poética e prosa

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  • a) R755p Rolon, Renata Beatriz Brandespin. A Prosa potica de Manoel de Barros: lirismo, mitos e memrias. / Renata Beatriz Brandespin Rolon. Cuiab: a autora, 2006. 91 p.

    Orientadora: Profa. Dra. Clia Maria Domingues da Rocha Reis. Dissertao. Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Campus Cuiab.

    1. Literatura. 2. Prosa. 3. Poesia. 4. Prosa potica. 5. Manoel de Barros. I. Ttulo. CDU 82-1

  • Renata Beatriz Brandespin Rolon

    A prosa potica de Manoel de Barros: lirismo, mitos e memrias

    Cuiab 2006

  • Renata Beatriz Brandespin Rolon

    A prosa potica de Manoel de Barros: lirismo, mitos e memrias

    Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso UFMT, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Estudos de Linguagem.

    rea de concentrao: Estudos Literrios e Culturais. Linha de pesquisa: Estudos Literrios. Orientadora: Prof Dr Clia Maria Domingues da Rocha Reis

    Instituto de Linguagem da UFMT Cuiab 2006

  • DEDICATRIA

    Dedico este trabalho ao meu pai Juan Nicer Rolon (in memoria). A minha querida me Ordlia B. de Nicer Rolon, que sempre esteve ao meu lado ensinando-me os sentidos da vida. Ao meu querido filho Joo Paulo R. Silva, razo de minha luta contnua.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Isaac Newton Almeida Ramos, meu eterno mestre, com quem aprendi muitas lies e agucei o gosto pela poesia.

    Prof Clia Maria Domingues da Rocha Reis, minha orientadora, que me acompanhou durante estes 24 meses demonstrando muita sabedoria, disposio e, sobretudo, dedicao minha pesquisa.

    Ao professor Mrio Cezar Silva Leite pela leitura atenta e sugestes valiosas.

    Aos meus irmos Carlos Nicer B. Rolon e Juan Carlos B. Rolon, pelo incentivo e companheirismo.

    A minha amiga Sulemi Fabiano, pelo companheirismo e ajuda intelectual.

  • RESUMO

    ROLON, R. B. B. A prosa potica de Manoel de Barros: lirismo, mitos e memrias

    O presente trabalho constitui um estudo sobre a prosa potica como uma

    modalidade literria na qual os elementos estruturais obedecem a outra ordem,

    que no a tradicional. Nela, o teor lrico abre caminho para a integrao entre

    palavra e imagem, que resultam em uma nova essncia do fazer potico. Nessa

    perspectiva, tento compreender a prosa potica de Manoel de Barros por meio da

    anlise de alguns textos que compem o Livro de pr-coisas (1997) e Memrias inventadas A infncia (2003), em sua forma e contedo. Em relao ao contedo, o intuito investigar a maneira mtica com que Barros fala da origem e

    do convvio social do homem por meio de um personagem que representa o

    pantaneiro, dotado de crendices e valores que se materializam em acontecimentos

    surreais, o personagem Bernardo da Mata. nesse contexto que em suas narrativas surge um Pantanal que possui duas esferas, a natural e a encantada.

    Alm disso, o poeta tambm busca estabelecer por intermdio de uma prosa

    memorialstica e criativa, relaes com um tempo que possibilita a reflexo do

    sujeito. Desse modo, as anlises contidas nesse trabalho indicam que a qualidade esttica da prosa potica de Manoel de Barros possibilita a criao de imagens de

    um pantanal de homens e mitos, provocando origens e (re) nascimentos.

    Palavras-chave: Livro de pr-coisas, Memrias inventadas A infncia, prosa

    potica.

  • ABSTRACT

    ROLON, R. B. B. The poetical prose from Manoel de Barros: myths and memories

    The current composition compounds a study on the occurrence of the poetical prose in Manoel de Barros. These texts present non-traditional narratives and they show that structural elements obey the other order, which is not the traditional one. In these narratives the lyric drift and the dense rhythm open way for the integration between text and image, what results in a new essence of poetic doing. In this perspective, I analyze some narratives, which compounds the Livro de pr- coisas (LPC) and Memrias Inventadas - A Infncia (MI). The goal is in revealing the fact that by the relates of its narrator, Barros tells, by a mythic way, the origin of man through Bernardo da Mata, a character who represents the pantaneiro doted by beliefs that are materialized at surreal happenings. It is into this context that at the manoelenses poetical narratives arises a Pantanal that has two spheres: The supernatural and the enchanted one. Besides, the poet also seeks to establish, through a memorial and creative prose, relations with the time that makes it possible the self-apprehension of the subject itself. Thereby, the narratives analyzed indicate that Manoel de Barros, through his poetical prose, seeks in the memory images of a pantanal of men and myths from the world that surrounds them, provoking origins and (re)births.

    Keywords: Livro de pr-coisas, mythpoetical narratives, memories.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS DAS OBRAS DE MANOEL DE

    BARROS

    ESC- Exerccios de ser Criana

    GEC- Gramtica expositiva do cho

    GA O guardador de guas

    LSN- Livro sobre nada

    LPC- Livro de pr-coisas

    TGGI- Tratado geral das grandezas do nfimo

    MI- Memrias inventadas A infncia

  • SUMRIO

    Dedicatria .........................................................................................................I Agradecimentos.................................................................................................II Resumo..............................................................................................................III Abstract.............................................................................................................IV Introduo........................................................................................................10 1 DA POESIA PROSA POTICA .................................................................13 2 OS (DES)CAMINHOS DE UM MUNDO RENOVADO...................................27

    2.1 As Trilhas encantadas do Livro de pr-coisas..................................32 2.2 Revelaes de um universo mtico.....................................................42 2.3 Bernardo: o personagem-mito...........................................................48

    3 OS FIOS DA MEMRIA DE UM PANTANEIRO...........................................66 3.1 Destroos de uma natureza potica .................................................75 Consideraes finais......................................................................................86 Referncias bibliogrficas..............................................................................89

  • Introduo

    A prosa potica uma vertente ainda pouco abordada pela teoria literria. Os estudos mais recentes acerca da poesia moderna apontam para a ocorrncia de poemas que, mantendo o ritmo e a imagem potica, fogem do padro tradicional, apresentando seqncias narrativas. A prosa potica se apresenta nas mais diversas manifestaes do gnero narrativo, ou seja, do romance crnica que, num todo ou em partes, vem permeada por uma linguagem mais elaborada, de forma que os cenrios, personagens e enredo, amalgamados, formam um mosaico lrico. Ainda, nos textos que seguem essa vertente so encontrados diversos elementos prprios de um poema, como o predomnio de figuras como a metfora, o eu-lrico, atitude lrica. Uma das diferenas que nela no h a preocupao do emprego de elementos formais, por exemplo, o visual (a disposio das frases em estrofes, versos) e o sonoro (figuras de som, rimas, aliteraes, assonncias, paronomsias etc), geralmente buscados nos poemas, que em si possuem um sentido, e que do a eles efeitos peculiares. Ressalta-se que possvel que a prosa potica possa conter efeitos sonoros interessantes, mas ele no to expressivo quanto os desenvolvidos nos poemas, por exemplo, concretos, parnasianos, simbolistas. O que existe nessa nova estrutura uma dinamicidade, materializada seja pela incorporao do falar coloquial ou mesmo pela metaforizao do espao que no se compara com as narrativas puramente descritivas.

    Manoel de Barros cria uma poesia que emerge em prosa. Fazendo um levantamento quantitativo e leitura de todos os livros publicados por Manoel de Barros, constatei que, desde o primeiro, Poemas concebidos sem pecado (1937), ele utiliza este modo de composio. Devido a esse uso amplo e percebendo que, de modo geral, o estilo se mantm, elegi para as minhas anlises trs textos do

  • Livro de pr-coisas (2 ed, 1997) e um do Memrias inventadas A infncia (2003). Esclareo que, para aprofundar a compreenso do trabalho literrio do autor, em alguns momentos trabalhei tambm com versos, em fragmentos ou integrais, retirados de outras obras do poeta, como: O Guardador de guas (1989), Gramtica expositiva do cho (2 ed, 1992), Livro sobre nada (1996), Exerccios de ser criana (1999) e Tratado geral das grandezas do nfimo (2001).

    A partir dessas anlises foi constatado que nas narrativas potica de Barros o Pantanal mato-grossense torna-se um espao no reconhecido, pois neste, encanto e natureza mesclam-se. Dessa unio surge uma linguagem inventiva que modifica tambm a estrutura dos textos. Para relatar o que h no espao pantaneiro, o autor confere qualidade esttica ao texto, que resulta em imagens acrescidas de novos sentidos. Seus experimentos com a linguagem revelam os habitantes do lugar natureza, homens, animais -, cenrios, enredo, resultando em uma potica que admite novos sentidos agregados em seu corpo.

    Para melhor compreender o que seja a prosa potica, em sua manifestao literria e, mais especificamente, a prosa potica de Manoel de Barros, foi preciso pesquisar textos tericos que versassem sobre as definies de poesia, prosa e prosa potica, assim como suas caractersticas e funcionamento como linguagem literria, estudo que apresento no primeiro captulo, intitulado Da poesia prosa potica. Esse trabalho foi necessrio para melhor direcionar as anlises estilsticas dos textos selecionados.

    O segundo intitulado Os (des)caminhos de um mundo renovado, destina-se anlise estilstica da prosa potica dos textos selecionados. Nele feita uma conjugao entre mito e poesia, mitos relacionados ao homem, ao espao que ele habita, s suas crendices. Tento, ento, compreender a fala do poeta sobre a fauna e a flora pantaneiras, sobre o homem, representado no personagem Bernardo da Mata, que habita a poesia de Manoel de Barros desde a primeira publicao do Livro de pr-coisas. Por meio de Bernardo, o poeta traa o perfil de um ser que vive integrado com a natureza mtica e com os seres do lugar.

    Pela importncia que esse personagem adquire, ainda no segundo captulo, detenho-me na busca de compreender seus feitos e por isso fiz trs divises: a

  • primeira, As trilhas encantadas do Livro de pr-coisas, para mostrar a inovao na construo de sua prosa potica e a constituio de um espao natural que tambm encantado; a segunda, Revelaes de um universo mtico, a partir da anlise do texto Mundo Renovado, compreender o espao que Bernardo habita; a terceira, Bernardo: o personagem-mito, com o estudo do texto No presente, verificar que a presena desse personagem na poesia manoelense possibilita uma interpretao que abre caminho para a expresso de smbolos, os quais remetem ao mito da origem do homem. Para analisar esses aspectos, recorri s teorias de Mircea Eliade nos livros Mito e realidade (1972), Mito do Eterno Retorno (1992) e Mielietinsk com o livro A potica do mito (1987). Por meio desses estudos, v-se que o mito se consagrou como um meio pelo qual contam-se histrias sobre a sabedoria da vida.

    No terceiro captulo, intitulado Os fios da memria de um pantaneiro, procurei mostrar que os caminhos traados pela memria de um narrador-menino elucidam fatos e acontecimentos de seu passado. Por intermdio da figura do av, o eu-narrante revela suas lembranas permeadas por smbolos que identificam o cotidiano do povo pantaneiro. Essas lembranas fazem com que o menino procure encontrar na figura do av valores essenciais ao ser. Ainda, neste terceiro captulo, h uma diviso: Destroos de uma natureza potica com a anlise do texto Carreta pantaneira. Neste percebi que, mesmo transformados, os objetos utilitrios mantm os homens junto s lembranas que foram repelidas, desarticuladas pelo progresso. Ademais, a presena da carreta, um dos smbolos da identidade do povo pantaneiro, revisitada pela memria do narrador, torna-se a representao de uma natureza que encontra o seu prprio caminho, que consegue se transformar e recriar a vida. A transmutao da carreta, sua aparente desfuncionalidade possibilita (re)nascimentos, renovaes e regeneraes dos seres que habitam esse universo imagtico.

  • CAPTULO I DA POESIA PROSA POTICA

    I.1. Alguns estudos tericos

    Aristteles, em sua Arte Potica (1987), ressalta que o ato de imitar prprio do homem, o que o diferencia dos outros animais por ele ser capaz de adquirir conhecimento por meio da imitao. Ao falar sobre a mimese, observa que ela ativa e criadora por imitar caracteres, emoes e aes humanas, e sua essncia consiste no prazer que da deriva.

    Etimologicamente, a palavra poesia vem do grego poiesis e significa ao, fazer, criar alguma coisa. Ela est relacionada a um produto literrio feito com especial cuidado. Como observador das artes, Aristteles (Ibid., p. 234) afirma que a poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa ndole dos poetas que eram atrados para este ou aquele gnero de poesia. Uns escreveram comdias, outros epopias, outros tragdias. Para ele no ofcio do poeta narrar o que aconteceu, e sim o de representar o que poderia acontecer; ou seja, o que possvel segundo a verossimilhana e a necessidade.

    A poesia uma arte ligada palavra. O poeta tem um mundo particular que erguido imageticamente por meio das palavras. Com sua autonomia discursiva, ele tem o poder de construir e remodelar o mundo.

    Nasce a poesia, nas primeiras sociedades agrcolas, como forma de recitao em rituais oferecidos em favor da boa colheita. Em muitas civilizaes a poesia tinha um significado e uma tarefa doutrinria, mgica e disciplinar. Segundo Benedetto Croce (1967, p.14), para os antigos gregos, a poesia possua ao milagrosa, eles a consideravam como um sopro sagrado, um furor, um entusiasmo, uma divina mania. Croce ainda observa que no sculo XVIII, graas a Vico, a poesia passou a ser concebida na perspectiva da linguagem, perspectiva

  • essa que se mantm at os nossos dias. A idia de poesia permaneceu, sobretudo, como um dado da cultura humana, como forma de representao das manifestaes histricas e culturais dos povos.

    O poeta, enquanto criador, ao longo dos tempos, transforma a poesia em uma arte mpar, capaz de revelar a essncia do homem, do mundo, no caos da histria. Octavio Paz (2003, p. 42) enuncia no primeiro captulo do seu El arco y la lira que El poema no es una forma literaria, mas sino el lugar de encuentro entre la poesa y el hombre. nesse sentido que a poesia e o poeta, concomitantemente, ajudam o homem a ver e analisar o mundo com um olhar renovador, conseguindo torn-lo consciente dos sentimentos mais profundos e inefveis. Por isso, a poesia, a exemplo de outras artes, mantm-se por si mesma, sem a necessidade de demonstrar sua finalidade. Dentro dessa concepo at aceitvel que um poema possa ser utilizado para diversos fins, todavia no pode ser avaliado em funo dessa utilidade.

    Com o advento da lrica moderna o poeta torna-se detentor da idia de que o recorte que ele faz do mundo, seu oficio de poetar, est apoiado em seu trabalho com a linguagem e que sua fora est na linguagem, linguagem essa carregada de significado, como ensina Ezra Pound (1995). Nessa perspectiva, cito o poeta Mallarm. Ele foi um dos primeiros a refletir sobre seu trabalho com a linguagem, afirmando no ser mais possvel pensar apenas no contedo da linguagem potica. Disse ele, em um dilogo travado com o escultor Degas, que no com idias que se fazem versos, com palavras (apud FRIEDRICH1, 1991, p. 106-7). Assim, para Mallarm, as palavras tm um peso maior que as idias, o que acaba por se configurar como o ponto fulcral do objeto da potica moderna que, deixando de lado padres de expresso potica do belo, do grandioso, abre espao para o feio, para o grotesco, a desumanizao, a obscuridade e a anormalidade.

    A palavra, passvel de compreensibilidade, d vida imaginao potica e por esta o mundo e o homem so reconhecidos, percebidos e analisados. Com a

    1 Em a Estrutura da lrica moderna, Friedrich cita a conversa entre o pintor Degas e Mallarm, o

    qual responde a Degas quando este se queixou de que lhe ocorriam idias em excesso.

  • criao, h um rompimento do limite entre o real e o imaginrio, de onde surge a imagem, componente fundamental da linguagem potica. Nesse prisma a imagem no aspira verdade. Para Octavio Paz (2003) as imagens do poeta tm sentido em diversos nveis. Para Valry (1991), ela s possvel porque o poeta se afasta de seu estado normal de disponibilidade geral e procura novos reflexos.

    Da fora da imagem potica surge a poesia. Ambas esto interligadas. O poeta pensa por imagens e traduz seus devaneios no importando o que ser revelado. Nesse mbito surge a imagem que seduz, choca e acentua o trabalho do poeta, fazendo emergir um discurso que parece vir de outro, que no daquele que se conhece. Todavia a imagem potica possui uma autenticidade, uma representao simblica e seu significado perpassa a mente tanto do leitor quanto do poeta.

    Las imgenes del poeta tienen sentido em diversos niveles. Em primer trmino, poseen autenticidad: el poeta las h visto u odo, son la expresin genuna de su visin y experiencia del mundo. (Paz, 2003, p 122)

    A poesia, suas combinaes, sua linguagem, juntam-se para a compreenso de suas manifestaes ao longo da histria literria. Nesse sentido, afirma Paz (op. cit., p. 42) que a poesia el lugar de encuentro. Poetas e crticos costumam ser cticos quando solicitados para definir poesia. Muitos deles preferem responder por meio de um aparente esvaziamento de conceitos, como o caso do poeta Manoel de Barros, que utiliza nas suas respostas um forte componente metalingstico. Ele demonstra ser capaz de se colocar no plano do crtico literrio para falar de suas obras. Em uma de suas entrevistas, explica-se da seguinte forma: Confesso que no sei explicar poesia. Sei que um verso bom por sua oralidade harmnica e por suas significaes imagticas2. Ainda

    2 Entrevista concedida professora Rosidelma Fraga Soares, que fez uma especializao em

    Lngua Portuguesa e Literatura na Unemat, campus de Alto Araguaia, em resposta a uma carta enviada pela professora contendo perguntas ao poeta, que consta como anexo na sua monografia final. A monografia intitulada O canto inslito em Murilo Mendes, Joo Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros, foi defendida em julho de 2005.

  • comentando o seu entendimento sobre poesia conclui: A poesia, para mim, sempre foi um jogo brinca. Nunca um jogo Vera. Acho que a gente precisa desaprender um pouco o que aprendeu3. Tal procedimento no ocorre apenas em entrevistas, isso tambm pode ser observado em vrios trechos de poemas da sua obra, como neste caso: Poesia no para compreender, mas para incorporar / Entender parede; procure ser uma rvore. (GEC, p. 212).

    A partir desses apontamentos, seguem estudos que versam sobre as particularidades da prosa potica. Estes comeam por mostrar as diferentes definies para o texto potico e o prosaico. Essas diferenas so baseadas, sobretudo, na negao e no contraste, as quais partem do pressuposto que tudo que existe na poesia diferente na prosa, ainda, a grande poesia a no-prosa. Octavio Paz (1990) e Paul Valry (1991) compartilham da idia de que uma das possveis diferenas est no fato que no texto potico h predominncia do ritmo e, ainda, esse ritmo potico se ope a um ritmo prosaico. Valry (Ibid., p. 172), dentre outros ensinamentos acerca dessa questo, destaca a musicalidade da poesia como mais um dos elementos que no se encontra nos textos em prosa.

    A poesia se distingue da prosa por no ter todas as mesmas obrigaes nem todas as mesmas permisses que essa ltima. A essncia da prosa parecer, ou seja, ser compreendida - ou seja, ser dissolvida, irremediavelmente destruda, inteiramente substituda pela imagem ou pelo impulso que ela significa de acordo com a conveno da linguagem. (...) Mas a poesia exige ou sugere um Universo bem diferente: universo de relaes recprocas, anlogo ao universo dos sons, no qual nasce e movimenta-se o pensamento musical. Nesse universo potico, a ressonncia prevalece sobre a causalidade, e a forma, longe de desvanecer-se em efeito, como que novamente exigida por ele. A idia reivindica a sua voz. (1991, p. 172-3)

    3 Barros apud Couto, 1993, p. 8.

  • Para Paz e Valry as diferenas entre poesia e prosa esto relacionadas a elementos tcnicos, procedimentos formais que se apresentam diante do material verbal dos textos.

    Mostrar poesia e prosa a partir do contraste entre ambas no novidade. Nos anos 20, fase urea dos formalistas russos, j se fazia com propriedade vrias afirmaes marcando essa diferenciao. Entretanto, Alexander Potebnia, citado no ensaio de Chklovski A arte como procedimento (1973, p. 39), afirma que poesia e prosa so antes de qualquer coisa fenmenos lingsticos. Nessa perspectiva, em uma das importantes obras de Tzvetan Todorov, o responsvel pela apresentao dos formalistas russos ao ocidente, As estruturas narrativas (1969), Jean Cohen afirma: a diferena entre prosa e poesia de natureza lingstica, isto , formal (Ibid., p. 68).

    A hiptese entre a diferena e semelhana dos textos em prosa e em verso um ponto de partida para analisar as poticas modernas, sua linguagem e forma. Para muitos estudiosos da potica, inclusive Todorov (1969, p 23.), a oposio entre poesia e prosa j est superada. O que permanece a tenso entre diferena e semelhana, a qual, segundo ele, poder garantir as diferenas.

    Uma das possveis explicaes para a garantia dessas diferenas est embasada na idia de que o princpio de liberdade, adquirido no romantismo, culmina num momento que modifica o esprito humano e conseqentemente a criao literria. A liberdade alcanada possibilitou ao escritor um desprendimento da composio. Ele pde criar uma atmosfera lrica em sua obra, seja em prosa ou em verso. No mbito da narrativa, essa atmosfera desencadeia ou/foi desencadeada por uma quebra nas frases ganhando ritmo. Aps obter todas as possibilidades de um texto hbrido instaurada uma escrita que se constitui e forma uma estrutura lrico-narrativa nas poticas contemporneas. Nesses textos, as frases e oraes so acrescidas de vocbulos que se coadunam imagem potica possibilitando uma narrativa cujo fluxo metaforizado.

    Para Tzvetan Todorov (Ibid., p. 71), poesia e prosa tm uma parte comum que a literatura. Tanto uma como a outra se materializam por terem como

  • componentes os mesmos mecanismos lingsticos, ou seja, ambas tm como estrutura a lngua.

    Em relao aos textos narrativos, o seu aspecto fundamental a narrao de uma histria. Nesse contexto, as narrativas estiveram presentes desde a origem do homem como parte de sua comunicao, de sua histria de vida.

    Paul Ricoeur afirma:

    Uma coletividade ou um indivduo se definiria, portanto, atravs de histrias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a prpria essncia da definio implcita na qual esta coletividade se encontra. (apud BERND, 2003, p. 19)

    Dessa maneira a linguagem da prosa acompanha o homem desde quando ele tenta se identificar como tal. Ele optou por um discurso que procurou acompanhar as mudanas sociais e que, alm disso, possibilitou a abertura para a descrio, a qual tem, nos textos narrativos, a funo de represent-lo, representar os objetos, o espao, a Histria, a sociedade. Para contar suas vivncias externas e internas, criou narradores cada vez mais aprimorados, chegando, as narrativas, a adquirirem importncia pelo modo como so contadas e no pelo que contam. Walter Benjamin assim elucida a funo do narrador:

    Sua inteno primeira no transmitir a substncia pura do contedo, como faz uma informao ou uma notcia. Pelo contrrio, imerge essa substncia na vida do narrador para, em seguida, retir-la dele prprio. Assim, a narrativa revelar sempre a marca do narrador (...). Trata-se da inclinao dos narradores de iniciarem sua estria com uma apresentao das circunstncias nas quais foram informados daquilo que em seguida passam a contar; isto quando no apresentam todo o relato como produto de experincias prprias. (1975, p. 69)

    Para Todorov, que retoma uma classificao proposta por Jean Pouillon (1974) com algumas modificaes, h trs tipos principais de narrador: o narrador

  • que sabe mais que seu personagem (a viso por trs); o narrador que sabe tanto quanto os personagens (a viso com) e o narrador que sabe menos que qualquer um deles (a viso de fora). Quanto ao modo, ele observa que h dois tipos: a representao e a narrao.

    Apoiado nas contribuies de Propp, Chklovski, Eichenbaum, esse autor teorizou sobre as estruturas intrnsecas narrativa. Em seus estudos ele faz uma abordagem sobre o tempo da narrativa, aspectos, modos, personagens e suas relaes.

    Quanto ao personagem, ele lembra da importncia do papel deste, pelo menos para a literatura ocidental clssica, contrariando a afirmao de Tomachveski (1973), o qual acreditava na no necessidade do heri numa histria como tambm em certas tendncias da literatura moderna que lhe reserva um papel secundrio.

    Os estudos de Mikhail Bakhtin (1993), em particular o texto intitulado O discurso no romance, no item o discurso na poesia e o discurso no romance do uma grande contribuio para a compreenso do significado e funo do narrador e dos personagens. Este item um dos que mais tm recebido ataques por parte da crtica literria, segundo Cristovo Tezza (2003). Bakhtin considera a poesia monolgica ou monofnica e a prosa, dialgica ou polifnica, o que caracteriza uma desvantagem da poesia para a prosa.

    O poeta definido pelas idias de uma linguagem nica e de uma nica expresso, monologicamente fechada. (...). O prosador-romancista (e em geral quase todo prosador) segue por um caminho completamente diferente. Ele acolhe em sua obra as diferentes linguagens da lngua literria e extraliterria, sem que esta venha a ser enfraquecida e contribuindo at mesmo para que ela se torne mais profunda (...). Nesta estratificao de vozes, ele tambm constri o seu estilo, mantendo a unidade de sua personalidade de criador (Bakhtin, op. cit., p. 103-4)

  • A monofonia se explica quando o poeta se afasta de outras vozes para no permitir a estas uma autonomia, fora e, com isso, ele consegue afirmar plenamente a prpria voz, a qual enftica, gestual e sonora, ou seja, to forte que requer o nosso silncio. Ao considerar o aspecto polifnico na prosa, Bakhtin (2005) d um destaque aos romances de Dostoivski, o qual, no seu entendimento, possui procedimentos formais que permitem a esse romancista levar cada uma de suas personagens a falar em voz prpria com mnimo de interferncia de parte dele como autor, cujo efeito o de criar um novo gnero. Bakhtin chama de romance polifnico, o qual apresenta pontos de vista, vozes, todos advindo do narrador. Ele destaca que Dostoievski cria no escravos destitudos de voz (...) porm gente livre, capaz de postar-se ao lado de seu criador, capaz de no concordar com ele e at de rebelar-se contra ele (Ibid, p. 4).

    Nesse prisma interessa mais o fato de como as cenas narrativas sero contadas. Isso muitas vezes requer uma transgresso da lgica estabelecida. Ainda, nas narrativas modernas, importa questionar os conceitos e regras que tentam aprisionar o discurso da prosa e, nesse sentido, um recurso bastante utilizado o da intertextualidade, um meio pelo qual um texto dialoga com outros textos. H na estrutura textual marcas que recuperam uma multiplicidade de vozes que no so controlveis pelo autor. A intertextualidade (Diana Barros, 1999) , ento, a possibilidade de encontrar num texto vrias vozes que estabelecem o dilogo de um texto com seus mltiplos intertextos.

    Pensar a diferena do texto potico para o texto prosaico requer ir muito alm de ter como ponto de partida a roupagem externa desses textos, o que pode funcionar apenas como marca de diviso. Comear a entender esses textos aceitar que poesia e prosa se atraem e que, por isso, as obras que apresentam essas mesclas trazem em si novas confluncias e novos traados para a literatura. Na concepo de Tezza (Ibid, p. 273) formas hbridas como Irene no cu, de Manuel Bandeira, o resultado da unio de recursos prosaicos que se unem para uma nova composio potica, a prova de que o ritmo e a sintaxe sonora revestem as diversas poticas contemporneas.

  • Surgem textos com forte teor lrico, os quais se apresentam como obras ousadas e trazem dentro de si algo mais do que o rompimento de marcas formais. Numerosas so as obras que trazem em seu mago a hibridez da forma e da linguagem. Nestas h que se observar uma certa despreocupao com o rigor formal e lingstico. A composio dessas obras d-se por meio de uma estrutura irregular ou completamente livre.

    Na lrica moderna a distino entre poesia e prosa no chega a ser ponto necessrio. Com isso, rompe-se a fronteira que delimitava esses textos. O texto literrio tem sido constitudo por narrativas de corteis geis que lana um olhar sobre o fazer literrio, fazer esse que questiona a si mesmo, expe e desnuda, segundo Chalhub (1998, p. 42), ou seja, tem conscincia da linguagem, da sua construo, e por poemas que renunciam a tradio formal. Em face dessa atitude, possibilitaram a prosificao do ritmo. A crtica tem optado por utilizar locues como prosa potica e poema em prosa, tudo por causa do crescente intercmbio entre prosa e poesia. Uma outra possibilidade que a dessacralizao das formas e da linguagem abriu caminho para as obras que se ergueram sobre uma nova reorganizao sinttica de elementos que compem a linguagem literria.

    Essa falta de rigor formal possibilitou ao fazer artstico explorar todas as potencialidades da lngua, da forma, e dos termos tcnicos que compem as diversas estruturas literrias. Outros componentes foram acrescentados para distanciar cada vez mais o texto das exigncias primeiras que acompanhavam a potica clssica. Essa potica tinha a tendncia de alimentar a repetio, o poeta voltava sobre os mesmos fonemas, o mesmo nmero de slabas, a mesma ordem de disposio dos lexemas, etc.

    Uma das caractersticas fundamentais perceptveis na construo do poema o fato de este ser escrito em versus, ou seja, o que retorna sobre si, ao contrrio de prorsus, que se entende como o que avana, que continua at o final da linha, como observa Salvatore D`Onofrio (1978, p. 31). No poema em prosa ou na prosa potica desconsiderado esse primeiro aspecto como tambm outros que garantam a pureza dos gneros. Para Anatol Rosenfeld (1985, p. 16) a

  • pureza em matria de literatura no necessariamente um valor positivo. Ainda refletindo a partir da suposta pureza dos gneros, o poeta polons Gombrowicz, radicado na Argentina, diz: Por que razo no gosto eu da poesia pura? Pelas mesmssimas razes que me levam a no gostar do acar puro. O acar coisa deliciosa quando se o toma no caf, mas ningum se poria a comer uma pratada de acar - seria demais (apud TEZZA, 2003, p. 68).

    Na prosa potica as obras se apresentam em forma de conto, novela ou crnica, e, num todo ou em partes permeiam-se por uma linguagem potica, alm de possuir uma viso lrica de cenrios, personagens e enredo. Toda a narrativa desses textos composta pelo ponto de vista de um eu-lrico, do eu-lrico.

    No Dicionrio de Termos Literrios, de Massaud Moiss (1999, p. 420) consta que a prosa potica surgiu no sculo XVIII, todavia foi somente no Simbolismo que encontrou o seu clima ideal. Os poemas em prosa de Baudelaire como tambm a produo literria de outros simbolistas franceses j apresentavam um discurso carregado de impresses, sugestes e imagens difusas e pictricas, o qual possua um ritmo potico diferenciado que demarcou grande parte da literatura moderna.

    nesse contexto, nesse caminho onde nada discernido conscientemente, que surge o surrealismo trazendo uma literatura em que o real e o irreal, o racional e o irracional se fundem provocando uma nova concepo de mundo atravs do inconsciente. O surrealismo est centrado na crena de uma realidade superior, na onipotncia do sonho. Esse movimento trouxe grande contribuio para a literatura dando lrica a possibilidade de afastar-se de uma preocupao esttica ou moral. Octavio Paz em Los hijos del limo (2003) analisando os poetas surrealistas esclarece:

    Para ellos la poesa no era una construccin sino una experiencia, no algo que hacemos sino algo que alternativamente nos hace y nos deshace (...) Para los surrealistas, la poesa no era contemplacin sino un medio de transformacon del mundo y de los hombres: no un re-conocimiento sino una metamorfosi. (Ibid., p. 442-3)

  • Nessa conjuno acentua-se uma busca de captar e traduzir o indizvel em linguagem, que instaurando a poesia em prosa ou a prosa potica para romper com a ordem lgica do pensamento e da relao estabelecida entre homem e mundo. A falta de estrutura fixa desses textos permite uma variao que torna esta prosa mais leve, com uma cadncia potica que capta e oferece ao leitor uma literatura imagstica, dando idia de algo inusitado.

    Na literatura modernista, particularmente na literatura brasileira, h muitos autores que experimentaram as potencialidades dos textos em prosa e em verso e procuraram estimular novas formas, como em Memrias Sentimentais de Joo Miramar (1924), de Oswald de Andrade, Amar, Verbo Intransitivo (1927), de Mrio de Andrade, para ficar em alguns exemplos.

    Para Tezza (2003) o movimento modernista brasileiro constituiu-se com uma essncia fortemente prosadora. Era preciso reinventar a maneira tradicional de ler e escrever as coisas e subverter a linguagem, opor, contrapor. Dessa forma os autores modernistas inseriram em suas obras, alm do conceito potico, a integrao entre texto e imagem, o que resultou numa nova essncia do fazer potico.

    Paz (Ibid., p. 415-6) considera que

    El modernismo llega a ser moderno cuando tiene conciencia de su mortalidad, es decir, cuando no se toma en serio, inyecta una dosis de prosa en el verso y hace poesa con la crtica de la poesa.

    Toda essa conscientizao fez com que ocorresse a fuso de diversos gneros lingsticos, desde textos oriundos de documentos histricos, jornalsticos, como tambm textos puramente lricos.

    A partir dos procedimentos anteriormente citados, os primeiros poetas modernistas e outros como Jorge de Lima, Joo Cabral de Melo Neto, constroem versos fragmentados por meio de cortes e montagens e reorganizam sintaticamente as frases. Nas obras destes poetas, desfilam metforas inslitas e imagens incomuns, o que prprio do poema e, por outro lado, perambulam personagens, cenrios que se entrelaam em narrativas, o que prprio da prosa.

  • Advinda desse novo paradigma ressoa a linguagem inicial da poesia que emerge em prosa. So poticas que se erguem tendo como material bsico as metforas do caos cotidiano do mundo que apavora e seduz.

    Contudo a prosa potica no se constitui um gnero literrio, e sim uma modalidade de como a poesia se externa. Os textos em prosa potica apresentam uma cadncia que pertence tanto poesia quanto prosa. As narrativas esto permeadas por solues poticas, tudo depende do ponto de vista do eu-lirco. A fora da prosa potica est no fato de que se respeita a descrio das cenas narrativas, as relaes de personagens, tempo, espao, mas, prevalece, sobretudo, um quadro lrico dos elementos focados.

    Com essas consideraes, chegamos prosa potica de Manoel de Barros, que no recente e no se limita aos livros utilizados neste estudo. Desde Poemas concebidos sem pecado4, lanado em 1937, a criatividade do poeta surpreende, como tambm a sua opo por no apresentar em sua potica nenhuma fronteira rgida entre o verso e a prosa.

    Em Poemas concebidos sem pecado, no poema intitulado Cabeludinho, o eu-potico conta a sua histria, do nascimento mocidade. Este se apresenta em onze partes identificadas por nmeros, onde so registrados momentos significativos de sua vida: 1. Nascimento, 2. Primeira paixo, 3. Jogos infantis, 4. A partida, 5. A escola, 6. Correspondncia familiar, 7. Iniciao poesia, 8. Iniciao sexual, 9. A academia, 10. O retorno do bugre e 11. Situao atual.

    Os poemas que compem Cabeludinho so compostos por um vocabulrio aparentemente usual, no entanto, com significaes diferenciadas. Toda a linguagem nessa potica sugere uma anormalidade, e isso colocado por meio de termos e expresses populares, alm dos criados pelo poeta. Hugo Friedrich (1991, p. 63-4) afirma que quem quer causar estranheza, surpreendendo, tem de valer-se de meios anormais.

    1.

    4 Este livro est includo no Gramtica Expositiva do Cho (poesia quase toda), editado pela

    Civilizao Brasileira, que apresenta as dez primeiros publicaes do autor.

  • - Vai desremelar esse olho, menino! - Vai cortar esse cabelo, menino! Eram os gritos de Nhanh

    2. - Em seus joelhos pousavam mansos cardeais... (GEC, p. 35-7)

    Nesse texto, envolto nas memrias de sua infncia, o eu-narrante esclarece o modo como se deu o nascimento de Cabeludinho, revela o mundo e o comportamento desse ser que parece possuir um parentesco com o personagem Macunama: No fundo do mato-virgem nasceu Macunama (Andrade, 1997,p. 9) X Sob o canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinho / bem diferente de Iracema / desandando pouqussima poesia. (Barros, p. 35).

    A exemplo de Macunama que sai de sua tribo e vai para a cidade de So Paulo, o personagem de Barros sai da distante Corumb para a cidade grande: entonces seja felizardo / l pelos rios de janeiros (GEC, p. 38). Cabeludinho, interno em um colgio, escreve uma carta a sua av:

    6. Carta acrstica: Vov aqui tristo Ou fujo do colgio Viro poeta Ou mando os padres...

    Nota: Se resolver pela segunda, mande dinheiro para comprar um dicionrio de rimas e um tratado de versificao de Olavo Bilac e Guima, o do leno.

    (GEC, p. 39)

    Tambm esta carta acrstica pode ser comparada carta que o personagem Macunama, assim que chegou a cidade grande escreve as Icamiabas. A ironia em Cabeludinho est no fato de que o menino pensa que para ser poeta e s criar rimas, como entendiam os parnasianos. com tom de

  • piada, to caro aos modernistas, que Barros trabalha fatos, evitando o pieguismo, entende Miguel Sanches Neto (1997, p. 71).

    Manoel de Barros traz nos textos que compem Cabeludinho o retrato da vida do povo pantaneiro, suas histrias e particularidades do linguajar desse povo:

    Vou no mato pass um taligrama.... / quero minha funda / vou matando passarinhos pela janela do trem / de preferncia amassa barro / ver se Deus me castiga mesmo (...) Havia no casaro umas velhas consolando Nhanh que chorava feito uma desmanchada. (GEC, p. 37-8. Grifos

    meus).

    A singularidade no modo de falar do poeta faz dele um contador das particularidades do povo da regio do pantanal. A diferencial de sua potica est no modo de como ele aborda os fatos, est em sua linguagem, que alcana uma atmosfera meldica, rtmica, o que rompe com qualquer separao que se possa fazer entre prosa e poesia.

    Nesse contexto que em Poemas concebidos sem pecado, emergem versos prosaicos e o ritmo marcante o mesmo das notcias que chamam a ateno dos habitantes das pequenas cidades. A trajetria de Cabeludinho contada como poema-notcia com o intuito de explorar ao mximo o clima de novidade que se instaura na trajetria dos relatos do menino e na arte do poeta que busca na liberdade formal, que foi posta em prtica pelos modernistas, a construo de um texto com trao renovador. Barros5 explica: quando peguei o Oswald de Andrade para ler, foi uma delcia. Porque ele praticava aquelas rebeldias que seu sonhava praticar. (...) ele me confirmou que o trabalho potico consiste em modificar a lngua (GEC, p. 324-5)

    A partir da tradio modernista Manoel de Barros ergue sua potica explorando uma realidade prpria que ganha foros de contemporaneidade. Ele

    5 Em entrevista concedida a Revista Bric-a-Brac. Essa entrevista est publicada no Livro

    Gramtica expositiva do cho no captulo intitulado Conversas por Escrito (1970-1989).

  • coloca o local e o universal em outros termos. Busca em sua origem, em suas razes, a possibilidade de modificar a linguagem e a estrutura dos textos poticos. Faz uma arte que cria mundos verbais que impulsionam o homem, a natureza e at mesmo as estruturas textuais. Ele, como um alquimista, funde um pantanal de terra e gua, funde prosa e poesia.

  • CAPTULO II - OS (DES)CAMINHOS DE UM MUNDO RENOVADO

    De que modo uma linguagem potica pode compor uma estrutura narrativa?

    Uma possvel resposta para essa indagao seria a mistura dos gneros, conforme foi discutido no captulo anterior. Segundo Bakhtin (2005, p. 106), um gnero e no o mesmo, sempre novo e velho ao mesmo tempo. O gnero renasce e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gnero.

    Os textos que compem o Livro de pr-coisas, de Manoel de Barros, rompem com a estrutura fixa da prosa e da poesia, por isso pertinente lembrar Octavio Paz (2003), para quem possvel encontrar obras que, apesar de serem escritas em prosa, possuem vrias caractersticas comuns aos textos poticos:

    Libros como Los cantos de Maldoror, Alicia em el pas de las maravilhas o El Jardn de senderos que se bifurcam son poemas. En ellos la prosa se niega a s misma; las frases no se suceden obedeciendo al orden conceptual o al del relato, sino presididas por las leyes de la imagen y el ritmo (Ibid., p. 92).

    a partir da aglutinao do texto narrativo e da poesia, que se chega a uma nova composio, no caso, a prosa potica. Ao analisar a obra de Manoel de Barros, percebe-se que tanto os seus poemas quanto a sua prosa potica possuem uma linguagem que resulta num jogo de significantes. A pujana, a (des)construo da forma nos textos que compem especificamente o Livro de pr-coisas e Memrias inventadas A infncia, demonstram a liberdade e a transcendncia da linguagem puramente descritiva, objetiva, esta ltima

  • caracterstica das narrativas que primam pela simples retratao dos espaos e personagens. Vale ressaltar que esse no um resultado alcanado apenas por Barros, o caminho de outros escritores a partir de 40, como Guimares Rosa, por exemplo.

    No Livro de pr-coisas, o oitavo do poeta6, o projeto esttico-potico que toma conta das narrativas apresenta, da estrutura ao contedo, uma marca da transgresso do autor.

    Aos olhos do leitor apresentada uma prosa potica que relata o movimento da vida no Pantanal, seu ecossistema, como tambm apresenta personagens tipicamente pantaneiros. O livro est dividido em quatro partes. Para acompanhar o leitor nessa viagem, Barros se utiliza de um narrador, um eu-lrico, que tem como ofcio revelar toda a transmutao da fauna e da flora nesse local. No mbito dessa apresentao, o narrador, na primeira parte intitulada Ponto de partida, mais especificamente no texto Anncio, deixa claro o seu propsito:

    Este no um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma anunciao. Enunciados como que constativos. Manchas. Ndoas de imagens. Festejos de linguagem. Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza. De repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas runas enfrutam. Passam louros crepsculos por dentro dos caramujos. E h pregos primaveris...(...) (LPC, p. 09, grifo meu)

    Ao dizer que no se trata de um livro sobre o Pantanal, o narrador procura mostrar ao leitor que o mesmo no deve esperar uma abordagem referencial desse ambiente. E, na seqncia, ao afirmar que seria antes uma anunciao ele parece preparar o leitor para o que h de vir. So anunciadas manchas, ndoas de imagens e festejos de linguagem para celebrar de maneira estranhada o estado potico. E a natureza transfeita pelo organismo do poeta. Ela se instaura como unidade imagtica, em perfeito estado de ebulio. Sinestesias surgem em um espao de surrealidade: sapo nu tem voz de arauto

    6 Essa obra teve a primeira edio publicada em 1985 pela Philobiblion (RJ), com capa de

    Fernando Freitas sobre detalhes de quadro de Juan Miro.

  • (smbolo metonmico da proclamao), runas enfrutam (a metamorfose anunciada), louros crepsculos por dentro dos caramujos (a viso tctil personificada prepara o entardecer), finalizando o trecho com a pungente expresso surreal pregos primaveris.

    Com tais enumeraes, o eu-narrante mostra uma busca que levar s pr-coisas. Para compreender melhor o que significa essa expresso, importante compreender o significado da palavra coisa.

    Pode-se pensar que coisa7 o existente, o evidente, o que se coloca diante dos olhos, um objeto inanimado, a realidade. Nesse caso, pode-se ver as coisas e lhes dar nomes. Isso faz com que tanto a nomeao quanto as prprias coisas despertem muito interesse em fillogos, lingistas, filsofos e poetas.

    Isaac Epstein (1986, p. 37) faz uma discusso sobre os signos imotivados (arbitrrios) e motivados. Ele questiona se h, no caso da linguagem verbal, relao entre os nomes e as coisas. Segundo o autor essa uma questo antiga, posto que Plato em um de seus dilogos, o Crtilo, descreve como Hermgenes e Crtilo pedem opinio de Scrates sobre se os nomes so dados arbitrariamente as coisas ou se h alguma correspondncia entre a realidade que designa o mesmo objeto. Para Hermgenes no h nenhum princpio para nomear as coisas seno o acordo mtuo. Para Crtilo os nomes so naturais e no fruto de uma conveno. No entendimento de Scrates as coisas so nomeadas levando em conta certos fatores motivadores e no arbitrariamente enquanto que para Epstein (Ibid., 38) mudar nomes arbitrariamente atributo de quem tem a posse exclusiva dos objetos nomeados; o sentido das palavras pertence a quem manda.

    Nicola Abbagnano em seu Dicionrio de Filosofia (2000) informa que alguns filsofos entendem a palavra coisa como representao ou idia, ou um complexo de representaes ou de idias. Para Heidegger (apud CASTRO, 1991, p. 86), a coisa ganha ser e existncia pela palavra e pela linguagem, a palavra que traz as coisas ao mundo. Ele afirma que a coisa traz em si as dimenses do cu e da terra, dos mortais e dos divinos, tudo graas palavra. Tem-se assim

    7 Foi desconsiderado aqui o amplo uso que essa palavra adquiriu em nossa lngua, assumindo a

    funo de categorias gramaticais diversas.

  • a compreenso e a revelao da coisa e por isso a interpretao fundamenta-se no a partir do sujeito, mas da realidade da prpria coisa.

    Manoel de Barros, alm de trazer muitas coisas para o seu poema, tambm faz uso freqente desse vocbulo. Observando seus versos, perceptvel uma relao de materialidade e imaterialidade na representao, uma tentativa de aproximar essas partes, palavra e coisa, o que afinal, a busca de toda poesia. Ele caminha, de certa forma, em sentido contrrio s teorias que afirmam: a palavra no a coisa, como observa Hayakawa (1972, p. 35).

    A palavra do poeta materializa literariamente as coisas e projeta imagens. No seu mundo verbal h semelhana entre a linguagem e o mundo exterior. Indo alm, na extrema singularidade do seu fazer potico, surgem palavras que aparentemente ainda no adquiriram o estatuto de smbolo, que ainda no se semantizaram a ponto de formar um contrato ou conveno na designao do existente, no contexto do universo pantaneiro, que , em grande parte, o seu universo potico. Ou seja, na potica de Barros h coisas se formam graas palavra que cria imagens do que ainda no est materializado na existncia. O resultado disso a constituio de palavras que aceitam vrias associaes, que se tornam brincadeiras feitas com letras, como os festejos de linguagem e as ndoas de imagens. O prprio poeta admite Gostava de desnomear: Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra (Barros, 1993, p. 18).

    no ambiente familiar que o eu potico utiliza, como material para o seu trabalho, sapo, homem, pantanal em relaes inusuais. Em face disso observa-se a implantao de outros materiais lingsticos, de extratos culturais que origina um processo em que mesmo que o significante esteja ausente no se perde o significado.

    Esse modo de fazer potico em Barros remete s teorias de Severo Sarduy, quando ele trata dos conceitos de metfora e proliferao. Para Sarduy esse processo

    o que consiste em obliterar o significante de um determinado significado, mas sem substitu-lo por outro, por

  • mais distante que este se encontre do primeiro, mas por uma cadeia de significantes que progride metonimicamente e que termina circunscrevendo o significante ausente, traando uma rbita ao redor dele, rbita de cuja leitura que chamaramos de uma leitura radical podemos inferi-lo. (apud Silva Leite, 2004, p. 20)

    Nesse contexto so percebidas certas associaes que podem se caracterizar com o que Sarduy denomina significante ausente: No garfo da rvore seca uma casa de amassabarro! (LPC, p. 64). O vocbulo garfo signo constitudo de um carter significativo a partir da relao entre o jogo das palavras garfo e galho. Aqui, o significado se constri mediante a motivao externa da lngua, pois ao contrastar garfo numa cadeia paradigmtica com galho percebe-se a substituio de /lho/ por /rfo/. Essa associao permite fazer uma analogia de sentido entre as duas palavras. Alm dessa analogia sonora, h o fato que tanto o garfo como o galho possuem hastes compridas, de pontas, o que os torna semelhantes quanto forma fsica; ou seja, garfo remete ao significado conceitual de galho.

    Os versos de Barros brincam com a sintaxe e a formao de palavras e atribuem, s vezes, uma significao inversa da conceitual. Nesses versos, os significantes no tm a obrigao de remeter a algum significado. Os versos manoelenses corrompem a sintaxe da significao. O que importa, para a linguagem desse eu, o que est na origem. Mas o poeta no pra a. Ele valoriza muito o que ainda ser criado. As coisas que no existem so mais bonitas. O que h de mais bonito o que est na origem de tudo. o den de novo, onde a palavra e a imagem se formam (Barros, 1993, p. 8). Por isso no cerne do Livro de pr-coisas est o anseio para ter no texto potico a palavra que d a idia de contigidade.

    Na proclamao desse mundo pr-coisal, Barros em sua prosa potica utiliza palavras que podem significar coisas diferentes, que so reorganizadas atravs dos sons, das letras, que podem representar coisas por similitude. Esses recursos criam outras palavras, outros modos sintticos, assim como tambm a palavra inaugural, a despalavra. Estas conduzem o conhecedor dessa potica a

  • um novo mundo. Para ler essa prosa potica preciso desligar-se dos sentidos restritos da palavra e aderir ao sentido metafrico da linguagem

    Como o poeta, tambm o leitor de poesia precisa descer uma escada submarina, se despedir da familiaridade dos significados conhecidos para aprender a respirar sob a gua densa dos sentidos metafricos entrelaados, obscuros, mas genunos. A recompensa a descoberta de uma nova dimenso da linguagem: menos utilitria, menos corriqueira, hermtica, (...), mas preciosa em sua recusa da simplicidade bvia e desgastada. (ANDRADE, 1996, p. 139)

    Manoel de Barros, mesmo quando usa palavras simples, apresenta algo novo que concede s palavras a condio de dizer e revelar o mundo e as relaes que nele existem. Na concepo de Bachelard (1989, p. 203) todas as palavras so chaves do universo, do duplo universo do cosmos e das profundezas da alma humana.

    Com base nisso que no Livro de pr-coisas, o narrador tudo v com o olhar de (re)descobrimento. Para Santo Agostinho (apud Bosi, 1999, p. 17), o olho o mais espiritual dos sentidos, e ainda (...) o olho capta o objeto sem toc-lo (...) constri a imagem no por assimilao, mas por similitudes e analogias.... Um exemplo desse ilusionismo do olhar a passagem bem humorada, no livro em anlise, na qual o narrador sugere aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem! (LPC, p. 13, grifo meu). possvel observar, por meio desse exemplo, a capacidade do poeta em humanizar a natureza no intuito de livrar-se de algum tipo de rigor que se poderia ter ao descrever um cenrio. O discurso aqui empregado possibilita a criao de imagens que se constituem graas capacidade de associao que o poeta possui para misturar o real, o que v ou o que est guardado em sua memria com a imaginao, que funciona como elemento gerador na composio de uma potica que procura desvincular-se do reconhecimento imediato para dar lugar fora da impresso.

  • 2.1- As trilhas encantadas do Livro de pr-coisas

    Ao analisar os captulos do Livro de pr-coisas possvel perceber, a partir de cada ttulo, a voz do narrador que conta o seu prprio trajeto. Para isso ele se distancia do texto e, modificando o relato elucidativo de uma narrativa convencional, dispensa, em alguns casos, o uso de artigos definidos e/ou indefinidos que poderiam ajudar na composio dos ttulos explicativos. Dessa forma tem-se: Narrador apresenta sua terra natal, Retrato de irmo e Lides de campear.

    Dando seqncia apresentao, como se fosse uma gradao, esse narrador revela os mais diversos cenrios. Este mesmo vocbulo, Cenrio, d nome ao captulo seguinte, o qual abriga seis narrativas: Um rio desbocado (uma engraada metfora do rio que lembra a expresso popular o rio desemboca); Agroval (neologismo que se refere a um esconderijo de seres nfimos); Vespral de chuva (uma mistura de neologismo com derivao regressiva a partir da palavra vesperal a qual, no contexto, indica o prenncio da chuva); Mundo renovado (uma recriao mtica da natureza pantaneira); Carreta pantaneira (veculo tpico do meio rural que passa por um processo de reutilizao saindo do estado de veculo de transporte ou de carga, para um estado de aparente inutilidade, passa a ter outras utilidades, serve de abrigo para animais etc.); Lides de campear (narrativa em que ironizada a idia de que o homem pantaneiro trabalha pouco) e Nos primrdios (pardia do dia da criao). Dentre as narrativas citadas acima, ser analisada, neste segundo captulo, Mundo renovado.

    Aps o captulo denominado Cenrios, aparece O personagem. Este ltimo tambm possui seis narrativas. Destas, ser analisada o texto No presente. O ltimo captulo do livro denominado Pequena histria natural, igualmente composto por seis narrativas que descrevem as atividades e modos de vida das aves e animais mais comuns do pantanal como urubus, soc-boca-

  • dgua, tatu, quero-quero, quati e a gara. Na ltima parte do livro, os elementos constitutivos do pantanal so apresentados com caracterizao bem particular. O que se tem o afastamento da descrio especular do mundo animal e de seu exotismo. Esses seres se apresentam fundamentados numa composio potica que inventa e modifica seus comportamentos, alm de nivel-los condio humana: No alto da rvore mais prxima, antes mesmo do bicho encomendar, urubu j discute, em assemblia, com os primos. (LPC, p. 79). H ainda o caso das garas, que so chamadas de vivas de Xaras. A possibilidade dessa aproximao entre o humano e o animal leva o poeta a questionar se isso no far mal a esses seres: (Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garas. Insinuando contrastes ou conciliaes? entre o puro e o impuro etc. etc. no estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre!). (LPC, p. 94).

    Esse modo de apresentar a vida natural pantaneira possibilita o desenvolvimento do conceito de que este espao encantado. Na concepo de Silva Leite (2000), pode-se considerar que um espao encantado quando ele apresenta dois aspectos: o natural e sobrenatural. No pantanal de Manoel de Barros a relao apresentada para ilustrar a essncia dos seres que l vivem possibilita, segundo Silva Leite (Ibid., p. 192) um forte substrato mtico que se compe dos espaos pantaneiros, ao mesmo tempo em que os compe. Ainda

    Um dos princpios bsicos do encantamento do espao ou da natureza ou ainda dos elementos naturais, o processo de humanizar, a antropomorfia. Os elementos da natureza recebem sempre caractersticas, sentimentos ou sensaes humanas. Carregam-se de humanidades (Ibid., p. 194).

    Todo esse processo tem como resultado a amostra de um mundo natural que se ergue mediante uma idia prpria, alcanando um novo significado, colocando-se tambm em outras esferas, a do encantamento e a do sobrenatural.

  • As paisagens e espaos pantaneiros so considerados, no entendimento de Schlter (apud Filho, 2002, p. 75), como paisagens naturais, por serem a soma de aes da natureza e da civilizao atravs do tempo. Essas aes que constroem as paisagens culturais. Para Corra Filho (op. cit., p. 77) no pantanal a paisagem altera-se de momento a momento. No mesmo stio, o aspecto surpreendido na poca das cheias no se ajustar ao verificado no decurso da seca.

    O narrador manoelense, a cada instante, modifica a fisionomia da vegetao e dos seres que l habitam. Ele recria a partir de situaes rotineiras e dos fenmenos naturais, aspectos que instauram o encantamento. De acordo com os estudos de Silva Leite (2003, p. 57), O Pantanal, (...) como espao e territrio, tem se prestado muito fortemente ao longo do tempo a uma vasta srie de construes simblicas que at certo ponto ultrapassam a sua geografia.

    Nesse contexto, o poeta, reunindo a sua percepo de natureza e conhecimento e vivncia e conhecimento da cultura na qual se insere, constri paisagens de um pantanal que se revela tambm pelas foras de entidades sobrenaturais, conforme o texto que segue:

    Pantanal muito propcio a assombraes. Principalmente lobisomens, que so uma espcie de assombrao que bebe leite. (...) Pantanal tem muitos veios para esses indumentos. Quem termina de inteirar cem anos vira serepente. Foi o caso de uma velha Honria. Outubro ela sumiu de casa (...). Dezembro apareceu de escamas na beira do vazante. Estava pisada na cacunda e os joelhos criaram casco de tanto andar no tijuco. A lngua fininha, ofdia, assoprava agora como no tempo de pegar a arca de No. (LPC, p. 54)

    No Livro de pr-coisas, segundo Maria Adlia Menegazzo (1991) o que mais fala sobre as coisas do Pantanal, o retrato da paisagem instaura a possibilidade de um cotidiano hbrido, que abarca encantamento, deuses e mitos religiosos. Nicola Abbagnano (2000) traz que Deus a natureza do mundo. Por

  • meio dessa unio no h distino entre divindade e Deus. Ento, a natureza pantaneira que compem esse livro no obra de um nico ser superior, que tudo faz e pode. Esse mundo natural encantado. A materializao do espao pantaneiro representa que houve a unio de Deus e de outras divindades, eles so os responsveis pelo princpio animador do mundo e das coisas, dos seres desse mundo. O que se apresenta nessas narrativas que elas possuem um carter sagrado. Tudo o que l est digno de louvor, pois exigiu, para ser criado, a unio de foras divinas e mticas. Assim, o que importa ser mostrado um pantanal que nasce a partir do xtase de relevar o que mido, insignificante, o cisco e o cho, a larva, elementos sublimados e ressignificados na lavra potica.

    Dentro do captulo O personagem est o Livro de pr-coisas, constitudo por sete pginas, com poemas denominados Gags (poemas piada com comentrios analticos). H, no captulo em questo, um livro dentro de outro, ou seja, poesia dentro de poesia. Esses poemas, em outras variantes, alguns prximos aos ditados populares, indicam que a poesia ainda est em estado latente, que ir se expressar graas s mos do poeta artfice.

    Esses textos podem ser considerados como metapoesia. A maneira como feita a diviso dessas breves narrativas poticas, versos compostos por perodos curtos e outros, mais longos, configura-se como novidade. como se o poeta privilegiasse as composies menores, ainda iniciadas, como as pr-coisas, com o intuito de retirar delas seu poder significativo. No por acaso o uso do prefixo pr parece remeter a um estado anterior coisa, a um estado puro da palavra. A desmaterializao da palavra ocorre quando perde a relevncia de coisa. O prprio autor esclarece: pr-coisas como o que vem antes das coisas se manifestarem na existncia da individualidade (apud Castro, 1991, p. 43.).

    Tambm as narrativas do Livro de pr-coisas, como um todo, tratam de uma pesquisa ao redor dos seres ainda em estado primrio e, por meio dessa pesquisa, o poeta apresenta um Pantanal mais ntimo, essencial, invisvel, annimo e secreto. As narrativas poticas de Barros oportunizam conhecer o cerne do Pantanal, e de embarcar em uma viagem de caminhos mltiplos e percursos sinuosos a que a linguagem e os cenrios so submetidos. Quem faz

  • essa viagem descobre que o Pantanal, na potica manoelense, no tem limites, como compreende Castro:

    A pr-coisa do objeto, do potencial, registrada na e pela apresentao dos elementos constitutivos do pantanal como regio prpria onde transfazer a natureza fcil. Esses elementos indistinguem-se dentro do projeto de Manoel de Barros, so o conjunto fermentador da vida animal-vegetal, como o agroval e os tipos humanos substratos das potencialidades a serem vividas e experienciadas. Na potencialidade originria de cada um, apresentam-se advindos do mesmo horizonte pr-coisal, tanto a terra, a gua, o brejo, os nfimos, os pssaros e os homens. (Ibid., p. 43)

    Para a construo potica, o poeta mostra tudo o que desimportante; ou seja, o que no valorizado socialmente, historicamente, pelas sociedades consumistas, partidrias do pragmatismo, doutrina de Charles Sanders Peirce (1976). Esta doutrina est embasada no argumento de que a idia que temos de um objeto qualquer soma-se a outras idias atribudas por ns a esse objeto, o que lhe atribui um efeito prtico. Partindo dessa premissa notei que, revelia dela, Barros absorve substncias para seus poemas, convidando seu leitor a conhecer um comrcio de anis de escorpio e sementes de peixe, assim como a alegria do capim, dos bagoaris e dos caramujos tortos, o agroval de vermes e tantas outras situaes que rompem e transcendem o convencionalismo potico, do que poderia ser reconhecido e decodificado.

    Na continuidade dessa narrativa desconcertante, permeada por situaes inovadoras, aparecem imagens de uma natureza transfeita, da vida pantaneira em constante transmutao, atividade essa que independe da ao humana: as coisas acontecem paradas (LPC, p. 31), conforme inicia seu Carreta pantaneira, texto analisado no terceiro captulo. Tanto o ser humano quanto os animais fazem parte desse cenrio, o qual apresenta-se reutilizado pelo poeta que parece evocar um passado distante repelido pelo progresso. O que se procura mostrar um tempo em que os elementos espcio-temporais evoluem naturalmente.

  • A partir dessas consideraes apresento alguns pequenos poemas do Livro de pr-coisas:

    Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem (LPC, p. 59).

    Neste poema de um nico verso h uma comparao que aproveita parte do conhecimento natural, no caso o aspecto funcional das minhocas. O que singulariza o verso em si o fato de elas serem apresentadas oxigenando a terra, um preparo que torna frtil a terra, realizando um trabalho paciente, como o do poeta. Da mesma forma que necessitamos da terra produtiva, necessitamos da produtividade da linguagem, de que ela seja arejada, reinventada o que faz a poesia como instrumento de anlise e compreenso do mundo.

    Um outro poema bastante interessante do Livro de pr-coisas o seguinte:

    Se no tranco do vento a lesma treme, no que sou de parede a mesma prega; se no fundo da concha a lesma freme, aos refolhos da carne ela se agrega; se nas abas da noite a lesma treva, no que em mim jaz de escuro ela se trava; se no meio da nusea a lesma gosma, no que sofro de musgo a cuja lasma; se no vinco da folha a lesma escuma, nas caladas do poema a vaca empluma! (LPC, p. 59-60)

    O que h de curioso nesse poema que ele est metrificado, sendo uma dcima com versos decasslabos. Nele h uma seqncia de gradaes verbais, treme / prega / freme. Os verbos do ao poema um movimento rtmico e reforam a presena do substantivo lesma, um ser frgil, colocado no tranco do vento, e que, a partir do primeiro verso, inicia sua ao, treme / prega / freme /

  • agrega / treva / trava / gosma / lasma / escuma, at chegar ao ltimo verso, totalmente abstrato: nas caladas do poema a vaca empluma!. H a presena do conjunto de aliteraes da consoante vibrante /r/, sonoridade que resulta numa seqncia de traquinagens com a lngua. O poeta brinca de trava lngua com o leitor e cria um jogo ldico com a poesia, enquanto a poesia apresenta idias que transcendem a causalidade, criando um mundo prprio.

    O inesperado e o inslito, como o ltimo verso: nas caladas do poema a vaca empluma!, amalgamam-se para criar um conjunto de imagens que, simbolicamente, resultam em um mundo de amplas dimenses, que se torna possvel atravs da e pela palavra. Diante desse processo tem-se uma autenticidade inquestionvel quando se pensa na imagem potica. Ela nos coloca diante de uma realidade concreta. Pensando nisso, Octavio Paz, ao conceituar imagem afirma:

    designamos con la palabra imagen toda forma verbal, frase o conjunto de frases, que el poeta dice y que unidas componen un poema. Estas expresiones verbales han sido clasificadas por la retrica y se llama comparaciones, smiles, metforas, juegos de palabras (), smbolos, alegoras, mitos, fbulas, etc. () Cada imagen o cada poema hecho de imgenes contiene muchos significados contrarios o dispares, a los que abarca o reconcilia sin suprimidos. (2003, p. 114)

    Aqueles versos de Barros lembram o poema Co sem plumas, de Joo Cabral de Melo Neto. Neste, Cabral associa a imagem de um co do rio Capibaribe e, atravs de uma linguagem potica, relata a passagem do rio:

    Como o rio aqueles homens so como ces sem plumas (um co sem plumas mais que um co saqueado; mais

  • que um co assassinado.

    Um co sem plumas quando uma rvore sem voz. quando de um pssaro suas razes no ar. quando alguma coisa roem to fundo at que no tem). (1997, p. 79)

    Em Barros, a imagem inslita apresentada no verso nas caladas do poema a vaca empluma, primeira vista, entremeia o belo, pois o vocbulo emplumar relaciona-se a ornar de plumas ou penas, enfeitar-se; todavia h uma certa desarmonia no verso citado. Ocorre ento a ruptura com um quadro imagtico que prima pela beleza clssica para dar lugar a uma composio transformadora. Essa aparente desarmonia refora a postura do poeta diante do que socialmente estabelecido. Nota-se assim a predileo de Barros para criar seu texto com o auxlio de elementos abusivos para o que se pode considerar como tradio potica.

    Simbolicamente, a vaca, para os povos indo-europeus, considerada como arqutipo da me frtil e desempenha um papel csmico e divino, como traz Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 926-27). No entanto, para a nossa cultura, ela um animal desengonado, cujo nome, por exemplo, se atribudo a uma mulher, considerado ofensivo. Seu grande sentido o utilitrio, sendo que at o estrume se aproveita dela. O emprego desse termo, ento, pode ser considerado como uma nova viso do fazer potico. Entretanto, na poesia contempornea, possvel ter a idia da beleza, da harmonia e da completude que designa este animal. H, portanto, uma escolha consciente ao relacionar esse animal com o poema, lugar sagrado onde o poeta se coloca. o quimrico que alimenta essa relao, que transforma e faz a poesia assumir seu novo aspecto, aquele que oferece material estimulante que deve ser apreendido poeticamente.

    Um dos itens que caracteriza a poesia de Manoel de Barros a transformao, uma transformao que afasta a lrica da monotonia, da opresso

  • do real, como almejava Baudelaire. Alm disso, importante citar Hugo Friedrich (1991) para lembrar que Baudelaire prenunciava uma lrica que estivesse a favor das foras sonoras, impostas por contedos provenientes dos impulsos da palavra.

    Nos versos de Barros h relevncia na sonoridade dos vocbulos escuma/empluma, os quais acentuam a expressividade dos sons voclicos /e/, /u/, /a/, e, ao mesmo tempo, valorizam semanticamente o grotesco. Escuma a saliva de alguns animais, afogueados ou em clera, resultado de uma emoo interna. Na comparao de escuma com empluma h uma certa contraposio. Emplumar d a idia de enfeitar e assim, atravs desses vocbulos, tem-se o sublime versus o ordinrio e que neste poema esto representados pela ornamentao da vaca e, ao mesmo tempo, pela sensao de nojo causada no momento em que se pensa no molusco.

    O universo potico dessa lrica procura afastar-se da monotonia de uma beleza pr-estabelecida para redirecionar e experimentar a linguagem e a imagem. Nessa perspectiva exercendo verdadeiramente o seu oficio de poetar, Barros revela: a gente aceita um vocbulo no texto no porque o procuramos, mas porque ele desgua das nossas ancestralidades. O trabalho do poeta dar ressonncia artstica a esse material8.

    Tanto em Barros quanto em Joo Cabral a novidade permanece, mas no poema cabralino, socialmente, h uma denncia, pois no Co sem plumas, a imagem do rio como metfora est relacionada a detritos e lama. O arsenal potico de Cabral formado por smbolos precisos, mesmo que estes no tenham a preocupao de informar, por isso o leitor se depara com um universo criado por cima de uma realidade. As poticas desses autores estabelecem que o poeta nunca deve falar de seus sentimentos, mas sim de uma maneira que faz com que o espao do poema seja concebido como um equivalente plstico da realidade que promove um afastamento entre o poeta e o poema9.

    8 BARROS, Manoel de. Cult Revista de Literatura, So Paulo, n. 15, out. 1998. Entrevista.

    9 Trechos da introduo feita por Marly de Oliveira para o livro Museu de Tudo, 1988.

  • Em um outro momento de anlise, os poemas do Livro de pr-coisas, exemplificam a predileo de Barros em expressar-se numa linguagem infantil. Seguem os versos com esse experimento:

    Os rios comeam a dormir pela orla. (LPC, p. 60)

    Eu briguei naquele menino com uma pedra... (LPC, p. 62)

    Em linhas gerais o propsito do poeta d-se por um desligamento do convencionalismo das expresses que, por sua vez, tendem valorizao dos acontecimentos. A criao potica prxima da viso que as crianas possuem das coisas. Tal compreenso pode ser reforada a partir do momento em que se lembra que, para Barros, as crianas ensinam os poetas. H um adentramento nesse universo sublime e, atravs dele, o poeta recorre linguagem das crianas, alm de cenas de seu cotidiano infantil. Nessa perspectiva, o seu olhar infantil capta imagens como essa: Eu briguei naquele menino, promovendo uma alterao sinttica com as palavras.

    O ldico envolve a linguagem, sobretudo do artista moderno. Manoel de Barros, herdeiro dos precursores do modernismo brasileiro, apresenta, em sua potica, uma permanente liberdade na apropriao da imagem para contar um fato normal do comportamento infantil. A imagem muito mais simples e muito mais clara do que aquilo que ela explica, entende Potebnia, (apud Chklovski, 1973, p. 341).

    No segundo exemplo apontado a aparente simplicidade na cena (as brigas), materializa o profundo trabalho esttico que o menino/poeta Manoel faz com a linguagem. A fora do verbo briguei juntamente com o uso do advrbio de lugar naquele mostra a associao que o eu infantil faz para se colocar no plano do texto. Isso d a essa linguagem a possibilidade de instaurar um outro nvel semntico e lexical, um novo estatuto na linguagem.

  • Quanto ao primeiro exemplo pode-se dizer que simbolicamente, no verso Os rios comeam a dormir pela orla, o vocbulo rio d a idia de fluidez das formas, da morte e da renovao, por isso certo acreditar que o poeta d continuidade a infantilizao das palavras que provocam a renovao e o deslocamento da linguagem. Esse falar aparentemente infantil est embasado na impresso visual que a criana utiliza para se expressar e que segundo Maria Adlia Menegazzo (1991), a impresso visual primeira no leva em considerao aspectos lgico-racionais. Para a autora A linguagem infantil se aproxima em muito do automatismo psquico (...). Assim, o discurso recebe elementos compositivos de realidades diferentes, resultando em um amlgama que supera o mundo real. (Ibid., p. 183)

    Nessa tcnica h a associao dos elementos que se quer relacionar com os vocbulos conhecidos, o que demonstra a capacidade criadora das crianas. Para Jlio Cortazar (1954, p. 86) a linguagem interna metafrica, referendamos a tendncia humana para a concepo analgica do mundo e o ingresso (potico ou no) da analogia nas formas da linguagem. O primordial est na capacidade de re-criao das palavras, inaugurando novos sentidos. Isso tambm ocorre com outras publicaes do autor como no livro Exerccios de ser Criana (2001). Os versos a seguir refletem um dilogo potico entre adultos e crianas:

    No aeroporto o menino perguntou: _ E se o avio tropicar num passarinho? O pai ficou torto e no respondeu. O menino perguntou de novo: _ E se o avio tropicar num passarinho triste? A me teve ternuras e pensou: Ser que os absurdos no so as maiores virtudes da

    poesia? Ser que os despropsitos no so mais carregados de

    poesia do que o bom senso? Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com

    as crianas. E ficou sendo. (ESC, p. 1999, 2. Grifos meus)

  • O texto acima evidencia de maneira singular, a utilizao do imaginrio infantil pelo poeta. Essa imaginao provoca, na concepo de David (2004, p. 98), a no seriedade lingstica e faz surgir uma nova realidade, na qual os objetos e os fatos so sugeridos e demonstrados com propriedades distintas das que habitualmente teriam.

    Essa uma afirmao pertinente, mas, para tanto, necessrio que haja uma ntima relao entre o que se v e o que est no inconsciente da memria, necessrio uma aproximao com o objeto enfocado para mostrar uma associao possvel e transformadora. Para Bosi (1999, p. 15), a imagem nunca um elemento: tem um passado que a constituiu; e um presente que a mantm viva e que permite a sua recorrncia. A poesia apresenta-se como o terreno propcio para a construo dessa linguagem inventiva, na medida em que desenvolve um sistema que remonta aspectos presentes na linguagem e abre espao para o exerccio de proximidade.

    2.2- Revelaes de um universo mtico

    Para falar sobre revelaes de um universo mtico pertinente voltar s prosas poticas que compem o Livro de pr-coisas. Nessa obra possvel perceber as peculiaridades da potica manoelense no sentido da busca de uma linguagem que se revela telrica e inovadora. Os componentes desse reino potico, homem, fauna e flora pantaneira esto inseridos num regionalismo nada convencional, pelo contrrio, h sim um regionalismo que possui um carter artstico que cria e recria o espao conhecido. um regionalismo que transforma e une o discurso da poesia e o discurso da prosa.

    Os textos hbridos que compem a obra em questo pertencem a uma potica que se d mediante a soma do que constitui um poema, um conto e uma crnica. Essa reflexo aponta para uma seqncia narrativa que expressa, ao

  • mesmo tempo, um discurso verbal onde a voz do narrador ressoa concomitantemente do poeta.

    O estudo analtico segue com o texto abaixo:

    Mundo renovado

    No pantanal ningum pode passar rgua. Sobremuito quando chove. A rgua existidura de limite. E o Pantanal no tem limites.

    Nos ptios amanhecidos de chuva, sobre excrementos meio derretidos, a surpresa dos cogumelos! Na beira dos ranchos, nos canteiros da horta, no meio das rvores do pomar, seus branqussimos corpos sem razes se multiplicam.

    O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que h ruas de gua. Sem placas sem nome sem esquinas.

    Incrvel a alegria do capim. E a baguna dos periquitos! H um referver de insetos por baixo da casca mida das mangueiras.

    Alegria de manh ter chovido de noite! As chuvas encharcaram tudo. Os baguaris e os caramujos tortos. As chuvas encharcaram os cerrados at os pentelhos. Lagartos espaceiam com olhos de paina. Borboletas desovadas melam. Bigus engolem bagres perplexos. Espinheiros emaranhados guardam por baixo filhotes de pato. Os bulbos das lixeiras esto ensangentados. E os ventos se vo apodrecer!

    At as pessoas sem eira nem vaca se alegram. E as guas irrompem no cio os limites do ptio. Um cheiro de ariticum maduro penetra as crianas. Fugiram dos buracos cheios de gua os ofdios lisos. E entraram debaixo dos foges de lenha. Os meninos descobrem de mudana formigas-carregadeiras. Cupins constroem seus tneis. E h os bentevis-cartolas nos pirizeiros de asas abertas.

    Um pouco do pasto ficou dentro dgua. L longe, em cima da peva, o ninho do tuiui, ensopado. Aquele ninho fotognico cheio de filhotes com frio!

    A pelagem do gado est limpa. A alma do fazendeiro est limpa. O roceiro est alegre na roa, porque sua planta est salva. Pequenos caracis pregam saliva nas roseiras. E

  • a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde.

    (LPC, p. 29-30)

    O ttulo, Mundo Renovado, uma metfora do Pantanal, a qual representa a vida existente nesta natureza singular. Trata-se de uma natureza que no est nos cartes postais, mas sim na imaginao de cada leitor que celebra um acontecimento potico.

    J no primeiro pargrafo percebe-se a figura do narrador, o qual ganha voz para exercer a sua funo, que a de mostrar ao leitor o seu mundo. De incio aparece um silogismo que rompe com a norma gramatical e semntica: No pantanal ningum pode passar rgua. Sobremuito quando chove. A rgua existidura de limite. E o Pantanal no tem limites. A esto pantanal x rgua / rgua x limite; sobretudo x sobremuito (ruptura morfolgica) = pantanal sem limites, e uma das causadoras desta falta de limite a chuva, confirmada pela presena restritiva do termo sobremuito.

    No segundo pargrafo h duas prosopopias marcadas por adjetivaes inabituais: ptios amanhecidos de chuva e a surpresa dos cogumelos. importante ressaltar que cogumelos so corpos sem razes, que aqui esto metamorfoseados, pois a eles so dados sentimentos humanos (surpresos). Toda a vida desses fungos se multiplica, tudo movido chuva. As frases esto sustentadas por um nico verbo, multiplicam. Esse recurso, de no priorizar os verbos e sim os substantivos, como ptio, chuva, excrementos, ranchos, canteiros, corpos, entre outros, mostra a opo pelos nomes. Essa opo acaba por revelar que o importante, nesse texto potico, no a possibilidade de ao, mas sim a opo em reforar a significao desses vocbulos. Os substantivos sustentam as frases e, ao ganharem destaque, preservam o verso de cair numa torrente banal de fatos a serem simplesmente descritos ou narrados (Santos, 2000, p. 60).

    No que concerne ao aspecto morfolgico, a pouca utilizao do uso de verbos ocorre em funo da reorganizao que sofrem as palavras, a busca de

  • uma linguagem que, tendo se erguido a partir das coisas do cho, permitem novas disposies. O que caracteriza essa linguagem no o fato de ver nela uma possvel representao, mas sim o desejo do poeta em explorar novas maneiras de ser e de dizer.

    O terceiro pargrafo iniciado com uma hiprbole metafrica: o mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Na seqncia, apresentada uma derivao imprpria, de nome para verbo: garoto com olho de descobrir. Novamente verificada a importncia do olhar como percepo, descoberta do mundo a renovao no est somente no mundo, mas na maneira com que focada. Nesse sentido, o tempo da infncia revivido pela curiosidade peculiar do olhar do garoto. atravs do seu olhar de descobrir que se originam todas as possibilidades de um mundo que experimenta e inova, pelos sentidos, a linguagem e a imagem. Chevalier & Gheerbrant, (2005, p.654) ressaltam que o olho, importante rgo de percepo smbolo de conhecimento, de percepo sobrenatural. Para eles a abertura dos olhos um rito de abertura ao conhecimento. A seqncia da narrativa no trecho garoto com olho de descobrir, mostra a necessidade da imaginao potica para enxergar as mincias dessa vida pantaneira que manobrada pelas palavras.

    Quanto chuva, ela tanta que chega a hiperbolizar expresso e contedo,s frases, animais, a prpria natureza: Choveu tanto que h ruas de gua. Sem placas sem nomes sem esquinas, diz o eu potico.

    Na construo da metfora lagartos espaceiam com olhos de paina, salienta-se a sinestesia, uma associao da viso dos rpteis (lagartos) ordem sensorial do tato, sensao causada pelo toque na paina. Os lagartos, assim como outros animais rastejantes, habitam a obra de Barros e sempre esto contribuindo para o redirecionamento de sentidos nos versos. No caso dessa expresso potica o redirecionamento se d pelo fato dos animais serem enfocados atravs de uma evaso da realidade. Essa uma considerao possvel porque, mais uma vez, o olhar possui a funo de abrir as portas desse universo que nasce de momentos epifnicos. Esses momentos so aqueles em que algo muito significativo revelado, so instantes profundos

  • para os seres: A pelagem do gado est limpa. A alma do fazendeiro est limpa. O roceiro est alegre na roa (...). Pequenos caracis pregam saliva nas roseiras. E a primavera imatura das raras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde. (LPC, p. 30)

    Ainda nesse mesmo pargrafo h uma frase que possui um interessante efeito sonoro: bigus engolem bagres perplexos. Verifica-se aqui a expressividade da consoante oclusiva /b/, que, combinada com a consoante /g/ e /p/, provocam um som explosivo na frase dando ritmo mesma. Outra vez est instaurada a metfora a qual d vida aos animais e transforma sua representao.

    Alm do aspecto fontico-fonlogico, h a estranheza da ltima frase desse pargrafo: E os ventos se vo apodrecer. Essa nova associao para o elemento da natureza vento, traduz a motivao da humanidade que toma conta da vida criada por Barros. O poeta promove novas aproximaes de termos fazendo surgir um mundo fora de regras. Por meio desses experimentos h um poder emancipatrio de manifestar o que nossa imaginao alcana. A partir dessa nova ordem estabelece-se um elo entre linguagem e imagem natural.

    O sexto pargrafo inicia-se com uma variao de ditado popular: at as pessoas sem eira nem vaca se alegram. A metfora encadeada se d no uso do vocbulo vaca, que depois se transforma em guas, em ofdios at que os meninos descobrem de mudana formigas-carregadeiras.

    No pargrafo seguinte: o ninho de tuiui, ensopado. Aquele ninho fotognico cheio de filhotes com frio!, a presena sonora da consoante labiodental /f/, som que lembra o sopro do vento, causa o desconforto dos filhotes. O que tambm chama a ateno a opo pelo vocbulo fotognico, fato esse que simboliza a procura de um instante que s importa para os que procuram registrar as imagens memorveis.

    A fotografia desse ninho fixa um momento imperceptvel, filhotes com frio, uma situao que no captada pela lente do fotgrafo. Tem-se com esse fato a necessidade de aceitarmos o carter mgico da imagem fotogrfica, como entende Roland Barthes (1990, p. 36), ademais essa possibilidade mostra que

  • Manoel de Barros enfatiza a busca por situaes que criam espaos entre o ver e o sentir.

    A presena desse ninho remete a um cenrio tipicamente pantaneiro, pois trata-se de um ninho de tuiui, ave smbolo do Pantanal mato-grossense. Mas, o que se destaca nessa frase potica o fato de o eu-narrante no vislumbrar um registro documental dos episdios. Embora ele observe com olhos de encantamento os cenrios e situaes da vida nesse sistema ecolgico, a imagem dos pssaros tremendo de frio que revelada propositalmente pelo eu. Sua percepo aponta para essa imagem e faz questo de registr-la em seus versos. Sua lente capta movimentos imperceptveis que, aparentemente, nada representam. a necessidade de designar o inesperado e o intil que vivifica os registros ausentes e evita a superficialidade do ato fotogrfico.

    No ltimo pargrafo h como que uma preparao da natureza animal, humana e vegetal, que se encontram em um mesmo nvel de humanizao: A pelagem do gado est limpa. A Alma do fazendeiro est limpa. O roceiro est alegre na roa, porque sua planta est salva. O roceiro a tem vez, porque sua planta est salva. O fechamento vem com uma metfora habilmente construda: E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde. Na composio dessa imagem h um encontro sinestsico entre a voz das araras e sua cor. bom lembrar que as araras, em sua maioria, so verdes, mas o diferencial dessa composio est no fato de que a cor verde mais freqente nas penas desses pssaros, identificam sua voz. Nesse caso h uma adjetivao incomum para a voz que exprime uma representao da estao do ano nesse mundo renovado.

    Jean Cohen (1974) esclarece que a adjetivao potica atribui cor uma exterioridade, no com sentido em si mesma, mas sempre fora do significado. Da mesma forma compreende Reis (2001, p. 75) ao constatar que na potica da escritora cuiabana Marilza Ribeiro isso se d quando considerado um cdigo especfico da natureza, o que nela mais flagrante, idia que encontramos sintetizada em outros versos que mostram uma conscincia cientfica da substancialidade da cor.

  • Retomando a frase E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde, acontece a assonncia do /a/, presente no verso narrativo, que possui, alm de um impulso sonoro, a percepo simblica da cor. Jos Lemos Monteiro (1991, p. 122) observa que a vogal /a/ pode representar algo claro, como tambm sugestiona a associao imediata com palavras que remetem a paz, liberdade, felicidade. Nesse sentido, trata-se de um processo anlogo entre a simbologia da vogal /a/ com a cor verde presente na voz das araras, situao que refora a conotao benfica que reveste a cor do som produzido por esses pssaros. Ainda, na sinestesia rachada de verde surge a juno entre a percepo da cor e o olhar. O valor destinado cor verde possui um carter mtico. A representao dessa cor benfica, o que segundo Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 940), o mesmo dos parasos almejados, o das green pastures, tambm verde como a juventude do mundo. essa qualidade em especial que desperta para a percepo, a cada instante, da reafirmao do mundo que renova e regenera a existncia do ser.

    O primor rtmico da ltima frase do texto em anlise, assim como a construo de imagens inslitas, ilustra bem a idia da lrica manoelense, a qual composta por procedimentos de subjetivao e desintegrao da realidade. Para penetrar nessa lrica necessrio estar desarmado de regras, julgamentos e verdades e devanear com o poeta. A imagem e o devaneio se formam aqum da verdade do juzo de verdade, entende Bosi (1999, p. 25), por isso o leitor deve estar aberto s emoes, para conseguir materializar a imagem construda num mundo pr-lgico que tem, segundo Barros10, medo da lucidez

    2.3- Bernardo: o personagem-mito

    A anlise da prosa potica de Manoel de Barros revela o dilogo entre o mundo real e o oriundo da criatividade do poeta. Nesse sentido, oportuno

    10 Verso retirado do livro O guardador de guas, 1989, p. 58.

  • analisar o captulo O personagem, que traz Bernardo, apresentado da seguinte forma pelo poeta:

    Bernardo da Mata um bandarra11 velho, andejo, fazedor de amanhecer e benzedor de guas. Ele aduba os escuros do cho, conversa pelos olhos e escuta pelas pernas como grilos12.

    Abro um parntese na anlise potica e entro no plano da realidade da pesquisa para dizer da minha tentativa de compreender esse ser fictcio que apareceu pela primeira vez, como foi dito, em 1985, em um dos livros em anlise - Livro de pr-coisas e, depois dessa estria, figura em todos os demais livros de Manoel, inclusive aos destinados ao pblico infanto-juvenil. Movida pela contemplao esttica em que o personagem foi inserido e literariamente criado e ampliado, resolvi buscar informaes sobre ele. Relato aqui, brevemente, essa experincia, por entender que ela tambm faz parte de um processo de assimilao do literrio, o modo como o poeta concebeu esse personagem e o modelo que o inspirou.

    Aps ter um contato maior com estudos crticos sobre a potica do autor, descobri que Bernardo da Mata e