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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SANTOS, FRS. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 584 p. ISBN 978-85-7983-026-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Romantismo no Brasil e grotesco Fabiano Rodrigo da Silva Santos

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SANTOS, FRS. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 584 p. ISBN 978-85-7983-026-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Romantismo no Brasil e grotesco

Fabiano Rodrigo da Silva Santos

5 Romantismo no Brasil e grotesco

Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar­se no misticismo e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.Álvares de Azevedo, Lira dos vinte anos

Uma categoria estética na contramão do projeto nacional

O advento do romantismo pode ser visto como um fenômeno determinante para a constituição da vida cultural do Brasil, sobre‑tudo no âmbito da literatura. Estudos canônicos chegam mesmo a professar que é a partir da incorporação de elementos românticos às letras nacionais que se solidificam as nuanças de identidade própria da literatura brasileira, estando a gênese de sua autonomia amparada em preceitos românticos.1

1 Antonio Candido alega, em Formação da literatura brasileira, que a ênfase no ele‑mento particular da cultura realizada pelo romantismo serve à chancela da auto‑nomia da literatura brasileira na medida em que se opõe ao universalismo da litera‑tura neoclássica, associada ao período colonial, evidenciando a cor local na produção artística. Candido ainda lembra que o advento do romantismo no Brasil transforma em programa todo o ímpeto nacionalista já observado em diversos poetas árcades e em pensadores simpáticos à Independência, de maneira a buscar realizar no âmbito

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Com efeito, não é por coincidência que a introdução do romantis‑mo no Brasil se dá em um dos períodos mais conturbados da história nacional, em que se fazia urgente a criação de uma identidade unifi‑cadora do povo brasileiro: no período regencial (1831‑41). Nele, a recém‑independente nação brasileira se deparava com vários focos de rebeliões promovidas por amotinados descontentes que ameaça‑vam fazer ruir a unidade do jovem império tropical, e é aí que surge o primeiro programa estético assumidamente romântico do Brasil: a obra de Gonçalves de Magalhães, Suspiros poéticos e saudades, que, ao lado da revista Niterói, é publicada em Paris, no ano de 1836.

Essas duas obras, insufladas pelo nacionalismo que tomara for‑ma já entre as elites brasileiras desde a Independência, parecem surgir providencialmente em uma época que necessitava de um ponto de referência para a constituição da identidade do país. As‑sim, o lirismo retórico da primeira manifestação de nosso roman‑tismo é flagrantemente movido pela intenção de acender na sensi‑bilidade do leitor a centelha do amor pátrio, útil à preservação do status quo, o que tem como resultado o estabelecimento de uma sin‑tonia entre a novidade romântica e os interesses dos setores domi‑nantes da sociedade brasileira.

O próprio comedimento face às possibilidades rebeldes do ro‑mantismo (atestadas anteriormente por várias manifestações des‑se movimento na arte europeia) presente nos versos de Gonçalves de Magalhães conflui para que se considerem seus Suspiros poé­ticos e saudades como um libelo da manutenção da ordem. Corro‑boram para essa interpretação trechos do prefácio ao livro, como o seguinte:

O fim deste livro, ao menos aquele a que nos propusemos, que ig‑noramos se atingimos, é o de elevar a Poesia à sublime fonte donde ela emana, como o eflúvio d’água, que da rocha se precipita, e ao seu cume remonta, ou como a reflexão da luz ao corpo luminoso; vingar ao mes‑

das letras um fenômeno correspondente ao que representou a independência do Bra‑sil nas esferas social e política (Candido, 1969, p.9‑21).

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mo tempo a Poesia das profanações do vulgo, indicando apenas no Brasil uma nova estrada aos futuros engenhos.

A poesia, este aroma d’alma, deve de contínuo subir ao Senhor; som acorde da inteligência santificar as virtudes e amaldiçoar os vícios. O poeta, empunhando a lira da razão, cumpre‑lhe vibrar as cordas eternas do Santo, do Justo e do Belo.

Ora, tal não tem sido o fim de maior parte dos nossos poetas; e o mesmo Caldas, o primeiro dos nossos líricos, tão cheio de saber e que pudera ter sido o reformador da nossa poesia, nos seus primores d’arte, nem sempre se apoderou desta ideia; compõe‑se uma grande parte de suas obras de traduções; e quando ele é original causa menos dó que cantasse o homem selvagem de preferência ao homem civilizado, como se aquele a este superasse, como se a civilização não fosse obra de Deus, a que era o homem chamado pela força da inteligência com que a Pro‑vidência dos demais seres o distinguira!

Outros apenas curaram de falar aos sentidos; outros em quebrar todas as leis da decência! [...] O poeta sem religião e sem moral é como veneno derramado na fonte, onde morrem quantos procuram aí apla‑car a sede.

Ora, nossa religião, nossa moral é aquela que nos ensinou o Filho de Deus, aquela que civilizou o mundo moderno, aquela que ilumina a Europa e a América: e só este bálsamo sagrado devem verter os cânti‑cos dos poetas brasileiros. [...] Este livro é uma tentativa, é um ensaio; se ele merece o público acolhimento, cobraremos ânimo, e continua‑remos a publicar outros que já temos feito, e aqueles que fazer podere‑mos com o tempo. É um novo tributo que pagamos à pátria, enquanto não lhe oferecemos coisa de maior valia [...]. Tu vais, ó livro, ao meio do turbilhão em que se debate nossa pátria; onde a trombeta da medio‑cridade abala todos os ossos, e desperta as ambições; onde tudo está gelado, exceto o egoísmo [...]. Vai, nós te enviamos cheios de amor pela Pátria, de entusiasmo por tudo o que é grande e de esperanças em Deus e no futuro.

Adeus!

(Magalhães, 1998, p.42‑6)

Embora professe o novo e reclame ao seu livro um papel de obra de gênio, concebendo‑o como farol de uma poesia futura e reden‑

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tora, em vários momentos, Gonçalves de Magalhães toma o parti‑do da moral instituída e apela à ordem como fontes de uma poesia superior e útil à sociedade. O primado da religião cristã, comum a sistemas de pensamento do romantismo europeu, a exemplo de Chateaubriand, Victor Hugo e Friedrich Schlegel, em Magalhães, casa‑se com o conservadorismo. Ele apresenta‑se menos como fon‑te de novos motivos a serviço da reformulação estética e do pensa‑mento moderno (como em Schlegel e Chateaubriand) e mais como uma retomada do referente moral perdido em épocas de caos social e político, como a pela qual o Brasil passava na ocasião da publi‑cação de Suspiros poéticos e saudades.

O gênio romântico de Magalhães demonstra inclinar‑se mais precisamente para uma atitude de contribuição ao bem nacional, demandado pela elite, apoiando‑se nas estruturas de poder já co‑nhecidas, como a moral e o dever para com a pátria. Apenas indi‑reta ou alegoricamente ele parece ocupar‑se da função de guia da humanidade, atributo ligado à concepção usual de gênio profes‑sada pelo romantismo. A evocação do novo e do progresso das ar‑tes pode sugerir que o texto de Magalhães seja dedicado a uma re‑volução nas letras. Com efeito, não se pode ignorar o influxo de renovação do qual Suspiros poéticos e saudades soube apropriar‑se, instaurando oficialmente o romantismo no Brasil. Todavia, essa revolução que Gonçalves de Magalhães representa opõe‑se àque‑las outras das quais sua obra foi contemporânea que, no âmbito político e social, ameaçavam a unidade do poder brasileiro.

A associação entre estética romântica e o conceito de revolução é uma praxe da crítica literária confirmada não apenas pelos mani‑festos apaixonados do romantismo, como também pela intervenção de muitos de seus autores nos eventos turbulentos da história mais recente. Isso leva a crer que o papel desempenhado pelo romantis‑mo inicial na vida social brasileira – como se entrevê em Gonçalves de Magalhães – parece representar uma atenuação da tendência co‑mum de ímpeto renovador romântico. No entanto, não é exclusivi‑dade do Brasil a adesão dos ideais românticos ao conservadorismo político, haja vista o exemplo fornecido pela França, país onde os

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românticos abraçaram as causas monárquicas2 às quais os então chamados clássicos tendiam a se opor. Ora, tratando‑se de um fe‑nômeno que apresentou vasta amplitude, nutrindo‑se dos variados contextos culturais nos quais foi inserido, parece natural que o ro‑mantismo, visto globalmente, apresente faces diferentes entre si e mesmo discordantes. De fato, o estudo de Michael Löwy e Robert Sayer sobre o pensamento romântico, a fim perscrutar os pontos de semelhança que unem as várias correntes do romantismo, atenta às muitas posturas diferentes que o movimento assumiu frente à polí‑tica. Os autores de Revolta e melancolia distribuem em seis blocos diferentes as posturas político‑sociais do romantismo, dentre as quais há correntes mais conservadoras, como os romantismos resti‑tucionista, conservador, fascista e resignado, e outras mais revolu‑cionárias, como os romantismos reformador e revolucionário e/ou utópico (Löwy e Sayer, 1995, p.92). O romantismo francês dos pri‑meiros anos, segundo a nomenclatura de Löwy e Sayer, encontraria correspondência na tendência restitucionista,3 a qual seria motiva‑da pela nostalgia por um período anterior ao capitalismo, definindo‑‑se em oposição aos tempos modernos (Löwy e Sayer, 1995, p.94).

A geração de Chateaubriand e Mme. de Staël encontrou “o pa‑raíso perdido” nos tempos medievais. Daí seu vínculo com o regi‑me monárquico – tomado como resquício dessa antiga ordem em vias de esquecimento – que serve de justificativa ao aparente rea‑

2 É conhecida a intimidade que Chateaubriand e Mme. de Staël, nomes determinantes para a introdução do romantismo na França, nutriam com os estratos aristocráticos (e, portanto, conservadores) da sociedade francesa, algo que deixou marcas em seus programas estéticos. Mesmo que defendidos de forma apaixonada e vigorosamente, os mesmos elementos do romantismo que na pena de certos autores ingleses e ale‑mães apresentavam cores radicais e iconoclastas, surgem mais brandamente em Chateaubriand e Staël, podendo O gênio do cristianismo, de Chateaubriand servir de exemplo.

3 Segundo os autores, os qualificativos “passadista” ou “retrógrado”, comumente aplicados a esse fenômeno romântico, podem dar margem a interpretações pejora‑tivas, motivo pelo qual Löwy e Sayer preferem o termo “restitucionista”, cunhado originalmente pelo sociólogo das religiões Jean Seguy, para definir uma das correntes mais reincidentes do romantismo, observada desde o medievalismo de Walter Scott até a poesia engajada de Victor Hugo (Löwy e Sayer, 1995, p.94).

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cionarismo presente no movimento romântico francês inicial. Se‑gundo Löwy e Sayer, a escolha dos valores morais da Idade Média como protótipo de sociedade foi uma postura dominante na ideo‑logia dos românticos de tipo restitucionista:

Como o passado é o objeto da nostalgia dos restitucionistas, ele identifica‑se, por vezes, com uma sociedade agrária tradicional – entre os eslavófilos russos ou, no período entre as duas guerras, para os “agrarians” da escola literária do Sul dos Estados Unidos –, mas quase sempre o restitucionismo está relacionado com a Idade Média. Essa focalização do ideal no passado medieval, sobretudo em sua forma feu‑dal, explica‑se verossimilmente por sua relativa proximidade no tem‑po (comparado às sociedades antigas, pré‑históricas, etc.), e por sua diferença radical em relação ao que é rejeitado do presente: esse pas‑sado está bastante próximo para que seja possível encarar sua restau‑ração, mas ao mesmo tempo totalmente oposto ao espírito e estruturas da vida moderna. (Löwy e Sayer, 1995, p. 94)

Na concepção de Löwy e Sayer, como foi dito no terceiro capí‑tulo deste livro, o movimento romântico traria em seu cerne o des‑contentamento com os rumos da vida moderna, ditada pelos costu‑mes burgueses e pela industrialização. Por conta disso, seria um fenômeno moderno na contracorrente da modernidade, sua força motriz residiria na revolta e o peso de sua frustração encontraria materialização na melancolia – dois conceitos importantes para o entendimento da visão de mundo romântica, segundo a tese dos autores (Löwy e Sayer, 1995). Sob essa perspectiva, a nostalgia pelo passado e mesmo o apego a instituições tradicionais, demonstrados pelos românticos franceses, podem ser vistos como busca de uma alternativa aos rumos dos tempos modernos, guiados pelas ambi‑ções burguesas alentadas pela revolução de 1789. Desse modo, se‑ria um pouco precipitado definir a primeira geração romântica francesa como inteiramente conservadora e reacionária; afinal, to‑mando o partido dos espólios que o passado feudal deixou na Euro‑pa, esses românticos acabaram por puxar o freio da locomotiva do

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progresso, indo na contramão de seu tempo, mesmo que não te‑nham deixado de preservar o status quo ao se aliarem à aristocracia e à Igreja, instituições representantes do passado que ainda desfru‑tavam de considerável poder. Podemos dizer, com base nessas evi‑dências, que, se os românticos da geração de Chateaubriand não são conservadores, sua posição frente aos ideais de revolução co‑muns ao romantismo é ao menos ambígua.

No caso brasileiro, a posição político‑social do romantismo apresenta algumas diferenças se comparada à dos românticos fran‑ceses. Aqui o conservadorismo parece ter sido ainda mais acen‑tuado. Os ideais da estética foram adaptados precisamente aos in‑teresses da elite, o que deixou reflexos inclusive nas características estéticas dos primeiros românticos. Mesmo a projeção do ideal de sociedade em uma época remota – que na Europa assumiu a face da nostalgia –, no Brasil, recebe contornos um pouco diferentes. Afinal, um país de recente passado colonial não costuma possuir subsídios para rememorar um estágio civilizatório superior. Em consequência disso, o ideal dos românticos brasileiros reside nas promessas guardadas à nação em formação e no exotismo paradi‑síaco da natureza local, assim como na figura mítica do nativo americano, localizado em uma Idade de Ouro, mais viva na ima‑ginação que nos dados fornecidos pelos crescentes estudos etno‑gráficos empreendidos pelos intelectuais brasileiros desde a Inde‑pendência. Ainda que o interesse pela figura do índio já esteja presente em Chateaubriand (com Atala, em 1801, e Les Natchez, 1826), aqui no Brasil a tendência ganha matizes diversos.

Mesmo os rumos da ordem capitalista não eram objeto de críti‑ca no Brasil, pelo contrário. Na pena de nossos primeiros român‑ticos, com frequência, existe a intenção de filiar o país aos ideais de mudança e liberdade da revolução burguesa, mesmo que na reali‑dade o Brasil constituísse um país regido por uma oligarquia escra‑vocrata, flagrantemente diversa dos postulados da Revolução Francesa, principalmente os de igualdade e liberdade. A constata‑ção desse quadro não passou despercebida aos românticos nacio‑nais. Em um artigo de divulgação obscura, escrito entre 1845 e

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1846 e publicado na revista Guanabara, em 1850, Gonçalves Dias salienta a contradição existente em um país que aspira ao progresso e à consciência da identidade nacional sem, entretanto, deixar de sustentar‑se pelo o trabalho escravo. Nesse artigo, intitulado “Me‑ditações“, há um eu lírico que se entrega a um colóquio com um misterioso ancião, algo entre o profeta e o divino, que se refere ao Brasil como uma nação de grandes auspícios e detentora de um fu‑turo glorioso, comprometido, por sua vez, pela escravidão. Texto dotado de uma análise social cuja maturidade e ousadia causa es‑panto tendo em vista a pouca liberdade crítica disponível na época, “Meditações” refere‑se a todo tempo à escravidão não apenas como uma sevícia desumana e bárbara, mas também como fonte do atra‑so nacional em todas as esferas. A certa altura do texto assim se ex‑pressa o velho sábio:

E sabes tu, perguntou‑me o ancião, por que as vossas ruas são es‑treitas, tortuosas e mal calçadas, e porque as vossas casas são baixas feias e sem elegancia? Sabes porque vossos palácios sem pompa e sem grandes, e os vossos templos sem dignidade e sem religião?

Sabes porque é miserável a vossa marinha, e porque se ri o extran‑geiro que aporta no Brasil?

É porque o bello o grande é filho do pensamento, e o pensamento do bello e do grande é incompatível com o sentir do escravo.

E o escravo é o pão de que vos alimentais, as tellas que vestis, o vosso pensamento cotidiano, e o vosso braço incansável. [...]

O escravo será negligente e inerte, porque não lhe aproveitará o suor do seu rosto, porque a sua obra não será a recompensa do seu tra‑balho, porque a sua intelligencia é limitada, e porque elle não tem o amor da gloria. (Dias, 1850, p.14. Foi preservada a grafia original.)

Para Gonçalves Dias, o Brasil só poderia ocupar o lugar a ele reservado de herdeiro e renovador de todas as conquistas da civili‑zação ocidental que, segundo suas “Meditações”, já estariam em vias de exaurir‑se na velha Europa, quando fosse expurgada a es‑cravidão. No entender do poeta, o escravo não seria capaz de cum‑prir tal missão por não possuir amor à pátria, já que os frutos de

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suas realizações não trazem qualquer benefício a sua classe. Tal for‑mulação é nascida do espírito libertário localizado no centro do ro‑mantismo. Com efeito, Roberto Schwarz reconhece quão impor‑tuna foi a escravidão para a mentalidade liberal que se estabelecia no Brasil do século XIX:

Impugnada a todo instante pela escravidão a ideologia liberal, que era a das jovens nações da América, descarrilhava. Seria fácil deduzir o sistema de seus contrassensos, todos verdadeiros, muitos dos quais agitaram a consciência teórica e moral do século XIX. (Schwarz, 1992, p.15)

A despeito de representar uma falha na adesão ao liberalismo burguês por parte dos brasileiros, a escravidão parece ter represen‑tado apenas um mero incômodo e não um problema de fato para a aclimatação das ideias libertárias oriundas da Europa, fator para o qual contribuíram, possivelmente, as exigências sociais e econô‑micas de um país alicerçado no escravagismo. A respeito da inade‑quação da escravidão aos modelos socioeconômicos adotadas pelo Brasil no século XIX, diz Schwarz:

estas dificuldades permaneciam curiosamente inessenciais. O teste da realidade não parecia importante. É como se coerência e generalidade não pesassem muito, ou como se a esfera da cultura ocupasse uma po‑sição alterada, cujos critérios fossem outros. [...] Por sua mera presen‑ça, a escravidão indicava a impropriedade das ideias liberais o que en‑tretanto é menos que orientar‑lhes o movimento. (Schwarz, 1992, p.15)

O desacordo entre os ideais e a situação real do país imprimiu‑‑se na adesão de nossos artistas à estética romântica como porta de entrada para o círculo dos países civilizados do Ocidente. Isso ex‑plica o fato de questionamentos acerca dessa incoerência, como os apresentados por Gonçalves Dias nesse artigo, não terem sido tão numerosos quanto se espera em épocas românticas. Boa parte dos

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literatos dos primeiros anos do romantismo parece ter optado pelo silêncio inevitavelmente imposto pelas condições do meio, subor‑dinando as aspirações de liberdade e renovação romântica aos di‑tames da ordem estabelecida.

Valendo‑se mais uma vez das categorias definidas por Löwy e Sayer, nosso primeiro romantismo não parece se localizar facil‑mente no quadro do restitucionismo, como o francês, já que a res‑tauração do passado demanda um esforço revolucionário difícil de se realizar no contexto brasileiro da época – uma vez que não se pode retornar algo que não existiu. Desde a Independência, é pos‑sível entrever nos homens de letras brasileiros um afã de moder‑nizar a nação. Como já dito, entre nossos primeiros românticos, havia a promessa de que o país, jovem colosso de natureza exube‑rante, haveria de suceder a Europa, já decadente, em suas glórias. Já no final do século, fez‑se urgente a consonância do Brasil com os modelos de progresso ditados pelo positivismo europeu. Nessa ne‑cessidade de acertar os ponteiros do país com os das nações desen‑volvidas, parece residir certa barreira ao surgimento de qualquer apologia ao retrocesso histórico entre os românticos brasileiros. O romantismo nacional, portanto, erige‑se sobre os alicerces da aspi‑ração do desenvolvimento futuro (que toma como modelo os paí‑ses europeus) e da preservação da unidade nacional tributária ao regime monárquico vigente. Portanto, seu espectro ideológico apresenta certo caráter reacionário. Löwy e Sayer, com efeito, re‑conhecem a existência de uma corrente abertamente conservadora do romantismo europeu que parece se assemelhar muito aos con‑tornos que o pensamento romântico assumiu no Brasil:

O romantismo conservador não visa restabelecer um passado lon‑gínquo, mas manter um estado tradicional da sociedade (e do governo) tal como persistia na Europa do final do século XVIII até a segunda metade do século XIX ou, no caso da França, restaurar o status quo anterior à Revolução. Trata‑se, portanto de uma defesa de sociedades que já se encontram na via do desenvolvimento capitalista; no entanto,

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tais sociedades são apreciadas precisamente por aquilo que retêm das formas antigas, anteriores à modernidade. (Löwy e Sayer, 1995, p.99)

Como se pode observar, guardadas as diferenças contextuais do Brasil (onde, durante o século XIX, o capitalismo ainda apre‑sentava um caráter incipiente), a postura de preservação da estru‑tura social da época – localizada no cerne do romantismo conser‑vador europeu –, a fim de conter as mudanças radicais, apresenta muitas semelhanças com a aplicabilidade dos ideais românticos na sociedade brasileira. O reconhecimento da existência de uma adaptação da estética romântica aos interesses da política do Im‑pério parece explicar a longa vida do romantismo na literatura na‑cional e o fato de sua história ser praticamente concomitante à do Segundo Reinado. Afinal, sob os auspícios dos regentes, e mais tarde do imperador Pedro II, a vida literária nacional, dominada pela estética romântica, sofreu forte desenvolvimento, e não pa‑rece ser gratuito o fato de os primeiros escritores a se oporem ao romantismo no Brasil pertencerem a uma nova geração, partidária de ideias republicanas.

Muitos dos primeiros românticos brasileiros, como Gonçalves de Magalhães, Araújo Porto Alegre, Torres Homem e Varnhagen, frequentaram diretamente os círculos do poder oficial, e, estimu‑lados por ele, divulgaram as ideias românticas nas letras brasileiras. Como o papel desses escritores não se limitava à produção estética, estendendo‑se à função de suprir a carência de produção cultural no país, tanto no que concerne às artes como às disciplinas do conhe‑cimento em geral, as mentes tributárias ao romantismo foram res‑ponsáveis pelo estreitamento da vida cultural com a política da na‑ção. Trata‑se de fenômeno que se intensificou ainda mais com a ascensão de Pedro II ao poder, como atesta o artigo de Brito Broca intitulado “Por que o Brasil não teve uma academia de letras no Se‑gundo Império”, no qual o autor cita uma missiva de Franklin Tá‑vora a José Veríssimo datada de 1884, no qual o escritor refere‑se à intenção de intelectuais como José de Alencar, Francisco Octaviano e Cândido Mendes de fundar uma “sociedade de homens de letras”,

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a qual foi malograda dada a impossibilidade de se constituir tal agremiação no Brasil sem a intervenção direta do governo, como já ocorrera com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o qual esteve sob a égide de Pedro II. O impedimento oferecido pela inevi‑tável influência do imperador sobre uma sociedade de intelectuais residiria possivelmente no fato de que membros ou posicionamen‑tos opostos às diretrizes do poder oficial não poderiam ser aceitos sem problemas. Franklin Távora alude a um folhetim de autoria de José de Alencar, publicado no Correio Mercantil em 1854, no qual o fato de haver uma sociedade de literatos que constantemente esbar‑rava nos interesses do poder é exposto de forma um tanto irônica e sutil. Brito Broca expõe o problema da seguinte forma:

Apesar de certas nuances humorísticas, aliás bem de acordo com a índole dos folhetins, em que era praxe adotar‑se um tom meio faceto, Alencar parecia dar a entender que qualquer sociedade literária, na época no Brasil, só poderia subsistir com o bafejo imperial. Todas as academias, durante os tempos coloniais, tinham‑se fundado à sombra do poder, dos governantes e vice‑reis. Proclamada a Independência, era natural que num ambiente literário incipiente, como o nosso, agre‑miações dessa natureza não pudessem dispensar a proteção do trono. [...] O problema de uma agremiação literária com o apoio do Império é que possivelmente ela reuniria elementos das novas gerações nos quais eram mais frequentes tendências oposicionistas. [...] Deve‑se admitir que Alencar, Octaviano e Cândido Mendes não conseguissem fundar essa sociedade ou porque quisessem dispensar o patrocínio do trono ou porque não lhes fosse possível conciliar todas as opiniões na acei‑tação do patrocínio imperial. (Broca, 1991, p.71)

Como se pode notar, as constatações de Brito Broca sobre a im‑possibilidade de criação de uma academia de literatos que fosse in‑dependente em relação ao Império comprovam a dificuldade de se dissociar a vida cultural brasileira do século XIX dos interesses po‑líticos da época.

A necessidade de estabelecimento de uma identidade cultural autônoma no Brasil encontrou respaldo imediato nos postulados

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do romantismo. O elogio da peculiaridade específica de cada país, o estabelecimento do conceito de povo e a manifestação da arte no que há de específico (e não no generalizado) em dada cultura, con‑tribuições do romantismo às nações modernas, ampararam e esti‑mularam a ambição de se definir os contornos da nação que dava seus primeiros passos com o fim da época colonial. Löwy e Sayer reconhecem que o pensamento romântico se harmoniza perfei‑tamente com a demanda de constituição da identidade nacional, sendo esse um dos motivos principais de sua adoção pelas nações periféricas do Ocidente, sobretudo as que haviam conhecido a in‑dependência pouco tempo antes (Löwy e Sayer, 1993).

No caso particular do Brasil, o romantismo ocupa‑se também da invenção de um cânone estético coerente com a necessidade de or‑dem reclamada pelo quadro político e social. Em virtude disso, as primeiras manifestações românticas no país foram dotadas de um ci‑vismo acentuado, de uma preocupação com o coletivo e de um inevi‑tável conservadorismo político, já que, como foi dito, o movimento foi diretamente estimulado pelas autoridades. Tais características deixaram marcas fortes nas manifestações estéticas do romantismo brasileiro e, de certa maneira, ditaram a forma que ele assumiria ofi‑cialmente. Todas as contradições inerentes à estética romântica, seus impulsos anárquicos e seu gosto pela mudança, foram supri‑midos em nome do estabelecimento de um cânone regular e que servisse de base a uma literatura futura, ainda em vias de constru‑ção. Daí a resistência natural às manifestações estéticas desviantes, autodestrutivas e comprometedoras da tradição, tão comuns ao ro‑mantismo, o que ainda parece explicar uma quase ausência de ma‑terializações do grotesco nas obras dos poetas dos primórdios do movimento no Brasil.

Ora, o grotesco – com suas formas tortuosas, imprevisíveis e ir‑regulares, caminhando entre as esferas da subversão e da gratui‑dade e flertando de perto com o mau gosto – não parece enquadrar‑‑se bem em um contexto cultural no qual se pretende estabelecer um referente artístico sólido, uniforme e útil para a sociedade, como o que vivia o Brasil no início do romantismo. A poesia nacional,

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nessa época, visa ser sublime, exuberante e exótica como as paisa‑gens paradisíacas que Ferdinand Denis estimulara os poetas brasi‑leiros a apreciar, e, mesmo quando versejava sobre o íntimo dos homens, a lírica optava por se dedicar à melancolia suave que nos‑sos artistas liam em poetas europeus. Não parece exagero dizer que o grotesco, que já estava indissociável do romantismo entre os eu‑ropeus – tendo servido inclusive como argumento para o estabele‑cimento da distinção da estética românticas em relação às outras –, tenha sido quase banido do projeto romântico brasileiro inicial. Entretanto, como o grotesco constitui um aspecto inevitável do ro‑mantismo (algo que os poetas locais devem ter percebido mediante as leituras do Cromwell de Hugo) malgrado não se ajuste ao progra‑ma oficial do romantismo nacional, podem‑se vislumbrar algumas nódoas de sua passagem pela sensibilidade dos românticos brasilei‑ros já no texto de fundação da estética no Brasil – Suspiros poéticos e saudades.

Com o objetivo de ser o texto inaugural do romantismo no Bra‑sil, Suspiros poéticos e saudades tem boa parte de seus poemas mar‑cada pelo discurso típico de manifesto. Daí poder ser considerada uma obra de dicção por demais retórica e argumentativa que com‑promete, amiúde, o estro poético. Embora, no prefácio, o autor alegue que sua musa nasce da espontaneidade e da captação de im‑pressões fugidias e variadas, cada imagem ou expediente linguísti‑co presente nos poemas de modo algum parece ser fortuito. Todos os recursos utilizados por Magalhães estão a serviço de um obje‑tivo claro – a constituição de um modelo do que seria a poesia ro‑mântica. Em sintonia com esse caráter, o terceiro poema do livro, “A poesia” (1835) – que integra, ao lado de mais dois poemas ante‑riores, “Invocação ao anjo da poesia” e “O vate”, o bloco dos tex‑tos mais abertamente programáticos da obra –, permite que se vis‑lumbre muito do ideário que Magalhães pretende introduzir na literatura nacional, assim como permite rastrear quais são as fontes dos expedientes poéticos por ele utilizados para a confecção de seu romantismo. Dessas fontes, como se poderá notar, o grotesco não foi excluído:

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[...]

Oh tu qu’eu amo como casta virgem! Sim, tu és como Deus, diva Poesia! Sim, tu és como o sol!... Por toda parte Cultos te rendem de uma zona à outra; Cada mortal te oferece Um culto igual à força de sua alma; Qual te julga uma virgem do Permesso, Só de ficções amiga; Qual da verdade o Anjo, Que tudo vê com olhos luminosos. Tua voz semelhante a uma torrente Tudo abala, e consigo arrasta tudo.

Oh poesia, oh vida da Natura! Oh, suave perfume D’alma humana exalado! Oh, vital harmonia do Universo! Tu não és um fantasma da beleza, Falaz sonho de mente delirante, E da mentira a deusa; Tu não habitas só da Grécia os montes, Nem só de Febo a luz te inspira o canto!

[...]

Nas cavas sepulcrais som lutuoso De tua voz reboa. Dirás que animados por teu canto, Os mirrados cadáveres se elevam Do fundo dos jazigos, E sobre as lousas curvos Cantam num coro o místico estribilho.

Sobre o bronco alcantil de alpestre fraga Pelos tufões batida e pelas ondas,

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Que incessantes se entonam, Tu, sentada qual virgem Do naufrágio escapa, O mar contemplas, do infinito a imagem;

[...]

No campo de batalha, o chão juncado De ossos que alvejam, de quebradas armas, Que sublimes lições aos homens dita!

Tu és tudo, oh Poesia! Tu estás na paz e na guerra, Nos céus, nos astros, na terra, No mar, na noite, no dia!

[...]

Tu, que és a imagem do Eterno, Terás fim nesse momento? Ou terás nova existência Do senhor no pensamento?

Sim; quando tudo extinguir‑se, Guardará Deus na lembrança De tudo o que agora existe Uma viva semelhança.

Essa imagem a Deus presente Serás tu, oh Poesia! Tu és do Eterno um suspiro, Que enche o espaço de harmonia.

(Magalhães, 1998, p.69‑76)

Em meio aos louvores à poesia contidos nesses versos encontram‑‑se muitas das marcas da lírica romântica. Todo um mosaico de práticas já executadas pelos românticos europeus é transposto para

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o poema de Gonçalves de Magalhães, de modo a compor de forma indireta as diretrizes da nova poesia que o autor pretende introdu‑zir na lírica nacional. A começar pela forma do poema, munido de uma métrica variada que oscila, inicialmente, de modo imprevisí‑vel, do decassílabo ao verso de seis sílabas, para depois contar ainda com versos de sete sílabas, o poema busca uma adequação à liber‑dade composicional reclamada pelos românticos. Isso é acentuado ainda mais pelo desenvolvimento do ritmo em versos brancos, o que até o momento era pouco usual na poesia lírica nacional.

Na instância semântica, a argumentação retórica, tão comum à lírica de Magalhães, coloca ainda mais em relevo a intenção do poe‑ta em tributar sua poética ao romantismo. Nela podem ser ouvidos ecos de manifestos românticos famosos, como o Gênio do cristia­nismo, de Chateaubriand – expressos na filiação da inspiração à religião –, e do Cromwell, de Hugo. As influências desse último texto interessam particularmente aos argumentos aqui levantados, já que é através dela que o grotesco pode ter encontrado licença para adentrar o poema. Em primeiro lugar, do legado de Hugo, nascido por sua vez da filtragem de tratados românticos mais anti‑gos, encontra‑se a busca da independência da poesia frente aos modelos clássicos e a afirmação de sua dissociação dos postulados da Antiguidade como vínculo com a verdade. Em decorrência dis‑so, podemos ler em Magalhães: “Tu não és um fantasma da be‑leza,/ Falaz sonho de mente delirante,/ E da mentira a deusa;/ Tu não habitas só da Grécia os montes,/ Nem só de Febo a luz te ins‑pira o canto!”.

Posteriormente, os sinais deixados pela possível leitura do pre‑fácio ao Cromwell tornam‑se mais explícitos, podendo‑se discernir inclusive a tese dos contrastes de Hugo, a sua dicotomia do sublime e do grotesco. Conforme vimos no trecho supracitado, reclama‑se para a poesia sua desvinculação dos preceitos clássicos e, em segui‑da, temos a intervenção do grotesco no poema – algo que nos leva a crer estarmos diante de reminiscências da leitura do Cromwell. Ora, como dito no capítulo anterior, Hugo elege o grotesco como o ele‑

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mento novo, desconhecido e estranho à Antiguidade que legitima a autonomia da poesia romântica.

A seguinte estrofe de Magalhães, na qual se dá incidências do grotesco, sucede aos versos nos quais é dito que a poesia não habita “só da Grécia os montes” e que nem apenas na luz de Febo ela en‑contra sua inspiração. Ei‑la: “Nas cavas sepulcrais som lutuoso/ De tua voz reboa./ Dirás que animados por teu canto,/ Os mirra‑dos cadáveres se elevam/ Do fundo dos jazigos,/ E sobre as lousas curvos/ Cantam num coro o místico estribilho”.

Mesmo que de forma sutil, contido pela busca de uma dicção na qual uma forma de beleza regular é posta em destaque, o grotesco surge nesse momento do poema. Os mortos animados, no fundo de suas sepulturas, são impelidos a cantar essa nova poesia que, movi‑da por uma aspiração ao absoluto, encontra a beleza inclusive no caráter fantástico e hediondo do macabro. Essa intervenção do gro‑tesco é sucedida, contudo, por uma estrofe que lhe oferece um con‑traponto em imagens sublimes, o que filia ainda mais o poema de Magalhães às considerações presentes no Cromwell:

Sobre o bronco alcantil de alpestre fraga Pelos tufões batida e pelas ondas, Que incessantes se entonam, Tu, sentada qual virgem Do naufrágio escapa, O mar contemplas, do infinito a imagem;

[...]

No campo de batalha, o chão juncado De ossos que alvejam, de quebradas armas, Que sublimes lições aos homens ditas!

(Magalhães, 1998, p.76)

O espetáculo ameaçador da tempestade marinha e do naufrágio sugere à poesia a contemplação do infinito, em perfeita relação com os expedientes do sublime, categoria que se solidifica ainda mais no

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poema quando a imagem da batalha, que harmoniza o horror ao grandioso, é associada à função edificante que a poesia desempe‑nha junto aos homens. Sublime e grotesco, segundo a concepção de Magalhães, dariam as mãos justamente porque a poesia seria, no melhor sentido romântico, uma faculdade panteísta, plasmação do absoluto: “Tu és tudo, oh Poesia!/ Tu estás na paz e na guerra,/ Nos céus, nos astros, na terra,/ No mar, na noite, no dia!”. O con‑ceito de absoluto evoca no poema ainda o conceito de infinito, de modo que a poesia, alheia à transitoriedade dos tempos e das coisas, seria eterna. Essa infinitude encontraria sua garantia no princípio eterno do universo – Deus –, ao qual a poesia seria devotada e dessa finalidade extrairia, por seu turno, sua inserção nas esferas do eter‑no. Por conta disso, pode‑se presumir que a nova poesia, profes‑sada por Magalhães, haveria de ser superior e mais verdadeira que a dos clássicos, já que seria absoluta por buscar a beleza em todas as coisas (inclusive no grotesco) e eterna por ter Deus como inspirador e destinatário:

Tu, que és a imagem do Eterno, Terás fim nesse momento? Ou terás nova existência Do senhor no pensamento?

Sim; quando tudo extinguir‑se, Guardará Deus na lembrança De tudo o que agora existe Uma viva semelhança.

Essa imagem a Deus presente Serás tu, oh Poesia! Tu és do Eterno um suspiro, Que enche o espaço de harmonia.

(Magalhães, 1998, p.76)

A ideia de harmonia que permeia essas estrofes que concluem o poema parece ter deixado marcas no ritmo. Aqui, a irregularidade característica das outras passagens do texto dá lugar ao ritmo equi‑

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librado dos setessílabos rimados, como se Magalhães construísse a súmula de toda a profusão de possibilidades da poesia romântica – algumas delas contraditórias, como sugere a tensão grotesco/subli‑me – em um plácido e equilibrado panegírico à poesia e a Deus, buscando encher “o espaço de harmonia”.

Consciente de sua missão de divulgador das ideias românticas no Brasil, Gonçalves de Magalhães não ignora o grotesco na cons‑trução de seu poema, embora o utilize não como um recurso pró‑prio de seu estilo, mas como parte de outro objetivo – o da demons‑tração das peculiaridades estéticas do romantismo, junto às quais o grotesco não poderia faltar. Como o grotesco constitui um dos as‑pectos inseparáveis da arte romântica, tendo papel fundamental em um dos principais manifestos da estética – o Cromwell, de Victor Hugo –, Magalhães parece não ter podido deixá‑lo à parte de sua poesia, ainda que as faculdades subversivas e as nuanças incertas do grotesco representassem uma dissonância dentro do projeto es‑tético cívico e edificador de sua obra. Portanto, pode‑se arriscar dizer que, se o grotesco deixa suas marcas nos românticos da pri‑meira geração brasileira, isso se deve apenas ao fato de o grotesco ser um elemento praticamente indissociável do romantismo como um todo, conforme defendido no prefácio do Cromwell, texto de grande divulgação na época.

Se a menção ao grotesco é fundamental no ideário romântico, surgindo nesse poema programático de Magalhães, sua presença no estilo dos românticos brasileiros iniciais não conta com o mesmo prestígio. Tomando‑se o exemplo de Suspiros poéticos e saudades, além dessa passagem do poema “A poesia” não se encontram mais usos ou referências ao grotesco, e, mesmo nos outros poetas reno‑mados da primeira geração, sua presença é anódina ou mesmo ine‑xistente. Tal fenômeno parece refletir a necessidade que a literatura brasileira no início do romantismo possui de estabelecer um cânone seguro, não podendo se dar ao luxo de, em sua gênese, tomar des‑vios tortuosos (e mesmo perigosos), como os representados pelo grotesco.

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A busca da constituição de uma identidade cultural sólida pa‑rece ter sido um norte para a produção estética e para o gosto lite‑rário comum de todo o século XIX. Se na situação de Magalhães faz‑se urgente a invenção do Brasil pelo viés da cultura, no final do século XIX serão as concepções progressistas oriundas do positi‑vismo que irão contribuir para a eleição de formas artísticas condi‑zentes com o projeto de inserção da cultura nacional no esquema das grandes civilizações do Ocidente. Essas formas artísticas segui‑ram os rumos do verossímil, da regularidade e, por vezes, da uti‑lidade, seja para o entretenimento do leitor mediano, seja para in‑cutir na sensibilidade coletiva o mito de que a nação estava se encaminhando para um grande futuro. Desse projeto, o grotesco, por seu potencial de choque ao leitor e sua originalidade iconoclas‑ta, e demais demonstrações de radicalizações de estilo, estarão ex‑cluídos. Como aponta Salete de Almeida Cara acerca da crítica da época parnaso‑simbolista, a não aceitação de obras artísticas radi‑calmente originais é característica da literatura do período:

entre nós, existia, de modo bem marcado, uma curiosa pressão repressi‑va em relação à obra de invenção, quem sabe porque esta não respondia adequadamente àquela função que o modelo de linguagem legível e ve‑rossímil vinha preenchendo em relação à formação de uma “visão do real” (leia‑se: do país) e de uma consciência nacional. (Cara, 1983, p.11)

Esse fator é tão determinante para a formação do gosto literário do Brasil que, ao longo de todo o século XIX, há uma resistência às inovações estéticas, sobretudo àquelas mais recentes, sobre as quais a cultura europeia, da qual eram importados os modelos, não hou‑vesse dado ainda sua chancela. Ora, em pleno fim do século XIX encontramos um clima hostil ao simbolismo, tal como representa‑do pelas críticas a Missal e Broquéis, livros de Cruz e Sousa, lança‑dos em 1893. Para justificar a neutralidade como um critério que dê base para seu julgamento pouco simpático ao simbolismo, asse‑vera José Veríssimo que seu caráter é dotado de tolerância a quase todo tipo de manifestação artística, salvo algumas exceções: “Só o

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que não é por qualquer forma humano ou social, só o que é extrava‑gante, fora da vida e da realidade – e até o mais alto idealismo pode estar na realidade – excluo da arte. [...] O simples bom senso, é a única medida, o só padrão da obra literária” (Veríssimo apud Ca‑rollo, 1980, p.373). Extravagantes, sem sentido e destituídas de “bom‑senso” – assim serão definidas as obras simbolistas pelo crí‑tico brasileiro nesse artigo. Os critérios para a consideração de obras literárias de valor, apresentados por Veríssimo, excluem o simbolismo, bem como obras de arte em que se manifestem flexi‑bilizações dos postulados da verossimilhança, como as que se ex‑pressam pelo grotesco. A postura da crítica da época ante o simbo‑lismo parece refletir um espírito de negação ao estranho na arte, de aceitação das formas de reprodução dos modelos celebrizados pela tradição em detrimento das criações singulares, o que, como se vem dizendo, já havia deixado marcas no projeto de formação de iden‑tidade cultural iniciado pela primeira geração romântica brasileira.

O grotesco, de início, está, portanto, relegado a um segundo plano nas produções literárias do romantismo. Todavia, por repre‑sentar um aspecto difícil de se desprezar da estética romântica, não demorará muito para eclodir em manifestações consideráveis no âmbito de nosso romantismo. Conforme os novos influxos profes‑sados pela geração de Magalhães vão se estabelecendo com solidez inabalável – gerando, por exemplo, um poeta da estatura de Gon‑çalves Dias – e a sensibilidade coletiva brasileira já se mostra à von‑tade com as ideias românticas, o cenário favorece o surgimento de algumas experiências mais anárquicas no fazer estético, junto às quais o grotesco encontrou seu lugar. Ademais, a constante reinci‑dência dos temas pátrios, do lirismo amoroso lacrimejante da lite‑ratura oficial e da poética da utilidade, parece ter cansado alguns artistas mais jovens. Adotando modelos estéticos menos sisudos que os fornecidos por Chateaubriand, Walter Scott e outros nomes influentes entre os poetas da primeira geração, esses jovens encon‑traram nesses novos modelos a via de acesso a uma tradição mais rebelde e comprometida com as fantasias íntimas que também compôs o romantismo. Shelley, Hoffmann, Musset, Heine e Byron

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sugeriram a alguns de nossos românticos os contornos de outra face romântica, mais subjetiva, mais macabra, mais aberta às extrava‑gâncias e que conta com o grotesco como um de seus fenômenos indissociáveis. Esses poetas surgiram por volta da década de 1850, duas décadas posteriores, portanto, à publicação de Suspiros poéti­cos e saudades e dez anos após a publicação dos Primeiros cantos (1846), de Gonçalves Dias, obra de estreia daquele que é conside‑rado o poeta de maior vigor da primeira geração romântica. Por se distinguirem tanto cronológica quanto tematicamente da geração anterior que cantara o índio, a natureza sublime e uma forma mo‑derna de vassalagem amorosa, esses poetas entraram para a história literária como uma segunda geração.

Depois de Ariel... Calibã

Curiosamente, o contexto em que surgem os poetas da segunda geração romântica brasileira condiz com as características de sua poesia. Enquanto a geração de Magalhães, Torres Homem, Porto Alegre e Gonçalves Dias nasce em meio às rodas oficiais do saber nacional, a nova geração, da qual se salienta a tríade representada por Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa, surge em um meio muito mais restrito, poder‑se‑ia dizer até margi‑nal. Esses poetas gravitam em torno dos agrupamentos literários dos estudantes de Direito da Universidade de São Paulo e, condi‑zente com a reclusão do ambiente a que estão circunscritos, sua produção mais afinada com o grotesco estará confinada à instância secreta de sua lírica.

Entre os estudantes de Direito de São Paulo encontraram‑se os nossos poetas mais sensíveis ao mal do século. Ainda que os vultos da edificação da cultura nacional, do amor à pátria, da missão de elogiar o que há de específico na realidade brasileira, embalassem a sensibilidade de tais poetas, o lado melancólico, macabro e sardô‑nico do romantismo medrou nos jovens líricos da década de 1850, estimulados pela literatura subjetivista e fantasiosa oriunda da Eu‑ropa. Enquanto Magalhães e Gonçalves Dias desempenharam cer‑

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to papel de poetas oficiais do país, os estudantes reputadamente boêmios de São Paulo, ocupando uma posição mais descomprome‑tida, puderam se dignar a versejar sobre seu universo interior com maior intensidade e liberdade, encontrando mesmo contornos obs‑curos na estética romântica que lhes forneceu a dicção para traduzir em poemas seus estados interiores. O grotesco, dada sua ligação ín‑tima com a rebeldia intimista, encontrará lugar na produção desses poetas. Mesmo que sua intervenção nas obras deixadas à posterida‑de pelos jovens poetas de São Paulo seja menor do que seria de se supor pelo programa estético por eles apresentado, não se pode ne‑gar a atuação determinante que desempenhou na sensibilidade de Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa, atua‑ção essa que, no entanto, parece ter deixado mais frutos na intenção que na realização.

No prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos (1853), texto em que Álvares de Azevedo expõe sua conhecida formulação da bi‑nomia, encontramos uma consciência da natureza dual da beleza, consequente da ambivalência do espírito humano, a qual permite que o belo se afirme também nos desvios, de modo que o disforme, o risível e o vulgar, elementos relacionados ao grotesco, sejam to‑mados também como veículos de fruição estética. Álvares de Aze‑vedo não expõe tais preceitos solitariamente; como atestam os exemplos elencados em seu prefácio, uma extensa tradição ampara suas considerações, pontos de vista e argumentos. Podemos dizer, como comprova a leitura do prefácio, que a aventura da segunda geração romântica brasileira pelas veredas do grotesco possui, reco‑nhecidamente, seus guias:

Cuidado leitor, ao voltar esta página!Aqui dissipa‑se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num

mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho é rei, e vivem Panúrgio, Sr. John Falstaff, Bardolph, Fí‑garo e o Sgnarello de D. João Tenório, dos sonhos de Cervantes e Shakespeare. Quase depois de Ariel esbarramos em Caliban.

A razão é simples. É que a unidade deste livro funda‑se numa bi‑nômia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco

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mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.

Demais, perdoem‑me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, se‑não mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fashionable desde Werther e René.

Por um espírito de contradição, quando os homens se veem inun‑dados de páginas amorosas, preferem um conto de Boccaccio, uma ca‑ricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shake‑speare, um provérbio do polisson Alfred Musset, a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda [...] Antes da Quaresma há o Carnaval!

Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar‑se no misticismo e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.

O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem. Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias – Isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia.

O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre e do sangue, a alma que ama e canta porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser eróti‑co sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem. Todo o vaporo‑so da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a que amamos.

O poema então começa pelos últimos crepúsculos do misticismo brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua.

Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.

É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parsina e o

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Giaur de Byron vêm o Cain e Don Juan – Don Juan que começou como Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcás‑tica.

Agora basta.Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas

páginas destinadas a não ser lidas. Deus me perdoe! Assim é tudo! Até os prefácios!

(Álvares de Azevedo, 2002, p.139‑40)

Referências que já frequentaram os textos de defesa de uma poe‑sia mais livre e controversa – e inclinada ao grotesco – de autoria de românticos europeus, como Schlegel e Hugo, desfilam pelo prefá‑cio de Álvares de Azevedo: Shakespeare, Cervantes e Rabelais são, de imediato, evocados para definir o caráter dessa poesia dissonan‑te do quadro da lírica emotiva e idealizante que, como reconhece o jovem poeta, constitui praxe no romantismo. Esses novos temas propostos por Álvares de Azevedo são definidos como mais realis‑tas, presos antes às impressões sensíveis que às inteligíveis, perme‑ados pela ironia e pela sátira e topograficamente localizados na es‑fera do baixo. Tais temas viriam à tona fatalmente, já que nascem de uma dupla articulação composta, por um lado, pelo cansaço da poesia que, extenuada pelos altos voos do sublime, desceria inevita‑velmente ao chão, e, por outro, pelo sentimento de fastio caracterís‑tico de sua época contemporânea – o tédio, mal do século que “des‑carna e injeta de fel cada vez mais o coração”.

Como se pode notar, esse “reverso da moeda” que os elementos sarcásticos, risíveis e disformes representariam na instância poética tem origem tanto na jocosidade alegre – como nos exemplos forne‑cidos pelas narrativas de Rabelais, Cervantes e por muitas perso‑nagens cômicas de Shakespeare – como no spleen romântico que encheria a sensibilidade poética de fantasias sombrias e belezas extravagantes. O duplo disforme dos madrigais frágeis e melancó‑licos do romantismo encontraria seus correspondentes, portanto, em inversões carnavalescas e eventos burlescos como os vivencia‑dos na ilha Barataria do Quixote, de Cervantes, assim como no in‑

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cesto, no fratricídio, no ostracismo e na blasfêmia, observados no drama Caim, de Byron: duas obras citadas por Álvares de Azevedo como parte dos modelos dessa outra face do espírito romântico.

Esse elenco de referências ecoa de certo modo a concepção de grotesco presente no Cromwell, de Victor Hugo, já que localiza na mesma esfera o horrendo e o bufo, colocando em relevo, como seus pontos em comum, características que distanciam tais motivos dos postulados de uma beleza regular e meramente aprazível. Como herança de Hugo e da tradição romântica defensora do grotesco, o prefácio de Álvares de Azevedo busca igualmente explorar a beleza difusa do grotesco, operando a constituição de uma poesia absoluta, já que a poesia, assim como a natureza humana, também seria for‑mada por uma binomia – anjo e demônio, Ariel e Caliban, sublime e grotesco. Dualidade que Hugo definiu pelos polos alma e besta humana.

O prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos pode ser to‑mado como uma manifestação da atuação do grotesco sobre a sen‑sibilidade desta que ficou conhecida como a segunda geração romântica brasileira, visto que esse texto constitui o mais bem de‑senvolvido programa artístico legado por essa geração à posteri‑dade. Considerando‑se a proximidade existente entre os três mais expressivos nomes do ultrarromantismo brasileiro – Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa –, proximidade confirmada pelo fato de inicialmente ter havido a intenção de se publicar uma obra conjunta composta pelos três poetas, intitulada Três liras (Camilo, 1997, p.109), pode‑se intuir que a mesma con‑cepção de poesia tributária ao grotesco que se insinua no prefácio de Álvares de Azevedo deve ter sido compartilhada pelos outros dois poetas. Com efeito, a rebeldia e o exotismo byronianos, o fan‑tástico oriundo da leitura de escritores alemães como Hoffmann e Goethe, a teoria dos contrastes de Victor Hugo e os subsídios ao espírito moderno que o romantismo vira em autores como Shake‑speare, Rabelais, Milton, Cervantes e Dante, parece ter indicado aos jovens poetas brasileiros dos anos 1850 outro rumo para a lírica que esbarraria no grotesco. Mesmo que a efetivação de obras de

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forte matiz grotesco não seja muito frequente entre a segunda gera‑ção romântica, as implicações estéticas dessa categoria, sobretudo no que concerne à exploração de novos temas e à expressão de uma forma de subjetividade insubmissa, parece ter atuado consideravel‑mente sobre a poesia de Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e Bernardo Guimarães, em especial na deste último, poeta desde sempre afeito à galhofa, que soube harmonizar ao riso inclusive o sinistro, explorando em sua lírica vários aspectos do grotesco, che‑gando mesmo a cunhá‑los de modo bem mais profundo do que co‑mumente se encontra na obra de seus dois outros companheiros de geração.

O papel de destaque dado a elementos típicos do grotesco no prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos confirma o interes‑se dos ultrarromânticos brasileiros pelo grotesco. Contudo, como dito, o material lírico de Álvares de Azevedo não comprova uma exploração dessa categoria em suas potencialidades, por assim di‑zer, mais radicais. Como reconhece Vagner Camilo – em seu estudo sobre o cômico no romantismo, intitulado Riso entre pares: poesia e humor românticos (1997) –, em Lira dos vinte anos, o riso se mani‑festa muito mais na esteira do humour à maneira de Heine e de uma ironia melancólica sobre a qual a paródia e o realismo surgem como antídoto ao sentimentalismo idealizador da poesia romântica con‑vencional, do que através de expedientes grotescos. A despeito de o prefácio à segunda parte da obra preparar o leitor para o grotesco propriamente dito, configurado por seus conhecidos recursos de desorientação e união de contrastes, esse não se realiza. (Camilo, 1997, p.57‑96).

Com efeito, no âmbito da prosa, Noite na taverna (1855) parece ter ido mais longe nas paragens do grotesco que a lírica de Álvares de Azevedo. Herança das narrativas fantásticas do romantismo, Noite na taverna, em seus episódios de estrutura interdependente, atesta as influências dos romances góticos à moda de Horace Wal‑pole e Matthew Gregory Lewis, dos contos fantásticos de Hoff‑mann e do universo de vícios, crimes e perversões heroicas que

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compõem o mito de Byron,4 assim como o exotismo de poemas de Coleridge, dos quais “Kubla Khan” fornece um exemplo expres‑sivo. Assim como nos modelos tomados por Álvares de Azevedo, sua Noite na taverna extrai o grotesco da complexidade psicológica de suas personagens, da natureza perturbadora dos eventos apre‑sentados, do exagero patético e da violência, constituindo um dos mais excessivos exemplos das fantasias perturbadoras que devem ter assombrado os devaneios dos nossos ultrarromânticos. Os mes‑mos temas, no entanto, a lírica conhecida desse poeta parece ter ob‑servado de longe, aproximando‑se deles apenas receosa e timi‑damente, despontando nela o grotesco apenas fracamente ou em referências indiretas.

Entre essa geração de líricos, não foi peculiar a Álvares de Aze‑vedo o tratamento tangencial ao grotesco. Aureliano Lessa, por exemplo, não fornece qualquer exemplo correspondente a essa ca‑tegoria estética, e mesmo as esparsas manifestações do grotesco en‑tre outros poetas considerados ultrarromânticos parecem nascer de exacerbações ou desvios promovidos pela intensidade subjetiva desses autores em recursos literários fornecidos pela tradição que ampara suas produções. Esse é caso de um curioso fragmento de Junqueira Freire, localizado nas Contradições poéticas e intitulado “A morte”, citado por Antonio Candido (1969, p.161) como dota‑do de “frêmito meio satânico e extremamente moderno” (grifo no original), sendo o trecho chamativo o seguinte:

[...]Miríades de vermes lá me esperam Para nascer do meu fermento ainda. Para nutrir‑se de meu sangue impuro, Talvez me espere uma plantinha linda.

4 Onédia Barboza, em Byron no Brasil: traduções, lembra que a associação entre a fi‑gura de Byron e o lado macabro e devasso do romantismo tem origem antes nas len‑das criadas a partir das vivências do poeta inglês que na sua obra poética de fato (Barboza, 1975, p.25).

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Vermes que sobre podridões refervem, Plantinhas que a raiz meus ossos ferra, Em vós minh’alma e sentimento e corpo Irão em partes agregar‑se à terra.

E depois nada mais. Já não há tempo, Nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto. Agora nada, – esse real tão belo Só nas terrenas vísceras deposto.

(Candido, 1969, p.161)

Esse poema, como menciona Candido, já havia instigado o inte‑resse crítico de Afrânio Peixoto por seu caráter aparentemente mo‑derno, levando‑o a dizer, no estudo Vocação e martírio de Junqueira Freire, o que se segue sobre o poeta baiano: “Entre Byron e Baude‑laire, que a um não conheceu, talvez, e a outro não poderia conhe‑cer, está um poeta damné, e este acento é novo e insólito na poesia brasileira” (Peixoto apud Candido, 1969, p.161).

Com efeito, a presença de uma reflexão sobre a vacuidade da vida e sobre o “Nada consolador”, materializada nos aspectos mais abjetos e degeneradores da morte, na lírica de um jovem frade, re‑cluso no meio intelectual acanhado da vivência monástica na Bahia dos idos de 1850 e possivelmente apartado do influxo do mito de uma poesia satânica e macabra atribuída a Lord Byron – que fizera moda entre seus contemporâneos nos redutos estudantis de São Paulo –, leva Candido a, concordando com Afrânio Peixoto, ver nessa manifestação um elemento excêntrico no quadro da poesia nacional que aponta, quase instintivamente, para os novos rumos que os temas românticos assumiriam em poetas posteriores. Eis o parecer de Candido:

É, com efeito, antes de Guerra Junqueiro e Antero de Quental, um travo antecipado de Augusto dos Anjos e da poesia realista da morte, a que se vem juntar, em outros versos, a referência à vida embrionária, às vísceras, à célula, bem como o emprego de termos de sabor cientí‑fico: galvanizar, fosfórico, fosforescente.

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Havia nele mais dum traço original; é lamentável que a pressão in‑suportável das condições de vida e um formalismo constrangedor hou‑vessem impedido a sua realização plena, no nível dos poucos, mas in‑tensos momentos de beleza que logrou alcançar (Candido, 1969, p.161).

Ora, o trecho do poema transcrito acima denuncia claramente manifestações do grotesco incomuns ao cenário da poesia brasileira da época, que, ao se considerar o contexto, causam espanto ainda maior por haver registros de que Junqueira Freire teve contato mui‑to pouco profundo com a poesia romântica europeia, podendo‑se arriscar referir‑se a ele como um romântico espontâneo, ou mesmo acidental. Seu romantismo possivelmente deriva do prisma paté‑tico com que transpôs suas experiências particulares de monge sem vocação para a poesia – seu intimismo profundo, a pungência com que retrata seus lamentos, o remorsos e sua autocondenação, confi‑guram um espectro de sensibilidade conflituosa e egocêntrica per‑feitamente afim ao espírito romântico. Mesmo assim, as influên‑cias literárias e o projeto estético de Junqueira Freire não condizem com o romantismo. No prefácio a suas Inspirações do claustro, o jovem frade expressa a intenção de realizar uma forma métrica que se aproxima muito de uma prosa metrificada, à moda dos poetas da Antiguidade, intenção essa que tributa seus elementos formais – marcados pela intervenção de versos brancos ou pela tradição representada pelo setessílabo e pelo decassílabo – a postulados es‑téticos neoclássicos. Sobre as influências de Junqueira Freire diz Candido:

Não sofreu influência dos poetas modernos, franceses e ingleses que marcariam decididamente os seus contemporâneos. Como Hercu‑lano e Béranger que traduz, quando não o velho Fontenelle. Tem de comum com os neoclássicos da fase de rotina certa dureza de ouvido, a fraqueza sensual cruamente expressa, o fraco pelas palavras de rebus‑cado mau gosto: sânie, cardines, tortor, gêsseo, ânxio, ciparizo, turtu‑rinas, latidão, abundoso, temulento, desnuada, ignífera, nutante, irri‑sor, senosas, ascosas.

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É certo que o intento de não ceder à musicalidade excessiva poderia tê‑lo conduzido, como Gonçalves Dias, a dicção mais nobre e pura, menos fácil que a média do verso oitocentista. Mas, ou porque ficasse aquém, ou porque fosse além da medida, caiu frequentemente em cheio na prosa metrificada, pois “o módulo clássico” significava, àque‑la altura da evolução prosódica, regresso puro e simples ao arcadismo, isto é, a uma estética desajustada às novas necessidades expressionais. (Candido, 1969, p.156)

A explicação para o surgimento de elementos grotescos perten‑centes ao campo semântico do macabro, como “miríades de ver‑mes”, a podridão, o destino da vida ao húmus como representação material da morte, entre outros, em um poeta de formação literária quase estranha à romântica, e em uma época em que o romantismo ainda não permitia de todo a manifestação de tais motivos, só pode ser encontrada nos modelos literários disponíveis a Junqueira Freire. Mesmo que a expressão da morte pelos contornos grotescos do abjeto, da putrefação e do aparente niilismo, que concebe o pe‑recimento como via ao Nada, sejam motivos estéticos modernos, eles não estão de todo ausentes da tradição literária ocidental mais antiga.

Dada sua formação religiosa, é possível intuir que Junqueira Freire tenha se nutrido, para a composição do quadro macabro pre‑sente em “A morte”, do memento mori barroco e do papel inexorá‑vel que a morte ocupa na liturgia cristã, em que se coloca como o abismo que se esconde por detrás das vaidades mundanas – aspec‑tos aos quais, provavelmente, corroboram a leitura da poesia clássi‑ca, na qual a fugacidade da vida foi tema constante, como atestam muitas odes de Horácio.

O tratamento grotesco dado por Junqueira Freire aos velhos te‑mas conhecidos parece ter nascido, portanto, da exacerbação do sofrimento pessoal que, para acentuar o desespero que move o eu lírico a buscar o consolo na morte, hiperboliza o elemento horrendo que envolve esse último refúgio oferecido à sensibilidade atormen‑tada. Ao representar a morte de forma aterrorizante e carente de

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qualquer bálsamo exceto o cessar das dores terrenas, Junqueira Freire intensifica o páthos que envolve o amor à morte, dramatizan‑do mais ainda a sua condição.

Desse modo, conclui‑se que o grotesco apresentado por esse poema tem origens em esferas distantes da tradição romântica e atende a objetivos um tanto diversos do tópos da desorientação e da excentricidade que a poesia moderna viu nessa categoria estética. Ele parece surgir em primeira linha como elemento retórico, me‑dida de contraponto da beleza e do aprazível, utilizado para acen‑tuar o conteúdo dolente das confissões que embasam a lírica de Junqueira Freire.

Se Junqueira Freire apresenta‑se como um poeta pouco afinado com o espírito moderno do grotesco, o mesmo não se pode dizer dos poetas do círculo da Faculdade de Direito de São Paulo. Como deixa entrever o prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos, esses poetas provavelmente foram tocados pelas possibilidades es‑téticas do grotesco romântico. No entanto, como dito anterior‑mente, sua lírica não fornece muitos exemplos de manifestações dessa categoria.

Um poeta, contudo, apresenta exemplos bem desenvolvidos do que pode ter sido a lírica grotesca dos ultrarromânticos brasileiros – Bernardo Guimarães, que, com sua pilhéria satânica e fantástica, seu humor negro, seus reputados poemas obscenos e seus hermé‑ticos anfiguri, preservou para a posteridade registros de uma face obscura do romantismo, o que permite que se diga dele que, den‑tre toda a sua geração, foi o mais legítimo lírico do grotesco. Tra‑çando um paralelo entre a poesia de Álvares de Azevedo e Bernar‑do Guimarães no tocante ao riso, Vagner Camilo refere‑se ao segundo como o único poeta de sua época a plasmar o “grand rire infernal” – expressão utilizada por Hugo no Cromwell para definir o grotesco:

Comparado ao riso tênue de Álvares de Azevedo, o de Bernardo Guimarães surge como polo oposto, quer pela intensidade, quer pela variedade de notas que extrai de seu “rude rabecão”. O forte traço de

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personalismo e intimismo que desponta na poesia do primeiro con‑trasta vivamente com certa tendência à impessoalidade presente na do segundo. A margem da gradação já não caminha aqui do humor ligeiro em direção à ironia mesclada de patético, mas cobre um outro espec‑tro, que vai da sátira e do humor ligeiro até o riso extremo de perversão e sadismo: o “grand rire infernal” de que fala Hugo só chega mesmo a ecoar entre nós com Bernardo Guimarães. Com ele, a poesia român‑tica alcançaria, entre nós, aquela dimensão do grotesco como pura criação, que Baudelaire também denominou de “cômico absoluto”, capaz de provocar um riso que traria em si “qualquer coisa de profun‑do, de axiomático, de primitivo”, por oposição ao “cômico significa‑tivo” ou “de costumes”, fundado na referencialidade, na imitação – ao qual, todavia, também não se furtaria o próprio Bernardo em alguns momentos de sua produção lírica. (Camilo, 1997, p.99‑100)

É válido destacar que o surgimento de um poeta tão familiari‑zado com o grotesco como foi Bernardo Guimarães parece ter como uma de suas condições a existência de um ambiente cultural favo‑rável a essa categoria estética. Com efeito, os estudantes de São Paulo foram conhecedores tanto de obras quanto de tratados estéti‑cos vinculados ao grotesco, como atestam as muitas referências in‑diretas às idiossincrasias do grotesco apresentadas pela obra desses poetas.

Pode‑se concluir que o grotesco constitui uma espécie de pre‑sença invisível junto à segunda geração romântica, e Bernardo Gui‑marães – ao contrário de Álvares de Azevedo e Aureliano Lessa – destaca‑se de seus pares justamente por não ter se privado de tornar públicas suas realizações tributárias a uma modalidade literária quase secreta, cultivada pelos estudantes de seu meio. Ora, sabe‑se que entre os alunos de Direito de São Paulo era comum a criação de poemas obscenos e satíricos nos quais não deviam faltar elementos grotescos.

Todavia, o solo mais profícuo ao florescimento do grotesco pa‑rece ter sido um outro tipo de composição típica dos estudantes contemporâneos de Bernardo Guimarães – uma poesia marcada pelo anfiguri, dotada de lógica difusa e de uma linguagem cifrada, a

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qual seus adeptos designavam de poesia pantagruélica. Esse gênero poético singular, apesar de haver indícios de contar com muitos afi‑liados entre a chamada geração de poetas ultrarromânticos, encon‑trou expressão mais vigorosa na pena de Bernardo Guimarães – algo que também vale para todas as formas que o grotesco assumiu en‑tre nossos românticos. Na história do grotesco na lírica romântica brasileira, a poesia do escritor mineiro constitui o primeiro acorde mais estridente.