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    Revista de graduao do PET-DIREITO-UFSC

    Florianpolis, 2009.

    Discenso

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    Conselho Editorial

    Pro. Dr. Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC/CPGD), Pro. Dr. Jeanine Nico-lazzi Philippi (UFSC/CPGD), Pro. Dr. Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira (UFSC/CPGD), Pro. Dr. Aires Jos Rover (UFSC/CPGD), Pro. Dr. Reinaldo Pereira e Silva(UFSC/CPGD), Adailton Pires Costa (PET-DIREITO-UFSC), Eduardo Granzotto Mello(PET-DIREITO-UFSC), Marcel Mangili Laurindo (PET-DIREITO-UFSC), Moiss AlvesSoares (PET-DIREITO-UFSC), Ada Bogliolo Piancastelli de Siqueira (PIBIC/CNPq), Ca-rolina Dombrowski (PIBIC/CNPq), Silvio Soares (PIBIC/CNPq)

    Centro de Cincias Jurdicas

    Diretora: Pro. Dr. Olga Maria Boschi Aguiar de OliveiraVice-diretor: Pro. Dr. Ubaldo Cesar Balthazar

    Programa de Educao Tutorial (PET/DIREITO/UFSC)

    Tutora: Pro. Dr. Vera Regina Pereira de AndradeBolsistas: Adailton Pires Costa, Carolina Duarte Zambonato, Eduardo Granzotto

    Mello, Elysa Tomazi, Guilherme Felix Coimbra Cardoso, Helena Kleine Oliveira,Lorena Paula Jos Duarte, Marcel Mangili Laurindo, Marcel Soares de Souza, Pe-dro Eduardo Zini Davoglio, Raael Cataneo Becker, Ricardo SantAna Felix dosSantos

    Projeto Grco, Diagramao e Tratamento de Imagem

    Karina Silveira

    CapaMarcel Soares de Souza

    Fotograas e Ilustraes de abertura por ordem de aparecimento

    Joan Brossa, Sebastio Salgado, Zardoyas, Llia Brik por Rodchenko, Maiakvski,Augusto de Campos.

    Reviso

    Marcel Mangili Laurindo

    Endereo

    Campus Universitrio Trindade, Centro de Cincias Jurdicos, Sala 108

    Florianpolis, Santa Catarina, BrasilCEP: 88036-970 - Teleone: (48) 3721-6522www.petdireito.usc.br - [email protected]

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    Sumrio

    Apresentao .................................................................................9

    Opinio ..........................................................................................11

    Entrevista com Pro. Dr. Alysson Leandro Mascaro .................13Entrevista com Pro. Dr. Mrcio Bilharinho Naves ...................19

    Debate .............................................................................................25

    Fragmentos de um mosaico: os novos sujeitos coletivos erelegitimao do jurdico pelo pluralismo ................................27

    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas? .......................43

    Pachukanis e os Dilemas da ransio ........................................61

    Jogos intertextuais: poltica e semiologia em Warat ..................81

    Dossi ..............................................................................................95

    O Direito e a or do pntano ideolgico ....................................97

    O vir-a-ser do Direito: A concepo dialtica deRoberto Lyra Filho .....................................................................107

    Roberto Lyra Filho: A dignidade dialticada criminologia ..........................................................................117

    Contra o imprio da lei e pela transormaodo dogma em problema ............................................................131

    Artigos .................................................................................141

    Direito e arte: uma abordagem a partirdo cinema e da literatura ..........................................................143

    Aes armativas nas Universidades, colorindoos bancos da Academia .............................................................171

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    Direito e Literatura: um estudo de O Mercador

    de Veneza, de William Shakespeare, sob a ticada eoria do Direito Obrigacional ..........................................185

    As mudanas no Direito Contemporneo:Flexibilidade e Deciso .............................................................211

    Cultura e Arte ...................................................................229

    Estado-Nao como Espelho .....................................................231

    O vazio desejo pela Lei ...............................................................235

    A Chinesa de Godard: um lme em construo ....................237

    A viva de Pintaleo ...................................................................243

    Do caos coerncia em um rolo de pelcula ...........................249

    Espao Pblico - extos .......................................................255

    Panis et Circenses ........................................................................257

    Direito UFSC: Qual Reorma? ...................................................261

    Espao Pblico - Atuao Acadmica ........................267

    Programa de Educao utorial ...........................................267

    Grupo de pesquisa de Antropologia Jurdica ..........................271

    Grupo de Estudos de Direito e Literatura ................................275

    Ncleo de Estudos e Prticas Emancipatrias .........................279

    Ncleo de Estudos Jurdicos e sociais da Crianae do Adolescente - NEJUSCA ..................................................283

    Grupo de Pesquisa em Justia, Democraciae Constituio ............................................................................287Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Histria

    da Cultura Jurdica ....................................................................291

    Grupo de Pesquisa em Direito Internacional eIntegrao Regional ..................................................................295

    Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e EcologiaPoltica na Sociedade de Risco .................................................299

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    O Projeto de Extenso Universidade Sem Muros:

    Puxando A Priso ...................................................................303

    Projeto Espreita: Umashback cinematogrcoem curso no Direito ..................................................................313

    Ncleo de Estudos e Pesquisa em eoriae Filosoa do Direito .................................................................317

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    Apresentao

    com grande satisao que encaminhamos comunidade opirmeiro nmero da Revista Discenso, organizada pelo Programade Educao utorial em Direito, da Universidade Federal de San-

    ta Catarina, com o apoio do Centro de Cincias Jurdicas.Objetivamos, por meio desta iniciativa, omentar a boa tradi-

    o do Curso de Direito: a criticidade. A Revista Discenso cons-titui veculo material de publicao das atividades de pesquisa eextenso desenvolvidas pelos discentes no mbito da graduao.

    A seo Opinio entrevista os proessores Mrcio BilharinhoNaves (Unicamp) e Alysson Leandro Mascaro (USP), que contri-buem discusso da atualidade das teorias crticas e da crtica do

    direito, temtica esta retomada na seo Debate.O Dossi deste primeiro nmero, acompanhando a opo pelacrtica, selecionou a vasta obra do Proessor Roberto Lyra Filho,sobre a qual os acadmicos ensaiaram releituras.

    O espao reservado aosArtigos encerra trabalhos diversica-dos, sem restrio temtica, assim como na seo Cultura & Arte,que traz resenhas, contos e ensaios.

    Por m, o Espao Pblico se divide em duas subsees, uma

    com textos individuais sobre a conjuntura universitria no Cen-tro de Cincias Jurdicas, e outra, batizada deAtuao Acadmica,em que tm a palavra os ncleos de pesquisa, grupos de estudos eprojetos de extenso em atividade no CCJ.

    Esperamos, com este primeiro nmero, seguir impulsionandoo dilogo acadmico no curso de direito da UFSC e omentar umacultura de investigao crtica, em consonncia aos objetivos doPrograma de Educao utorial.

    Conselho Editorial

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    pin

    ia

    oEntrevista com os proessores

    Alysson Leandro Mascaro

    Universidade de So Paulo

    Mrcio Bilharinho Naves

    Universidade de Campinas

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    Entrevista com

    Pro. Dr. Alysson Leandro Mascaro

    Pro. Dr. Alysson Leandro Mascaro Doutor e Livre-Docen-

    te em Filosoa do Direito pela USP. Proessor da Faculdade de Di-reito da USP (Largo So Francisco) e da Faculdade de Direito e doPrograma de Ps-Graduao Stricto Sensu em Direito da Uni-

    versidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em So Paulo. Foio implantador e primeiro Coordenador de Graduao da Facul-dade de Direito da Fundao Padre Albino. Membro da Comissode Ensino Jurdico da OAB/SP. Membro do Conselho Pedaggicoda Escola de Governo USP. Autor de inmeras obras, como oslivros Introduo Filosoa do Direito dos modernos aos contem-

    porneos e Filosoa do direito e losoa poltica a justia poss-vel, pela Editora Atlas, e Introduo ao Estudo do Direito, Lies deSociologia do Direito, Crtica da Legalidade e do Direito Brasileiro eUtopia e Direito Ernst Bloch e a ontologia jurdica da utopia, pelaEditora Quartier Latin.

    Em entrevista concedida Revista Discenso, o Pro. Masca-ro alou sobre a importncia de um resgate s teorias crticas e crtica do direito, a tradio crtica da Universidade Federal de

    Santa Catarina, a contribuio do pensamento marxista e a obrade Roberto Lyra Filho.

    A temtica central do primeiro nmero da Revista Discenso aquesto das teorias crticas e da crtica do direito na atualidade.Na sua viso, quais correntes da crtica do Direito legaram maiselementos e aportes para a construo de um projeto alternativo?

    Mascaro: H dois caminhos que possibilitam construir uma teo-ria crtica do direito. H um movimento interno dojurista, inco-

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    Entrevista

    modado com o ormalismo e o conservadorismo das estruturas

    jurdicas, que se desdobra em uma viso do direito crtica de suasprprias estruturas. E h, por sua vez, uma visolosca estrutu-rada que encontra o direito no seio do todo da sociedade capita-lista, imbricado nas relaes de explorao que so constituintesdesta mesma sociedade. Quero dizer com isso que tanto o juristasem maiores conhecimentos tericos loscos ou sociolgicoschega a uma viso crtica do direito quanto o prprio pensador dodireito, que conhece a prpria realidade jurdica e a tradio dopensamento losco.

    Certo est que h um limite para a viso crtica interna dojurista. H os do direito com a sociedade que so muito maisestruturais do que os prprios problemas imediatos do mundo

    jurdico. Uma viso no-crtica do direito enxerga a realidadejurdica de maneira meramente ormal. Ao tratar do processocivil, por exemplo, s busca manejar as normas do CPC. Uma

    viso crtica interna do jurista, no entanto, j comea a cuidar doacesso justia, da abertura do Poder Judicirio sociedade etc.

    Mas esta ainda uma viso parcial, embora j crtica, porque ascausas proundas da prpria processualizao das demandas peloEstado, que detm o monoplio da violncia institucionalizada,os mecanismos da reproduo social estatal, tudo isso, que maisdeterminante do que o prprio acesso justia, escapa de umaleitura meramente interna.

    Por tal razo, o pensamento jurdico plenamente crtico devealcanar a relao do direito com a totalidade da vida social. al

    totalidade no um aglomerado de instncias esparsas e indistin-tas, mas uma totalidade estruturada. O direito ligado a umacerta viso de mundo, ideolgica. Mas tal viso de mundo de-

    vedora de determinadas ormas de reproduo social, no campoprodutivo. Entender os mecanismos desse todo a tarea unda-mental de uma plena teoria crtica do direito.

    No contexto brasileiro das ltimas dcadas, surgiram diversosmovimentos no mundo acadmico e no mbito da prtica dos

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    Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro

    operadores do direito que buscavam alternativas ao normati-

    vismo e suas conseqncias negativas na aplicao do direito.Como o proessor v o desenvolvimento desses movimentoscrticos e sua congurao atual?

    Mascaro: Houve, na histria recente do pensamento jurdico bra-sileiro, avanos notveis no que diz respeito superao do juspo-sitivismo. Uma viso crtica, de ato, conseguiu descortinar hori-zontes e tabus do mundo jurdico at ento no alados pelo juristatecnicista. Mas preciso lembrar que a avanada viso crtica do

    direito, at hoje, minoritria dentre os juristas. A maioria se con-orma, com gosto, s atividades repetidoras e sem horizonte. Huma alta de conscincia poltica do jurista que o az ser um eloapenas de transmisso, mas nunca de ruptura ou criao, das redesde poder. No nos enganemos: a maioria dos juristas do Brasil e domundo tem gosto e no s desconhecimento em ser juspositi-

    vista. O caminho juspositivista permite ganhos ceis e uma adap-tao notvel aos poderes e s classes dominantes. Por isso, quasesempre, a teoria crtica se apresenta com um papel de resistncia.

    Por outro lado, chamo a ateno para o ato de que, em bus-cando a ruptura com a leitura mecanicista e ormalista do juspo-sitivismo, o jurista com pendores crticos acabe se reinvestindo depositivismo com coloraes esmaecidas. H aqueles que rejeitama leitura do juspositivismo como neutra, imparcial e meramentetcnica rejeitam, portanto, a tradio kelseniana. Mas, ao assimo azerem, no se abrem, como seria o caso, para uma crtica dosundamentos da prpria relao do direito com a sociedade. Antes,

    buscam entender o direito positivo a partir de reerncias edulco-radas e ticas. Para estes, o direito no uma tcnica pura e neutra,mas uma erramenta haurida da cidadania e da tica. rata-se dacorrente de pensamento ps-positivista. Fazendo a crtica do juspo-sitivismo, acabam azendo a sagrao das instituies existentes edo prprio direito positivo j dado, em nome de abstraes como oconsenso entre os indivduos, o bem-comum, o agir comunicativo.A teoria crtica no um trampolim para um posterior reinvesti-mento no prprio juspositivismo; antes, a sada dele.

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    Entrevista

    Penso que a teoria crtica do direito se levanta com mais ora

    sempre que a realidade clama por um posicionamento de ruptu-ra e transormao. A ditadura militar no Brasil, a coneco daConstituio Federal de 1988, a luta dos movimentos sociais ex-cludos economicamente do capitalismo nacional, a luta das mi-norias, todos esses momentos, grupos e necessidades constituem-se em um clamor necessrio ao pensamento jurdico crtico.

    Uma questo que tem particular importncia para o PE-DI-REIO-UFSC o desenvolvimento do pensamento jurdico cr-tico no Curso de Ps-Graduao em Direito da UFSC (CPGD).Como o proessor se relacionou com o debate produzido aquipor guras como Lus Alberto Warat, Edmundo Lima de Ar-ruda Jnior, Antnio Carlos Wolkmer, Vera Regina Pereira deAndrade e outros que por aqui passaram?

    Mascaro: Sempre acompanhei com muita ateno o desenvol-vimento do pensamento jurdico crtico no Sul, em especial emSanta Catarina. Historicamente, a UFSC destacou-se pelo pionei-

    rismo na abertura do direito para a crtica. A sua importncia oiundamental. Em So Paulo, sempre encaminhei meu grupo dealunos pesquisadores e orientandos no sentido de um estreita-mento aetuoso de laos e de dilogo juslosco com o grupode Santa Catarina, numa ambiente que sempre gerou muita reci-procidade. Numa realidade jurdica bastante conservadora e tec-nicista, somos poucos. E, com muita alegria, vejo que esse dilogoempreendido tem ensejado bons rutos para todos ns.

    Parte signicativa das pesquisas crticas em Direito oi desen-volvida em marcos no marxistas e, reqentemente, em aber-ta polmica com o marxismo. Que relaes positivas/interaoso possveis entre a crtica marxista e as crticas no marxistas?

    Mascaro: O marxismo a ronteira mxima do pensamento jur-dico crtico. Max Horkheimer, o pai losco da Escola de Frank-urt, nos seus notveis textos da dcada de 1930, pela primeira

    vez lana as bases atuais daquilo que se pode chamar de teoria

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    Debate 17

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    crtica. E, para Horkheimer, a crtica comea sempre a partir do

    pensamento de Karl Marx, que o esteio mais relevante, maisvigoroso e amplo para o entendimento das estruturas sociais. Oprojeto de Marx era a crtica da economia poltica. Da que, emtermos proundos, pode-se entender que o marxismo o horizon-te mximo da crtica conorme Sartre j havia se pronunciadono ps-guerra , e ao mesmo tempo a base para as especcasreexes que, mesmo no se reputando marxistas, surgiram nummundo atual cujo grande impulso que permitiu historicamente acrtica oi, originariamente, marxista. Os pensamentos jurdicosde Pachukanis, e, entre ns no Brasil, de Mrcio Bilharinho Na-

    ves, so notveis exemplos de um horizonte crtico de ponta que omarxismo abriu para a compreenso do direito.

    A obra do proessor tem se destacado no cenrio brasileiro peloresgate e desenvolvimento do marxismo no campo do Direi-to, sendo de grande importncia o trabalho com autores comoErnst Bloch e Gyorgy Lukcs. Que aspectos da obra desses au-

    tores so ecundos para a construo de uma ontologia marxis-ta do direito?

    Mascaro: ive a ocasio de resgatar Bloch e Lukcs para o direitoem especial em minha tese de livre-docncia na USP (o livro Uto-pia e Direito Ernst Bloch e a Ontologia Jurdica da Utopia, Ed.Quartier Latin), e orientando dissertaes notveis como a do meualuno Silvio Luiz de Almeida (o livro O direito no jovem Lukcs,Ed. Ala-mega), alm de ter desenvolvido uma linha de pesquisasobre o tema na Ps-Graduao em Direito da Universidade Ma-ckenzie. anto Bloch quanto Lukcs tinham um horizonte sobre odireito que estava bastante calcado no pensamento de Marx, per-meado, alm disso, por outras reexes, como a de Hegel antes deMarx, e, depois dele, a de Lnin e de Pachukanis. O direito, paraLukcs e Bloch, estreitamente ligado explorao capitalista. Suasgrandes contribuies vo no sentido de uma ontologia do direitocomo orma especca da estrutura social capitalista, que penetrainstitucionalmente e ideologicamente no todo social. Para Lukcs,

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    Entrevista

    a relao do direito e da legalidade como instrumentos necessrios

    da reproduo do capital com a totalidade da vida social o temajurdico-ontolgico relevante. Para Ernst Bloch, a sua grande ree-xo jurdica parte da sua proposio da utopia concreta. Vivemosno capitalismo: injustia, desigualdade de riquezas, de condies,de possibilidades. Fausto e luxo para alguns; misria e dor para amaioria do mundo. O direito um dos instrumentos de manuten-o da ordem tal qual ela se apresenta, pois uma das suas peasde reproduo mais importantes. Mas Bloch anuncia o ser-ainda-no: a justia possvel. Por meio das lutas sociais revolucionrias, possvel vislumbrar o socialismo, como sociedade raterna, no-exploratria e plenamente livre. O socialismo a justia que j se

    vislumbra como utopia concreta. A dignidade humana a con-tribuio especicamente jurdica a ser depositada nesse granderepositrio de energias utpicas que o amanh justo, idia queexpus em meu livro sobre Bloch e o direito.

    Qual o peso da obra ousada e heterodoxa de Roberto Lyra Filho

    homenageado neste primeiro nmero da Revista Discenso nasesso Dossi no resgate de um marxismo crtico? Na viso doproessor, sua apropriao de autores como Bloch e Lukcs japontavam no sentido de uma abordagem ontolgica do Direito?

    Mascaro: Roberto Lyra Filho teve um peso muito grande comoreerncia de um pensamento jurdico progressista no Brasil. Per-correu as trilhas de um jurista que, inconormado com as injus-tias do mundo, se revoltou e, ao nal de seu trajeto poltico eterico, encontrou a losoa, como o ez, por exemplo, chegandoao pensamento de Ernst Bloch, que lhe deu uma inspirao pr-tica para a luta em avor da dignidade humana. Fez uma teoriacrtica interna do direito. ive a ocasio de, h tempos atrs, aoser entrevistado por uma revista a respeito dos dez maiores juris-tas brasileiros do sculo XX, inscrever Roberto Lyra Filho nesterol. Quando havia no mundo jurdico pouca reerncia de juristasatuantes, abertos crtica e com postura poltica combativa, LyraFilho inspirou uma gerao.

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    Entrevista com

    Pro. Dr. Mrcio Bilharinho Naves

    Mestre em Cincias Sociais pela Ponticia Universidade ca-

    tlica de So Paulo e Doutor em Filosoa pela Universidade Es-tadual de Campinas, onde proessor titular, Mrcio BilharinhoNaves autor das obas: Marxismo e direito:um estudo sobre Pa-chukanis (So Paulo, Boitempo), Marxismo cincia e revoluo(So Paulo, Quartier Latin),Mao o processo revolucionrio (SoPaulo, Brasiliense) e Anlise marxista e sociedade de transio(Campinas, Unicamp).

    Entrevistado pela Discenso, o Pro, Naves exps suas concep-es acerca das teorias crticas do direito, das abordagens marxis-tas, da obra do jurista russo Evgeny B. Pachukanis e das escolascrticas em geral.

    A temtica central do primeiro nmero da Revista Discenso aquesto das teorias crticas e da crtica do direito na atualidade.Como o pro. analisa as tentativas realizadas pelas dierentes es-colas crticas do Direito no sentido de um projeto alternativo?

    Naves: Antes de mais nada, seria necessrio identicar o que so

    essas escolas crticas do direito, se o crtico nelas corresponde negao do direito ou a algum modo de recuperao dele. Pen-so que aqui que tudo se joga: a extino da orma jurdica ohorizonte de uma crtica do direito eetiva, ao passo que todas astentativas de conservar o direito em uma sociedade que vise ultra-passar o capital, revelam um compromisso com o prprio capitale, portanto, a sua conservao. Os projetos alternativos repro-duzem, de modo atualizado, os esoros anteriores de elaboraode um socialismo juridico, iniciativas essas j combatidas por

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    Entrevista

    Marx e Engels em sua poca, e sempre renovadas na histria do

    movimento popular. Elas revelam o quanto a ideologia burguesa epequeno-burguesa penetram no movimento dos trabalhadores, eparticularmente no movimento operrio, com o eeito de neutra-lizao da luta de classe proletria, como um elemento decisivo dodomnio de classe da burguesia e da perpetuao da exploraocapitalista no processo de produo. Para um marxista, a questose coloca desse modo: no pode haver uma alternativa ao direitoburgus que continue a ser um direito, porque todo direito bur-gus, de modo que a nica alternativa real ao direito o m dodireito, o que supe o m da sociedade do capital.

    No contexto brasileiro das ltimas dcadas, surgiram diversosmovimentos no mundo acadmico e no mbito da prtica dosoperadores do direito que buscavam alternativas ao normati-

    vismo e suas conseqncias negativas na aplicao do direito.Por outro lado, h tericos que buscam uma reapropriao cr-tica do normativismo. O pro. v isso como uma possibilidade?

    Naves: A adoo do normativismo, mesmo crtico, absoluta-mente incompatvel com uma anlise materialista do direito, e nosaria cair atalmente em contradies e aporias, das quais prprioKelsen no oi capaz de escapar. verdade que houve juristas deesquerda que tentaram isso, como no comeo dos anos vinte dosculo passado na Alemanha, e mais recentemente, mas essas ex-perincias se revelaram estreis do ponto de vista terico, e proun-damente danosas para a luta popular. Ademais, a rigor, ns j tive-mos, na gura sinistra de Andrei Vychinski, a ormulao de umateoria normativista socialista do direito, e que serviu apenas paraornecer o argumento terico para a reconstituio do tecido jur-dico burgus no capitalismo de Estado sovitico dos anos trinta.

    Parte signicativa das pesquisas crticas em Direito oram desen-volvidas em marcos no marxistas e, reqentemente, em abertapolmica com o marxismo. Que relaes positivas/interao sopossveis entre a crtica marxista e as crticas no marxistas?

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    Debate 21

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    Naves: A meu ver, com exceo de parte da reexo penal de Fou-

    cault - e que se aproxima, como demonstrou Dario Melossi, daanlise de Marx -, nenhuma. Somente o marxismo oi capaz detratar o direito como um enmeno objetivo da sociedade burgue-sa, identicando o vnculo indissocivel entre o direito e o proces-so do valor de troca e revelando, assim, a sua natureza real, quepermaneceu por tanto tempo inacessvel jurisprudncia, noobstante todo o seu saber acumulado.

    Como o pro. se posiciona em relao ao debate jurdico sovi-tico sobre a questo da possibilidade de um direito socialista?

    Naves: A deesa de um direito socialista teve uma relao muitoestreita com a construo do capitalismo de Estado na U. Sovi-tica, que teve em Stalin o principal idelogo - juntamente comVychinski - e o grande agente da consolidao da burguesia nopoder nos anos 30. Pode-se dizer que com Stalin que o socialis-mo jurdico se realiza na prtica, com um grau de explorao damassa operria e camponesa e de violncia de classe poucas vezes

    visto na histria.Aqui tambm a posio de Pachukanis me parece a mais justa,

    e a nica compatvel com as anlises de Marx: em uma sociedadesem classes no pode haver direito, pois o direito est diretamente

    vinculado ao processo do valor de troca, que se extinguir com atransormao revolucionria das relaes de produo capitalistas.

    A obra de Pachukanis, embora tenham se passado mais de 80anos, continua a gurar como o principal reerencial terico nacritica marxista do direito. Quais aspectos de sua contribuioterica justicam sua atualidade?

    Naves: Evgeni Pachukanis teve o mrito extraordinrio de iden-ticar, recuperar e tratar criativamente os elementos jurdicosque estavam dispersos na obra de Marx, particularmente em Ocapital. Do mesmo modo que somente a teoria da sociedade bur-guesa de Marx permite compreender o processo de produo ede reproduo do capital, tambm a anlise que o jurista russo

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    Entrevista

    ez do direito continua a ser a nica via terica para a apreenso

    do signicado e da necessidade dessa mediao essencial para omovimento do capital.

    Embora haja, naturalmente, enmenos novos no campo ju-rdico - assim como os h no conjunto da sociedade burguesa -,nenhum desses enmenos invalida a anlise estrutural que Pa-chukanis ez do direito burgus e de seu signicado na luta declasses, ao contrrio, a prounda penetrao e controle que o di-reito e a ideologia jurdica realizaram no mbito do movimento

    popular e dos partidos de esquerda, apenas revelam a plena jus-teza das posies tericas pachukanianas.

    Como pro. analisa as contribuies tericas marxistas poste-riores a Pachukanis? Quais so as tareas atuais do pensamentomarxismo sobre o direito?

    Naves: Penso que as melhores contribuies oram as dos que dealgum modo se inspiraram ou procuraram desenvolver as reexesde Pachukanis - mesmo que em graus diversos de aproximao -,

    Bernard Edelman, sobretudo, com os seus notveis trabalhos, Odireito captado pela otograa e A legalizao da classe operria, eseus artigos sobre a orma sujeito, Nicole-Edith Tvenin, com oseu estudo sobre a ideologia jurdica, Riccardo Guastini em suaprimeira ase, Dario Melossi, com o seu estudo sobre A questopenal em O capital e, juntamente com Massimo Pavarini, com olivro Crcere e brica, notvel estudo sobre a emergncia da pri-so, algumas das contribuies dos juristas ranceses da Critique

    du droit, e, mais recentemente (2005), China Miville, com o tra-balho pachukaniano sobre o direito internacional, Between equalrights. No Brasil, temos as contribuies importantes de AlyssonLeandro Mascaro, notadamente com o livro Crtica da legalidade edo direito brasileiro e Celso Naoto Kashiura Jr., com o seu trabalhoCrtica da igualdade jurdica (a ser publicado em 2009).

    Creio que as tareas so as de aproundar e desenvolver critica-mente as concepes jurdicas de Marx e do prprio Pachukanis,alm de outros juristas marxistas (Stutchka, por exemplo, apesar

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    Debate 23

    Prof. Dr. Mrcio Bilharinho Naves

    dos seus limites); aplicar criativamente a teoria pachukaniana s

    novas ormas de maniestao do direito burgus (as modicaesoperadas em matria de contratos, por exemplo); compreender osmecanismos de uncionameno da ideologia jurdica e identicare criticar a sua presena no movimento popular, notadamente pormeio das iluses jurdicas da democracia, da paz social, etc.

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    Debate

    Aventuras e misrias de um projeto

    alternativo: teoria crtica e crticado Direito

    Fragmentos de um mosaico: os novos sujeitoscoletivos e a relegitimao do jurdico pelopluralismo

    Adailton Pires Costa

    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas?

    Marcel Mangili Laurindo

    Pachukanis e os Dilemas da Transio

    Moiss Alves Soares

    Jogos intertextuais: poltica e semiologia emWarat

    Rafael Cataneo Becker

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    Fragmentos de um mosaico:

    os novos sujeitos coletivos e a relegitimao

    do jurdico pelo pluralismo

    Adailton Pires Costa1

    Resumo: O artigo pretende demonstrar, na anlise do pluralismo jurdico comoteoria crtica, o carter contraditrio de relegitimao/contestao do Direito a

    partir da atuao dos novos sujeitos coletivos como um dos aspectos que dierenciao pluralismo jurdico comunitrio-participativo das crticas tradicionais do direito.

    Palavras-chave: Pluralismo Jurdico; Novos Sujeitos Coletivos; Comunitrio-Participativo

    1. Introduo

    Relevar o capitalismo e/ou contest-lo. A /, como smbolo,indica a transitoriedade e intercambialidade dos termos usadospara analisar a sociedade em ns de sculo XX, em especial o ca-pitalismo. E isso no dierente em relao s teorias crticas que

    surgem para analisar o Direito.Em que pese a mirade de alternativas surgidas para contes-

    tar o Direito, em muitas delas a crtica tem um eeito inverso aoinicialmente proposto. Nesse debate, o pluralismo jurdico insere-se num conronto direto com o Direito positivo estatal sem, noentanto, abandonar as conquistas do prprio Estado de Direito

    1 Acadmico do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista do grupoPE, Programa de Educao utorial. Endereo eletrnico: [email protected].

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    Fragmentos de um mosaico: os novos sujeitos coletivos...

    liberal. A ambigidade dos conceitos utilizados demonstra que

    suas propostas ao mesmo tempo em que se distanciam do discur-so ocial, aproximam-se da uidez ps-moderna inormal.

    Entre essas propostas de um novo paradigma do Direito, en-contra-se, como busca de uma crtica genuinamente latino-ameri-cana, o pluralismo jurdico comunitrio-participativo que, a partirda atuao dos novos sujeitos coletivos, expressa uma contestao/relegitimao da ordem jurdica; inclusive da prpria crtica.

    2. O Pluralismo Jurdico comunitrio-participativo eas crticas do Direito

    H um Direito legtimo no-coercitivo ou a esera jurdicalimitar-se-ia a um mero instrumento da classe dominante? Foi natentativa de responder a essa questo e de ultrapassar o jusnatu-ralismo e o marxismo vulgar como modelos de crtica ao Direi-to positivo, que se desenvolveram as teorias crticas do Direito.Assim, com a crise do modelo positivo de Direito e seu monis-

    mo jurdico expressos no pretenso monoplio do Estado para aproduo de normas jurdicas, amparados nos princpios estata-lidade, unicidade, hierarquia, positivao e racionalizao, novasrespostas quela pergunta inicial oram surgindo.

    No Brasil, o impulso inicial, inuenciado por dierentes cor-rentes estrangeiras como a Escola de Frankurt, o uso alternativodo Direito na Itlia, a Association Critique Du Droit, na Frana,entre outros, possibilitou o desenvolvimento de dierentes, por ve-

    zes antpodas, crticas do Direito. A crtica, no Brasil, abrange des-de waratianos, sistmicos e psicanalistas, passando por marxistas,alternativistas e pluralistas. O rio da crtica do Direito tem vriasmargens, umas a avor da corrente, outras contra. Para AntonioCarlos Wolkmer, teoria jurdica crtica signica a ormulaoterico-prtica que se revela sob a orma do exerccio reexivocapaz de questionar e de romper com o que est disciplinarmenteordenado e ocialmente consagrado (no conhecimento, no dis-curso e no comportamento) em dada ormao social e a possibi-

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    Adailton Pires Costa

    lidade de conceber e operacionalizar outras ormas dierenciadas,

    no repressivas e emancipadoras, de prtica jurdica. (WOLK-MER, 2006, p. 19)

    A citao acima expressa mais uma das escolas de crtica doDireito que se desenvolveu no Brasil, o pluralismo2 jurdico. Comoexpresso de uma cultura jurdica3 descentralizada e solidria, emuma rase, o que caracteriza o pluralismo a negao de que oEstado seja o centro nico do poder poltico e a onte exclusiva detoda a produo do direito. (WOLKMER, 2001, p. XXV)

    Em contraste com a armao negativa do termo pluralismocitada acima, positivamente ele entendido como ormas deDireito inra-estatal, inormal, no-ocial. Ou seja, como mul-tiplicidade de ontes e solues jurdicas dentro de um mesmoespao scio-poltico, norteada pelos princpios da autonomia,descentralizao, participao, diversidade, localismo, tolerncia,alteridade, autogesto e uidez nas relaes4.

    Mas essa denio no nica, porque, como nas outrascrticas do Direito, no pluralismo tambm h uma diviso entre

    vrias correntes5. Entre os autores mais representativos do plura-lismo jurdico no sculo XX esto: Santi Romano, Georges Gurvi-

    2 Como abordagem interdisciplinar, o pluralismo jurdico somente entendido na sua totalidadequando do conronto de seu signicado com o de outras reas do conhecimento. Na CinciaPoltica signica o aumento do poder societrio e seu controle sobre o Estado, tendncia pro-gressiva para a descentralizao e participao de base; na losoa a interpretao dos valoresticos da alteridade com as aes de racionalidade emancipatria; e na sociologia os espaosde lutas e de prticas conitivas interagidas por sujeitos sociais com o novo uxo de poder.(WOLKMER, 2001, p. XXII)

    3 Cultura Jurdica a totalidade da produo e da reproduo humana na historicidade do tem-po, no que se reere s ormas normativas de saber, s prticas legais dos agentes operantes e sinstncias de administrao da justia. (WOLKMER, 2004, p. 16)

    4 Pluralismo Jurdico para Oscar Correas a coexistncia no tempo e no mesmo territrio, dedois ou mais sistemas normativos ecazes. (CORREAS, 1996, p. 91). Carlos Maria Crcovaconcebe o pluralismo jurdico como em unidade descontnua e ragmentada, e no em duasunidades dierenciadas (CRCOVA, 1998, p.120). Outras denies j o caracterizam comoa coexistncia, no mesmo espao nacional, de mltiplas ormas de juridicidade e de ontes denormas, paralelas e/ou antagnicas ao direito estatal (ALBERNAZ, 2008, p. 9).

    5 Omitem-se aqui algumas correntes conservadoras, como os pluralismos orgnico-corporativis-ta, que olham para um passado eudal ideal; e os pluralismos neoliberais, que vislumbram umuturo/presente controlado pela Lex Mercatoria das empresas transnacionais.

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    cht, Eugen Ehrlich e Boaventura de Souza Santos, na Europa. Na

    Amrica Latina, encontram-se Jesus Antonio de La orres Ran-gel, Carlos Crcova e os autores do Instituto Latino-Americanode Servios Legais Alternativos( ILSA-Bogot). Antonio CarlosWolkmer relaciona alguns dos principais nomes que dialogam otema no pas, entre esses pluralistas (ou nem tanto) esto: Joa-quin A. Falco, Osvaldo Ferreira de Melo, Roberto Lira Filho, JosGeraldo de Souza Jr., Luiz Fernando Coelho, Eliane B. Junqueira,Luciano de Oliveira, Marcelo Neves, Edmundo de Lima Arruda Jr.e Jos Eduardo Faria6.

    Fica visvel aqui a diculdade de abarcar com rtulos a reali-dade em movimento. Alm das discusses acerca de quem e o qu ser alternativista, pluralista, marxista, sistmico, outro ator quediculta qualquer tipo de classicao e sistematizao (organiza-o por si mesmo anti-pluralista), so as mudanas e transorma-es no pensamento e obras dos autores acima reeridos. Mudan-as que, em certos momentos, contradizem a prpria coernciainterna da corrente a qual pertencem e, inclusive, da sua prpria

    obra como autor.Dentre os pluralismos jurdicos, aquele mais prximo da rea-

    lidade e dos autores brasileira e latino-americana est o plu-ralismo poltico e jurdico, de base comunitrio-participativa deA. C. Wolkmer. Como novo modelo poltico-jurdico de legitimi-dade, surgido devido a e contra a crise do modelo jurdico libe-ral-individualista, esse pluralismo surge em um espao pblicodescentralizado a partir de prticas sociais auto-reguladas de co-

    munidades e associaes locais, voluntrias; objetivando eetivarnecessidades humanas reais. E o novo ator que aparecer para aconstruo dessa nova legitimidade so os novos sujeitos coleti-

    vos - novos movimentos sociais - em substituio classe traba-

    6 Um dos principais atores do ressurgimento das teses pluralistas em 80 e 90 est a reestrutu-rao do modelo de regulao diante da crise keynesiana que possibilitou o ortalecimento deuma certa globalizao neoliberal em detrimento do Estado-Nao moderno e suas promessasde justia social. Pressupostos: descentralizaes e privatizaes administrativas, crise de parti-do e sindicatos (ditaduras).

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    lhadora, aos partidos e aos sindicatos, vistos como organizaes

    institucionalizadas e burocratizadas. No se abandonou, contudo,a luta de classes, mas o que houve oi um redimensionamento soba atuao ragmentada de grupos como o movimento negro, emi-nista, em deesa dos direitos humanos, ecolgicos, pacistas, almde outros organizados em torno de direitos diusos relacionados aquestes como a biotica, a engenharia gentica etc.

    O pluralismo jurdico comunitrio-participativo7 dene-se,portanto, como uma multiplicidade de maniestaes ou pr-

    ticas normativas num mesmo espao scio-poltico, interagidaspor conitos ou consensos, podendo ser ou no ociais e tendoa sua razo de ser nas necessidades existenciais, materiais e cul-turais (WOLKMER, 2001, p. XVI). Entre seus undamentos deeetividade material, esto a emergncia e legitimidade de no-

    vos sujeitos coletivos e a satisao das necessidades humanasundamentais8. J entre os undamentos de eetividade ormal es-to a reordenao do espao pblico mediante uma poltica de-mocrtico-comunitria descentralizadora e participativa; o de-

    senvolvimento da tica concreta da alteridade e a construo deprocessos para uma racionalidade emancipatria (WOLKMER,2001, p. 231-232). Como se v acima, esse pluralismo ampara-seem quatro pilares: novos movimentos sociais, democracia partici-pativa, necessidades humanas undamentais, tica da alteridade.

    A partir desses undamentos, esse pluralismo jurdico irquestionar o undamento de validade que possibilita a unidadedo sistema de normas. raz tona a validade tica da demanda,

    a vigncia como ato e no como orma, num conronto diretocom a racionalidade ormal e individualista. Mas diante da crisedo paradigma positivista a principal pergunta que se az : h

    7 H outras denominaes como pluralismo progressista de base democrtico-participativa, plu-ralismo de carter emancipatrio ou somente pluralismo comunitrio.

    8 A partir do pensamento de Agnes Heller, Wolkmer divide em trs os tipos de necessidades hu-manas undamentais: as existenciais (de vida), materiais (de subsistncia) e culturais (WOLK-MER, 2001, p. 178).

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    uma alta de eccia desse Direito, ele no uncional?9 Res-

    postas para essa pergunta na atualidade desenvolvem-se primor-dialmente em dois sentidos: um pela tentativa de eetivao dosdireitos constitucionais (os garantistas), outro pela atuao nasbrechas do sistema espera do cumprimento das promessas damodernidade (os alternativistas). margem do Direito, ou nassuas beiras, esto ps-modernos, psicanalistas, marxistas que,por caminharem em descompasso com a crtica acrtica, no des-pontam nas prateleiras da academia, em menor escala ainda nasestantes das ruas do cotidiano.

    3. As crticas ao pluralismo jurdico sob a gide do

    Estado e seu Direito ocial

    O projeto cultural e normativo emancipatrio proposto pelopluralismo comunitrio-participativo no est isento de crticas.Seu discurso pode exercer uma uno ideolgico-instrumentalde relegitimao da ordem em vistas do seu carter ragmentrio,

    por vezes rgil. Condio que possibilita mais do que uma meraconuso, mas uma apropriao do seu aspecto progressista pe-los meios autogicos do sistema, seja na esera cultural, seja napoltica, seja at mesmo nas relaes econmicas internacionais espao do pluralismo jurdico neoliberal.

    A principal crtica ao pluralismo vem justamente dos autoresque deendem as conquistas do Estado de Direito como pressu-postos para qualquer avano na construo de uma sociedade

    menos injusta e desigual. O alvo aqui so as juridicidades para-estatais de grupos marginalizados, o espontanesmo gerado coma ao das massas des(organizadas). O resultado seria a substitui-o do ormalismo e do normativismo estatal por uma anomia edesregulao social, maniesta na ao, por exemplo, do trco dedrogas nas avelas.

    9 importante salientar que como marco contra-hegemnico de crtica epistemolgica, social,poltica e jurdica, o pluralismo jurdico tambm pressupe a discusso da crise de legitimida-de e a crise de eccia do Direito na busca de outro reerencial de juridicidade.

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    Adailton Pires Costa

    Luciano Oliveira ir usar o termo mito da legitimidade local

    e mito do pobre coletivista para discutir a legitimidade dos di-reitos paralelos rente aos direitos humanos. Deixa-se de lado obom proletrio para vangloriar o bom pobre:

    o conceito de pluralismo jurdico, na medida em que tem por reern-cia histrica organizaes sociais undadas em valores comunitriospr ou anti-capitalista, permite aos autores crtico-alternativos reatu-alizar o mito, to caro na cultura poltica de esquerda da comunidadeperdida. Neste caso, o equvoco metodolgico se prolonga, a meu

    ver, num equvoco poltico, pois o ideal de uma sociedade livre, jus-ta e raterna radicalmente dierente bem mais um projeto dosautores que examinei do que uma virtualidade presente nas prticas

    jurdicas alternativas sobre que eles teorizam. (OLIVEIRA, 199?, p. 23)

    Outro autor, hoje adepto da teoria sistmica, Marcelo Neves,utilizar, para criticar o pluralismo, o termo miscelnea socialnegativa. Para ele no houve a construo, pelo Direito positivo la-tino-americano, de um campo de jurisdio autnomo, de ron-

    teiras operacionais que evitassem um intrincamento bloqueantee destrutivo entre eseras de juridicidade que no desenvolveramsuas prprias identidades (NEVES, 1995, p. 7-27). Nesse mesmosentido, Eliane Junqueira salienta que o desao para a sociedadebrasileira consiste no em criar espaos autnomos na rbita doprivado, mas sim em introduzir-se na mquina estatal, ormali-zando e positivando suas demandas e interesses (JUNQUEIRA,1992, p. 105). Constata-se aqui, portanto, uma deesa explcita dalegalidade como um campo essencial de promoo de direitos.

    Outros que retomam a esperana no Estado de Direito mo-derno so os adeptos do uso alternativo do Direito10. Alguns de-les discutiro a racionalidade jurdica moderna em trs planos: a

    10 O uso alternativo do direito caracteriza-se como um procedimento tcnico-interpretativo quebusca tirar proveito das contradies e antinomias do Direito positivo estatal em avor dascamadas sociais excludas. J o pluralismo um enmeno que transcende essa questo, poisele pode ou no ajustar-se ao Direito ocial, atuando undamentalmente no espao do Direitono-ocial. (WOLKMER, 2001, p.226)

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    compreenso do Direito como racionalidade normativa11, racio-

    nalidade ormal12 e racionalidade material13. A partir desses con-ceitos, concebe-se a modernidade como expresso de pluralismo

    jurdico no momento em que os planos da racionalidade jurdicano contemplam apenas a jurisdicidade emanada pelo Estado(MALISKA, 2000, p. 131). O pluralismo comunitrio-partici-pativo dierencia-se aqui, entre outros aspectos, pelo critrio de

    validade concebido a uma ordem jurdica extra-estatal: para al-ternativistas, ele dado pelo Estado, reetindo os princpios daracionalidade normativa, para os pluralistas comunitrios so asprprias necessidades humanas undamentais que os denem.

    Autores que representavam os ideais do Movimento de Di-reito Alternativo (MDA)14, como Edmundo Lima de Arruda Jr,diro que sobra crtica do Direito, hoje, apenas a hermenuti-ca. Abandonam-se, assim, as adjetivaes para Estado, Direito,Democracia. Estes no podem ser denidos de orma nalstica,mas procedimental, no adjetivados, mas universalizados, vistoscomo mtodo. A racionalidade ormal ser o critrio de validade

    dos pluralismos, pois s o Estado pode ornecer critrios ormaismnimos. J o pluralismo jurdico encontra-se no plano da racio-nalidade material. Redene-se, assim, a racionalidade normativa,agora comprometida com valores democrticos. E junto com aherana da modernidade, ressalta-se a importncia da racionali-

    11 Racionalidade jurdica normativa [potencial emancipatrio]: so os Direitos enraizados, queso undamentos de uma sociedade e universais por sua prpria categoria [...], esto acimadas ormas de Estado, de regimes polticos etc. So Direitos undamentais da pessoa humanao Direito vida, liberdade, a integridade sica. (MALISKA, Marcos Augusto. PluralismoJurdico e Direito Moderno. Curitiba: Juru, 2000, p.125)

    12 Racionalidade jurdica ormal [instrumental]: so os direitos positivados nas Constituies eleis. (MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo Jurdico e Direito Moderno. Curitiba: Juru,2000, p. 126)

    13 Racionalidade jurdica material [intrinsecamente emancipatrio]: constitui-se das ontes ma-teriais do Direito, das mltiplas expresses de jurisdicidade, lugar do pluralismo jurdico[...]A luta pela reorm a agrria, pela sade. (MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo Jurdico eDireito Moderno. Curitiba: Juru, 2000, p. 127)

    14 O Direito alternativo oi denido como um Direito paralelo ou concorrente ao Direito postoocialmente pelo Estado. Uma outra legalidade que no se ajusta com o Direito convencional

    vigente, podendo ser vista como um novo Direito no espao de maniestaes plurais comuni-trias. (WOLKMER, 2001, p.226).

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    Adailton Pires Costa

    zao conquistada na eetivao dos processos ormais garantidos

    pelo Estado de Direito (criao, aplicao e controle de normas)15.Por ltimo, se ar a crtica ao pluralismo quanto delimitao

    espao-temporal de mnimos de sociabilidade que aam com que asidentidades dos grupos no se percam. Essa ragmentao que negaum reerencial nico para o agir coletivo, prpria do pluralismo,

    suportvel quando, em ace da existncia de algumas ronteirasentre as comunidades, os indivduos consigam reconhecer, nes-ta pluralidade, uma reerncia a que se agarrar [mnimos de so-

    ciabilidade e individuao] para orientar sua viso de mundo, seucomportamento para com os outros e a construo de si mesmos.Quando essas ronteiras sucumbem por completo (suas brechas,salvo undamentalismos cerrados, so inevitveis), quando a auto-evidncia dessas comunidades ou das instituies sociais so postasem questo, e quando o indivduo se depara em uma condio dequestionamento, relativismo e, assim, crise de sentido, que o aater que escolher, a cada momento, um reerencial, dentre os muitosdisponveis, para agir e pensar, este pluralismo social insuportvel,

    seja em termos existenciais, seja em termos de persistncia dos vn-culos sociais. (ALBERNAZ, 2008, p. 75)

    Nesse espao de ronteira, caracterizador de identidades coleti-vas, at mesmo nacionais, os novos sujeitos coletivos de juridicida-de no conquistam a hegemonia poltica, no sentido gramsciano,16se no optarem por um mnimo de organizao prpria dos ve-lhos atores sociais: conselhos de bricas e partidos polticos.17

    15 Para uma reviso do MDA, consultar o texto: ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Direito Alter-nativo e Contingncia Histrica. (Esboo para uma Crtica). Revista Crtica Jurdica, Curitiba,n. 25, p. 73-109, jul./dez. 2006.

    16 Como ponto de partida para se entender a hegemonia em Gramsci deve-se partir do entendi-mento de que a supremacia de um grupo social se maniesta de duas maneiras, como domnioe como direo intelectual e moral. [...] Um grupo social pode e deve ser dirigente j antes deconquistar o poder governativo (esta uma das condies principais para a prpria conquista dopoder); depois, quando exercita o poder e na medida em que o mantm ortemente em suas mos,toma-se dominante, mas deve continuar sendo dirigente. (GRAMSCI, 1977, p. 2010-2011)

    17 Nesse aspecto, nota-se claramente uma aproximao do pluralismo com um certo autonomismoprprio dos anarquistas. Os pluralistas diro, por exemplo, que o tipo de organizao do Exrci-to Zapatista de Libertao Nacional (EZLN) possibilita maior conquista de posies dentro da

    sociedade mexicana que os cocaleros no governo de Evo Morales na Bolvia.

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    Deve-se aqui ressaltar que o prprio pluralismo no descarta o

    papel que o Estado e o seu Direito ocial exercem no prprio en-tendimento do novo (Direito, ator, espao pblico). Seus autoresreconhecem a existncia de uma cultura introjetada e sedimenta-da adepta do paradigma liberal-individualista de Direito. O di-erencial do pluralismo a ultrapassagem do simples resgate dapotencialidade emancipatria da racionalidade jurdica moderna.Nesse momento de superao aparecem algumas perguntas: o Es-tado como centro unicador e delimitador de juridicidade servepra qu(m)? possvel a juno qualicada entre tcnica jurdicae teoria crtica? Qual o limite da interao entre ordem estatal eprticas pluralistas? O Pluralismo jurdico no exclui e nem pre-tende superar o Estado, uma vez que se prope a ser um meio dedemocratizao e politizao do Direito e da prpria esera estatal.

    Eis o mosaico - sem rupturas, apenas dierente. Pode-se vercerta ordem por entre os ragmentos. Os ragmentos aqui so osnovos movimentos sociais, espremidos entre a democracia repre-sentativa de um lado e os tensionamentos de ruptura da democra-

    cia direta, participativa, radical, de outro.

    4. Novos sujeitos coletivos: contestao ou relegiti-

    mao da ordem?

    O pluralismo poltico-jurdico comunitrio como projetoemancipatrio pressupe, para a sua realizao, um espao de par-ticipao autnoma de sujeitos polticos coletivos com identidades

    prprias. A atuao desses novos movimentos sociais implica oortalecimento das identidades locais por meio de uma tica con-creta da alteridade18 e de uma racionalidade emancipatria. Essaracionalidade tem como undamento o agir comunicativo (acor-dos e consensos relacionados verdade, justia etc.). Porm, o plu-

    18 Inspirado na tica da libertao de E. Dussel, Wolkmer dene tica concreta da alteridade comouma tica antropolgica da solidariedade que parte das necessidades dos segmentos humanosmarginalizados e se prope gerar uma prtica pedaggica libertadora, capaz de emancipar ossujeitos histricos oprimidos, injustiados, expropriados e excludos. (WOLKMER, 2001, p. 269)

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    ralismo ultrapassa o mundo da vida racionalizado habermasiano

    de procedimentos argumentativos (tica do consenso). A partici-pao pblica no pluralismo emancipatrio no pode se limitar auma democracia deliberativa. Por reetir a realidade latino-ame-ricana de explorao econmica, dominao poltica e exclusocultural, o pluralismo jurdico comunitrio pressupe, para a realeetivao das necessidades humanas undamentais, uma demo-cracia participativa (plebiscito, reerendo, iniciativa popular, con-selhos etc.) que questione as necessidades, os conitos, as carnciase demandas sociais atravs de uma prxis libertadora.

    Ao invs do termo classe social, utilizam-se agora as catego-rias sujeito popular, ator social, e em substituio luta de classesemerge a atuao dos movimentos populares nos Fruns SociaisMundiais. De grupos sociais marginais e lideranas contestatrias movimentos utpicos radicais e comunidades de povos origin-rios, o que caracteriza todos esses novos movimentos sociais paraIlse Scherer-Warren a sua nova cultura poltica. A cultura po-pular torna-se um espao de saber contra-hegemnico. Os movi-

    mentos sociais sero denidos ento como uma ao grupal paraa transormao (a prxis) voltada para a realizao dos mesmosobjetivos (o projeto) sob a orientao mais ou menos conscientede princpios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organi-zao diretiva mais ou menos denida (a organizao e sua dire-o). (SCHERER-WARREN; KRISCHKE, 1987, p. 37)

    J. E. Faria salienta que esses novos movimentos sociais latino-americanos apropriaram-se

    [...] da poltica e discursivamente dos direitos humanos, para con-vert-los em sinnimos de direito alternativo das maiorias margina-lizadas. [...] e, com isso, acabaram deslocando a clssica questo daconstituio dos sujeitos polticos, tradicionalmente subsumida narelao classe-partido-Estado (enquanto relao que pr-denia oespao exclusivo e privilegiado de uma ao dotada de legitimida-de, reconhecimento e eccia polticas. (FARIA, 1992, p. 15)

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    Porm, apesar de o mosaico ormar uma nova imagem, ele

    ainda mantm as guras originais dos seus ragmentos. Assim o pluralismo jurdico comunitrio diante da realidade peririca edependente dos pases sul-americanos. Nele, o movimento popu-lar constitudo por uma vontade coletiva, mesmo que multiaceta-do e heterogneo, com uma nova cara, ainda se conorma no quese entende como classe social.

    Para Boaventura, a contestao dos novos movimentos sociaispossibilita o alargamento da poltica para alm do marco liberal

    da distino entre Estado e Sociedade Civil. (SOUZA SANOS,1999, p. 263.). A ampliao do espao poltico e jurdico intenta-do pelo pluralismo jurdico objetiva, em suma, ampliar a prpriademocracia para alm das relaes com o Estado. Para o autorportugus, poltica tambm se az nas eseras da produo, dodomstico, do mercado, da comunidade e do ltimo dos espaosestruturais, o mundial. (SANOS, 2002).

    Esse potencial catalisador do Estado capaz de reinventar oprprio Estado relegitima-se na aproximao, por diversos meios,dos novos movimentos sociais. A participao poltica democrti-co-comunitria no pluralismo longe est da uno que o partidoexerce de unicao dos diversos interesses dos vrios grupos so-ciais em conito, realizado por meio de uma vontade coletiva na-cional-popular19. Assim, para a conquista de hegemonia, na buscado consenso no bloco histrico, necessrio o reconhecimento daclasse e do partido nos seus sentidos mais radicais.20

    Mesmo que o pluralismo poltico contenha, no seu discurso,

    o projeto de construo de um novo bloco de poder ou histrico;

    19 Para Gramsci, vontade coletiva nacional-popular o motor de um bloco histrico que articulanuma totalidade dierentes grupos sociais, todos eles capazes de operar em maior ou menormedida o movimento catrtico de superao de seus interesses meramente econmico-corpo-rativos, no sentido de criao de uma conscincia tico-poltica, universalizadora. (COUI-NHO, 1999, p. 250-251)

    20 A classe adquire, para o autor italiano Antonio Gramsci, a capacidade de determinar os traosespeccos de uma condio histrica, de um processo, tornar-se protagonista de reivindica-es que so de outros estratos sociais, da soluo das mesmas, de modo a unir em torno desi esses estratos, realizando com eles uma aliana na luta contra o capitalismo e desse modo,isolando o prprio capitalismo. (GRUPPI, 1978, p. 59)

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    Adailton Pires Costa

    uma sntese dialtica entre pluralismo e hegemonia; uma articula-

    o entre democracia representativa (pluripartidarismo) e demo-cracia de base (organismos populares). Mesmo assim, a busca deuma repolitizao da legitimidade no se eetivar estando limi-tada pelo espontanesmo dos ragmentos pluralistas localizados.

    O prprio Carlos Nelson Coutinho j nos alerta sobre as am-bigidades do pluralismo: A hegemonia no pluralismo deve seruma unidade na diversidade; mas a diversidade no pode ser detal ordem que exclua a prpria unidade (COUINHO, 1990, p.

    4). Portanto, sem um projeto de amplitude nacional, as aes damaioria dos movimentos sociais tornam-se emeras (como suasprprias manchetes na mass media). E no obstante o modernoprncipe gramsciano estar em crise, sem ele a atuao dos novossujeitos coletivos estar sempre sujeita a corporativismos e loca-lismos reducionistas. Na ausncia de um maior alcance e organi-zao, estaro condenados a ragmentos sem lugar no mosaico;ou o que pior, no lugar errado.

    5. Consideraes Finais

    De juristas alternativos a operadores adeptos do positivismode combate, dos eternos jusnaturalistas aos arautos do DireitoInsurgente, o pluralismo jurdico de carter emancipatrio, mes-mo com suas contradies, atua nessa caminhada como uma dasprincipais armas de disputa nesse universo de crticos do Direito.

    Deste modo, observa-se que na atual ordem mundial, neoli-

    beral e globalizada, na qual ainda prevalece a hegemonia norte-americana21, o discurso do nacional, do projeto regional, de umaunio de pases do Sul, combatido pelas regras do jogo democr-tico que diz: respeite a clusula democrtica, derrube o seu gover-no democraticamente. Os golpes de Estado tentados na Bolvia e

    21 A teoria pluralista de ato uncionou em geral como um justicativa da democracia ocidental.[...] O pluralismo oi contraposto ao conceito de totalitarismo, para ressaltar o carter negativodeste, mostrando o Ocidente como inerentemente democrtico e o leste socialista como barba-ramente autoritrio. (HIRS, 1992, p. 50)

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    Fragmentos de um mosaico: os novos sujeitos coletivos...

    na Venezuela neste incio de sculo XXI, e os realizados do Mxi-

    co ao Uruguai no sculo passado j mostram qual ser a imagemdo Mosaico pluralista-comunitrio caso se prescinda de um pro-

    jeto nacional-popular; de uma identidade cultural coletiva; de umsujeito histrico; de uma juridicidade de transio socialista.

    Para contrapor soberania privada supra-estatal dos conglo-merados e instituies nanceiras transnacionais, expresso dopluralismo neoliberal e sua lex mercatoria metaestatal, devemosreinventar o destino histrico das dimenses originrias dos sis-

    temas jurdicos modernos ocidentais. Os velhos e novos sujeitospolticos coletivos devem unicar os interesses na busca de umaidentidade, pois a soberania nacional ainda um critrio de orae legitimidade da ordem jurdica ocial.

    Em suma, os povos autctones e os imigrantes dos pases dosul, na demarcao das novas unidades sociais originrias de ju-ridicidade, na espera de seu passado, intentam a relegitimao deseu uturo. Numa redimenso da cidadania, esses atores devemlutar em busca de um projeto emancipatrio contra-hegemnicoem mbito nacional e regional. Seja com ragmentos desse sistema/ seja construindo um novo mosaico.

    Erga a voz em avor

    dos que no podem deender-se,

    seja o deensor de todos os desamparados.

    Erga a voz e julgue com justia;

    deenda os direitos

    dos pobres e dos necessitados.(Provrbios, 31:8-9)

    6. Reerncias

    ALBERNAZ, Renata Ovenhausen. Delimitao de ormas de ju-ridicidade no pluralismo jurdico: a construo de um modelopara a anlise dos conitos entre o direito armado pelo movi-

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    Adailton Pires Costa

    mento dos trabalhadores sem terra e a juridicidade estatal no

    Brasil. ese (Doutorado em Direito) Universidade Federal deSanta Catarina, Florianpolis, 2008.

    CRCOVA, Carlos Maria. A Opacidade no Direito. So Paulo:Lr,1998.

    COUINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre o seupensamento. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999.

    _________________. Notas sobre pluralismo. Conerncia

    apresentada no Encontro Nacional da Associao Brasileira deEnsino de Servio Social abess. Outubro de 1990.

    CORREAS, Oscar. Introduo sociologia do Direito. PortoAlegre: Crtica Jurdica Sociedade em ormao, 1996.

    FARIA, Jos Eduardo. Justia e conito: os juzes em ace dos no-vos movimentos sociais. 2. ed. So Paulo: Revista dos tribunais,1992.

    GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Edizione critica

    dellIstituto Gramsci. A cura di Valentino Gerratana. urim:Giulio Einaudi, 1977.

    HIRS. Paul. Recuperao do pluralismo. In: _______. A demo-cracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

    JUNQUEIRA, Eliane B. O alternativo regado a vinho e cachaa.In Lies de Direito Alternativo 2. (org.) Edmundo Lima deARRUDA JR. So Paulo: Acadmica, 1992.

    MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo Jurdico e Direito Mo-derno. Curitiba: Juru, 2000.

    NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurdico miscelnea social: oproblema da alta de identidade da(s) esera(s) de juridicidadena modernidade peririca e suas implicaes na Amrica La-tina. In Direito em Debate. Universidade de Iju. Ano V, n. 5,

    jan/jun/95.

    OLIVEIRA, Luciano. O pluralismo jurdico como signo de

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    Fragmentos de um mosaico: os novos sujeitos coletivos...

    uma nova sociedade na Amrica Latina. rabalho elaborado

    para um Concurso sobre Pluralismo Jurdico promovido peloILSA de Bogot, Colmbia.

    SANOS, Boaventura de Sousa (org.). A crtica da razo indo-lente. Contra o desperdcio da experincia. 4. ed. So Paulo:Cortez, 2002.

    __________________. Pela Mo de Alice: o social e o polticona ps-modernidade. So Paulo: Cortez, 1999.

    SCHERER-WARREN, Ilse & KRISCHKE, Paulo J. Uma revolu-o no cotidiano. Os novos movimentos sociais na Amrica dosul. So Paulo: Brasiliense, 1987.

    WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurdico. Fundamentosde uma nova cultura no Direito. 3. ed. So Paulo: Editora AlaOmega, 2001.

    _________________. Introduo ao pensamento jurdico crti-co. 5. ed. revista. So Paulo: Saraiva, 2006.

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    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas?

    Marcel Mangili Laurindo1

    Resumo: Demonstrar o carter burgus de certas garantias constitucionais: eiso principal objetivo deste trabalho. Para alm disso, armar-se- que a concreti-zao de umas tais garantias liberais lema de garantistas como Luigi Ferrajoli nada tem de democrtico.

    Palavras-chave: Garantias Constitucionais; Liberalismo, Estado Constitucio-nal de Direito, Democracia.

    1. Introduo

    No cabe neg-lo: o ttulo , de ato, dos mais provocantes.Dir-se-ia tratar-se de uma pilhria daquelas de extremo maugosto ou algo que o valha. Mas no. O que se pretende, aqui, discorrer sobre a uncionalidade de certas garantias constitucio-nais tidas por inquestionveis ou mesmo absolutas.

    Deveras, quer parecer que, naquilo que se usa denominar Es-tados Democrticos de Direito, determinadas garantias, imutveis,

    interessam mais a uns que a outros. Propriedade privada e liberda-de (de contratar, por bvio) individual so as mais representativasdentre elas. Intangveis, encontram-se amparadas por leis unda-mentais. Est-se, em tais casos, diante de garantias constitucionais.

    Ocorre que h muito tem-se pretendido que o adjetivo cons-titucional ale por si prprio. como se, desde que presente em

    1 Acadmico do curso de graduao em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina ebolsista do PE, Programa de Educao utorial.

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    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas?

    uma Constituio, certa disposio normativa osse, repita-se,

    inquestionvel. Representaria ela a vontade inarredvel de umasuposta maioria. Fala-se, assim, de garantias que pautam um re-gime democrtico. A proteo irrestrita propriedade privada e liberdade individual marca essencial do liberalismo seria de-mocrtica por se azer presente em uma Constituio.

    O discurso mavioso: o povo d a si mesmo as leis que maislhe aprouva. Garantias so erigidas, democraticamente, catego-ria constitucional. Democrticos so os Estados de Direito que,

    arrimados em Constituies, garantem um punhado de direitosqualicados dentre os quais se encontram, invariavelmente, osdireitos liberdade individual e propriedade privada.

    A conuso proposital, de antemo imaginada est posta:do mesmo modo que, de maneira oportunista, conundem-se ga-rantias democrticas com direitos de cunho liberal, equiparam-seEstado de Direito Burgus e Estado Constitucional Democrti-co. Dentre as teorias que tornam equivalentes coisas to diversasencontra-se o garantismo doutrina que, cool, avant-garde, estna moda.

    a uns tais quiproqus que aro reerncia as prximas li-nhas. Demonstrar-se-, neste artigo, o carter liberal de deter-minadas garantias constitucionais especialmente daquelas queamparam a propriedade privada e a liberdade individual e a es-peciosidade dos argumentos daqueles que, uncionalmente, pre-tendendo concretiz-las, imaginam-se arautos da democracia edo Estado de Direito.

    2. As Fundaes Carcomidas de Certas Garantias

    Constitucionais

    Que , em linhas gerais, o liberalismo? a teoria que buscaamparar o capitalismo. Disso nem mesmo o mais errenho dosliberais haver de discordar. Na medida em que se bate, sobretu-do, pelos direitos propriedade privada e liberdade individual,lana as bases loscas que legitimariam a classe burguesa. Das

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    Marcel Mangili Laurindo

    bolotas de John Locke s utilidades de Jeremy Bentham, tudo o

    que oi dito no teve por to seno deender tais direitos naturais.No poderia ser dierente: os Estados Modernos surgem para

    garantirque tudo se zesse nos moldes burgueses2. Caber-lhes-iaassegurar que certos direitos naturais justamente aqueles que,um pouco mais tarde3, ariam as vezes deundamentais4 ossem,em prol da humanidade, respeitados. A construo liberal dasmais interessantes: atribui-se carter universal-ontolgico aos di-reitos que mais apeteceriam burguesia.

    Sem qualquer espcie de pudor, os tericos liberais trataram deconerir a toda a humanidade ndios, esquims, aborgines osdireitos undamentais liberdade individual e propriedade pri-

    vada. Ao universalizar uns tais direitos, metendo-lhes a pecha deundamentais, os aclitos liberais pespegaram-lhe tintas ontolgi-cas das mais vivas. O homem seria, em essncia, um livre proprie-trio. Metasica de quinta categoria, ruto de um idealismo opor-tunista e tacanho, a losoa liberal coneriu a alguns direitos statusontolgico. A humanidade seria, pois, ontologicamente burguesa.

    Nos termos de Jean-Paul Sartre,

    a cultura burguesa uma totalidade. (...) Pretende-se ela humanis-ta. Contudo, at hoje, aproveitando-se do erro da burguesia, que sepretendeu classe universal no tempo da Revoluo, conunde a hu-manidade com a burguesia e recusa-se a considerar os proletrios[mas no s os proletrios] como homens por inteiro por que noso burgueses. (1977, p. 50)

    2 Ao tratar das Declaraes Americanas de Direitos, Schmitt arma que los ms importantesderechos undamentales de esas declaraciones son: libertad, propiedade privada, seguridad, de-recho de resistencia y libertades de conciencia y de religin. Como nalidad del Estado apareceel aseguramiento de tales derechos. (SCHMI, 19??, p.183)

    3 De qualquer modo, independentemente das diversas interpretaes, um ato da realidade que no pode ser submetido variedade de interpretaes que o Estado oriundo da Revolu-o Francesa e transormado no sculo XIX em prottipo do Estado burgus (enquanto Estadoconstitucional, liberal, parlamentar, representativo, etc.) inspira-se nos princpios undamen-tais da escola do direito natural. (BOBBIO, 1991, p. 09)

    4 De acordo com Cademartori,(...) os direitos undamentais oram pensados pelo jusnaturalis-mo como um prius lgico com relao ao Estado e contrapostos aos poderes pblicos como asua anttese e padro de justicao. (1999, p. 39)

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    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas?

    Mas a que se deve o carter ontolgico de uns tais direitos?

    sua anterioridade rente ao Estado. De acordo com Schmitt, (...)en el Estado burgus de Derecho son derechos undamentalessolo aquellos que pueden valer como anteriores y superiores alEstado, aquellos que el Estado, no es que otorgue con arreglo a susleyes, sino que reconoce y protege como dados antes que l (...).(SCHMI, 197?, p. 189)

    Assim, em respeito a sua estatura ontolgica, os direitos unda-mentais no havero de ser, em hiptese alguma, menoscabados.

    Ningum nem mesmo (ou principalmente...) o Estado podearont-los. Se assim, nada melhor que tornar constitucionais de-terminados direitos individuais. Nesse sentido, as Constituiesoram a panacia liberal: com elas, dar-se-ia na conta da neces-sidade de tornar absolutas determinadas disposies normativas justamente aquelas ditas undamentais.

    ratando do pensamento de Luigi Ferrajoli, Joo dos PassosMartins Neto arma que, para o autor italiano, a Constituio aorma indisponvelque

    (...) se revela como a tcnica de tutela, por excelncia, dos bensconsiderados fundamentais pelo pacto constitucional, e dela quese lana mo quando se pretende eetivamente garantir direitosreputados como tais. Da a sua concluso de que os direitos un-damentais pertencem esera do indecidvel, bem como de queas normas que os consagram esto em princpio dotadas de rigi-dez absoluta so supraordenadas a qualquer poder decisional.(2003, p. 91-92)

    De um s golpe, dirimido oi o problema. Incluram-se direitosundamentais em uma lei ditaundamental. Consoante Carl Schmitt,

    el reconocimiento de los derechos undamentales, en el sentido delEstado burgus de Derecho, signica que los principios de Estado deDerecho de una Constitucin liberal burguesa moderna son recono-cidos como elemento esencial de la Constitucin misma. Esto signi-ca que pertenecen a la sustancia de la Constitucin y que si puedenser, ciertamente, modicados por una normacin constitucional, su

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    Marcel Mangili Laurindo

    destruccin completa es, sin embargo, ms que una simple revisin

    constitucional. (197?, p. 205-206).

    Faltavam a tais direitos undamentais, contudo, um matiz de-mocrtico. al verniz camada supercial que, por vezes, esca-moteia a podrido da estrutura assoma, para a teoria liberal,sob a orma de um poder constituinte corrompido que, em umsimples estalar de dedos, transmuta-se em poder constitudo ouque, na verdade, nunca deixou de s-lo. Credita-se ao povo a von-tade de que contemplem as Constituies essas normas maiores

    que, em tese, indicam as sendas percorridas pela justia direitosde cunho liberal.

    Sartre assaz preciso ao tratar da questo:

    O governo apodera-se da tendncia para a justia que encontra naplebe e cria rgos de justia que representam a burocratizao davontade de justia popular; esses tribunais ditam a sua sentenaaplicando a lei e inspirando-se em princpios burgueses: tm, pois,como origem uma sorte de prestidigitao e a alsicao da vonta-

    de popular. (1977, p. 49)5

    A est o elemento democrtico dos direitos propriedade pri-vada e liberdade individual.

    3. A Relao entre os Direitos Fundamentais e as

    Constituies Modernas

    A histria dos direitos undamentais tem incio com as Decla-raes de certos Estados Americanos Virgnia e Pensilvnia aencabe-los no sculo XVIII. (SCHMI, 197?, p. 182)

    Consoante Carl Schmitt, aqu, en verdad, se indica el comien-zo segn uma rase de Ranke de la Era Democrtica ms

    5 Quando, no decurso das perturbaes revolucionrias de 1789-1794, a burguesia pretendeu im-por ao povo o seu poder, criou um novo sistema judicirio e substituiu os grandes movimentosda plebe por corpos especializados entre os quais o ribunal Revolucionrio que se preten-diam nascidos do povo e que, de acto, eram criados pelo Governo. (SARRE, 1977, p.47)

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    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas?

    exacto: liberal y del Moderno Estado de Derecho liberal-bur-

    gus, si bien aquellas declaraciones americanas estaban como Billo Rights, en la lnea de la tradicin inglesa. (SCHMI, 197?, p.182) Dentre os direitos nelas presentes encontram-se as garantias liberdade, propriedade privada, resistncia e s convicesreligiosas. (SCHMI, 197?, p.182) Em 1789, tambm os rance-ses, a seguir a moda, editaram a Declarao de Direitos do Ho-mem e do Cidado, cujos direitos undamentais mais importantesno so muito diversos daqueles conclamados pelos norte-ameri-canos. (SCHMI, 197?, p.185)

    Que direitos, anal, so esses? So direitos liberais. Da terCarl Schmitt reticado a assertiva de Ranke: com umas tais de-claraes encetava-se um perodo histrico marcado pelo libera-lismo e no pela democracia. A inviolabilidade da propriedadeprivada e da liberdade individual as garantias constitucionaispelas quais tem a burguesia maior apreo o que melhor podecaracterizar o Estado de Direito Burgus6.

    A se lanar mo de recurso dos mais utilizados pelos teri-cos liberais o silogismo , ter-se- que, se os princpios que in-tegram determinada Constituio so liberais, sero elas liberais.Ora, justamente o caso de grande parte das Constituies mo-dernas7. Novamente de acordo com o autor de eologia Poltica,la Moderna Constitucin del Estado burgus de Derecho es, porlo pronto, segn su devenir histrico y su esquema undamental,todava hoy dominante, una Constitucin liberal, y liberal en elsentido de la libertadburguesa (SCHMI, 197?, p. 146).

    Nesse sentido, la Moderna Constitucin del Estado burgus

    6 Em verdade, ao discorrer a respeito das decises tomadas pelo constituinte alemo de Weimar,Schmitt por demais claro: optou-se, ento, pelo Estado burgus de Derecho con sus princi-pios: derechos undamentales y divisin de poderes (SCHMI, 197?, p.27). Em outra oca-sio, utilizando-se de armao presente na Dieta de Socilogos alemes, o constitucionalista ainda mais incisivo: propriedad privada y divisin de poderes son principios liberales, y nodemocrticos (SCHMI, 197?, p. 233).

    7 Por Constitucin moderna del Estado Burgus de Derecho se entiende aqu una clase de Cons-titucin a la que pertenece la mayora de las hoy existentes. Slo por esta razn llamamos mo-derna a esta clase de Constituciones. La palabra no va ligada a ningn juicio de valor en elsentido del progreso, de la adecuacin a los tiempos o cosa semejante (SCHMI, 197?, p. 145).

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    Marcel Mangili Laurindo

    de Derecho se corresponde en sus principios con el ideal de Cons-

    titucin del individualismo burgus, y tanto que se suelen equipa-rar estos principios a Constitucin y atribuir el mismo signicadoa las expresiones Estado Constitucional y Estado burgus de De-recho (SCHMI, 197?, p.145).

    Deveras, En el proceso histrico de la Constitucin modernah prosperado tanto un determinado concepto ideal, que, desdeel siglo XVIII, slo se han designado como Constitucin aquellasque correspondan a las demandas de libertad burgusa y conten-

    an ciertas garantas de dicha libertad (SCHMI, 197?, p. 43). que, ainda de acordo com Schmitt,

    la burguesia liberal, en su lucha contra la Monarqua absoluta, pusoen pie un cierto concepto ideal de Constitucin, y lo lleg a identi-car con el concepto de Constitucin. Se hablaba, pues, de Consti-tucin slo cuando se cumplan las exigencias de libertad burgue-sa y estaba asegurado un adecuado infujo poltico a la burguesa.(SCHMITT, 197?, p. 41)

    Assim, slo se consideraran Constituciones liberales, dignasdel nombre de Constitucin, aquellas que contuvieran algunasgarantas (...) de la libertad burguesa (SCHMI, 197?, p. 43).

    Ainda hoje, para el lenguaje del liberalismo burgus, slo hayuna Constitucin cuando estn garantizadas propriedad privaday libertad personal; cualquier outra cosa no es Constitucin, sinodespotismo, dictadura, tirana, esclavitud o como se quiera lla-mar (SCHMI, 197?, p.42).

    A anlise de Carl Schmitt seria absolutamente precisa se nodeixasse de levar em conta que os tericos liberais omitem de seudiscurso o epteto burgus. No bastasse um tal articio, qualicamseu Estado de Direito com o adjetivo democrtico. No h nenhu-ma relao necessria entre liberalismo e democracia. O primeiro uma losoa que az as vezes de teoria legitimadora do capitalismo;a segunda, uma orma de governo. disso que se tratar a seguir.

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    4. Democracia e Liberalismo

    A burguesia sempre maniestou receio pela democracia. Narealidade, o discurso democrtico mostrou-se assaz til aos libe-rais em suas reregas contra o Absolutismo. Ao tempo de tais lutaspoltico-ideolgicas, oras sociais diversas liberais e socialistasdentre elas congregavam esoros para solapar as bases dos re-gimes monrquicos absolutos. Os embates eram travados entreabsolutistas e democratas:

    Enquanto oi um conceito essencialmente polmico, isto , oi a ne-gao da monarquia existente, a convico democrtica pde serconjugada e associada a muitos outros movimentos polticos. Mas, namedida em que se tornou uma realidade concreta, ela passou a servira muitos donos e no ter uma meta de contedo denido. Quandodesapareceu o seu rival mais importante, a monarquia, a prpriademocracia perdeu algo da preciso de seu contedo e teve o mes-mo destino de todo o conceito polmico. Inicialmente apresentou-senuma associao natural e at numa identidade com o liberalismo e a

    liberdade. Na social-democracia, juntou-se ao socialismo. No governobem-sucedido de Napoleo III e em reerncias suias constatou-seque ela tambm podia ser conservadora e reacionria, o que alis jhavia sido proetizado por Proudhon. (SCHMITT, 1996, p. 24-25)

    O ato que, mesmo tendo se utilizado do aparato conceitualdemocrtico para atingir seus objetivos, j poca da prpria Re-

    voluo Francesa,

    No continente europeu, os liberais prticos se assustavam com ademocracia poltica, preerindo uma monarquia constitucional comsurgio adequado ou, em caso de emergncia, qualquer absolutis-mo ultrapassado que garantisse seus interesses. Depois de 1793-4,s uma burguesia extremamente descontente, ou ento extrema-mente autoconante, como a da Gr-Bretanha, estava preparada,com James Mill, para conar em sua prpria capacidade de conser-var o apoio dos trabalhadores pobres permanentemente, mesmoem uma repblica democrtica.

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    Marcel Mangili Laurindo

    Os descontentamentos sociais, os movimentos revolucionrios e as

    ideologias socialistas do perodo ps-napolenico intensicarameste dilema, e a revoluo de 1830 tornou-o mais agudo. O liberalis-mo e a democracia pareciam mais adversrios que aliados; o trpliceslogan da Revoluo Francesa liberdade, igualdade e raternida-de expressava melhor uma contradio que uma combinao.(HOBSBAWM, 2002, p. 333-334)

    Oportunista, a burguesia elimina a aristocracia de sangue ede amlia mas admite o domnio vergonhoso da aristocracia do

    dinheiro, a orma mais tola e ordinria de aristocracia; ela noquer a soberania do rei, nem a do povo (SCHMI, 1996, p. 126).Para isso,

    um conservador prussiano como F.J. Stahl, que em suas palestrassobre os partidos contemporneos no Estado e na Igreja tambmtratou das muitas contradies do liberalismo constitucional, temuma explicao muito simples: o dio contra a realeza e a aristo-cracia impele o burgus liberal para a esquerda; o medo de perdersua propriedade ameaada pela democracia e o socialismo radicaisimpele-o novamente para a direita, para um reinado poderoso, cujoexrcito poder proteg-lo. Assim, ele oscila entre dois inimigos equer enganar a ambos (SCHMITT, 1996, p. 126).

    Sagrando-se vitorioso em sua escaramua contra o Absolu-tismo, o liberalismo, em uma espcie de usurpao poltica, diz-se democrtico. em incio a tentativa de equivaler democraciae liberalismo. Ocorre que hoje (...) as dierenas entre as idiasliberal-parlamentaristas e as democrticas de massa no podemmais passar despercebidas (SCHMI, 1996, p. 05).

    De ato, a classe que, de modo extremamente pragmtico, en-contra-se, no exerccio do poder, a meio caminho da nobreza e dopovo no est investida de propsitos democrticos. A procuraralgo que a legitime, a teoria liberal busca ser vista como demo-crtica. Ao analisar as estruturas da sociedade burguesa, Bobbiolobriga a alcia: A idia de que o poder s legtimo quandoundado por consenso prpria de quem luta para conquistar um

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    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas?

    poder que ainda no possui, embora mais tarde, uma vez conquis-

    tado o poder, passe a deender a tese contrria (1991, p. 10).Pode parecer um tanto chocante para os estremes juristas libe-

    rais esses que, ubiquamente, encontram-se dispostos a garantir aconcretizao dos direitos undamentais propriedade privada e liberdade individual (para contratar) , mas uma ditadura podeser democrtica. Conorme Schmitt, a ditadura no o opostodecisivo da democracia, assim como esta no o da ditadura(1996, p..32). Nesse sentido, (...) como qualquer ditadura, o bol-

    chevismo e o ascismo so anti-liberais, mas no necessariamenteanti-democrticos (1996, p. 16).

    Fica por demais claro que os tericos liberais equiparam oumelhor, tornam equivalentes democracia e liberalismo. Mat-teucci, Bobbio e Pasquino sintetizam a questo ao armarem que(...) segundo a concepo liberal do Estado no pode existir De-mocracia seno onde orem reconhecidos alguns direitos unda-mentais de liberdade que tornam possvel uma participao pol-tica guiada por uma determinao da vontade autnoma de cadaindivduo (1993, p. 324). Na realidade, os tericos liberais voalm: igualam liberalismo, democracia e Constituio:

    El desarrollo de la signicacin constitutiva de los derechos unda-mentales para la comunidad y la Constitucin justica considerar-los, en la democracia inspirada en la libertad de la ley undamental,como su undamento uncional, como instituto conexo a la demo-cracia (HBERLE, 2003, p. 20).

    Como o arma Lenin,

    natural que um liberal ale de democracia em geral. Ademais, to-dos sabem (...) que as instituies ou mesmo os grandes movimen-tos dos escravos da antiguidade provam, de ato, que o undo doEstado Antigo era a ditadura dos proprietrios de escravos. Suprimiaessa ditadura a democracia para e entre os proprietrios de escra-vos? Todo o mundo sabe que no (1979, p.98).

    Assim que, em um toque de mgica, socapa, os tericos li-

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    Debate 53

    Marcel Mangili Laurindo

    berais igualam democracia e liberalismo. Essa democracia de que

    tratam os intelectuais burgueses no seno liberalismo.

    5. O Garantismo como Teoria Liberal-Burguesa

    udo o que, at esta altura, armou-se a respeito das origensburguesas dos direitos undamentais e da articial equiparaoentre democracia, liberalismo, Estado (burgus) de Direito e Esta-do Constitucional (burgus) pode ser acilmente corroborado porsimples leitura de algumas linhas de Luigi Ferrajoli.

    Muito embora no considere Ferrajoli a propriedade priva-da um direito undamental (CADEMARORI, 1999, p. 36-37), certo que tal direito gura, regra geral, entre aqueles denomina-dosptreos. Ora, em termosprticos, pouco importa se um direito ou noundamental. O que realmente h de se levar em consi-derao seu carter inviolvel. Os direitos ptreos so imutveis.Deeso assertar que o direito propriedade privada , normal-mente, intangvel.

    Se assim, deender a eetivao e a concretizao dessasConstituies signica armar a undamentalidade do direito propriedade privada. odo o resto caracterizar a propriedadeprivada como direito undamental ou no no passa de merodiscurso. Nesse sentido, qualicar a propriedade privada como di-reito ptreo ou undamental no seno a mesma coisa8.

    8 Interessante, aqui, colacionar os argumentos de Joo dos Passos Martins Neto: Numa nicalinha, podemos ento identicar os direitos undamentais como direitos subjetivos ptreos.Naturalmente, com isso no se quer sugerir que undamental seja sinnimo de ptreo, porquede ato, no nvel semntico corrente, undamental quer dizer essencial, vital, indispensvel e p-treo quer dizer resistente, duro, intrpido. O que se postula, no entanto, que ambos os termosesto, um para o outro, numa relao essencial e determinante, de modo tal que somente sero

    verdadeiramente undamentais aqueles direitos subjetivos imunizados contra o constituinte re-ormador por obra de uma clusula ptrea (2003, p. 87). Mais adiante, o mesmo autor assertaque Num Estado Constitucional de Direito, democraticamente legitimado, precisamente aanexao de uma clusula ptrea a um dado direito subjetivo o que melhor certica a sua un-damentalidade, porque assim, ao declar-lo intocvel e pondo-o a salvo inclusive de ocasio-nais maiorias parlamentares, que o poder constituinte originrio o reconhece como um bemsem o qual no possvel viver em hiptese alguma. Por isso que, objetivamente, undamental, em ltima instncia, ptreo (2003, p. 87-88).

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    Garantias Constitucionais: Quem precisa delas?

    O ato que Ferrajoli (gura chave do garantismo doutrina

    que, em linhas gerais, pretende ver eetivadas, em sua integrali-dade, as garantias constitucionais dos Estados Democrticos deDireito) no nega o carter burgus dos direitos undamentais.ampouco dissocia liberalismo e democracia. Para Ferrajoli, cer-tos direitos so comuns a todos os homens. ambm de acordo como garantista, nem sobre tudo se pode decidir em uma democracia.rata-se de pensamento que, liberal, diz-se democrtico. o que sepode depreender do seguinte trecho:

    Neste sentido, o garantismo, como tcnica de limitao e disciplinados poderes pblicos, voltado a determinar o que estes no deveme o que devem decidir, pode bem ser concebido como a conotao(no ormal, mas) estrutural e substancial da democracia: as garan-tias, sejam liberais ou sociais, exprimem de ato os direitos unda-mentais dos cidados contra os poderes do Estado, os interesses dosracos respectivamente aos dos ortes, a tutela das minorias margi-nalizadas ou dissociadas em relao s maiorias integradas, as razesde baixo relativamente s razes do alto (FERRAJOLI, 2002, p. 692).

    Que democracia essa? a constitucional. E, de acordo comFerrajoli,

    A primeira regra de todo pacto constitucional sobre a convivnciacivil no precisamente que sobre tudo se pode decidir (ou nodecidir), nem mesmo pela maioria. Nenhuma maioria pode decidira supresso (e no decidir a proteo) de uma minoria ou de ums cidado. Sob este aspecto o Estado de Direito, entendido comosistema de limites substanciais impostos legalmente aos poderespblicos para a garantia dos direitos undamentais, se contrapesao Estado absoluto, seja ele autocrtico ou democrtico. Mesmo ademocracia poltica mais pereita, representativa ou direta, pre-cisamente um regime absoluto e totalitrio se o poder do povo ornela