente tenso que caracteriza a escrita de Rui

Nunes Nos seus livros como veremos a coesatildeo textual eacute desconjuntada com violecircncia desfeita em ldquobocadosrdquo ou ldquoescombrosrdquo dedicando-se uma extrema minuacutecia agrave

ocorrecircncia simultacircnea quase sempre caoacutetica de muacuteltiplos micro-acontecimentos O que

os liga Talvez esta foacutermula extrema para os tempos extremos desta eacutepoca a

ldquointimidade de uma ruiacutenardquo (Nunes 2020 28)

Por sua vez Rui Caeiro conclui aquela descriccedilatildeo dizendo que o autor de O Anjo

Camponecircs ldquo[hellip] tem outra caracteriacutestica que eu aprecio muito a pessoa e o poeta satildeo parecidos que eacute uma coisa que nem sempre acontecerdquo (ibidem) O regime das

semelhanccedilas eacute problemaacutetico sobretudo quando o que estaacute em jogo nesta afirmaccedilatildeo

decorre intimamente da subjectividade do entrevistado e dos laccedilos afectivos que os

unem Mas a parecenccedila aqui talvez seja o termo mais coloquial e por isso mais eficaz

para esboccedilar o efeito de contaacutegio entre a escrita e quem a escreve ndash sobretudo quando lendo os seus textos constatamos que ldquoa pessoa e o poetardquo estatildeo indiscernivelmente

ligados ao olhar aos seus constrangimentos e debilidades E os olhos de Rui Nunes

vecircem muito mal Mas vecircem vecircem o mal ou uma feiccedilatildeo imanente desse mal a

malignidade inscrita nas coisas nas palavras e nas relaccedilotildees humanas Em A margem de

um livro aponta

Os olhos na sua contiacutenua destruiccedilatildeo vecircem a luz

Satildeo os olhos destruiacutedos a luz

satildeo os olhos a destruiccedilatildeo da luz

(Nunes 2017a 46)

Destruir enquanto vocaccedilatildeo inerente ao acto de ver enquanto condiccedilatildeo inescapaacutevel

da doenccedila com que se nasce a doenccedila de ver muitiacutessimo mal E o que faz um homem que vecirc muitiacutessimo mal e que apesar disso ou ateacute forccedilosamente por isso escreve O que

diz a cegueira funcional de uma escrita que resiste agrave sua proacutepria anulaccedilatildeo que se

esforccedila letra a letra por perseverar E que resta da destruiccedilatildeo que um par de olhos

inflige sobre o mundo para desesperadamente ousar esclarececirc-lo no mesmo movimento

em que o corrompe

Por fim repare-se neste detalhe Rui Caeiro diz ldquoo poetardquo e natildeo ldquoo escritorrdquo quando descreve Rui Nunes Escritores satildeo os outros esses ldquotiposrdquo que escrevem ldquoumas

coisasrdquo Para demarcar uma niacutetida clivagem entre dois modos de relaccedilatildeo com a palavra

escrita o ldquopoetardquo surge como aquele cujos usos da palavra iluminam uma ideia de

verdade um comprometimento poliacutetico da palavra eacutetica e esteacutetica indissociavelmente

Ao longo deste ensaio veremos aonde isso nos leva a escrita o olhar a verdade ou a

intimidade da ruiacutena

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

33 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2 ldquoJames Joyce e John Milton escreveram as suas obras-primas Finneganrsquos

Wake e Paradise Lost enquanto perdiam a visatildeordquo (Lefebvre 2019 27) Idecircntico comentaacuterio poderia ser feito acerca de Rui Nunes que natildeo tem feito outra coisa durante

mais de meio seacuteculo senatildeo escrever livros enquanto se foi esbatendo a visatildeo Uma

miopia progressiva que vem desde tenra idade somando-se essa a outras doenccedilas

obrigou o autor a conviver de perto com a falecircncia do corpo experimentando o corpo

senatildeo como invoacutelucro de crise sempre na iminecircncia de falhar de doer de exacerbar o seu deacutefice A sua escrita natildeo poderia estar senatildeo no limite ldquoNo limite da narrativa no

limite da linguagem no limite da visatildeo no limite das forccedilasrdquo (Coelho 2003 78) Uma

escrita-limite cujo condatildeo de representar o mundo ndash representar efabular urdir intrigas

e enredos ndash eacute obsessivamente assediado pela impotecircncia fundacional das palavras ou

melhor pela sua inerente cegueira (cf Derrida 2010) com um claro efeito devastador

As palavras morreram com os olhos

Morreram quando os olhos Distanciaram

Morreram os olhos quando distanciaram

Falamos palavras mortas

acumuladas no tempo de todos os mortos

Morremos E natildeo somos

mais do que o estrume de outras palavras mortas

Algumas vezes o ranho a merda e o choro

o gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeo

eacute o que conseguimos

mais proacuteximo de ser verdade

(Nunes 2016 29-30)

A escrita de Rui Nunes insiste nesta exasperaccedilatildeo a de um mundo que apoacutes ter

conhecido piacutencaros de loucura destrutiva natildeo tem mais com que nos enganar E a

literatura ou diz esse engano sem reservas nem truques eufemiacutesticos ou eacute ela proacutepria

nada mais do que a consolidaccedilatildeo da infacircmia feita de palavras mortas e que cavam cada

vez mais longas distacircncias entre si e o mundo esse ldquoestrumerdquo a que nos vemos impiedosamente reduzidos Natildeo haacute uma saiacuteda faacutecil nenhum plano B Ter perdido a

esperanccedila mas sem desesperar eis a vereda pela qual esta escrita abre caminho numa

luacutecida acidez Foram-se acabando os mundos uns atraacutes dos outros a humanidade resta

como o eco de uma palavra destroccedilada pela sua tatildeo abusada quanto abusiva eloquecircncia

Morrem palavras cegam-se os olhos E ldquoo que conseguimos mais proacuteximo de ser verdaderdquo eacute apenas ldquoo gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeordquo (ibidem) Natildeo a matildeo

iacutendice dessa continuidade ilusoacuteria que o corpo eacute enquanto organismo na sua plenitude

figurativa Natildeo a matildeo mas o gesto evanescecircncia o desenho no ar do que natildeo deixa

rasto A impressatildeo de um ritmo a inscriccedilatildeo de um movimento no corpo da escrita fazer

com as palavras o que uma matildeo desfaz no puro acontecer dos seus gestos Uma escrita que funcione como esses gestos tatildeo impossiacutevel quanto isso como um gesto fixado pelo

gesso da escrita ou uma labareda que o gelo preservasse Uma contradiccedilatildeo insuperaacutevel

como eacute a de um homem capturado no seu ldquoesbracejarrdquo Esse caldo aflitivo de gestos

seraacute para o autor o seu retrato mais verdadeiro mas mais verdadeiro natildeo significa que

seja menos terriacutevel

O fogo natildeo tem um desenho propaga-se ateacute agrave cinza o sinal do vento Um homem

confunde-se com a chama Instaacutevel como ela nos movimentos desconexos Na sua

afliccedilatildeo esbraceja Eacute um instante completo o esbracejar de um homem (idem 36-7)

3 Se eacute verdade que todos os livros de Rui Nunes constituem uma forma de

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia

narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute

na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha

(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento

da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende

para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos

negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como

gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de

funcionar como frase

Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio

O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)

Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo

meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural

como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito

instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura

inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando

muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre

imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves

quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de

irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior

a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo

mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em

sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo

(Coelho 2003 78)

E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a

impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo

dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da

entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo

segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa

um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de

cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada

elemento contra a transcendecircncia da realidade

o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o

que vejo amontoo nomes eis o caos

os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de

jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos

se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram

foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999

26-7)

4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes

quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa

A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das

aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela

dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um

encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos

acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o

romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem

objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos

efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma

mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)

O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs

Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama

narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo

estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um

pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras

dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas

inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes

Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do

realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos

olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele

que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua

obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os

referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria

ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade

Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia

difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis

(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia

Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia

de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-

se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho

interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as

hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes

humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em

luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua

transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta

Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a

possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia

das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava

exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais

diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes

quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2001 497)

5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri

Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-

achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida

comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On

the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto

(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio

de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se

escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar

especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser

O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance

aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma

memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos

seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na

montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi

destruiacuteda (idem 34)

Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo

benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-

limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele

segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de

esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se

perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas

Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo

deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin

com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os

livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta

passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos

ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo

O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk

Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf

do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de

Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a

escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a

dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha

matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que

sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute

isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um

bocado (Nunes 2017b 13-4)

Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as

visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua

unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das

coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo

potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo

que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados

os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala

assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando

os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas

uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora

coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase

se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida

autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos

princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos

ndash o seu cafeacute

a matildeo surgiu e desapareceu

A chaacutevena

Levo-a agrave boca

Os laacutebios tocam-lhe

Afasto-a

Volto a aproximaacute-la

Afasto-a de novo

Ateacute natildeo ter medo

Ateacute

(idem 2011 46)

Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica

que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta

Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da

imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se

aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo

desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos

ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo

ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a

magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma

legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria

do poder

as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do

sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua

integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo

pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se

torna monstruoso e doente

(ou natildeo vejo ou vejo a morte)

natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a

uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular

uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)

Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude

ontoloacutegica

Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu

incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais

iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

33 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2 ldquoJames Joyce e John Milton escreveram as suas obras-primas Finneganrsquos

Wake e Paradise Lost enquanto perdiam a visatildeordquo (Lefebvre 2019 27) Idecircntico comentaacuterio poderia ser feito acerca de Rui Nunes que natildeo tem feito outra coisa durante

mais de meio seacuteculo senatildeo escrever livros enquanto se foi esbatendo a visatildeo Uma

miopia progressiva que vem desde tenra idade somando-se essa a outras doenccedilas

obrigou o autor a conviver de perto com a falecircncia do corpo experimentando o corpo

senatildeo como invoacutelucro de crise sempre na iminecircncia de falhar de doer de exacerbar o seu deacutefice A sua escrita natildeo poderia estar senatildeo no limite ldquoNo limite da narrativa no

limite da linguagem no limite da visatildeo no limite das forccedilasrdquo (Coelho 2003 78) Uma

escrita-limite cujo condatildeo de representar o mundo ndash representar efabular urdir intrigas

e enredos ndash eacute obsessivamente assediado pela impotecircncia fundacional das palavras ou

melhor pela sua inerente cegueira (cf Derrida 2010) com um claro efeito devastador

As palavras morreram com os olhos

Morreram quando os olhos Distanciaram

Morreram os olhos quando distanciaram

Falamos palavras mortas

acumuladas no tempo de todos os mortos

Morremos E natildeo somos

mais do que o estrume de outras palavras mortas

Algumas vezes o ranho a merda e o choro

o gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeo

eacute o que conseguimos

mais proacuteximo de ser verdade

(Nunes 2016 29-30)

A escrita de Rui Nunes insiste nesta exasperaccedilatildeo a de um mundo que apoacutes ter

conhecido piacutencaros de loucura destrutiva natildeo tem mais com que nos enganar E a

literatura ou diz esse engano sem reservas nem truques eufemiacutesticos ou eacute ela proacutepria

nada mais do que a consolidaccedilatildeo da infacircmia feita de palavras mortas e que cavam cada

vez mais longas distacircncias entre si e o mundo esse ldquoestrumerdquo a que nos vemos impiedosamente reduzidos Natildeo haacute uma saiacuteda faacutecil nenhum plano B Ter perdido a

esperanccedila mas sem desesperar eis a vereda pela qual esta escrita abre caminho numa

luacutecida acidez Foram-se acabando os mundos uns atraacutes dos outros a humanidade resta

como o eco de uma palavra destroccedilada pela sua tatildeo abusada quanto abusiva eloquecircncia

Morrem palavras cegam-se os olhos E ldquoo que conseguimos mais proacuteximo de ser verdaderdquo eacute apenas ldquoo gesto que a matildeo destroacutei na outra matildeordquo (ibidem) Natildeo a matildeo

iacutendice dessa continuidade ilusoacuteria que o corpo eacute enquanto organismo na sua plenitude

figurativa Natildeo a matildeo mas o gesto evanescecircncia o desenho no ar do que natildeo deixa

rasto A impressatildeo de um ritmo a inscriccedilatildeo de um movimento no corpo da escrita fazer

com as palavras o que uma matildeo desfaz no puro acontecer dos seus gestos Uma escrita que funcione como esses gestos tatildeo impossiacutevel quanto isso como um gesto fixado pelo

gesso da escrita ou uma labareda que o gelo preservasse Uma contradiccedilatildeo insuperaacutevel

como eacute a de um homem capturado no seu ldquoesbracejarrdquo Esse caldo aflitivo de gestos

seraacute para o autor o seu retrato mais verdadeiro mas mais verdadeiro natildeo significa que

seja menos terriacutevel

O fogo natildeo tem um desenho propaga-se ateacute agrave cinza o sinal do vento Um homem

confunde-se com a chama Instaacutevel como ela nos movimentos desconexos Na sua

afliccedilatildeo esbraceja Eacute um instante completo o esbracejar de um homem (idem 36-7)

3 Se eacute verdade que todos os livros de Rui Nunes constituem uma forma de

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia

narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute

na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha

(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento

da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende

para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos

negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como

gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de

funcionar como frase

Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio

O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)

Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo

meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural

como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito

instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura

inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando

muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre

imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves

quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de

irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior

a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo

mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em

sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo

(Coelho 2003 78)

E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a

impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo

dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da

entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo

segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa

um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de

cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada

elemento contra a transcendecircncia da realidade

o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o

que vejo amontoo nomes eis o caos

os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de

jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos

se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram

foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999

26-7)

4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes

quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa

A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das

aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela

dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um

encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos

acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o

romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem

objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos

efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma

mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)

O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs

Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama

narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo

estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um

pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras

dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas

inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes

Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do

realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos

olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele

que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua

obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os

referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria

ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade

Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia

difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis

(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia

Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia

de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-

se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho

interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as

hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes

humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em

luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua

transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta

Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a

possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia

das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava

exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais

diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes

quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2001 497)

5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri

Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-

achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida

comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On

the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto

(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio

de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se

escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar

especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser

O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance

aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma

memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos

seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na

montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi

destruiacuteda (idem 34)

Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo

benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-

limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele

segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de

esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se

perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas

Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo

deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin

com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os

livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta

passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos

ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo

O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk

Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf

do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de

Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a

escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a

dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha

matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que

sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute

isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um

bocado (Nunes 2017b 13-4)

Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as

visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua

unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das

coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo

potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo

que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados

os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala

assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando

os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas

uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora

coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase

se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida

autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos

princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos

ndash o seu cafeacute

a matildeo surgiu e desapareceu

A chaacutevena

Levo-a agrave boca

Os laacutebios tocam-lhe

Afasto-a

Volto a aproximaacute-la

Afasto-a de novo

Ateacute natildeo ter medo

Ateacute

(idem 2011 46)

Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica

que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta

Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da

imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se

aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo

desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos

ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo

ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a

magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma

legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria

do poder

as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do

sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua

integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo

pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se

torna monstruoso e doente

(ou natildeo vejo ou vejo a morte)

natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a

uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular

uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)

Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude

ontoloacutegica

Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu

incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais

iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

34 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

humilhaccedilatildeo das garantias do romance enquanto veiacuteculo de descriccedilatildeo e fluecircncia

narrativa faz sentido destacar Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado (1995) como o livro-charneira dos ulteriores e agudizados desvios que o autor infligiraacute

na composiccedilatildeo dos textos O que A Matildeo do Oleiro (2011) Barro (2012) Armadilha

(2013) ou A margem de um livro (2017a) tecircm em comum eacute o progressivo esboroamento

da condensaccedilatildeo narrativa o texto esfrangalha-se a coesatildeo das manchas graacuteficas tende

para uma dispersatildeo cada vez maior Surgem pequenas ilhas de texto de tamanho desigual com a insistecircncia do autor no uso de marcas tipograacuteficas distintas (itaacutelicos

negritos espaccedilos em branco) as frases surgem abruptamente interrompidas como

gaguejos que natildeo chegam sequer a completar uma unidade miacutenima de sentido capaz de

funcionar como frase

Comeccedila-se partindo (espatifando repetindo ateacute ao riso ateacute perguntarem que merda eacute esta natildeo sabes escrever E eu ainda natildeo) desenhando o labirinto de um espaccedilo vazio

O espaccedilo interminaacutevel de uma parede (Nunes 2017a 27)

Cada acantonamento de ideias eacute travado pela pontuaccedilatildeo marcando natildeo

meramente um ritmo proacuteprio de leitura mas um tipo de leitura radicalmente inaugural

como se de facto ao ser confrontado com esta escrita o leitor reaprendesse a ler ndash e a verndash reencenando-se assim o que o filoacutesofo Pierre Alferi considera o efeito

instaurador e natildeo descritivo das frases da literatura isto eacute como se a literatura

inventasse ldquoo passado das frasesrdquo (Alferi 1999 19-20) O uso de dois pontos figurando

muitas vezes como o uacutenico elemento visiacutevel numa linha marca um intervalo entre

imagens distintas agraves vezes ligadas justamente pela ausecircncia de ligaccedilatildeo sem relaccedilatildeo causa-efeito Ou abusa-se do ponto final para singularizar em sequecircncias tatildeo breves

quanto fulminantes o que cada instacircncia ndash homem som animal bocado ndash possui de

irredutiacutevel violento ou simultacircneo Quanto mais concentradas ficam as palavras maior

a densidade do seu enigma quanto mais se desobedecer agrave ldquotirania das grandes frasesrdquo

mais ldquoa palavra solta liberta a poeacutetica da erracircnciardquo (Nunes 2005 69) Como formulou Eduardo Prado Coelho a respeito do livro Catildees trata-se de ldquouma lsquoarte poverarsquo em

sentido literal e por isso exiacutegua de lances metamorfoses surpresas ou desenlacesrdquo

(Coelho 2003 78)

E eacute por isso tambeacutem que a escrita de Rui Nunes confessada agrave partida a

impossibilidade de a escrita vir a esgotar a realidade ou de dizer em plenitude o mundo

dos seres e das coisas numa utopia de sinoacutenimos perfeitos estaacute votada ao jogo inacabado das coexistecircncias contiacutenuas ldquoum tempo da coexistecircncia da igualdade e da

entre-expressividade dos momentos oposto ao tempo da sucessatildeo e da destruiccedilatildeordquo

segundo Jacques Ranciegravere (2019 108) Em Rui Nunes uma coisa a par de outra coisa

um fenoacutemeno contiacuteguo a outro fenoacutemeno a solidatildeo a escassez e a singularidade de

cada existencial de pensamentos e digressotildees interiores imbricados uns nos outros de falas e vozes misturadas de tempos e lugares heterogeacuteneos justapostos resistindo cada

elemento contra a transcendecircncia da realidade

o que tenho para descrever eacute a prolongada exposiccedilatildeo a uma falta por isso descrevo tudo o

que vejo amontoo nomes eis o caos

os caixotes abarrotam de lixo pela sua boca entreaberta saem sacos de plaacutestico folhas de

jornal gargalos de garrafas a perna de uma cadeira uma fita de gravaccedilatildeo nem os ratos

se aproximam destas montureiras batidas pelo vento destes foacutesseis que jaacute nasceram

foacutesseis eternidade rudimentar soacute as gaivotas debicam por aqui e por ali (Nunes 1999

26-7)

4 O tempo da coexistecircncia eacute o que Jacques Ranciegravere em As Margens da Ficccedilatildeo

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes

quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa

A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das

aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela

dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um

encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos

acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o

romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem

objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos

efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma

mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)

O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs

Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama

narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo

estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um

pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras

dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas

inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes

Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do

realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos

olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele

que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua

obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os

referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria

ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade

Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia

difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis

(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia

Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia

de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-

se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho

interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as

hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes

humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em

luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua

transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta

Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a

possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia

das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava

exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais

diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes

quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2001 497)

5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri

Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-

achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida

comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On

the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto

(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio

de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se

escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar

especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser

O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance

aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma

memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos

seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na

montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi

destruiacuteda (idem 34)

Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo

benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-

limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele

segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de

esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se

perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas

Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo

deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin

com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os

livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta

passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos

ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo

O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk

Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf

do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de

Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a

escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a

dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha

matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que

sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute

isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um

bocado (Nunes 2017b 13-4)

Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as

visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua

unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das

coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo

potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo

que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados

os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala

assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando

os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas

uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora

coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase

se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida

autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos

princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos

ndash o seu cafeacute

a matildeo surgiu e desapareceu

A chaacutevena

Levo-a agrave boca

Os laacutebios tocam-lhe

Afasto-a

Volto a aproximaacute-la

Afasto-a de novo

Ateacute natildeo ter medo

Ateacute

(idem 2011 46)

Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica

que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta

Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da

imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se

aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo

desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos

ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo

ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a

magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma

legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria

do poder

as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do

sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua

integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo

pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se

torna monstruoso e doente

(ou natildeo vejo ou vejo a morte)

natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a

uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular

uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)

Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude

ontoloacutegica

Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu

incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais

iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

35 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

(2019) expotildee como a inteligibilidade inaugural que marca escritores tatildeo diferentes

quanto Flaubert Virginia Woolf Rainer Maria Rilke W G Sebald ou Guimaratildees Rosa

A ficccedilatildeo fazia-se ela proacutepria anunciar atraveacutes da especificidade das personagens e das

aventuras que inventava assim como e mais que tudo pela sua estrutura temporal ela

dava resposta ao seu conceito quando a sucessatildeo de acontecimentos obedecia aiacute a um

encadeamento de causas e efeitos dotado de uma necessidade superior agrave do desenrolar dos

acontecimentos da vida comum Eacute esta sobre-racionalidade que se perdeu quando o

romance no seacuteculo XIX mergulhou no universo das coisas comuns e do tempo sem

objectivo O tempo da ficccedilatildeo jaacute natildeo estaacute estruturado pelo encadeamento das causas e dos

efeitos Deve conservar-se num soacute bloco como se fosse percorrido pelo sopro de uma

mesma modalidade de existecircncia (Ranciegravere 2019 96)

O que significa coexistir no realismo romanesco de Madame Bovary ou nrsquoOs

Cadernos de Malte Laurids Brigge Por um lado a coexistecircncia ilumina na trama

narrativa personagens e situaccedilotildees que pela sua condiccedilatildeo social ou anoacutedina indistinccedilatildeo

estariam agrave partida excluiacutedos de qualquer visibilidade daacute-se quando os vaacuterios indiviacuteduos das camadas populares incluindo pobres e marginais satildeo tidos em conta natildeo como um

pretexto moral para apelar agrave caridade e aos bons sentimentos mas antes como figuras

dotadas de complexidade subjectiva de pleno direito que habitam ruas e casas

inscrevendo nelas desejos paixotildees e atitudes consequentes

Constatar as suas existecircncias implica perceber o modo com actua ldquoa virtude do

realrdquo segundo Ranciegravere ndash e essa virtude consiste em aprender a desimaginar ldquoDeixar de imaginar eacute deixar de possuir o esquema que jaacute conhece o que se apresenta aos nossos

olhos o esquema que precede e ordena todo o encontrordquo (idem 45) Desperta naquele

que escreve a humildade de natildeo transformar os outros em objectos despojados da sua

obscuridade quer dizer que os signos desertam dos seus supostos referentes os

referentes desertam dos espartilhos habituais que os oprimem com uma sobrecodificaccedilatildeo Estes suacutebitos protagonistas preservam assim a sua proacutepria

ldquolinguagem secretardquo (idem 46) destituindo os signos de qualquer univocidade

Por outro lado e ainda decorrente dessa inscriccedilatildeo dos excluiacutedos na coexistecircncia

difusa e anoacutenima da vida Ranciegravere cita o uacuteltimo capiacutetulo do estudo seminal Mimesis

(1946) de Erich Auerbach dedicado ao ldquomomento qualquerrdquo na narrativa de Virginia

Woolf partindo do romance To the Lighthouse (1927) O ldquomomentordquo ou ldquoacontecimento qualquerrdquo desestabiliza a organizaccedilatildeo espaacutecio-temporal e a prevalecircncia

de um ponto de vista central seja o de uma personagem seja o do proacuteprio narrador Daacute-

se uma suacutebita irrupccedilatildeo de feixes na intriga ndash um vago olhar pela janela um mergulho

interior um telefonema evocado o relampejar de cores e sons ndash que desarranja quer as

hierarquias temaacuteticas de um texto dissolvendo as fronteiras entre intrigas principais e enredos secundaacuterios quer os posicionamentos ontoloacutegicos dos seres vivos ou inertes

humanos ou natildeo-humanos No fundo eacute arrancado a cada um desses seres e disposto em

luminosa evidecircncia o seu vitalismo intriacutenseco a sua forccedila de acaso o seu tumulto a sua

transpessoalidade numa espeacutecie de fraternidade panteiacutesta

Auerbach entrevia nesses cristais com algum optimismo gnosioloacutegico a

possibilidade de se refundar uma comunidade de homens e mulheres que partilharia uma mesma vocaccedilatildeo para a surpresa do instante ndash e isto sobretudo apoacutes a experiecircncia

das duas guerras travadas e dos infortuacutenios causados (note-se que o ensaiacutesta estava

exilado na Turquia tendo assim escapado agraves atrocidades nazis) pois ldquoquanto mais

diversos e mais simples apareccedilam os seres humanos como objetos de tais instantes

quaisquer tanto mais efetivamente deveraacute transluzir a sua comunidaderdquo (Auerbach

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2001 497)

5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri

Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-

achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida

comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On

the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto

(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio

de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se

escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar

especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser

O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance

aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma

memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos

seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na

montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi

destruiacuteda (idem 34)

Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo

benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-

limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele

segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de

esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se

perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas

Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo

deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin

com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os

livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta

passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos

ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo

O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk

Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf

do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de

Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a

escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a

dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha

matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que

sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute

isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um

bocado (Nunes 2017b 13-4)

Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as

visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua

unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das

coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo

potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo

que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados

os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala

assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando

os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas

uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora

coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase

se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida

autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos

princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos

ndash o seu cafeacute

a matildeo surgiu e desapareceu

A chaacutevena

Levo-a agrave boca

Os laacutebios tocam-lhe

Afasto-a

Volto a aproximaacute-la

Afasto-a de novo

Ateacute natildeo ter medo

Ateacute

(idem 2011 46)

Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica

que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta

Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da

imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se

aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo

desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos

ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo

ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a

magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma

legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria

do poder

as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do

sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua

integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo

pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se

torna monstruoso e doente

(ou natildeo vejo ou vejo a morte)

natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a

uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular

uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)

Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude

ontoloacutegica

Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu

incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais

iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

36 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

2001 497)

5 Uma drsquoAs peccedilas que faltam no vasto e inconclusivo cataacutelogo do poeta Henri

Lefebvre eacute uma citaccedilatildeo atribuiacuteda a Victor Serge que diz ldquoSomos todos sem-nome Inacabadosrdquo (Lefebvre 2019 81) Este curioso livro elenca uma seacuterie de perdidos-e-

achados da Histoacuteria mais perdidos do que achados na verdade oscilando entre a tiacutemida

comicidade perante um breve e anoacutedino apontamento (por exemplo uma parte de On

the Road de Kerouac que foi comida por um catildeo) e a secura brutal do facto exposto

(como quando enuncia sem mais ldquoAs gravidezes de Frida Khalordquo idem 25) Um livro que nunca chega a comeccedilar e que parece natildeo ter fim mas que atira o leitor para o meio

de uma descontinuidade irreparaacutevel filmes que natildeo se filmaram livros que natildeo se

escreveram bibliotecas reduzidas a cinzas cartas extraviadas fotografias por revelar

especulaccedilotildees vaacuterias Tudo o que natildeo se cumpriu tudo o que natildeo chegou sequer a ser

O ensaiacutesta e escritor de contos dinamarquecircs Villy Soslashrensen termina um primeiro romance

aos dezasseis anos e destroacutei-o aos dezassete William Burroughs natildeo guardava nenhuma

memoacuteria da redacccedilatildeo do Festim Nu No seu filme Scarlet Diva Asia Argento pede aos

seus actores para terem relaccedilotildees sexuais natildeo simuladas depois elimina as cenas na

montagem Rua Beautreillis em Paris a banheira em que morreu Jim Morrison foi

destruiacuteda (idem 34)

Este pequeno livro reverbera a pilha de destroccedilos com que o ldquoanjo da histoacuteriardquo

benjaminiano contempla o progresso ou a nua verdade das suas sobras e ruiacutenas o ldquolixo-

limpordquo da cataacutestrofe (Nunes 2020 82) E o que eacute o progresso afinal Aiacute estaacute ele

segundo Lefebvre numa fila indiana de disparates separados por pontos o progresso como a consequecircncia destrutiva da acccedilatildeo humana a destruiccedilatildeo como acto de

esquecimento que propicia o trabalho da memoacuteria (e o trabalho de luto pelo que se

perdeu) Um monte de pedras um lastro de perdas

Se a lista de Lefebvre eacute inacabaacutevel se o que a anima eacute a vontade intriacutenseca de natildeo

deixar que nada da Histoacuteria caia no esquecimento (como acontecia a Walter Benjamin

com o seu furor de coleccionista e o seu materialismo histoacuterico agrave la trapeiro) podemos aqui intercalar quase como um acidente de percurso ndash como se dispuseacutessemos todos os

livros de Rui Nunes sobre a mesa e abriacutessemos um numa paacutegina agrave sorte ndash esta

passagem de Baixo Contiacutenuo com a memoacuteria desavinda em instantacircneos avulsos

ldquocomo peccedilas desirmanadas de um mosaico romanordquo

O grande plano da cara de Monica Vitti nrsquoO Deserto Vermelho de Antonioni Dirk

Bogarde agrave volta de um James Fox adormecido em O Criado de Losey Hinauf Hinauf

do poema Ganimedes de Goethe o morcego a bater-me na cara nas ruiacutenas do Castelo de

Satildeo Filipe eu e meu avocirc sentados na praia vazia de Albarquel frente ao mar a aacutegua a

escorrer por uma talha de barro o velho na varanda a olhar o pessegueiro em flor e a

dizer lindo como um esposado a manhatilde do dia em que meu pai morreu a matildeo de minha

matildee a segurar a minha as lentes redondas dos oacuteculos do meacutedico sobras de tudo o que

sobra natildeo haacute histoacuterias mas traccedilos imagens relacircmpagos natildeo somos mais do que isso soacute

isso com o nosso corpo a ligar tudo isso cada bocado vai perdendo ateacute ter nascido um

bocado (Nunes 2017b 13-4)

Na mesma cadeia de acidentes irrompem as personagens de Rui Nunes ou as

visotildees imprecisas que as esquissam tornando impossiacutevel (e ateacute indesejaacutevel) a sua

unidade e representaccedilatildeo O ldquofasciacuteniordquo do olhar em Rui Nunes pela singularidade das

coisas contamina o seu fasciacutenio pelos humanos pela sua dissemelhanccedila irredutiacutevel pelo

potencial assombro que cada um desperta O ofiacutecio implacaacutevel de decompor a paisagem ndash por exemplo uma ida ao cafeacute e o empregado que o serve ndash desagua num monstruoso

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo

que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados

os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala

assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando

os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas

uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora

coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase

se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida

autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos

princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos

ndash o seu cafeacute

a matildeo surgiu e desapareceu

A chaacutevena

Levo-a agrave boca

Os laacutebios tocam-lhe

Afasto-a

Volto a aproximaacute-la

Afasto-a de novo

Ateacute natildeo ter medo

Ateacute

(idem 2011 46)

Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica

que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta

Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da

imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se

aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo

desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos

ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo

ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a

magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma

legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria

do poder

as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do

sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua

integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo

pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se

torna monstruoso e doente

(ou natildeo vejo ou vejo a morte)

natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a

uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular

uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)

Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude

ontoloacutegica

Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu

incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais

iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

37 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

caos de ldquoobjectos desgarradosrdquo

que estou aqui a fazer entre objectos desgarrados

os meus olhos soacute vecircem uma coisa apoacutes outra incapazes de abarcar toda a sala

assemelham-se a ocelos de uma simplicidade furiosa perseguem os objectos e quando

os apanham nunca mais os largam o rapaz por exemplo que anda por entre as mesas

uma rodilha na matildeo direita a limpar os tampos enquanto a esquerda flutua indecisa ora

coccedila a orelha ora pousa nas calccedilas ora esfrega uma borbulha no nariz matildeo pobre quase

se diria inuacutetil que atrapalha a outra matildeo que o rapaz conhece tatildeo mal com uma vida

autoacutenoma que ele natildeo controla eacute o meu fasciacutenio este ver a pequena histoacuteria dos gestos

princiacutepio e fim tatildeo proacuteximos

ndash o seu cafeacute

a matildeo surgiu e desapareceu

A chaacutevena

Levo-a agrave boca

Os laacutebios tocam-lhe

Afasto-a

Volto a aproximaacute-la

Afasto-a de novo

Ateacute natildeo ter medo

Ateacute

(idem 2011 46)

Este excerto assemelha-se a um movimento de zoom operado pelo olhar da nuvem de gestos do funcionaacuterio ateacute agrave chaacutevena sobre a mesa a circunstacircncia especiacutefica

que aqui nos eacute apresentada afunila vertiginosamente num devir-molecular O que resta

Para que ponto culmina ldquoAteacute natildeo ter medordquo lecirc-se Mas medo de quecirc Talvez medo da

imprevisibilidade iacutensita de todos os gestos esfumados medo da ameaccedila obscura que se

aninha em cada objecto levando o observador a afastar toda a ganga circundante a depurar a realidade objectiva ateacute chegar a esse resiacuteduo precaacuterio cuja nitidez de tatildeo

desprotegida que fica natildeo oferece qualquer margem para elucubraccedilotildees e equiacutevocos

ldquoAteacuterdquo termina ndash mas termina apenas o que eacute verbalmente alcanccedilaacutevel Aquele uacuteltimo

ponto final natildeo finaliza coisa alguma eacute o foco possiacutevel o zoom que deforma a

magnitude do pormenor a expansatildeo sem fim do que permaneceraacute inacabado Abre-se um silecircncio no coraccedilatildeo do texto Ao natildeo se fechar natildeo haacute um sentido inequiacutevoco uma

legenda que seja que se possa consagrar como verdade ou certeza ndash essa face totalitaacuteria

do poder

as pessoas satildeo pormenores o brilho de um liacutequido que se evapora o gosto salobro do

sangue na boca a mancha de um eczema no braccedilo Nunca vi uma pessoa na sua

integridade frente a mim Soacute paacutelpebras laacutebios crostas pecirclos mapas irregulares Vejo tatildeo

pouco que preciso de aproximar os olhos do que quero ver E nessa aproximaccedilatildeo tudo se

torna monstruoso e doente

(ou natildeo vejo ou vejo a morte)

natildeo te vejo E aproximo de ti os olhos Quando te comeccedilo a ver natildeo eacute a ti que vejo mas a

uma paisagem cancerosa que me dizes ser tua uma madeixa de cabelo um azul circular

uma ferida Muacuteltiplos fragmentos com uma voz pelos seus meandros (Nunes 1995 30)

Por isso nesta escrita tudo o que existe denuncia uma irremediaacutevel incompletude

ontoloacutegica

Satildeo esboccedilos as pessoas que encontramos Esboccedilos com a persistecircncia do que nasceu

incompleto Caminhamos rodeados de esboccedilos As palavras satildeo esboccedilos ateacute as mais

iacutentimas a que nunca chegaste (idem 2016 30)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

38 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

6 Para Manuel Frias Martins

[a] prioridade eacutetica da escrita de Rui Nunes construiacuteda predominantemente em torno de

uma esteacutetica de imagens manchadas de sangue menstrual urina fezes viacutesceras

grosserias insultos e violecircncias diversas faz do abjecto o lugar mais adequado de

comunicaccedilatildeo natildeo soacute com o mundo mas tambeacutem com Deus Eacute como se fosse necessaacuterio

descer aos infernos para encontrar o bem supremo a paz eterna o prazer infinito a

inteligecircncia sem rosto da iluminaccedilatildeo interior (Martins 2009 49)

A cataacutebase eacute um passeio normal pela cidade o horror eacute a experiecircncia democraacutetica

das nossas derivas fascizantes Daiacute os olhos de Rui Nunes verem um mundo que jaacute eacute o

de um poacutes-apocalipse qualquer Natildeo o anuacutencio de um fim de mundo ostensivamente

decorado por uma aparatosa pirotecnia escatoloacutegica (degelos erupccedilotildees asteroacuteides pandemias) mas a consumaccedilatildeo desse epiacutelogo num instante que se arrasta infinita e

indefinidamente um presente eternizado um tempo que nunca mais acaba a sua

sucessiva desagregaccedilatildeo ateacute ao desgaste de todas as palavras que o descrevam e de todas

as imagens que o ilustrem Um apocalipse cujo dia seguinte manteacutem os cafeacutes abertos a

mesma moeda a consciecircncia da morte entranhada ateacute aos ossos O mesmo silecircncio cavado no interior das palavras das conversas esvaziando-as de qualquer

encadeamento de sentido fala-se mas natildeo se sabe a quem nem porquecirc nem com que

palavras Fala-se ndash e falta-se falha-se Os dias que se sucedem ao fim do mundo

glosam na escrita de Rui Nunes este empobrecimento da palavra ldquoQuanto mais se

escreve mais faltardquo (Nunes 2018 55) Descer aos infernos eacute habitar essa falta eacute escrever a partir ldquodos escombros com os escombros de uma liacutenguardquo (idem 2012 52)

Como quem assiste agrave ldquopequena histoacuteria dos gestosrdquo no corpo de um rapaz agrave mesa do

cafeacute no dia a seguir ao fim do mundo

A prioridade eacutetica de Rui Nunes ilumina personagens sobrecodificadas pelo seu

estigma Figuras que estatildeo refeacutens da inescapaacutevel ostensividade do seu corpo que satildeo

apenas ou sobretudo o seu exterior a evidecircncia ameaccedilante do cheiro que exalam da sujidade na roupa da homossexualidade como afronta puacuteblica os demais signos da

exclusatildeo Porque ldquoqualquer pobreza segrega o mesmo Tudo eacute igual rente ao chatildeordquo

(idem 2016 31) A consistecircncia dessa segregaccedilatildeo de texto para texto de livro para

livro reitera a presenccedila de figuras como o homossexual (em Sauromaquia) o

toxicodependente (em Que sinos dobramhellip) ou a mulher romena sentada no chatildeo com

um copo de plaacutestico para as esmolas (em A Crisaacutelida)

Mais do que agentes a matildeos com as peripeacutecias de foro aristoteacutelico (e daiacute o termo

personagens ser problemaacutetico porque carrega toda uma tradiccedilatildeo do romance que Rui

Nunes desconstroacutei) tais figuras constituem ldquoesboccedilosrdquo sucessivos que condensam a

rejeiccedilatildeo de quaisquer princiacutepios humaniacutesticos (porquanto incarnam a decadecircncia da

humanidade a sua parte maldita) e como tal satildeo seres de suspensatildeo sem uma meta a percorrer rumo a um determinado fim (cf Ranciegravere op cit) Muito aqueacutem do papel de

viacutetimas de uma sociedade que os marginaliza viacutetimas agrave mercecirc da caridade alheia e da

reactivaccedilatildeo de discursos morais (o que as tornaria estereoacutetipos lassos) satildeo sobretudo

hiatos vivos a ordem dos encadeamentos sucessivos esboroa-se neles destruindo

quaisquer ligaccedilotildees de sentido Satildeo o improdutivo por excelecircncia o tempo estaciona nestas figuras de tal maneira que se torna uma experiecircncia de vida natildeo-viviacutevel

intoleraacutevel para quem os olha e prontamente os expele com esse olhar reduzindo-os a

um insulto

sem importacircncia suficiente somos os esconjurados [hellip] Fodamos mas calados discretos

Natildeo nos beijemos em nenhuma rua o mundo que havemos de salvar natildeo nos pertence

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

39 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Viver ningueacutem nos proiacutebe se o fizermos no interior das casas respeitando os vizinhos do

lugar Assento temos em qualquer revoluccedilatildeo se obliterarmos uma parte de noacutes Seres

truncados Ou tolerados apenas Seres proibidos de dizer Esquizofrenizados Seres que se

tornaratildeo uma ameaccedila puacuteblica Seres que desejam os nossos filhos que os conspurcam

capazes de todos os crimes Seres coitados nos momentos mais benignos Seres de antes

ladratildeo que maricas (Nunes 1983 105)

Nesta passagem de Sauromaquia os homossexuais satildeo o alvo predilecto de uma

natildeo-inscriccedilatildeo no real para que sem eles sob a perspectiva do opressor (a

heteronormatividade neste caso) a vida se assemelhe a uma continuidade fluida num

tempo sem memoacuteria sem negatividade (que eacute a marca da diferenccedila do que potencia o

encontro com o novo e o diferente o atrito mobilizador ou heuriacutestico sem o qual o humano se dissolve numa mesmidade opressiva) Mas eacute ao afundar-se no inominaacutevel da

dor que Rui Nunes procura de certa forma ldquosobreviver agrave dor no interior da proacutepria

dorrdquo segundo Eduardo Prado Coelho (1997 208) Pois

[hellip] na dor mais extrema aquilo que resta se alguma coisa resta eacute o corpo refuacutegio dos

sem-ningueacutem abrigados nele enrolados nele mesmo velho mesmo feio natildeo sempre soacute

agraves vezes mas a vida eacute soacute agraves vezes (Nunes 2018 53)

Rui Nunes natildeo torna o homossexual ou a mulher romena como figuras de

autoridade narrativa agrave volta das quais a acccedilatildeo se vai desnovelando numa seacuterie de

episoacutedios ou acidentes com ou sem catarse agrave vista Natildeo eacute a sua densidade psicoloacutegica

que eacute posta agrave prova nos enredamentos da intriga ou no virtuosismo retoacuterico do autor As personagens natildeo satildeo retratos ou metaacuteforas do que quer que seja mas incarnam o

expoente maacuteximo de uma dor inconvertiacutevel em palavras Uma dor uma solidatildeo um

terror atroz ndash modos de existecircncia que se manifestam num grito num choro desalmado

num bloqueio do corpo que emudecem a vocaccedilatildeo dialogante das palavras E eacute por isso

que a devastaccedilatildeo emocional de um drogado ou a anguacutestia de um narrador que engata um estranho na rua e depois o leva para casa ou que teme pela vida num WC puacuteblico

nunca satildeo o tema deste ou daquele livro nem procuram descrever experiecircncias de vida

que nos embaciem os olhos pela descompaixatildeo geral O excesso de uma dor natildeo se

compraz com descriccedilotildees ndash faacute-las explodir E a escrita comeccedila quando torna essa

explosatildeo na sua uacutenica modalidade de existecircncia eacute quando a dor natildeo conhece palavras que a digam servindo-se delas como um espelho diaacutefano que a literatura tem lugar

Surgem entatildeo os nomes proacuteprios os objectos dispostos numa sala as figuras

interpelaacuteveis que perguntam e respondem que se movem de um lugar para outro neste

ou naquele tempo Funcionam como efeitos de uma intimidade inacessiacutevel mas que

deixam lastro em forma de escrita A esse lastro agrave falta de melhor termo damos o nome

de literatura

cumpres a funccedilatildeo de ser personagem por isso te concedo a escassez de algumas linhas

natildeo te deixo desenvolver plenamente para que natildeo me esqueccedila de que eacutes fictiacutecia de que

sou capaz de interromper a tua maturaccedilatildeo adiar-te odiar-te espacejar mais o teu rosto

instalar-me na pupila tornada o sossego letal acompanhar a laacutegrima pensar-te o

sofrimento (Nunes 1986 49)

Hoje natildeo consigo recompor o teu rosto e se nitidamente te imagino natildeo eacutes bem tu mas

uma qualquer fotografia tua Hoje a tua fotografia apropriou-se de ti deve ser assim

que se comeccedila a morrer Quando agrave nossa volta um corpo desaparece nos sinais da sua

passagem (idem 2013 25)

7 Um corpo que desaparece nos sinais da sua passagem Poderaacute esta imagem ser

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

40 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

contiacutegua agrave daquele torso arcaico de Apolo (c 480-470 aC) que no princiacutepio do seacuteculo

numa ida ao Louvre despertara em Rilke uma visatildeo profusamente enigmaacutetica num desvio pela eacutecfrase Sem cabeccedila perdidos os braccedilos e as pernas o resto mutilado de

uma unidade perdida comunica ao poeta um dos mais conhecidos e insoacutelitos remates da

poesia moderna do Ocidente ldquoTens de mudar de vidardquo (Du muszligt dein Leben aumlndern)

Natildeo conhecemos a sua cabeccedila inusitada

onde luziam maduras as pupilas Mas inteiro

o seu torso ainda arde como o candeeiro

que daacute ao seu olhar a luz apenas degradada

persistecircncia e brilho Pois natildeo sendo assim natildeo

poderia a onda do peito cegar-te nem no leve

torcer das ancas haver o sorriso que corre

para aquele centro da procriaccedilatildeo

Assim natildeo sendo seria disforme e curta a pedra

caiacuteda da transparente travessa dos ombros

e natildeo cintilaria como pele de fera

e natildeo explodiria por todos os lados e pontos

como uma estrela pois natildeo haacute ali lugar

donde ele te natildeo veja Tens de mudar a tua vida

(Rilke apud Sloterdijk 2018 35)

Como assim mudar de vida De onde vem este apelo tatildeo suacutebito no imperativo

quando nada nos treze versos anteriores fazia prever este inesperado alccedilapatildeo no fim do

soneto Quem nos fala do sem-fundo numinoso de uma pedra esculpida Que nos

revela a sensibilidade de Rilke ao pocircr no artefacto na coisa inerte esse mutismo eloquente ndash e sobretudo exortativo pois nos obriga a repensar a nossa vida a duvidar

de que estamos no caminho certo

Segundo a leitura que Peter Sloterdijk fez do poema jaacute natildeo eacute o corpo total que

necessariamente inspira uma essecircncia de verdade uma autoridade excepcional

impondo-se aos olhos alheios como um modelo de beleza fiacutesica ndash tal como os corpos

musculados da Antiguidade esses arqueacutetipos da perfeiccedilatildeo que serviriam de incentivo a que os sujeitos rivalizassem com os deuses pelo poacutedio da gloacuteria eterna No lugar dessa

coesatildeo orgacircnica e triunfante caberia agora a um torso mostrar-se como a ruiacutena da

eternidade a eternidade desfeita nos sinais da sua passagem ldquoA intensidade [do

fragmento] bate a perfeiccedilatildeo normalizada [do corpo inteiramente visiacutevel]rdquo (idem 36)

Qual peccedila votada ao abandono pelo desbaste do tempo as suas partes ausentes jamais restituiacuteveis provocam a consciecircncia adensam-lhe a inquietude existencial somos o que

somos sobretudo porque somos o que nos falta Eacute essa falta que desperta a sensaccedilatildeo de

nos sentirmos acossados pela presenccedila rumorejante dos objectos que transmitem uma

ldquoenergia-mensagemrdquo (idem 34) As coisas olham-nos intui Rilke Haacute uma cabeccedila

ausente naquele torso que emite um olhar que vem do fundo do tempo E eacute mais veemente esse olhar que nos lanccedila do que a exiacutegua soberania vigilante que lhe

conseguimos devolver

Cem anos apoacutes o sinal que Rilke nos fez compreendemos sem duacutevida esta indicaccedilatildeo

melhor ainda do que os seus contemporacircneos pois a nossa capacidade de perceccedilatildeo mais

do que a de nenhuma outra geraccedilatildeo anterior agrave nossa estaacute anestesiada e foi saqueada pela

conversa fiada dos corpos sem maacutecula (idem 36)

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

41 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Tal vez nos possamos apropriar desta qualidade da coisa ainda para mais

desconjuntada para reler a escrita de Rui Nunes agrave luz dessa enigmaticidade do fragmento nos antiacutepodas dos ldquocorpos sem maacuteculardquo da contemporaneidade Que corpos

satildeo estes Incarnam o triunfo da vida nua satildeo os apoacutelogos da wellness que medem

analisam e quantificam os seus vaacuterios desempenhos sob pressatildeo de terem a sauacutede em

permanente performance Entregam-se sem reserva agrave imensa orgia digital cuja coacccedilatildeo

da transparecircncia ndash a vida exposta nos social media como prova de que aconteceu ndash os esvazia de qualquer risco sombra vacilaccedilatildeo ou atrito para que esplendam enquanto

puras superfiacutecies do consumo na sociedade capitalista e no inferno da felicidade

permanente Corpos de uma sauacutede totalitaacuteria ficam refeacutens de todas as comodidades

materiais e incapazes de imaginar um futuro sem elas estatildeo agrave mercecirc de uma ldquohipocondria digitalrdquo (Han 2020 26) ndash por isso recusam-se a tolerar a dor e o

envelhecimento evitam qualquer experiecircncia que possa ameaccedilar o cerco paliativo com

que se vedam ao inesperado agrave contingecircncia agrave absoluta alteridade do outro (que

constitui sempre uma ameaccedila em potecircncia estrangeiro inimigo terrorista fonte de

contaacutegiohellip) Satildeo corpos com medo de tudo ndash ateacute de si proacuteprios

Se tais corpos fossem plasmaacuteveis num determinado comportamento de escrita numa literatura a condizer esta teria que ser a denegaccedilatildeo manifesta daquele medo

seria entatildeo uma escrita cobarde uma escrita aliteratada que se entreteacutem a ldquocontar

histoacuteriasrdquo e desse modo respeitando sigilosamente a liacutengua ndash ao inveacutes de manter com a

liacutengua uma relaccedilatildeo de profunda desconfianccedila com vista a desarmar e desarticular o seu

poder Por isso

[hellip] o meu corpo sobrevive na desarmonia eacute um corpo contra o olhar de Deus contra

todas as ditaduras sem histoacuteria natildeo sou capaz de histoacuterias de me internar pelas suas ruas

previsiacuteveis e mortas por isso soacute consigo viver o presente e o seu terror cheio de

exaltaccedilatildeo e assim quero continuar [hellip] (Nunes 1999 114)

Com os seus esboccedilos de vidas esta escrita rompe com as sequecircncias

contemporacircneas de corpos lisos e homogeacuteneos ldquosem maacuteculardquo segundo Sloterdijk Mostra-nos a decadecircncia fiacutesica sem qualquer pudor ou preconceito natildeo porque se

queira rebelar contra a vergonha social que coage essa decadecircncia a esconder-se mas

porque eacute na decadecircncia que um corpo vivo se solidariza com a presenccedila da morte a

ruiacutena comum a todas as coisas Eacute por via da dor que eacute restituiacutedo ao corpo a sua

realidade por um efeito de choque E regressamos assim agrave decomposiccedilatildeo de um corpo pelos gestos que faz ao seu apodrecimento insaciaacutevel ateacute ser reduzido a um naco

insensato de carne como se lecirc em O Anjo Camponecircs

Abre a torneira Deixa que o jacto de aacutegua lhe bata nas matildeos se espalhe e lhe salpique o

pijama sente a forccedila da aacutegua a bater-lhe nas matildeos ensaboa-as gesto automaacutetico que o

deixa livre para quecirc o corpo eacute um animal que regressa insidioso este eacute o meu corpo diz

e sorri empobrece e regressa [hellip] as matildeos estremecem semiabertas no rebordo do

lavatoacuterio uma sobre a outra jaacute natildeo duas matildeos mas um bocado de carne um frio

disforme uma humidade disforme natildeo haacute dedos nem palmas nem pele a separar uma

matildeo da outra haacute aquele bocado de carne no rebordo do lavatoacuterio [hellip] (idem 2020 48)

Um pedaccedilo de carne um torso escultoacuterico De novo o bocado o despojo a ruiacutena

Pelos interstiacutecios desta escrita reacende-se o iacutempeto obscuro de uma voz imaterial que

confere agraves coisas residuais aos gestos mais comuns uma intensa carga dramaacutetica Note-

se a encenaccedilatildeo criacutestica do dictum ldquoeste eacute o meu corpordquo na passagem acima transcrita

sem o milagre da transubstanciaccedilatildeo este corpo sabe-se reconduzido tatildeo-soacute ao milagre precaacuterio da imanecircncia O corpo eacute uma vanitas em movimento contiacutenuo ateacute agrave sua

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

42 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

erosatildeo Pelo caminho como fogos-faacutetuos extingue-se a iacutenfima solidez antropoloacutegica

que a identidade o eu ou o self poderiam salvaguardar como derradeira imagem do humano agora que essa imagem se nulifica na ldquoviolecircncia banal de um bocado de carnerdquo

ndash a carne que jaacute em Suiacutete e Fuacuteria livro anterior a O Anjo Camponecircs eacute apresentada

como o elo irredutiacutevel que une qualquer ldquoanoacutenimo do que foi vivordquo (Nunes 2018 57)

Vale a pena a citaccedilatildeo inteira pelo que nela se afirma como uma extraordinaacuteria e natildeo

menos terriacutevel legenda verbal do que satildeo os corpos escorchados dos bois maneiristas [fig 3] ou as variaccedilotildees da pele esfolada e da carne viva de Maacutersias por exemplo na

pintura de Francis Bacon e Egon Schiele (que natildeo por acaso figuram nas capas de Que

sinos dobram por aqueles que morrem como gado e Catildees respectivamente) [fig 1 e

fig 2] ou ainda cumprindo-se o movimento de zoom deste olhar-escrita ateacute ao horror absurdo do pormenor ampliado a brutalidade evidente da carne nos trabalhos de Anish

Kapoor crus manifestos de que o humano uacuteltimo reduto de um limiar metafiacutesico eacute ele

proacuteprio um limiar extinto ou esvaziado de qualquer transcendecircncia [fig 4]

[hellip] um gato um boi um catildeo uma osga um pombo um homem Natildeo haacute dissonacircncias

neste bocado de carne os animais todos rodeiam-no para serem baptizados Ou para se

certificarem do nome que hatildeo-de perder do nome que hatildeo-de ganhar A morte eacute um

crisma Um baptismo eu te dou o nome de carne E dela se faraacute a fome Ou o inequiacutevoco

de uma arma A metaacutefora eacute a grande felicidade dos que tecircm nome proacuteprio Dos que

podem ser chamados Mas carne Estaacute no fim da escala abaixo de rio por exemplo rio

qualquer que seja tem nascente foz margens Mas carne Eacute simplesmente um bocado O

informe Pode dizer-se ensanguentada Poreacutem esse sangue natildeo pertence agrave sua definiccedilatildeo

haacute uma carne sem sangue mas natildeo um rio sem nascente A carne eacute sempre um bocado E

estaacute tudo dito Ningueacutem perguntaraacute a quem a quecirc pertenceu esse bocado Eacute soacute uma coisa

morta Na verdade natildeo haacute carne viva A carne viva eacute sempre em carne-viva uma ferida

uma chaga nas pernas de uma crianccedila no cachaccedilo de um boi nas matildeos de um miseraacutevel

nunca na matildeo do senhor doutor do senhor engenheiro do senhor ministro de vossa

excelecircncia do senhor presidente do meu caro amigo uma ferida em carne-viva eis o

ldquooutrordquo que nojo (ibidem)

Fig 1 Fig 2

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

43 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

ldquoeste eacute o meu corpo diz e sorrirdquo (Nunes op cit 48) Face ao exposto jaacute natildeo lemos esta citaccedilatildeo senatildeo sob o crivo breve de uma saacutetira Espeacutecie de desleixo de

abandono de si mesmo ao ldquomomento qualquerrdquo (cf Ranciegravere Auerbach) que se

delineia oscilante entre o eu o corpo a aacutegua do lavatoacuterio a circunstacircncia de estar ali

sozinho Porque dizer ldquocorpordquo eacute desde logo uma cedecircncia agrave ironia uma envolvecircncia na

pequena extensatildeo da frase ndash ldquoeste eacute o meu corpordquo com sujeito predicado e predicativo do sujeito ndash que desloca por instantes atenuando-a a verdade insensata da ldquocarnerdquo que

nada tem a exprimir

Mas em contracorrente mesmo o que nada tem a exprimir natildeo escapa agrave potecircncia

de ser expressivo de ldquoexistir como coisa-expressatildeordquo (Gil 2020 21) Porque em uacuteltima

instacircncia ateacute a carne eacute nomeaacutevel enquanto houver quem a nomeie quem a tome como

signo mesmo da mais incongruente e intoleraacutevel aporia E ateacute o incomunicaacutevel dessas e doutras incongruecircncias perfaz o esboccedilo de uma partilha desenha o princiacutepio de um

diaacutelogo mesmo aquele que um sujeito estabelece consigo mesmo num silecircncio iacutentimo

cheio de vozes Um diaacutelogo ou um desdobramento que potencia como aqui um texto

impresso Pois a recusa do simboacutelico eacute simboacutelica O nojo pela literatura natildeo se cansa de

criar literatura Quanto mais se escreve mais falta E ainda aqui estamos a ler a falhar com os olhos turvos de quem vendo mal depreende da obscuridade a clara evidecircncia

do enigma do que eacute inacabaacutevel As evidecircncias velam um segredo como um saber

impliacutecito no natildeo-saber um oraacuteculo cuja decifraccedilatildeo consiste em aceitar o que nele resiste

como indecifraacutevel Afinal o que eacute um bocado de carne ou um torso escultoacuterico

amputado senatildeo tambeacutem a consagraccedilatildeo de tudo aquilo que lhes falta de tudo aquilo que natildeo vemos ou conhecemos como a margem do imprevisiacutevel que nos compete

ainda e sempre repensar reabrir imaginar Natildeo eacute isso que faz a escrita pegar nessa

carne tomar aquele torso e usaacute-los como uma pedagogia do incerto do ausente da

sombra do imprevisiacutevel Partir deles para uma nova margem Demonstrar que a carne

e a pedra natildeo esgotaram ainda o seu potencial que o seu silecircncio ainda natildeo disse tudo

Eis uma prova de fogo para aqueles que sem um Deus de reserva ou o refuacutegio da

Fig 3 ndash Boi Abatido (1655) de

Rembrandt

Fig 4 ndash Internal Object in Three Parts

(2013-2015) de Anish Kapoor

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

44 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

crenccedila natildeo possuem mais do que o proacuteprio corpo e um ameno sorriso para receber os

louros da derrota Mas eacute exactamente aiacute quando tudo eacute dado como perdido que se faz

ouvir aquela voz secreta dizendo tens de mudar de vida

9 Quando a propoacutesito de Os Aneacuteis de Saturno de Sebald Jacques Ranciegravere

define como ldquoinclassificaacutevelrdquo o tipo de livro ldquoque reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo

(Ranciegravere 2019 104) o que este filoacutesofo procura nessa inclassificabilidade excede em

termos intensivos o efeito produzido pelas muacuteltiplas digressotildees na narrativa pelo

estilhaccedilamento das vozes tempos e lugares ou pelo hibridismo dos geacuteneros literaacuterios A escrita de Rui Nunes cumpre todos estes requisitos ndash o que ironicamente pela via da

subversatildeo acabaria por tornar os seus livros se natildeo facilmente classificaacuteveis pelo

menos obliquamente reconheciacuteveis pela repeticcedilatildeo dessa diferenccedila Mas natildeo eacute esse o

ponto essencial aqui O ponto eacute o termo alargado de ldquoficccedilatildeordquo que Rui Nunes muito assiduamente exclui do seu universo semacircntico Ficccedilatildeo belas histoacuterias devaneios

imaginativos que nos distraem das agruras do real ndash jaacute vimos que natildeo eacute aiacute que se situam

os ldquobocadosrdquo os ldquoesboccedilosrdquo ou as ldquomanchasrdquo de A Crisaacutelida ou O Anjo Camponecircs

Mas o inclassificaacutevel neste autor eacute natildeo obstante feito de palavras como toda a

literatura e as palavras ocupam espaccedilos na paacutegina e segregam imagens relaccedilotildees de

sentido mesmo que no proacuteprio corpo do texto essas relaccedilotildees se desfaccedilam e ldquoabra[m] no desvio inesperado um outro (o primitivo) sentidordquo (Nunes 2017a 39) Desfeitas as

hierarquias entre o que merece ou natildeo ser escrito para se tornar literatura ultrapassadas

as queziacutelias entre o que eacute sublime e o que eacute vulgar ou os juiacutezos de valor que

determinam o privileacutegio de haver leitores distintos dos restantes por saberem

descodificar determinados signos mais exigentes escrever ldquoum livro que reconduz a ficccedilatildeo ao seu coraccedilatildeordquo eacute pensar que o coraccedilatildeo desse regime inclassificaacutevel pulsa no

exerciacutecio de quem se serve da liacutengua para ldquocriar vida a partir do que estaacute morto criar o

novo com o usado arte com os materiais da induacutestria histoacuteria a partir de

acontecimentos insignificantes e traccedilos quase apagados em suma contradizer e resgatar

o trabalho da destruiccedilatildeordquo (Ranciegravere op cit 108) O ldquoacontecimento qualquerrdquo de Virginia Woolf a Rui Nunes aiacute estaacute para o expor uma convulsatildeo do real ndash acidentes

oscilaccedilotildees da memoacuteria esboccedilos desvios ndash estaacute livre de quaisquer encadeamentos que a

racionalizem E a racionalidade estaacute ao serviccedilo do que explica o trabalho da destruiccedilatildeo

o funcionamento do progresso como um horizonte de sentido Por isso ldquocontradizer e

resgatar o trabalho da destruiccedilatildeordquo ndash esse ofiacutecio que subordina quando natildeo os aniquila realmente ciganos gays pobres e os demais vencidos da Histoacuteria ndash eacute tornar

incontestaacutevel a legitimidade do que existe ldquoa fim de lsquosalvar tudo o que podersquo da

experiecircncia comum e alargar o campo fraterno da coexistecircncia dos lugares e dos

temposrdquo (idem 111)

Regressemos por fim agrave cegueira funcional de Rui Nunes Aos seus olhos que natildeo

vecircem senatildeo o pormenor a simplicidade brutal de uma pessoa exposta nas suas pequeniacutessimas partes A esses olhos que desde cedo por verem o mundo assim

aprenderam a renunciar a qualquer verdade inefaacutevel Bocado a bocado resto a resto ldquoA

pessoa e o poetardquo como disse Rui Caeiro Se um homem com este tipo de vista haveria

mais tarde de se pocircr a escrever a fidelidade integral agrave sua doenccedila conduziria a esta

rarefacccedilatildeo da palavra A um texto doente ndash um texto aceso que estaacute consciente da proacutepria textualidade enquanto ferida da linguagem enquanto mancha inexpugnaacutevel do

pensamento da corrupccedilatildeo inerente a toda a vontade de escrever

Escrever natildeo elimina o sofrimento aprofunda-o

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

45 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Escrever natildeo ilumina escurece

Cria uma sombra que procura o seu duplo O corpo Um corpo que natildeo haacute

Toda a escrita eacute uma palavra destruiacuteda

(Nunes 2014 90)

Um texto doente imperfeito persegue uma quase total ilegibilidade um corpo que natildeo haacute que arrasta consigo palavras destruiacutedas Um texto cuja fala se reconhece

como falha e como falta Da sintaxe desconexa ao leacutexico dissoluto mostra-se na sua

impureza constitutiva e constituinte servindo-se da linguagem como a teacutecnica que ela eacute

um instrumento que faz acontecer alguma coisa Mudar o mundo Restaurar a

esperanccedila Um texto assim ndash que natildeo ilumina mas escurece ndash exige desde logo uma humildade reconhecer que natildeo se muda o mundo com literatura Quando muito muda-

se a forma e o conteuacutedo da mudanccedila E a forma e o conteuacutedo satildeo mediados pelas

palavras gestos e imagens que nos permitem criar relaccedilotildees de sentido ritmos e

intensidades deslocamentos e metamorfoses Mudar a proacutepria mudanccedila seria assim

por exemplo como fazer literatura arriscar outro modo de esclarecimento aumentar a

potecircncia de ver repensar o senso comum mudar de vida

Referecircncias bibliograacuteficas

Alferi Pierre Procurar uma frase Trad Maria Teresa Cruz Lisboa Vega 1999

Auerbach Erich Mimesis A representaccedilatildeo da realidade na literatura ocidental Trad

Equipa Editora Perspectiva 4ordf ed Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2001

Coelho Eduardo Prado O Caacutelculo das Sombras Porto Asa 1997

Coelho Eduardo Prado A Escala do Olhar Lisboa Texto Editora 2003

Derrida Jacques Memoacuterias de Cego O auto-retrato e outras ruiacutenas Trad Fernanda

Bernardo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2010

ldquoEntrevista a Rui Caeirordquo Jogos Florais 17 de Abril de 2018 disponiacutevel em

httpswwwjogosfloraiscomentrevista20189entrevista-a-rui-caeiro (uacuteltimo acesso 10 de Janeiro de 2020)

Gil Joseacute O Tempo Indomado Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Han Byung-Chul A Sociedade Paliativa ndash A dor nos nossos dias Trad Ana Falcatildeo

Bastos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Lefebvre Henri As peccedilas que faltam Trad Ricardo Nicolau Lisboa BCF 2019

Martins Manuel Frias ldquoA raiva metoacutedica da escrita de Rui Nunesrdquo in AAVV Rui

Nunes ndash Antologia Criacutetica e Pessoal Lisboa Roma Editora 2009

Nunes Rui ldquoQuem da paacutetria sai a si mesmo escapardquo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1983

Nunes Rui Sauromaquia 2ordf ed Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1986

Nunes Rui Aacutelbum de Retratos Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1993

Nunes Rui Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado Lisboa Reloacutegio

DrsquoAacutegua 1995

Nunes Rui Catildees Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

Nunes Rui O Mensageiro Diferido Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2005

Nunes Rui A Matildeo do Oleiro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2011

Nunes Rui Barro Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2012

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020

Rui Nunes ou a pequena histoacuteria dos gestos Diogo Andreacute BARBOSA MARTINS

46 ~ Microtextualidades Revista Internacional de microrrelato y minificcioacuten N 9 pp 31-46 ISSN 2530-8297

Nunes Rui Armadilha Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2013

Nunes Rui Nocturno Europeu Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2014

Nunes Rui A Crisaacutelida Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2016

Nunes Rui A margem de um livro Maia Cosmorama 2017a

Nunes Rui Baixo Contiacutenuo Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2017b

Nunes Rui Suiacutete e Fuacuteria Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2018

Nunes Rui O Anjo Camponecircs Lisboa Reloacutegio DrsquoAacutegua 2020