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A poética de Arthur Bispo do Rosario: Compêndio de encantamentos do mundo
Ricardo Alexandre Rodrigues
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética).
Orientadora: Profª. Doutora Martha Alkimin de A. Vieira.
Rio de JaneiroAbril de 2013
1
A poética de Arthur Bispo do Rosario: Compêndio de encantamentos do mundo
Ricardo Alexandre Rodrigues
Orientadora: Professora Doutora Martha Alkimin de A. Vieira
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, na área de Poética, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.
Examinada por:
_________________________________________________Presidente, Profª. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira – UFRJ
_________________________________________________Profº. Doutor Frederico Augusto Liberalli de Goes – UFRJ
_________________________________________________Profº. Doutor Alberto Pucheu Neto – UFRJ
_________________________________________________Profª. Doutora Ana Clélia Dias – Faculdade de Educação, UFRJ
_________________________________________________Profº. Doutor Samuel Abrantes – EBA, UFRJ
_________________________________________________Profª. Doutora Carlinda Fragale Pate Nuñes – UERJ, Suplente
_________________________________________________Profª. Doutora Ana Maria de Alencar Amorim– UFRJ, Suplente
Rio de JaneiroAbril de 2013
2
Resumo:
Palavras-chave: Artur Bispo do Rosario, poética do objeto, Semiologia, articulação
de sentidos.
Esta Tese de Doutorado é constituída de estudos ensaiados a partir e sobre os
arranjos engendrados por Arthur Bispo do Rosario, com enfoque especial
naqueles cuja estrutura permite associações com o gênero lista, arquivo ou
compêndio. Nesses arranjos, o impacto criado pela exposição do óbvio ou da
aparência imediata dos objetos afeta o pensamento e o modo de ver. Por esse
motivo, apostou-se numa proposição de leitura pelas vias do pensamento
semiológico e poético, com o interesse de ampliar o repertório de reflexões a
respeito da organização e composição dos trabalhos de Bispo do Rosário. Tendo
em vista a natureza prosaica do material usado na composição dos arranjos e o
fato de que Bispo nunca pretendeu um efeito artístico, a operação de leitura desta
Tese retoma e atualiza o debate acerca das “iminências poéticas” ou “potências
poéticas” percebidas nas formas de relacionar e forjar um nexo para aquilo que
impressionou a percepção. Trata-se, por assim dizer, de um trabalho reflexivo nos
horizontes poéticos da linguagem a respeito de um conjunto de imagens, cujo
autor não reclamou nem autorizou o título de “arte”. Entretanto, como falar
poeticamente de composições que não foram concebidas para figurar no plano
artístico-poético? A escrita desta Tese traz, inevitavelmente, a marca desta tensão.
Para administrar tais inquietações, investiu-se pensamento na criação de novas
“categorias de análise” buscando explorar os aspectos poéticos dos trabalhos de
Bispo do Rosário. A acepção de poético, nesse caso, faz referência às
manifestações de linguagem que desguarnecem os limites do mundo e
potencializam suas multiplicidades.
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Résumé:
Mots-clé: Artur Bispo do Rosario, poétique de l´objet, Sémiologie, articulation des
sens.
La présente Thèse de Doctorat est constituée d´études essayées d´après les
assemblages crées Arthur Bispo do Rosario, avec une emphase spéciale dans
ceux dont la structure permet des associations avec le genre liste, archive ou
recueil. Dans ces arrangements, l´impacte crée par l´exposition de ce qui est
évident ou de l´apparence immédiate des objets affecte la pensée et la façon de
voir. Par cette raison, nous avons choisi une proposition de lecture par le moyen
de la pensée sémiologique et poétique, dans le but d´élargir le répertoire des
réflexions à propos de l´organisation et composition des œuvres de Bispo do
Rosário. Vu la nature prosaïque du matériel utilisé dans la composition des
assemblages et le fait que Bispo n´a jamais eu la prétention de produire un effet
artistique, l´opération de lecture de la présente Thèse reprend et met à jour le
débat concernant les « imminences poétiques » ou les « potences
poétiques »perçues dans les formes d´établir des rapports ou de créer un sens à
ce qui a impressionné la perception. Il s´agit donc d´un travail de réflexion sur les
horizons poétiques du langage concernant un ensemble d´images, dont l´auteur n
´a pas nommé ou même autorisé que l´on nomme « art ». Et cependant, comment
peut on parler poétiquement des compositions qui n´ont pas été conçues dans le
but de figurer dans le plan artistique-poétique ? L´écriture de la présente Thèse est
marquée, nécessairement, de cette tension. Pour administrer ces inquiétudes, l´on
a pensée sur la création de nouvelles « catégories d´analyse » afin d´exploiter les
divers aspects poétiques des œuvres de Bispo do Rosário. L´acception du
poétique, dans ce cas, se rapporte aux manifestations du langage qui
désapproprient les limites du monde et potentialisent leurs multiplicités.
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Abstract:
Key words: Artur Bispo do Rosario, poetics of the object, Semiology, articulation of
the senses.
This Doctor's Degree thesis consists of essay studies out of and upon
arrangements engendered by Arthur Bispo do Rosario, especially emphasizing the
ones whose structure allows associations with list, file, or compendium genders. In
these arrangements, the impact caused by being exposed to the obvious or to the
sudden appearance of the objects affects thoughts and viewpoints. For that
reason, this study bets on a semiologic and poetic reading propposition, aiming at
broadening the set of reflections towards the order and the composition of Bispo do
Rosário's works. Observing the prosaic nature of the material used in the
composition of those arrengements and the fact that Bispo never intended an
artistic effect, the reading operation for this thesis resumes and modernizes the
debate upon "poetic imminence" or "poetic potency" realized as trying to relate and
fake a meaning for what has impressed perception. This thesis, as the saying
goes, is a reflexive work on language poetic horizons about a group of images,
whose author neither claimed nor authorized the title "art". However, how can one
speak poeticly about compositions that weren't conceived as poetry or art? The
writing of this thesis brings, inevitably, this tension mark. In order to manage that
discomfort, this text invested thoughts on the creation of new "analysis categories",
searching to explore the poetic aspects of Bispo do Rosário's works. The concept
of poetic, in this case, refers to language manifestations that deprive the world's
boundaries and enpower their multiplicities.
5
AGRADECIMENTOS
Algumas pessoas contemplam as maravilhas do mundo e as celebram
silenciosamente com arranjos de pensamentos. Eu, graças a Deus, tive o
privilégio de escrevê-los e, assim, fazer meu “Compêndio dos Encantamentos do
Mundo”. Esta tese cumpre a função de reunir ideias, pensamentos e afetos
fecundados nas minhas intimidades com o mundo, nos diálogos com amigos, nos
encontros em sala de aula, nas leituras... Inspirado na obra de Arthur Bispo do
Rosário, que se ocupou de apresentar o mundo com objetos cotidianos, relaciono
aqui alguns nomes que são, para mim, referências importantes, porque cada um
deles dá prova do que existe de melhor no meu universo:
A PROTEÇÃO DE DEUS E A ORIENTAÇÃO DOS AMIGOS ESPIRITUAIS. O CUIDADO E A LUZ
DE MINHA MÃE E BISAVÓ MIQUILINA. COMPANHEIRISMO E AMOR DE NESTOR. O
INCENTIVO DAS TIAS IRIS, IZA, DINA, CARLA E ELIS. O ENTUSIASMO DE VÓ ÉDIS. A
ADMIRAÇÃO DE MANA KELLY. O CARINHO DOS PRIMOS EDIMAR, BRUNO, ELLEN, ERICK,
ELISA, GUSTAVO. A AMIZADE E O ACALANTO DE JORGE E AMANDA, SIMONIE, ROSANA,
SANDRA, LEDUQUE, RONALDO. O ENTUSIASMO DA TORCIDA DE RITA, JAQUELINE,
MARCOS, NELSON, CAROL, ROMILDA, SÔNIA, CIDA, SIRLEA. A PARCERIA E
CUMPRICIDADE DE MARTHA ALKIMIN. A POESIA DAS AULAS DE LUIS EDMUNDO, FRED
GOES, ANA ALENCAR, PUCHEU, TERESA CRISTINA, ANGELA GARCIA. A ALEGRIA DE
TARSILA, DRUMONND E FRIDA. A ESCRITA DE MANOEL DE BARROS. AS IMAGENS DE
BISPO...
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7
Figura Arthur Bispo do Rosário. Lista de nome. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
Sumário
1. Potência de visibilidades
“O mundo é uma invenção sua.Você lhe dá sentido, você o faz bonito,Você o cola de coisas.”
[Toquinho. Texto de abertura do LP Casa de Brinquedos. 1983]
Na ânsia de significar o mundo, todo evento que impressiona nossa
percepção, sem demoras, é esquadrinhado pela imaginação e pelo pensamento,
na tentativa de conferir analogias ou agregá-lo ao repertório de experiências
consubstanciado na linguagem. Em tal operação, são construídas relações de
sentido entre as coisas percebidas, dando forma a uma versão de mundo, que não
deve ser confundida ingenuamente com uma criação do imaginário. A noção de
mundo, de realidade ou de vida, aceita e compartilhada pelo senso comum não
aparece pronta e disponível a todos. É preciso que seja construída e formada. Isso
faz desta versão de mundo, que conhecemos bem, um dos exemplos mais
evidente de fabulação e engenho de linguagem, cuja artificialidade torna-se
prazerosamente flagrante no terreno das artes e da literatura.
Existem, como se sabe, maneiras diversas de ler o mundo, de enquadrá-lo
e significá-lo, o que deixa entrever, em certa medida, sua multiplicidade. Pelo viés
da imaginação e do pensamento poético, o que estava intrínseco na matéria e
subestimado pelo pragmatismo ganha potência de visibilidades. Dessa maneira,
um objeto familiar pode figurar no plano real em outra articulação com os
elementos a sua volta, diferente da lógica pragmática.
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Nesse caso, são vislumbradas para tal objeto possibilidades de novas
contexturas num sistema de referências conhecido e legitimado pelo uso geral.
Mesmo não sendo um objeto diferente ou estranho ao olhar, ele é capaz de
acender diferenças, porque acionar esse repertório num procedimento de
reconhecimento implica também sua atualização e ampliação.
Em meio a tais considerações, inscreve-se o ponto de convergência das
proposições que compõem esta tese. O interesse particular por formas singulares
de enredar as referências do plano real (em especial, o modo como signos
cotidianos são reapresentados pelo viés da imaginação poética) é o que
sensibiliza o pensamento e anima o conjunto de reflexões tecidas nas páginas a
seguir.
Essa abordagem ganha relevância na atual conjuntura em que o fluxo de
informações descontínuas substitui as grandes narrativas na tarefa de articular
relações de sentido entre o que afetou a percepção. No império dos discursos
homogêneos e efêmeros, ficou reservado nas manifestações artísticas um nicho
da criação de estranhezas, isto é, lugar privilegiado da especulação de sentidos
para as referências imediatas da realidade objetiva. Identifico aqui como
referências imediatas aqueles artefatos de ordem funcional e comum, que nos
remetem automaticamente a uma cena ou contexto social. No circuito
contemporâneo das artes, esses artefatos comuns parecem recombinados de
maneira insólita, nos desafiando articular outros nexos ou, talvez, adiar qualquer
possibilidade de articulação.
Fulgurações dessas ideias podem ser visualizadas, em certa medida, nos
arranjos engendrados por Arthur Bispo do Rosario, com objetos cotidianos
variados. Pelas imagens criadas com esse material são experienciadas situações
limites de reconhecimento e estranhamento, de equilíbrio e vertigem, o que
desperta nas coisas comuns um potencial expressivo, de modo que, em vez de
“registros da realidade”, estes arranjos são lidos aqui como exercícios de
(re)descobrir a multiplicidade e as imensidões do mundo. Aposto nos trabalhos de
Bispo porque podem estender os horizontes das reflexões anunciadas sobre a
construção de versões de realidade.
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De modo geral, retomando o mote introdutório, o que afeta a percepção
pode desencadear a releitura do acervo de linguagem, a partir do qual são
especulados e negociados sentidos. Na dimensão dessa operação de leitura,
também foi pensado o impacto produzido pelas imagens arranjadas por Arthur
Bispo do Rosario. Trata-se de composições inscritas no debate das manifestações
artísticas sob condições muito peculiares, o que exigiu da crítica um esforço
diferente na atividade de leitura e assimilação dessa nova poética. São
composições articuladas numa linguagem descompromissada com uma estética
formal, isto é, que não estão a serviço de uma teoria ou concepção artística.
Mesmo assim, a expressividade dessas imagens garante uma abordagem pelo
viés do poético.
Para administrar o impacto provocado pelas construções de Bispo, alguns
críticos buscaram semelhanças no repertório das manifestações de linguagem, o
que resultou o enquadramento de seus arranjos na tradição ocidental das
produções artístico-poéticas. Nessa prática de leitura, tramou-se uma
possibilidade de continuidade entre as imagens de Bispo e um repertório já
compartilhado pelo senso comum. Sendo assim, nesse primeiro momento, a
especulação de sentidos para o que Bispo produziu desencadeou a escolha
deliberada de “predecessores”.
Apontar semelhanças com as obras que constituem o acervo das
expressões poéticas contemporâneas, de fato, foi fundamental para que os
trabalhos realizados por Bispo do Rosario, dentro do manicômio, com material
improvisado e sem nenhuma pretensão de fazer arte, recebesse um olhar que
aposta no efeito estético de sua produção como algo maior que o sintoma de uma
patologia e mais complexo que uma habilidade artesanal. Tendo em vista o
panorama das expressões artística da segunda metade do século XX, cuja marca
foi a experiência das múltiplas possibilidades plásticas da linguagem, tornou-se
possível estruturar e desdobrar muitas questões acionadas a partir dos trabalhos
de Bispo.
Os nomes de Duchamp, Arman, Andy Warhol, Oiticica, Peter Greenay, entre
outros, aparecem inscritos no rol de uma tradição, sob a insígnia de prefaciadores
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ou articuladores de transformações na maneira de conceber e pensar as
expressões artísticas, a partir da segunda metade do século XX. Cada qual, na
intensidade de seu gesto, investiu numa linguagem mais híbrida por meio de
trabalhos de assemblages, acumulações ou de instalações com objetos do
cotidiano. O efeito dessa nova produção trouxe visibilidade a iminências poéticas
entrevistas nas coisas aparentemente desimportantes.
Com isso, ready-made, assemblages, instalações e performances
estenderam as reflexões sobre as linguagens artísticas e inspiraram tendências
firmadas na conjugação de elementos e referências diversas, tais como: “alta
cultura” com “cultura de massa”, refinamentos com banalidades, vida com arte...
Na tensão dessas combinações foram quebradas expectativas, implicando
releituras e novas envergaduras do olhar para os limites deliberados, incluindo a
distinção do que é concebido ou não como arte.
Na extensão dessa lista de artistas, sem muito esforço, foi inscrito também
o nome de Arthur Bispo do Rosario, porque o modo como seus arranjos requisitam
o olhar e dinamizam pensamentos reanima o debate a respeito da linguagem
poética. O que impressiona o olhar, inicialmente, é a dimensão poética projetada
com material tão familiar e tão imerso no cotidiano que o senso comum costuma
ignorar: canecas, pentes, colheres entre uma variedade de objetos.
A sutileza com que Bispo engendrou seu universo criativo ilumina
expressividades poéticas na forma dos bordados, dos arranjos e nas miniaturas de
utensílios recriados. Portanto, a singularidade apontada em seu trabalho não está
unicamente nos objetos que ele recolheu para compor os arranjos, tampouco na
técnica usada. Está – arrisco em dizer – na forma como nos relacionamos com
esse conjunto, pois tudo parece reclamar novas envergaduras do olhar e do
pensamento. Fala-se aqui de combinações não previstas entre signos cotidianos
para compor, ao seu modo, uma “prosa do mundo”1.
1
1
Expressão tomada por empréstimo da obra de MERLEAU-PONTY, A Prosa do Mundo, 2012, com o objetivo de fecundar pensamentos acerca da necessidade de tramar relações de continuidade entre as coisas ou acontecimento que impressionam os sentidos e compor, desse modo, uma versão do mundo. A mesma expressão aparece também em FOUCAULT, 2007, como título de um capítulo nesta linha de reflexões.
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O efeito derivado do deslocamento de objetos ou das narrativas bordadas
em lençóis e uniformes da Colônia Juliano Moreira, por exemplo, já antecipa um
jeito muito particular de aparecer em cena, isto é, de se relacionar e de pensar a
sua realidade. São índices que anunciam o limiar com outros regimes de sentido.
Aparece bordada em uma jaqueta a frase bastante significativa no trabalho de
Bispo: “No dia 22 de dezembro de 1938 eu vim”. Essa data, como reitera Bispo em
outros trabalhos, é o registro de um alumbramento originado por uma aparição
divina. Dela recebeu ordens de preparar uma apresentação do mundo, a qual
deveria ser entregue no “Dia do Juízo”. No cumprimento dessa missão, Bispo
inicia seu trabalho de catalogação, deixando entrever a multiplicidade do mundo
pragmatizado.
Entretanto, a hipótese de continuar aquela lista de artistas esboçada
anteriormente com o acréscimo do nome de Arthur Bispo do Rosario produz uma
tensão que rende para a escrita e leitura desta tese um conjunto de reflexões.
Sabe-se que Bispo, seguindo ordens divinas e na condição de interno em uma
instituição de tratamento psiquiátrico, não se apresentou nem autorizou ser tratado
como artista. A partir disso, foi instaurada uma discussão que há muito toma o
campo da arte, desde que ele foi apresentado no circuito pelo curador Frederico
Morais, em uma exposição individual na Escola de Artes Visuais – Parque Lage,
em 1989, intitulada “Registro de Minhas Passagens pela Terra”. Como ler o
repertório dos trabalhos arranjados por Bispo sem que aconteça, então, a
canonização de artista e obra?
Pretende-se no desdobramento destas inquietações repensar os valores
que estão agregados aos conceitos de arte e artista, usados para se referi a
Bispo e ao que produziu. Na leitura dos trabalhos de Bispo, é interessante notar
como ganham outras complexidades objetos e conceitos familiarizados no senso
comum.
Duas décadas depois da morte de Bispo do Rosario, sua produção continua
impulsionando o debate e fecundando pensamentos. São numerosas as
publicações de artigos em cadernos culturais de jornais e revistas, como também
as homenagens e alusões feitas por grandes agremiações carnavalescas. Sua
12
vida e suas criações também foram relembradas no filme “Senhor do Labirinto”, de
2010. Como destaque no circuito artístico de 2012, a realização da 30ª edição da
Bienal de Artes em São Paulo, na qual aparece como artista homenageado. No
campo acadêmico, aumenta o número de dissertações e teses, cujo tema versa as
composições de Bispo.
Do conjunto de reflexões a respeito das criações de Bispo, vale destacar
três importantes estudos de grande contribuição no desenvolvimento desta escrita:
o de BURROWES, 1999, O universo segundo Arthur Bispo do Rosário; outro
organizado por COUTINHO et alli, 2007, A vida ao rés-do-chão: artes de Bispo do
Rosário; e o de DANTAS, 2009, Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio. No
ano de 2012, aconteceu a reedição da biografia escrita pela jornalista Luciana
Hidalgo, Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto, cuja primeira edição fora
publicada em 1996, iluminando desde então questões a respeito do assunto.
Pelo volume de referências e pelo tipo de abordagem aos trabalhos de
Bispo, nota-se no (re)encontro com os suas criações a opção por um olhar mais
abrangente do que o tratamento (bastante comum nas últimas três décadas) que
deu destaque ao lado excêntrico de sua biografia e apostou no binômio arte-
loucura. De certo, deve-se reconhecimento a essas abordagens, por introduzirem
os arranjos de Bispo no debate das expressões artísticas. Todavia, hoje podemos
propor outras questões que participaram da inserção e da circulação de seus
trabalhos no cenário das poéticas contemporâneas.
No estágio atual do debate acerca das composições de Bispo parece estar
bem resolvido que ele praticou um gesto artístico ao articular referências da cena
social e gestar imagens da multiplicidade do mundo, apesar de não atuar como se
entende ou se espera de um artista. De fato, as imagens criadas por Bispo não
agregam respostas às demandas contemporâneas que incidem sobre a vida em
sociedade, mas são capazes de deslocar percepções convencionais para uma
reflexão oblíqua sobre os limites deliberados dessa realidade objetiva.
Os arranjos estudados figuram na escrita desta tese como operadores de
pensamentos, não pelo que querem dizer, mas porque através deles pode-se
articular, de maneiras diversas, os repertórios de leitura esquematizados, na
13
intenção de desdobrar hipóteses de sentido. Na verdade, tais arranjos dinamizam
o pensamento porque fazem calar teorias prontas e esquemas interpretativos
legitimados pela funcionalidade de apresentar um significado para obra.
Não sendo da ordem da comunicabilidade, portanto, nessas imagens
comportam negociações de sentido não convencionais. São composições que não
respondem aos esquemas prévios de leitura e, ao contrário, os surpreendem, os
ultrapassam, os transbordam. Porém, uma linguagem tão singular, particular
demais para administrar as tensões com o mundo instituído, causa
estranhamentos na opinião corrente, que é sensível a variações no
comportamento da linguagem e responde a isso com a segregação – “você não
fala como eu, portanto eu o excluo” (BARTHES, 2003, p.119).
Nos domínios da teoria psicanalítica, essa alteração aguda de
comportamento na linguagem costuma ser lida como sintoma de uma patologia.
De certo, a psicanálise oferece alternativas de leituras que estudam a
expressividade da obra e a constituição do sujeito. Todavia, a escrita desta tese
parte do interesse estudar as manifestações artísticas como uma forma de
administrar as perplexidades diante do mundo, observando nessas construções o
ganho de complexidades para signos do cotidiano percebidos como simples ou
comuns. É o que acontece nos arranjos de Bispo com o material usado: a
acumulação de objetos familiares (garrafas, canecas, colheres...) inquietam o
olhar e o pensamento.
Quanto a uma abordagem dos arranjos de Bispo pelo viés da Psicanálise,
escuso-me orientando a escrita desta Tese pelo pensamento ensaiado por
Derrida, 2009, em suas reflexões a respeito do discurso do louco investigado por
Foucault em A História da Loucura. A proposição de leitura para a poética dos
arranjos de Bispo desdobra-se apostando na ideia de que “quando, de uma
maneira geral, tentamos passar de uma linguagem patente a uma linguagem
latente, é preciso que nos asseguremos antes, com todo rigor, do sentido patente”
(DERRIDA, 2009, p.45).
Considerando que este trabalho se inscreve nos estudos da poética da
linguagem, invisto o pensamento na leitura dos arranjos elaborados por Bispo,
14
tomando como ponto de partida o efeito estético (a “linguagem patente”) derivado
da peculiaridade do seu bordado, da confecção de suportes para agregar material
diverso e do modo como articulou esse material. Propõe-se, por essa via, uma
negociação de sentidos através do estudo de recursos expressivos da linguagem
patente que, dentre os muitos, destaco os de maior impacto: o deslocamento, o
ajuntamento e a mescla de objetos, a repetição, a ordenação em forma de
listas, o efeito labiríntico, o cheio e o vazio...
Esclareça-se, então, que o movimento de escrita desta tese incide sobre a
expressão poética dos arranjos montados por Bispo. Um encontro com tais
composições requer menos explicação do que um olhar disponível para outras
experiências do ver. Batizados pelo próprio autor de “Vitrines”, essa produção,
como já foi dito, está a serviço de uma apresentação do universo humano. Por
isso, pode ser lida como uma “prosa do mundo”, enredada pela articulação
singular de matéria variada em arranjos não previsíveis.
Não foi fácil, portanto, definir a natureza deste trabalho por se tratar de um
conjunto de imagens que, embora possibilitem uma abordagem pela via do
poético, não foram compostas para figurar na dimensão artístico-poética. Resulta
daí que o próprio objeto desta pesquisa não se entrega facilmente à análise
acadêmica. Inconscientemente, deixei-me submergir pela vastidão e pela
multiplicidade de aspectos que impressionaram o olhar.
Então, o modo como fui afetado pela singularidade das composições de
Bispo não me permitiu usar como potência de trabalho as categorias de análise
bem conhecidas da tradição acadêmica nas operações de leitura. Mesmo porque,
não se trata de explicar o conjunto de suas criações por outra coisa do que elas
próprias. Nesse caso, foi requisitado e merecido um tratamento particular. Por
isso, no exercício de escrita cuidei de elaborar um repertório de análise que não
leia tais produções como linguagem interrompida e atônita, mas como expressão
da multiplicidade do mundo. O interesse por essa prosa não se refere ao fato de
ser tramada por um interno na condição de esquizofrênico-paranoico, embora,
reconheçamos que isso ajudou a projetar o nome Arthur Bispo do Rosario no
15
circuito das artes2. Porém, passadas mais de três décadas de sua aparição em
público, seus trabalhos continuam causando estranhamentos.
Esta proposição de leitura tem como objetivo específico estender os
estudos da organização e composição dos arranjos elaborados por Arthur Bispo
do Rosário e apresentar uma interpretação sobre a atribuição de sentidos
enquanto resultado da articulação dos acidentes de perspectiva, ou seja, aposta-
se na hipótese de que a colagem de sentidos resulta do esforço para forjar um
nexo entre o que impressionou a percepção, comparando-se a um exercício de
fabulação.
Penso que tais arranjos não só enriquecem um acervo de linguagem, como
potencializam mudanças iminentes no modo de conceber as manifestações de
linguagem na cena contemporânea. Então, o que importa observar é o que os
trabalhos de Bispo significaram como abertura da sensibilidade para novos
aspectos da realidade. Na operação de leitura com esses trabalhos são ampliadas
a capacidade de ver e sentir; ficam visíveis formas, contornos, texturas para os
quais estávamos cegos ou insensíveis. Por isso, invisto o pensamento no conjunto
de imagens arranjadas por Bispo como terreno fecundo à elaboração e ao
amadurecimento de questões tangentes à experiência com a linguagem poética.
Deixo aqui o convite para enveredar pelo universo poético criado por Bispo.
Isso, de certo, implicará uma atividade e uma desenvoltura particular que, nesse
caso, equivale a suspeitar da aparência imediata. Esse convite, em especial, é um
apelo à faculdade humana de inquietar-se com o mundo, a qual promove a
necessidade de especular conexões entre as coisas. Pois, fiz da escrita desta tese
um espaço reservado para tramar contexturas entre as ideias desencadeadas pela
potência poética das composições de Bispo. Dito assim, a proposta que faço se
estende a reflexões pelos horizontes da linguagem, onde nasceram os sentidos
2
2
Esse episódio renderia análises e investigações acerca do discurso do louco no cerne da sociedade, as quais teriam como importantes referências os estudos de Foucault reunidos nos títulos A Ordem do Discurso e A História da Loucura. Nesses escritos, Foucault lança luz sobre o modo como a sociedade, em diferentes momentos, dá forma a alterações do comportamento psíquico que lhes são próprias.
16
especulados para tais arranjos. Resta agora dedicar o pensamento ao universo
criado por Bispo e seguir por ele de mãos dadas com a poesia.
2. Sim, um objeto tão diversamente me solicitou...
Figura 2 Calendário Burti 2003.
17
Ilustrado com trabalhos deArthur Bispo do Rosario
Um objeto tão diversamente solicitou meus pensamentos. Ele nos é familiar
e se apresenta como de costume, sem alterações em sua evidente forma. Um
objeto inequivocamente comum, porque não “deixa a desejar”, isto é, cumpre com
sua função e, por esse motivo, não atrai desconfiança; confunde-se com tantos
outros e passa despercebido. Mas, na ocasião em que foi notado, ficaram
expostas nele sobreposições ou copresenças de sentidos: útil/inútil,
prosaico/poético, ordem/vertigem, óbvio/obtuso...
O foco de minha atenção é material facilmente reconhecido. Todavia,
desconfia-se de algo diferente na simples matéria. Ela reclama a experiência do
olhar, muitas vezes geradora de novas perspectivas. De viés, espreita-se a
dinâmica da linguagem (esse cruzamento de sentidos particulares e pessoais)
sobre as coisas já fixadas com os pesos do conceito e da função. Isso afeta a
estabilidade do objeto no esquema de leitura operado por categorias que visam
localizá-lo no plano da realidade. Visualizo tal objeto no repertório dos trabalhos
de Arthur Bispo do Rosario, onde acontecem acidentes de perspectivas sobre
evento prosaico.
O olhar que percorre os arranjos construídos por Bispo atravessa
simultaneamente instâncias da contingência, demarcadas pelo aspecto de
inacabado ou interino que fica sugerido pela combinação inusitada dos objetos
familiares. São agrupamentos de material tão necessário quanto descartável na
cena social. No suporte armado de papelão e madeira, com limites visivelmente
demarcados, chama atenção o transbordamento de algum dos elementos
apanhados. Nesse caso, a complexidade estrutural desses arranjos não agrega
valor, mas abre-se para interlocução com seu observador.
Com efeito, as imagens formadas impressionam o sentido do ver, sem
deixarem de pertencer também ao repertório de visões banalíssimas. Tudo
aparece tão evidente, mas nada faz sentido. Vertiginosamente, elementos do
cotidiano, circunscritos sob uma ordem particular, acionam o jogo furtivo de
18
sentidos ambíguos entre o familiar e o inusitado, o comum e o particular, o banal e
o impressionante.
Estas são composições onde o duplo do pensamento é solicitado,
dissolvendo contradições e paradigmas, para atender os acidentes de
perspectivas visualizados sobre as coisas. A combinação de materiais diversos
amplia possibilidades de leituras e leva o pensamento a operar fora das barreiras
do tradicionalismo, experienciando as fronteiras, os excetos, o seu outro, em
suma, os seus duplos.
Assim, chamar pelo duplo, isto é, pluralizar ao mesmo tempo sentidos e
valores, significa resguardar a aproximação com estas composições, no intuito de
garantir sua mais forte expressividade e sua maior independência. É um esforço
necessário para evitar o impasse que diminuiria a energia de exploração e o
prazer da descoberta nesta atividade de pesquisa.
Apresento nesta Tese os pensamentos tão diversamente solicitados pela
poética dos objetos expandida nos arranjos de Arthur Bispo. Nas páginas a seguir,
transcrevo meus diálogos com o objeto de estudo, minhas inquietações, em tom
socrático, inspirado nas conversas do próprio personagem Sócrates, de Paul
Valéry, em Eupalinos ou O Arquiteto, 2006, de onde recorto algumas passagens:
(...) O acaso depositou em minhas mãos o objeto do mundo mais ambíguo. E as reflexões infinitas que ele me fez fazer tanto podiam conduzir-me ao filósofo que eu fui, quanto ao artista que deixei de ser...
Fedro: Um objeto tão diversamente te solicitou?
Sócrates: Sim, um mero objeto, algo que encontrei enquanto caminhava. Deu origem a um pensamento de per si dividido entre o construir e o conhecer.
(...) Tristes testemunhos da indiferença dos destinos, ignóbeis tesouros, joguetes de uma troca tão perpétua quanto estacionária...
(...) sua forma singular deteve todos os meus pensamentos. Quem te fez? Refleti. Não te assemelhas a nada e, no entanto, não és informe.
Fedro: E de que matéria?
Sócrates: Da matéria de sua forma: matéria a dúvidas. (...) Mas quem seria o autor daquilo? Um mortal obediente a uma ideia, que com suas
19
próprias mãos persegue alvo estranho à matéria que ele ataca, raspa, corta ou junta novamente; detém-se e avalia; e separa-se enfim de sua obra, – algo lhe dizendo que ela está concluída? (...)
[VALÉRY, 2006, p. 103 – 113]De modo semelhante ao que acontece no diálogo, nos agrupamentos
montados por Bispo, como visto na figura 2, uma colher, um farol de carro, peixes
de madeira, instrumentos de pesca, peças fabricadas e envolvidas por fio azul,
mais outros “meros objetos” acionaram a dinâmica das ideias. Sim! Objetos
prosaicos também foram a causa do arrebatamento. Entre eles destaco os que
fazem alusões ao mar, para justamente lembrar o encontro de Sócrates com o seu
objeto enquanto caminha na praia.
Estes são objetos igualmente dados à duvida: muitos foram descartados do
jogo social mas reaparecem, de víeis, nos arranjos; ao mesmo tempo em que são
inteligíveis, não querem dizer nada. Como se não se contentassem em estar ali,
os objetos esperam que cada um de nós lhes dê algo que falta ou lhes empreste
outros sentidos. Na dimensão de sua incompletude desenha-se a sua potência.
Bispo se relaciona com objetos (esses pequenos signos da vida social),
administrando ao seu modo os “discursos de verdade” instituídos (FOUCAULT,
1979). Ele não renega o mundo, mas o transcende. Tal percepção move a
curiosidade a conferir nos trabalhos de Bispo operadores oblíquos que acionam
hipóteses de leitura que fazem o objeto transcender o circuito pragmático e figurar
como entidade estética.
A dupla condição dos objetos colocou algumas interrogações e agenciou a
dramatização de possíveis diálogos. Neste estudo das composições de Bispo, o
encadeamento de pensamentos é operado pela pergunta: “como ler o que ele
produziu?” ou “como ler o que foi atestado como ilegível?”. Pois, na combinação
não presumida de artigos cotidianos, ficam expostas, ao mesmo tempo, a
fragilidade dos gêneros de classificação e as multiplicidades do mundo. Segue por
essa via a proposição de uma leitura poética dos arranjos de Bispo: como esse
conjunto de imagens faz falar a potencialidade do mundo?
20
3. Eu preciso destas palavras...
Na vontade de aproximação do objeto contemplado, sem recorrer à
adjetivação ou explicação de efeitos já percebidos, ganha movimento a escrita
desta tese que propõe abordar os arranjos de Arthur Bispo do Rosario como
manifestação de linguagem. Suas imagens são manipulações de fragmentos do
mundo, objetos de cenas díspares acumulados num mesmo suporte, que acabam
21
Figura 3 Arthur Bispo do RosarioEstandarte. Eu preciso destas palavras - Escrita (frente), s/ data.
interpretadas como narrativas obtusas, apagadas ou inventadas. Tudo parece
significar outra coisa e, ao mesmo tempo, não passa daquilo que está diante dos
olhos. Nesse intervalo de flutuação de sentidos, esbarro no principal ponto de
tensão da pesquisa: enveredar por manifestações de linguagem arredias ao
regime da monossemia.
Entendo que categorias de análise (tais como autor, obra, estrutura,
significado...) são úteis para explicar relações observadas na composição de
obras consagradas, apontando-lhes uma causa ou um princípio. Porém, aquelas
acionadas convencionalmente para inscrever todo tipo de obra no percurso das
tradições artísticas ficam inoperantes frente ao inusitado das composições de
Bispo. Então, diante dessa inoperância, torna-se necessário e inevitável fabricar
caminhos alternativos por onde deve fluir o pensamento até tocar as imagens que
impressionaram o olhar.
Na tarefa de interpretar estas imagens como manifestação de linguagem,
isto é, apresentá-las como poesia, apostei no poder expressivo das coisas que
Bispo articulou para montá-las. Transito, enquanto especulo esta hipótese, na
dimensão da potencialidade instaurada nos arranjos inusitados. Isso implica dizer
que minha escrita enfrenta as composições de Bispo na esfera do possível e não
no lugar-comum dos predicados que lhes são atribuídos. Nessa investida,
portanto, o conjunto de imagens contemplado parece reclamar um vocabulário
poético próprio. Atendendo às circunstâncias, o que apresento pode ser lido
também como inventário dessa experiência.
Assinalo meu interesse particular pelos arranjos que tiveram origem na
combinação singular de objetos – esses ajuntamentos denominados por Bispo de
“vitrines” e posteriormente classificados como “assemblages” na catalogação do
acervo. Gosto de pensar que o impacto visual projetado por tais composições
afeta, de algum modo, as expectativas convencionais de leitura limitadas pelo
modelo pragmático da vida social. A partir daí, sinto ganhar consistência outros
pontos de vista que não estavam credenciados no esquema de reconhecimento
que busca por semelhanças entre as coisas.
22
A percepção pelo órgão da visão é tanto acionada quanto desafiada pelas
imagens arranjadas por Bispo. Elas deixam espreitar o que o olhar programado
ainda não alcançou ou negligenciou. Isso está dito no modo como ele dá forma
aos seus trabalhos e na maneira como se referia aos mesmos – os nomes “vitrine”
e “bandeiras” (este catalogado depois como estandartes) sugerem a entrada no
campo semântico do ver. No primeiro olhar, o que nos impressiona na composição
das peças é a reunião de objetos familiares, de uso doméstico ou do cotidiano
manicomial. Porém, a surpresa maior talvez aconteça ao constatar que o trabalho
com material recolhido inaugura um evento em si mesmo, deixando sobressair o
que escapa à norma e aos códigos. O efeito estético das composições de Bispo
reconduz o olhar para a própria coisa; ou seja, devolve o objeto à cena sem
subterfúgios da função ou do significado.
Inevitavelmente, na presença dessas construções, são acionados outros
movimentos do olhar e outras dinâmicas da linguagem. E, aceitando as condições
de envolvimento, invisto em uma escrita ensaística, fecundada pela poesia desses
arranjos, como forma possível de articular diálogos entre pensamentos afins, sem
fazer da experiência de Bispo uma ilustração de teorias, na intenção de ratificá-las
ou revê-las.
No exercício dessa escrita, foram evitadas as designações correntes que
fazem tudo parecer bem conhecido, para sair em busca de uma expressão que
aponte sutilmente o gesto singular. Assim, fica estabelecido um plano de leituras
que se esquiva de fazer uma análise psicanalítica, sem pretender também uma
crítica de arte. Nessa estratégia de aproximação com as composições de Bispo,
compartilho um gosto em comum pela redescoberta de perspectivas de mundo
através das coisas familiares. À maneira de Bispo do Rosario, assumo a escolha
deliberada das referências com as quais elaborei o meu inventário de impressões
do universo (re)apresentado por ele.
Bispo apresenta em suas composições visualidades de um mundo familiar
e ao mesmo tempo onírico, em cujas referências ao plano do real manifesta-se
sorrateiramente algum elemento perturbador. Ele dá aos objetos obsoletos e
fadados ao esquecimento um destino mais generoso do que a lixeira ou ferro-
23
velho, para onde iriam garrafas práticas, latas, carcaça de relógio, pedaço de cano
e todo tipo de coisas sem importância. Aparecem também materiais deslocados de
uma cadeia produtiva e articulados numa estância de ordem particular, como se vê
nos arranjos com sapatos, com talheres, com canecas, com pentes, com
chapéus... Talvez se possa extrair daí a dimensão poética dos trabalhos de Bispo:
perceber na fratura da funcionalidade o vigor para ainda produzir sentidos.
Buscar referências do mundo e arranjá-las em formas consistentes, no ideal
de apresentar o universo inteiro, comove o pensamento a levar tais gestos até o
plano da expressão poética, cujas fronteiras aparecem esboçadas aqui pelo verso
de Manoel de Barros: “As coisas sem importância são bens de poesia” (2001,
p.15). Ingresso por essa dimensão da linguagem de mãos dadas com a escrita
poético-filosófica praticada por Barthes, Bachelard, Blanchot, Calvino, Deleuze,
Foucault e outros expoentes da experiência com o evento artístico-literário.
Como foi dito, para articular um saber plural do mundo, Bispo apostou em
uma linguagem diversa, fazendo combinações particulares, usando recursos
próprios e surpreendendo a lógica. Consequentemente, o impacto visual causado
por sua obra deixa inoperantes as categorias de análise usadas tradicionalmente
para se referir aos trabalhos de linguagem. Aventurar-se pelas composições de
Arthur Bispo do Rosario exige, então, rever algumas categorias e inventar outras,
de modo a apresentar chaves de leitura que acionem o pensamento sobre o
repertório das imagens escolhidas. Sendo assim, a escrita desta Tese é
dinamizada por exercícios de aproximação com a poética de Bispo, forjando
categorias tais como: o deslocamento e a desutilidade; a apresentação e os
acidentes de perspectivas; o labirinto; a etc; a lista, o colecionador e o
objeto; o intervalo e o autor.
Estas são palavras escritas das quais eu preciso para me aproximar da
poética de Bispo; são nomes que figuram no topo da página, em tipografia
diferenciada, na intenção de apontar perspectivas por onde pode vir a se deslocar
o pensamento. Não são, portanto, apenas títulos. Faço uso delas para também
inventar linhas de fuga e, assim, instaurar uma territorialidade, um espaço de
24
reflexão, sem precisar hierarquizar ideias, a fim de vislumbrar a condição de
multiplicidade.
Nesse horizonte, tomo por objeto do pensamento construções de linguagem
que flertam com a multiplicidade do real e acenam para o devir que, segundo
Deleuze, se deixa entrever no extravazamento da matéria conhecida. Como efeito,
tais construções lançam suspeitas sobre o mundo percebido em sua gratuidade —
dito assim porque, em princípio, não é exigido nenhum esforço intelectual para
fazer parte dele. Mas, na apresentação do mundo segundo Bispo do Rosario, o
cruzamento de diferentes perspectivas ganha visibilidade.
Por assim dizer, celebro no domínio destas obras a potência para
engendrar outras relações de sentido para o mundo e, assim, acionar
conhecimentos. Dediquei pensamento e sensibilidade na escrita desta Tese,
buscando melhor abordagem sobre o modo como Bispo devolveu movimento às
coisas banalizadas e inaugurou com elas, sem pedir licença, acidentes de
perspectivas. Considerei que, nesse caso, era preciso então criar um novo olhar,
inventar outras falas, ensaiar outras escritas, a fim de conjugar o pensamento
limítrofe que transita pelos trabalhos de Bispo.
25
4. Desterritorialidades
O deslocamento para fora do contexto e o ajuntamento insólito de objetos
familiares, sem oferecer qualquer previsibilidade, aparecem como índices de outro
regime de sentido nas “vitrines” armadas por Bispo do Rosário. Nessas
composições, os elementos dispostos ultrapassam significações e funções
costumeiras, interferindo no circuito do pensamento, de modo a desviá-lo das
margens de segurança traçadas com o uso de categorias e gêneros de
classificação. Configura-se, a partir daí, outro espaço de interação com os signos
do cotidiano, que toma forma na tensão entre deslocamentos e ajuntamentos. De
um modo geral, apontam-se aí movimentos que sugerem efeitos divergentes entre
si, mas nestes arranjos operam juntos como princípio fundador de estâncias do
pensamento.
Os elementos relacionados nas composições de Bispo são facilmente
reconhecidos. Por isso, na presença deles, cenas inteiras são reconstituídas
imaginariamente sem que nenhuma consiga fixar-se. Tal percepção rende aos
trabalhos de Bispo a insígnia de atopos, denotando um evento de originalidade
imprevista, estranho às nomenclaturas de classificação. De certo, copos,
embalagens plásticas, estruturas em metal, pedaços de madeira e tantos outros
objetos deslocados afetam a operação do esquema de analogias. Como já foi dito,
o lugar da originalidade não está no material usado nem no olhar do artífice, mas
na própria relação que se estabelece com os arranjos montados.
Por essa via, os arranjos engendrados por Bispo coincidem com a
denominação de “não-lugar” aproveitada para elucidar zonas de interseções onde
incidem múltiplas perspectivas e desdobramentos de sentidos. Esse é um conceito
26
elaborado por Marc Augé,1994 , antropólogo francês, para designar um espaço de
passagem incapaz de dar contorno a qualquer tipo de identidade. Refere-se a
todos os dispositivos e métodos que visam à circulação de pessoas: rodovias,
aeroportos, estações de embarque... Por aí transitam percepções da memória,
emoções, raciocínios e outras expressões da subjetividade, mas nenhuma
permanece.
Tomo emprestado o conceito de Augé, tendo em vista a dimensão das
possibilidades de leituras de mundo articuladas nos agrupamentos de Bispo. Ao
desambientar objetos, Bispo estabelece entre eles novas relações, deixando
entrever o universo humano demarcado por esquemas de analogias, sistemas de
crenças e todo tipo de fabulações para um nexo possível.
Tal percepção vem à tona porque foi a potência criativa dos encontros entre
os objetos deslocados que animou o esquadrinhamento das composições de
Bispo. O olhar é tomado por inquietação desorientadora ao perceber interferências
na ordem estabelecida e constatar que transita em áreas instáveis de significação.
Nesses arranjos, materiais desambientados ganham novos enquadramentos em
manifestações enfáticas e concomitantes. São, de fato, construções dadas ao
entrecruzamento de referências ou ao exercício de acidentes de perspectivas.
Este parece ser o pacto estético firmado no arranjo de cesto, moldura, garrafa,
copos, vasilhames e outros elementos da cena social, a ser visto na figura 4.
É importante enfatizar que, na proposição de leitura para os arranjos
montados por Bispo, percebeu-se no material deslocado um ponto de articulação
onde foi possível ordenar as ideias derivadas do impacto visual com estas
imagens. Por isso, o termo “deslocamento” foi eleito como uma das principais
categorias de análise, o que demanda e justifica retomá-lo em outras etapas da
tese, com objetivo de explorar aspectos poéticos dessa prosa do mundo.
Os planos de significação recriados pela disposição do material incidem nos
limites entre o extraordinário e o banal, a arte e a não-arte, a ordem e a vertigem...
Sendo assim, não reconhecem demarcação franqueada pela estrutura
convencional de composição, cuja análise identifica sem demora a hierarquia, a
linearidade e a sequência metódica. Sendo o caso, tais planos de significação
27
atraem pensamentos, não porque se enquadram bem no esquema de legibilidade,
mas por inaugurarem prazerosamente instantes de contemplação. Semelhante
efeito é percebido em construções de dimensão estética concebidas
intensionalmente no âmbito das artes.
Figura 4. Arthur Bispo do Rosario Chaleira e Urinol / Vagão de espera. s/ data.
Na complexidade desses arranjos são esboçadas outras territorialidades
projetadas na interrupção do sistema de analogias, como se fossem lacunas
abertas fatalmente nessa estrutura. Aí, o fluxo de pensamentos não agencia
reencontros ou simples oposições classificatórias na leitura do objeto, mas põe em
destaque transbordamentos, deslocamentos, superposições, copresenças. Não
poderia ser por outra abordagem, pois o deslocamento de materiais demanda a
reconstrução das formas de perceber o cotidiano e descobrir nele outros lugares
do advento poético. A escrita desta tese envereda nestas (des)territorialidades
onde são flagradas as potências poéticas do mundo.
28
4.1 Transbordamentos do lugar-comum
O que traz o nome Arthur Bispo do Rosario à Faculdade de Letras?
Escolher um conjunto de imagens formadas pela acumulação de materiais
desambientados, na intenção de desdobrar algumas questões recorrentes ou afins
com os estudos desenvolvidos no programa de Ciência da Literatura, implica
trazer também ao debate reflexões sobre os espaços instituídos para produção de
conhecimento.
Como se sabe, há várias maneiras de conferir sentido para o que afeta
nossa percepção e em cada uma delas são deliberados objetivos e importâncias
pertinentes a um sistema de opiniões. Em vista disso, são armados esquemas de
pensamentos para administrar as perplexidades com o mundo, numa arrumação
didática tal qual identificada nas disciplinas, nas doutrinas, nas ciências... Mas,
quando de um mesmo evento são reclamadas diferentes perspectivas, os
horizontes rapidamente são redesenhados e ensaiados possíveis
enquadramentos para agregar o fenômeno que causou variação no olhar,
integrando-o a um nexo previsto. De fato, nossa sociedade é sensível a variações
inesperadas de perspectivas, temendo o risco do desencadeamento ou da fratura
na sequência de ideias, característico do discurso afetado e delirante.
Aproximar as imagens de Bispo das práticas discursivas privilegiadas pela
Ciência da Literatura significa ampliar o repertório das interpretações que
margeiam tal produção, cujos pontos de tensão coincidiam quase sempre na
análise psicanalítica de seus trabalhos, em associação com imagens do
inconsciente; era comum apostar no binômio arte-loucura pela caracterização
destas composições, abreviando o debate provocado pelo efeito estético. São
hipóteses de leitura que apontam entradas para o universo (re)construído por
Bispo, mas não privilegiam reflexões sobre seu trabalho de linguagem.
29
Bispo investiu num espaço possível para gestar um mundo e apresentá-lo
ao Criador. Porém, na formação de seus arranjos, a mobilização de referências da
cena social implica a abertura de outras estâncias de sentido. Nessa vontade de
interlocução (de apresentar o mundo) é que tais arranjos são interpretados como
manifestações de linguagem. Surge daí a oportunidade de repensar o lugar dos
trabalhos de Arthur Bispo do Rosario e as fronteiras tênues e vacilantes dos
estudos poéticos que, assim parece, recebe bem o debate proposto nesta
pesquisa.
Ao dedicar atenção para o que via, Bispo estendeu a experiência com o real
além das relações de função e de significado, atravessando o lugar-comum dos
paradigmas. Esse tipo de abordagem com as coisas tende a ser interpretado em
nossa cultura sob o estigma do misticismo ou da loucura. Mas, nos horizontes
dessa pesquisa, à luz da crítica semiológica escrita por Roland Barthes, está o
interesse de estudar o modo particular como Bispo dá forma a sua versão de
mundo, interrompendo os “discursos de verdades” audíveis nas origens do
argumento da função ou do valor impresso sobre as coisas.
Na missão de apresentar o mundo, Bispo articulou uma linguagem entre o
óbvio e o obtuso, prefaciando, como efeito, as imensidões dessa existência, cujos
limites aparecem forçosamente demarcados pelas três dimensões, pelos cinco
sentidos e pela lógica cartesiana. No contexto de sua produção, coexistem
diferentes movimentos de linguagem identificados nas atividades de reunir,
enumerar, arquivar, colecionar e apresentar referências da cena social. Contudo,
esses movimentos de linguagem não se assentam no pensamento como
atividades que visam retratar o real; nesse caso acontece o contrário: o real das
coisas costuma ser recebido com desconfiança e tomado como um dos pontos de
tensão da obra.
Descritos assim, seus trabalhos parecem recolocar de maneira nova uma
expressão filosófica da condição humana: sob a rubrica de uma individualidade,
construir planos de linguagem, onde as mudanças de perspectivas são possíveis e
até desejáveis, com o objetivo de imprimir neles sentidos para as experiências de
mundo.
30
Reservo para mais adiante alternativas de ilustrar e aprofundar estas
observações por meio das figuras da lista, da coleção e do arquivo, abordadas
aqui como expoentes do modo peculiar e enviesado de administrar os “discursos
de verdade” instituídos. São manifestações de linguagem que, por meio da
escolha deliberada dos elementos constituintes, dão o testemunho do impacto
com a realidade imediata, compondo também o esboço de uma prosa do mundo.
Combino dois conceitos introduzidos por Foucault, 2007, nos estudos das
relações de poder que operam na ordenação do mundo, tendo em vista que um
dos pontos de articulação nesta tese é o impacto destes arranjos sobre os limites
presumidos da realidade. Foucault teoriza a existência de uma força subjacente
responsável por forjar unidades e, assim, armar um esquema que configura um
“modelo de realidade” aceito e compartilhado pelo senso comum. Para isso, é
imperativo fabricar nesse sistema “discursos de verdades” que simulem e
argumentem uma ordem natural das coisas, ou pelo menos, façam parecer assim.
Ao serem ditadas relações de continuidade, ganha forma uma prosa do mundo na
qual se desenha uma territorialidade para o trânsito das subjetividades, deixando
prever, por conseguinte, limites para condutas e pensamentos.
Na esfera do utilitário, o objeto é considerado cheio, pleno, denso ou
positivado por uma função ou significado. É o peso necessário para fixá-lo em
uma estrutura. Contudo, sobre o material desambientado usado na construção dos
arranjos de Bispo não pesa mais a obrigação de significar ou exercer uma função.
Os mesmos objetos cativos de uma ordem operam, nesses arranjos, o desvio e o
transbordamento de ideias. Como efeito da suspensão ou interrupção da ordem
pragmática, tais imagens conseguem expressar leveza (sugerir uma ambiência
mnemônica e imagística).
Na análise que fazemos da matéria que compõe os arranjos de Bispo, as
grandezas de peso e volume, relacionando qualidades de estaticidade e
densidade, logo perdem atuação quando são percebidos seus excetos. Desse
modo, na recusa da visão direta (mas não na recusa de sua realidade) vem à tona
a expressividade das coisas. Pois, somente na suspensão da funcionalidade,
31
notando as nuances das formas e das cores pode-se conferir leveza a um
conjunto de garrafas velhas.
Figura 5. Arthur Bispo do Rosario Garrafas, s/data.
Diante disso, reitero que o pensamento articulado nesta Tese foi antes
desencadeado pelo impacto visual dos arranjos em questão. E, impressionado
pela complexidade destes trabalhos, inscrevi o nome de Arthur Bispo do Rosario
entre os armadores da experiência poética, reverenciados pelos exercícios de
“transver” o mundo. Refiro-me à atividade do poeta, do artista, do colecionador, do
bricoleur, do louco, todas lembradas por forçar os limites da facticidade do real e,
a partir daí, envergar outras maneiras de atribuir sentidos ou transcendê-los.
No contexto das considerações apresentadas, confirma-se que o diálogo
com as composições de Bispo rende boas ideias para atualizar o debate acerca
da linguagem poética, alegorizada na fabulação de perspectivas que interrompem
32
fatalmente a noção de familiar e de prosaico decalcada nos objetos. Vale destacar
que não é o caso de iluminar mais um ponto de vista a ser acrescentado ao
repertório de impressões de mundo. Em vez disso, tais reflexões fazem pensar a
multiplicidade de perspectivas incidindo sobre um mesmo alvo.
De um modo geral, as imagens de Bispo são lembradas por renunciarem a
lógica cartesiana que ordena o mundo por meio da aproximação de coisas
dispersas, inscrevendo-as em categorias de sentido e de função. Como efeito,
construções que não podem ser explicadas pelo método cartesiano causam
impacto no sistema de reconhecimento, o qual opera encadeamentos simbólicos
entre as referências da cena cotidiana, armando “dispositivos”3 por onde
transcorre o pensamento lógico.
A armação de suas composições não é cativa ao paralelismo que
condiciona a colocação do próximo termo, prevendo assim um sentido global. Na
obediência do paradigma, o acréscimo de um termo numa estrutura qualquer fica
sempre restrito ao seu antecessor, de modo que se instala uma sequência. Nesse
caso, a previsibilidade determina a abertura de espaços a serem preenchidos e
transforma-se, por essa razão, em categoria estrutural.
Mas, nas “vitrines” de Bispo, após a fixação de um objeto não há como
prevê o seguinte. Numa montagem, avista-se uma miniatura de crânio em plástico,
oito velas, saboneteira, dobradiça de porta, uma colher e diversos outros objetos.
Em outra composição, uma extensa seção só de colheres. Nelas fica flagrante a
existência de um elo obtuso entre os objetos e também a inclinação do sujeito
para articular referências de mundo, com a finalidade de administrar pensamentos,
inquietações, sensações e tantas outras experiências.
Por analogia, na dimensão das imagens abordadas neste estudo, identifica-
se uma antiestrutura: um arranjo de objetos sobre o qual não é possível
determinar uma categoria estrutural de organização; devido a isso, em vez de
3
3
Termo introduzido por Foucault e expandido por Agamben, no ensaio O que é um dispositivo?, para uma compreensão dos mecanismos políticos contemporâneos. Em AGAMBEN, 2010, p.40, é considerado dispositivo “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”.
33
concentrar ideias, acontece a dispersão delas. Dada a composição dessas
imagens, fica comprometida a instalação do nexo que tudo agrega e dita relações
de proximidade, semelhança ou conveniência. Consequentemente, não há como
armar nelas um circuito de operações que visam positivar seus efeitos e imprimir-
lhes um sentido unilateral. O universo de suas criações escapa de ser abreviado
em um esquema de reconhecimento onde tudo parece bem familiar.
Pela maneira como aparecem reunidos objetos e outras referências de
mundo nos arranjos de Bispo, sem a preocupação de aderir às categorias
estruturais de início-meio-fim, por exemplo, aposto na definição de “antiestrutura”,
que voltará ao debate sob o conceito de rizoma4, para mover sobre eles minhas
conjecturas. São trabalhos que carregam a expressão de um pensamento íntimo
demais para ficarem circunscritos ao lugar comum de categorias estruturais. Os
ajuntamentos, como a série de chapéus, de chinelos, de nomes que se iniciam por
uma mesma letra, por exemplo, não têm outra função senão a de interagir e
inscrever-se no mundo (no seu próprio, talvez).
4.2. Deslocamentos e ressignificações
Em nosso sistema de pensamento, analisado por Foucault no ensaio “A
prosa do mundo” (FOUCAULT, 2007a), o emparelhamento das coisas dispersas é
condição para o funcionamento de uma lógica ou um nexo forjado para administrar
o impacto com as complexidades do real. Nessa descrição, entende-se porque
somos tão sensíveis a qualquer modificação ou interferência na vasta sintaxe do
mundo. Isso talvez explique o impacto dos trabalhos de Bispo nos esquemas de
4
4
Uma das chaves de pensamento que pego emprestada de DELEUZE & GUATTARI, 1996, a qual será acionada mais adiante.
34
leitura tradicionais. Nas “vitrines” que ele construiu, a desambientação dos objetos
implica novos regimes de sentido e desencadeia outros percursos de pensamento.
No entanto, para cumprir o objetivo desta escrita, é necessário planejar
caminhos metodológicos a fim de evitar o desencadeamento de ideias ou um
comportamento ensimesmado que precipitaria conclusões e abreviaria o percurso.
Por esse motivo, conjugo as reflexões articuladas neste trabalho com a crítica
semiológica dos fenômenos de linguagem. Ela atualiza o debate a respeito da
elaboração de hipóteses de sentidos, sem negligenciar a interação recíproca entre
leitor-expectador e obra.
Trata-se, por assim dizer, de uma crítica dos fenômenos de linguagem que
encerra com a especulação de uma relação unilateral entre os constituintes da
leitura (leitor/ expectador obra) e investe o pensamento numa dinâmica
interativa, a ser dita: ao acionarmos as engrenagens do texto para produzir
sentidos, o resultado dessa ação incide na atualização das expectativas habituais
de funcionamento do repertório de linguagens.
À influência dos escritos de Zumthor, 2007, interrogações direcionadas às
manifestações de linguagem recebidas como poética são retomadas para
desdobrar reflexões a respeito “Vitrines” montadas por Bispo: o que de fato as
distinguem de outras linguagens? Quais os pontos de articulação de sentido?
Como são acionados? Esclareça-se que essas interrogações em nada se
identificam com qualquer intenção de perseguir uma estrutura objetiva imanente
nas composições de Bispo do Rosario. Seguir nessa direção implicaria descartar
do debate os seus arranjos, uma vez que neles não operam categorias estruturais
tais como um tema figurativo, uma sequência previsível ou um método cartesiano.
Tudo que se diz sobre um ato de linguagem (sua estrutura, significados,
efeitos...), na verdade, é derivado da conjugação de referências circunscritas ao
instante da observação; o que faz da estrutura imanente uma ilusão, um improviso
que serviu ao funcionamento de modelos hermenêuticos. Portanto, nesse debate,
o objetivo seria projetar a estrutura da experiência com os arranjos de Bispo numa
poética da linguagem, em vez de tentar descobrir uma estrutura objetiva,
visualizada em qualquer circunstância, invariavelmente.
35
Por exemplo, uma construção de linguagem pode não ser recebida como
poética no conjunto de pensamentos que delineiam os horizontes estético-
literários na ocasião de sua realização, mas posteriormente, na dinâmica da
atualização de ideias e da ruptura de paradigmas, a obra não é a mesma que foi
lida outrora. Nela, estão informações que conseguimos articular naquele instante.
Uma nova conjuntura, e novas articulações semânticas desencadeiam outras
sensações, que alteram as conexões com o mundo. Então, o que se diz da
estrutura, o sentido que damos ao seu funcionamento, não adere ao conceito de
imutável ou inalterável.
Esse conjunto de reflexões ganha maior relevância quando lembramos as
composições de Arthur Bispo do Rosario, que nunca requisitou para seus
trabalhos o emblema de arte, mas é citado no cenário das artes como expoente da
estética pós-moderna no Brasil, com reconhecimento internacional que garantiu
exposições5 de sua obra em outros países. O inusitado dessa situação antecipa
um questionamento: que referências acionam nosso sistema cognitivo-perceptivo
e relacionam o conjunto de suas criações com as concepções de arte, no final do
século XX?
Nos arranjos estudados poderia ser identificada uma alusão à Babel
contemporânea de circuitos congestionados de informações ou, talvez, estender
uma crítica ao acúmulo de coisas tão necessárias quanto descartáveis ao mesmo
tempo. Alguns aspectos desses arranjos também coincidem com a produção
artística em vigor, como o deslocamento de artefatos do cotidiano; o intervalo e
falta de nexo entre os elementos articulados; a conjugação de referências diversas
e efeito labiríntico... Tudo isso convoca o leitor-espectador a um exercício de
linguagem para operar sentidos ao que impressionou seu olhar.
Todavia, na escrita desse trabalho, a conjugação de pensamentos não visa
definir, mas ampliar as dimensões de questionamentos, a fim de investigar os
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46ª Bienal de Veneza, Veneza, 1995. Centro Cultural Arte Contemporáneo, Cidade do México, 1997. Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York, 2001. Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 2003. Museu de Arte Moderna em Dublim, Dublim, 2006. Whitechapel Gallery, Londres, 2006. Fundacion La Caixa, Madri, 2006. Oriel Mostyn Gallery, Pais de Gales, 2006-2007. 30ª Bienal Internacional de São Paulo, 2012.
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motivos que nos levam a interrogar esta ou aquela manifestação de linguagem.
(No verbo “interrogar” insinua-se a violência de um interrogatório – método usado
para extrair uma verdade – mas ele também entrega a confissão de um encanto,
uma atração por algo misteriosamente sedutor: o texto, o discurso...).
Nesse caso, os arranjos de Bispo postulam o pré-texto de um debate
acerca do funcionamento da própria linguagem, atestando de modo mais
contundente o interesse de conhecer os limites, de enveredar pelas margens
tracejadas, num movimento de excentricidade do sentido. Aposto aqui no jogo
semântico desencadeado pela palavra “excêntrico”: o extravagante, o não-
convencional, a contingência, o que está fora do centro, a fatalidade do bom-
senso, para elucidar o efeito de um conjunto de imagens que se deixam
atravessar pelos outros da linguagem – numa expressão da heterologia, da co-
presença, da rede discursiva...
Nas conotações do excêntrico, flagramos o impulso que dispersa os pontos
de vista hegemônicos (centrais), os hábitos, o bom-senso, e nos leva a circular
pelos perímetros da linguagem, para vislumbrar a diferença, o heterogêneo,
inevitavelmente. Então, a atividade excêntrica de construções de linguagem tem
como efeito desarmar o “discurso de verdade”6 (FOUCAULT, 2003) por meio da
dispersão, do descentramento, onde fica exposto o artifício da coesão que
determina a relação entre as partes.
Obliquamente, nos arranjos de Bispo ressoam vozes (a do sujeito da
enunciação e suas lembranças, a das coisas banalizadas pelo uso, a da
instituição, a voz do leitor-observador...) que não se pronunciam em nome das leis
de organização discursiva. Ao contrário, elas se antecipam ao código de conduta
instalado sobre as coisas – um ultraje para o sistema de comunicação. Ser
reconhecido é o que desejaria qualquer signo, porém os objetos-signo de Bispo
conseguem driblar rapidamente esse sistema e nos atinge por outro viés.
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Expressão introduzida nos estudos de Foucault, publicados no livro Microfísica do Poder, 1979. Nela está contida a teoria dos tipos de discurso que a sociedade acolhe e usa como verdadeiros, sob os quais transitam silenciosamente o controle, o regramento, a autoridade... Esses mesmos discursos servem como dispositivos a serviço do poder.
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A noção de centro está associada igualmente à noção de princípio dinâmico
da linguagem, onde se conjugam todas e quaisquer possibilidades de contextura.
Disso, imagina-se que no cruzamento de analogias e dos “discursos de verdade”
deve encontrar o centro, o ponto de convergência das forças que sustentam a
unidade de sentidos. O centro coincidiria, então, com o paradigma: aquilo que
congrega ou direciona sentidos. Isso alimenta a crença de que pelos elementos de
um arranjo inusitado também pode ser recuperado o centro.
No caso dos agrupamentos de Bispo, o centro não pode ser facilmente
traçado ou até mesmo nem existir. Composições como estas, acusadas de
inusitadas ou excêntricas, animam o exercício da metalinguagem, inclinando o
pensamento aos contornos da linguagem, especulando hipóteses de sentidos,
possíveis, mas não previstos pela lógica que agrega nosso sistema de
comunicação.
É forçoso demais eleger e decalcar um paradigma, mesmo porque, não faz
parte das proposições cogitadas para os arranjos de Bispo que resultaram da
combinação insólita de material cotidiano. Nestes arranjos, como podemos ver a
seguir na figura 6, conjugam-se objetos que Bispo recolheu da cena social,
instrumentos e ferramentas manuseados no ambiente doméstico (colher, ralo de
pia, abridor de garrafa, chaveiro), outros que ele mesmo confeccionou como as
placas de logradouros envolvidas por fia azul e o funil de plástico improvisado com
um corte no frasco de soro fisiológico; soma-se ainda uma série de peças de
metal, prato de plástico... “tudo material existente na terra dos homens” (apud
HIDALGO, 1996, p.139), já anunciava Bispo.
De fato, dedico atenção nesta Tese à forma como Bispo trouxe à tona, em
suas imagens, as multiplicidades do mundo objetivo. O repertório de seus
trabalhos dispõe de imagens que potencializam ou envenenam o pensamento
sobre os limites deliberados. Por isso, não cabe orquestrar paradigmas nestas
composições. Fico afetado por uma inquietação maior, à qual dedico o raciocínio:
os trabalhos de Bispo fazem o pensamento mover-se em que sentido?
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Figura 6. Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Sem título.
Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
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Nas criações de Bispo, o deslocamento, a despragmatização e o rearranjo
de objetos familiares deixam entrever fulgurações poéticas sobre material
prosaico. Estes são gestos que liberam a trava da produção de sentido, tornando
mais estreita a relação entre leitor/espectador e obra. Isso nos leva a pensar a
linguagem poética como um evento que (re)inaugura novos pontos de encontros,
lugares reservados a uma maior intimidade, onde o leitor/espectador reconhece
com satisfação sua participação ativa na construção de significados.
Aponta-se no percurso dos estudos literários diferentes percepções a
respeito do conceito de poesia, historicamente demarcadas pelos seus modos de
concretização. Aqui, as ideias desencadeadas por esse conceito passam pelo
princípio de ser algo que se torna sensível pelo trabalho estético com a linguagem,
desarmando a trava da produção de sentidos.
Nessas questões sobre as imagens de mundo, a origem da poesia coincide
com a origem da própria linguagem articulada por Bispo na tarefa de apresentar o
universo humano. Os arranjos deixam ver iminências poéticas em objetos
prosaicos.
Assim, diante dos arranjos montados com objetos comuns, em vez de
perguntar qual evento faz aparecer essa potência da linguagem, mais valeria
perguntar quando a linguagem cotidiana deixou de ser vista como poética. Ou
ainda, tais arranjos nos faz perguntar qual linguagem não é poética. De fato, há
uma vontade de linguagem (de dizer, de interagir ou reagir) diante do
acontecimento do mundo, tal qual ocorre com as imagens de ABR. Falo aqui da
inclinação e da necessidade de conferir sentido ao que nos impressiona a
percepção.
Especulo que, ao reconhecer o investimento de sua sensibilidade, o leitor
penetra e se envolve nos arranjos de linguagem – inventa-se, por assim dizer, um
local onde se inscreve um “eu”. Nisso, há um prazer que, assim acredito, não pode
ser satisfeito em outras condições. Digo isso, inspirado na experiência de Arthur
Bispo do Rosario que inventou nos seus trabalhos um espaço para a mise-en-
scène de uma primeira pessoa, que seria a antítese do lugar comum, um palco
para a representação performática de um modo dizer “eu”.
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5. A Obra e a (re)invenção de Arthur Bispo do Rosario
Figura 7. Arthur Bispo do Rosario Fardão. Eu vi Cristo.
Fluem há tempo os pensamentos aqui arranjados, compondo a estrutura
desse texto que se realiza como desdobramento de inquietações estendidas nos
horizontes dos estudos poéticos da linguagem. Ocorre na escrita desta tese de
doutorado a confluência de reflexões derivadas do interesse particular de estudar
as articulações de sentidos que acontecem a partir de relacionamentos outros com
os “discursos de verdade”. Pois, embora outorgados como oficiais, existem
alternativas para interagir com esses discursos que não estão previstas nos
repertórios sociais. Digo isso pensando nas manifestações de linguagem cujos
efeitos emperram, ainda que momentaneamente, o controle, o regramento, a
autoridade perpassada pelas verdades instituídas.
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Sob um olhar particular, isso é flagrante nas imagens compostas por Arthur
Bispo do Rosario, que converteu objetos banalizados pela utilidade em “matéria de
poesia”7. A importância desse conjunto de imagens para avolumar o fluxo de
pensamentos já em curso, além de conferir beleza ao debate, aparece também
como articulador de questões que fundamentam e dinamizam os estudos
desenvolvidos no terreno da Ciência da Literatura: pensar o poético como lugar
privilegiado onde acontece a (re)construção de percepções e versões sobre
mundo social. Isto significa enveredar pela criação de planos sustentados na
linguagem (as versões de mundo, também chamadas aqui de “prosa do mundo”8),
onde são realizados encontros (quase nunca pacíficos, mas num jogo de tensões
encobertos pelos rituais cotidianos) entre o sujeito e os “discursos de verdade” que
aparecem sob a rubrica da funcionalidade.
Nas composições de Bispo, percebe-se que o potencial significativo das
coisas foi reclamado, explorado e exercido, porém para trazer à tona as suas
perspectivas de mundo. Trata-se, como se vê, de um trabalho bastante expressivo
com objetos familiares que presumem gestos e comportamentos na cena social,
tanto que reconhecemos neles utilidades, funções ou significados. Cada item
desse acervo do mundo parece proferir um apelo visual – “olhe para mim”,
parecem dizer os objetos coloridos, de contornos e superfícies bem definidos.
Pensando dessa maneira, Bispo não só devolveu expressividade às coisas
que ficaram restritas ao exercício de uma função, como também, na articulação
dessas expressividades, deu forma a sua versão de mundo. Nesse caso, ficou
flagrante a inclinação de Bispo para arriscar outros modos de administrar e fazer
caber as suas impressões de mundo.
Na superfície de uma jaqueta, por exemplo, na parte que é dada a ver,
Bispo bordou (tramou) a origem mítica que desencadeou na criação do seu
7
7
Matéria de Poesia é um dos títulos de Manoel de Barros que traz reflexões poéticas a respeito dos limites do mundo, versando a “desutilidade” e as “desimportâncias” das coisas. Foi nessa obra que fiquei sensível à poesia que se agita nas imagens de Bispo.
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Expressão que tomo emprestada das leituras de Foucault, 2007b, e de Merleau-Ponty, 2012.
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universo: nela visualiza-se a data, conforme ele insistia em dizer, em que lhe foi
atribuída a missão de catalogar tudo que existe – “Eu vim – 22 – 12 – 1938”.
Sendo assim, não é pelo movimento de negação que Bispo funda o seu universo,
mas pela potencialização deste mundo que já existe e aparece perpetrado na
linguagem.
Em forma de interrogativa, que melhor combinaria com tais imagens porque
deixa vir à superfície da linguagem um alumbramento, essas mesmas ideias
estariam assim representadas: no logro com os “discursos de verdade”, dando
outras conotações às coisas, que novos espaços para encenação de
subjetividades são inaugurados na obra de Arthur Bispo do Rosario? Em que
dimensão, suas composições deixam entrever a dinâmica da linguagem na
fundação de outros pontos de observação, outra ótica, outra lógica, outras
maneiras de conhecer e experienciar o mundo?
Aos primeiros sinais dos “discursos de verdade”, repetidos pelo senso-
comum na forma de conceitos ou princípios sociais (como o bem e o mal, a
autoridade e a contingência, a ordem e o caos), são exigidos de nós respostas e
atos presumidos. Agimos, então, afetados pela demanda de traçar planos onde
seja possível operar significações. Num esquema cotidiano, esses planos sugiram
ou ganharam sofisticação com o advento da linguagem e foram catalogados, cada
qual com suas particularidades, com nome de realidade, arte, literatura, ciência,
loucura, religião, sonho, carnaval...
Ao seu modo, Bispo compôs uma prosa do mundo – articulou (de modo
singular) referências bem conhecidas e aceitas, construindo planos de linguagem
para dar nexo às suas (re)descobertas e perplexidades com o mundo. Regras e
abstrações são criações humanas, ferramentas usadas para ordenar aquilo que
impressiona os sentidos. No plano ficcional inventam-se mundos estranhos que
são, na verdade, novas versões, diferentes contexturas, outras visualidades... Mas
estas não são criadas dentro de uma proposta de negação ou alienação da
realidade objetiva; ao contrário, buscam novas entradas na realidade, novos
enquadramentos para dar sentido ao que nos afeta a percepção.
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5.1 Eu vim – 22 – 12 – 19389: A outra origem de Bispo
Desde que sua obra ganhou repercussão nacional, em 1980, depois de ser
descoberto pelas câmeras da equipe de reportagem da TV Globo, numa matéria
que mostrava a rotina dos hospitais psiquiátricos, grande tem sido os esforços
para fixar categoricamente o efeito estético da produção de Bispo: “louco artista”
ou “artista louco”?
Do debate em questão, interessa ao desenvolvimento desta pesquisa
assinalar a potência poética de uma numerosa produção, cujo efeito estético
impressiona o olhar porque inventa uma linguagem que transborda a lógica do
mundo. Nesse trabalho de linguagem é que concentro e invisto pensamento,
porque é onde coincidem os estados da loucura, da inspiração divina e do artista
apontados em Bispo.
Mas, disso ainda fica a pergunta: de que lugar Bispo do Rosario fala? A
aposta é que ele se anuncia de um lugar particular, sem localização precisa, em
perene construção, no silêncio que sucede à função; parece que sua expressão
vem de estágio posterior ao fato, entendido como verdade aceita e compartilhada
pelo senso comum. Pois, como se vê, os objetos agregados nas “vitrines”
margeiam as desutilidades: estado poético de suspensão ou interrupção da
função, a partir do qual se desdobram novas perspectivas e possibilidades de
mundo.
Vale lembrar que o silêncio ao qual menciono não deve ser entendido como
signo do vazio ou da frivolidade nas composições de Bispo. Ao invés disso,
podemos pensar esse silêncio como sinal da complexidade da matéria analisada
da vontade de linguagem para dizer ao mesmo tempo as imensidões do mundo
prefaciadas nos arranjos em estudo. Nessa concepção, silêncio é a sagração do
instante que precede uma enumeração, uma lista de um “por dizer” que tende ao
infinito, um sinal do devir.
9
9
Frase bordada no “Fardão” confeccionado por Bispo. Conferir figura 7, p.42.
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Recorro, então, à experiência do silêncio na intenção de apontar nas
imagens compostas por Bispo o estado de repouso dos signos junto com a
desobrigação de dizer, a interrupção de uma função, o silenciar das certezas. O
silêncio que sucede o impacto visual dessas imagens anuncia o advento de outro
estágio que dá passagem para entre-lugares do pensamento – entre arte e
loucura, ordenação e vertigem, profano e religioso, óbvio e obtuso, real e ficção...
Nesses arranjos, a inoperância de significados e funções das coisas
inaugura um universo que dá dimensão às concepções e aos pensamentos do
próprio Bispo, por onde transitam sem pedir licença, sem justificar-se. A
experiência de Bispo com a linguagem abre espaço para pensar o desejo comum
entre nós de encontrar uma expressão própria que nos revele como seres únicos.
Esse é um esboço do pensamento interessado em compreender o modo
como acontece a “reinvenção” de Arthur Bispo do Rosario, que rasurou o estigma
de interno na instituição de tratamento psiquiátrico Juliano Moreira e deslocou-se
para além de suas dependências, inspirando debates na academia e nos círculos
de artes. Aqui, suas composições elevam estas reflexões sobre a dinâmica das
linguagens por animar as potencialidades de mundo latentes no humano (vide o
próprio Bispo), na natureza, na linguagem, nos artefatos...
São as palavras do próprio Bispo que iluminam as ideias em torno de sua
transformação compreendida como desdobramento de alteridades – da condição
de louco ao papel de armador de possibilidades de mundo:
Miniaturas que permitem a minha transformação, isso é tudo material na terra dos homens. Minha missão é essa, conseguir isso que eu tenho, para no dia próximo eu representar a existência da Terra. É o significado da minha vida. (Arthur Bispo do Rosario apud Hidalgo, 1996, p.89)
Fiel a sua missão de inventariar o mundo, Bispo produziu um acervo de
imagens utilizando materiais de seu cotidiano e outros artefatos adquiridos por
intermédio de funcionários e visitantes, ou recolhidos por ele mesmo quando lhe
eram permitidas as saídas. Foram compostas imagens que não significam dentro
do esquema tradicional de comunicação, mas aqui, ao estilo de Manoel de Barros,
45
são recebidas como “passeios verbais”, um desvio do caminho comum de
entendimento das coisas.
Na operação de leitura desse conjunto de imagens de mundo, existe uma
inclinação para buscar afiliações com as tendências artísticas no cenário da Pós-
modernidade, devido às coincidências de estrutura e efeitos conseguidos na
articulação com matéria corriqueira na expressão do pop arte, da arte conceitual,
da arte bruta10, da arte pura... Em um primeiro momento, essa tentativa de ajustá-
lo em uma categoria artística foi salutar para o reconhecimento de sua obra e a
inscrição de seu nome nos espaços onde são realizados debates sobre artes – e
daí não saiu mais. Contudo, insisto que, para escrita desse trabalho, Bispo é
referência de novas liberdades no modo de relacionar-se, ludicamente, com
“discursos de verdade” que subjazem a superfície das coisas dadas como
finalizadas em sua forma ou função. Na expressividade e no inusitado da poética
de Bispo identifico fulgurações da “heterologia” do real, porque permite espreitar o
trânsito da linguagem por entre as coisas (BARTHES, 2009). E, por isso, o
repertório de seus trabalhos dispõe de imagem justa para o pensamento que
10
1
A nomenclatura “Arte Bruta”, elaborada pelo pintor francês Jean Dubuffet (1901-1985), é recorrente nos comentários a respeito da produção de Bispo. Jean Dubuffet perseguia o ponto zero da pintura, descredenciado de galerias, museus e comércio de arte. O termo “arte bruta” marca uma oposição à tradição elitista de arte. Os artistas “brutos”, por meio da grande liberdade técnica e da utilização de diversos materiais, não se deixam influenciar, em nenhum momento, pelo condicionamento imposto pela sociedade. (THÉVOZ, 2001). No entanto, esse conceito gera anacronismos quando aplicado às imagens de Bispo, porque desconsidera o contexto e as condições em que foram produzidas. Ao que parece, a proposta do conceito “arte bruta” é sistematizar comportamentos nas artes que rompiam com as referências clássicas, identificando-se com o insólito, numa estética avessa ao refinamento entregue aos pormenores. Esse não foi o caso de Bispo, que não recebeu incentivos para desenvolver sua arte e construiu tudo com recursos limitados e matéria improvisada, não por escolha, mas por imposição das condições em que se encontrava: interno na Colônia Juliano Moreira, num período bem anterior às oficinas de arteterapia, assombrado por tratamento de eletrochoque, lobotomia e pílulas. THÉVOZ, M. Collection de l’Art Brut. Lausanne: [S. n.], 2001.
46
celebra o “desguarnecimento das fronteiras”11 que emolduram as noções de
realidade.
Na dimensão das reflexões disseminadas, mais interessante do que um
esboço de biografia clínica é a construção do nome Arthur Bispo do Rosario como
fenômeno da linguagem. Ele apostou e potencializou a expressividade de objetos
familiares para projetar uma concepção singular do mundo. Daí, a loucura
diagnosticada em Bispo se confunde nos deslimites da fabulação, da criação, da
invenção da própria liberdade na estrutura de suas imagens, onde articulou ao seu
modo percepções e referências de mundo. Sendo assim, as marcas biográficas
entre os objetos agregados podem ser bem aproveitadas para pensar as obras de
Bispo e sua relação com os “discursos de verdade”.
Enveredar pelos conjuntos das referências pessoais pode enriquecer o
debate e ajudar a compor uma perspectiva do universo criado por Bispo para
encenar singularidades. Contudo, vale destacar que não se pretende justificar ou
explicar suas imagens a partir de uma reconstrução biográfica. A aposta desse
estudo é na leitura do modo como ele reinventou-se através da dinâmica da
linguagem.
Nas mãos de Bispo tudo era convertido em linguagem. Na combinação
inusitada de objetos familiares também se lê o “descredenciamento” do regime de
realidade, para inaugurar outros espaços na medida de seus pensamentos. Por
isso, o conjunto de suas imagens pode ser interpretado como esboços de
biografia, como escrita da memória ou como exercícios de fabulação para
experienciar o mundo por meio da imaginação criadora.
Sendo esse o caso, faz sentido dizer que vida e obra se confundem. Bispo
transformou vida em obra e obra em vida bordando nomes de lugares e pessoas
que conheceu ou que reconstituem acontecimentos históricos; nas assemblages
aparecem materiais que contextualizam a rotina manicomial; sua técnica de bordar
e religiosidade remetem à terra natal e tradições regionais de Japaratuba (SE).
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1
Expressão que faz alusão às reflexões articuladas no livro A fronteira desguarnecida, do poeta Alberto Pucheu (1997).
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Uma trama com episódios tristes e inusitados se desenha ao entrelaçar
relatos de pessoas que conviveram com Bispo, uns poucos documentos e suas
memórias em forma de imagens. Nos estudos traçados sobre a produção de
Bispo, não são raras as tentativas de preencher lacunas de sua biografia pela
análise do acervo: curiosamente, a obra é usada para iluminar passagens da vida.
No horizonte dessas reflexões, Bispo surge como expressão da heterologia,
lembrada por Barthes como o reconhecimento do caráter plural da linguagem,
numa mistura de falares no seu interior (BARTHES, 2004a, p. 116 – 132).
De fato, as suas imagens são a expressão da alteridade Arthur Bispo do
Rosario. No efeito estético de seus trabalhos não foi produzido objeto de arte, mas
subjetividades na arte. A obra foi a invenção do artista e nela os dados biográficos
(embebidos na imaginação do leitor) ganham outras dimensões. Para ler a vida de
Bispo é preciso ler suas composições, pois apontam para o que há de encantador
por trás do homem de uniforme azul da instituição Juliano Moreira. Na dimensão
dessas reflexões é que reinterpreto a frase bordada em um de seus fardões: “Eu
vim – 22 – 12 – 1938”.
Conforme a pesquisa biográfica feita por Luciana Hidalgo, Bispo nasceu em
Japaratuba, Sergipe, em 14 de maio de 190912, numa comunidade de tradições
artesanais do bordado e de estandartes típicos das festas de reisado, marujadas e
procissões católicas. Sabe-se que, no ano 1925, às vésperas de completar 16
anos, foi matriculado como estudante na Marinha e embarcou no ano seguinte
rumo ao Rio de Janeiro. Nessa instituição até 1933, entre suas ocupações de
sinaleiro, também foi pugilista premiado com títulos nas competições de boxe
(assim Bispo contava em suas narrativas, apesar de, segundo as pesquisas de
HIDALGO, 1996, não haver registros oficiais).
Foi excluído da Marinha por insubordinação. Mais tarde, emprega-se na
companhia de fornecimento de energia carioca, Light, como lavador de bondes.
Após acidente que lhe deixou sequelas na mão e no pé, foi trabalhar como
jardineiro em casa de família, no bairro de Botafogo, em troca de comida e
12
1
Data calculada a partir do registro de batismo, onde contava que foi “batizado aos três meses, em 5 de outubro de 1909”, cf. HIDALGO, 1996, p.8.
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moradia. Nessa época, foi surpreendido por uma aparição responsável por novos
rumos em sua vida: dois dias antes do Natal, vira o Cristo descer no quintal da
casa acompanhado de sete anjos azuis – o alumbramento que assinala o início da
sua autobiografia, mencionado repetidas vezes em seus bordados: “No dia 22 de
dezembro 1938. Eu vim”.
Também nesse episódio recebeu o desígnio de catalogar o mundo e
apresentá-lo no “Dia do Juízo”. Em peregrinação pelas igrejas no centro carioca,
proclamava-se Jesus Cristo – declaração que certamente ultrajava a fé cristã. Em
consequência desses atos foi internado em 1939 no Manicômio da Praia Vermelha
com o diagnóstico de esquizofrênico-paranóico. Logo depois foi transferido para a
Colônia Juliano Moreira13, no bairro de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de
Janeiro, e alojado no pavilhão 11 do núcleo Ulisses Viana reservado aos pacientes
mais "agitados". Conforme laudo médico, Bispo sofria de esquizofrenia e
frequentou durante 50 anos, entre idas e vindas, a instituição de tratamento
psiquiátrico.
Permanece na Colônia sob acompanhamento médico até 1944,
esquivando-se dos “cuidados clínicos” (pílulas, eletrochoques, isolamentos e
lobotomia) graças à boa reputação e à dedicação aos seus trabalhos. No modo de
dizer local, Bispo conquistou a posição de “xerife” da ala, descrito por Hidalgo
como o interno que “tinha plenos poderes porque reprimia os agitados e ajudava
em pequenas tarefas, auxiliando um paciente enfermo ou colocando ordem na
casa” (p.23). Mesmo porque, conforme nos lembra a jornalista, os funcionários
não poderiam usar a força bruta para conter pacientes.
De volta ao convívio social, foi empregado numa clínica em Botafogo, onde
seguia fiel à sua missão de apresentar o mundo ao Criador. Retorna à Colônia na
condição de interno em 1969, onde permanece até “fazer a passagem”14 em 1989.
É relatado que, quando regressava à Colônia, Bispo trazia material que
13
1
Hoje é sede do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea.
14
1
Bispo do Rosario, apud HIDALGO: 1996. Bispo, segundo ele mesmo anunciava, preparava-se para uma transformação.
49
conseguira confeccionar e objetos avulsos para serem guardados nos módulos
onde produzia e abrigava suas imagens.
Pelo que se lê nas pesquisas sobre a vida de Arthur Bispo do Rosário,
parece haver semelhança muito grande de sua biografia com o que ele produziu:
um amontoado de referências e depoimentos, com informações obtusas e muitas
lacunas que deixam entrada para especulações e, até mesmo, conclusões
precipitadas. Isso faz de Bispo uma incógnita não só para a sociedade, como
também, para a crítica de arte. Em sua singularidade, ele encena a capacidade
humana de produzir diversidades: cada composição logra com as simplificações
genéricas contidas em classificações. Decerto, quando diante das produções de
Bispo, acentua-se a fragilidade dos recursos linguísticos para dizer as impressões
que agem sobre nossos sentidos.
Talvez, se não fosse a condição de esquizofrênico e interno numa
instituição de tratamento psiquiátrico, Bispo não teria a projeção que alcançou nos
debates sobre arte. Certamente, condições psicossociais interferiram no processo
de criação do artista, mas essa é uma discussão cujos objetivos aqui propostos
não contemplam.
Cabe ressaltar que o enfoque deste texto não é uma investigação sobre o
processo de criação. Propõe-se aqui sublinhar a contribuição das composições de
Bispo na tarefa de pensar o mundo pela dinâmica da linguagem. Esses trabalhos
de linguagem testemunham o que há de mais humano: a capacidade de
administrar pela dinâmica da linguagem suas perplexidades com o mundo.
Basta um olhar atento sobre os trabalhos de Bispo para nos comovermos
com a intensidade da relação entre o artista e sua criação. Causa admiração o
modo inusitado como trabalha objetos banais e faz com que eles revelem
profundidade poética. Seus arranjos fazem estranhar o que pensávamos conhecer
bem. A intimidade com que ele manuseia materiais recolhidos das experiências
cotidianas pode ser expressa na palavra arte.
A respeito das manifestações artísticas, Barthes, no livro Crítica e verdade,
2003, propõe reflexões enriquecedoras sem a pretensão de esgotar o tema. Numa
delas, o pensador francês sugere uma leitura de que a manifestação artística
50
acontece quando há saturação no acúmulo de regras que existem para além do
sujeito. Nesse modo de pensar, ela seria a medida da insatisfação humana, um
transbordamento ou uma perplexidade diante dos limites previstos para o mundo.
Nessa colocação de ideias, poderiam ser apresentadas como contraponto as
produções artísticas que são caracterizadas por uma atmosfera harmônica e
equilibrada, como paisagens bucólicas. Como elas poderiam ser manifestações do
estado de inquietude ou insatisfação?
Para melhor pensar essa indagação, é oportuno lembrar uma passagem do
filme Moça com brinco de Pérolas, 2003, dirigido por Peter Webber. Numa das
cenas, na ocasião em que o pintor Vermeer (interpretado por Colin Firth)
conversava sobre percepção artística com sua criada (Scarlett Johansson), por
quem ele se apaixonara (eis os protagonistas da história), são lançadas algumas
inquietações ao convidá-la a olhar pela janela e iniciar o diálogo:
“__ Olhe para as nuvens. De que cor são?” Provoca o pintor.
“__ Brancas”. Respondeu a moça sem muito pensar. Mas após um gesto de insatisfação do pintor, ela demora-se um tempo a observar o céu e logo corrigi:
“__ Não, brancas não... amarelas... azuis e cinza. Há cores nas nuvens”.
Nesse diálogo parece ficar clara a ideia de que mesmo descrições de
paisagens harmônicas e despretensiosas podem revelar uma insatisfação com as
simplificações do olhar cotidiano. Nesse contexto, a palavra “arte” aparece para
nós como um dispositivo que aciona outras experiências com o mundo, num
exercício para reaprender a vê-lo.
O contato com a poética de Bispo do Rosario provoca, no espírito do
público que lhe dedica o olhar, o alargamento dos horizontes do mundo. Trata-se
de uma vasta produção que merece ser contemplada em sua singularidade, sem
procurar pares ou rivais. Bispo destacou-se por usar o próprio cotidiano para falar
do cotidiano, articulando-o como linguagem, como criação, e não como
mensagem ou produto. As coisas tornaram meio de expressão de si mesmas.
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Retomando o que já foi dito, integram o seu repertório bordados, arranjos
(denominados pela crítica de assemblages) e instalações compostas de materiais
corriqueiros que foram deslocados de sua função no plano social, e por isso
descartados de sua utilidade. Nas mãos de Bispo, resíduos de práticas sociais
recebem grandeza poética e agem sobre o imaginário do espectador. São
canecas, latas, garrafas, embalagens, tecidos, peças do vestuário, papeis,
plásticos, miudezas em geral, que podem ser lidas como um inventário de objetos
cotidianos.
Nestas composições, porém, os objetos não estão mais na condição de
decorativos nem de funcionais. Eles aparecem como operadores da multiplicidade
de perspectivas, da copresenças de ideias. Cabe a eles a expressão objeto-
mundo. Faz-se necessário entender o objeto como linguagem e notar que carrega
consigo uma relação de significação e convenções culturais de uma sociedade.
Todavia, é importante compreender isso sem negligenciar seus contornos, textura,
cor, capacidade de impressionar e acender a imaginação.
Do lugar de onde observo tais arranjos, todo material catalogado atua como
linguagem do mundo. Bispo parte de referências do mundo material perceptível e
sensível para construir um espaço de interação com o outro (os delírios, o
observador, as potencialidades das coisas...). Ele realiza um movimento de
linguagem sem interesse em dividir ou desdobrar os objetos-signo de uma outra
coisa. Os objetos da esfera do cotidiano, quando deslocados para fora do alcance
dos “discursos de verdade”, recobram sua expressividade. Bispo (re)apresentou
nos arranjos um mundo que já fora dito, mas que também é capaz de dizer por si
mesmo.
Na década de 80, já mencionamos, o nome de Arthur Bispo do Rosario
ganha destaque no cenário das artes contemporâneas brasileiras e sua obra
torna-se nome de destaque em exposições também fora do país, como a Bienal
de Veneza de 1995. Foi tema de vídeos e pesquisas em diversas áreas, apesar de
frequentemente aparecer sob o rótulo de arte do inconsciente ou ainda ficar
comparada à produção artística do surrealista Marcel Duchamp. Tal aproximação
intensifica-se com a descoberta de uma das criações de Bispo, com pedaços de
52
madeira e um aro de bicicleta, que muito se assemelha com um dos ready-made15
de Duchamp.
Entretanto, como base no que se pôde reconstituir do histórico de vida de
Bispo, tal semelhança é uma coincidência no campo das artes, o que acentua o
dinamismo e a singularidade dessa nova poética. Torna-se instigante pensar sobre
a sincronia de sua expressão com tendências modernas e atuais nos meios
artísticos e literários, quando se sabe que ele não frequentava debates sobre
produções culturais.
15
1
É comum apontar correspondências entre as composições de Bispo e o conceito de Ready-made introduzido por Marcel Duchamp (1887 - 1968), para se referir à transformação do objeto cotidiano em uma nova coisa, uma ideia nova, de tal modo que o significado utilitário fique sobreposto por outros pontos de vista. Mas nele há um jogo intencional de desconstrução de significados instituídos, revelando assim um interesse mais filosófico do que prático. É um “ataque à noção de obra de arte", conforme nos descreve Octavio Paz, 2007.
53
Figura 8. Arthur Bispo do Rosario. Roda da Fortuna, s/data.http://www.proa.org/exhibiciones/pasadas/inconsciente/exhibicion_fr.html
Em todo o caso, nessa casual semelhança entre as obras, é importante
ressaltar que se trata de propostas estéticas diferentes. De um lado, Duchamp,
inscrito no repertório da tradição artística, com sua produção comprometida com o
Dadaísmo16 e Surrealismo, cuja intenção era criticar e abalar os fundamentos do
pensamento da civilização ocidental (coerência, a linearidade, a legibilidade...)
através da profanação da arte. De outro, estão os arranjos compostos por Bispo,
com objetos prosaicos na dissidência da funcionalidade, combinados segundo sua
visão particular, sem o compromisso de reproduzir uma ordem instaurada. Isso até
sugeriria uma identificação com as propostas Dadaístas. No entanto, as imagens
que ele confeccionou não se comprometem como uma realidade de fora, isto é,
16
1
Conferir nos estudos de Gilberto Mendonça, 1972, o comprometimento desses movimentos em produzir uma antiarte e uma antiliteratura.
54
não se convertem em outra coisa: não apontam para um significado, nem são a
insígnia de um modelo de pensamento.
Supõe-se que Bispo aprendeu técnicas do bordado e desenvolveu
habilidades manuais na cidade de sua infância, Japaratuba, de tradicionais
festividades que exibem um bordado majestoso em vestimentas, estandartes e em
outros adereços usados em procissões religiosas, em Dia de Reis e em folguedos
populares como a Marujada e o Cucumbi. Essa tradição estética artesanal está
mais próxima dos trabalhos de Bispo do que as tendências artísticas europeias
nas quais se insiste procurar semelhanças.
Contudo, embora os trabalhos de Bispo trabalho não estejam
comprometidos com movimentos de vanguardas nem com tendências da arte na
segunda metade do séc. XX, é importante ressaltar que essas vanguardas e
tendências artísticas deram visibilidade para uma nova forma de expressão
artística, influenciando no modo como concebemos e interpretamos hoje os
arranjos estudados. Decerto, as experiências proporcionadas pelos movimentos
culturais de vanguardas ampliaram os horizontes das manifestações artísticas da
linguagem e reclamaram novas perspectivas, outros olhares. Portanto, buscar
referências no sistema de analogias foi o modo como se administrou o impacto
visual causado pela produção de Bispo, na ocasião em que ganha conhecimento
público. Vejo a síntese desse modo de agir (um exercício de controle) numa frase
escrita por Barthes: afinal, “o que posso nomear não pode, na realidade, me ferir”
(1984, p 80).
Bispo foi aquele que inventou uma poética e reinventou-se a si mesmo
enquanto esperava um reencontro com Deus. E, para cumprir sua missão de
apresentar o mundo ao Criador, Bispo buscou o próprio objeto sem mediação de
um esquema de reconhecimento, numa atitude de redenção das coisas fadadas à
superficialidade, banalizadas pelo imediatismo da função – eis a sagração do
objeto. Nesses arranjos, chamo atenção para a oportunidade de pensar o intervalo
onde tudo ganha sentido: a linguagem, essa matéria que sustenta nossos modelos
de realidade.
55
Referências aos seus arranjos tornam-se mais frequentes nos debates
acadêmicos, em eventos de moda17 e na construção de enredos carnavalescos
em escolas de samba18. Nessa breve citação de eventos culturais tematizando os
trabalhos de Arthur Bispo do Rosario, lembro que a escrita desse trabalho margeia
uma referência inscrita no repertório da cultura nacional – o artista e não um
paciente interno numa instituição de tratamento psiquiátrico.
Sendo esse o caso, não carece de amparar tais reflexões unicamente sobre
as bases teóricas da Psicanálise ou da Psicologia. Repouso meus pensamentos
sobre os já mencionados estudos barthesianos da linguagem, e, além disso, sobre
a escrita poética de Bachelard, sobre o texto ensaístico de Baudrillard, sobre a
palavra poética de Manoel de Barros... Foi aí que me tornei sensível à poesia que
se agita nos arranjos de Bispo.
Ao modo da escrita poética de Manoel de Barros, Bispo não só foi
apresentado como também se misturou na matéria de poesia nas composições do
poeta, que tem o mesmo apreço pelo deslocamento e pela experiência com a
matéria monumentada pelo abandono:
A.B. do R.
Arthur Bispo do Rosario se proclamava Jesus. Sua obra era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados, objetos mumificados, fardões da Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores – coisas apropriadas ao abandono. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Arthur Bispo do Rosario acreditava em nada e em Deus. (BARROS, 2004: 83)
17
1
A estilista Adjânia Nunes, no primeiro semestre de 2011, confeccionou peças inspiradas na obra de Arthur Bispo do Rosario. Conferir imagens: http://oxentechique.blogspot.com/2011_02_01_archive.html
18
1
No Carnaval de 1997, Foi tema do enredo No reino da folia, cada louco com sua mania apresentado pelo GRES Unidos do Porto da Pedra; Homenageado pelo GRES Tradição, em 1999, com o enredo Nos Braços da História, Jacarepaguá, Quatro Séculos de Glórias; Tema em 2002, no enredo Bispo do Rosario – Loucos pela Arte, pela GRES Rosa de Prata no carnaval de Campinas (SP); em 2006, na cidade de Canoas (RS), foi enredo na SRBCES Acadêmicos de Niterói Arthur com título Bispo do Rosario, o labirinto de uma vida; Lembrado no carnaval de 2007 pelo GRES Império Serrano no enredo Ser diferente é normal. O Império Serrano faz a diferença no Carnaval.
56
É flagrante no poema escrito por Manoel de Barros sua admiração pela
poética de Bispo. O motivo de tal entusiasmo é ver o trabalho estético reanimar a
capacidade humana de perceber a diferença — o não-idêntico — que reside sobre
as coisas triviais. O estado de abandono e de inutilidade das coisas parece
acender nelas tais qualidades.
Manoel de Barros revela intimidade com a poética de Arthur Bispo do
Rosario ao se assombrar com a de normalidade que pesa sobre as coisas. Como
lemos no poema citado, aquilo que é convencional e, portanto, já seria o
esperado, aparece registrado como se fosse uma descoberta que causa espanto e
admiração: “Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor”. Nas
palavras do poeta, numa torção nos referenciais da realidade objetiva, como
percebido em “um buquê de pedras”, o elemento esperado em qualquer buquê (a
flor) é motivo de surpresa.
Com olhar lúdico-transformador, característico da infância, que acende a
pluralidade das coisas, Barros e Bispo a partir de objetos ordinários e cotidianos
exploram limites do mundo, deixando-os confusos e, assim, inauguram outras
perspectivas – exercitam a ação de “desver o mundo”, tal qual escreve o poeta.
Da contemplação das “vitrines” e bordados arquitetados por Bispo do
Rosario ingressamos num mundo particular, onde habitam desejos, conflitos,
medos, paixões, histórias e interpretações que não têm espaço no mundo
administrado, mas se agitam dentro do sujeito. Nesses ajuntamentos poéticos, no
encontro entre objetos de natureza distinta, sem a preocupação de reproduzir uma
coerência, acontece a redenção das coisas subjugadas pela função:
surpreendemos-nos com as cores, com as formas, com as reentrâncias na
superfície de artefatos corriqueiros e lembramos como tudo pode ser engraçado e
surpreendente quando dedicamos olhar aquilo que vemos.
Tudo isso nos faz lembrar que o mundo tal como o concebemos é uma
invenção humana gerada a partir do modo como organizamos e damos sentido ao
que nos impressiona. Essa sequência de ideias ganha sustentação quando
voltamos o pensamento para outras formas de arrumação como a da memória e
57
aquelas sugeridas pelas obras de arte, onde flagramos a suspensão temporária da
ordenação cotidiana.
Nesse contexto, vejo Bispo em sua tarefa de (re)apresentar o universo e, tal
qual um poeta, sair à procura de outras configurações possíveis de mundo, que
podem estar esquecidas em sucata, detritos e em todo tipo de matéria que perdeu
sua função e, portanto, visibilidade no cenário social.
58
6. A apresentação segundo ABR
(...)Tão louco quanto Bispo do RosarioFez do mundo um inventário para doar ao criadorEu vi sair de um pavilhão em São GonçaloLoucuras vindas do imaginárioTão loucos quanto a gente já cantou.
(GRESS Unidos do Porto da Pedra. No enredo “No reino da folia, cada louco com sua mania”,1997)
Em versos de samba foi cantado o pensamento que atravessa e integra o
repertório dos trabalhos de Bispo, hoje disposto num acervo de 806 peças
catalogadas no Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, situado na ex-
colônia Juliano Moreira. Embora seja possível uma percepção poética dos
arranjos estudados, conforme descrito nas proposições de leitura desta tese, o
que de fato move o trabalho de Bispo é a determinação de cumprir a missão de
apresentar o mundo. Uma apresentação em estilo próprio, que nos provoca sair
em busca de novas formas de apreciações. As composições elaboradas por Bispo
deixam transparecer um enquadramento diferente da realidade objetiva, que
devolve visibilidade e expressividade ao que só era percebido no imediato de sua
função.
Nunca é gratuita uma apresentação; ela consiste em fazer notar algo que
por si só, talvez, não revelaria o mesmo impacto. Comove o pensamento a
apresentação preparada por Bispo com material que já está dito no plano social
pela função e pela nomenclatura. Afetado pela composição desses arranjos,
estendo tal reflexão e arrisco dizer, então, que eles deixam entrever as
multiplicidades e contingências do mundo, que de outro modo não poderiam ser
reveladas, sob o risco de aniquilá-las.
Vale insistir ainda nesse tema, para ressaltar que a apresentação montada
por Bispo não constitui um mecanismo que serve ao controle ou à contenção da
59
linguagem num regime da monossemia. Bispo não vigia a linguagem; não
programa um desdobramento nem espera para ver o efeito do que articulou; ele
não poupa o observador e tampouco se poupa. Por isso, sua apresentação em
nada se assemelha com o modelo discursivo regido por normas específicas, de
cunho burocrático, em oposição a práticas mais espontâneas da linguagem,
fecundas de significados.
Por essa via, o tema da apresentação ganha profundidade nos trabalhos de
Bispo porque cultiva a necessidade de buscar argumentos fora de explicações
estéticas ou de normas didáticas da enunciação. Na sua maneira de apresentar o
mundo, fica elucidado um movimento de linguagem que remete ao advento da
significação das experiências: o maquinar de interpretações e perspectivas que eu
identifiquei em reflexões anteriores como a “prosa do mundo”.
Tal é a singularidade dos agrupamentos feitos com objetos familiares, que
só um movimento de linguagem tão pessoal quanto o de uma apresentação
poderia sugerir a experiência íntima de Bispo com a realidade circundante. Pois,
tendo em vista as “Vitrines” e os demais arranjos que ele preparou, a ação de
apresentar sugere a exposição daquilo que impressionou os sentidos. Apresentar
denota, então, um estado de afetação gerado a partir do objeto a ser anunciado. É
dar a ver o que comoveu a atenção, aquilo que causou impacto e requisitou o
pensamento e a sensibilidade.
Uma apresentação, por assim cogitar, traz a público a aventura da
descoberta. Trata-se de um evento que revela algo como especial, no sentido que
Agamben, 2007, dá a esse termo: “especial é o ser que coincide com o fato de se
tornar visível, com a própria revelação” (p.52). São coisas especiais porque, no
instante em que são vistas, algum aspecto desperta no seu observador o desejo
de vê-las. Isso faz pensar as composições de Bispo, porque nelas foram exibidos
artefatos cotidianos sem a necessidade de ampará-los por qualquer manifestação
discursiva. Assim, foi dada visibilidade ao que de tão comum em nossos
horizontes passava despercebido.
No horizonte dessas reflexões, a apresentação (enquanto gênero textual)
anuncia um espaço ainda em preparação pela linguagem, para o exercício dela
60
própria. Por isso, deve ser considerado como instante oportuno para espreitarmos
a performance da linguagem no limiar da significação; instância das expectativas
por onde corre o tempo da espera. Desse plano erguido pela linguagem, aponta-
se uma direção, mas sem mostrar o que de fato há no horizonte, sem revelar o
que está à espera.
Envolvido por essas ideias, penso a dinâmica da linguagem como uma
extensa e contínua apresentação, sempre a comover o olhar do leitor para que se
aperceba dos sinais de um acontecimento que será anunciado mais adiante. Esse
palpite ganha força quando o retorno às composições de Arthur Bispo do Rosario,
que se dedicou a produzir imagens para apresentar o mundo ao Criador. Sua obra
foi construída sob o signo da espera. Reuniu objetos diversos, compôs listas de
nomes e coisas, registrou acontecimentos, confeccionou sua indumentária, tudo
com singular dedicação estética que anuncia, com efeito, a grandiosidade de um
evento por vir – o Dia do Juízo.
Embora compostos por materiais prosaicos, os arranjos de Bispo não falam
sobre o mundo familiar, que conhecemos bem e não impressiona mais o olhar
porque já é a maneira como o percebemos. Como nos lembra Barthes, “o mundo
já está sempre escrito” (1982, p.49), apresentado, mediado por um fluxo de
discursos escalonados infinitamente. Por isso, insisto no pensamento de que
apresentar o mundo por meio de material já dito pela função e pela nomenclatura
transforma nossas concepções sobre os limites deliberados da realidade.
Assim, ao seu modo, Bispo se assenhoreou das coisas para fazer uma
apresentação onde fala através do mundo, sem precisar contar a história das
coisas e, em vez disso, deixar que as coisas nos façam imaginar histórias. É como
se cada objeto manuseado, circunscrito pela linguagem e pela função, esperasse
pacientemente até ser tocado por algo que animasse sua estranha potência de vir
a ser. Reforço a complexidade e a importância dessas ideias na leitura dos
arranjos de Bispo, destacando as palavras de Burrowes, 1999: “No lugar de
explicações, o artista oferece sua experiência de mundo, experiência concreta, em
andamento, tão mais viva quanto inacabada” (p. 21).
61
Na missão de apresentar o mundo no “Dia do Juízo”, Bispo foi operador de
outras relações com os objetos-signo de uma realidade. Assim, fez da
apresentação um espaço para novas expectativas traçadas pela imaginação, onde
descobrimos relações inesperadas entre objetos reconhecidos. De fato, vemos
tudo isso com estranhamento, desconfiados do que nos espera, porque tudo que
sai do limite da legibilidade não é mais considerado “real” (termo que bem poderia
ser uma abreviação de realizado).
O mundo pensando em sua trama plural, onde se entrecruzam diferentes
concepções, nos confronta, então, com outra pergunta: de que perspectiva Bispo
apresenta o mundo? Uma série de objetos revestidos por fio azul (batizada pelo
crítico de arte Frederico Moraes como a sigla ORFA) dá direção às ideias que se
antecipam diante de tal reflexão.
Bispo montou habilidosamente dezenas de objetos, tudo construído à
imagem do que existe no plano real, e os revestiu urdindo a linha azul desfiada
dos uniformes da instituição. Desse conjunto destacam-se ferramentas,
instrumentos de trabalhos e brinquedos infantis como tesoura, regador, trena,
colher de pedreiro, escada, rolo de pintar, chave de parafuso, machado, pá de lixo,
compasso, carrinho, peças de xadrez, bola, raquete... Mas nada em sua obra
representa o “mundo natural”, a natureza. São índices de um mundo arranjado
pelo engenho humano e, nessa condição, é lugar onde se entrelaçam diversas
preceptivas. Em cada objeto foi bordado o nome ou a finalidade designada,
mostrando uma das perspectivas (talvez a mais evidente). Então, parece que
Bispo se organiza para apresentar um mundo onde ocorre a fabulação de
sentidos, onde se projetam as perspectivas traçadas para as coisas, onde o
humano cria.
62
Figura 9. Arthur Bispo do Rosario.
ORFA. Bispo e duas Rainhas.Catálogo Arthur Bispo do Rosario - O artista do fio.
63
Figura 10. Arthur Bispo do Rosario. ORFA. Moinho de CanaCatálogo Arthur Bispo do Rosario - O artista do fio.
Pensar os lugares reservados à construção de sentidos é um dos desafios
que impulsionam a escrita desta Tese. Cada espaço de significação revela uma
configuração peculiar, um estilo próprio, que se serve dos mecanismos de
linguagens (sons, palavras, timbre da voz, elementos tipográficos, nuances de
cores...) com a finalidade de assegurar uma coesão interna. No caso de uma
apresentação, especulam-se possibilidades para experienciar um determinado
assunto, as quais podem se concretizar ou não. Mas, de qualquer modo, promove
a dramatização de saberes pela inquietação das expectativas; causa um frenesi
nos referenciais que se desdobra na manifestação da mathesis literária estudada
por Barthes como uma força que “faz girar todos os saberes”, vertiginosamente
(2001a, p.18). E, antes que tudo se assente e se acomode em seus devidos
lugares, somos muitas vezes arrebatados por uma inexplicável sensação de
deleite, que suponho ter haver com as reminiscências de sentir o mundo
acontecendo pela dinâmica da linguagem.
Na intenção de acender traços que delineiam os processos ou caminhos da
invenção de sentidos é que se estende esse debate sobre a apresentação,
considerando que inventar supõe intimidade com o ato da experiência, com o
momento da dúvida, com o equívoco, com a prática da associação e
deslocamento de ideias, com abertura para o inesperado. Talvez seja nessa
direção que apontam os estudos de Barthes a respeito das linguagens e as
construções de sentidos: a procura por significados nas coisas experienciadas
caracteriza a atividade humana; logo, o sentido não é um acontecimento natural, é
preciso reivindicá-lo dentro de uma perspectiva histórica e cultural (BARTHES,
2003a, p.101).
Por esse modo de pensar é que venho orientando a escrita desta tese,
arriscando interpretações e apontando algumas chaves de leitura, com o objeto de
trazer novas complexidades ao debate que se articula em torno dos arranjos
construídos com material familiar. É preciso analisar o sentido de conceitos
usados para se referir a estes trabalhos, como o que arte e de artista, e ver que
diálogos eles permitem articular.
64
7. Senhas e outras chaves de pensamento
— Qual a cor da minha aura?Bispo
“Trouxeste a chave?”19
19
1
Andrade, Carlos Drummond. “Procura da Poesia”. In: Poesia Completa. p.117. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
65
Drummond
Chaves, fechaduras, abridor de latas, abridor de garrafas, ORFA20 na forma
de placas de logradouros, parafusos e arruelas, são objetos que destaco para
simbolizar na extensão dos arranjos de Bispo a experiência-limite. Tais artefatos,
semelhante a amuletos, chaves, enigmas, senhas, podem ser apontados como
sinais da passagem ou acesso a outras estâncias (dentro/fora, interno/ externo).
Como em um rito de passagem, há um sinal que anuncia a mudança de espaço.
“Era preciso dizer as palavras certas para ter acesso ao quarto-forte úmido
e escuro de Arthur Bispo do Rosario na Colônia Juliano Moreira”, relata a
Jornalista Luciana Hidalgo que acompanhou a rotina da instituição durante um ano
(HIDALGO, 1996). Com isso, mais do que uma vaidade da metodologia de
pesquisa, criar categorias é render-se aos imperativos da própria obra, num gesto
de cumplicidade determinante para ingressar no universo de Bispo, como quem
sela um pacto de adesão ao se aventurar por outros caminhos até a realidade.
“Qual a cor da minha aura?”, perguntava Bispo aos que pediam para
vislumbrar a sua criação, cuja autorização e também a continuidade da conversa
dependiam de uma resposta (a cor azul era uma delas). Uma abordagem
semelhante acontece na poesia de Drummond: “Trouxeste a chave?”, era a
pergunta direcionada àquele que desejasse flanar pelo “reino das palavras”, como
se quisesse alertar para o limiar com outras esferas da realidade, sob o domínio
de forças da imaginação poética.
Na apreciação das composições de Bispo, arrisco algumas senhas que me
permitam acesso a outros regimes de sentido.
20
2
Objeto recoberto por fio azul. Expressão cunhada por Frederico de Morais, crítico de arte e curador de exposições das obras de Bispo.
66
Figura 11. Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
O trabalho de apresentação do mundo realizado por Bispo, reiterando o que
foi dito anteriormente, é marcado por trazer ao objeto conhecido novas inflexões,
sem estilizar as formas nem alterar a estrutura. Contudo, as significações e
valores desse objeto não se restringem mais ao convencional da lógica
pragmática, desarmando a expectativa de simples funcionalidade. Desta maneira,
lençóis, canecas, chinelos, chapéus, palavras, talheres e miudezas diversas,
aparecem reunidos num jogo de correspondências contingentes que ultrapassa
seus usos e, inevitavelmente, engendra outro regime de sentido. Impera, nesse
regime de sentido, a coexistência de performances de leituras, acompanhadas de
novas dinâmicas do pensamento, que provocam a visão unilateral e reclamam a
análise de outras propriedades com as quais ainda não nos ocupávamos. Por
essa razão, fica inoperante a linearidade a serviço da monossemia e da
legibilidade.
Entretanto, celebrar outras envergaduras de leitura para o que se
convencionou chamar de “plano da realidade” impõe a esta pesquisa o desafio de
repensar alguns conceitos usados para imprimir e legitimar as fronteiras desse
modelo de realidade. É o caso da função desempenhada por algumas categorias
(autor, obra, gênero...), das quais se serviu analise crítica e os estudos literários.
São categorias que não têm mais a mesma consistência de outrora, para fazer
mover o pensamento entre os arranjos de Bispo. Daí, surge a necessidade de
cuidar da aproximação com essa poética, uma vez que, diante dela, certas
categorias21 de análise apresentam sinais de desgaste.
Nessa pesquisa, faz parte dos exercícios de pensamento animados pelas
imagens de Bispo ponderar a linguagem que possibilitará o desenvolvimento das
proposições de leitura anunciadas no texto de abertura. Pensar por metáforas,
essa foi minha opção, para buscar uma linguagem possível: aquela que consiga
21
2
O termo “categoria de análise” expressa a necessidade de criar estratégias para administrar e distribuir significados em campos semânticos. Assim, de viés, esse termo afirma a existência de níveis de relação entre os conhecimentos sobre um objeto, determinados por propósitos pragmáticos. Podemos, então, lê-lo como índice da heterologia sobre o mundo.
67
expressar a suavidade do justo encaixe entre a mão e a luva, cuidando sempre
para não perder a delicadeza e a leveza do toque.
Talvez, a aplicação de conceitos funcionais, como a intenção, a obra, o
autor, o estilo abreviasse o trabalho árduo de escrever a respeito da produção de
Bispo. Entretanto, são tantas as particularidades de suas composições que tal
procedimento esgarçaria o frágil tecido da linguagem, deixando aparecer os
pontos de costuras, a emenda, o artificial da forma.
Uma “escrita possível” dá a liberdade de acenar para alternativas de
leituras sem esconder o objeto. Seu desígnio é ressaltar suas formas e contornos,
conservando-lhe os movimentos, tal qual a luva e a mão. Por causa das
singularidades que elucidei no percurso da escrita desta tese, se faz necessário
riscar, e arriscar, outros moldes de luva ou, em um modo acadêmico de dizer,
outras “categorias de análise”, suscetíveis a mudanças na articulação do
pensamento.
Há uma singularidade que precisa ser pensada na ordem do anonimato que
encobre o nome Arthur Bispo do Rosario e os objetos que manuseava – triviais,
familiares, comuns, que não há razão de serem assinalados porque não nos
impressionam mais. No obtuso do anonimato, Bispo (re)formulou para si e para as
coisas outra mise-en-scène: sob sua ótica, contou em bordados sua origem divina
e em suas “Vitrines” traçou novas perspectivas para os objetos. No entanto, essas
composições trazem o pensamento ao presente e dão visibilidade às iminências
poéticas nas familiaridades. Bispo é um anunciador do inaudito e demonstra um
interesse peculiar pela redescoberta do mundo no interior das coisas “sem
importância”.
Suas imagens expressam um mundo que não poderia ser anunciado de
outro modo sob o risco de aniquilá-lo. Bispo não fez da matéria prosaica
instrumento de comunicação. No entanto, para o pensamento corrompido pela
legibilidade, a busca de sentido é inevitável, juntamente com esforço para
descobrir o conceito mais apropriado ou a melhor expressão: esculturas
68
performáticas, acumulações, assemblages, “bordados com pensamento de
pintura”22, “objet trouve”, “ready-made”...
O caráter híbrido de suas composições prorroga o enquadramento em um
gênero específico e o risco de equívocos conceituais. Também por isso, a essas
imagens não aderem comentários cuja intenção está na localização temporal ou
na classificação segundo correntes ou tendências artísticas. Existe uma dinâmica
interna (garantida pelos materiais, técnicas e percepção de mundo) que precisa
ser levada em conta. Retomo a tensão inicial da Tese: como interpretar essa
dinâmica? Como expor o “método” Bispo de criação? Por que hesito em afirmar?
De onde vem o risco, essa probabilidade de perda ou ganho, tal qual num jogo de
azar, ao me aproximar da poética de Bispo?
Pode ser que consigamos esboçar respostas para tais indagações se
pensarmos no fato de que a linguagem usada por Bispo (os objetos-signo da cena
social) é substância de seus arranjos.
Diante das composições de Bispo, nosso sistema de reconhecimento é
afetado ao constatar que tudo é familiar e insólito ao mesmo tempo: objetos da
vida comum são submetidos a um trabalho de invenção, numa transgressão de
pontos de vistas, que de assalto deixa o leitor em estado de mudez porque ficam
inoperantes as categorias de análise usadas para apreender um sentido. Daí,
surge a necessidade de pensar outras categorias de análise como “senha de
acesso” (mot de passé23) a outras instâncias do pensamento de Bispo, sem que
isso signifique simples adjetivação.
Eis que, no entanto, o inaudito dos trabalhos de Bispo pode ser figurado,
insinuado, conotado por meio desse ludismo com a linguagem, de modo que
assim podemos apontá-lo sem ultrajá-lo ou fulminá-lo. O cuidado ao me aproximar
das “imagens” de Bispo deriva do esforço feito para me desligar de qualquer gesto
22
2
Expressão usada por Wilson Lázaro, curador do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, enquanto mostrava o Manto da Apresentação à equipe de profissionais da TV Senado, durante a gravação do programa “Inclusão” de 25/02/2011.
23
2
Em alusão ao título do livro de Baudrillard, na edição na língua francesa: Mots de Passe. Pauvert, Département de la Librairie Arthème Fayard, 2000.
69
que insinue uma tentativa de reintegrá-las no padrão de legibilidade da vida
cotidiana.
A partir da imersão no universo reconstruído por Bispo com objetos
banalizados pelo uso cotidiano, somos tentados à improvisação de outras
interpretações sobre o familiar, visto que o simples reconhecimento não é
suficiente para fazer a obra acontecer. Por isso, numa outra dimensão da
linguagem, precisaram-se repensar algumas categorias com objetivo conseguir
maior intimidade com essa produção. Assim apresento as Senhas (signo de uma
intimidade) as palavras que possibilitarão outras entradas no conjunto da obra de
Bispo: Apresentação; Deslocamento e Desutilidade; Labirinto; Objeto, a
Coleção, a Lista, o etc; Intervalo; Autor- colecionador- bricoleur.
8.A estética labiríntica e o jogo das experiências do ver
“Esses delírios irracionais da imaginação fazem mais bela a nossa linguagem”
(Manoel de Barros)
Tal é a tensão provocada pela armação dos arranjos de Bispo que estes
escapam às investidas de definições retóricas e de reflexões didáticas. Lembro
que neles estão conjugados elementos da realidade objetiva (representada pelos
artefatos de gêneros variados) e da ficção, que fica por conta da imaginação
70
criadora; tudo assentado em suportes tão diversamente armados com material
corriqueiro. Insisto em elucidar essa montagem feita por Bispo porque através dela
é possível visualizar passagens e conexões para novos horizontes de ideias.
Entretanto, a inquietação gerada por tais composições deve-se menos ao
inusitado da combinação do que à falta de recursos tradicionais para dizer o
impacto que nos afeta.
Os estudos barthesianos a respeito da dinâmica da linguagem ajudam a
compreender melhor esse estado afetado. O ímpeto de tornar significante todas as
coisas que participam do da experiência do real foi apontado por Barthes como
sintoma de uma sociedade “vaniloquente”, marcada pela frivolidade da palavra. “É
preciso, a qualquer preço, transformar o fato em ideia, em descrição, sem
interrupção, em suma, encontrar para ele outro nome que não o seu” (2003a,
p.168). Com esse propósito, existem formas canônicas da linguagem que se
precipitam aos diferentes acontecimentos. Para tudo que impressiona os sentidos,
sem demoras, se apresentam recursos de linguagem para evocá-lo, abreviá-lo ou
anunciá-lo. Assim, é forjada a unidade, imprimindo relações de causalidade, na
intenção de conter alusões confusas e garantir relações de significações sem
equívoco.
71
Todavia, se não é possível reprimir a linguagem, ou seja, conter o seu fluxo
na estrutura sequencial que prevê a
colocação do próximo termo, fica
comprometida a mecânica entre as
partes, afetando as noções de
linearidade e legibilidade.
Isso que abala o funcionamento da
linguagem instrumentalizada foi
abordado, nestas reflexões, sob a
insígnia de acidentes de perspectivas,
copresenças e contingências. Essas
expressões fazem convergir
pensamentos sobre o efeito estético que
resulta do deslocamento de objetos
cativos a uma ordem na cena social.
Sem conseguir estabelecer relações de
continuidades entre um elemento e
outro, a composição fica a mercê de
cruzamentos e de associações
plausíveis, mas não previstas ou
programadas. No desencadear da
linguagem, mora o risco de perder-se e
vagar entre as possibilidades de significados,
porque não há como retornar ao referente.
No excurso da linguagem, pelo esforço para reconstruir vias de interação entre os
fatos, projetam-se outras experiências de
significação do real. O sujeito assume o risco e imprime outros movimentos à linguagem para estabelecer analogias que não estavam planejadas; arrisca-se por caminhos não lineares com a finalidade de reestabelecer correspondências entre as coisas. Daí, resulta um entrecruzamento de vias que faz lembrar construções
labirínticas.
72
Figura 12. Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
Nos trabalhos de Bispo podemos imaginar diálogos com diferentes
linguagens artísticas, pois são reconhecidas semelhanças com instalações,
assemblages, acumulações, esculturas e performances. Mas, é o efeito de outro
tipo de construção que recorro para potencializar o pensamento desenvolvido a
partir de desses trabalhos.
O labirinto é imagem justa para tematizar o estudo das composições de
Bispo do Rosario, porque dá visibilidade a certos aspectos de seus trabalhos de
linguagem. Na leitura destes arranjos, a impossibilidade de seguir pela linearidade
ou de propor uma apreciação pautada nos referenciais lógico-racionais ortodoxos
demanda outras experiências do olhar, cujo deslocamento acontece tal qual num
labirinto de possibilidades. Cada movimento do olhar traz a surpresa de novos
caminhos.
Volto ao impacto proveniente do insólito das composições de Bispo para
consolidar a metáfora do labirinto. No suporte onde foi agregado o conteúdo
recolhido, é comum encontramos divisões determinadas pela própria extensão da
matéria usada (papelão, madeira ou plástico). Constituem quadrantes
emoldurados com algum elemento diferente (geralmente uma fita ou pedaços de
cabo de vassoura). Em alguns casos, um maior distanciamento entre eles forma
uma espécie de borda. Mas estas marcações não prescrevem homogeneidade de
gênero nem limites. Os objetos são sempre diversos e transbordam estes
espaços, de modo que encontramos algo entre um quadrante e outro. Além disso,
o fundo que se destaca sugere caminhos intersectados, como num labirinto. Como
dito, nada contribui para uma progressão linear ou previsível do olhar.
No horizonte de tais reflexões, leio as obras de Bispo fora da mística da
loucura e dou destaque ao seu trabalho de (re)formulador, inventor de escrituras e,
também, operador de perspectivas. Gosto de imaginar Bispo como o armador do
jogo de redesenhar o cotidiano, desafiando o olhar a descobrir por trás da
evidente aparência outros pontos de vistas, outras possibilidades de leitura.
73
8.1. O labirinto das experiências poéticas
74
Figura 13. Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
No impacto visual com as imagens de Bispo pode ser que uma
perplexidade, um estado de hesitação, se manifeste em forma de
questionamentos: Como ler o que por si parece ser ilegível? Por onde começar?
Como prosseguir? Que trajeto percorrer? Estas perguntas, no entanto, reclamam
por uma resposta ou, na verdade, buscam a manutenção de uma coerência, num
apelo à legibilidade que opera no modelo objetivo de mundo? Interrogações
semelhantes, senão as mesmas, se antecipam a qualquer estrutura alheia ao
sistema de correlação.
De fato, o familiar “não requer maior verificação que se estenda além de
sua simples presença” (BERGER, 2011, p. 40), mas aquilo que se apresenta como
novo, inevitavelmente, é logo esquadrinhado para em seguida ser incorporado e
ajustado a uma “prosa do mundo”. Isto não acontece sem mutilações no conteúdo
analisado e/ou sem estiramentos no molde onde será depositado. Pensando
assim, essa série de interrogações estaria a serviço de um controle internalizado,
por isso tão natural, para incorporar o evento inaugurado pelos arranjos de Bispo a
uma programação no funcionamento do modelo de realidade.
Como falado antes, o impacto que incide sobre nossas percepções visuais
e, consequentemente, deixa inoperante o sistema de reconhecimento tem origem
na maneira como Bispo relaciona, em seus arranjos, os objetos credenciados na
ordem do comum. Para o olhar atento (em estado de vigília), num primeiro
momento, tudo parece estar fora de ordem, como que deslocado de seu lugar e
depois amontoado naquele suporte, pois essa disposição emperra o curso de uma
leitura linear.
Porém, no que dedica olhar para as coisas dadas ao abandono, Bispo
enxerga para elas novas possibilidades de atuação, inventa-lhes outros enredos.
São objetos que foram descredenciados do regime de funcionalidade e
significação. Sendo assim, não há mais obediência à ordenação linear, à
sequência início, meio, fim.
Nessa relação desencontrada entre os objetos (uma maneira de fazer
referência ao que não participa do conjunto de expectativas ou previsões fundadas
75
sobre um estatuto de realidade), me surpreendo com a poesia do acaso
entremeada em todas as coisas. Lembro o acaso como acontecimento que se
precipita na linguagem sob a forma de um “pode ser que”, cuja ocorrência nos leva
a conferir solenemente as opções de legibilidade engendradas num modelo de
pensamento, mas sempre adiando qualquer forma de comprometimento com uma
delas. O acaso é o argumento para coisas aparentemente dessemelhantes e sem
nexo. Ele nada recusa ou exclui.
Gosto de pensar a arte de Bispo como o lugar de encontro do humano com
a poesia, isto é, um modo particular de colocar a vida em movimento, “sem apertar
o botão”, sugerindo que ela pode ser contemplada bem além de um conjunto de
perspectivas internalizadas, emolduradas pelo sério, pela verdade, pela razão,
pela pertinência... Assim, quando vislumbro o universo criado por Bispo, não vejo
objetos: canecas, sapatos, pentes, ferramentas... Avisto o cruzamento de
perspectivas construídas sobre eles, dentre as quais, me inspira reflexões, o
tratamento poético que perpassa toda sua obra.
É nisso que me faz pensar a expressão “Senhor do Labirinto”24, usada para
se referir ao Bispo performático: aquele que faz aparecer o cruzamento de
perspectivas, e se sente livre para transitar por todas elas. Nas composições de
Arthur Bispo do Rosario pode acontecer o desaprendizado do mundo, sob a lição
de que não tínhamos visto aquilo que vemos.
24
2
Expressão que integra o título do livro de HIDALGO, 1996.
76
8.2. Deslocamentos Poéticos e o Jogo Labiríntico
O emprego da expressão “deslocamentos poéticos” integra o grupo de
palavras que foram pensadas na necessidade de arriscar uma aproximação,
respondendo à provocação feita pela estética singular dos trabalhos de Bispo. Isso
implica a dizer que foi aceito o desafio de participar do “jogo das experiências do
olhar” armado em forma de “vitrines” do mundo – as quais foram denominadas
pela crítica de arte por assemblages25 e acumulações.
Na metáfora do jogo articulam-se bem as ideias colocadas em movimento pelo impacto visual desses agrupamentos. Ela é fecunda de imagens que ajudam a desdobrar as proposições pensadas para esta nova poética. No jogo ou nos arranjos de Bispo o gesto do jogador (que, nesta ocasião, também é um autor porque opera uma contextura) delibera um modo particular de agir e se posicionar perante um acontecimento. Em ambos os casos, o deslocamento das peças é visto como ação performática. São lembrados ainda como espaço de possibilidades, da quebra de expectativas devido a estratégias subjetivas que logram com uma sequência determinada. É onde acontece o malogro e a imprevisibilidade da experiência; o descentramento de perspectivas convencionais; a reverência à contingência...
Ainda no desdobramento das ideias
permitidas na metáfora do jogo, penso que o
trabalho de criação realizado por Arthur Bispo do
Rosário fica mais bem caracterizado na
performance do jogador, cuja função é articular as
25
2
Na arte contemporânea, obra tridimensional, figurativa ou não, que reúne objetos e/ou materiais diversos, não convencionais, para obter um efeito insólito e romper com as técnicas tradicionais da pintura e da escultura. (Dicionário Aurélio Séc. XXI)
77
Figura 14 Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Partida de Xadrez com Rosângela
referências que tem em mãos para um objetivo, para caracterizar. Nessa posição,
ele entra em cena de viés, movendo-se entre a imaginação delirante e a poesia,
sem ter previamente elaborado uma estratégia ou escolhido um modelo para
seguir. Por essas palavras, dou passagem à dinâmica de ideias sugeridas entre os
objetos reunidos sobre suporte improvisados com pedaços de madeira e papelão
que dão forma às “Vitrines” do mundo, como ilustrado na página a seguir, na figura
15.
Nessa armação de objetos triviais, Bispo enredou uma “prosa do mundo”
para ser apresentada no dia do Juízo. Nela visualizamos o modo particular como
ele recebia e reagia aos “discursos de verdade” impresso nas coisas sob a forma
de significados, funções e valores instituídos. Percebe-se aí que a função e o
significado não são simplesmente convenções que delimitam a existência das
coisas na cena social, mas também podem dizer uma versão de mundo. Mais uma
vez, insisto no efeito da apresentação conferida nos arranjos de Bispo, porque
através dele são desencadeados outros olhares e pensamentos para objetos
conhecidos, dando continuidade ao jogo das experiências do ver.
A metáfora do jogo ilustra bem essa operação de leitura nessas “Vitrines”, já
que, tanto no jogo quanto nelas, tudo é da ordem do espetáculo: aquilo que foi
dado a ver e requisita, por isso, o envolvimento das partes (o armador, o objeto, o
espectador). O termo espetáculo reforça nesse debate uma carga semântica
atrelada ao primado da visão, pois nos remete a um evento que faz do familiar um
exercício de especulação, o que significa buscar novos enquadramentos do olhar
para um objeto conhecido.
De certo, nas composições de Bispo, acontece a sagração do sentido da
visão: há uma variedade de objetos que parecem solicitar ao olhar co-presenças,
sem exigir em troca um comentário ou qualquer esforço de pensamento que o
(re)integre na ordem convencional. Por isso, tais arranjos são trazidos ao debate,
não pelo que eles querem dizer, mas sim pelo que elas fazem calar: as certezas e
as verdades categóricas que simplificam o olhar e a experiência do pensamento.
78
Figura 15 Arthur Bispo do Rosario.Vitrine. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
79
Do constrangimento de falsear um vínculo causal ou mesmo lógico, disso, o
próprio Bispo nos libera. Num diálogo com o fotógrafo Hugo Denizart, na ocasião
da filmagem de O prisioneiro da Passagem, editado em 1982, Bispo faz sua
reverência ao gesto do olhar:
– Bispo, não estou entendendo aquilo – [Denizart] apontava para um objeto.
– Ué, você não enxerga?
– Enxergo.
– Então está visto – pontuava o dono daquele mundo.
(HIDALGO, 1996, p. 134)
No âmbito das interpretações ensaiadas aqui, compreender os trabalhos de
Bispo significa transformá-los em assunto visando uma apresentação didática.
Nesse caso, a compreensão resulta do esforço intelectual para estabelecer
encadeamentos entre as coisas que nos impressionam, inscrevendo-as ao
repertório de conhecimento (que equivale ao que chamamos de “prosa do
mundo”). Pode-se dizer que vem da necessidade de cessar as inquietações
provocadas por aquilo que gera perplexidades por ser estranho ou estrangeiro ao
nosso sistema de reconhecimento.
O ato de compreender incorre na ilusão de que o evento responsável pelo
impacto em nossa percepção pode ser substituído por um arranjo de linguagem
que diga a mesma coisa. Isso se tornou uma prática ou, melhor dizendo, uma
exigência cartesiana, de forma que qualquer manifestação fora do esquema de
legibilidade, em última instância, aparece impedida de circular na esfera social e
por isso fica fadada ao recalque. Ilustram bem essa ideia as figuras que rasuram o
paradigma do funcional e o produtivo como o louco, o marginal, o resto e outras
entidades cujo trânsito livre não é admitido, mas continuam interferindo na
dinâmica do espaço coletivo.
Então, o que move a escrita desta tese de doutorado, está no efeito
produzido pelas composições de Bispo do Rosario: elas fazem estranhar o que
pensávamos conhecer bem, causando perplexidades. Todavia, quando os
mecanismos de reconhecimento emperram, nos resta reaprender a ver o mundo.
80
E, como não cabe nas imagens observadas descrever ou teorizar um método de
composição, recorri a outras entradas, as quais me levam a reflexões sobre sua
potência poética. Mesmo porque, não há entrada em seus arranjos para a palavra
“método” cujos significados sugerem um envolvimento mais racional com o
material a ser trabalhado.
Pelo caminho metódico, um protocolo de operações para obter um
resultado força o sujeito a abdicar do devaneio, da imaginação, da fantasia e de
outras expressões da ficção. Mas, quando o olhar percorre os arranjos de Bispo,
somos envolvidos, talvez sem perceber, pela armação do “jogo das experiências
do ver”. Normalmente, o objeto notado na cena social remete a um significado ou
a um valor, mas aqui há um espalhamento de significados. E parece que a
dispersão dos significados agregados às coisas tem por efeito recomeçar o antigo
jogo de conferir sentido ao mundo, de dar nomes e tramar hipóteses de leitura.
Mas, “isso pra quem enxerga” (HIDALGO, 1996, p. 133), já nos alertava o armador
do jogo.
Nesse jogo, Bispo faz o primeiro movimento. É dado início a partir do
deslocamento de objetos para fora de seu contexto, onde desempenhavam
funções que lhes garantiam lugar na sociedade. Agindo assim, é possível admitir
como objetivo da brincadeira a ação de engendrar estâncias de contemplação (o
maior número que conseguíssemos) para os objetos apresentados, de modo que
dinâmica do jogo seja impulsionada com apostas colocadas em circulação por
meio de expressões que anunciam uma dimensão fabulosa da linguagem: “como
se”, “talvez”, “pode ser”, “quem sabe”... E, como todo jogo é operado no acaso,
não há uma previsão dos acontecimentos e seus desdobramentos. Ao modo de
Mallarmé, um novo lance e , consequentemente, outras perspectivas aparecem.
Um objeto qualquer, no exercício de sua função, poderia ter sua relação de
utilidade (o que lhe dá significado na realidade objetiva) expressa no traçado de
uma linha reta, de um ponto ao outro: objeto — utilidade. Mas em tais arranjos,
lugar das coisas extraviadas, para as quais podem ser pensadas outras
perspectivas, uma ramificação de linhas seria bem representativa. Daí, então, se
quiséssemos esboçar um desenho das relações engendradas para esse mesmo
81
objeto, teríamos como resultado uma construção labiríntica sugerindo uma ideia
de redes de discursos descentrados.
Nessa descrição lúdica, invento o jogo com as ideias fecundadas pela
poética de Bispo. Poderia ser batizado com nome de “Labirinto das perspectivas”
e ser apresentado pelo mesmo texto de abertura da exposição Labirinto e
Ascensão, na Casa França Brasil em 2008:
“Um labirinto é um cruzamento de caminhos, uma teia de sendas que embaralha o começo e o fim do percurso. Em geral, sistema de defesa ou prova de iniciação, um plano preciso de trilhas embaralhadas em volta de um centro, meticulosamente calculado para guardar uma revelação. Ela anuncia e protege a existência de algo que só aos iniciados é concedido acesso: como a imortalidade, a consciência ou a interioridade de si. (...) Mas aquele que penetrou o Labirinto, sem conhecer a priori suas coordenadas, arrisca-se a, nele, irremediavelmente perder-se. Desvario e imprevisibilidade aguardam-nos em suas inumeráveis interseções .” (Marisa Florido César)
Como vista nas construções de Bispo, a desapropriação dos objetos
circunscritos numa sequência de valores atribuídos e compartilhados pela
sociedade nos desperta para novas hipóteses de leitura. Isso acontece porque a
desarticulação remove, momentaneamente, o peso do valor e da utilidade sobre a
matéria e oferece, a partir daí, novas possibilidades de admirá-la.
Assim considerando, é o deslocamento que dinamiza as reflexões sobre as
obras de Bispo. Instiga o pensamento ver lençóis transformados em estandartes
bordados, cobertor transmutado em vestimenta majestosa, colheres e outros
utensílios numa arrumação inusitada para compor seu inventário do universo. Por
certo, é pouco provável que os mesmos objetos, sem esse deslocamento,
acomodados em seus devidos lugares, na rotina de sua função, nos despertassem
atenção ou curiosidade, fazendo operar em modo de alerta nosso esquema de
analogias.
Como efeito, tal deslocamento parece deixar aberto um espaço para onde
são atraídas indagações feitas à matéria, trazendo desconfiança sobre a
estabilidade das classificações.
82
Diante dessas circunstâncias, tendo a atenção sempre corrompida pelo que
está ao redor, o olhar de quem observa estes arranjos perde-se como num
labirinto de limites imprecisos, sem chances de percorrer um trajeto linear e
seguro até um ponto de chegada. Adentro nesse labirinto de ideias guiado pelo fio
de pensamento estendido por Barthes: “O que distingue o labirinto (...) é a
combinação de impasses que não permitem nenhuma saída, e de bifurcações
onde o viajante deve perpetuamente escolher seu caminho entre numerosas
opções que se apresentam a ele” (2005a, p.237).
8.3. O labirinto e a perda das referências
A figura do labirinto parece ser, então, uma boa metáfora onde trabalham os
pensamentos que se avolumaram no contato com os arranjos de Bispo. Tanto a
própria ideia de Metáfora, como o labirinto e as imagens de Bispo sugere uma lista
de significantes em aberto, sempre resistindo ao fechamento. Semelhante a um
labirinto, pode ser que existam muitas alternativas de entrar e se envolver com as
construções de Bispo, mas não há um fim previsto e nem se pode antecipar o que
vem adiante. Só temos noção de suas estruturas depois de percorrer sua
extenção.
O tema do labirinto, é claro, nos reporta a Grécia mitológica: Minos,
Pasífae, o Touro, Minotauro, Dédalo, Teseu, Ariadne, o fio. A construção
arquitetada por Dédalo reúne grande número de divisões, corredores, galerias que
se cruzam para ocultar um centro – o lugar de uma revelação fatal. Mas, nas
composições de Bispo, os “objetos-labirintos” (BARTHES, 2005a) traçam
imaginariamente um labirinto de perspectivas, sem um centro, sem o Minotauro.
83
Quer dizer que não há um objeto a ser encontrado no fim de uma busca; o
significado recôndito não será a aclamação do aventureiro. A experiência do olhar,
ao enveredar-se pela trama de possibilidades projetada pelo “objeto-labirinto”,
valeria pelo objeto de premiação. Tudo nesses arranjos constitui realmente uma
obra dedicada a “perder-se de vista”.
Nesse labirinto, a danação é maior conforme o desejo de controle que se
manisfesta no olhar comprometido com a ordem e com a coerência. O embaraço é
inevitável porque fica inoperante o sistema de reconhecimento, como se houvesse
um desencontro entre o objeto percebido e as informações registradas sobre ele,
o que nos força a admitir um outro regime de sentido. Isso despragmatiza o olhar
e, claro, as operações de leitura.
No imaginário popular, a forma do labirinto aparece como como figura que
simboliza o contratempo de um trajeto ou a perda das referências e a errância
porque depende de uma decisão sobre o desconhecido. Entretanto, o cruzamento
de caminhos conota também liberdade, porque as adversidades encontradas
estão atreladas às escolhas.
Nos arranjos analisados, a descontextualização, a despragmatização e a
combinação inusitadas já sinalizam para o expectador que cada elemento
manuseado pela mão curiosa de Bispo ultrapassa significações e funções pré-
fixadas. Com efeito, isso fere o narcisismo do sujeito demasiadamente seguro de
dominar os limites do mundo, pois foram pensados como inertes e mudos. Por
esse motivo, nos interstícios da razão e do bom senso, as criações de Bispo são
denominadas de alienadas.
Para conseguir aderência da significação nas coisas, é necessário inscrevê-
las em contextos: o lugar-comum das experiências cotidianas, onde qualquer
acontecimento se transforma em fato. Só em contexto funciona o sistema de
significação e a aplicação de conceitos como os quais avaliamos as coisas, tais
como dentro e fora, limpo e sujo, útil e inútil, normal e anormal. Por exemplo, a
manteiga que acompanha o pão e o deixa mais saboroso, quando cai sobre a
toalha juntamente com os farelos, é diminuída à condição de sujeira. O
deslocamento das coisas para fora de seu contexto não acontece sem a perda de
84
significação ou funcionalidade, provocando, consequentemente, mal estar pela
perda das referências.
Outra possibilidade de seguir por esses excursos é estender o fio do
pensamento entrelaçado por Bachelard ao se ocupar da imagem arquetípica do
labirinto usada para simbolizar experiências, lembranças e sensações
relacionadas, em alguma medida, com o estar perdido. “Temos medo de nos
perder, sem jamais nos termos perdido” (BACHELARD, 2003). Na ameaça de uma
vertigem, ficam débeis as marcações sistematizadas para orientar o trajeto
(direita, esquerda, norte, sul...) e, por isso, se instala o temor de não conseguir
retornar ao ponto de origem.
Não é à toa que, na iminência de fulgurações da diferença, de lampejos da
multiplicidade das coisas e de algo mais que possa exceder à “liberdade
consentida”, sem demoras, tudo fica sob a vigia de olhares desconfiados. Teme-se
a impossibilidade de operar um sentido para o insólito e, desse modo, ser
engolfado pela sua presença e dela não conseguir sair. Corre-se o risco de
desencadear o pensamento pelos domínios da imaginação ou por veredas
interiores, desconhecidas, obtusas, como no delírio, no sonho, nas lembranças...
No caso dos arranjos estudados aqui, eles excedem à moral utilitária das
coisas e o princípio de legibilidade, trazendo à tona os excursos da linguagem e a
contingência de sentidos que emperram o esquema de analogias. Ao compor
imagens com todo tipo de material na intenção de (re)apresentar o mundo, Bispo
deixou exposta a pluralidade das coisas e o arbitrário das relações que as
inscrevem em categorias preestabelecidas. Para cada objeto na cena social foi
forjada uma relação direta de funcionalidade. Mas, uma vez desviado de sua
função, ele fica à mercê da imaginação do observador, o qual pode lhe emprestar
outras significações (fecundadas pela memória, pela imaginação, pela arte...) sem
se intimidar com a evidente aparência.
Mas, nem sempre a vertigem labiríntica é derivada do emaranhado de
caminhos. No deserto, seja ele constituído pela imensidão branca da neve ou
pelas movediças paisagens de areia, lembra-nos Bachelard que o espaço infinito
provoca cansaço na visão que se alonga e se estende sem conseguir se fixar num
85
ponto de referência: uma paisagem a perder-se de vista. Em ambos os casos, no
labirinto ou no deserto, a aflição que agita o espírito daquele que se perde tem
uma mesma causa: a inconsistência de referências. E a agonia é maior porque,
fatalmente, nos recordamos sem muita valia das seguras rotas programadas,
sinalizadas, vigiadas pelo princípio de ordem.
Para ilustrar esses caminhos do pensamento, mais uma vez, lembro os
escritos de Barthes, que se aventurou no livro Incidentes, 2004, pelo tema da
referência ou da marcação de espaços usadas como estratégias para orientar
nossos movimentos e simular trajetos, criando a ilusão de segurança. Tal reflexão
se estende pelas frases em que Barthes relaciona experiências na literatura e na
ciência para teorizar a ansiedade da perda das referências:
“certas experiências mostram que o ratinho branco manifestava grande ansiedade quando era colocado numa arena vazia, desprovida de qualquer ponto de referência. Para eu sentir bem num espaço, é preciso, de fato, que eu possa ir de um ponto de referência ao outro, habitar tanto um canto como uma plataforma, e, tal como Robinson Crusoé feliz em sua ilha, ir confortavelmente de uma casa a outra”. (p.55)
Perder as referências tira o pensamento de sua zona de conforto, habituado
a mover-se entre esquemas de analogias para chegar ao entendimento – estado
em que todas as coisas integram e interagem na formação de um circuito de
ideias. Mas, na inoperância dos pontos de articulação, as ideias correm à deriva e
a demanda por novas conexões torna-se possível e até desejável para tramar
novas redes de pensamento e afetos.
A imagem do labirinto alude, portanto, a composições cuja armação não
está subordinada a princípios que garantem uma leitura homogênea. Ao contrário,
armadas sobre segmentos, desvios e ramificações de linhas de fuga, nestas
composições são vislumbradas adventos de heterogeneidade. Na armação
desses espaços só há segmentos e, mesmo assim, é inteiro. Um labirinto se dá
pelo agenciamento de articulações entre os dispersos, que tem como efeito a
possibilidade de deslocamentos.
86
As reflexões tecidas sobre esse tipo de arranjo conduzem também o
pensamento aos escritos de Deleuze e Guatarri sobre a composição do rizoma e
de linhas de fuga. O rizoma é o contrário da estrutura linear e ordenada, pois
enquanto esta se apresenta constituída como um "conjunto de pontos e posições
que opera por correlações binárias entre os pontos e relações biunívocas entre as
posições", o rizoma é decorrente de variações, conquistas, capturas, é
heterogêneo, esparramado "sempre desmontável, conectável, reversível” (2004,
p.32). Deste modo foi definido por Deleuze e Guatarri o rizoma:
“Em um rizoma, todos os pontos podem conectar-se, livres de qualquer hierarquia ou ordem [...] diversos fatos remetem a diversos outros, em esferas que (de outro modo) seriam consideradas distintas. Ciências, artes, política, semióticas se atravessam, entrecruzam-se, mudam de direção segundo este ou aquele choque”. (Ibdem)
Assim, contribui para pensar as criações artísticas do Bispo a imagem do
rizoma trabalhada por Deleuze e Guatarri. Tanto os arranjos quanto o rizoma são
organismos que possuem linhas de crescimento não mais orientadas por uma
escala prevista na lógica cartesiana e, por isso, rasura padrões organizativos. As
linhas de fuga contempladas nos escritos deleuzianos descrevem bem o
movimento das construções de Bispo, que escapam da organização estrutural e
linear.
Eis uma maneira de pensar o mundo que se furta do alinhamento das
informações e transborda a relação de causa/consequência, sujeito/objeto. Por aí
também nos conduz a arte de Arthur Bispo do Rosario, porque ao promover
deslocamentos na arrumação convencional pautada no tripé início-meio-fim, dá
oportunidade ao não-previsto ou não-programado de acontecer. Percebe-se maior
correlação entre tais ideias, quando as aproximamos dos estudos de
BURROWES,1999, que em suas considerações sobre a produção de Bispo, assim
registrou: “Convivem todas as hipóteses na ausência da linearidade” (p.27).
87
9. Arquivos poéticos de A.B.R.
88
Figura 16 Arthur Bispo do Rosario.Vitrines. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
Nos arranjos compostos por Bispo, tudo que ele conseguiu reunir carrega o
selo de uma convocação, como se cada coisa fosse citada para comparecer no
Dia do Juízo. Com efeito, tais construções antecipam uma apreciação pelo julgo
do olhar que percorre todo o material agrupado, querendo reconhecer nele a
representação de uma tradição. Pois, na prática social, antes de serem
convertidos em signos, os objetos cotidianos são transformados em lugares de
significações onde repousam afetos e pensamentos contingentes. Cada objeto-
signo de uma realidade compõe aqui a linguagem grávida de sentidos, com
imensurável potencial simbólico.
Esse modo de pensar nos aproxima dos domínios da semiologia introduzida
por Barthes. Em suas proposições de estudos, é lembrado que os signos na vida
social, os objetos, as imagens e comportamentos podem significar, mas nunca de
modo autônomo. Eles estarão mediados pela linguagem, pela memória e por
arcabouços culturais, o que assegura as diferentes hipóteses de construção de
sentidos.
Para cumprir a missão de apresentar o mundo ao Criador no “Dia do Juízo”,
Bispo reuniu material comum, pormenores, miudezas e detalhes incorporados a
gêneros utilitários que participam do cotidiano da realidade objetiva. Agrupou
fragmentos de objetos, cabos de panelas, tampas, botões, dobradiças e outros
detalhes avulsos, compondo arquivos de coisas aparentemente desimportantes.
Mas, por meio deles, realizou a experiência de uma linguagem que anuncia o
indizível e prefacia as infinidades do mundo. Nessas circunstâncias, percebe-se
que a “prosa do mundo” articulada por Bispo toma forma de arquivos, listas,
compêndios e coleções. Tais composições cumprem a função de apresentar um
conjunto de coisas, dando visibilidade a cada item exposto, sem descuidar do
efeito estético na armação dessa estrutura. São, por assim dizer, construções de
linguagem que trazem alternativas de contextura entre aquilo que afetou o olhar e
o pensamento.
89
9.1. A lista: prefácio das imensidões do mundo.
Olhar uma relação de materiais familiares e, ainda assim, estranhar – o
que isso quer dizer? Eis que o inusitado desta operação revela a desconfiança
sobre a evidente aparência, sobre a gratuidade da transparência ou do “sentido
puro”, porque em tais condições não são requisitados desdobramentos para o
signo que opera dentro de um esquema de significação. Do contrário, quando a
significação estanca, logo se instaura uma interrogação, manifestando uma
perplexidade em relação à dinâmica de determinada manifestação de linguagem.
Experienciamos essa interrupção da cadeia de significados na extensão
dos arranjos de Bispo. Trata-se de uma articulação de linguagem cujos termos
aparecem individualizados, mas sem haver uma estrutura de conexão entre eles,
deixando-se relativamente livres para que se ofereçam a alternativas de relações
de sentido. Tudo parece ser tão óbvio e, ao mesmo tempo, tão obtuso como um
ajuntamento de canecas de alumínio ou um complexo de miudezas da cena
doméstica: abridor de garrafas, colher, chaveiro, peças de fogão, etc.
O movimento da linguagem pragmática aponta em direção ao referente,
mas nunca o revela. Ele é sempre adiado, deixando no seu lugar uma espécie de
promessa (ou a falta) que move a linguagem referencial. Do contrário, a exibição
do referente em sua presença imediata interrompe a dinâmica da linguagem e, por
esse motivo, gera desconfiança.
No impacto causado pela aparição escancarada, o referente é assistido
como um “corpo neutro” que nada significa além de sua presença, num estado de
“grau zero” de significação, que alude à ideia de iminência de sentidos (cf.
BARTHES, 1984, p.58). Mas, de regra, no exercício do pensamento cartesiano, o
que foi individualizado pelos mecanismos de percepção (os cinco sentidos) deve
ser agregado sem demoras a um sistema de significações. No funcionamento
90
desta lógica, não tardam especulações para encadear o que foi flagrado em sua
evidente aparência.
As listas, em certa medida, encenam o advento das presenças imediatas e
da construção de hipóteses de leituras. Os itens relacionados numa lista parecem
não significar nada para além deles mesmos. Em vez de um significado, exigem
copresenças articulando uma trama, uma contextura, uma transação entre eles.
As listas não veiculam, portanto, somente informações, mas constituem sistemas
de referências de mundo, ratificando que o significado é sempre um fato
circunstancial, convocado a comparecer diante da articulação da linguagem.
Uma lista não é obrigatoriamente homogênea e, muitas vezes, segue uma
lógica interna, resultando em combinações que não são reconhecidas de imediato
pelo sistema de analogias. Ela encarrega-se de dispor itens sob uma ordem
peculiar, sem operar relações de continuidade. Na extensão de uma lista, a
relação entre os componentes é flutuante, o que favorece a especulação de
sentidos para o agrupamento.
Por essa abordagem, o mais instigante em uma lista não está na
coexistência de elementos diferentes, mas no próprio local em que eles foram
reunidos – esse espaço de linguagem onde se conjugam, quase sempre,
referências de contextos tão distantes, o que nos dá a liberdade de especular
sobre seu conteúdo e inferir um nexo possível entre os itens.
No desdobramento dessas reflexões, lembrando a missão de apresentar o
mundo no Dia do Juízo, podemos pensar os arranjos de Bispo como expressão do
gênero lista. Em um desses arranjos há: bóbis de cabelo, peteca, garrafa térmica,
cotonetes, objetos desmembrados como um cabo de panela, uma alça... um
agrupamento de objetos sem que nenhum deles seja constrangido a reproduzir
uma ordem hegemônica. Diferente disso, entre eles podem ser engendradas
relações simbólicas que transcendem o manuseio, a aplicação, o funcionamento,
a operação utilitária dos objetos. Assim considerando, visualizo os trabalhos de
Bispo na dimensão do pensamento simbólico assinalado por Ernest Cassirer: “É o
pensamento simbólico que supera a inércia natural do homem e lhe confere uma
91
nova capacidade, a capacidade de reformular constantemente o seu universo
humano” (2005, p.104).
Em sua presença imediata, o objeto trapaceia com a divisão
signo/referente, significante/significado, objeto/função. Não é o caso de estancar a
ação da linguagem que dá complexidades ao real, mas de se perguntar pelas
potencialidades, pensar as copresenças de significados evocados pelo objeto,
devolvido à condição de coisa. No caso dos arranjos de Bispo, no desligamento da
função pragmática, o objeto participa do jogo da linguagem como signo de um
pensamento que se rendeu à poesia vigente nas intimidades da matéria.
Esse comportamento é flagrante numa coleção ou numa lista de coisas
que, sob um olhar particular, ganham dimensão simbólica, infringindo os limites do
entendimento. Na experiência simbólica, é imprescindível atravessar os “níveis de
realidade” (BERGER, 2011) e poder mover-se, por exemplo, entre o profano e o
religioso, o comum e o particular, o lúdico e o racional... Sendo assim, no lugar de
significados e funções, o objeto invoca a presença simultânea de pensamentos
desiguais, sem precisar fazer oposições ou determinar entre eles uma relação
hierárquica. Ele é tomado como ponto de articulação ou ponto de convergência de
perspectivas. As palavras de Blanchot, transcritas a seguir, conferem leveza e
ajudam esse debate atingir outros níveis de compreensão sobre o simbólico:
O símbolo não significa nada, não exprime nada. Ele apenas torna presente – fazendo-nos presentes nele – uma realidade que escapa a qualquer outra captura e parece surgir, ali, prodigiosamente próxima e prodigiosamente longínqua, como uma presença estrangeira. (2005, p. 127)
Desagregando e reagrupando objetos variados, tal qual um colecionador ao
engendrar relações simbólicas em sua lista de coisas, Bispo transcende as
referências sedimentadas pelo argumento da funcionalidade, da praticidade, da
presteza, da eficiência... Por esse modo de ver, Bispo acabou inventando espaços
onde os objetos agregados podem dizer-se em suas expressividades. Mas, no
senso comum, não faz sentido exibir o que já é evidente. Daí, então, na leitura de
tais arranjos, somos tentados a especular aproximações entre elementos diversos,
92
assim como estranhamos a aproximação de coisas pertencentes ao mesmo
gênero, sob a suspeita haver diferenças ainda obtusas (MACIEL, 2004). É o que
sugerem os agrupamentos onde vemos a repetição sequencial de elementos do
mesmo gênero expostos sobre um suporte como as canecas, as colheres, pares
de botas, de tênis, de chinelos, etc.
93
Figura 17. Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Canecas. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo, 2012.
Nos horizontes dessas reflexões, os arranjos de Bispo podem ser
abordados a partir da definição do gênero lista: um texto híbrido que enumera
nomes de pessoas, de coisas, de lugares e outras referências de mundo,
oscilando entre o fechamento do “ponto final” e a contingência da “et cetera”, por
94
efeito de representar também o que ficou de fora dessa relação. Como em toda
lista, conjugam-se princípios opostos como o da redução (o resumo em tópicos, o
sumário) e o da expansão (as reticências e a etc).
Todavia, pode parecer estranho dizer que as imagens de Bispo, contendo
objetos em quantidades limitadas e determinadas pelo suporte, ao mesmo tempo,
conseguem sugerir a mesma carga semântica da “et cetera”, insinuando a
existência de mais coisas que aguardam para serem vistas num infinito potencial
(ECO, 2010).
Seguindo por essas reflexões, parece que a “et cetera” nos escusa de uma
preguiça de continuar dizendo o mundo em sua infinidade; ou nos poupa do
constrangimento de assumir a impossibilidade de um conhecimento pleno do
universo, ou ainda do vexame pela incapacidade de dar nome ao que falta. Em
todo caso, através da “et cetera” podemos imaginar o desfile de um cortejo
interminável, cujo movimento vai se extinguindo, não porque se esgotou, mas por
não conseguirmos acompanhá-lo (BARTHES, 2005a).
A “et cetera” deixa uma promessa de experiência com o que fica esquecido
do lado de fora dos esquemas de representação do mundo social; contudo, ela
também figura como imagem da circunscrição e da contenção, além de ser índice
da conformação com os limites. Sob a luz do pensamento de Barthes, podemos
ler na “et cetera” a opção de ficar restrito a uma configuração de realidade, de não
querer sair da zona de conforto, do ambiente familiar, mesmo porque os que
adiam o uso da etc, ultrapassando a marcação convencional, são apontados como
louco, alucinado, visionário... Escreve Barthes:
“Na Natureza, as coisas se repetem, mas essa repetição nunca é abstrata: nada de ‘etc.’. O homem, por sua vez, está sempre preso no mesmo movimento: figuração, repetição, abstração, gregarismo, aversão, rejeição” (BARTHES, 2005a, p.170).
Assim, ao nos deparamos com uma sequência de botas de borracha, outra
de canecas e outra de colheres, por exemplo, esbarramos nesse paradoxo vigente
em toda lista: a ordem em apresentar uma enumeração de objetos e a vertigem
por nos levar a imaginar o número de objetos fora dela, uma enumeração que
95
talvez nunca termine. Nessa particularidade, surge um grande fascínio, porque se
deixa entrever, através da imaginação, a imensidão do mundo, nos aproximando
de um plano particular onde inventamos outras relações de sentidos para as
coisas.
Então, numa lista, gênero impregnado do método sistemático, burocrático,
manifestam-se núcleos de experiências que são referências da condição humana:
desejo, memória, registro, criação... Na lista encenam-se, sobretudo, a
confabulação de sentidos. Por esse motivo, ao mesmo tempo em que configura
uma linguagem particular (quase um esquema pessoal), a lista alcança
rapidamente uma comunicação universal porque deixa falar a linguagem do outro;
ela nos absorve e bem depressa e se torna um lugar familiar. É, pois, um espaço
intermediário da linguagem entre a mímesis (a força encarregada de estabelecer
correlação da linguagem unidimensional com as multiplicidades do real), a práxis.
Nessa travessia depare-se com entre-lugares, espaços de heterologias, onde são
tramadas redes de significação entre os termos.
De fato, os agrupamentos realizados por Bispo surpreendem o sentido da
visão, não pelos objetos que as integram (a maioria facilmente reconhecida); mas
pela maneira como são articulados, pelo tipo de relação (ou falta de).
No tipo de lista elaborada, percebe-se que não há a preocupação em
estabelecer relações recíprocas ou causais entre elementos, mas também não se
deve julgá-la como obra construída ao acaso. Há um repertório de materiais
carregados de memória, em que cada objeto tem a sua narrativa própria contada
nas marcas deixadas pelo uso ou pelo desgaste natural do tempo. Mas, não
podemos deixar de notar que há um conjunto de botas com as mesmas
características, dispostas em pares viradas para um mesmo lado; noutro conjunto,
fileiras de canecas de alumínio, penduradas pelas alças, todas apontadas para um
mesmo lado.
96
Figura 18. Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Botas. Registro da 30ª Bienal de artes.
São Paulo, 2012.
97
Em sua grandeza infinita, a seleção de um elenco instiga o leitor a cogitar
no que viria a seguir e, por isso, acende reflexões sobre a transitoriedade de um
“ponto final”. Pelo que foi dito, na composição de uma lista pode ser analisada a
expressão daquilo que caracteriza o humano: a busca por relações de
contiguidade no repertório interminável das coisas que delimitam nossa
concepção de real. Deseja-se ver um nexo entre os itens que constituem uma
lista, fazendo com que integrem e engendrem uma “prosa do mundo”.
Uma lista pode ser motivada pela necessidade de pensar nossos desejos.
Desejamos aquilo que impressiona os sentidos. Contudo, mesmo algo tão
arbitrário (pessoal) quanto o desejo demanda algum tipo de ordem, ainda que
básica, trivial, mas determinante para sua arrumação, a fim de garantir um formato
indispensável para exprimir a força da atração por um objeto, sem que isso se
confunda com o desejo em si.
Nas palavras de Agamben, desejar é natural do humano, mas “não
podemos trazer à linguagem nossos desejos porque os imaginamos. [...] O corpo
dos desejos é uma imagem. E o que é inconfessável no desejo é a imagem que
dele fizemos”. Então, sendo parte indissociável do subjetivo sempre misterioso,
“comunicar os desejos imaginados e as imagens desejadas é a tarefa mais difícil”
(2007, p.49). Portanto, uma lista torna sensível o pulsar do desejo diante do qual
reconhecemos a debilidade das estruturas da linguagem para esboçar sua
dimensão.
Sem muito esforço, pelo elenco e pelo modo de arrumação dos arranjos de
Bispo, percebe-se que não se trata de uma lista prática, funcional em situações
específicas, como uma lista de compras, ou de atividades a serem cumpridas, ou
o menu de restaurantes, ou o catálogo de publicações em uma livraria, nas quais
estão enumerados itens referentes a uma realidade que lhe é exterior. A seu
modo, sob o peso do contexto e de um critério de inclusão – o paradigma – a lista
funcional imprime unidade, uma correlação entre as partes. Sem levar em
consideração esses fatores, tal lista pareceria difusa como um ajuntamento
casual, uma espécie de entulhamento de material.
98
Contudo, nas composições de Bispo parece desenhar-se um infinito
entre as coisas catalogadas, porque não sugerem uma finalização, não se
concluem numa forma, e em vez disso nos projeta
aos encantos do porvir. Os limites do suporte
(tábuas, papelão, tecidos) não nos convencem
de que seja o fim da enumeração, a qual se
estenderia escapando ao nosso controle e
conhecimento. Desta forma, temos um elenco que
traz uma imagem imprecisa do universo, desfazendo
a ilusão de que a linguagem poderia ser a medida
para as coisas. Recebemos, então, esse conjunto de
obras como uma compilação de listas poéticas.
Essas listas poéticas podem ser lidas como prefácios
de realidades em perene dinâmica de atualização,
anunciando outras possibilidades de vir a ser, num
estado de indizibilidade. Bispo elaborava listas dando
a impressão de formar coleções que mapeavam seu
mundo. Esse universo foi tecido pelo seu gosto
particular por discretos encantos da vida e tomou
forma de “vitrines”, bordados em estandartes,
“objetos mumificados” (O.R.F.A), vestimentas, faixas
de miss...
Nessas últimas
produções, por exemplo, topônimos e nomes de rios
dos Estados do Brasil sugerem vastidão territorial e
diversidade de cenários (ver figura 19). Referências a
outros países (Afeganistão, Inglaterra, Japão, Cuba,
Rússia...) e a acontecimentos de sua época são
encontradas em grande escala nessas composições.
Cito as palavras do próprio autor para esclarecer como
reproduzia em seus bordados fatos da atualidade: “... leio jornal todo dia, anoto
99
Figura 19. Arthur Bispo do Rosario. Cetro e Faixa de Miss. Miss Vitória.
tudo, a ação dos países, separo em papeis e faço a faixa, escrevo os dizeres. Sei
que a Rússia invadiu as fronteiras desse país [Afeganistão]. Eu também sinto da
mesma forma...” (apud HIDALGO, 1996, p. 122) assim falou Bispo ao repórter do
programa “Fantástico”, da TV Globo, exibido em 18 de maio de 1980, quando o
país viu pela primeira vez sua obra.
Bispo compunha extensas listas de nomes de pessoas, dispostos em
ordem alfabética na maioria das vezes, trazendo também sobrenomes nos casos
de homônimos. Um fato curioso é a construção labiríntica de nomes de mulheres
bordados na parte interna do Manto da Apresentação26 (apenas um nome
masculino, Omar Marques, sobre o qual não traz informações os estudos
dedicados à biografia de Bispo), compondo uma relação das pessoas que
entrariam com ele no Reino dos Céus “ — levo todo mundo que tem o nome
inscrito aqui no meu manto” (apud HIDALGO, 1996, p. 65).
Figura 20. Arthur Bispo do Rosario. Manto da
Apresentação (fragmento).
26
2
Nome de tombamento para catálogo do Inepac, após a morte de Bispo.
100
101
Figura 21. Arthur Bispo do Rosario. Lista de nomes em estrutura de madeira e papelão. Registro da 30ª Bienal de artes. São Paulo, 2012.Os ajuntamentos de objetos variados não escondem o trato pessoal e
intimista. Sobre os mesmos ajuntamentos nos distraímos a perguntar a qual
critério foi submetido este elenco. É difícil especificar um paradigma que nos sirva
de orientação na leitura e, por isso, não há como programar um ponto final ou um
limite para essas composições. Embora não consigamos muitas das vezes
estabelecer um critério classificatório preciso, não podemos deixar de admirar o
trabalho estético de Bispo.
Na catalogação praticada por Bispo, sua linguagem reverencia e ao mesmo
tempo inaugura uma construção de mundo, num gesto típico de um deus ou de
um poeta.
102
Figura 22 Arthur Bispo do Rosario. Vitrines em exposição na 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
A intensidade poética dos trabalhos de Bispo deriva da tensão entre ordem
e vertigem, expressa na forma das listas cujo conteúdo pode ser numerado, mas
sem significar um encerramento ou conclusão definitiva. Pois, toda lista é
atualizável e, por essa razão, está sempre em aberto.
Consequentemente, desprendem-se delas inumeráveis possibilidades de
leituras, num movimento silencioso para restabelecer uma “unidade”. O que
justificaria a seleção dos itens que integram uma lista? O que explicaria o arranjo,
a disposição de cada coisa do conjunto? No âmbito desse questionamento, a
arbitrariedade das listas (sempre um recorte pessoal) vem corroborar a
complexidade do real.
Logo, o que justifica o exercício de pensamentos dessa escrita não está na
compreensão, pois sua obra é clara. O impulso vem do desejo por continuar
explorar hipóteses de sentido para o que nos é familiar e, dessa maneira, estender
a “prosa do mundo”. Tudo que se dá a uma apresentação performática reclama
novas abordagens. As imagens de Bispo nos encorajam a pronunciar indagações
sobre a matéria e reconhecer a instabilidade das classificações.
Nestas imagens somos afetados por uma magia que nos leva agir sobre as
coisas, chamar por outras formas de estar no mundo ou fazer aparecer outros
pontos de vistas, suspendendo o compromisso de estabelecer e legitimar uma
ordem. Sem pretender explorar conotações míticas, lembro os escritos de Giorgio
Agamben (2007) para repassar o conceito de magia. Na interpretação desse
ensaísta, há um modo de dizer que desperta, ou seja, cativa e arrebata algo que
ficou esquecido sob o gênero das coisas. Nessa concepção, o poder de magia
não está no criar, mas no modo de chamar, de saber combinar elementos de
linguagem para arrebatar. Semelhante ao que acontece nos arranjos de Bispo, por
meio de um trabalho estético pode ser (re)animado aquilo que vige furtivamente
no interior das coisas, atualizando os limites do mundo.
Decerto que isso não ocorre sem a profanação do cânone, sem a
desobediência das forças reguladoras do desempenho dos objetos selecionados.
No caso das imagens compostas por Bispo a profanação é derivada da realização
103
de outras percepções dos objetos, abrindo espaço para uma relação desconfiada
com o real que está entre nós como facticidade (uma espécie de “estado natural”).
Pois, em tais imagens, não há meio de disfarçar o estado vacilante das forças que
mantém em funcionamento o sistema de práticas sociais.
Os trabalhos de Bispo, longe de ser apenas uma experiência de linguagem,
faziam parte de um compromisso com Deus e com o mundo. A ele foi designada a
missão de fazer um inventário das coisas. Portanto, melhor se ajusta, em vez da
categoria de gênero ou forma, a imagem da lista para dizer estes trabalhos, pois
foram criados espaços para objetos descredenciados de funções e, agora, não
são senão expressões da contingência. Na composição destas listas, como efeito,
se realizam possibilidades de enquadramento para conteúdos diversos,
desencadeando a percepção das multiplicidades do mundo e dando a entender
que ele pode ser bem maior do que ficou convencionado.
104
9.2. A poesia tácita dos objetos
Os cenários da vida cotidiana não estão apenas cheios de objetos, como
também são circunscritos por eles, convencionando contextos e determinando
comportamentos. Nossa relação com eles nunca é direta, porque não são vazios
de significados. A escolha de um objeto depende de algo que transborda o uso:
sua beleza, sofisticação, raridade, valor afetivo, social ou mercadológico...
Numa arrumação, um artefato associado à ideia de refinamento ou “bom
gosto”, por exemplo, pode influenciar nas atitudes, dirigir os gestos e conter
excessos, deixando entrever, nesses cenários, uma forma de atuar que perpassa
pelos objetos. Fica subentendida nestas anotações a necessidade de projetar o
olhar além da inércia dos objetos e flagrar sua dinâmica na cena social: eles
figuram na condição de produto e de processo de fatos culturais. Por tal motivo, a
artificialidade da matéria e do valor dos objetos devolve um nítido reflexo do
código regulador dos jogos sociais.
Na orientação dos estudos semiológicos de Barthes, 2001a, ensaio um
desdobramento do conceito de objeto, considerando-o como aquilo que se oferece
a vista, numa aparência e numa existência não humana. Estar na condição de
objeto significa ser alvo de especulações, isto é, ser assediado pelo pensamento,
na tentativa de convencionar funcionamentos ou atuações em um cenário
predeterminado. A convenção, nesse caso, torna-se índice da existência de outras
possibilidades de realização para as coisas, mas, por razões que beneficiam um
grupo, uma delas foi apontada como padrão. De fato, não haveria abstração
possível se ficássemos sensíveis às potencialidades das coisas. Em nome de uma
praticidade é suprimida a pluralidade.
105
Na automatização da vida, passamos pelas coisas sem acionar um
pensamento sequer a respeito delas, resultando na economia de esforço mental
por não precisar conferir as hipóteses de sentidos. Portanto, não as indagamos
até que algo emperre, esteja fora do lugar ou um incidente qualquer aconteça. Nas
composições de Bispo, o insólito das novas relações entre os objetos reunidos
ocasiona incidentes que abalam a confiança na “naturalidade” e os devolve para o
universo das coisas inventadas, artificiais, onde também são vislumbradas
potencialidades de atuação. O artificial é da ordem do fabricado, inventado, forjado
e, por isso, figura como um dos signos da liberdade criadora.
A partir daí, iluminam-se caminhos para melhor aproximar-se dos objetos
afirmados pelos arranjos de Bispo, uma vez que cada um deles parece renunciar o
estado de reconhecimento imediato, encerrado como natural, o qual é preciso
saber operar bem para ser considerado normal. O reconhecimento é da ordem do
social e está a serviço da constatação do fato – um evento cuja capacidade de
impressionar ficou esquecida. Mas, desse lugar inaugurado por Bispo, os objetos
acenam para outras ideias e reclamam por novos olhares que atravessam a
“facticidade evidente” (BERGER, 2011).
Digo isso, apontando não só para aqueles objetos que compõem os
trabalhos catalogados como “Vitrines” (as assemblages). Faz parte do debate
qualquer material projetado pelo intelecto humano, como lençois, uniformes,
vassouras, palavras e tudo mais apanhado por Bispo para formar imagens da
potência de mundo. Cada coisa concentrava um universo de referências que se
tornaram anacrônicas para as relações dentro dos arranjos estudados.
O surpreendente nas composições de Bispo fica por conta dos objetos
triviais da cena social, sobre os quais investimos movimentos de linguagem no
esforço de alcançar algo ainda despercebido. À vista disso, recolher objetos
utilitários e fixá-los em suportes de madeira e papelão teve como resultado mais
do que um curioso amontoado de matéria sem importância. Destituídos do
interesse imediato, cada peça do arranjo participa da condição de “coisa”: isto que
se permite à especulação de sentidos não programados, que para serem
acionados dependem da força de impacto sobre as retinas de quem as vê. Com
106
efeito, Bispo armou arranjos de mundo, apostando, ao seu modo, nas
potencialidades do material dado como pronto.
Acontece, dessa maneira, a afirmação do objeto: sem o subterfúgio da
função, sem o argumento do sentido ou da explicação para justificar sua presença,
é como se em cada arranjo fosse celebrado o efeito de deslumbramento, de
entusiasmo, de exaltação... Na extensão desse gesto, a força aplicada na
impressão de um sentido ou de uma utilidade, que passa pelo sujeito e incide no
objeto pode ser notada por outra via, na direção contrária: do objeto ao
observador. Isso implica dizer que essa força não está mais em suas mãos, sob
seu controle.
Dito dessa forma, não há dúvidas: os objetos são, de fato, as engrenagens
que articulam as reflexões perpassadas entre os arranjos de Bispo. A partir de
objetos prosaicos sua arte ganha consistência – lençóis, uniformes e todo tipo de
material por ele reunido. Ao perceber que estão reagrupados sem o compromisso
de reproduzir a ordem cotidiana dos sentidos, despertam no observador suspeitas
sobre a obviedade de suas formas e sobre a naturalidade e de suas funções. Os
objetos não se limitam mais a ser o alvo da ação; eles também agem no mundo:
marcam limites, delineiam contextos, localizam o observador...
Portanto, na condição de sema cultural responsável por nuanças de tempo
e espaço na caracterização de um cenário, o objeto tem forças para engendrar
espaço de construção de sentidos. Nesse caso, os objetos estão a serviço (como
será cuidado mais adiante) do exercício do fingimento, ou da fabulação, ou da
poesia, lugares de produção de afetos e conhecimento – nomes com maior
chance de dizer as composições de Bispo.
O leque de ressonâncias semânticas da palavra objeto tange a escrita de
Roland Barthes (2001a) no ensaio “Semântica do Objeto”, e os estudos de
Baudrillard (2008) concentrados no livro O Sistema dos Objetos. Como já
antecipam os títulos desses dois escritos, há o interesse de trazer para o debate a
linguagem que perpassa os objetos e os transforma em signo de um fato cultural.
Sabemos, pois, que todas as coisas fabricadas não se restringem ao puro uso e
são indissociáveis de significações conferidas pelo grupo social. Semelhante ao
107
que ocorre com o signo – esse artefato da linguagem – sempre há um sentido que
extravasa o uso.
Assim, o objeto também aparece sobre um cruzamento de duas
coordenadas: uma simbólica, de profundidade metafórica, e outra, a da
classificação, de extensão criteriosa e enciclopédica (BARTHES, 2001a, p. 171-
180). Por isso mesmo, o objeto pode guardar em sua aparência sentidos
independentes de sua função (riqueza, simplicidade, agressividade, serenidade...).
Daí, então, no jogo de interações entre sujeito e objeto é possível especular sobre
o que se agita no imaginário de uma geração: os objetos recebem a marca de
uma relação afetiva, movida pelo assédio do pensamento na vontade de possuí-
los. As palavras de Baudrillard (2008) transcritas a seguir ampliam a dimensão
destas reflexões:
“Admitamos que nossos objetos cotidianos sejam, com efeito, os objetos de uma paixão, a da propriedade privada, cujo investimento afetivo não fica atrás em nada àquele das paixões humanas, paixão cotidiana que frequentemente prevalece sobre as outras, que por vezes reina sozinha na ausência das outras”. (p. 93)
Nos arranjos de Bispo, na inatividade de uma função e desalojados de um
contexto, numa celebração ao ócio criativo, os objetos tramam uma ambiência
poética e imprimem ânimo ao desejo de ver. Consequentemente, a atenção
deliberada sobre as coisas, uma espécie de “querer ver”, transpõe o olhar
automatizado, também superficial, e faz duvidar do que se imaginava conhecer. A
partir daí, o objeto – signo dos atos sociais – passa a dinamizar um movimento
vertical de aprofundamento nas camadas do real, a fim de explorar reservas de
sentidos.
As imagens de Bispo nos dão a experiência da ampliação dos limites do
mundo pelas coisas desimportantes. Por meio delas, a linguagem ramifica-se,
desdobra-se, envolvendo-nos em uma atmosfera poética. É importante notar que,
nesse caso, num jogo de ambivalência, a expansão ou leveza do pensamento é
sugerida por objetos marcados pela concretude, pela materialidade bruta, sem
nenhum refinamento. Enveredando por temáticas afins, Bachelard nos lembra do
108
quanto somos atraídos prazerosamente por figurações tomadas ao acaso, como
focos de ambivalência (2003, p.8).
Penso que isso acontece porque diante das ambivalências somos aliviados,
ainda que momentaneamente, do constrangimento do silêncio resultante da falta
de um comentário. Na poética de Bispo, nuances de ambivalências aparecem nas
ideias de utilidade/desutilidade, ordenação/vertigem, construção/desconstrução,
vida/morte, prosaico/poético... Eis que a liberação de efeitos semânticos está
prazerosamente relacionada a não ter obrigação de encerrar uma cadeia de
significados, escolhendo entre um ou outro sentido.
Podemos, assim, vislumbrar uma percepção poética da linguagem que
passa pelo gozo proveniente da ação de imaginar possibilidades de sentidos em
copresenças, sem o comprometimento de fixar algum deles. Mas, do contrário, se
nenhuma marca anima o desejo de reconstrução semântica, é porque o texto não
foi percebido como poético; sua composição não favoreceu o contato com outras
camadas da realidade, onde ganha expressividade o modo singular de arranjar as
referências de mundo (ZUMTHOR, 2007). Em vista disso, o deleite causado pela
linguagem também está na abertura de modos alternativos, performativos, de
encenar uma primeira pessoa, entendendo disso o oposto de atestar uma
identidade mediada pelo jogo social.
Alguns episódios da biografia de Bispo, na condição de interno em
tratamento psiquiátrico na Colônia Juliano Moreira, inspiram desdobramentos a
respeito dessa liberdade de dizer “eu”, uma vez que logrou com a arbitrariedade
do rótulo de “esquizofrênico paranoico”, limitado demais para classificar suas
inquietudes. Naquela conjuntura, por meio de suas criações, conseguiu encenar
traços de sua singularidade, esquivando-se de generalizações que o fariam
comum – “invisível” – à totalidade daquele grupo de pessoas, como podemos
conferir ipsis verbis no fragmento de uma conversa em que falava de seu trabalho:
“Eu já fui transparente. Às vezes, quando deixo de trabalhar, fico transparente de novo. Mas normalmente sou cheio de cores” (apud HIDALGO, 1996, p.)
109
Bispo fez de sua arte um lugar raro para a performance da primeira pessoa.
Da relação com os objetos foram projetadas outras subjetividades, renunciando
aquelas instituídas e limitadas à loucura (uma condição patológica e socialmente
marcada pelo estado improdutivo do ser). Daí, então, confirma-se a proposição de
que a obra inventa, antes de qualquer coisa, o seu criador, o artista.
Decerto, os aplausos ao trabalho de Bispo não estão focados para a
precária condição na qual foi confinado. José Castello, num texto dedicado a
relatar seu contato com Bispo, em 1985, depois que este já fora descoberto pelas
lentes de fotógrafos e jornalistas, nos apresenta uma noção do cenário degradante
que contrastava com a grandiosidade estética de suas imagens:
Quando cheguei mais perto, porém, vi pequenas nuvens de baratas, cascudas e cintilantes, que desciam e subiam, atropelando-se sobre as fazendas. Elas pareciam costurar os estandartes de Bispo; circulam tão à vontade, que, pensei, talvez até fizessem parte de sua concepção. Alguns pensamentos enviesados, em lampejos de luz, entrechocam-se em minha mente, imitando o movimento daqueles insetos. Eu já não sabia o que pensar, e nem mesmo se ainda pensava. (CASTELLO, 2006, p. 289)
Investido de outras credenciais, as quais lhe permitiram assinar outra
subjetividade diferente da loucura, Bispo compôs uma vasta obra cujo efeito
reanima a dinâmica no mundo mostrando que a matéria já conhecida pode ser
redescoberta; como se ele ainda percebesse algo já esquecido pela maioria das
pessoas. Voltado para a tarefa de apresentar o mundo, Bispo fez sobressair nos
objetos uma expressão da condição humana, o meio pelo qual nos inscrevemos
no universo: atribuir deliberadamente significados e valores ao que afeta a
percepção. O cuidado estético aplicado na armação e na atenção a detalhes que
impressionam pela delicadeza e harmonia sugere olhar os objetos arranjados
como um acontecimento, sem precisar conferir se tais construções apontam para
o mundo real ou imaginário.
De certo modo, no instante de contemplação proporcionado no repertório
das obras aqui mencionadas, ganham volume as inquietações que se agitam em
torno dos efeitos causados pelos objetos. Sob o esclarecimento trazido pelas
110
palavras de Baudrillard, pode-se pensar essa influência, observando que “todo
objeto tem duas funções: uma que é a de ser utilizado, a outra a de ser possuído”
(2008, p. 94). Isso é flagrante na passagem da sociedade artesanal para industrial,
no século XIX, quando outros conjuntos de valores foram agregados ao material
produzido. Transformações na estrutura social desencadearam inevitavelmente
mudanças no ritmo de vida, que logo revelou a carência de novos produtos a fim
garantir a adaptação nessa fase.
Sob o império das circunstâncias, inovações de técnicas e resultados de
produção implicaram em outro tipo de relacionamento como o objeto. Além da
funcionalidade, sua coexistência na cena moderna recebe um apelo de conotação
formal, que logo se desdobra em signo de poder aquisitivo. Nas sociedades de
consumo, mais do que um utensílio, ele virou um emblema, um assinatura, índice
de estilo de vida... Os olhos criam estruturas de valor e significado diante de um
conjunto de objetos.
Parece que celebrando as formas artificiais, as sociedades ocidentais
reverenciam o potencial criador da mente humana. Ficamos envaidecidos pela
diversidade de objetos que conseguimos acumular; identificamo-nos com eles
assim que avistamos traços peculiares, detalhes escondidos, e outras pequenas
particularidades por onde se vislumbra a dimensão do prazer da descoberta.
Então, amamos nos objetos a nossa condição de sujeito: atribuir sentido, valor, ou
qualquer marca pessoal.
Selecionar um objeto sobre o qual se desdobrará um fluxo de ideias ou
sentimentos depende de um golpe de vista que faz sobressair certos traços,
desfavorecendo outros; o que também implica esquecer sentidos acumulados
nesse objeto durante o exercício da função. Trata-se, por assim dizer, de uma
aventura do olhar cuja figura do colecionador, o amador das coisas, contribui para
estender esse debate.
111
9.3. Colecionador
“Cada objeto é representante de uma infinidade de objetos”
(BACHELARD, 2006, p 35)
112
Figura 23 Arthur Bispo do Rosario. Vitrines em exposição na 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
Do olhar atento para flagrar um movimento de linguagem que pudesse ser
identificado como operador dos trabalhos de Arthur Bispo do Rosário, foram
criados os exercícios de pensamento apresentados nesta tese. Porém, a
extensão, a variedade e o caráter incomum dessa nova poética nos deixam alerta
113
para o risco de um inevitável colapso nas tentativas de emprestar-lhe um
regramento seguindo o paradigma cartesiano.
No impacto visual de tais arranjos, entretanto, percebem-se movimentos de
efeitos heterogêneos, descritos como aglomeração, repetição, interrupção... Todos
eles presentes na tensão instaurada quando se agrupa material diverso em
espaços de significação.
Nas combinações particulares de objetos, cuja lógica de organização
aparece obtusa, conseguimos visualizar um possível movimento articulado por
Bispo para reapresentar o mundo em sua complexidade. “Arthur Bispo do Rosario
produziu e colecionou um universo de miniaturas numa cela minúscula”, escreveu
a jornalista Luciana Hidalgo (1996), arriscando no verbo colecionar uma tentativa
de expressar o singular agrupamento de um repertório variado. São objetos do
cotidiano manicomial, outros vindos de fora, achados, comprados ou
presenteados, como panos velhos, pedaços de papel, utensílios domésticos,
sapatos... No contexto de sua obra, o processo criativo ficou marcado pela
insistente busca por uma organização pessoal para o material recolhido,
semelhante ao que acontece em coleções e arquivos.
É importante reiterar, mais uma vez, que esse ajuntamento de objetos está
relacionado ao impulso de projetar sobre uma exterioridade traços de uma
intimidade. No curso habitual dos fatos, aquilo que impressiona os sentidos, sem
demoras, é assediado por um princípio de ordenação, de classificação e outros
índices de transbordamento do ser. Nessa operação de desdobrar-se sobre as
coisas, é revelada a maneira peculiar de como o humano se inscreve, habita e dá
forma ao mundo.
Aponta-se grande carga de subjetividade nos diferentes agrupamentos
feitos por Bispo, chamados de “Vitrines”, confirmada pelos enredos particulares
tramados para as coisas. Isso compromete aquelas qualidades de objetividade e
clareza tradicionalmente apreciadas pelo pensamento lógico, tornando-as
inoperantes. No entanto, as construções elaboradas por Bispo, mesmo não sendo
possível conferir nelas relações de causalidade, produzem impacto forte demais
para serem ignoradas. Elas dão a ver no objeto a dimensão daquilo que marca a
114
sua própria condição de objeto: o fato de ser cunhado e governado por uma
subjetividade.
Nesses arranjos, a partir de declarações apresentadas pelo próprio Bispo,
fica evidente que cada elemento está circunscrito ao perímetro de extensão
subjetiva, tal como se depreende no diálogo provocado por Hugo Denizart, na
ocasião em que documentava a rotina da Colônia Juliano Moreira:
Bispo: (...) No estado que eu represento, tenho representação daquelas bandeiras, dos países, já está escrito. Tenho representação das misses, tenho representação do que é uma esquadra, tenho representação das coisas existentes.
Hugo: Tudo o que existe está representado aí?
Bispo: Tudo. Tá mais do que visto. Mas pra quem enxerga (...)
(apud HIDALGO, p. 141)
Embora esquecido ou banalizado pelo olhar, o material recolhido aparece
circunscrito ao modo de ser próprio do humano e não existiriam para além dele.
Dito assim, nos leva a pensar as relações entre objetos e sujeito possuidor:
imagens das complexidades do sujeito podem ser avistadas nas coisas.
Mais uma vez, por via da imaginação que resultou na criação destes
arranjos, podem-se apresentar questões válidas sobre o mundo percebido e
medido pelo pragmatismo. Isso consagra o trabalho poético de Bispo como palco
de saberes tácitos sobre o mundo e traz para essa poética apreciações diferentes,
dinamizando o debate que introduz a arte como um dos expoentes do
conhecimento sensível, frente ao conhecimento lógico ou intelectual.
Os ajuntamentos moldados por Bispo deixam transparecer um tipo de
conhecimento peculiar ao objeto, mas em estado latente. Trata-se de algo que
está presente embora não tenha sido arrebatado ainda pelo olhar. Esses
conjuntos de objetos guardam intrigantes simetrias, mostrando que sob
semelhanças explícitas como numa reunião de colheres, ou de canecas, ou de
sapatos, se agitam diferenças invisíveis (MACIEL, 2004). Nisso percebem-se
pontos em comum com o trabalho de colecionador, que recolhe referências e
115
estabelece para elas uma ordem, quase sempre orientada por critérios
particulares ou por obsessões suas. Contudo, em estâncias operadas pelo olhar
pessoal e por afetos, figuram saberes das intimidades das coisas, dados que
seriam invisíveis fora da dimensão amorosa.
No deleite do colecionador, o prazer das pequenas descobertas faz
sobressair a visão em paralaxe, que põe em cena diferenças de um objeto quando
observado de outros ângulos. A coleção, nesse aspecto, movimenta as suspeitas
sobre a plenitude do estado de normalidade das coisas: um detalhe ressaltado ou
um traço (re)descoberto estendem as fronteiras do conhecimento. Pode-se dizer,
então, que nessa disposição assumidamente subjetiva, confirmam-se as
multiplicidades do mundo e a diversidade do olhar. Eis que percebemos
novamente sobre os seres os acidentes de perspectivas.
No exercício de sua função, é comum ao objeto passar despercebido,
entorpecido em seu contexto e julgado inerte. Mas, quando deslocado para
estâncias de subjetividades, o objeto aparece transpassado de viés por um tênue
fio narrativo, tal qual numa coleção, num arquivo, e deixa de ser exclusivamente
uma ferramenta. Também assim, foi percebido o jeito como Bispo articulou cada
artefato na intimidade de seu pensamento, refletindo uma experiência que
suplanta a ordem social delineada pelas relações de causalidade.
Uma nova paisagem em torno dos objetos é capaz de mover o pensamento
para novos horizontes e desencadeia outros comportamentos de linguagem, como
nos inspira pensar as palavras de Baudrillard: “quando o objeto não é mais falado
por sua função, é qualificado pelo indivíduo” (2008, p.94).
Pela conjugação das ideias apresentadas, ganha passagem o pensamento
que espreita a multiplicidade do ser e, por isso, lança luz sobre o que era
surpreendentemente ignorado, não por estar escondido, mas por ser evidente de
mais. Dessa experiência, fica anotado que não há limites para a observação. E,
neste exercício de escrita, lanço reflexões sobre o conceito de coleção para
sobressair pontos onde coincidem pensamentos que circulam pelos domínios da
poesia – que apelido de “recinto dos acidentes de perspectivas”.
116
Nas composições de Bispo, pela presença simultânea de elementos
heterogêneos, estão esboçados registros da complexidade do real.
Consequentemente, na extensão de tais obras não se propagam os discursos
monótonos (de um tom só) enunciados no paradigma da certeza, do sério, do
verdadeiro... Pensar uma aproximação das “Vitrines” de Bispo com a estética da
coleção ressalta, portanto, o caráter multíplice dessas construções. Ambas figuram
como espaço híbrido preenchido pelo diálogo entre vozes dissidentes, por sujeitos
particulares e visões de mundo divergentes; aí fica também exposto o caráter
permeável e expansivo do conhecimento formulado sobre uma realidade. Para
emoldurar esta reflexão lembro novamente Baudrillard discorrendo sobre a
coleção como “o triunfo do empreendimento apaixonado da posse, nela que a
prosa cotidiana dos objetos se torna poesia” (2008, p.95).
Nessas estâncias de subjetividades, acontece a fabricação contínua de um
nexo imprevisto entre coisas familiares. Vale ressaltar que, apesar de estranhas
ao olhar acostumado, tais conexões são forjadas nas intimidades do humano. Na
concepção de Bispo, por exemplo, pelo material recolhido será feita a
apresentação do universo no Dia do Juízo. Com isso, ao imprimir sobre as coisas
sinais do prenúncio, fica aparente em seus trabalhos a rubrica de uma estética
que sugere a celebração das formas finitas, de corpos passageiros, ou o fim de
uma série de objetos. Acontece assim a ritualização do objeto, numa experiência
performática, onde são assumidos outros perfis, sem o compromisso de operar
uma regularidade pragmática.
Pelo diálogo com os trabalhos de Bispo, essas reflexões sobressaem e se
atualizam no que observo e chamo como “performance do objeto”: um tipo de
apresentação que altera, com efeito, a programação comum da qual participavam
tais objetos. É na leitura dos estudos de Paul Zumthor que especulo essa
abordagem para os arranjos em questão. O conceito de performance, nesse
contexto, aposta na diferença das coisas e anima percepções de alteridades,
rasurando a identidade concebida pelo esforço de achar o idêntico, o mesmo, o
gênero que identifica e definitivamente faz com que algo seja reconhecível. A
117
experiência estética percebida nos arranjos de Bispo se casa muito bem com as
palavras de Zumthor:
“A performance e o conhecimento daquilo que se transmite estão ligados naquilo que a natureza da performance afeta o que é conhecido. A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca” (2007, p.32)
No horizonte de tais ideias, o conceito de performance atravessa cortinas e
cenários das consagradas atividades de palco, como a dança, a música, o teatro,
e se estende sobre no modo como ganham visibilidade alguns objetos triviais.
Diante disso tudo, gosto de pensar que o gesto performático fecunda com poesia
o conhecimento e os afetos acumulados na prosa instituída (onde são articulados
os discursos de verdade) que dá forma ao mundo.
Como efeito, na extensão das reflexões aqui desenvolvidas, ganham relevo
os pontos de convergência entre o desígnio do colecionador e a missão de Bispo
na tarefa de catalogar o mundo. Em ambas as atividades, acusa a interrupção de
uma sequência prevista para os objetos. Pois, de um modo geral, as relações
pragmáticas com as coisas são marcadas pela impessoalidade das convenções e
pelo esvaziamento de subjetividades; nada que denote uma emoção ou qualquer
peculiaridade. Mas, uma simples intervenção nessa lógica já deixa exposta a
contingência que a subjaz. Com isso, vislumbra-se a possibilidade de aplicar uma
ordem que faça sentido para o sujeito.
Por essa razão, imagino nas estâncias de subjetividade uma celebração do
efeito da ordenação e de todas mais objetivações abstratas. Lembro as palavras
de Deyan Sudjic que orientaram a construção dessa linha de raciocínio:
“Colecionar uma série de objetos é, pelo menos por um momento, ter imposto um
sentido de ordem num universo que não tem nenhum” (SUDJIC. 2010, p.21).
“Mal de Arquivo”, expressão empregada por Jacques Derrida (2001), em
seu livro homônimo, retoma a teoria freudiana sobre a pulsão de morte para
caracterizar a perturbação relacionada ao impulso de (re)agrupar e (re)ordenar
material diverso sob uma trama deliberadamente inventada ou, como prefere o
ensaísta francês, arquivística. Trata-se, portanto, de um estado afetado do ser
118
que insiste estabelecer entre coisas diversas alguma relação de continuidade a fim
de reestabelecer o equilíbrio. Assim esclarece o próprio autor:
A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo. Estamos com mal de arquivo (en mal d'archive). Escutando o idioma francês e nele, o atributo "en mal de", estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome "mal" poderia nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se arquiva. É dirigir-se a ele com desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum "mal-de", nenhuma febre, surgirá para aquele que, de um modo ou outro, não está com mal de arquivo.
(DERRIDA, 2001, p. 118-119)
Vejo na exposição da teoria de Derrida uma via que dá continuidade ao
curso das ideias trabalhadas aqui, com possibilidade de abertura para novas
perspectivas. Com base nas definições apresentadas acima, é possível apontar
nos ajuntamentos de Bispo sinais do “mal de arquivo”. Pois, na missão de
apresentar o mundo, ele recolhe e agrupa material diverso sob um ponto de vista
determinado, fazendo os seus recortes e as suas censuras, conforme foi
anunciado por ele mesmo: “Isso é material que pego da terra, que eu represento”;
e adverte: “mas isso pra quem enxerga, pra quem não enxerga não dá pé” (apud
HIDALGO, 1996, p. 142 e 139).
Um arquivo pode ser definido como uma reunião, uma organização, um
ajuntamento de elementos com um determinado propósito. É sempre uma ação
consciente, mesmo que o autor não imagine seu arquivo sendo analisado por
outras pessoas; mas, de qualquer forma, ele próprio guardou, agrupou, arranjou o
que conseguiu recolher, imprimindo sobre seu trabalho uma “relação patriarcal”,
da qual depende a constituição de todo e qualquer arquivo (DERRIDA, 2001, p.13).
Para ser arquivo, portanto, não basta simplesmente empilhar o material em
um lugar ou sobre um suporte. Deve cumprir a demanda por uma autoridade que
coordene a força de unificação, identificação e classificação, a fim de que os
119
elementos se articulem em uma unidade. Por isso, diz-se do arquivo lugar
privilegiado da construção de sentidos ou hipóteses de leituras, o que o inscreve
entre os fenômenos de linguagem, tal qual a composição de uma coleção e dos
arranjos de Bispo.
Decerto, nesse ponto, há interseções entre estas manifestações de
linguagem que atualizam o debate estendido até aqui. Trata-se de construções
articuladas na envergadura de enunciação, no exercício do pensamento, na
fabulação... Assim como na coleção e no arquivo, num efeito performático, os
arranjos de Bispo prolongam a atuação de um objeto na cena social ao acionar
nele novas conexões e interpretações. Figuram como expressão da ambiguidade:
entre o dito e o não dito, o óbvio e o obtuso, o explicito e o enigmático...
Mas, no caso de Bispo, estamos falando de arquivos montados que
constituem, ao mesmo tempo, a sua própria obra. Investido de uma autoridade
divina, ele reúne referências de mundo e reorganiza-o, produzindo como efeito,
multiplicação dos pontos de vista. Isto é, existe uma manifestação de linguagem
que se revela como expressão de um pensamento, porém deixa transparecer
vários níveis de interpretação. Abrem-se outras possibilidades de ler o mundo no
acervo montado por Bispo: seus mantos, seus estandartes, seus “objetos de
limpeza”, veleiros, os ORFAs, suas vitrines (ou assemblages), sua cama-nave,
seus fichários de nomes e outras construções arquivísticas.
Arremato o pensamento tramado entre as considerações acima, citando
Ítalo Calvino em seu discurso que tem por objeto a multiplicidade do ser,
alegorizada na figura da combinação, do arranjo, da coleção e outros lugares de
articulação das referências percebidas e arrumadas para compor a prosa do
mundo:
(...) “quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras.” (Calvino, 2005, p.138)
120
Figura 24 Arthur Bispo do Rosario. Caixa dos Escolhidos
Ao acender correspondências entre o trabalho de Bispo e uma coleção,
contemplamos tais manifestações de linguagem como estâncias fecundas de
possibilidades de contexturas de mundo, o que expressa a tensão da
multiplicidade de perspectivas sobre artefatos da ordem do familiar. O interesse
por esse tipo de construção fica assegurado por deixar espreitar, no
funcionamento oblíquo de outros nexos entre os objetos do cotidiano, nos novos
enquadramentos, expressões das intimidades humanas. Nos horizontes das
reflexões a respeito da atividade do colecionador (esse amador das singularidades
dos objetos) reiteramos a interpretação de que a articulação de sentidos não
acontece sem a rubrica de uma subjetividade.
121
9.4. O bricoleur
Figura 25 Arthur Bispo do Rosario. Detalhes da estrutura de Vitrines
122
em exposição na 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
“Tomar coisas quebradas, usadas, improvisadas e dar-lhes outros usos: o
que produz? O mundo é produção de si mesmo” (BURROWES, 1999, p.21). No
livro O Universo segundo Arthur Bispo do Rosario, de Patrícia Burrowes, é
assinalado nas composições de Bispo o impulso criador que reanima as
potencialidades nas coisas. Assim, ele redescobre o cosmos nos objetos que
pertencem à ordem do doméstico, do comum, do trivial e tudo mais que foi
subestimado pelo olhar.
Nesse debate que desnaturaliza o olhar e problematiza os limites
deliberados do real, visualizo na figura do bricoleur uma chave de leitura para
acionar novas ideias. O exercício de bricolagem sobre a matéria inoperante,
desligada de suas funções, também deixa entrever as multiplicidades e
potencialidades além do imediato das aparências. Esse tipo de atividade faz
pensar a manifestação de forças que povoam a intimidade humana: a inclinação
para multiplicar pontos de vista e estender a prosa do mundo, emprestando às
coisas percebidas outros valores, funções...
O bricoleur é descrito como alguém que produz habilidosamente com as
mãos, realizando um trabalho amador, pela via do improviso e da adaptação de
material disponível. Por isso, o que resulta dessa operação leva marca do
provisório e também da singularidade. Ele é sensível à heterologia das coisas e o
seu trabalho deixa entrever, por meio da criatividade e imaginação, outras
entradas na realidade objetiva. Estas considerações estão orientadas pelo
conceito de bricoleur apresentado pelo antropólogo Lévi-Strauss, 1989.
Constroi-se a partir disso, uma hipótese de leitura onde os arranjos de
Bispo guardam relações estreitas com a prática da bricolagem, que usa técnicas e
materiais improvisados, sem o compromisso de seguir modelos instituídos. Em
ambos os casos, são trabalhos que resultam de exercícios de recriação, pois, não
trabalham com matéria ainda em estado bruto, mas com aquilo que já foi
processado, usado e descartado pela sociedade (ver figura 25, p.119).
Toda a atividade do bricoleur envereda, deliberadamente, pelo objeto
descredenciado de sua classificação ou funcionalidade, inventando para ele outras
123
maneiras de participar do jogo social. Por assim dizer, o exercício de bricolagem
concentra-se em tentar fazer com que materiais quaisquer consigam se articular
para compor uma prosa do mundo, artesanalmente. De cada objeto, se ramificam
redes de relações das quais o observador não consegue se esquivar e de
qualquer lugar tomado como ponto de partida o olhar se inclina para horizontes
vastos.
Nestas considerações, percebe-se no trabalho do bricoleur uma potência de
debate sobre as multiplicidades das coisas e do mundo, uma vez que em sua
atividade, ele está atento não ao que é, mas ao que ainda pode vir a ser. Os
trabalhos de Bispo ilustram bem essa atividade do bricoleur porque o material
recolhido não está a serviço de uma função imediata, mas cumpre a missão de
compor uma versão do mundo para ser apresentada no “Dia do Juízo”. A definição
elabora por Lévi-Strauss expõe traços que bem apresentam o trabalho do
bricoleur:
Mesmo estimulado por seu projeto, seu primeiro passo prático é retrospectivo, ele deve voltar para um conjunto já constituído, formado por utensílios e materiais, fazer ou refazer seu inventário, enfim sobretudo, entabular uma espécie de diálogo com ele, para listar, antes de escolher entre elas, as respostas possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema colocado. Ele interroga todos esses objetos heteróclitos que constituem seu tesouro, a fim de compreender o que cada um deles poderia significar. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.34)
O trabalho de bricolagem, então, não se esgota na atividade técnica de
acumular materiais, mas se revela também uma prática do gozo corporal. A
bricolagem é identificada nas composições de Bispo pela reunião de objetos ou
partes deles, responsáveis por gerar um impacto visual. Então, tal como um
bricoleur, Bispo desenvolve sua missão de apresentar o mundo sem compromisso
com a unidade totalizadora nem com a elaboração de uma narrativa linear. Ele
envereda por uma prática de linguagem que deixa transparecer a trama que
reveste o mundo percebido, urdida com impressões sensoriais e imaginação.
O conceito de bricolagem comporta intrinsecamente uma produção estética
calcada no inventário pessoal do autor (sua história, memória, concepções e
124
analogias desenhadas pelas experiências sociais), que dá continuidade ao
movimento de criação da prosa do mundo, a partir de vários materiais distintos.
Ou seja, lembro mais uma vez que impacto visual da armação estética desses
arranjos desencadeiam outras articulações semânticas sobre o que era familiar.
Afetados pela poesia de Manoel de Barros, podemos dizer ainda que o trabalho de
bricolagem permite desacostumar o olhar ou “transver o mundo”. Então, o mesmo
efeito percebido na armação do arquivo, da lista, da coleção nos faz pensar tais
construções de linguagem como um espaço híbrido da produção de outros
conhecimentos sobre o mundo. Oriento-me pelas palavras de Lévi-Strauss para
trazer novas complexidades aos arranjos construídos por Bispo que conjuga
beleza estética, potencia poética e conhecimento de mundo.
A arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, pois todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais ele elabora um objeto material que também é um objeto de conhecimento. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.38)
125
10. Desutilidades e novas visualidades
126
Figura 26. Arthur Bispo do Rosario. Vitrine em exposição na 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
A operação de leitura das imagens criadas por Bispo, conforme tem sido
dito, implica a redescoberta do que era óbvio e passava despercebido. Nessa
etapa da escrita, reitero e estendo reflexões a respeito das novas visualidades,
inspirado também pelo poema de Oswald de Andrade que aumenta tensão entre
poesia e os limites deliberados da realidade:
3 de maioAprendi com meu filho de dez anos Que a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi 27.
No circuito de reflexões desenvolvido na escrita desta tese, fica
prenunciado nesses versos um retorno às coisas, para espreitar contornos,
acidentes da superfície, nuances de cores, reentrâncias e outras particularidades
que esperam ser surpreendidas pelo olhar inquieto do observador. O poema de
Oswald potencializa a entrada no debate sobre as multiplicidades e imensidões do
mundo.
Com efeito, dar novas visibilidades às coisas familiares (acender
perspectivas diferentes) implica um reencontro com o mundo fora do círculo das
evidências, numa estância particular de pensamento. Nos arranjos engendrados
por Arthur Bispo do Rosario, o modo como os objetos ganham presença renova e
amplia os limites de uma prosa do mundo traçada pelos “discursos de verdade”.
Essa experiência do pensamento acontece, por exemplo, quando avistamos uma
carcaça de um radinho de pilhas, cujas reentrâncias no contorno e a superfície
vazada, onde outrora saía o som, adentra o olhar e revela um cosmos esquecido.
Eis que no repouso da matéria, quando cessam sobre ela as dinâmicas sociais,
pode acontecer o reencontro com o mundo e dele nos assenhorearmos
novamente pela experiência da imaginação.
27
2
poema "3 de maio"; in: Pau-Brasil Uma poética da radicalidade. Obras completas de Oswald de Andrade. Por Haroldo de Campos, publicado pela editora Globo, 1990.
127
Reitero, assim, a teoria de que na “desutilidade” das coisas são agenciadas
novas visibilidades e transbordamentos do lugar-comum, pois ficamos sensíveis
ao devir, onde fulguram as imensidões do mundo. Isso chama o pensamento a
conferir as formas que prefaciam estas imensidões como as “Vitrines” armadas
por Bispo. Tais imagens sugerem ainda proximidades com outras manifestações
de linguagens tão distintas entre si, como a lista, a coleção, o arquivo, o sonho, o
devaneio, a poesia, que podem ser lidas como potência de realidades.
Como foi descrito, a prosa do mundo segundo Bispo do Rosario não foi
composta em cumplicidade com pensamentos e afetos credenciados nos
esquemas tradicionais de leitura. Trata-se de um repertório de imagens cujo nexo
entre o material recolhido é particular demais. Contudo, Bispo não apelou à
renovação da linguagem a fim inventar uma nova imagem do mundo, porque a
maneira como ele o percebe já é diferente. Foi imperativo articular, então, uma
linguagem própria para não ficar em silêncio. De outra maneira não seria possível.
Portanto, é a imagem do mundo que afeta a maneira como realiza seus trabalhos,
e não o contrário.
Estendo tais reflexões com as palavras de Bachelard que, ao discorrer
sobre esse assunto, lembra que o olho já não pode mais ser considerado “o centro
de uma perspectiva geométrica”; “ele é o projetor de uma força humana” capaz de
reinventar as dimensões do cosmos (2001, p.175). E, usando os arranjos de Bispo
como ponto de convergência desses pensamentos, pode-se dizer ainda que o
olhar traz um princípio cósmico criador.
Numa assemblage aparecem: base metálica de uma lanterna, torneira
plástica, desentupidor de pia, parte de um brinquedo no formato de cabeça de
coelho, dentre uma série de muitos fragmentos cuja conexão não está
predeterminada. Tudo é rapidamente identificado pelo olhar. Todavia, como efeito,
por não ter segredos (cada coisa é aquilo que se apresenta), essa arrumação
desperta suspeitas e torna-se motivo de incompreensibilidade. Nesse caso, o
óbvio e o “imediato” das aparências conferem obstáculos para o desempenho do
esquema convencional de leitura.
128
Aposto na fertilidade da expressão “ínfima mediação” ou “i-mediação”,
colhida nos escritos de Alberto Pucheu que celebrou a poesia como meio de
aproximação da vida (PUCHEU, 2003, p.48). Isso acontece nos arranjos de Bispo
porque conseguiu encurtar a distância entre ele e as coisas que o sensibilizaram,
desnaturalizando certezas e reapossando-se do mundo, sem precisar de
subterfúgios da funcionalidade ou da explicação para justificá-las. Mas, por outro
lado, a experiência de Bispo também nos faz perceber o incômodo que a ideia de
uma “total transparência” poderia nos custar.
Em certa medida, no pensamento de Baudrillard (2007), essa “i-mediação”
traz as mesmas inquietações desencadeadas pelas noções de obscenidade,
pontuadas por ele no ensaio “O obsceno”. Mas, na comunhão das ideias
articuladas aqui, é desejável transpor o conceito de obsceno até ao grau de
percepção poética, tomando emprestadas nuances que denotam uma entrada
precipitada de um acontecimento sem pedir licença, fora de contexto ou fora de
cena, onde estão as referências que lhe moldam o sentido.
O obsceno, em sua potência de “i-mediação”, subverte a função abstrata da
linguagem comprometida em se dar no lugar da coisa a que se refere. No plano
social, o obsceno é apontado na apresentação abrupta que se dá a ver
escandalosamente – o objeto apresenta-se em sua crueza, como “puro corpo”.
Assim, um objeto figura na obra de Bispo pelo efeito expressivo, o qual se
sobrepõe à utilidade e ao valor de troca na sociedade, fazendo pensar o
imperativo da causalidade a tudo que se produz. Explicito, nesse pensamento que
atravessa as considerações sobre as composições de Bispo, as noções de
“obsceno” e de “i-mediato”, transcrevendo as palavras de Baudrillard:
“Quando as coisas se tornam demasiadamente reais, quando elas são dadas imediatamente, quando existem como realidade concreta, quando estamos neste curto-circuito que faz com que as coisas se tornem cada vez mais próximas, estamos na obscenidade...” (BAUDRILLARD, 2007, p.30)
Na mesma provocação, as imagens de Bispo acontecem como que de
assalto ao olhar acostumado a cortejar os sentidos das coisas antes de possuí-las.
Cada objeto agregado parece mostrar-se em sua expressividade, ultrapassando a
129
mediação de uma forma básica de comunicação, anunciando a potência de vir a
ser.
De fato, tais construções não estão a serviço da comunicação e, portanto,
não há nada a informar. Compreendo isso a partir do pensamento ensaiado por
Deleuze (2003): “uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando
nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos,
informar é fazer circular uma palavra de ordem”28. Eis, então, o exercício de
controle que assegura comportamentos em relação aos acontecimentos e atos
sociais. Assim, qualquer “in-formação” já é uma tentativa de “dar uma forma” ou
“colocar em forma”, no sentido de direcionar e modelar posturas. Volto ao texto de
Deleuze para estender o pensamento e elucidar que, no trânsito das informações,
compartilhamos um pacto social que determina enquadramentos e a mise-en-
scène na realidade objetiva. Cito:
Informações nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. (Deleuze, 2003, p.298)
Pelo que foi dito até aqui a respeito das composições de Bispo, elas
aparecem sempre à parte dessas palavras de ordem. Ao contrário, nos faz pensar
na inconsistência e na ineficácia de toda tentativa de classificação ou ordenação
exaustiva das coisas no mundo.
Reforçando as notações feitas anteriormente, lembro que em vários
momentos dessa pesquisa, o exercício de escrita foi animado por metáforas que
afinam o pensamento com os arranjos de imagens construídos por Bispo. Porém,
recorrer ao termo metáfora para individualizar ou designar tais composições
desviaria o pensamento para conclusões antecipadas e vazias. Decerto, os
elementos que figuram nestas composições apresentam atuação bem diferente do
cenário cotidiano, indicando um regime de sentido outro. Mas elas não estão na
28
2
DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce que l’acte de création ? In : Deux régimes de fous. Textes et entretiens (1975-1995). Édition préparée par david lapoujade. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003, p. 291-302.
130
condição de metáforas da dor ou do desejo de comunicação que pudéssemos
atribuir a Bispo na condição de paciente da Colônia Juliano Moreira.
Nos estudos de Paul Ricoeur (2000), a acepção de metáfora diz respeito à
dissolução da imagem capturada e à transposição desta para outras dimensões
da interpretação. Isso sugere, por assim definir, um movimento de transporte. No
jogo metafórico da linguagem, a percepção é impelida a outras estâncias de
significação. De certo, Bispo desambientou e articulou objetos cotidianos para
tecer sua prosa do mundo, mas sem pretender alcançar outros significados para
eles. Também não subverteu nem negou a função ou valor que lhes foi atribuído
na cena social. Mas, vale ressaltar que, nesse debate, o fluxo de pensamentos foi
acionado pela combinação inusitada e pelo estado de “desutilidade” dos objetos.
Bispo apostou na expressividade de cada objeto, que vai além da função ou valor,
para apresentar o mundo.
Nas “Vitrines” de Bispo dedicamos olhar as coisas que estavam fechadas
em outros esquemas de valores. Elas solicitam o olhar por vias onde a percepção
não é acionada pela necessidade de entendimento, o que abala fatalmente a
propriedade dos objetos cotidianos de se autodefinirem por sua funcionalidade.
Num outro movimento, mais próximo de descrever as composições de
Bispo estudadas aqui, a metonímia atua a partir da afirmação da figura destacada,
porque o olhar se estende sobre ela própria, atento a relações possíveis com a
cena montada (RICOEUR, 2000, p. 95). Observando a imagem apresentada na
abertura desta reflexão (figura 26), tira de chinelo, carcaça de rádio de pilha, vidro
de esmalte, tomada, desentupidor de pia, cada coisa aparece como ponto de
experiência com o mundo, resultando numa trama de referências de realidades à
parte.
Normalmente, o interesse pragmático nos faz fixar atenção em uma zona
específica da vida cotidiana – a utilidade e a estética comprometidas com
ideologias e estilos de vidas. Mas nos arranjos que dinamizam tais pensamentos,
o olhar é surpreendido por um dado, um traço, um detalhe que rebate a leitura
linear para outras direções. Dessa experiência, fica o espanto ao constatarmos
131
que percebemos mais de acordo com o léxico (pelos conceitos) do que com os
olhos (VALÉRY, 1991, p.145).
Tudo que nos impressiona os sentidos é redimensionado para campos
semânticos sob a rubrica de definições e conceitos. Normalmente, vemos no
mundo o que sabemos sobre ele. Isto é, conhecemos mais os atributos conferidos
a um objeto do que as suas particularidades: atentamos para a função, a marca ou
modelo, valor comercial, sem estender o olhar sobre as reentrâncias de sua
superfície ou sobre os efeitos que seriam produzidos se combinados com outros
do mesmo tipo, por exemplo. Percebe-se, assim, que as dimensões do que é visto
ganham contornos e confundem-se com o olhar do observador, o que faz da
especulação de sentidos um fenômeno que comporta variações, mas nenhum
acaso. Há um encadeamento de referências culturais conhecidas e
compartilhadas para compor a noção de realidade.
No horizonte de ideias vislumbrado a partir dos arranjos de Bispo cabem
também reflexões colhidas nos versos de Manoel de Barros, que inventou o
personagem Bernardo, de visão afetada de poesia. Bernardo é sujeito comum,
declarado “tolo” e “bocó”, cuja linguagem não coincide com significados e funções
atribuídos às coisas; sempre os ultrapassa e atinge o estado de “desutilidade”,
fecundo de poesia. É o caso de transver as naturalidades que se antecipam à
presença de todas as coisas inscritas na esfera social. Na expressão de Bernardo,
a linguagem nunca é explicativa, mas sempre criadora de eventos, como sugere o
poeta ao investir no contraste entre as palavras explicativa / brincativa:
“Nossa linguagem não tinha funçãoExplicativa, mas só brincativa. Como seja: ontem Bernardo fez para nós um ferro de engomar gelo! (...) Ele fez um outro brinquedo de palavras Para nós: O guindaste para levantar ventos”.
(BARROS, 2011)
Nas construções poéticas de Barros, a palavra foi o objeto privilegiado a ter
os horizontes alargados por meio de experiências outras, fora da função de
significar. Assim são desconstruídos vocábulos e a sintaxe da frase, profanando o
paralelismo que antecipa o encerramento de um evento.
132
Incidem nesse mesmo tratamento sobre as coisas no mundo, as
construções poéticas de Bispo cuja matéria é os artefatos e resíduos produzidos
pela sociedade. Pelo ajuntamento de artigos variados ou pela reunião de um
mesmo tipo, transpassando a função e o sentido comum, Bispo fazia os seus
prefácios de maravilhas do universo: o manto da apresentação, listas de nomes,
vitrines de objetos... Tanto na poética de Barros, como na de Bispo, são
celebrados os objetos que foram subestimados pelo olhar cotidiano ou tiveram a
função comprometida e, por isso, caíram no esquecimento.
Na aproximação dessas duas poéticas, ficam em evidência os acidentes de
perspectivas que fazem vacilar nossas certezas e convicções filosóficas sob o
efeito de outros recortes do real. As novas visualidades conferidas ao material
articulado nos trabalhados de Bispo, por exemplo, dispersam significados de modo
que outros atributos se antecipem ao nome e à função. Contudo, de modo algum,
deve-se entender que daí é extraída a “verdade” do objeto, como se pudéssemos
contemplar agora sua essência.
O fato é que em tal situação acontece a revirada das antigas leituras –
fatalidade que condena o objeto a ser indistintamente significante. O
descredenciamento da condição “natural” e a interrupção da funcionalidade
desencadeiam o que reconhecemos como marca da linguagem poética: a
reformulação de sentidos.
Nos arranjos de Barros e Bispo, percebe-se que na articulação das palavras
e das coisas há um esforço para desinventá-los (lembrando o verbo usado por
Manoel de Barros) ou desnaturalizá-los (termo que define bem a experiência com
o material apresentado). É material da ordem do comum que, numa combinação
inusitada, deu passagem a outros pontos de vista sobre os quais convergem
inferências cada vez mais numerosas.
“O que pode um pente?” ou “O que pode isso?” é a interrogação (implícita
na poesia) que chama pela potencialidade das coisas. Por meio do exercício da
imaginação expande-se o “que é dado”, tornando flagrante o peso das
nomenclaturas e das funções sobre a multiplicidade do mundo. Fica a impressão
de que atravessa as composições de Barros e Bispo (e afeta nosso modo de
133
percepção) uma força que engendra na superfície de coisas distintas outras
possibilidades de existir e arrumá-las de várias maneiras. Trago estas reflexões
das palavras de Manoel de Barros e das “Vitrines” de Bispo:
Desinventar objetos. O pente por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. (BARROS, 1994, p.13)
134
135
Figura 27 Arthur Bispo do Rosario. Pentes. Vitrine em exposição na 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
O olhar atravessado pela poesia torna deslumbrante o tema banal. Nas
composições de Bispo é celebrada a banalidade aparente das coisas. Um pente,
por exemplo, nos toca de maneira diferente de como nos tocou outrora em sua
aparição contextual. Na Vitrine montada por Bispo com pentes, é revelada a
expressão de sua forma, até então, oculta pela função. O princípio do trabalho de
Bispo está na extensão do objeto, submetendo o que é conhecido a novas
visualidades. Destarte, algumas formas deixam de ser percebidas, enquanto
outras começam a se fazer notar onde sempre estiveram. Foi por esse motivo, por
perceber e revelar a expressividade do não artístico, que Bispo adiantou-se a sua
época e tornou-se nosso contemporâneo no debate sobre artes.
Bispo desenvolvia seus trabalhos animado pelas suas crenças e
religiosidades, afetado por uma força divina que atravessa o estado de
normalidade (semelhante aos artistas da Idade Média que afirmavam ser
conduzidos por Deus). Confiante em sua “missão”, resistia a uma visão direta,
mundana ou comum, investindo na redescoberta das belezas nas coisas. Assim,
ele apostou em novas visualidades dos objetos-signos do plano social,
atravessando os limites de realidade demarcados pelo pragmatismo, para
apresentar o mundo. Como efeito, suas “Vitrines” convertem o mundo visível em
mundo do olhar.
136
11. Poesia e imagem da “desutilidade”
“O que distingue o homem do animal não é a comunicação, é a simbolização, ou seja, a invenção de sistemas de signos não analógicos”. (BARTHES, 2005)
Figura 28 Arthur Bispo do Rosario. Pentes. Vitrine em exposição na 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
137
Na tarefa de elaborar uma “prosa do mundo”, Bispo articulou referências
variadas da cena social, que pudessem contar ou testemunhar a atividade
humana. Reuniu objetos diversos, listou nomes, construiu miniaturas, tudo com
grande apelo visual. Nesses agrupamentos, não há vez para oposições que
limitam o material recolhido ao lugar-comum das percepções. Todas as coisas
(palavras, objetos, imagens) ganham condição de linguagem que dá forma à
apresentação do mundo segundo Bispo do Rosário.
Como visto no tópico anterior, pela via da “desutilidade” é que o material
recolhido compõe e suscita imagens da potência de mundo. Estas imagens
conseguem expressar a potencialidade do mundo porque não ocupam um lugar
especial na dimensão humana, tais quais a vida afetiva ou profissional, as práticas
religiosas ou políticas, as concepções artísticas ou pragmáticas. As “Vitrines” de
Bispo sugerem, na conjugação desses lugares-comuns, uma noção da
complexidade do mundo (diagnosticada na trama plural, de aspecto labiríntico,
que estabelece relações de continuidade entre as coisas). Pode-se dizer, então,
que tais imagens são sempre atualizadas pelos olhos do observador que, ao
reconhecer ou identificar semelhanças com o material exposto, constroi
possibilidades de diálogos e correlações.
A crítica da cena contemporânea, frequentemente, aponta a produção
artística e literária como atividades destinadas a ilustrar as potencialidades da
linguagem (TODOROV, 2012, p.20). Na visão de alguns, isso é responsável por
restringir e isolar as atividades artísticas e literárias, acusando-as de não manter
relações significativas com o mundo que lhes serve de palco. Todavia, ao dar
forma as suas “Vitrines”, Bispo não apresenta uma tese a respeito da constituição
e funcionamento do mundo, mas incita o leitor a formular uma e o deixa livre para
isso, tornando-o mais ativo. Assim, leio nas considerações de Todorov sobre a
obra literária, também, as imagens engendradas por Bispo para compor sua prosa
do mundo:
Lançando mão do uso evocativo das palavras, do recurso às histórias, aos exemplos e aos casos singulares, a obra literária produz um tremor de sentidos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, desperta nossa capacidade de associação e provoca um movimento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempo depois do contato inicial. (2012, p.36)
138
Volta a lembrar, com a intenção de agregar outros pensamentos, que é
sobre o efeito causado pela condição das imagens de Bispo que se desdobra o
debate inaugurado aqui.
Imagem e palavra são manifestações de linguagem que se distinguem na
operação de leitura para conferir significados. Seguindo o pensamento de Alfredo
Bosi, o processo de construção de sentidos para a imagem não acontece por meio
da rede de oposições paradigmáticas, porque a natureza imagética não é
compatível com uma leitura linear cujo método de decodificação se desenvolve em
etapas sequenciais de adição de sentido, gradativamente, tal como ocorre na
decodificação do sistema alfabético: fonema, morfema, sintaxe, semântica (BOSI,
2000).
O significante da imagem não é um combinatório onde os elementos podem
ser analisados metodicamente. Nenhum componente pode ser dissociado ou
isolado sem o risco de equívocos ou de comprometer o efeito da imagem, porque
da conjugação dos elementos, de cada minúcia, desdobram-se outras percepções
com o poder de sensibilizar léxicos diversos, conforme a formação cultural do
expectador.
É pela concomitância da articulação de léxicos diferentes que se dá o
processo de leitura da imagem, o que faz dela terreno fecundo para criação de
sentidos. A simultaneidade da conjugação das referências inviabiliza o trânsito de
uma lógica produzida pelo sistema de reconhecimento responsável por engendrar
contexturas. O efeito dessa interrupção é sinalizado pela noção de absurdo: um
estado de linguagem em que não há compromisso com a denotação forjada para
tornar viável a comunicação; a linguagem sem artifícios semânticos.
Quando desligado de sua função e deslocado de seu contexto, até mesmo
o objeto mais familiar aos nossos olhos revela-se espantosamente diferente. A
função e o contexto serviam de intermediários, substituindo a coisa,
negligenciando-a no próprio fato de cuidar para que cumpra o papel ao qual foi
designado. No entanto, nas manifestações poéticas, o trabalho estético imprime
ânimo ao desejo de ver, tal qual assinalado na operação de leitura dos arranjos de
Bispo. Desse modo, o sentido da visão é deliberadamente acionado por um
139
querer. A atenção voluntária, fixada sobre um ponto, superando o comportamento
mecânico ou programado, movimenta o jogo da imaginação que transforma em
imagem notável o que antes não era percebido. Descobre-se que não se conhecia
o objeto por ser familiar e por cumprir com sua função.
No atual estágio de funcionamento das sociedades, cada indivíduo não
escapa de ser afetado por imagens, desencadeando reações como responder,
desejar, refutar, consumir; e, ao final de tudo, é devolvido como resultado dessa
interação com imagens signos de uma subjetividade. Na cultura do espetáculo, a
reprodução de imagens atua sob um efeito ontológico, como princípio da
construção de versões de mundo. Então, nessa perspectiva, a versão torna-se
mais atraente que o fato, a imagem mais interessante que “a facticidade do real”,
porque inauguram espaços para encenação de pensamentos e os afetos que
constituem as subjetividades.
11.1. Civilização da imagem (ou da glamourização da imagem)
Quando usamos a expressão “Civilização da imagem” para caracterizar o
estágio atual de nossa sociedade, fica a impressão de que as sociedades
anteriores praticavam pouco a comunicação icônica. No entanto, não raro, nos
deparamos com estudos que atestam a participação intensa da imagem na vida
cotidiana das sociedades de outrora: livros ilustrados, quadros, murais, esculturas,
vitrais, pinturas rupestres... Esse contraponto fecunda novas possibilidades de
leitura e permite a articulação de outras questões: o que se pretende com essa
expressão? Que pensamentos e afetos ela pretende colocar em jogo?
Analisando o contexto o qual ela se refere, é sobre a glamourização da
imagem que tal expressão vem ilustrar. É a difusão das imagens que caracteriza
140
as culturas contemporâneas cujo apogeu está no aparecimento de novas
plataformas midiáticas, digitais e interativas: computadores, games, celulares,
ipods, tablets além das chamadas “nuvens” que, no ciberespaço, carregam,
transmitem e armazenam dados em arquivos virtuais.
É a difusão de informações em tempo real e vertiginoso, em velocidades
pelas infovias digitais, que caracteriza esse atual estágio da existência das
sociedades modernas. Inovações tecnológicas popularizaram aparelhos
eletrônicos usados para dinamizar, compartilhar, ampliar e intensificar o acesso à
informação veiculada em códigos variados. E, devido à potência significativa que
se manifesta no jogo de sentidos articulados simultaneamente, a imagem concorre
a lugares de destaque nas mídias de grande circulação.
A preferência pelas imagens pode ser pensada como uma reação às formas
pelas quais a noção de realidade que delineava as percepções de mundo tem sido
progressivamente desmontada, tornando-se imprecisa e insuficiente. A “realidade”
não está mais dividida em gêneros, com as diferenças polarizadas entre coletivo e
particular, verdade e mentira, ficção e não ficção, por exemplo. Trata-se de uma
trama na qual se entrecruzam e se matizam experiências, memórias,
pensamentos, imaginação, desejo... O arcabouço linguístico-teórico (que opera na
linearidade do discurso, na relação de causalidade) herdado da tradição ocidental
vem apresentando sinais de esgotamento na missão de captar ou reproduzir os
novos contornos da realidade. Por esse motivo, aposta-se na expressão visual
como recurso para reconstituição de sentidos possíveis para o mundo, numa
conjuntura de acentuada versatilidade e fluidez de ideias. O que caracteriza,
então, as manifestações de linguagem não é o que elas dizem da “realidade”, mas
como está sendo dita.
Os grandes discursos narrativos produzidos pela literatura, pintura e
cinema, escorados na retórica tradicional, perderam expressividade e dinâmica de
circulação nas sociedades onde operam as obras de massa, criadas na mistura de
códigos diferentes (fala, imagem, música...) com o objetivo de difusão maciça
pelos meios de comunicação. Nessa nova ordem da comunicação de massa, não
há espaço para o desdobramento de temas morais, resultando na dessacralização
141
da obra, que passa a ser produzida sem dar cuidado ao valor do que será
transmitido. Desprovida então de uma mediação ética, essas composições estão
animadas por exigências estéticas muito apegadas ao consumo, que serão
atendidas por meio do tratamento performático da linguagem, responsável pelo
espetáculo do esvaziamento de significações e de referenciais de um modelo
discursivo que legitimava o bem, o belo, a justiça, a verdade... (BARTHES,
2004b).
Nessa conjuntura, as alterações no modo de operar a relação entre imagem
e realidade implicam, como efeito, em atualizações das fronteiras que delineiam
as noções de ficção e não ficção, já que se buscava nas manifestações do real um
argumento para a imagem, uma semelhança, uma explicação que lhe conferisse
sentidos. Agora, num movimento inverso, é a realidade que se identifica com o
conteúdo das imagens, com aquilo que mostram as câmeras fotográficas ou de
filmagem. A vida parece imitar a arte: “Isso parece filme”, “coisa de novela”, “como
na televisão”, “paisagem tão bela que parece um quadro”, são expressões usadas
habitualmente para se referir a acontecimentos da vida social, conferindo a eles
matizes da ficção. O que durante muito tempo foi compreendido por meio das
imagens, agora é percebido como imagem: o real aparece emoldurado tal qual
uma pintura, confunde-se com episódios dos programas televisivos ou com trailers
de filmes de sucesso, de gênero impreciso.
Confirmar novas visualidades de mundo que se apresentam nas
sociedades contemporâneas implica em repensar a condição da imagem no
domínio dos fenômenos da linguagem. Qual a sua extensão na dinâmica das
linguagens? Que sistemas de pensamentos a imagem aciona? Qual o impacto
causado pela imagem no modelo de realidade escorado pelo princípio da
similitude que tenta mostrar um encadeamento “natural” entre as coisas? Projeto
estas interrogações sobre as imagens construídas por Bispo do Rosario, não para
extrair respostas, mas para estender o campo de reflexão.
Tudo que participa do cenário social é perpassado por um sentido, ou seja,
funciona como signo de alguma coisa. Todas as coisas que participam da
construção da noção de realidade estão conectadas a sistemas de signos
142
estruturados por relações de oposição, contrastes, e diferenças. O mundo tal qual
ficou convencionado é um fenômeno da linguagem. Assim faz pensar os escritos
de Barthes: “A linguagem é também um faculdade de conceitualização de
organização do mundo, é portanto muito mais que a simples comunicação”
(BARTHES: 2005b, p.96). Não quer dizer, no entanto, que cada coisa guarde
consigo, veladamente, um significado exclusivo a ser entregue durante o processo
de comunicação; não serve apenas de suporte ou recipiente para uma informação.
Há sempre um sentido que transborda.
Nessas considerações sobre a imagem ressalto a atualidade do debate a
respeito dos trabalhos Bispo. Neles, pode ser que o suporte, a armação e os
objetos desgastados pelo uso não sejam ícones do advento desta modernidade
midiática; entretanto, o impacto visual desses arranjos transforma, atualiza e
amplia nossas ideias sobre os limites deliberados da realidade. Neles, o real
aparece emoldurado, num outro enquadramento, de viés, concebido como
imagem. E, de fato, na elaboração desta escrita, as composições de Bispo foram
visualizadas como imagens da multiplicidade e potencialidades de mundo.
O lugar dos trabalhos criados por Arthur Bispo do Rosario neste debate é
marcado pelo modo como devolve movimento ao mundo programado, animando o
devir das coisas e do pensamento, salvando-os do efeito banalizador dos
conceitos esquemáticos. Do conjunto das criações de Bispo, avista-se o mundo
como processo pelo qual cada coisa segue se atualizando.
143
11.2. A função social da Imagem
Da ordenação de elementos diversos, em adornos improvisados e
cuidadosos detalhes, resultaram trabalhos notáveis que afetam o modo de ver e
pensar a realidade objetiva. Pelas imagens construídas, diz-se que Bispo se
impressionava com as coisas no mundo e deixava que elas mesmas se dissessem
em sua singularidade, sem interferir em sua forma. Nos arranjos que ele montou,
foram articulados fragmentos do mundo para compor imagens do próprio mundo.
Essa maneira de compor causa perplexidades ao olhar porque, para o senso
comum, “não se pode dar uma prova de existência daquilo que é mais verdadeiro,
o jeito é acreditar. Acreditar chorando.” (LISPECTOR, 2006, p.8). Contraria os
esquemas de representação perceber que uma coisa é linguagem de si mesma,
quando o normal é estabelecer correlações e analogias (assim acreditamos ou
fingimos acreditar). Isso significa interromper o fluxo programado da linguagem.
Na armação de tais arranjos, dada a condição dos objetos, acontece a
redescoberta da expressividade dos termos banalizados pelo uso cotidiano.
Estendo esta lista de reflexões acerca dessas imagens inscrevendo os estudos de
Jacques Aumont a respeito da condição da imagem e das operações de leitura: “a
imagem tem por função primeira garantir, reforçar, reafirmar e explicar nossa
relação com o mundo visual: ela desempenha papel de descoberta do visual”
(2006, p. 81). Essa teoria ajuda a repensar a constituição das “Vitrines” de Bispo,
formadas por objetos que o afetaram, em algum grau, a percepção. Assim, na
apresentação preparada, mais do que dar testemunho das coisas existente nos
microcosmos humano, Bispo dá prova de sua própria existência. Essa poética, por
assim dizer, ilumina o traço primordial de toda imagem: recolocar de um jeito novo
a condição humana de cunhar significados e simbolizar suas experiências.
144
Nas sociedades contemporâneas, depois de cinco séculos que a invenção
de Gutenberg projetou a expressão verbal numa esfera universal, a condição da
imagem visual assume posição de destaque entre as diferentes plataformas
midiáticas. Nessa etapa, a figuração da imagem é abordada por teorias que levam
em consideração os atos de linguagem, uma vez que é reconhecida a potência
expressiva que lhe confere o aspecto de uma mensagem aberta. Por assim dizer,
fica subentendido que a imagem se apresenta ao olhar sempre fértil de sentidos.
A imagem também é cheia de camadas, o que faz dela geradora de
sistemas e dinamizadora de pensamentos, sem exercer o controle. Como efeito, a
operação de leitura das imagens não se aplica à equação equilibrada entre
significante e significado.
No caso das composições de Bispo, pelos ajuntamentos não previsíveis do
material variado, são apontados espaços de linguagem receptivos à heterologia,
sensível às investidas do olhar para imprimir alguma relação de continuidade. É na
criação de perspectivas de mundo que reside o fascínio pela imagem. Ela se
mostra tão perfeita em sua inventividade que toda experiência do real parece sem
graça. Assim, precipitam-se sobre as imagens intimidades do pensamento de
quem as observa, tornando-as também uma projeção do olhar.
O universo das imagens criadas por Bispo está impregnado de referências
contextuais que se conjugam no olhar para confecção de sentidos e valores. Por
isso, reitero, aparece como ponto singular por onde afloram concentrações do ser
(do sujeito observador e do próprio Bispo). Nessa interpretação, é ampliado o
campo de ação do olhar: o ato de focar e desejar ver, quase sempre, é o trabalho
de inventar o que se vê.
Seria um grande equívoco, portanto, restringir as imagens de Bispo a uma
duplicação do que existe na realidade ou testemunhas do que está lá exatamente.
Penso as “Vitrines” como potência de realidade, sempre apresentando algo
possível de acontecer, ainda que pouco provável; algo entre o fantasioso e o real,
pois, como notado antes, os objetos deslocados de seus lugares canônicos fazem
agir a imaginação. O que fazem, por exemplo, 32 canecas de alumínio presas em
suporte de papelão e madeira? Não é uma situação comum, tampouco aceitável
145
pelo bom-senso, mas constitui um acontecimento engendrado pela imaginação,
como participação da prosa do mundo (como maneira de ler e ordenar o mundo).
Figura 29 Arthur Bispo do Rosario. Vitrine. Canecas
No desdobramento de questões sobre a condição das imagens de Bispo,
ganham notoriedade ideias que estendem o pensamento até o tema da
imaginação. Entre as variadas possibilidades de definir imaginação, sem evadir do
debate, percebo melhor encadeamento com esta linha de interpretação aquela
apresentada por Calvino no ensaio sobre “Visibilidade”. Ali, ele descreve a
imaginação “como repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é,
nem foi e talvez não seja, mas que poderia ter sido” (CALVINO, 2005, p. 106).
146
A definição de Ítalo Calvino ajuda a ampliar as reflexões tecidas nesta tese,
pois na constituição da imagem, conforme dito anteriormente, fulguram
combinações possíveis de algo vir a ser (ou não). Em se tratando da experiência
com a imagem, além da capacidade perceptiva, entram em jogo os saberes, os
afetos, as crenças, que, por sua vez, são modelados pela vinculação a uma região
da história (a uma classe social, a uma época, a uma cultura). Uma imagem,
portanto, não existe sozinha; nela se inicia um jogo de referências desencadeado
por traços que impressionaram o espectador. Nesse sentido, fica explicitada a
ideia de que a ação de olhar é quase sempre inventar o que se vê.
No percurso histórico da humanidade, a fabricação de imagens para usos
individuais ou coletivos nunca foi um ato infundado. Desde as pinturas rupestres
nas paredes das cavernas, tatuagens tribais, quadros e esculturas, fotografia e
cinema, emblemas e ilustrações, seja qual for o tipo de figuração, aparece nas
histórias das diferentes culturas como um dos artifícios usado por seus integrantes
para se inscrever no mundo. Retomando a teoria de Aumont, 2006, as imagens
apontam para experiências visuais com realidade; acusam que algo afetou os
sentidos. Elas podem ser pensadas também como sintomas do espanto,
perplexidade ou estranhamento ao flagrar o mundo acontecendo.
Assim poderia ser descrita também a operação de leitura dos arranjos de
Bispo, porque o observador, impelido a outra percepção das intimidades do
mundo, trama para si possibilidades de encadeamentos. A experiência de suas
imagens nos remete, então, a um intervalo entre a dimensão estética (ou valor
estético) e a coerência que administra convencionalmente relações de
continuidade para as coisas. As “Vitrines” parecem contar a história de um cosmos
esquecido pelo olhar, corroborando na interpretação de que o mundo social é
expressão de nossa criatividade e percepção.
Como dito, o primeiro impulso diante de figurações espalhadas pelo cenário
social é o esquadrinhamento, analisando semelhanças e diferenças em busca de
analogias, a fim de conferir sentidos. Entretanto, quando o objeto do olhar já é
reconhecido dentro do esquema de analogias, fica abreviado o circuito até o
147
sentido que lhe foi decalcado. Fatalmente, desacostuma-se a pensar o já faz parte
do cotidiano e parece não ter lógica ocupar-se com o que é óbvio demais.
Roland Barthes, no livro A Câmara Clara, lança reflexões sobre o instante
que antecede a analogia de sentidos. Suas provocações incidem no fato de que,
quando diante do objeto visualizado, o mais intrigante não é o porvir de sentidos
desencadeados pelo tal, mas o desejo desenfreado de atribuirmos um significado.
Por que querermos interpretá-lo? Que sensações ele evoca? A que estados de
espírito ele conduz? Eis uma série de possíveis questões interrompida e fadada
ao esquecimento logo que se antecipa um sentido. Dito dessa maneira, fica
subentendido que os sentidos decalcados na imagem são sintomas de
provocações que incidem sobre o observador.
Outra oportunidade de elucidar e desdobrar estas provocações aparece na
interpretação da poesia de Cecília Meireles, no livro Viagem e Vaga música:
“Nunca eu tivera queridoDizer palavra tão loucaBateu-me um vento na bocaE depois no teu ouvidoLevou somente a palavraDeixou ficar o sentido
O sentido está guardadoNo rosto com que te miroNesse perdido suspiroQue te segue alucinadoNo meu sorriso suspensoComo um beijo malogrado”.
(MEIRELES, 1982)
O sentido, tal qual aparece no verso, acontece no corpo de quem age
deliberadamente insistindo prolongar uma experiência. Ele é antes de qualquer
coisa um afeto (aquilo que foi sentido – particípio passado que indica o resultado
da ação de sentir) e, por isso mesmo, nem sempre possível recapitular essas
impressões sob uma fórmula racional do léxico. E, nesse caso, nada compromete
a expressividade imagética, porque viver um evento em imagem não implica ter
desse evento um sentido. Mas, talvez seja o contrário, isto é, o não fechamento
pode conduzir a instâncias de significação da imagem ainda não exploradas,
porque deixa abertas possibilidades de novas visualidades.
148
Figura 30. Arthur Bispo do Rosario. Cestas e Canecas Coloridas. Vitrine.
149
No caso de Bispo, vale lembrar que o sentido de sua obra aparece na co-
presença de sentidos articulados sobre ela, sem apelar para a fixação de nenhum
deles. Bispo inaugura um evento visual que transborda a normalidade da vida
cotidiana e fatalmente desarma nossos esquemas de leituras. Impressiona ver em
seus arranjos objetos usuais e cheios de significados no plano social arrumados
numa composição onde é encenado o silêncio da interrupção da função, do
abandono, do esquecimento.
Nessa percepção incomum, um copo tem seus limites transbordados e
podem ser lidos nas Vitrines de Bispo como nuanças de cor ou como efeito de
textura e volume (ver figura 30). Subentende-se, então, que foram atravessados o
campo das analogias, simetrias e contraposições instalado em torno de cada
objeto. A partir daí, na condição de imagem, as próprias coisas se desenvolvem
em suas potencialidades implícitas.
Naturalizou-se o impulso de atribuir sentido aos objetos produzidos na
esfera social, como um gesto necessário para justificar a presença deles. Isso fica
evidente quando um artefato é descartado, deixando de participar do jogo social,
porque perdeu o sentido que lhe foi atribuído (deixa de exercer sua função). Com
a produção de imagens não é diferente: também se torna vítima da “explicação do
texto”, que força a conversão de todas as coisas em expressão verbal. Após a
observação de imagens, mais cedo ou mais tarde, é comum a formulação de
comentários que deixam transparecer a ânsia em incutir significados, submetendo-
as a outra lógica, como aparece na fala de um comentarista esportivo sobre uma
partida de futebol: “a leitura que podemos fazer dessas imagens do primeiro
tempo...” e acompanhada dessa frase um discurso extenso para tentar, com algum
efeito, descrever as imagens que observara.
Decerto que o verbo ler, em nossa cultura, não é empregado apenas para
denotar uma experiência com o texto verbal, no reconhecimento do código
alfabético. Suas possibilidades de uso expandiram-se em direção a outras
atividades cujo objetivo ainda é a determinação de significados. Numa acepção
mais ampla, ler é usar os sentidos do corpo para encontrar regularidades que
150
possam ser reconhecidas dentro de um sistema de significação. Trata-se então do
esforço para atribuir significados ao que, por algum motivo, nos impressiona.
Como se percebe, os estudos dedicados ao uso de imagens como signo
em sistemas de representação, quase sempre, esbarram na tensão
significante/significado, identificada como resultado decorrente da expansão dos
métodos de análise linguística da fala para outras linguagens que dinamizam os
jogos das relações sociais, mas que não apresentam o mesmo suporte da
articulação da fala (BARTHES, 2004c, p.105).
Em se tratando do estudo das imagens, potencializam-se questões sobre a
construção de sentido, responsável por interligar significado e significante. Mas
onde inicia e onde cessa o sentido? O que dificulta formular uma resposta
definitiva para essa pergunta é o caráter convencional e polissêmico do signo, em
que um significado pode estar em mais de um significante ou, na ordem inversa,
um significante apresentar vários significados.
Tematizando a problemática das dimensões do sentido da imagem, tem
início a narrativa do clássico da literatura universal, O Pequeno Príncipe, de Saint-
Exupéry. Nas primeiras páginas do livro, de um modo delicado e envolvente,
somos surpreendidos por uma brincadeira que põe em jogo as possibilidades de
sentidos para a imagem de um chapéu ou uma jiboia que acabara de engolir um
elefante. “Por que é que um chapéu daria medo?” As provocações logo no começo
da narrativa nos permite considerar que as imagens podem ser mais encantadoras
quando não pesa sobre elas a obrigação de significar, ou seja, de ter que se
desdobrar em significante e significado.
151
Figura 31 Aquarelas de Saint-Exupéry para ilustração do livro.
É da natureza humana entregar-se à provocação do sentidos e vestir de
significados tudo que impressionou, construindo por meio da performance da
linguagem uma prosa do mundo ou um efeito de realidade (uma maneira de
estabelecer ordem e unidade para os acontecimentos e fenômenos do mundo). No
horizonte dos estudos semiológicos esboçados por Barthes, em vez de dedicar
atenção a métodos de interpretar o significado, esquadrinhar o signo para decifrá-
lo, as reflexões são atraídas pelo exercício da construção de sentidos, tal com
aparece registrado: “o que me apaixonou a vida inteira foi a maneira como os
homens tornaram o seu mundo inteligível” (BARTHES, 2004c, p 8).
Nossa sociedade privilegiou construir uma relação epistemológica,
sistematizadora e esclarecedora com as linguagens, colonizando-as para a prática
do reconhecimento de informações catalogadas; uma espécie de código de
acesso ao arquivo de conhecimentos acumulados, como quem folheia uma
enciclopédia. O impulso de atribuir e organizar significados deu forma a uma prosa
do mundo, onde predomina uma relação linear de representatividades: existe,
como num valor de troca, o reconhecimento automático de uma ideia em um
signo, o que não poderia acontecer sem a alienação da natureza simbólica da
linguagem.
Do contrário, expor o artifício semântico do código tornaria nulo seu valor de
troca porque acarretaria na contingência de significados, contrariando o postulado
que condiciona a fixação de um valor à interrupção da capacidade de significar. No
exemplo do sistema linguístico, se a palavra não cessa de significar, a
comunicação não acontece. Forçosamente, logo que se dá conta das regras que
delimitam um contexto, o sujeito racionaliza sua capacidade de conferir
significados ao mundo. Nessa percepção, o grande feito nesse jogo da
comunicação está em transformar o signo em signo de uma equivalência com as
próprias coisas (FOUCAULT, 2007b, p.64), isto é, fazer parecer natural a equação
equilibrada entre significante e significado.
Pode ser então que as inquietações provocadas pelas construções
elaboradas por Bispo advenham do esforço em vão de tentar aplicar alguma
disciplina ao que se vê e, consequentemente, de não conseguir confirmar suas
152
referências. Pois, em geral, nos sentimos inseguros quando a realidade não
coincide com nossas expectativas ou com nossas projeções.
Nas criações de Bispo tratadas como Estandartes (compostas de um lençol
bordado com linha, em sua maioria, desfiada de seu próprio uniforme) nota-se
uma trama de palavras que dá contornos ao vazio. Em vez de o preenchimento a
superfície do tecido avista-se o vazio com o bordado das palavras, quase sempre
numa lista de antropônimos justapostos, ou nos registros, em sintaxe frouxa e de
frágil nexo, de seus devaneios mesclados com episódios do pouco que se sabe da
vida de Bispo antes da internação.
Por conseguinte, em tais construções não figura um universo
confortavelmente traduzido: a área do tecido foi preenchida por palavras que se
abrem para o vazio porque não apontam para um referente, são signos de si
mesmas. Nesse movimento, são criadas imagens do paradoxo: o espaço, a
superfície do lençol, é preenchido com o vazio das palavras. Como efeito, pode-se
visualizar nesse mesmo espaço contornos que se abrem para o vazio.
Figura 32. Arthur Bispo do Rosario. Bordado em exposição na 30ª Bienal de artes. São Paulo. 2012.
153
No fluxo de ideias desenvolvidas na escrita deste trabalho, ganha relevo o
pensamento que atravessa todo o debate articulado em torno das composições de
Arthur Bispo do Rosario: no advento dos desvios, dos equívocos, os dos
encontros casuais e dos paradoxos são projetados “não-lugares” em que a
experiência com o poético acontece. No geral, são imagens grávidas de sentidos,
apesar de muitas vezes não sabermos formulá-los em termos discursivos. Mas, a
imaginação se ocupa de desenvolvê-la e aponta caminhos de desdobramentos
para a expressão verbal.
Desvios, equívocos, paradoxos encontram-se nas obras de Bispo sob as
figurações que desautomatizam o olhar e, consequentemente, rasuram ortodoxias.
Isso provoca ainda interferências nos procedimentos recenseadores do sentido e
da subjetividade, o que torna inevitável pensar a reelaboração de um novo
estatuto do sujeito e da arte.
Convém ressaltar que não se trata aqui de uma abordagem romanceada
das condições de realização dos trabalhos de Bispo nem ignorar o diagnóstico da
loucura ou os sintomas do surto psicótico. Invisto numa outra leitura das
composições de Bispo, aproximando-as da poética de Manoel de Barros que
resgata na linguagem a capacidade de “dar a ver” as coisas sob novos ângulos,
por todos os lados e não apenas por um ponto de vista estritamente conceitual. O
olhar é movido pelo interesse de estudar outras formas de compor a prosa do
mundo. Pois, com o material recolhido do cotidiano, Bispo não só prepara uma
apresentação do mundo, como também, se inscreve nesse mundo pela via da
imaginação delirante. Desse modo, acontece na extensão desses trabalhos a
afirmação do real, experienciando-o, testando sua potência de vir a ser. Na
elaboração das imagens, portanto, pela dinâmica da linguagem, fica confirmada a
participação de Bispo no mundo.
154
12. O intervalo da ficção: entre o óbvio e o obtuso
(...) e não encontrar-te é nenhum desgostopois abarrotas o largo armazém do factívelonde a realidade é maior do que a realidade.29
(Drummond)
Figura 33 Arthur Bispo do Rosario. (Detalhe) quadrante de uma vitrine em exposição na 30ª Bienal de artes.
São Paulo. 2012.
29
2
Andrade, Carlos Drummond. “Isto é aquilo”. In: Poesia Completa. p.500. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
155
Nessa etapa da escrita, retorno ao ponto de impacto para ponderar minhas
inquietações e avaliar que outros pensamentos podem ser agregados nessa
operação de leitura dos arranjos de Arthur Bispo do Rosario.
Decerto, ao enveredar pelo repertório dos trabalhos de Bispo, em especial
seus arranjos, tudo impressiona o olhar. No entanto, nada de extraordinário, a não
ser a evidente desimportância dos objetos reunidos. No quadrante de uma
“Vitrine”, avistam-se peças de metal, estilingue, tomada, rodinha de bicicleta,
brinquedos de plástico, maçaneta, colher, tira de chinelo, entre outras coisas
delicadamente fixadas em suporte de papelão e madeira (figura 33). Desse
material, nada sofreu intervenção na forma original, nem foi aproveitado para
compor imagens figurativas. Mas, ainda assim, (ou talvez por isso) nos causa
espécie. Por que razão estes agrupamentos haveria de Interessar? Por que
intrigariam?
Tendo em mente o repertório das obras analisadas, arrisco na teoria de que
tal inquietação se deve à co-presença de elementos descontínuos e heterogêneos
conjugados em um mesmo plano. Na conjugação de matéria conhecida em
suportes improvisados, ganha expressividade a potência poética de Bispo. Como
já descritos, são planos onde foram relacionadas coisas extraviadas ou
interrompidas de sua sequência produdutiva. Neles aconteceram encontros
inusitados ou, melhor dizendo, encontros possíveis mas pouco prováveis, não
convencionais na cena social. Tal é o impacto desses encontros que os suportes
de madeira e papelão tornam-se aqui palcos onde são ensaiadas potencialidades
de mundo.
Na incursão por essas obras, investindo numa aproximação com a
linguagem articulada por Bispo na missão de apresentar o mundo, projetei
reflexões a partir daquilo que franqueia expressividade a tal linguagem. Desse
modo, sugeri novas visibilidades aos objetos agregados, sem qualquer pretensão
de tematizá-los, mesmo porque, uma espécie de sedução de linguagem parece
adiar o fechamento de um significado para estes conjuntos. Com efeito, no
alcance dessa percepção, tais arranjos não constituem estruturas, cuja arquitetura
deveria reproduzir circuitos fechados para o curso de ideias; em vez disso, a sua
156
armação possibilita a articulação de referências sacralizadas, rasurando a ordem
retórica de compor a prosa do mundo (onde ficam estabelecidas relações de
continuidade entre as coisas).
É o caso de pensar, nessa etapa da escrita, o plano onde acontece a
convergência de perspectivas diversas; o lugar fértil de significações, tal qual
aquele inaugurado num romance, num poema, numa tela ou nas “vitrines” e nos
arranjos de objetos familiares. Lembro que nesse plano também foram cunhadas
as categorias usadas no exercício de apontar novas visibilidades, outras
envergaduras para o conjunto de imagens aqui estudado. Este é o reino de todas
aquelas categorias inventadas (o objeto, o articulador, a lista, a etc, o labirinto, o
arquivo...), cujas fronteiras coincidem com os deslimites da ficção. Quem quer que
se aventure pelos trabalhos de Bispo experimenta a fascinação e a desconfiança
com relação à linguagem. Pode-se dizer com isso que, dessas incursões, ficam
delineadas nuances de uma ambiência ficcional, posto que sem palavras e alheio
a qualquer esquema de representação.
O traço ficcional dos agrupamentos engendrados por Bispo fica por conta
da expressividade capaz de afetar a dinâmica do pensamento e trazer novas
envergaduras do olhar para o factício do real. Mais do que objetos funcionais
deslocados do espaço doméstico ou manicomial, visualizamos uma rede de
referências entrecruzadas do plano social. Enquanto participa do circuito das
relações pragmáticas, o objeto concentra a atenção num aspecto específico,
circunscrevendo a experiência do olhar em uma esfera da realidade. Porém, se
desambientado e depois rearranjado esteticamente, demanda outros percursos do
pensamento a negociar uma causalidade com o que aparece no entorno.
Não há de se estranhar que, na contemplação dos artefatos reunidos, por
instantes, fulguram reminiscências de sua atuação no espaço social, mas logo se
desfazem, pois, de nada adianta no contexto destes arranjos as referências
utilitárias (a rodinha nessa circunstância não conduz a lugar algum; a maçaneta
não articula uma passagem e também não há razão para se preocupar com a
voltagem da tomada...). São objetos cotidianos, quase sempre identificados
facilmente, mas que, nem por isso, se entregam a uma leitura canônica.
157
No conjunto destas reflexões, o estado de perplexidade com a familiaridade
dos objetos dissolvida em combinações arbitrárias já é um prelúdio da
complexidade das redes de significações. O que se pensa por complexidade é
sugerida na potencialidade de articulações para tramar contiguidades entre as
coisas e editar a prosa do mundo. Isso deixa transparecer a artificialidade do
encadeamento, da interdependência, da coerência e toda manifestação do
discurso forjado na intenção de administrar os referenciais e produzir com eles um
efeito de verdade. Como de costume, para tudo que afeta nossa percepção é
necessário editar relações de sentido.
Então, visualizar a aparência inequívoca dos objetos agrupados ocasiona
uma hesitação que desdobra na escrita desta tese uma tensão virtuosa: a
interpretação destes arranjos oscila entre o óbvio e o obtuso. Diante da
constatação do óbvio se instaura um estado alterado de consciência, fazendo
duvidar da segurança e plenitude dos pontos de vistas legitimados. Essa
contingência do óbvio arrebata o pensamento a uma situação fronteiriça entre o
factual e o ficcional. Com o verso de Drummond usado como epígrafe, mais uma
vez, potencializo a expressividade poética desses arranjos, onde a realidade
torna-se maior do que a realidade, causando perplexidades ao mobilizar vários
sentidos ao mesmo tempo, a partir de artefatos do cotidiano.
Os agrupamentos em questão são construções que se esquivam das leis
de universalização, do alinhamento, da conformidade, da massificação,
compartilhadas pelas sociedades contemporâneas. Por essa razão, podem ser
apontadas diferentes maneiras de ler um emaranhado de objetos: seja como
desordem, seja como disposição aleatória, seja como figura do infinito, seja como
espaço armado para fabricar e acolher sentidos...
Para o movimento desta escrita, o desejo de uma interpretação dos
trabalhos de Arthur Bispo pelas vias do exercício poético de linguagem não levaria
a lugar algum sem assumir o caráter fabuloso (inventado) e circunstancial das
relações convencionais de sentido. Mesmo porque, a hipótese de leitura desta
tese investe na interpretação de seus arranjos como sendo, entre outras coisas,
uma reordenação do mundo traduzido numa outra dimensão da linguagem.
158
Na experiência com os trabalhos de Bispo, ganha relevância pensar um
agrupamento como conjunto dos possíveis ou, também, como lugar fecundo para
tramar enredos (isto é, colocar os referenciais em rede; tecer interpretações). Por
essa abordagem, tais construções são elevadas à condição de espaço privilegiado
para o exercício do jogo da ficção, de onde se pode flagrar o mundo acontecendo
na extensão de um ponto sobre os seguintes, conectando os episódios de
percepção, de modo a configurar uma projeção ao infinito, sem a previsão de um
último ou de um limite (DELEUZE, 1991, p. 121).
De modo geral, o alcance do conceito de ficção, usado como predicado
para um efeito de linguagem, tem a sua extensão abreviada na articulação de
pares binários, onde a distinção de sentidos acontece por oposição a outro termo
não marcado convencionalmente. Isso é o que se pretende na oposição
estabelecida para os efeitos de linguagem cotejados nos pares
referencial/ficcional, prosaica/poética, convencional/artística, cujo segundo termo é
definido pela ausência de uma característica privilegiada no primeiro. Nesse caso,
os termos “ficcional”, “poética” e “artística” marcam o uso da linguagem que não se
decalca ao referente, conforme se espera de uma “linguagem referencial,
prosaica, convencional”.
Sob esse prisma, o emprego do termo ficção marca uma relação não
convencional, sem ligação direta e evidente entre linguagem e referente no plano
social, o que desnaturaliza as relações significante/significado, objeto/função,
descritas e legitimadas nas práticas de comunicação. Trata-se, então, de uma
manifestação de linguagem que não se confirma como legenda ou dublagem do
real. Em vez de decalcar o referente, ela mostra-se como índice do
distanciamento, do afastamento, do intervalo, corroborando a descrição conceitual
de signo apresentada por Barthes (2001b) como artifício que promove afinidade
entre termos dessemelhantes.
O intervalo é, por natureza, lugar fecundo de possibilidades: algo está
sempre acontecendo entre uma coisa e outra. O que pode acontecer no intervalo
de uma programação, por exemplo, pertence ao imprevisível, de sorte que
qualquer acontecimento poderia preenchê-lo. Dada interrupção ou
159
descontinuidade entre dois pontos, é o efeito de preenchimento que
particularmente desperta atenção sobre a figura do intervalo. Sem demoras,
constroi-se deliberadamente uma via de acesso, um nexo ou uma direção (um
sentido) entre descontínuos.
Irrompem do “intervalo” reflexões que animam o debate acerca dos arranjos
montados com a justaposição de objetos (signos do real), pois é relembrada a
distância a ser percorrida enquanto se processa o nexo entre um item e outro. Nos
estudos semiológicos, pela distância entre o signo e a ideia calcula-se o grau de
iconicidade do signo, definida como propriedade de representar por semelhança o
mundo social (ECO, 1990, p.99). Na tradição dos estudos da linguagem, emprega-
se a expressão “mensagem objetiva”, que é da ordem da denotação, quando
aparenta ser estreito o intervalo entre o signo e seu referente, simulando uma
continuidade entre eles. Em contraposição, um maior intervalo, resultante de
relações mais frouxas entre os signos e as coisas, configuraria, então, mensagens
mais suscetíveis ao exercício da imaginação. E, nessa descrição, quanto maior for
o distanciamento, o intervalo, maiores serão as possibilidades de mobilizar outros
sentidos.
Mesmo em manifestações de linguagem destinadas à comunicação
referencial, cultivar intervalos é uma injunção que deve ser obedecida para haver
entendimento: a individualidade e a ordenação são garantidas pelo espaçamento
dado entre um signo e outro, o que torna viável a distinção entre eles, pois, do
contrário, no caso da comunicação escrita, seria um amontoado de letras, sem
constituir signos verbais. Também o hiato entre o signo e as coisas é o argumento
da natureza simbólica da linguagem, pois, na necessidade de se referir a algo
ausente no contexto da enunciação, recorre-se aos signos. Nessa circunstância, a
presença do signo evidencia uma ausência, paradoxalmente.
No caso dos arranjos com objetos-signo da cena social, é como se
projetassem algo além do imediatamente factual; algo que me vem na forma de
alumbramento assim elaborado: administrar relações de continuidade entre as
coisas é a condição, o penhor do mundo convencional. Como visto em páginas
anteriores, a imagem da lista, do catálogo e do arquivo, por exemplo, são
160
construções, com um alto grau de elaboração estética, cuja justaposição de partes
fomenta a trama de sentidos. A visualização dessas composições é seguida pelo
esforço do pensamento para construir um circuito de significados. Isso nos dá uma
noção de mundo expressa na metáfora de “conjunto de potencialidades”.
Para dar segmento a alumbramentos e perplexidades ocasionados pelas
obras de Bispo, foi necessário, então, reconhecer que as proposições desta nova
poética estão localizadas no “intervalo”, pois nele é potencializada a fabricação de
sentidos.
Mais do que uma categoria poética, existe visivelmente um intervalo que
corresponde ao espaçamento entre as coisas, de modo que conseguimos
identificá-las em sua maioria e distinguir seus contornos. Para que se instaure o
efeito de ordem, por exemplo, é imperativo haver espaçamentos entre os objetos-
signos, garantindo lhes a individualidade, a percepção das silhuetas e de seus
arredores. Porém, a clareza das formas contrasta com a disposição dos elementos
porque parece não se aplicar à sequência lógica alguma nem ao encadeamento
linear, de modo a estabelecer uma relação de continuidade de ideias.
Além desse espaçamento físico, há ainda outra acepção para o intervalo
denotando o repouso dos objetos ou a suspensão de suas funções. Nesse
instante de ociosidade, os objetos podem ser contemplados em seus contornos,
formas e nuances de cor, banalizados pelo pragmatismo que pesa sobre eles. No
intervalo de uma programação (uma interrupção deliberada), opera o devir como
um conjunto de possibilidades a partir dos elementos agregados. Nessa
concepção, o intervalo se abre como tempo-espaço da experiência, onde o mundo
se atualiza e seus horizontes se alargam.
Em todo caso, reflexões articuladas sobre o intervalo dão visibilidade à
trama entre episódios cognitivos e afetivos, resultando numa contextura de
perspectivas, tematizada antes na expressão prosa do mundo, colhida dos
escritos de Foucault (2007b). Vale ressaltar que vivenciamos impressões diversas
e estas precisam ter algum nexo entre si, fazer sentido, pertencer a uma
causalidade. Sendo assim, forjar ligações entre eventos requer esforços,
observação, imaginação, dedicação, o que imprime forma ao modo como uma
161
cultura, uma comunidade, uma geração ou um indivíduo se relaciona com o
mundo em sua complexidade. Tal é a dependência desse processo de articulação
para ver o mundo, que aquilo que resiste ou retarda seu alinhamento em uma
sequência de fatos é recebido com espanto e fica logo marcado.
A falta de nexo, como é de se esperar, desestabiliza as referências
previsíveis entre o signo e as coisas, entre o objeto e a cena. Opera de forma
quase automática a composição de uma unidade entre a caneca e a cozinha, o
abajur e a sala, a tomada e a parede (vide figura 33 na abertura do capítulo), mas
a quebra de expectativas torna imperativa a busca por outras analogias. Pode-se
cogitar daí que uma construção enigmática, de relação obscura entre as partes,
atrai a atenção pela dinâmica dos pensamentos especulados para uma possível
solução. Um enigma só existe enquanto impulsiona a busca de possibilidades de
esclarecimentos.
Haverá sempre interrogações veladas, outras não respondidas, lacunas não
preenchidas. E o que fazemos com esse perene vazio caracteriza o modo como
pensamos o mundo. Existem os que recorrem a explicações míticas e
sobrenaturais; os que analisam sob uma perspectiva científica; os que preferem
aceitar a simplicidade de não saber e os que tentam nem pensar sobre. Cada
qual, atendendo suas ansiedades, inventa maneiras de preencher
temporariamente essas lacunas, movimentando as referências que compõem o
mosaico da realidade. É fato: uma coincidência de referências e rapidamente
aparece um esboço de sentido.
O intervalo, em suas diferentes acepções, opera como uma das categorias
de análise para essa nova poética, porque deixa entrever algo além do que foi
apresentado. O impacto gerado por desambientar objetos convencionais coloca
sob suspeita a evidência e a factualidade com que se revela. Como efeito, nesse
hiato entre o objeto e seu contexto, instauram-se outros regimes de sentido (fora
de uma circunscrição pragmática) trazendo um lampejo de consciência a respeito
da artificialidade de conceitos e regras que delineiam o traçado das fronteiras do
real. Por essa ótica é que a realidade, sugerida na familiaridade das coisas,
transcende o próprio real para apresentá-lo em sua potencialidade.
162
Os trabalhos de catalogação do universo sugerem, sem dizer efetivamente,
potencialidades para contextura entre as coisas que impressionam a visão. Eles
figuram como estância do factual, do conhecido, do óbvio e, ao mesmo tempo, da
possibilidade, da experiência, do obtuso... Pelo ajuntamento de artefatos
cotidianos, entrevemos o mundo como potência, como um devir. De modo
peculiar, nestes arranjos, a força do devir ganhou expressividade na “desutilidade”
e no deslocamento para fora do contexto, onde o pragmatismo não impera mais.
Em certa medida, tais considerações ampliam o debate acerca dos
postulados de realidade e de ficção, avaliados precocemente como instâncias
opostas uma da outra. As imagens elaboradas por Bispo despertam a
necessidade de rever esse lugar-comum marcado na oposição, uma vez que para
engendrar uma perspectiva outra da realidade foram recolhidos materiais da cena
social (é importante lembrar que os arranjos analisados fazem parte da
apresentação do mundo). Nas composições de Bispo, as fronteiras entre realidade
e ficção, como é de se esperar, se confundem na tarefa de administrar relações
entre os episódios de percepção.
No intervalo dessas composições, entre o óbvio e o obtuso das coisas,
espreitam-se as multiplicidades do mundo. De modo geral, o mundo está sempre
dito por meio de esquemas convencionais (mitológicos, religiosos, científicos) que
se precipitam diante de qualquer gesto de aproximação. Nesse caso, toda
experiência aparece mediada por “discursos de verdade” ditando uma prosa do
mundo, com enredos determinados para cada coisa. Visto assim, o mundo tal qual
ficou convencionado pode ser entendido, então, como um fenômeno de
linguagem. Contudo, nessa realidade objetiva, é imperativo cessar a significação
alienando a própria condição de linguagem, com a finalidade de garantir
estabilidade às proposições formuladas e legitimadas pela prática social.
Sensível à expressividade das coisas, Bispo cria intervalos tornando
possível articular suas impressões e redescobertas do mundo. Foi necessário,
então, inaugurar novos espaços de significação (seus arranjos) para projetar suas
perspectivas. Dessa maneira, Bispo se assenhoreou da potência de linguagem
que arma e sustenta a noção de realidade. Nascem, como efeito de novas
163
envergaduras do olhar, arranjos diferentes para as referências norteadoras do
plano real. É na potência de articulação dessas referências (sugerida nas
improváveis verossimilhanças entre as coisas) que irrompe a força ficcional das
composições de Bispo.
Ganha relevância, em meio a tais reflexões, o pensamento de Michael
Foucault a respeito do ficcional, no livro O Pensamento do Exterior:
“O fictício não se encontra jamais nas coisas nem nos homens, mas na impossível verossimilhança daquilo que está entre ambos: encontros, proximidades do mais distante, ocultação absoluta do lugar onde os encontramos. Assim, pois a ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível.” (FOUCAULT, 1990, p. 30)
Desse pensamento, faço um ponto de convergência das ideias dinamizadas
a partir dos trabalhos de Bispo, armando no centro a proposição que atravessou o
debate: a ficção engendrada na “impossível verossimilhança” de encontros
improváveis ou não convencionais. O impacto visual das obras de Bispo do
Rosario incide no limiar onde o real faz-se crise de si mesmo: não há código nem
servidão de significados prevista. Tal como analisado, no ajuntamento de material
heterogêneo, a figura do acaso ou o efeito inusitado revelam novas experiências e
perspectivas instauradas e deixa vir à tona as imensidões do mundo, encobertas
sob “discursos de verdade” que ditam relações de sentido.
Tanto o real quanto a ficção fazem parte do enigma inscrito nas mediações
possíveis entre o ser humano e o universo.
Parece então que o esforço não está em constituir verdades e legitimá-las,
mas em construir uma trama, um enredo para nos fazer lembrar a própria
inventividade do mundo, para nos livrar da nossa própria cegueira diante do
caráter artificial, cultural e histórico da realidade, ou, por outro lado, pensar até que
ponto ignoramos que são desconhecidos os limites do mundo, até que ponto
ignoramos que renunciamos nosso potencial criador.
Na concepção de Foucault, a ficção ilumina outras expressões desse
estranho conhecido que é o real; provoca-nos espanto com o esquecimento de
nosso próprio potencial criador. Ao por em evidência a potencialidade inesperada
164
do real, uma obra de arte modela e desconfigura o mundo, por meio de uma
torção reestruturante, que nos redireciona para uma versão inédita da realidade,
convidando-nos também a remodelá-la permanentemente.
Bispo parece ignorar que o mundo existe num formato definitivo, e
(re)constrói um; ou ainda, sem considerar nada pronto, vê no mundo nada mais
que possibilidades. E, ao articular objetos de naturezas diversas num mesmo
suporte, instaura em suas construções o estatuto da ficção. Decerto, é pela
escolha do termo “poética” que melhor se expressa a dinâmica de sua produção
porque nela pode ser lida “uma estrutura aberta, em constante mutação, com a
qual possamos organizar nosso conhecimento cultural e nossos procedimentos
críticos” (HUTCHEON, 1991, p.24). Nesse sentido, são deslocamentos poéticos
aqueles praticados por Bispo, porque não para em lugar nenhum.
165
13. Este que precede a um autor.
“Sou tão visívelque não se estranhao meu sorriso. E com tamanhaclareza pensaque não preciso dizer que viveminha presença.”
[Irrealidade. Cecília Meireles]
Deus deu a forma, os artistas desformam.
[Manoel de Barros]
Bispo apresentou o mundo articulando material que, de tão comum na cena
social, passa despercebido. Além disso, a matéria reunida traz na sua superfície a
ação do tempo e o desgaste devido ao manuseio. Mesmo assim, ao fazer
combinações imprevistas de objetos, em tais ajuntamentos deixam-se entrever
potencialidades de mundo. Sejam “Vitrines” armadas na repetição de elementos
do mesmo gênero (pentes, canecas, colheres, chapéus...), sejam arranjos com
elementos variados, nessa conjugação de familiaridades se instauram novas
experiências de percepção, que fazem estancar o curso natural das coisas. Por
assim dizer, retorno à ideia de que no impacto visual dessas construções são
acionadas possibilidades de leituras, sugerindo, como efeito, jogos de ficção.
Um arranjo, portanto, consiste na operação de sentidos e não somente em
um acontecimento estético. E, em meio a engenhos de articulações e contexturas,
confere aprofundamento às proposições de uma leitura poética dessas imagens
pensar a categoria de autor como aquele que reconhece e expõe os limites
deliberados da realidade objetiva, para projetar ao seu modo outros horizontes.
Sob a rubrica do autor, age o sujeito que ensaia visualidades de mundo, quando
movimenta referências consagradas pelas práticas culturais.
166
A categoria de autor, na tradição dos estudos da linguagem, desdobra-se na
figura do artista, do poeta, do prosador, denotando sempre a função central de
agente da enunciação. Por essa via, foi construída uma mitologia da obra, que
prescreve e aposta em uma unidade estrutural e de estilo como fundamento,
capaz de agregar pensamentos diversos suscitados pela obra. Tradicionalmente,
nas práticas de leitura do Ocidente, é insuportável o anonimato literário, porque o
“autor é o princípio de uma certa unidade de escrita” (FOUCAULT, 2006, p. 278).
Fica sendo encargo do autor administrar semelhanças e incompatibilidades entre
as experiências de percepção, tornando possível a construção de mundos.
Em todo caso, poeta, prosador ou artista, a elaboração do conceito de autor
aponta o sujeito que põe em prática a vontade de poder significar o universo a sua
volta. A autoria vai ganhando contornos no exercício da criação de perspectivas
outras, sem que disso se entenda um compromisso de encenar o inverossímil, o
inédito ou o irreal. O conceito de autor não se restringe, portanto, à capacidade de
gestar dimensões estranhas ou alheias à realidade; vai mais a fundo, pois
reverbera a necessidade de articulações providenciadas para forjar nexo entre as
coisas.
Existe um pacto de realidade firmado em sociedade, cujos limites
deliberados ficam visíveis nas intimidades da linguagem, tal como acontece nas
obras de Bispo. Dos agrupamentos não presumidos de material corriqueiro, por
exemplo, pode-se espreitar o limiar desse pacto, mostrando que fora dos termos
prescritos podem acontecer diferentes contexturas de sentidos. Assim,
percebemos que o mundo pode ser mais do que ficou convencionado.
É nesse entremeio que se vislumbra a dimensão da categoria autor
aplicada a Arthur Bispo do Rosario. Tendo conhecimento da trajetória de seus
trabalhos até se instalar em uma sala de exposição artística, considero válido
voltar à carga de alguns termos usados para descrever o impacto visual gerado
por tais imagens. Todavia, parece que para consagrar o título de artista a Bispo do
Rosario (título que ele nunca reclamou para si), é imperativo forçar uma
“conciliação” entre a sua produção e as categorias ou os conceitos operados pela
crítica de arte. Como sinalizado por Ferreira Gullar em um artigo publicado no
167
jornal Folha de São Paulo, 14/ 08/ 2011, não é raro acontecer anacronismos ao se
reportar ao trabalho de Bispo, porque nos antecipamos em estabelecer analogias
com o instrumental teórico moldado dentro de uma tradição artística. Por isso,
cabe, então, conferir o conjunto de ideias dinamizadas pela categoria autor, a fim
de evitar clichês ou descrições superficiais.
Bispo não almejou para seu trabalho o rótulo de arte, no sentido que a
crítica e o mercado consagraram. Ele tinha uma missão maior: apresentar o
mundo ao Criador, no Dia do Juízo. Foi na condição de interno no instituto de
tratamento psiquiátrico Juliano Moreira que se dedicou exclusivamente à
(re)construção do universo. Não recebia qualquer incentivo da instituição para
produzir, mas o efeito estético de suas composições já sensibilizava funcionários,
pacientes e visitantes que tinham contato com elas, pois seu engenho criativo e
sua destreza garantiram expressividade a um modo singular de pensar o mundo.
No caso de Bispo, ao contrário do que se espera, a autoria (a insígnia de
artista) não é reconhecida de imediato com base no desejo de comunicar gravado
no código sistematizado. Pois, em certa medida, a prática no jogo da linguagem
nos autoriza distinguir no gênero de cada texto uma proposta de comunicação, na
qual são moldados traços de uma autoria. Tal como ficou consagrado, lemos a
obra como prolongamento natural de seu autor. Mas, os trabalhos de Bispo
afetam, inevitavelmente, a percepção por não acontecer dentro de um esquema
presumido de leitura. Vale lembrar que, ainda assim, não adere sobre elas o rótulo
de indecifráveis ou de ilegíveis, porque estão fora de uma relação de decifração.
Nas composições de Bispo a autoria chega por via diferente, tem entrada
pelo impacto visual que desencadeia hipóteses de leituras e a fabricação de
sentidos. O cuidado estético nos arranjos de objetos desimportantes leva o olhar a
convertê-los, sem demoras, em imagem de potencial artístico-poético. Disso
resulta, inevitavelmente, a busca pela figura do autor. E este só existe, por assim
dizer, como fenômeno de linguagem. Nos domínios de tal observação cabe
lembrar que aquilo que é da ordem do espetáculo só acontece quando o olhar tem
mobilidade para arriscar outras experiências, sem buscar enquadramentos ou
168
operar analogias. Pois, conforme foi dito por Valéry, 1998, p.33: “a maioria das
pessoas vê com o intelecto muito mais frequentemente do que com os olhos”.
Desvinculado de seu contexto imediato e das expectativas construídas,
transforma-se o objeto em algo tão autônomo quanto possível que reclama outras
percepções (cores, texturas, dimensões...), em que não pese a incumbência da
decodificação. Nessa instância, já não é mais imperativo reconhecer equivalências
que fundamentam os sistemas de signos. Quando cessa a obrigação de distinguir
uma voz que alinhe os sentidos da obra, são amplificadas outras vozes que
ecoam em cada elemento do repertório cultural, apontando caminhos possíveis de
leitura e, consequentemente, deslocando do centro a rubrica do autor. De fato, não
é a figura do autor o objeto da leitura, mas os efeitos de linguagem30 (AGAMBEN,
2007).
Tendo em mente as composições de Bispo, penso o autor como
rearranjador da linguagem, resultando no desencadeamento de sentidos. Arrisco
em dizer, contudo, que não são os sentidos que afetam a percepção, mas o modo
como estes foram produzidos – tudo se dá na intimidade com a linguagem. O
impacto visual dos agrupamentos de Bispo comove o olhar a percorrer a matéria
reunida, rompendo a superficialidade do conhecimento prático. Expondo uma
tensão entre linguagem e experiência, os trabalhos de Bispo existem não como
obra, mas como devir das imensidões do mundo. Aí se manifesta a sedução de
suas composições.
Vista pelos arranjos armados por Bispo, a categoria de autor nasce da
renúncia à configuração de mundo onde estão previamente determinados o
espaço e o desempenho das relações interpessoais. Bispo não demonstra
desconhecimento ou, tampouco, nega a existência desse esquema, mas a
transborda reconfigurando outra ordem de sentido. Isso implica dizer que o
princípio da invenção está na renúncia; ele renuncia as facilidades dos esquemas
de reconhecimento e identificação já montados; renuncia a arrumação praticada,
aceita e compartilhada em sociedade; renuncia também a clareza dos conceitos
bem definidos e a zona de conforto instaurada, para apostar numa linguagem
30
3
Cf. “O autor como gesto” em AGAMBEN, 2007.
169
possível. Nessa perspectiva, a categoria do autor revela, por contragolpe, a face
humana que se viu livre da obrigação de operar sentidos previsíveis dentro de um
esquema de entendimento.
Sob a luz dos estudos de Michael Foucault, 2006, o tema do autor ganha
novas envergaduras. Lembrado nesta pesquisa como um dos mestres da suspeita
(ao lado de Manoel de Barros, Barthes e o próprio Bispo), os trabalhos de
Foucault estão inscritos no conjunto de reflexões que estranham a aparente
normalidade ou naturalidade pela qual o mundo é visto. Estranho, no pensamento
de Foucault, é tudo parecer tão natural. O método genealógico com que desdobra
os questionamentos é operado na suspeita sobre definições exatas, na
desconfiança sobre a coerência que forja ligamentos entre os acontecimentos e,
sobretudo, na desconfiança sobre a ação descritiva com a pretensão de
veracidade. Por esse motivo, tais questionamentos potencializam as proposições
deste debate.
Para estender as reflexões a respeito do gesto criador, continuo seguindo
pelos ensaios de Foucault, de onde tomo emprestadas algumas ideias e
expressões como a “função-autor” (FOUCAULT, 2006). Trata-se de uma chave de
leitura para elucidar a existência de um tipo de controle que aciona e determina a
dramatização de saberes, resultando disso, como efeito, versões diferentes do
mundo. Exercer a função-autor implica assumir a vontade de poder significar, o
que não acontece sem antes renunciar os esquemas de entendimento
sacramentados (o código) na prática das relações interpessoais.
Todavia, criar livremente oferece risco ao sistema cujo funcionamento
depende de formas ritualizadas e recorrentes, necessárias na operação de
paradigmas. Pois, somente pelo regramento (medidas que nasce da tensão das
relações interpessoais) é possível a razão ocidental, que administra relações entre
os eventos e institui modelos de interpretação. Fora desse princípio, impera o
aleatório e o fortuito dos acontecimentos. E, sendo assim, deve haver uma força
capaz de estancar a espontaneidade do pensamento. Dito de outra maneira, a
ação de criar precisa ser controlada. Eis, então, a serviço de que forças está a
“função-autor”:
170
“em uma palavra, é o princípio através do qual se criam obstáculo para livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição e recomposição da ficção”. (FOUCAULT, 2006, p.274)
Como visto em outro momento, o jogo da ficção cumpre a tarefa de esboçar
outros regimes de sentidos, propor outros pactos de sentido, ou ainda, espreitar o
limiar desse pacto e deixar vir à tona o que pode aparecer fora dele.
A figura do autor aparece comumente relacionada ao agente que pratica a
organização ou formatação de algo a ser apresentado. Mas, nos horizontes dos
arranjos de Bispo, o gesto do autor ganha novas abrangências e desponta como
articulador de referências culturais (materiais ou imateriais como valores,
conceitos, objetos corriqueiros...), colocando-as à disposição da imaginação, num
outro enquadramento. Contudo, uma vez que movimenta material arquivado no
imaginário coletivo, os efeitos desencadeados no espectador não podem ser
controlados. Destarte, o autor não é exatamente nem o proprietário nem pode
precisar o alcance dos pensamentos potencializados nos textos, o que também
torna o texto e a função-autor uma ameaça à ordem estabelecida.
Nos diálogos escritos por Platão, no livro A República, é colocada sob
suspeita a conduta dos poetas, de cujo labor transforma a escrita em palco onde
os saberes de uma cultura são postos em tensão. Na concepção do personagem
Sócrates, os episódios tramados pelos poetas, independente do grau de
veracidade ou falseamento, afetam o imaginário coletivo, desestabilizando a
unidade que garante a identidade da formação dos habitantes da República
arquitetada no plano das ideias. A natureza mimética da poesia atrapalha o
sistema de reconhecimento porque nela se manifestam, de modo simultâneo, a
voz de quem constrói o discurso e a voz de um outro (uma potência de
coletividade) que não está na situação do discurso. Nessa instância da linguagem,
o poeta atua como fenômeno discursivo previsto na função-autor.
Dessa leitura, fica o pensamento de que é imprescindível para o
funcionamento da máquina social o controle sobre a prática discursiva, porque
nela são gestadas interpretações da realidade. Por meio da função-autor, que
autoriza e determina a elaboração de discursos e a sua circulação, administra-se,
171
por extensão, o controle de comportamentos sociais. É pelo logos que o homem
assume a condição de sujeito: aquele que se sujeita às regras de funcionamento
para exercer, nos limites estabelecidos, seu papel social; é o lugar de onde está
autorizado a dizer. Na guarda e manutenção desses limites age a função-autor.
Existe, então, para cada papel social um discurso marcado, determinado
pela função-autor: “conversa de bêbado”, “papo de maluco”, “linguajar de
bandido”, “fala intelectual”, “discurso acadêmico”... Tantas são as especificações
da função-autor quantos forem os jogos discursivos. Na sociedade, operam-se
distinções segundo a prática da linguagem, asseguradas pela função-autor que,
conforme dito antes, se baseia em reconhecer a especificidade do discurso e
assumir a restrição de compor livremente.
No contexto do jogo social, num apelo para evitar a banalização ou a
profanação da potência criadora, é forjada uma alienação transferindo para outrem
o domínio da criação. Tanto que a autoridade do gesto criador ficou naturalizada
com pode ser lido nas expressões: o dom da composição, a genialidade do artista,
denotando uma dádiva de uma qualidade natural, concedida por merecimento ou
privilégio... Paralelo a isso, ocorre também a glamourização do trabalho intelectual
do autor na intenção de cunhar uma aura mística sobre o profissional; o que
certamente influencia na metodologia usada na apreciação crítica da obra, cujo
procedimento está em sobrepor a categoria de autor a outras, como se fosse ele a
origem dos significados atribuídos, como se precedesse à obra.
No contexto das proposições de uma leitura poética das imagens de Bispo,
inclinar pensamentos à figura do autor revela-se como mais um apelo para
vislumbrar a dinâmica da linguagem. É pelo estreitamento entre artista, linguagem
e conjuntura que se estende o debate sobre a autoria, apostando, com isso, que
cada autor articula uma linguagem possível.
Nos arranjos de Bispo, essas manifestações de linguagem, salta à vista a
matéria retirada do seu convívio, no imediato e concreto da vida; material que ele
insiste em apresentar como é, reservando ao próprio objeto o encargo de provocar
questionamentos. Desse modo, Bispo interfere naquilo que já existe articulando
possibilidades de contexturas e novos enredos para as coisas. Assim
172
considerando, ser autor significa dar forma e condição àquilo que de outra maneira
não teria a mesma existência na esfera social (AGAMBEN, 2007).
Leio nas palavras de Blanchot, 2001, uma maneira de retomar e estender
esse debate por uma via que atravessa o efeito estético da linguagem até
contornar a criação que se insinua estranhamente entre a matéria articulada, isto
é, as subjetividades inventadas. Escreve Blanchot a respeito da categoria de
artista:
(...) criador de uma realidade nova, que abre no mundo um horizonte mais vasto, uma possibilidade de modo nenhum fechada mas tal que, pelo contrário, a realidade, sob todas as suas formas, encontra-se ampliada. Criador também de si mesmo no que cria. (p.230)
Na missão de catalogar o universo humano, as composições de Bispo
visam ao mundo comum, às coisas comuns (colheres, copos, sapatos, chapéus,
pentes e miudezas de todo tipo). Contudo, a articulação desse material acontece
na profanação das experiências sacramentadas pelo uso cotidiano, a ponto de
estranhamos o que pensávamos conhecer bem. Nesses ajuntamentos, Bispo
deixa transparecer um modo singular de perceber a realidade. Mas, em meio à
multiplicidade do real, o sujeito institucionalizado perde a corporeidade moldada
na tensão do jogo social. É no trabalho com a linguagem que se dá a prática de
subjetividades outras, dentre as quais, muitas não estão previstas no contrato de
realidade assinado em sociedade.
Nesse tipo de composição são gestadas e acolhidas subjetividades
transviadas. Nelas residem, por exemplo, a figura do articulador de referencias de
mundo, do armador de contexturas, do colecionador, do bricoleur, do amador de
singularidades... Portanto, não se pode ver sua arte como uma amarração de um
sujeito em uma linguagem, “trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que
escreve não para de desaparecer” (FOUCAULT, 2006. p. 268).
Bispo articulou uma linguagem possível, capaz de garantir expressividade à
maneira singular de administrar suas experiências no mundo. Como já dissemos,
foi na condição de desutilidade das coisas, no intervalo de suas funções e na
desobrigação de significar, que se cumpriu essa linguagem. De outro modo, não
aconteceria de expressar idiossincrasias sem o escapar do estado de “liberdade
173
vigiada” (BARTHES, 2009), que concede o direito de atuar na cena social. São
com as palavras de Roland Barthes que emolduro estes pensamentos: “fora de
qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse
desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a
escrita começa” (2004a, p.58).
Da linguagem articulada por Bispo foram forjadas, então, outras
subjetividades que não tinham lugar na trama social. Assim, burlou a rotina de
pílulas e eletrochoques da instituição de tratamento psiquiátrico, dedicando-se à
criação de sua obra e de si mesmo. De fato, o Bispo que arquitetou uma poética
do inventário tornou-se invisível entre as paredes da instituição, conforme deixam
transparecer os documentos e relatórios médicos; neles quase não há registros
sobre suas composições. Isso causou espécie também a Olívio Araújo, curador do
catálogo Brazilianart VII, 2007, que atentou para “o silêncio evidenciado em seu
prontuário após cerca de cinquenta anos de internação: menos de vinte palavras
em sua biografia. A psiquiatria nada tem a falar sobre sua arte” (p. 370).
De fato, no documento médico, a economia de palavras para fazer alusão
ao seu incessante trabalho criativo, contrasta com a variedade e extensão desse
acervo de imagens. Hoje estão catalogadas de 806 peças, sob os cuidados do
Museu Arthur Bispo do Rosario Arte Contemporânea, localizado na ex-colônia
Juliano Moreira. Apenas uma anotação médica no pronto-socorro da instituição faz
menção (superficial e pouco descritiva) às atividades criadoras de Bispo:
(...) “admitido na Colônia Juliano Moreira em 25 de janeiro de 1939. Doente tem períodos em que ajuda muito no serviço, outros que apenas fica reclusivo. Também tem grande capacidade artística, faz bandeiras, tapeçarias etc. Doente difícil de lidar, devido à paranóia extrema.”
(Apud ARAUJO, 2007, p.364)
174
Numa homenagem justa, a artista Ayla Tavares rompe
o flagrante silêncio da ficha institucional de Bispo, emoldurando dados biográficos
com bordados coloridos, fitas e pedaços de tecido. Existe agora em sua ficha
inscrições que melhor podem dizer a vida de Arthur Bispo do Rosario. Essa
montagem faz reverberar a declaração dada por Bispo, com a qual também
elucido o debate sobre a invenção do artista naquilo que ele mesmo cria:
“Eu já fui transparente. Às vezes, quando deixo de trabalhar, fico transparente de novo. Mas normalmente sou cheio de cores.” (Bispo do Rosario, apud HIDALGO, 1996, p. 176)
175
Figura 34: Ficha do Doente
No encadeamento destas reflexões, vale lembrar mais uma vez que as
composições de Bispo
operam o limite como potência. O que poderia representar um obstáculo para
criação serviu para expandi-la: a instituição, o uniforme, o silêncio... Pois, em sua
cela forte foram produzidos e guardados os trabalhos que prefaciam as
imensidões do mundo. E, quase sempre lembrado por controlar a expressão
subjetiva, o uniforme azul da instituição foi uma das maiores fontes de linha usada
para bordar estandartes e envolver miniaturas que ele fabricou (ORFAs). Qualquer
artefato da rotina manicomial ganhava novos enredos sob sua lógica,
embaraçando, deste modo, as coordenadas que determinam univocamente a
posição de cada elemento agregado ao circuito social. Naquelas condições, de
fato, a atuação de Bispo só era possível pela reinvenção do mundo e de si
mesmo.
Então, no conjunto de reflexões aqui delineado, confirma-se o pensamento
de que pela desutilidade das coisas podem ser vislumbradas copresenças de
perspectivas, o que reverbera as potencialidades do mundo. Nesse entremeio,
176
Figura 35 Ayla Tavares. des.uso ou `a Bispo do Rosariohttp://www.flickr.com/photos/aylatavares/5836769739/in/photostream/?reg=1
visualizam-se outras relações possíveis com os “discursos de verdade”, impresso
nas coisas sob a rubrica da função e do significado. Nos arranjos de Bispo, na
combinação inusitada de objetos familiares, pode-se entrever o mundo com
potência de mundo. Através deles, Bispo interferiu no curso natural das coisas e
fez abalar o equilíbrio projetado no plano das verdades categóricas. Da linguagem,
ele não é escravo, cúmplice nem testemunha. Ele atuou com senhor na
linguagem, criador de seu mundo.
A atualidade de suas composições, capaz de fomentar debates e reflexões,
como vem acontecendo com frequência (Bispo foi artista homenageado na 30ª
edição da Bienal Internacional de São Paulo, em 2012), deve-se ao fato de nos
situar imperiosamente diante do mundo vivido.
Por tudo isso, gosto de pensar sua manifestação de linguagem, não pela
categoria autor, mas pelo gesto afetivo (e afetado) do amador – termo que tomo
emprestado de Barthes, 2003a, que o usa para fazer oposição ao técnico-
burocrata. O amador, tal como Bispo, é aquele que realiza sua tarefa sem o
espírito de maestria ou de competição, reconduzindo seu gozo. Bispo, assim como
o amador, se projeta na atividade que realiza.
14. Por estranhar o que é tão evidente
“Existe uma surpresa, renovada a cada olhar, e que se faz tanto mais indefinível e sensível quanto mais
177
profundamente se examina e se familiariza com a obra.”
(Valéry, 2012, p.148)
Da experiência do olhar que estranhou o imediato das aparências formou-
se este mosaico de pensamentos, onde foram articuladas reflexões sobre e a
partir dos arranjos engendrados por Arthur Bispo do Rosario. Tratou-se aqui da
leitura de um repertório de imagens que seduz pelo modo como foram sintetizadas
referências da cena social e experiências de vida, seguindo intuições e
promovendo combinações inusitadas.
Como visto, o que parecia óbvio ou era silêncio diante do material reunido
por Bispo para compor suas “Vitrines” revelou-se como expressão da normalidade
das coisas e da relação prosaica com elas. No entanto, o cuidado estético com
que Bispo articulou objetos do seu cotidiano deu forma a um trabalho de
apresentação do mundo, o qual nos permitiu uma apreciação pelas vias da
poética. Nesse conjunto, foram percebidas imagens da tautologia e do paradoxo,
ou seja: assim como apontamos uma “linguagem viciada” na exposição do objeto
familiar ou na repetição de um mesmo elemento (a série de canetas, de pentes e a
de botas, por exemplo), notamos também nestes arranjos algo que por si só não
causaria o mesmo impacto, o que espelha uma tensão entre o “mesmo” e o
“diferente”.
Impressiona saber que, nas “Vitrines” montadas com artefatos cotidianos,
em vez de uma repetição, vislumbram-se imagens das potencialidades de mundo,
conotadas pela ampliação de perspectivas e pelas alternativas de contexturas
para (re)integrar cada coisa a uma prosa do mundo. Sob o império da imaginação
criativa, nestas “Vitrines” fulgura a expressão de um saber não legitimado que,
como efeito, é recebido como deslocamento, como novidade ou como
manifestação do insólito.
Vale lembrar que tais composições estavam guardadas em seu quarto, na
Colônia Juliano Moreira, e endereçadas ao olhar do Criador. Não foi por acaso,
178
portanto, que os arranjos foram lidos aqui como uma prosa do mundo, cuja forma
e estrutura permitiram associações com o gênero lista, coleção, compêndio ou
arquivo; porém, sem as convenções sistemáticas ou exigências de objetivações.
De fato, aquilo que é dado a ver, em certa medida, tem o propósito de afetar
a percepção, reclamar do olhar outros enquadramentos. Constatou-se que, neste
modo de compor, o que afeta o observador não se restringe à evidente aparência
dos elementos agregados; passa também pelas operações de leituras
engendradas para estabelecer novas relações de sentido entre o que é
reconhecidamente familiar. Sendo assim, o inusitado apontado nestes arranjos
não deriva do esforço para inscrever algo inédito em um repertório estruturado,
mesmo porque, em nossa sociedade, não são raras as articulações de
pensamentos para incorporar novidades. Mas, de certo, causa estranhamento
repensar conexões de sentido entre objetos que já participam convencionalmente
da ordem pragmática.
Ao aventurar-se pelos arranjos de Bispo (ou seja, transpor a aparência
imediata da matéria) foi experienciada a contingência de sentidos. Em
contrapartida, tornou-se flagrante a inoperância de normas e esquemas
preestabelecidos, que logo deram lugar a intuições de leituras e a especulação de
um nexo. Trata-se de operações inventadas no processo de leitura, implicando em
outros movimentos do olhar e de pensamento. Por isso, estes arranjos são
concebidos como experiência permanentemente aberta.
Seja por uma perspectiva mística ou religiosa, seja por uma abordagem
psicanalítica, seja numa apreciação estético-poética dos arranjos de Bispo, fica
em destaque sempre a tessitura de uma versão de mundo assumidamente
singular. Como a singularidade não desempenha função na ordem convencional e
estas “Vitrines” também não ensaiam respostas para questões ou problemas
derivados das tensões sociais, de um modo geral, aponta-se nelas uma cisão da
realidade objetiva. Todavia, o que foi identificado como um intervalo ou um
afastamento em relação ao plano das verdades categóricas (como os
deslocamentos e as combinações inusitadas de objetos usuais) foi celebrado aqui
como abertura para aprofundar poeticamente intimidades com os referencias
179
dessa realidade. Nesse caso, “sair do mundo” significou, então, ultrapassar
obviedades e transpor os limites deliberados para entrar nele ou reconstruí-lo.
Mesmo sendo derivada do gesto subjetivo e singular, a expressividade do
trabalho de Bispo alcança uma cumplicidade coletiva, pois o que nos apresenta
não é pura abstração ou mera referência biográfica. Na operação de leitura que
reconhece matizes desta realidade, também nos reconhecemos por aquilo que é
expressão da condição humana: a inclinação para especular sentidos ao que nos
impressiona. Portanto, as composições de Bispo não só trouxeram outras
perspectivas de mundo, como através delas foram atribuídas outras
complexidades e nos fez (re)vê-lo, celebrando o caráter fabular, artificial, ficcional.
Por essa via, num teorema ou num poema são visualizadas fulgurações de
uma realidade possível. Na elaboração de um teorema ou de um poema não
encontramos explicações finais; deparamos-nos apenas com encadeamentos
verossímeis e satisfatórios do pensamento, no âmbito das proposições de leitura
determinadas em cada texto. É legítimo, então, pensar que amplia nossa
compreensão de mundo recorrer tanto à aplicação cautelosa da razão, como à
experiência poética da linguagem. Ambos os caso são exercícios de leitura com a
finalidade de integrar na prosa do mundo aquilo que afetou nossa percepção. Arte,
ciência e outros campos do saber revelam-se, portanto, como atividades derivadas
da capacidade humana de espantar-se com as imensidões do cosmos.
No caso dos arranjos estudados, vemos reverberar essa capacidade no
efeito que nos causa a apresentação do mundo elaborada por Bispo com matéria
corriqueira. O impressionante, portanto, na operação de leitura dessas imagens é
que a experiência visual com o mundo acontece poeticamente pela suspensão
dos sentidos objetivados, acessíveis e disseminados pelo senso comum.
A abertura de novas perspectivas por meio da articulação da linguagem, em
princípio, é suscetível de se revelar como expressão poética. Contudo, essas
visões de mundo ganham intensidade poética se forem processadas na linguagem
e nunca fora dela, isto é, se forem criadas durante a operação de leitura. Pois, do
contrário, se estes pontos de vista já estiverem predeterminados ou programados
para mover o olhar numa direção, fica aniquilada a potência poética dessa
180
linguagem. Nos arranjos de Bispo, por estranharmos o que é tão evidente, foi
construída uma trama de pensamentos que trouxe visibilidade às multiplicidades
do mundo.
No exercício de escrita desta Tese, foram ensaiadas possibilidades de
inscrever, no repertório das linguagens poéticas, o impacto e as reflexões
desencadeadas a partir das criações de Bispo. Isso, volto a dizer, teve início por
suspeitar do imediato das aparências. Ou seja, em vez de tomar seu trabalho por
manifestação sintomática de uma patologia ou dar a ele o rótulo de uma
expressão artística credenciada a tendências em voga na chamada pós-
modernidade, no lugar disso, estendi o olhar para vislumbrar outras vias de
abordagem e contemplei imagens que prefaciam as imensidões, os deslimites e
as contingências.
Penso que o microcosmo humano, construído por Bispo ao longo de sua
trajetória, deriva também de uma espécie de espanto com as coisas, resultando
no ajuntamento de “material existente na terra dos homens” (apud HIDALGO, 1996,
p.139). Na sua maioria, são objetos produzidos em série pela indústria, mas que
foram trabalhados por Bispo com um cuidado artesanal, fundando outro regime de
sentido. Como se pôde ver, a articulação desse material não se identifica com o
trato convencional, executor de comandos ou movimentos automatizados. Desse
modo, Bispo parece, também, transpor o imediato das aparências.
Na operação de leitura desses trabalhos, foi possível articular e desdobrar
reflexões que incidem sobre o conceito de artista ou inventor, entendido como
aquele que pratica aberturas de perspectivas ou pontos de vista, a partir dos quais
é dado a ver (de certa maneira e não de outra) o mundo a nosso redor. Do que foi
dito aqui, vale destacar que a apresentação do mundo preparada por Bispo não
reproduz o visível, mas torna visível a pluralidade das coisas.
Existe em cada arranjo de objetos um jeito peculiar de contar e também de
ler o mundo. Tal como na estrutura da lista, do arquivo ou do catálogo, também
das composições de Bispo emanam apelos de sentido que sensibilizam o olhar a
tramar relações entre os elementos agregados. Enredar uma ordem e especular
sentidos para as coisas, isto é, buscar um enquadramento possível, consagra a
181
subjetividade e a introspecção como vias de conhecimento, através da experiência
íntima. Essas construções guardam possibilidades de versões de mundo, tão
complexas em suas articulações como também mais divertidas.
Nesse percurso de leitura e reflexões, vimos então que cada arranjo ostenta
um reagrupamento das formas naturalizadas, banalizadas. Apostamos que por
trás da evidente aparência espreita-se algo próprio e singular. Na operação de
leitura de conjunções inesperadas entre material familiar, as formas deixam de ser
vistas como universais para se mostrarem como relativas, artificiais, inventadas e
manipuladas na cena social. Como efeito, nessa circunstância, o real se mostra
mais estranho que a ficção, pois o olhar afetado pelo trabalho estético
redimensiona o que vê para outro regime de sentido. Aceitamos, por exemplo, que
um objeto no âmbito das artes figure livremente na experiência do devir, mas na
dinâmica da cena social, nos inquietamos se no mesmo objeto não reconhecemos
funções, significados ou valores. No caso dos trabalhos de Bispo, o uso de objetos
familiares como meio de expressão faz estranhar porque, num primeiro impacto,
os vemos com as referências do plano real. Contudo, ao investir o olhar no
cuidado estético com que estas composições foram montadas, somos arrebatados
a outro regime de sentido.
Eis que renuncio, por hora, às imensidões dos pensamentos provocados
pelas composições de Bispo e apresento aqui meu “compêndio de encantamentos
do mundo” (re)criado por ele. Nesse compêndio, ficaram em destaque imagens
que tomaram forma pelo reagrupamento poético de material corriqueiro. Mas,
como foi dito, um compêndio (uma espécie de lista) prefacia as infinidades. Sendo
assim, além das imagens engendradas por Bispo, outras imagens de semelhante
potência poderiam estender este percurso reflexivo, como o “Elefante” de
Drummond, engendrado com matéria do cotidiano. Na leitura do poema, destaco a
figura de elefante e tomo consciência que também engendrei na escrita desta
tese, como meus poucos recursos, o meu elefante (esse arranjo de ideias sobre a
poética de Arthur Bispo do Rosário). Agora, então, tal qual nos versos de
Drummond, eu e meu elefante, do qual amei disfarçar-me, exaustos de pesquisa,
182
interrompemos a marcha para contemplar deste ponto os novos horizontes. Mas,
sabendo que ainda resta muito a ser visto, preparo-me para “amanhã recomeçar”.
Figura 6 Arthur Bispo do Rosario. Detalhe da composição de “vitrine” em exposição na 30ª Bienal de artes.
São Paulo. 2012.
O Elefante
Fabrico um elefantede meus poucos recursos.
Um tanto de madeiratirado a velhos móveis
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talvez lhe dê apoio.E o encho de algodão,de paina, de doçura.A cola vai fixarsuas orelhas pensas.A tromba se enovela,é a parte mais felizde sua arquitetura.
Mas há também as presas,dessa matéria puraque não sei figurar.Tão alva essa riquezaa espojar-se nos circossem perda ou corrupção.E há por fim os olhos,onde se depositaa parte do elefantemais fluida e permanente,alheia a toda fraude.Eis o meu pobre elefantepronto para sairà procura de amigosnum mundo enfastiadoque já não crê em bichose duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponentee frágil, que se abanae move lentamentea pele costuradaonde há flores de panoe nuvens, alusõesa um mundo mais poéticoonde o amor reagrupaas formas naturais.
Vai o meu elefantepela rua povoada,mas não o querem vernem mesmo para rirda cauda que ameaçadeixá-lo ir sozinho.
É todo graça, emboraas pernas não ajudeme seu ventre balofose arrisque a desabarao mais leve empurrão.Mostra com elegânciasua mínima vida,e não há cidade
alma que se disponhaa recolher em sidesse corpo sensívela fugitiva imagem,o passo desastradomas faminto e tocante.
Mas faminto de serese situações patéticas,de encontros ao luarno mais profundo oceano,sob a raiz das árvoresou no seio das conchas,de luzes que não cegame brilham atravésdos troncos mais espessos.Esse passo que vaisem esmagar as plantasno campo de batalha,à procura de sítios,segredos, episódiosnão contados em livro,de que apenas o vento,as folhas, a formigareconhecem o talhe,mas que os homens ignoram,pois só ousam mostrar-sesob a paz das cortinasà pálpebra cerrada.
E já tarde da noitevolta meu elefante,mas volta fatigado,as patas vacilantesse desmancham no pó.Ele não encontrouo de que carecia,o de que carecemos,eu e meu elefante,em que amo disfarçar-me.Exausto de pesquisa,caiu-lhe o vasto engenhocomo simples papel.A cola se dissolvee todo o seu conteúdode perdão, de carícia,de pluma, de algodão,jorra sobre o tapete,qual mito desmontado.Amanhã recomeço.
(Carlos Drummond de Andrade. A Rosa do Povo)
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Relação das imagens copiadas:
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Figura 2: pág. 12. calendário Burti. Imagem disponível no site
http://www.apcdesign.com.br/port_impressos_cal2003.htm
Figura 3: pág. 22. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 4: pág. 29. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 5: pág. 33. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 7: pág. 42. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 8: pág. 54. http://www.proa.org/exhibiciones/pasadas/inconsciente/exhibicion_fr.html
Figura 9: pág. 63. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário. Obravida, sonho e
realidade.
Figura 10: pág. 63. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário: Obravida, sonho e
realidade.
Figura 14: pág. 76. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 19: pág. 97. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 20: pág. 98. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 24: pág. 118. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 31: pág. 147. Do catálogo Arthur Bispo do Rosário século XX.
Figura 35: pág. 172. http://www.flickr.com/photos/aylatavares/5836769739/in/photostream/?reg=1
As demais imagens são fotografias feitas na 30ª Bienal de Artes, em são Paulo, em setembro de 2012.
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