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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SILVA, M., and VALDEMARIN, VT., orgs. Pesquisa em educação: métodos e modos de fazer [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. 134 p. ISBN 978-85- 7983-129-4. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Pesquisa em educação métodos e modos de fazer Marilda da Silva Vera Teresa Valdemarin (orgs.)

Pesquisa Em Educação - Métodos e Modos de Fazer

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Livro sobre metodologia em pesquisas da área de educação.

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  • SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SILVA, M., and VALDEMARIN, VT., orgs. Pesquisa em educao: mtodos e modos de fazer [online]. So Paulo: Editora UNESP; So Paulo: Cultura Acadmica, 2010. 134 p. ISBN 978-85-7983-129-4. Available from SciELO Books .

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

    Pesquisa em educao mtodos e modos de fazer

    Marilda da Silva

    Vera Teresa Valdemarin (orgs.)

  • PESQUISA EM EDUCAO

  • CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Luci Pastor Manzoli

    Paula Ramos de Oliveira

    Elaine Cristina Scarlatto (discente)

  • MARILDA DA SILVA E VERA TERESA VALDEMARIN

    (Orgs.)

    PESQUISA EM EDUCAO

    MTODOS E MODOS DE FAZER

  • Editora afiliada:

    2010 Editora UNESP

    Cultura AcadmicaPraa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    P564

    Pesquisa em educao: mtodos e modos de fazer / Marilda da Silva, Vera Teresa Valdemarin (orgs.). So Paulo : Cultura Acadmica, 2010.

    Inclui bibliografi a

    ISBN 978-85-7983-129-4

    1. Pesquisa educacional. 2. Pesquisa educacional Metodologia. I. Silva, Marilda da. II. Valdemarin, Vera Teresa, 1965-.

    11-0116. CDD: 370.78CDU: 37.015.4

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

  • SUMRIO

    Apresentao 7

    1 Histria da Educao e Retrica: ethos e pathos como meios de prova 11

    Marcus Vinicius da Cunha

    2 A construo do objeto de pesquisa 47 Vera Teresa Valdemarin

    3 A Escola de Grenoble e a culturanlise de grupos 67 Denis Domeneghetti Badia

    Jos Carlos de Paula Carvalho

    4 A histria epistemolgica que se vai construindo: um relato 99

    Marilda da Silva

    5 Como se fez uma tese: entrevista com a autora, vinte anos depois 123

    Maria do Rosrio Longo Mortatti

  • APRESENTAO

    O homo academicus gosta do acabado. Como os pintores acadmicos, ele faz desaparecer de seus trabalhos os vestgios da pincelada, os toques e os retoques: foi com certa ansiedade que descobri que pintores como Couture, o mestre Monet, tinham deixado esboos magnficos, muito prximos da pintura impressionista que se fez contra eles e tinham muitas vezes estragado obras julgando dar-lhes os ltimos retoques, exigidos pela moral do trabalho bem feito, bem acabado, de que a esttica acadmica era a expresso. Tentarei apresentar estas pesquisas na sua grande confuso: dentro de certos limites, claro, pois sei que, socialmente, no tenho tanto direito confuso como vocs [...] (Bourdieu, 1989, p.19).

    A origem deste livro fundamenta-se na ideia de Pierre Bourdieu que consta da epgrafe. claro, muito mais modesto, tendo em vista a envergadura da inspirao. Seu objetivo tornar pblicas refle-xes, ensaios e relatos acadmicos sobre os intrincados processos desenvolvidos para a consolidao de linhas de trabalho e formao de novos pesquisadores. Para isso, reunimos autores vinculados ao Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar da Faculdade

  • 8 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    de Cincias e Letras de Araraquara/Unesp, convidamos a Profes-sora Maria do Rosrio Mortatti, do Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Cincias de Marlia/Unesp e apro-veitamos a oportunidade criada pelo Programa de Publicaes Di-gitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Unesp, dadas as pos-sibilidades que oferece para que essas contribuies cheguem aos leitores visados: aqueles que esto iniciando atividades de pesquisa.

    Descrever metodologia de pesquisa, elencar procedimentos e justificar sua utilizao constitui elementos necessrios para plei-tear ingresso em programas de ps-graduao por meio dos quais se avalia se o candidato expressa preocupaes com os modos mais pertinentes para desenvolver suas intenes; as agncias de fomen-to valem-se dos mesmos critrios para avaliar a viabilidade de o trabalho chegar aos resultados pretendidos; as editoras fornecem grande variedade de obras dedicadas ao tema indicando tratar-se de uma demanda dos leitores; as instituies formadoras oferecem cursos e disciplinas dedicados a essas discusses. So, portanto, diferentes manifestaes da importncia e da dificuldade do tema aqui abordado.

    Juntando esforos coletivos, pretendemos afirmar a importn-cia dessa discusso e o entendimento de que a pesquisa se desenvol-ve por um conjunto de regras ou passos validados pela comunidade cientfica que objeto de transmisso formalizada; procuramos tambm evidenciar a variedade de procedimentos pertinentes esta-belecidos mediante diferentes perspectivas de anlise e de objetos postos para a investigao; esperamos, ainda, exemplificar que a metodologia comporta apropriaes pessoais de seus usurios que, tomando-a para si, transformam um conjunto de regras prescritas em um instrumental analtico para a construo de interpretaes originais. Da decorre a escolha dos autores e os respectivos relatos dos modos de uso crivados pela experincia acadmica e pela inten-cionalidade que a ela dedicaram.

    Marcus Vinicius da Cunha descreve a opo pela anlise retrica do discurso como conjunto de procedimentos metodolgicos por meio do qual foi consolidado um grupo de estudos. Posicionando-

  • PESQUISA EM EDUCAO 9

    se a favor da adoo de regras a presidir a anlise de textos e fontes documentais, expe como essa opo se distancia da submisso a procedimentos tcnicos simplificados. O processo de refinamento da metodologia constitudo, ao mesmo tempo, por sua utilizao e pelo confronto com outras possibilidades, o que lhe confere rigor e abertura para o dilogo.

    Vera Teresa Valdemarin descreve como a permanncia de um tema de investigao pode sofrer anlises e interpretaes que va-riam no entrelaamento de diferentes fontes e movimentos do lei-tor. O mtodo, nesse caso, possibilita a construo do objeto de pesquisa desenhando ciclos compreensivos nos quais o aprofunda-mento implica retornos e revises, convergncias e afastamentos.

    Denis Domeneghetti Badia e Jos Carlos de Paula Carvalho descrevem e exemplificam o percurso terico-prtico estabelecido no levantamento e sistematizao do sistema de mediaes simb-licas que desenha a paisagem cultural de grupos. Cuidam ainda de estabelecer as etapas e o instrumental analtico que permite conhe-cer as estruturas antropolgicas do imaginrio da cultura organiza-cional e as heursticas da cultura emergente. Contribuem, assim, para o propsito geral do livro, evidenciando os elementos prticos do conhecimento sobre elementos abstratos.

    Marilda da Silva apresenta um metarrelato que, nos limites destas linhas, pode representar, um pouquinho, a afirmao de Bourdieu: cada um achar uma certa consolao no fato de desco-brir que grande nmero das dificuldades imputadas em especial sua falta de habilidade ou sua incompetncia so universalmente partilhadas; e todos tiraro melhor proveito dos conselhos apa-rentemente pormenorizados que eu poderei dar (Bourdieu, 1989, p.18).

    Maria do Rosrio Mortatti apresenta um exerccio original no qual exemplifica uma ousada opo metodolgica para estudos de caso e de formao de professores; em uma autoentrevista oferece ao leitor oportunidade para refletir sobre questes individuais e coletivas e apropriao inventiva de procedimentos de pesquisa em circulao na rea educacional.

  • 10 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    Em todos os textos est presente, mais ou menos explicitamen-te, o componente temporal da pesquisa em educao. So auto-res que se apropriaram de referncias metodolgicas, testando-as no percurso de construo de si prprios como pesquisadores. O que oferece alerta, incentivo e uma certa leveza na realizao dessa atividade.

    Marilda da Silva e Vera Teresa Valdemarin(Orgs.)

  • 1HISTRIA DA EDUCAO E RETRICA:

    ETHOS E PATHOS COMO MEIOS DE PROVA1

    Marcus Vinicius da Cunha2

    Teoria cientfica e teoria terica

    Pierre Bourdieu (2003, p.59) define teoria cientfica como um programa de percepo e de ao s revelado no trabalho emprico em que se realiza; difere da teoria terica, que um discurso proftico ou programtico que tem em si mesmo o seu prprio fim e que nasce e vive da defrontao com outras teorias. Construo provisria elaborada para o trabalho emprico, a teoria cientfica sugere que tomar o partido da cincia optar, asceticamente, por dedicar mais tempo e mais esforos a pr em ao os conhecimentos tericos adquiridos, ao invs de os acondicionar, de certo modo, para a venda, metendo-os num embrulho de metadiscurso.

    Acerca de como ensinar o ofcio de pesquisador, Bourdieu (idem, p.22) entende que uma parte importante da profisso de

    1 Trabalho decorrente de pesquisas subsidiadas pelo CNPq, publicado origi-nalmente em Educao e Cultura Contempornea, Rio de Janeiro, v.4, n.8, p.37-60, jul./dez. 2007. Para a presente edio, foram atualizadas as refern-cias bibliogrficas.

    2 Pesquisador do CNPq e professor associado do Departamento de Psicologia e Educao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto USP. [email protected]

  • 12 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    cientista se obtm por modos de aquisio inteiramente prticos. No se trata de renegar a teorizao, evidente, e nem seria de es-perar semelhante atitude de quem, como o socilogo francs, tanto se dedicou a elucidar o aparato conceitual de seu mtier. O que diz Bourdieu (idem, p.23) que existe um habitus cientfico, um modus operandi cientfico a ser aprendido, e que, para transmiti-lo, o mestre muitas vezes procede por indicaes prticas, como um treinador que imita um movimento (no seu lugar, eu faria assim...) ou procede por correes feitas prtica em curso e concebidas no prprio esprito da prtica (eu no levantaria essa questo, pelo menos dessa forma).3

    Essas reflexes do ensejo ao que pretendo desenvolver neste escrito, considerando uma situao delicada que se apresenta a mim, como a muitos que orientam estudantes em diversos estgios de formao, sejam graduandos, sejam ps-graduandos. Quando algum deseja ter familiaridade com nosso programa de pesquisa, boa parte de nossa tarefa consiste em discutir com o interessado aquilo que Bourdieu denomina teoria terica; outra parte, bem mais complexa, consiste em aproximar de nosso habitus cientfico o iniciante, o que exige mostrar-lhe as solues que temos dado para problemas concretos de investigao.

    Penso que nossa incumbncia, nesse ltimo setor, apresentar solues terico-prticas, uma vez que o faa assim, dessa forma e no de outra envolve um exerccio que no meramente operacio-nal. Se o que desejamos fazer emergir no outro o desejo de pesqui-sar, comprometemo-nos com a iniciao numa arte, fundindo neces-sariamente trs elementos: orientaes estritamente programticas elaboradas no dilogo com outras teorias; desenvolvimentos tcni-cos que j se mostraram eficientes; e delineamentos que so, a um s tempo, tericos e prticos, j organizados ou apenas imaginados; s se compreende uma pesquisa quando se visualiza essa conjuno.

    Com o intuito de reorganizar o terreno percorrido e incentivar novas iniciativas, elaborei recentemente um escrito de balano das

    3 Neste trabalho, todos os grifos em expresses transcritas so dos autores citados.

  • PESQUISA EM EDUCAO 13

    concepes que vinha adotando at ento (Cunha, 2005d). No pre-sente texto, darei continuidade quela reflexo, incluindo agora alguns avanos j obtidos e a indicao de certos problemas meto-dolgicos deles decorrentes. Na primeira parte, vou ocupar-me de teoria terica, e na segunda, de teoria cientfica, nos termos aqui estabelecidos a partir de Bourdieu.

    Tanto no trabalho anterior quanto neste, tenho em vista as aes do Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia (USP/CNPq), criado em 2002, cuja liderana compartilho com Tarso Bonilha Mazzotti. Os temas, as opes tericas, as tentativas de progresso metodolgico e os autores aqui mencionados fizeram parte das atividades do Grupo nos ltimos anos, compondo o qua-dro de realizaes que ora desejo socializar, com a inteno de pres-tar contas comunidade cientfica e dar margem prtica salutar do debate que caracteriza essa mesma comunidade.4

    Conforme terei a oportunidade de esclarecer, optamos pela abordagem retrica na anlise de discursos pedaggicos, buscando fundamento nas teorizaes de Aristteles e de autores contempo-rneos que o seguem. Nessa linha, considera-se que os trs elemen-tos constituintes da situao retrica logos, ethos e pathos so in-separveis, devendo ser assim analisados para que se compreenda o objeto investigado. Um dos objetivos do presente texto enfatizar a relevncia dos dois ltimos componentes, destacando as dimenses expressas no Livro II da Retrica aristoteleciana conhecido como Retrica das Paixes.

    A opo pela retrica

    Em Recontextualizao e retrica na anlise de discursos pe-daggicos (Cunha, 2005d, p.195), considerei que as pesquisas

    4 O Grupo composto por pesquisadores de vrias instituies de ensino superior (ver o Diretrio dos Grupos de Pesquisa do CNPq www.cnpq.br). Aqui, tra-tarei apenas dos desenvolvimentos feitos pelo ncleo da USP de Ribeiro Preto.

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    de nosso Grupo como muitas outras, em Histria da Educao consistem essencialmente em analisar textos; e que um texto, uma vez publicado ou feito para publicao, cumpre a funo de estabelecer a comunicao do autor com seus eventuais leitores, sendo precisamente isso o que o torna uma pea de discurso, isto , um conjunto de enunciados que constituem significados numa relao de interlocuo, o que supe a existncia de um auditrio a ser mobilizado.

    Por mais hermtica e cientfica que seja a linguagem, por mais terica e programtica que seja a mensagem, o destino de um tex-to sempre a comunicao com os leitores. Essa necessidade de mobilizar um auditrio o que explica o processo que chamo de recontextualizao, que o remanejamento de ideias de um ou mais autores, na composio de um escrito que veicula uma tese; recontextualizar apropriar-se, reordenando e, muitas vezes, res-significando concepes alheias para atingir os leitores e, com isso, aumentar a possibilidade de o pblico assumir atitudes positivas ante as proposies do texto (idem, p.195).

    No mesmo trabalho, considerei tambm que este ponto de vista acerca de nossos objetos de investigao nos coloca inevitavelmente no campo da retrica cujos estudos tm larga tradio, desde Aris-tteles at o sculo XX, culminando no Tratado da argumentao de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002) e no livro Os usos do argumento de Toulmin (2001), obras que elegemos como os principais apoios terico-metodolgicos de nosso Grupo de Pesquisa. Assumimos a retrica como instrumento de anlise de discursos pedaggicos por causa de sua adequao a reas que se acham abertas deliberao e discusso, como so as cincias, em geral, e a pedagogia, em particular.

    Por que a retrica?

    Uma referncia crucial para o Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia foi o ensaio introdutrio ao livro Relaes de fora, em que Carlo Ginzburg (2002, p.45) defende que

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    o conhecimento (mesmo o conhecimento histrico) possvel e pode ser construdo por meio da anlise retrica. Esse trabalho do pensador italiano, publicado originalmente em 2000, demarca uma tomada de posio no campo historiogrfico, podendo ser lido como contraponto a um estudo anterior, de sua autoria, que teve certo impacto em nossa rea h alguns anos. Refiro-me a Sinais: razes de um paradigma indicirio,5 do livro Mitos, emblemas, sinais, coletnea de textos produzidos entre 1961 e 1984, cuja pri-meira edio brasileira data de 1989.

    Segundo explica Ginzburg (2003, p.7), Sinais um ensaio que pode ser lido como uma tentativa de justificar em termos hist-ricos e gerais um modo de fazer pesquisas. Ao que parece, o escrito resultou de uma necessidade sentida pelo autor em determinado momento de sua trajetria, pois afirma que, com ele, pretendia subtrair-se aridez do racionalismo e aos pntanos do irracio-nalismo, inserindo-se no mago de um projeto ingenuamente ambicioso que visava dar resposta a tal dicotomia. Quando o livro veio a lume, em 1986, Ginzburg declarou estar ainda enredado nesse mesmo projeto.

    Sinais traz uma interpretao acerca de como se investigam eventos que no se mostram imediatamente ao investigador. O procedimento do historiador, ento, pauta-se em um paradigma que Ginzburg (2003, p.170) chama genericamente de venatrio, divinatrio, indicirio ou semitico, conforme o caso, anlogo do mtodo comum a Morelli, Freud e Conan Doyle,6 como tambm do gesto talvez mais antigo da histria intelectual do gnero humano:

    5 Em nota, Ginzburg (2003, p.143, 260) esclarece que emprega o termo para-digma na acepo de Thomas Kuhn em A estrutura das revolues cientficas, sem as distines e especificaes posteriormente introduzidas pelo prprio autor no ps-escrito de 1969.

    6 Ginzburg faz analogia, respectivamente, com um mtodo de averiguar a auto-ria de um quadro por meio de pormenores usualmente negligenciveis; com a estratgia psicanaltica de interpretar sintomas como resduos reveladores do inconsciente; e com a tcnica de desvendamento de crimes utilizada por Sher-lock Holmes, que leva em conta indcios imperceptveis maioria das pessoas.

  • 16 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    o do caador agachado na lama, que escruta as pistas da presa (idem, p.154); o historiador assemelha-se tambm ao mdico, que utiliza quadros nosogrficos para analisar o mal especfico de cada doente comparao que atribui ao conhecimento histrico um carter indireto, indicirio, conjetural (idem, p.157).

    Para Ginzburg (idem, p.156-7), so indicirias as disciplinas eminentemente qualitativas, que tm por objeto casos, situa-es e documentos individuais, enquanto individuais, e, justamente por isso, alcanam resultados que tm uma margem ineliminvel de casualidade; por isso, a elas no se aplicam os critrios de cientifi-cidade dedutveis do paradigma galileano, cuja mxima estabelece que do que individual no se pode falar. A histria nunca se tornou uma cincia galileana porque, mesmo fazendo referncia, explcita ou implicitamente, a sries de fenmenos comparveis, sua estratgia cognoscitiva e seus cdigos expressivos jamais deixaram de ser intrinsecamente individualizantes (mesmo que o indivduo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira).

    O paradigma indicirio, que pode ser usado para elaborar formas de controle social sempre mais sutis e minuciosas,7 pode tambm se converter num instrumento para dissolver as nvoas da ideologia que obscurecem uma estrutura social como a do ca-pitalismo maduro, afirma Ginzburg (2003, p.177); se a realidade opaca, existem zonas privilegiadas sinais, indcios que permi-tem decifr-la. Por essa via, a perspectiva indiciria penetrou nos mais variados mbitos cognoscitivos, modelando profundamente as cincias humanas.

    A orientao galileana ps as cincias humanas no desagrad-vel dilema entre assumir um estatuto cientfico frgil para chegar a resultados relevantes e assumir um estatuto cientfico forte para chegar a resultados de pouca relevncia. Diante disso, Carlo Gin-zburg (idem, p.178) finaliza Sinais com uma indagao bastante

    7 Ginzburg (2003, p.171-7) refere-se ao desenvolvimento de meios para identi-ficao de indivduos acusados de crime, como a tcnica do registro de impres-ses digitais.

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    perturbadora: pode um paradigma indicirio ser rigoroso? Sua resposta no menos perturbadora, pois o mximo que faz aludir a um rigor flexvel, no qual as regras no se prestam a ser forma-lizadas nem ditas; mais ainda, sugere que o ofcio de conhecedor ou de diagnosticador no se aprende por meio de regras pree-xistentes, pois o que est em jogo so elementos imponderveis: faro, golpe de vista, intuio (idem, p.179).

    Ginzburg (idem, ibid.) quase se abstm escrupulosamente de empregar esse termo minado, mas parece no conseguir evit-lo: existe uma intuio baixa, assim como existe uma intuio alta. Na antiga fisiognomonia8 rabe, chamava-se firasa a capacidade de passar imediatamente do conhecido para o desco-nhecido, na base de indcios; o termo era empregado para designar tanto as intuies msticas quanto as formas de discernimento e sagacidade, denominando, nesta ltima acepo, o rgo do saber indicirio.

    Ginzburg (idem, ibid.) tenta amenizar o desconforto gerado pela pergunta quanto ao rigor do mtodo indicirio, garantindo que essa intuio baixa no guarda nenhuma relao com a intuio suprassensvel dos vrios irracionalismos dos sculos XIX e XX. Mas Sinais termina afirmando que a tal intuio e, afinal, a estratgia indiciria que nela se sustenta vincula estreitamente o animal homem s outras espcies animais. Com isso, o autor no supera ao contrrio, fixa o distanciamento entre rigor cientfico e rigor flexvel, escolhendo para as cincias humanas o caminho da intuio e da ausncia de regras, ainda que mnimas, para o trabalho do historiador.

    nesse aspecto que considero perturbadora a concluso do en-saio, pois nenhuma argumentao convincente oferecida para estabelecer diferenas entre o paradigma indicirio e os irracionalis-mos a que se refere o autor. Seria esse o motivo por que Ginzburg, quando da publicao do livro, tratou seu escrito como parte de um projeto ingenuamente ambicioso, no que tange ao dualismo entre

    8 Arte de conhecer o carter de uma pessoa por meio de seus traos fisionmicos.

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    racionalismo e irracionalismo, vendo-se nele ainda enredado? Ou ser que considerava aquela dicotomia ineliminvel, donde a ingenuidade de seu projeto, como de qualquer outro da mesma natureza?

    Penso que, ao desenhar os traos do paradigma indicirio, Ginz-burg colocou a historiografia em um campo minado, dentro do qual no se pode identificar nenhum tipo de prova, uma vez que, depen-dente das veleidades de um processo intuitivo, a pesquisa situa-se na vizinhana do mstico, do sagaz, do impondervel, do mgico. Uma desagradvel sensao impe-se contra a esperana de pro-duzir conhecimentos confiveis: seguindo os caminhos indicirios, h como se esquivar de que a histria no passa de um exerccio estilstico dedicado a romancear eventos? H critrios, nessa rea, para ultrapassar o juzo esttico sobre as tramas narrativas de um pesquisador?

    Quase quinze anos depois de Mitos, emblemas, sinais, Carlo Ginzburg publicou Relaes de fora cujo ensaio introdutrio apre-senta a tomada de posio que considero faltar em Sinais. Nesse novo escrito, Ginzburg (2002, p.45) defende, com toda nfase, que o conhecimento (mesmo o conhecimento histrico) possvel. Sua defesa, no melhor estilo acadmico, consiste em combater as tendncias que, segundo julga, tm desqualificado a relao entre histria e prova em funo da aproximao que se firmou entre his-tria e retrica.

    A reflexo fundadora dessa proximidade encontra-se no texto pstumo de Nietzsche, de 1903, intitulado Acerca da verdade e da mentira, cujo eixo a descrena no potencial da linguagem para dar conta do real. Para o filsofo, a pretenso do homem de conhe-cer a verdade, alm de ser efmera, tambm ilusria, pois tem as suas razes na regularidade da linguagem, sumaria Ginzburg (idem, p.23); e nada se pode dizer da linguagem, seno que fruto da conveno. Sero as convenes da lngua produtos do conhe-cimento, do sentido da verdade, permitindo conciliar as designa-es e as coisas, e ser a lngua uma adequada expresso de todas as realidades? indaga provocativamente Nietzsche (2005, p.10).

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    Julgamos saber algo das prprias coisas quando falamos de rvores, cores, neve e flores e, no entanto, no dispomos seno de metforas das coisas que no correspondem de forma alguma s essencialidades primordiais, responde Nietzsche (2005, p.11). Julgando que o que falamos das coisas compreende a essencialidade das coisas, conclumos que nossa linguagem expresso do real; mas, uma vez questionado esse princpio, pode-se perguntar:

    Que ento a verdade? Um exrcito de metforas, de meto-nmias, de antropomorfismos, numa palavra, uma soma de rela-es humanas que foram potica e retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixas, cannicas e vinculativas: as verdades so iluses que foram esquecidas enquanto tais, metforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido, moedas que perderam o seu cunho e que agora so consideradas, no j como moedas, mas como metal. (idem, p.13)

    Na dcada de 1970, as palavras de Nietzsche transbordaram a estrita esfera da filosofia e tornaram seu texto um dos fundadores do Desconstrucionismo, graas sobretudo argutssima leitura feita por Paul de Man, explica Ginzburg (2002, p.32). A referida inter-pretao encontra-se em Retrica de tropos (Nietzsche), no qual Paul de Man (1996, p.133) percebe que o ensaio de Nietzsche afir-ma claramente a necessria subverso da verdade pela retrica como uma caracterstica particular de toda linguagem.9 Em Retrica da persuaso (Nietzsche), que d continuidade ao mesmo tema, o au-tor acrescenta que, aps Nietzsche, nunca mais podemos ter a es-perana de conhecer em paz, nem ter a esperana de fazer coisa alguma, e menos ainda de expurgar o conhecer e o fazer, assim como sua oposio latente, em nosso vocabulrio (idem, p.150).

    9 Ginzburg (2002, p.141, 147) informa que esse trabalho foi apresentado em um congresso em 1974, com o ttulo Nietzsches theory of rhetoric, e que, em 1979, foi includo no livro Alegorias da leitura (De Man, 1996).

  • 20 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    No primeiro trabalho, Paul de Man (idem, p.137) defende que Acerca da verdade e da mentira demanda que s o artista pode conceber todo o mundo como aparncia; por isso, s ele capaz de conduzir ao sentimento de liberao e leveza que caracteriza o homem libertado das amarras da verdade referencial. A literatura revela-se, ento, como o principal tpico da filosofia, pondo-se como modelo para o tipo de verdade qual essa aspira. Mas, ao seduzir com a liberdade de suas combinaes figurativas, muito mais leves e etreas que os trabalhosos construtos de conceitos, a literatura mostra-se tambm enganosa porque assevera suas pr-prias propriedades enganosas (De Man, 1996, p.137-8). Resulta que a filosofia cai numa infindvel reflexo sobre a sua prpria destruio nas mos da literatura, assinala (idem, p.138).

    Por esse caminho, segundo Paul de Man (idem, ibid.), a pr-pria narrativa nietzschiana torna-se refm do logro retrico que denuncia, no podendo ser levada a srio, sendo no mais que o resultado de uma tolice, porque o artista-autor do texto, como artista, to vulnervel a ela como a figura de artista descrita no texto. A sabedoria do texto autodestrutiva, uma vez que a arte verdadeira, mas a verdade mata a si mesma. A integridade do artista-autor, no entanto, pode ser resgatada, pois a produo de uma srie de inverses retricas sucessivas, tal qual se v em Acerca da verdade e da mentira, ocasiona um efeito de suspenso entre a verdade e a morte dessa verdade.

    De Man (idem, p.139) tenta salvar Nietzsche ao atribuir-lhe uma alegoria irnica, uma natureza fundamentalmente irnica e alegrica que se estende a toda sua obra. Se o pensamento nietzs-chiano constitudo por uma alegoria de erros, h que se admitir o que difcil, reconhece Paul de Man (idem, p.141) que este um modelo de rigor filosfico. Em Retrica da persuaso, o autor retoma o assunto, destacando que a retrica autoriza dois pontos de vista incompatveis e mutuamente autodestrutivos, impondo um obstculo intransponvel no caminho de qualquer leitura ou entendimento (idem, p.156).

    Nesse mesmo trabalho, a operao de salvamento de Nietzsche tem ento continuidade, objetando Paul de Man (idem, p.156), pri-

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    meiramente, que a desconstruo da metafsica, ou da filosofia, uma impossibilidade por ser literria, o que no resolve o pro-blema da relao entre literatura e filosofia em Nietzsche; mas, em seguida, o autor finaliza com a afirmao de que a perspectiva nietzs-chiana tem a vantagem de oferecer um ponto de referncia relati-vamente mais confivel a partir do qual se pode formular a questo.

    Carlo Ginzburg (2002, p.39) no se deixa convencer pelas tenta-tivas de Paul de Man, pois discorda da natureza retrica da verdade e da verdade cientfica, do modo como se apresenta na tese descons-trutivista, toda ela centrada na incompatibilidade entre retrica e prova, na tcita aceitao daquela interpretao da retrica oriunda de Nietzsche. Para Ginzburg (2002, p.40), o problema da viso nietzschiana est no que acabou por colocar de lado: a Retrica de Aristteles; foi em funo desse esquecimento que o movimento de redescoberta da retrica e da retrica de Aristteles em particular teve repercusso to inexpressiva nas discusses contemporneas acerca da metodologia da histria.

    Relaes de fora integra essa tradio de redescoberta de Aris-tteles, cujos desenvolvimentos vieram contrariar a interpretao escolstica predominante at o sculo XIX, especialmente por in-fluncia de Brentano, como informa Berti (1997, p.19). A viso predominante conciliava o estagirita com o pensamento cristo, as-sociando sua filosofia concepo univocizante de uma cincia nica do ser, exatamente a cincia do ser enquanto ser, na qual o pensamento cientfico admitido unicamente como procedimento dedutivo (idem, p.61). Na Inglaterra, no incio do sculo passado, porm, floresceram novas interpretaes, com George Moore e o segundo Wittgenstein, com estudos sobre a linguagem comum ou ordinria, no-cientfica, abordando a tica, a poltica e a esttica, entre outros temas aristotelecianos (idem, p.140).10

    10 Contriburam para esse movimento os estudos de J. L. Austin, cuja teoria dos atos da fala exibe ntida influncia da Retrica e da Potica de Aristteles (Berti, 1997, p.155-6), bem como os Symposia Aristotelica organizados a partir de 1957 por iniciativa de G. Owen (idem, p.158).

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    De acordo com Berti (idem, p.159), uma das vertentes desse movimento dedicou-se compreenso dos diversos significa-dos das palavras, por intermdio dos instrumentos da dialtica aristoteleciana. nesse registro que se incluem as contribuies de Cham Perelman (1999), dentre as quais se destaca o Tratado da argumentao, cujo projeto consiste em desenvolver uma metodolo-gia de anlise fundamentada nas provas que Aristteles chama de dialticas, examinadas por ele nos Tpicos, e cuja utilizao mostra na Retrica (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2002, p.5).

    A reflexo perelmaniana contraria a viso oriunda do paradig-ma cartesiano, segundo a qual a razo totalmente incompetente nos campos que escapam ao clculo, do que decorre que, quando nem a experincia, nem a deduo lgica fornecem a soluo de um problema, s resta ceder s foras irracionais, aos nossos instintos, sugesto e violncia (idem, p.3). Nessa linha criticada por Perelman, s se consideram as provas que Aristteles quali-ficava de analticas, pois todos os outros meios no apresentam o mesmo carter de necessidade; a reduo da lgica lgica formal d exclusividade aos meios de prova das cincias matemticas, re-sultando na tese de que os raciocnios alheios ao campo puramente formal escapam lgica e, com isso, tambm razo (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2002, p.2-3).

    Coincidentemente com o pensamento de Perelman, Ginzburg (2002, p.44) enfatiza o vnculo entre histria, retrica e prova, com o propsito de despertar uma nova concepo acerca das fontes his-toriogrficas: As fontes no so nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a viso, como pensam os cpticos: no mximo poderamos compar-las a espelhos deformantes; e a anlise da distoro especfica de qualquer fonte implica j um elemento construtivo. Os trabalhos que compem Relaes de fora destinam-se justamente a mostrar que essa cons-truo no incompatvel com a prova (idem, p.44-5).

    Tal qual na proposta de Perelman, o alicerce terico de Gin-zburg Aristteles. No primeiro ensaio do livro, o autor remete novamente crtica iniciada no texto introdutrio, dessa vez focali-

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    zando as teses de Roland Barthes e Hayden White que, embora no coincidentes, remontam igualmente a Nietzsche: a historiografia, assim como a retrica, se prope unicamente a convencer; o seu fim a eficcia, no a verdade; de modo semelhante a um romance, uma obra historiogrfica constri um mundo textual autnomo que no tem nenhuma relao demonstrvel com a realidade extra-textual qual se refere, resume Ginzburg (idem, p.48).

    na Retrica de Aristteles que se pode encontrar resposta a esse posicionamento ctico, afirma Ginzburg (idem, p.49), pois ali o filsofo identifica, na retrica, um ncleo racional: a prova, ou melhor: as provas. O pensador italiano busca apoio em Arnaldo Momigliano que, em um escrito de 1981, j alertava que White e outros estudiosos retiravam dos horizontes do historiador a busca da verdade.11 Com Momigliano e Aristteles, Ginzburg (idem, p.61) declara, por fim, que encontrar a verdade ainda o objetivo fundamental de quem quer que se dedique pesquisa, inclusive os historiadores; as provas, longe de serem incompatveis com a retrica, constituem o seu ncleo fundamental (idem, p.63).

    Para que a retrica?

    Uma vez delineado o sentido de nossa opo pela retrica, em perspectiva bastante ampla, pode-se perguntar agora pela serventia dessa abordagem. Por que optar pela retrica, dentre tantas alter-nativas terico-metodolgicas que se apresentam pesquisa em educao e, especificamente, em Histria da Educao? Afinal, muitas dessas alternativas tambm valorizam as fontes, a ttulo de provas, filiando-se igualmente recusa do irracionalismo, tal qual pleiteado por Ginzburg.

    Embora seja esta uma afirmao sobejamente conhecida e ra-zoavelmente aceita, no demasiado retom-la: o problema da pesquisa historiogrfica apoiada em fontes no est nas fontes, mas

    11 O escrito mencionado The rhetoric of history and the history of rhetoric: on Hayden Whites tropes.

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    nas interpretaes em torno de seus significados. Usando expres-ses de Ginzburg j mencionadas, podemos dizer que, exceo de quando se acredita nas fontes como janelas escancaradas capazes de falar por si, sem a mediao do observador, o centro da discusso metodolgica ocupado pela divergncia quanto ao posicionamen-to terico assumido pelo pesquisador ante a distoro especfica inerente a toda fonte. Em suma, o problema so as teorias que sus-tentam o esforo construtivo para converter as fontes em meios de prova.

    Esse tema foi equacionado por Tarso Mazzotti no trabalho Cincias da educao em questo, cuja primeira verso, ento indita, foi estudada por nosso Grupo de Pesquisa h alguns anos.12 O ponto de partida de Mazzotti (2006a, p.541) que as cincias de-dicadas a examinar e explicar o processo educacional so modos de ver, so teorias e, como tais, estabelecem o que deve e o que pode ser visto, aquilo que posto para ns: o objeto. Como no mbito de cada cincia existem teorias concorrentes e cada uma se considera a melhor, verifica-se, em consequncia, uma profuso de objetos, cada qual posto por uma concepo terica, do que resulta uma debandada ou disperso epistemolgica.

    A inexistncia de critrios de avaliao apartados de uma viso terica impe problemas prticos, inviabilizando, por exemplo, a emisso de juzo acerca das diversas modalidades de currculo propostas. No plano epistemolgico, a discusso remete possibi-lidade de tratar cientificamente a educao, mediante a constituio de um corpus de conhecimentos confiveis. O tema assume ex-tremada relevncia, porque, se todas as teorias tiverem igual valor de verdade, nada se poder esperar do debate entre seus defenso-res, restando aos concorrentes conquistar adeptos para suas teses, as quais assumiro o aspecto de simples doutrinas, semelhana do que se passa nas religies, o que significar o fim do debate, senten-cia Mazzotti (idem, p.542).

    12 A bem da verdade, foi no processo de discusso desse trabalho que criamos o Grupo Retrica e Argumentao na Pedagogia.

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    Diante desse quadro, solues vm sendo propostas desde o incio do sculo passado; inicialmente, pela tentativa de vincular a razo ou a racionalidade lgica entendida como um sistema de regras do bem pensar, independentes do contedo (idem, ibid.). Quando o prprio desenvolvimento da lgica incumbiu-se de mos-trar que no h porque confundir racionalidade ou razo com uma e uma s lgica, uma vez que h vrias bem formadas a serem escolhidas,13 o que se viu nas Cincias do Homem foi a insistncia na tentativa de chegar a uma teoria unificadora formal que permi-tisse tratar seus temas de maneira a restringir ao mximo o papel do pesquisador (Mazzotti, 2006a, p.543).

    Outros projetos constituram-se paralelamente, como o Estru-turalismo, que, segundo avalia Mazzotti (idem, ibid.), estabeleceu a negao do sujeito ao afirmar que as aes humanas resultam de um processo para alm ou aqum do humano, decorrente de uma estrutura que se impe aos supostos atores sociais. Na base dessa concepo encontra-se a ideia de que a lngua fala o homem, dado que o sistema lingustico se sobrepe, engloba e determina as mani-festaes empricas de seus elementos, determinando tambm, do mesmo modo, a vida humana por inteiro (idem, p.544).

    Esta reflexo permite concluir que vrias iniciativas de superar a disperso epistemolgica nas Cincias do Homem, bem como nas Cincias da Educao, tm por fundamento comum a formalizao de sistemas sejam os da lgica, sejam os reivindicados pelos es-truturalistas que impedem compreender o homem enquanto ser que elabora significados por intermdio da linguagem e os emprega para atuar no mundo, conservando e transformando seu entorno. Noutra vertente, pode-se considerar a alternativa indiciria descri-ta por Ginzburg, a qual, conforme j indiquei, exprime uma atitude avessa a qualquer possibilidade de formalizao e conduz, por seu dualismo, a um desolador vazio metodolgico.

    13 Segundo Dutra (2005, p.78), a lgica contempornea entende que os postu-lados de um sistema podem ser simplesmente noes que decidimos tomar como primitivas, cuja validade se aplica apenas no interior do prprio sistema desenvolvido, sendo, pois, a ele relativa.

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    nessa perspectiva crtica que Mazzotti prope a retrica aris-toteleciana, tal qual retomada por Perelman. Quando cada uma das teorias concorrentes participantes da disperso epistemolgica pleiteia a posse da verdade, o que h so diferentes verdades, cada qual garantida pelo consentimento de determinada comunidade cientfica. O valor da via retrica reside em viabilizar a anlise de todos os discursos em litgio, sem apelar para alguma filosofia primeira, como diz Mazzotti (2006b, p.150-1) em outro texto: Se a verdade um consenso, o que se faz relevante compreender as razes que as pessoas apresentam para adotarem este ou aquele argumento. A abordagem retrica oferece critrios que no se con-fundem com nenhuma das teorias conflitantes; as v, todas, como portadoras de verdade, passveis de serem investigadas quanto a sua efetividade, por meio dos argumentos que veiculam.

    Na primeira verso de Cincias da educao em questo, Maz zotti apresentava uma interessante alegoria sobre um grupo de cegos que se disps a conhecer um elefante, cada qual se dedicando a tocar uma parte do animal. Um deles concluiu tratar-se de algo semelhante a um coqueiro; outro, que o bicho era como um cano flexvel com orifcios na extremidade; e assim por diante, suces-sivamente, cada um deles oferecendo a sua impresso do objeto investigado. Prisioneiros de suas sensaes imediatas e afirmando seus pontos de vista como exclusivos, os homens da alegoria des-perdiavam a oportunidade de formar uma imagem concertada do elefante; se dialogassem acerca de suas percepes particulares, provavelmente chegariam a uma representao mais apropriada do objeto.

    Sendo a educao um processo que ultrapassa em muito o sen-svel, como formula Mazzotti (idem, p.541), tentar compreender o objeto por intermdio de uma s teoria aqui j definida como modo de ver cair em um infortnio ainda maior do que o dos homens da parbola do elefante. Cada agrupamento de pesquisa-dores enxerga as teorias alheias como adversrias a serem derrota-das, abandonando o dilogo que permitiria o acordo sobre o que investigam. A anlise retrica no tem a pretenso de solucionar

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    a disperso epistemolgica, mas pretende oferecer elementos para viabilizar o dilogo entre as diversas vertentes tericas que se ocu-pam com o fenmeno educacional.

    Tais elementos consistem em recursos tcnicos que permitem analisar situaes retricas, caracterizadas como aquelas em que um orador, munido de argumentos, busca obter ou aumentar a adeso de um auditrio para a tese que expe. O Tratado da argumentao de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p.6) traz uma vasta amos-tragem desses recursos, no segundo o registro da retrica antiga, definida como a arte de falar em pblico, capaz de ensinar o uso da linguagem falada, do discurso, perante uma multido reunida na praa pblica; o Tratado explica que a meta da arte oratria a adeso dos espritos a mesma de qualquer argumentao, sen-do vivel, por isso, estudar os textos impressos por intermdio dos mesmos instrumentos, ento aplicados para esclarecer as intenes persuasivas de quem escreve.

    A situao retrica envolve trs componentes: o ethos (o orador), o pathos (as disposies do auditrio) e o logos (o discurso). Na proposta perelmaniana, o autor do texto em causa visto como um orador, enquanto seus leitores assumem a posio de auditrio; o texto, em si, a expresso do discurso, em que se l a trama argu-mentativa que visa sensibilizar a audincia, apelando no s a seus componentes cognitivos, mas tambm a seus impulsos para a ao. inadmissvel, porm, dispensar qualquer um desses componen-tes, como enfatiza Mazzotti (2006a, p.545), pois fixar-se no ethos e no pathos mergulhar na psicologia do indivduo ou na do cole-tivo, fazendo desaparecer a relao de persuaso e deliberao; ater-se com exclusividade ao logos, por seu turno, significa cair no exame estrutural per se e nas aporias do formalismo.

    Com as tcnicas da retrica, o que se espera obter, primeira-mente, o esclarecimento de como so formuladas as vrias teorias educacionais, examinando cada uma delas enquanto logos, estu-dando sua articulao argumentativa nos limites do texto impresso que as veicula. Tal exame s se torna completo com a investigao

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    das configuraes do auditrio (pathos) a que se dirigem os autores, averiguando o contexto social, cultural, cientfico, ou outro, dos leitores e tambm, claro, do orador (ethos), elucidando as relaes que ali assume. S se compreende o logos perante o pathos e o ethos, pois esses trs componentes fundem-se na situao retrica, cons-tituindo a totalidade que revela no a verdade da teoria, mas sua efetividade em determinada circunstncia histrica.

    Da anlise de cada teoria, em particular, pode-se passar com-parao entre vrias abordagens tericas, verificando coincidncias e divergncias nos diversos arranjos discursivos no que tange s regras da argumentao, s estratgias persuasivas etc. Esta a con-tribuio que a anlise retrica prope para estabelecer o dilogo entre os cegos que apalpam o elefante. O domnio das tcnicas ret-ricas de anlise de discursos tericos constitui um passo elementar, acessvel a qualquer pessoa, independentemente de filiaes dou-trinrias; feito isso, todos os interessados se pem no mesmo pata-mar de discusso, munidos das mesmas ferramentas para entender o debate terico e nele tomar parte.

    Estas reflexes sugerem um novo programa de estudos no cam-po da Histria da Educao. Trata-se de tomar por objeto de in-vestigao as concepes tericas que constituem a rea, cada qual com seu modo peculiar de ver os fenmenos educacionais, cada qual instituindo uma determinada imagem da educao, e buscar compreend-las por intermdio dos recursos argumentativos que empregam para obter a adeso dos espritos, como diz Perelman. Programa possvel de ser realizado?

    A retrica como mtodo

    As consideraes feitas na primeira parte do presente estudo abrem muitas perspectivas quanto a procedimentos de anlise, im-pedindo afirmar que da abordagem retrica deriva um nico modus operandi. O Grupo Retrica e Argumentao na Pedagogia procura

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    explorar algumas dessas possibilidades, tendo por objeto o movi-mento educacional renovador, genericamente denominado Escola Nova, articulado no Brasil desde a dcada de 1920 at os anos 50. Assumimos trabalhar no registro da histria das ideias educacio-nais, tomando como fonte textos de brasileiros e estrangeiros que exerceram influncia no pensamento nacional da poca. Um des-ses autores John Dewey, cujo iderio despertou tal interesse em nossos pesquisadores que acabou constituindo uma linha quase autnoma de investigao.14

    O primeiro passo de nossos trabalhos obter uma compreenso precisa do discurso (logos) veiculado pelos textos estudados, com o objetivo de visualizar os arranjos argumentativos que empregam; para isso, servimo-nos dos recursos tcnicos sugeridos por Perel-man e Toulmin, conforme j mencionei anteriormente. No farei no presente texto a apresentao dos resultados que vimos obtendo neste setor especfico;15 darei preferncia explanao de alguns desdobramentos terico-prticos recentes em torno dos compo-nentes ethos e pathos.

    Recontextualizao, desleitura e contexto

    Uma das vertentes de pesquisa de nosso Grupo consiste em localizar nas fontes o fenmeno da recontextualizao, aqui j des-crito como o processo em que um autor, ao apropriar-se das ideias de outrem, as reordena e ressignifica em benefcio das teses que pretende difundir. A recontextualizao uma das estratgias dis-cursivas que investigamos, juntamente com outras articulaes argumentativas de um texto, por meio da anlise do discurso (logos) expresso pelas fontes representativas do objeto em causa.

    14 Conforme j informei em nota anterior, relato aqui exclusivamente as expe-rincias do ncleo de estudos sediado na USP de Ribeiro Preto.

    15 Para conhecer esse aspecto de nossas pesquisas, sugiro a leitura dos trabalhos de Mazzotti (2002), Cunha (2004, 2005b), Cunha & Costa (2006), Cunha & Sacramento (2007), Sircilli (2008), Arajo (2009) e Andrade (2009).

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    Esse procedimento, porm, muito se avizinha da perspectiva terico-metodolgica formalista, e vale reafirmar que a devida utilizao da metodologia retrica exige situar os argumentos do texto-fonte perante o auditrio (pathos) e o orador (ethos). Os dados sobre esses dois componentes da situao retrica instituem o que usualmente se denomina contexto: conjunto das condies con-cretas que responde pela configurao particular que une autor e leitores, num amplo espectro de ideias, experincias, expectativas e condutas envolvidas no cenrio da produo material e cultural da sociedade. No plano metodolgico da pesquisa, ethos e pathos operam como meios de prova, conferindo sentido e veracidade anlise do logos.

    A anlise da influncia de John Dewey no iderio educacional brasileiro serve como ilustrao desse procedimento e dos pro-blemas que dele emergem. A presena do pensamento deweyano fez-se notar durante vrias dcadas no Brasil, desde o final dos anos 20, tomando parte nos diversos debates sobre a renovao das prticas escolares. As ideias do filsofo foram introduzidas no Pas quando aqui tambm se introduzia o escolanovismo e, trin-ta anos depois, ainda davam margem a discusses (Pagni, 2000; Cunha, 2005c; Mendona et al., 2005). No decorrer desse tempo, muitos foram os intrpretes das proposies do autor, o que abre um vasto terreno para o estudo dos fenmenos da apropriao e da recontextualizao.

    Em Leituras e desleituras da obra de John Dewey (Cunha, 2007),16 defendo que nem todas as interpretaes acerca do autor levam em conta um aspecto essencial de seu pensamento, que a proposta de uma nova filosofia para superar a problemtica social e escolar contempornea. No livro Democracia e educao encon-tram-se praticamente todas as inovadoras concepes pedaggicas do filsofo; por isso, a obra pode ser lida como um tratado de pe-dagogia e, mais ainda, como um conjunto de propostas viveis para

    16 Trabalho originalmente apresentado no II Seminrio de Pesquisa sobre Cultu-ra Escolar (Universidade Federal do Paran, Curitiba, 2005).

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    a contemporaneidade. Acredito, porm, que essa seja uma leitura simplificada que desconsidera que as ideias pedaggicas ali expres-sas so limitadas pelo fato de no haver, na atualidade, uma ordem social verdadeiramente democrtica.

    A pedagogia de Dewey s aplicvel onde prevaleam relaes mtuas e igualitrias entre todos os membros da sociedade, o que exige eliminar as dicotomias que separam as classes sociais. Essas dicotomias decorrem das distines estabelecidas no mbito do trabalho, quando os que exercem atividades produtivas tm seus objetivos determinados pelos que no trabalham; enquanto os pri-meiros so instrudos para o exerccio de atividades produtivas, os segundos so educados para o lazer e a contemplao. Assim, o li-vro de Dewey no um tratado de pedagogia, no sentido usual, mas um escrito que visa introduzir um novo modo de pensar as relaes do homem com o mundo, com a inteno de desencadear aes que levem construo de uma sociedade democrtica no futuro.

    No cheguei a tais concluses pela suposio de intenes ocul-tas no autor ou pela reviso de ideias precariamente formuladas no livro; basta ler o texto at o final, sem se deixar deter pelas conside-raes estritamente pedaggicas, para perceber que Democracia e educao uma obra de crtica da sociedade e da educao contem-porneas e que seu corolrio a proposio de nova filosofia para superar o atual estado de coisas, tanto no campo escolar, quanto no social. Por isso, denomino desleitura aquele modo simplificado de entender o livro de Dewey e, de modo geral, o significado de sua contribuio filosofia e educao.

    Desleitura uma leitura que desconsidera desl parte significativa do texto, ocasionando uma verso parcial de seus pro-psitos. Quando elaborei Leituras e desleituras, ainda no sabia que a palavra fazia parte do vocabulrio de Harold Bloom, cujo livro A map of misreading, de 1975, foi publicado em portugus com o ttulo Um mapa da desleitura. Literalmente, misreading significa equvoco de leitura ou interpretao, e Bloom (2003, p.85), que es-tuda o fenmeno no ofcio dos poetas, explica que todo leitor deve

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    falsificar por meio de sua leitura os textos que l, pois toda leitura um ato arbitrrio de leitura.17

    Em linhas gerais, dou ao termo desleitura uma conotao muito semelhante de Bloom, apenas enfatizando que, para entender de-vidamente o fenmeno, devemos enxerg-lo no corpo do processo de recontextualizao. Se no h textos, apenas relaes entre os textos, como afirma Bloom (idem, p.23), acrescento que no h igualmente contexto, mas relaes entre contextos; compreender esse complexo sistema imprescindvel para investigar a apropria-o e a recontextualizao de um escritor por outro.

    Para estudar as desleituras da obra de Dewey, portanto, im-prescindvel investigar os diversos contextos dos autores que se apropriaram do pensamento deweyano no longo perodo em que o processo se deu; preciso lembrar que, nesse tempo, o Brasil conheceu, entre outros tantos eventos, dois golpes de Estado, um perodo ditatorial e a redemocratizao poltica; os efeitos da crise econmica mundial, a Segunda Grande Guerra e o perigo verme-lho; o desenvolvimento cientfico, a urbanizao e a industrializa-o. Por fim, no se pode deixar de observar como cada contexto de apropriao se aproxima ou se distancia do contexto original em que o filsofo escreveu, no que se inclui o auditrio por ele privile-giado, seja no campo filosfico, seja no cientfico, ou outro.

    Em cada uma das configuraes contextuais em que se deu a apropriao de Dewey, apresentavam-se diferentes audincias, em diferentes circunstncias polticas e culturais, perante as quais se posicionaram os diferentes intrpretes do iderio deweyano. Sem analisar esses dois elementos pathos e ethos da situao retrica, o estudo da desleitura mergulha em um vazio; focalizado exclusiva-mente no logos, torna-se simples exegese, podendo levar a pesquisa

    17 A desleitura no genuinamente perversa ou mal-intencionada, embora isso possa eventualmente ocorrer; a operao de desler uma necessidade pr-pria de determinado leitor, o poeta forte, que anseia afirmar sua singulari-dade, sua totalidade, sua verdade diante da tradio literria (Bloom, 2003, p.85); ou seja, deseja livrar-se do que, em outro texto, Bloom (2002) denomina angstia da influncia.

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    para a cena de um julgamento sobre quem leu certo, quem leu errado, dando grande abertura ao juzo ideolgico.

    Dentre as desleituras do pensamento de Dewey que tive a opor-tunidade de apresentar, destaco a do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, documento que discorre sobre o ensino profis-sional sem contemplar a proposio deweyana de superao das dicotomias que separam as classes sociais (Cunha, 2002).18 Outra desleitura flagrante identifiquei em Luiz Alves de Mattos, que, na dcada de 1950, filia o autor busca da eficincia no mbito escolar, sequer aludindo sua viso filosfica (Cunha, 1999). Cada uma dessas desleituras, como tantas outras, deve ser compreendida ante as imposies contextuais que se fazem sobre quem as elabora, no simplesmente denunciada pejorativamente como falsificao de contedos originais.

    O problema metodolgico a que me refiro pode ser visualizado em um dos primeiros estudos a analisar interpretaes do pensa-mento deweyano no Brasil. o trabalho de Ana Mae Barbosa, que, ao discutir a presena de Dewey no ensino da arte no Brasil, discor-re sobre as propostas de Nereu Sampaio incorporadas na reforma da instruo pblica do Distrito Federal, conduzida por Fernando de Azevedo entre 1927 e 1929. A autora comenta que os mtodos apresentados por Sampaio, declaradamente inspirados em Dewey, submetiam o espontneo ao racional, a atividade imaginativa do estudante perspectiva de ordenamento da mente em direo ao real, privilegiando os estgios finais do desenvolvimento cognitivo em detrimento da imaginao em si mesma (Barbosa, 1982, p.51).

    Barbosa (idem, p.52) entende que se trata de uma interpreta-o incorreta de certos aspectos da teoria de Dewey, pois o que o filsofo prescreve usar a observao da criana para aprofundar e ampliar a prpria capacidade de expresso, no para propiciar

    18 Conforme se pode ler no referido trabalho, de Luiz Antnio Cunha (2000) a hiptese de que as referncias do Manifesto ao ensino profissional devem-se a Ansio Teixeira; cabe a mim a extenso dessa hiptese a Dewey, dada a filiao do educador brasileiro s teses do filsofo.

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    uma representao realista dos objetos (idem, p.47). Para a au-tora, Sampaio, por ignorar certos desenvolvimentos deweyanos acerca de arte-educao, talvez no conhecesse ou no tenha lido com ateno Democracy and education, porque no o menciona (idem, p.51- 2).

    Neste caso e a sugesto vale para qualquer outro semelhan-te19 o que se pode perguntar se Sampaio no conhecia, de fato, o livro de Dewey, ou se conhecia e no leu atentamente. possvel, tambm, levantar a hiptese de que conhecia, sim, e que, lendo atentamente, preferiu no mencionar o que leu. Em suma, ser que no leu ou leu e no gostou? O dito popular no leu e no gostou exprime a manifestao negativa de algum sobre algo que no co-nhece; eu a parodio para introduzir a funo de ethos e pathos como meios de prova da anlise do logos.

    O ponto de partida de nossas pesquisas sempre o discurso con-tido no texto, sendo necessrio, muitas vezes, fazer comparaes entre textos, aquele que efetua e aquele que sofre a apropriao; s chegamos a concluses, porm, aps uma detida investigao do contexto do orador, bem como das relaes que estabelece com seu auditrio, o que exige um trabalho emprico de certa monta. Em situaes como a apresentada aqui, temos de verificar se o intr-prete teve acesso ao texto deslido ou, pelo menos, se teve chance de conhec-lo, em algum momento de sua vida, dada a sua formao e os demais trabalhos que escreveu.20

    Serve para ilustrar esta orientao uma pesquisa que fizemos so-bre o livro Como pensamos de John Dewey (Cunha; Ribeiro; Rassi,

    19 Ana Mae Barbosa (1982, p.35) sugere um interessante tema de pesquisa: o que explica o silncio de Ansio Teixeira diante das concepes de Dewey sobre a arte?

    20 Barbosa (1982, p.45) informa que os livros The school and society, Democracy and education e Art as experience, de 1900, 1916 e 1934, respectivamente, representam as trs fases do pensamento de Dewey sobre a arte na educao; quando Sampaio escreveu, o ltimo livro ainda no existia, mas o primeiro e o segundo j eram acessveis.

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    2007), na qual identificamos proposies deweyanas que em muito se assemelham a formulaes de Aristteles, sugerindo a ocorrncia de uma apropriao.21 Dewey, no entanto, no se refere ao filsofo de Estagira como fonte das elaboraes que apresenta; e tinha, com toda certeza, amplo conhecimento de filosofia grega, conforme se pode notar em vrios de seus escritos. Por que motivo, ento, no menciona Aristteles ao estabelecer os fundamentos de suas teses? H que se analisar, por outro lado, qual era o Aristteles conhecido e apropriado por Dewey, se o da tradio escolstica ou o que foi revelado pelo movimento de sua revitalizao iniciado no comeo do sculo passado j comentado na primeira parte deste trabalho.

    Um texto que contm apropriaes de um autor por outro traz um conjunto de enunciados que s se esclarecem perante outros que, muitas vezes no formulados, s se revelam no decorrer de uma investigao do ethos e do pathos. Nossa atitude investigativa deve espelhar-se na de quem estuda um argumento em que de-terminados enunciados so omitidos; argumentos que, por algum motivo, no trazem todas as premissas que o constituem. Uma das incumbncias de nossa pesquisa reconstruir a argumentao em sua totalidade, mediante a anlise de logoi no explicitados, tal qual se procede frente a um entimema, o silogismo da retrica, conforme explicarei adiante.

    O apelo s paixes

    Em fevereiro de 2007, o filsofo Renato Janine Ribeiro publi-cou um artigo na Folha de S. Paulo comentando a trgica ocorrncia de um menino que, dias atrs, preso ao cinto de segurana, fora arrastado por um automvel dirigido por assaltantes. O Caso Joo Hlio, como ficou conhecido, havia catalisado a opinio pblica de maneira avassaladora, gerando acaloradas intervenes de diversos intelectuais, cada qual ofertando um ponto de vista sobre o crime,

    21 Ver tambm Cunha (2005a), que analisa o livro Democracia e educao.

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    em busca de suas causas sociais, culturais, econmicas etc., de-pendendo de quem viesse a abordar o assunto.

    A polmica gerada pelo ensaio de Janine foi tamanha que, re-pentinamente, quase desviou as atenes at ento voltadas para o fato em si. O motivo, segundo o prprio filsofo analisou em novo artigo, foi a iniciativa de expor publicamente os seus senti-mentos e sua indignao diante do caso, deixando claro que sua reao ao crime inclua desejar a morte de seus autores. Em vez de oferecer uma interpretao terica do ocorrido, como os demais debatedores vinham fazendo, o filsofo afrontou uma regra: sendo normal sentir raiva, como se admite desde Freud, nos humani-zamos quando aprendemos a nos conter; conteno varrer a emoo para baixo do tapete (Ribeiro, 2007, p.4).

    Propositadamente, Ribeiro (idem, p.4) exibiu o que, segundo os cnones do discursivo acadmico, deveria ficar guardado para si e para os amigos, como ele mesmo afirma; assim, pagou o preo por dizer em alto e bom som o que muitos, no fundo, tambm sentiram. Reza a norma da sobriedade que o intelectual pensa sem paixes, ocultando sua comum humanidade, o que no , por certo, a opinio de Janine; filosofar, para ele, uma prtica que se faz no espao pblico, mas o intelectual que simula uma sobriedade que no tem s contribui para o esvaziamento e a esterilidade desse mesmo espao. O intelectual no pode dizer s o que agrada, fundamentado em princpios impecveis, dei-xando a reflexo e a ao esterilizadas por uma ciso radical entre sentir e pensar.

    Fao aluso a esse episdio para introduzir um tema relativo ao campo da retrica. Utilizando os termos que aparecem na resposta de Janine, pode-se perguntar quanto validade de argumentar fazendo uso de sentimentos e emoes, expresses de indignao e raiva, em contraponto sobriedade e conteno que se espera de um discurso fundado na razo. A profunda ciso que se estabelece entre sentir e pensar traduz a distino entre logos e pathos, levando ideia de que o discurso racional no se deixa permear por paixes.

  • PESQUISA EM EDUCAO 37

    A palavra grega logos, que no possui correspondente nas ln-guas modernas, abrange o que expresso de razo e racionali-dade, de onde vem o significado de discurso como argumento conduzido pela razo (Reale, 2001, p.154); pathos, por sua vez, deu origem forma latina passio, de onde veio paixo, com o significado de perturbao da alma, algo ligado ao corpo ou parte da alma mais prxima da animalidade, uma impulsividade que deve ser, por isso mesmo, moderada e dominada (idem, p.195).

    na Retrica de Aristteles que encontramos abertura para modificar o juzo usual quanto disjuno entre logos e pathos, en-tre pensar e sentir. Na situao retrica, como j vimos, o discurso se faz com o propsito de persuadir uma audincia, mas isso no implica a dispensa de raciocnios articulados na forma silogstica. Conforme explica Aristteles (2005, p.112) nos Primeiros analti-cos (I, 1, 24b20), o silogismo uma forma de raciocinar por meios demonstrativos, em que se firma uma concluso a partir da simples enunciao de premissas. Para serem vlidos, os silogismos devem atender a determinadas regras, as quais, por sua vez, podem ser empregadas para verificar a solidez do prprio discurso. Assim, para atingir seus objetivos, o orador retrico no pode prescindir da ordenao racional de seus argumentos.

    O que distingue a situao retrica o emprego de um tipo es-pecial de raciocnio, o entimema, caracterizado pela possibilidade de omitir uma ou mais premissas, que no precisam ser enunciadas, porque o auditrio as conhece; conta-se, ento, com as disposies dos ouvintes, como diz Aristteles (1998, p.52) na Retrica:22

    Porque se alguma destas premissas for bem conhecida, nem se-quer necessrio enunci-la; pois o prprio ouvinte a supre. Como, por exemplo, para concluir que Dorieu recebeu uma coroa como prmio da sua vitria, basta dizer: pois foi vencedor em Olmpia,

    22 No primeiro ensaio de Relaes de fora, Ginzburg (2002, p.59) analisa esse mesmo trecho, concluindo que na Grcia do sculo IV, retrica, histria e prova estavam inteiramente interligadas.

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    sem que haja necessidade de se acrescentar a Olmpia a meno da coroa, porque isso toda a gente o sabe. (Retrica, I, 2, 1357a)

    O enunciado Dorieu sagrou-se vencedor nos jogos olmpicos carrega consigo a formulao Dorieu recebeu uma coroa como prmio. S assim, porque temos cincia da situao global do discurso, do ambiente em que feita a enunciao, o momento his-trico e cultural do orador e de sua audincia, o que inclui sabermos que todos os ouvintes tm conhecimento das regras de premiao vigentes em Olmpia.

    Afora essa particularidade, o discurso retrico idntico aos de-mais, os silogsticos, sendo regido pelas mesmas regras e princpios, em obedincia normatizao do logos. Na situao retrica, po-rm, o orador coloca em cena determinadas teses perante um audi-trio que ir julg-las, fazendo-se ento imprescindvel considerar os fatores cognitivos e racionais que compem essa audincia. Mas isso no basta, pois os componentes psicolgicos dos juzes preci-sam ser igualmente equacionados para que se obtenha o resultado almejado, como diz Aristteles (1998, p.105):

    Uma vez que a retrica tem por objetivo formar um juzo (...) necessrio, no s procurar que o discurso seja demonstrativo e fidedigno, mas tambm que o orador mostre uma determinada atitude e a maneira como h de dispor favoravelmente o juiz. Muito conta para a persuaso(...) a forma como o orador se apresenta e como d a entender as suas disposies aos ouvintes, de modo a fazer com que, da parte deles, tambm haja um determinado estado de esprito para com o orador. (Retrica, II, 1, 1377b)

    Adiante, ainda na Retrica (II, 1, 1378a), Aristteles (1998, p.106) acrescenta: As emoes so as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanas nos seus juzos. Como diz Michel Meyer (2000, p.36), o que o filsofo quer mostrar que as paixes constituem um teclado no qual o bom orador toca para convencer. Por isso, todo discurso que vise persuaso no pode dispensar o apelo ao pathos, s disposies do auditrio, o amplo

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    complexo de sentimentos e emoes da audincia, constitudo em determinado contexto.23

    Diante dessa reflexo, a pergunta que, anteriormente, fiz quan-to validade de lanar mo do pathos para persuadir, fica canhestra, na verdade; como pesquisadores, o que nos cabe analisar de que modo os oradores se valem das paixes, e no indagar quanto le-gitimidade de faz-lo. Dado que o emprego das paixes frequente e serve magistralmente para argumentar, nossa tarefa no consiste em emitir juzo de valor acerca do procedimento, mas sim estud-lo enquanto estratgia discursiva, para compreendermos de que maneira certos discursos se tornam persuasivos custa da razo ou, melhor, conjugando logos e pathos.

    Nesse tipo de investigao, temos de enfrentar, no entanto, um problema relativo ao ethos. Geralmente, os autores com os quais trabalhamos adotam um padro de escrita que rejeita qualquer exibio de sentimentos, como se pode concluir do episdio que envolveu Janine. Se as opinies acerca do Caso Joo Hlio fossem publicadas por uma pessoa estranha academia, certamente no dariam margem mesma polmica; e no fosse o autor um renoma-do e respeitado intelectual, certamente no sentiria a obrigao de vir a pblico apresentar uma reflexo em resposta s contestaes que lhe foram dirigidas por dizer o indizvel.

    Embora seja assim, possvel localizar excees, como a que analisei em um estudo sobre o Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova (Cunha, 2008). Para defender a adequao do ensino superior ao conceito moderno de Universidade, o Manifesto apela ao sen-timento que Aristteles (1998, p.121), na Retrica (II, 6, 1383a), denomina vergonha, um certo desgosto ou perturbao de esprito relativamente a vcios, presente, passados ou futuros, susceptveis

    23 Para compor seu discurso, o orador interpreta indcios que lhe so revelados, muitas vezes, pela intuio. O mesmo ocorre com o pesquisador, quando tenta evidenciar as paixes que o autor de um texto procura acionar. Os sinais, ra-zes do paradigma indicirio, conforme analisa Ginzburg, integram agora um mtodo que no os dispensa, mas no se resume a eles, como se pode ler em Relaes de fora (Ginzburg, 2002, p.57-8).

  • 40 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    de comportar uma perda de reputao. No documento de 1932, nosso atraso no Ensino Superior creditado a nossa superficia-lidade de cultura, fcil e apressada, de autodidatas, na qual esto as causas profundas da estreiteza e da flutuao dos espritos e da indisciplina mental, quase anrquica, que revelamos em face de todos os problemas (Azevedo, 1932, p.63).

    Aps a veiculao do documento pela imprensa, seu redator, Fernando de Azevedo, tomou a iniciativa de organizar um livro com a transcrio do texto original; acrescentou outros escritos e um estudo introdutrio, no qual se percebe o sentimento que Aristteles (1998, p.135) qualifica como o inverso da emulao, o desprezo (Retrica II, 11, 1388b). Retomando o tema do Ensino Superior, Azevedo (1932, p.15) diz que, diante de nossa frgil for-mao cultural, as correntes de opinio e de ideias, mal esboadas, acabaram por estagnar-se no pntano poltico, em que se ouvia, entre raras vozes profticas, o coaxar de interesses partidrios e de ideias descompassadas; todas as tentativas para aproximar o ensi-no superior do esprito cientfico foram feitas, at ento, segundo Azevedo (idem, p.16), por esforos raramente compensadores de autodidaxia e de viagens de estudos que acabavam frequentemente em viagens de recreio....

    Pode-se objetar que o Manifesto e o escrito de Azevedo no so textos acadmicos, propriamente, embora redigidos e assinados por pessoas pertencentes a essa esfera. De fato, ambos foram elabora-dos em ambiente de combate, movidos pela inteno de afrontar uma determinada mentalidade e suas decorrentes formas educacio-nais. O uso do pathos, nesse caso, explica-se pelo desejo de provo-car no auditrio mais do que reflexes tericas, pois o contexto do discurso revela sua inteno de incitar aes polticas. Reconheo que a pesquisa do pathos em textos no explicitamente combativos, mais afeitos teorizao, torna-se bem mais complexa.

    Ainda assim, no uma tarefa irrealizvel, como se pode exem-plificar por meio dos resultados do trabalho de Viviane da Costa (2005). A autora investigou o discurso de um conjunto de autores catlicos contrrios ao escolanovismo e filosofia deweyana, cons-tatando que seus argumentos se resumem a dois enunciados funda-

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    mentais: as propostas filosficas e educacionais da nova pedagogia e de John Dewey discordam das orientaes do catolicismo; logo, so equivocadas. Costa percebeu que esse argumento recorrente nos autores investigados constitui um entimema, pois sua susten-tao dada por um enunciado implcito que atua como garantia da concluso: tudo o que discordante da filosofia e da pedagogia catlicas um equvoco.

    A efetividade desse discurso deve ser compreendida em funo do contexto: oradores identificados com uma determinada f reli-giosa falam a um auditrio que compartilha das mesmas convic-es; por isso, dispensvel explicitar o enunciado que opera como garantia da alegao conclusiva. Com isso, se compreende tambm que aqueles autores utilizam o sentimento chamado temor, assim descrito por Aristteles (1998, p.118) na Retrica (I, 5, 1382a): o medo consiste numa situao aflitiva ou numa perturbao causada pela representao de um mal iminente, ruinoso ou penoso; sendo assim, as coisas temveis so as que parecem ter um enorme poder de destruir ou de provocar danos que levem a grandes tristezas, motivo pelo qual inspiram medo.

    O argumento, ento, pode ser assim apresentado, em sua forma completa: as propostas filosficas e educacionais que discordam da f do orador e de seu auditrio so um erro; para o catlico, recus-las mais do que uma obrigao intelectual, um imperativo mo-ral, pois significa afastar o mal, a runa e a destruio que afrontam o mundo. Desse discurso decorre ainda uma concluso, tambm no formulada, porque desnecessria: se as ideias discordantes do catolicismo so erradas, acat-las o mesmo que errar, cair em pecado, o que desperta igualmente o medo na audincia catlica.

    H o que temer da retrica?

    Embora sem abranger a totalidade das produes do Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia, espero ter comu-nicado neste trabalho uma smula de suas atividades dos ltimos anos, no intuito de dar ensejo a novas investigaes. Feita a expo-

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    sio das perspectivas tericas e terico-prticas que vimos ado-tando e procurando desenvolver, desejo concluir o presente escrito esboando um tema inspirado no provocativo ttulo de um ensaio de autoria de Tarso Mazzotti (2000): quem tem medo da retrica?

    Vale lembrar o que foi registrado nestas pginas: a anlise retri-ca visa contribuir para estabelecer o dilogo entre as diversas teorias educacionais, na expectativa de propiciar a formao de uma ima-gem mais aprimorada do objeto investigado, a educao, em busca de ultrapassar a disperso epistemolgica vigente. Tambm foi dito que a contribuio da retrica se materializa em recursos tcnicos, ferramentas analticas para o estudo de discursos persuasivos, ins-trumentos que podem ser aprendidos por todos os interessados em entender o debate terico e dele participar. Perguntei, ento, se essas propostas so realizveis. Quem pode a elas se opor? Pode algum tem-las?

    Pelo que foi exposto, fica evidente que o primeiro obstculo retrica vem do prprio contexto da disperso epistemolgica, no qual o isolamento entre as concepes tericas opera contra-riamente soluo de impasses. Nesse cenrio, embora existam agrupamentos dispostos ao dilogo, h certamente aqueles que se cristalizaram em torno de doutrinas, assumindo princpios como verdades imutveis, nicas, inegociveis, inquestionveis em uma palavra, dogmas. Diante disso, nada convm acrescentar ao que j foi discutido aqui; a retrica uma tentativa de responder precisamente a esse quadro de dificuldades.

    Por outra via, pode-se questionar se no se esconde na retrica o intuito de fixar verdades, no do modo como o fazem as demais teorias, mas, sorrateiramente, por meio da exacerbao da tcnica. No teriam os instrumentos da anlise retrica a pretenso de se arvorar como crivos para isolar discursos desviantes? J me referi a esse problema no corpo deste trabalho, mas cabe acrescentar que, no espao retrico, os meios de prova no assumem o mesmo ca-rter que no mbito de uma cincia exata; trata-se de provas argu-mentativas, passveis de serem contestadas por outras, dando incio interlocuo entre diversos pesquisadores munidos das mesmas

  • PESQUISA EM EDUCAO 43

    balizas tcnicas. essa caracterstica, alis, a responsvel pelo car-ter dinmico e democrtico da metodologia retrica.

    Munidos dessa ou de outra desconfiana qualquer, sempre fcil encontrar quem se erga contra a adoo de recursos tcnicos, sejam eles quais forem. Em ltima instncia, o que se oferece em contrapartida o paradigma indicirio, cujos problemas procurei indicar neste estudo. interessante observar que a crtica s tcni-cas representa, no extremo, um desprezo pela formalizao de pro-cedimentos, pelo estabelecimento de um mtodo palavra que traz, em sua etimologia, o significado de caminho. Sem a demarcao de caminhos, por mais provisrios que sejam, ficamos entregues intuio, ao que no transmissvel, ao que no se pode utilizar na formao do outro.

    Pode-se duvidar, ainda, que da retrica resulte a almejada ul-trapassagem da disperso epistemolgica. Aos que exprimem essa preocupao, devemos conceder que dela se origina o maior temor da retrica, justamente porque, no af de difundir os mtodos e na constatao da eficcia de seus resultados, podemos nos desviar para as veredas que procuramos evitar: a retrica pode se tornar mais uma doutrina, impondo uma viso dogmtica e reivindicando para si a posse da verdade; mais um tecnicismo, com mtodos imu-tveis e desvinculados de sua fonte filosfica; pode, ainda, fechar-se para um crculo restrito de iniciados e experts.

    De fato, como enfatiza Mazzotti (2006a, p.549), a opo pela retrica s ganha sentido no mago de uma teoria humanista do co-nhecimento. Optar pela retrica no aplicar mecanicamente um mtodo de anlise de argumentos, mas sim assumir uma determinada concepo filosfica, a que no descarta o homem, o sujeito, a pessoa na relao de produo, seja esta qual for. Compreender a relao indissocivel entre logos, ethos e pathos e estudar o discurso pedag-gico nesse prisma significa, antes de tudo, enxergar o homem como um animal poltico, quando responsvel por seu discurso, condi-o imprescindvel da democracia e da produo do conhecimento.

    * * *

  • 44 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    Por fim, antes que algum leitor atento pergunte ou perceba, respondo eu mesmo: com essas reflexes, pretendi inspirar o que Aristteles (1998, p.120) qualifica como o contrrio do medo, a confiana, sentimento originado na comunho de interesses (Re-trica, II, 5, 1383a).

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  • 2A CONSTRUO DO

    OBJETO DE PESQUISAVera Teresa Valdemarin1

    A pesquisa, tal como se desenvolve nos programas de ps-gra-duao e, portanto, nas universidades, atividade mediada pelo tempo. A denominao dos diferentes nveis para sua realizao indica expectativas em relao ao tratamento do tema, sofistica-o do repertrio conceitual mobilizado, abrangncia dos dados trazidos para interpretao, entre outras. Todas elas recebem uma demarcao temporal fixada pelas instituies de fomento ou pe-las instituies formadoras na qual est pressuposta a ascenso no conhecimento.

    Embora a racionalidade que preside a formao do pesquisador estabelea etapas, certificao iniciao cientfica, mestrado, dou-torado, livre-docncia e a conquista progressiva da autonomia, o movimento cognitivo do pesquisador no est necessariamente traduzido nessa linearidade. Na transformao da atividade de pes-quisa em ofcio do cientista (conforme denominao de Pierre Bourdieu, 2008) esto entrelaados elementos tericos e modos de oper-los com eles, cuja apropriao se d numa dinmica cclica

    1 Professora adjunta do Departamento de Cincias da Educao e do Programa de Ps-Graduao em Educao Escolar da Faculdade de Cincias e Letras de Araraquara/Unesp. [email protected]

  • 48 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    e cujo avano implica retornos e revises. Trata-se de mediao que demanda pluralidade, convergncias e afastamentos. Tempos, portanto.

    Tomando essas inquietaes como chave analtica, o presente texto sintetiza reflexes j apresentadas oralmente em encontros dedicados discusso da produo da pesquisa2 desenvolvidas na perspectiva de uma pesquisadora cuja carreira est longe do incio e prxima do fim (ainda sem data estabelecida), com dedicao ao ensino, pesquisa e formao de novos pesquisadores. Trata-se mais de uma interpretao pessoal do trabalho j realizado, da configurao de regras mediante sua prtica e menos de uma siste-matizao paradigmtica. Essa reflexo estabelece diferenas sutis entre metodologia e modos de fazer pesquisa, procedimento que corroborado por outros autores.

    Aps caracterizar a prtica cientfica como um saber fazer no qual os conceitos so operacionalizados, Azanha (1992) aponta que preciso tambm ter a sensibilidade e a habilidade para discernir as condies em que sua aplicao seria pertinente ou no (idem, p.143), diferenciando-a do acatamento de regras preestabelecidas e compartilhadas:

    A prtica um saber fazer e no um saber que aplicado a ela. No h duas coisas: o saber de um lado e depois a prtica qual o saber se aplica. H apenas o saber fazer que a prtica. Uma prtica inefi-caz pode transformar-se numa prtica eficaz pela correo de erros, mas somente a prtica do uso da regra mostra o que um erro na sua aplicao (idem, p.180, grifos do autor).

    2 A primeira verso foi apresentada no II Seminrio de Dissertaes e Teses, promovido pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de So Carlos/SP, em 2006 e a segunda no VII Encontro Intergrupos de Pesquisa de Histria da Educao, promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Cultura e Instituies Educacionais da Faculdade de Cincias e Letras de Araraquara/Unesp, em 2009. A temtica investigada tambm no mbito do projeto de Pesquisa Biopoltica, escola e resistncia: infncias para a formao de professores Procad/Capes.

  • PESQUISA EM EDUCAO 49

    Apoiando-se em outros encaminhamentos tericos, Pierre Bourdieu (2001, p.23, grifos do autor) faz afirmao semelhante:

    O habitus cientfico uma regra feita pelo homem ou, melhor, um modus operandi cientfico que funciona em estado prtico se-gundo as normas da cincia sem ter estas normas na sua origem: esta espcie de sentido do jogo cientfico que faz com que se faa o que preciso fazer no momento prprio, sem ter havido necessi-dade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda a regra que permite gerar a conduta adequada.

    Na prtica de pesquisa esto presentes tambm as apropriaes, pelo pesquisador, de bibliografia de ampla circulao mobilizada para a compreenso de um determinado tema, que por sua vez, im-pe significados e direcionamentos. O pesquisador , antes de tudo, um leitor e, desenvolvendo a metfora estabelecida por Michel de Certeau (2005), pode-se dizer que torna os conceitos habitveis maneira de um apartamento alugado (p.49) transformando-os em possibilidade para exercitar a compreenso de um objeto especfico.

    A explicao que agora se apresenta , portanto, muito diferente de um captulo dedicado metodologia tal como se apresenta numa tese. L, preciso explicitar o respaldo que se tem para realizar o pretendido; aqui, elabora-se uma justificativa do j feito. Anlise a posteriori, sem garantias de que foi assim. Trata-se de atribuir sentidos para atividades j realizadas, configurados no processo e conformados pelas pretenses do futuro, pelas perspectivas de continuidade abertas.

    Assim, o que se apresenta aqui uma interpretao da cons-truo de um objeto de pesquisa e no a descrio desse processo, e Pierre Bourdieu (2005, p.38, grifos do autor) novamente citado pela clareza com que expe e inspira reflexes:

    os diferentes partidos assumidos em matria de pesquisa, podem parecer algo ajustados sua necessidade sociolgica, ou melhor, justificados nesse registro, portanto, como se fossem muito mais

  • 50 MARILDA DA SILVA VERA TERESA VALDEMARIN

    racionais, ou ento, mais raciocinados ou mais razoveis do que de fato o foram, um pouco como se tivessem sado de um projeto consciente de si desde o comeo. Ora, eu sei, e no farei nada para escond-lo, que na realidade fui descobrindo aos poucos os prin-cpios que guiavam minha prtica, mesmo no terreno da pesquisa.

    Sem ser verdadeiramente inconscientes, minhas escolhas manifestavam-se, sobretudo, pelas recusas e pelas antipatias in-telectuais com frequncia pouco articuladas, e apenas vieram a se exprimir de modo explcito