Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    © 2012 by Evandro Ghedin

      ? I Direitos de publicação

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      ireção

     osé Xavier ortez

    Editor

     mir Piedade

    Preparação

     l ess an dra   ira l

    Revisão

     les san dra   iral

    Patrizia Zagni

    Edição de Arte

      auricio Rindeika

    Seo iin

    Projeto e Diagramação

    More  rquitetura de  n fo rmação

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP)

     Câmara Brasileira do livro, Sp, Brasil)

    Educação do campo: episremologia e práticas IEvandro Ghedin 

    orgamzador). - L ed. - São Paulo: Correz, 2012.

     ários

    autores.

    Bibliografia.

    ISBN 978-85-249-1994-7

    1. Comunidade Desenvolvimento 2. Educação rural 3. Educação

    rural - Brasil 4. Escolas do campo 5. Pedagogia 6. Teoria do conhecimenro

    I. Ghedin, Evandro.

    12-12793

    CDD-370.91734

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Educação do campo 370.91734

    Impresso no Brasil - novembro de 2012

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     apítulo I

    Evandro Ghedin

    E m m om ento s d e crise só a im agina çã o

    é m ais im po rta nte do q ue

    o

    conhecimento.

    Albert Einstein

    A identida de n ão existe ela é um a elaboração de sentidos

    qu e dão sig nificado a nossa existência. 

    3 G H E D IN   E v and ro  

    f i l o so fi a e o f i l o so fa r

    São P au lo : U n il e tr a s   2 0 0 3 .

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    Introdução

    C

    ertamente  como poderá ser constatado essa não é uma

    abordagem convencional sobre a identidade do edu-

    cador do Campo  como muitos e muitas gostariam de

    ver. O tratamento que dou à identidade do educador

    do Campo vincula-se a sua possibilidade de construção. Portanto

    o ponto de partida da reflexão é que a identidade não está pronta.

    No fundo eu me arriscaria a dizer que ela não existe como expressa

    a epígrafe anterior. No entanto sou obrigado a dizer que ela existe

    mas não está explícita no modo como os educadores que atuam

    no campo se manifestam diante dos outros educadores. Há uma

    forma que desenha elementos para uma identidade mas ela ainda

    não assume plenamente a sua dimensão política.

    De certo modo aquilo que procuro fazer é estabelecer uma

    reflexão a partir de questões interconexas que nos permitam or-

    ganizar e propor critérios mínimos que possam nos ajudar a pen-

    sar uma forma que expresse os valores éticos técnicos políticos

    e estéticos dos educadores do Campo. Assim sendo os três mo-

    vimentos aqui desenvolvidos mais do que definir   modo pró-

    prio de identidade constituem-se em grandes critérios que de-

    veriam orientar tomadas de decisões que inspirem uma forma de

    4 N es te cap ítu lo   u sa re i a e xp re s sã o   C am po   e m le tra ma i ú s cu l a

    pa ra d e s ign a r u m a id e n t i d ade próp r ia d aq u e le s e d u ca d o re s qu e   a lém d e a tu a r em em

    áre a s ru r a is d o s m u n ic íp io s d o A m a zo n a s e d e R o raim a   a tu am e m a sse n ta m e n to s e

    m a n ife s ta m -s e pu b lic a m en te c o m o e d u cad o re s e t n ica m e n t e v in cu l ad o s

    a u m co n ju n to d e v a lo re s qu e e xp re s sa m u m m o d o p rópr io d e se r e

    m a n ife s t a r -se d ia n te d a soc i e d ad e hege m ôn ica .

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    organizar politicamente uma expressão étnica que conjuga em

    torno de si aquilo que poderemos vir a chamar de identidade do

    educador do Campo.

    Sabemos que não há identidade como forma de expressão pró-

    pria sem uma intensa luta política para instituir  diante de um sis-

    tema hegemônico uma identidade que particularmente expressa

    um modo de ser que se distingue dos demais. Por isso é necessário

    advertir que sem luta política não há como instituir uma identidade

    que seja ela própria defensora de valores que nos são comuns. Co-

    muns não porque são corriqueiros mas porque permitem a iden-

    tificação de um grupo particular diante de outros tantos grupos

    que lutam pela distribuição do poder no interior da sociedade. A

    identidade é expressão de um poder político que não nos chega

    senão por meio da luta que se constrói politicamente. Portanto 

    não há como fugir do compromisso social; aliás  é ele que alimenta

    novas perspectivas de uma forma de poder que não mais se justifica

    pelas relações pessoais mas pela capacidade de resolução dos pro-

    blemas que nos atingem.

    A tese que defendo neste texto  do ponto de vista mais epistê-

    mico e antropológico é: não é possível construir a identidade sem

    pensar  antes a cultura e suas formas de expressão. Quando no

    texto fazemos referência à identidade cabocla ou indígena é apenas

    um modo de ilustrar os alicerces que expressam  mais propriamente 

    identidades que nos servem de inspiração para exemplificar as pos-

    sibilidades de construção da identidade do educador do Campo.

    Portanto não há como pensar uma identidade geograficamente

    localizada se não pudermos pensá-Ia no interior da cultura nacional

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    •• CAPíTULO I 

    que nos envolve ou melhor  criar condições mesmo que artificiais

    para envolver a partir de alguns critérios comuns todo este universo

    plural que chamamos de Brasil. Então para pensar a identidade de

    determinado grupo é necessário pensá-Ia em um contexto muito

    mais amplo inclusive historicamente construído por meio de muitas

    gerações que nos antecederam nessa construção.

    Nesse caso assumimos por objetivo demonstrar que a cons-

    trução da identidade cultural brasileira é forjada no bojo da cons-

    trução do Estado Nacional  composto de uma diversidade regional.

    A princípio a diversidade de traços culturais ligados à variedade

    dos grupos étnicos que coexistiam no espaço nacional foi vista

    como barreira para a formação de uma identidade nacional. Por

    isso afirma-se que a existência real da identidade supõe a possi-

    bilidade real jurídica e politicamente garantida de afirmar oficial-

    mente a diferença.

    Ao longo da reflexão aqui expressa assume-se que a identidade

    étnica é a identidade contrastiva que implica afirmação do nós

    diante dos outros; surge por oposição e se afirma negando a outra

    identidade. Daí  quando as pessoas se identificam como membros

    de alguma categoria   étnica elas estão tomando posição em siste-

    mas de relações intergrupais culturalmente definidas.

    Assim a identidade étnica se apresenta menos como uma in-

    corporação passiva da definição social imposta pela sociedade na-

    cional e mais como uma apropriação diferenciada dessa mesma

    construção para vincular a luta política estabelecida com a socie-

    dade dominante. Desse modo  a identidade regional irrompe no

    plano político como o mais firme suporte de luta para superação

    da exploração. Tarefa essa que precisa ser assumida com responsa-

    bilidade e segurança pelos educadores do Campo como única con-

    dição para a construção de uma sociedade mais justa para todos.

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO  ••

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    Elementos para se pensar a formação

    de educadores do Campo

    2 A formação de educadores em

    tempos de crise

    Este texto se orienta por duas ideias centrais que perpassam o

    processo de formação de educadores e sua profissionalidade: por um

    lado a necessidade de que eles tanto em seu processo de formação

    quanto em sua atuação profissional  sejam revestidos da consciência

    de que projeto de desenvolvimento cultural estão propondo e defen-

    dendo como modelo de formação para si e para o estudante; por outro

    lado que modelo de sociedade de conhecimento e de ensino estão

    desenvolvendo no seu processo de formação e de atuação profissional.

    Quer dizer que as questões centrais que perpassam a formação do

    ponto de vista curricular são uma opção pessoal  histórica cultural

    política e epistemológica por um modelo de formação que incide em

    uma visão de mundo de ser humano e de sociedade que irá impul-

    sionar ou frear a luta política contra a desigualdade.

    São esses elementos em crise que colocam em xeque as propostas

    de formação de educadores que pretendem interferir na prática con-

    creta dos docentes. De modo geral na área de formação e da Educa-

    ção tem-se procurado desenvolver um conjunto de reformas sem le-

    var em consideração o sujeito educador. Além disso as políticas

    públicas para a Educação vêm propondo um conjunto de mudanças

    na escola sem levar em consideração o papel do educador como

    sujeito nesse processo de mudanças. Creio que nenhuma reforma

    seja ela qual for  tem o poder de mudar a realidade se não puder

    contar com os sujeitos que conduzem o processo.

    Ao querer interferir no processo educativo de cima para baixo

    as políticas públicas têm feito que os educadores modifiquem seus

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    ••CAPíTULO I~

    discursos interpretativos da realidade mas não efetivamente a pró-

    pria realidade. Isto porque as próprias políticas não têm ultrapassado

    o campo do discurso nesse momento de reformas. O que se tem

    feito nos últimos anos foi massificar com o auxílio do

    rn rk ting

    e

    da mídia um discurso sobre as mudanças mais do que uma mu-

    dança efetiva nas condições de trabalho dos educadores e de apren-

    dizagem dos alunos. Este discurso político sobre reformas tem in-

    terferido no modo como os educadores elaboram sua interpretação

    da realidade mas isto não tem conseguido interferir significativa-

    mente em uma mudança concreta das suas práticas.

    Tal descompasso entre os discursos das políticas e a realidade

    tem forçado os educadores

    à

    decisão de aderir apenas ao nível do

    discurso pelas mudanças e não por uma intervenção em suas prá-

    ticas orientadas por teorias que fundamentam a possibilidade de

    uma intervenção efetiva no espaço da escola. O que tem ocorrido

    é uma apropriação do discurso do Estado a respeito da Educação

    e não uma intervenção nos processos de ensino. Isto se deve ao

    fato de que o próprio Estado subverte os papéis pelo discurso que

    formaliza como forma de subverter a compreensão e a construção

    da identidade dos educadores. Isso é bom para o gestor porque

    enquanto puder defender uma visão de mundo diante da visão

    que o educador tem do mundo estigmatiza-se a prática deste

    como responsável pelo fracasso da escola.

    A tentativa de subverter as relaçõ.es como forma de desviar a aten-

    ção da sociedade culpabilizarido os educadores pelos problemas da

    Educação desvia a atenção do real problema que é a falta de condições

    de trabalho e de ensino e como decorrência de aprendizagem. Essa

    inversão do discurso político no campo pedagógico gera uma crise

    geral no modo como os educadores compreendem a si mesmos e a sua

    realidade. De certo modo isso coloca em xeque a possibilidade concreta

    de mudança nas relações educativas.

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO~

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    Uma mudança de cunho político só pode ser efetivada se puder

    contar com o coletivo de educadores. Especialmente porque há re-

    giões em que o educador é o único elemento que faz a ligação entre

    membros de uma comunidade e o Estado. Desse modo  esse discurso

    subverte as relações postas no interior da sociedade e coloca em

    crise um determinado modelo de orientação das políticas para a

    Educação. Porém isso não é de-.odo mau pois ao gerar essa crise

    possibilita e força que os educadores repensem sua atuação  não na

    lógica do Estado mas respondendo a uma demanda que surge no

    próprio espaço de atuação profissional que é a escola. Essa contra-

    cultura dos educadores esboça outra cultura na condução do processo

    educativo. Isto possibilita repensar as práticas não à luz do discurso

    do Estado mas sim de novos conhecimentos que propõem novas

    formas de conduzir a aprendizagem no campo político e não mais

    exclusivamente no campo pedagógico.

    Assim essa inversão de caráter ideológico coloca em xeque não

    só o discurso das políticas mas a própria possibilidade de efetivação

    das mudanças pretendidas. De certo modo  podemos ver isso como

    uma forma de resistência do educador diante de um processo de mu-

    dança  seguido de tantos outros que não interferiram significativamente

    na valorização social de seus trabalhos. Desse modo podemos dizer

    que os educadores não mudam não porque não querem mas porque

    o modo como se conduz a mudança não faz sentido em seu universo

    de significações. Dizendo de outro modo o discurso político não

    atinge o cotidiano vivido pelo educador na escola. Mesmo quando

    esse discurso atinge sua vida ele não consegue mobilizar coletivamente

    os educadores para a incorporação das propostas. Tal disparate entre

    o dito e o vivido cria uma barreira entre o que está e o que se pretende

    fazer. O que se pretende está distante do que se faz efetivamente e

    este distanciamento é alienante no sentido de que reforça as relações

    de poder que estão postas na escola pela sociedade.

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    IIIo  PERSPECTIVASSOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO~

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    um discurso político centrado apenas no próprio discurso e não

    nos conhecimentos que podem ser elaborados e reelaborados a par-

    tir dos saberes dos educadores que estão na ação em nome de suas

    crenças e teorias elaboradas a partir da própria ação. Enquanto o

    discurso político desvia a ação de seu foco o discurso das compe-

    tências desvia o foco da ação transferindo para as habilidades indi-

    viduais as responsabilidades qu~ são sociais e das políticas públicas

    e não dos indivíduos. Com isso diz-se que a teoria das competências

    é uma nova forma de tecnicismo e de behaviorismo porque asso-

    ciada a um discurso político transfere para o educador a responsa-

    bilidade que é do gestor político.

    A antiga lógica de culpabilização continua desviando a atenção

    dos problemas em função da manutenção das relações estabeleci das.

    Por outro lado creio que há aqui dois problemas: um posto pela cul-

    pabilização do educador pelo fracasso da escola isso quando a própria

    escola respondendo a essa lógica não culpa o aluno pelo próprio in-

    sucesso; outro posto pela redução do coletivo ao individual  desmo-

    bilizando a ação política coletiva como forma de alternativa diante do

    processo de individualização das ações isto é ao retirar-se o papel do

    sujeito coletivo das ações políticas desmobilizam -se as possibilidades

    de mudanças em uma perspectiva universal e dialética.

    O pior momento de uma crise de modelos ou de paradigmas é

    quando não podendo avançar diante da crise configurada retrocede-

    -se construindo novos discursos que recuperam antigas práticas e re-

    colocam em uma nova roupagem antigas formas de dominação. Isto

    ocorre quando se retira da Educação seu compromisso político e sua

    responsabilidade ética em formar culturalmente as novas gerações.

    Ao reduzir a política a uma técnica reduz-se o humano a uma coisa 

    à condição de objeto. Tal redução faz retroagir a humanidade na dire-

    ção de sua animalização pois os processos reflexivos são relegados a

    expressões alegóricas ou como forma de manter certo discurso e não

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    •• CAPíTULO L   o

    como forma de desenvolvimento de nossa habilidade humana de pen-

    sar a realidade e o próprio pensamento como instrumento de crítica e

    de promoção da justiça social.

    Diante da condição em que nos encontramos é hora de reafirmar

    outras perspectivas para esse processo de formação não só de educa-

    dores mas da sociedade. Nesse caso cabe perguntar: em que medida as

    propostas de reformas podem contribuir para uma mudança de postura

    e de prática na formação de educadores e das políticas públicas?

     

    Dimensões da profissionalidade

    como elementos da identidade

    do educador do Campo

    Segundo a abordagem posta em questão anteriormente os con-

    ceitos de educador reflexivo e de educador pesquisador orientados

    pela metodologia da pesquisa-ação colaborativa constituem-se em

    propostas férteis que podem embasar e desencadear outro processo

    de formação de educadores à medida que desloca a compreensão do

    educador como prático e técnico para a compreensão de um profis-

    sional intelectual crítico. Isso coloca outras bases para o processo de

    formação de educadores e abre caminhos para sua autonomia.

    Por outro lado a perspectiva de formação só tem sentido na

    medida em que assume do ponto-de vista curricular e científico

    alguns princípios norteadores da ação humana que visa o compro-

    misso com a transformação radial da sociedade e a extinção das

    desigualdades e das injustiças.

    Nesse sentido  é interessante e necessário refletirmos sobre alguns

    princípios éticos epistemológicos e políticos que devem orientar a

    atuação profissional dos educadores e seu processo de formação. Isso

    tentaremos delinear em seguida.

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    2 2 A d imensão epistemo lógi do p ro e sso

    de form ção

     

    tu ção p ro fission l

    do edu dor

    A análise que fazemos é que as propostas de políticas públicas para

    formação profissional do educador que tomam por base o paradigma

    reflexivo fundamentam-se em UI 1 modelo de formação que se orienta

    pelo positivismo pragmático que não dá conta das necessidades concretas

    de um profissional que responda aos desafios contemporâneos.

    Isto está ligado não só à formação docente mas ao Estatuto das

    Ciências da Educação. É nesse sentido que o problema da profissiona-

    lização está diretamente relacionado com a epistemologia que se cons-

    trói nesse campo de saber. As abordagens sobre o problema estão muito

    centradas em situações práticas que não deixam de ser relevantes mas

    que não fundamentam suficientemente uma perspectiva que possibilite

    um salto da prática como ponto de partida para a construção do saber

    pedagógico sistematicamente fundamentado ou seja a prática pela

    prática não nos permite elaborar uma nova teoria como forma de com-

    preender mais significativamente a dinâmica da ação cotidiana.

    Enquanto a atividade prática pressupõe uma ação efetiva sobre o

    mundo que tem por resultado uma transformação real deste a ativi-

    dade teórica apenas transforma nossa consciência dos fatos nossas

    ideias sobre as coisas mas não as próprias coisas. Porém a transfor-

    mação da consciência das coisas é pressuposto necessário para se ope-

    rar ao nível teórico um processo prático.

    No que diz respeito à formação de educadores há de se operar

    uma mudança da epistemologia da prática para a epistemologia da

    práxis pois a práxis é um movimento operacionalizado simultanea-

    mente pela ação e reflexão isto é a práxis é uma ação final que traz

    em seu interior a inseparabilidade entre teoria e prática. A separação

    de teoria e prática constitui-se na negação da identidade humana.

     

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    •  CAPíTULO I~

    A prática sobre a qual nos interessa refletir é aquela que efetivamente

    transforma o cotidiano da sala de aula; para que isso se torne possível

    as condições do ensino teriam de ser examinadas e em definitivo  mu-

    dadas. Quando se defende a ideia do educador como profissional refle-

    xivo não se está revelando nenhum conteúdo para a reflexão. Pressu-

    põe-se que o potencial da reflexão ajudará a reconstruir tradições

    emancipadoras implícitas nos valores de nossa sociedade.

    A conclusão que poderíamos tirar é que ao defender uma posição

    mais vantajosa  os educadores acabam reduzindo suas preocupações e

    suasperspectivas de análise aos problemas e às situações internas ao espaço

    da sala de aula. Não se pode pretender que a situação mude apelando por

    uma simples transformação dessas condições como se um exercício de

    vontade pessoal por parte dos docentes fosse capaz de uma mudança.

    Por isso é necessário estabelecer a conexão entre a concepção da

    prática docente e um processo de emancipação dos próprios educadores

    que se encaminhe para uma configuração como intelectuais críticos re-

    querendo a constituição de processos de colaboração com o professorado

    para favorecer sua reflexão crítica. Refletir criticamente significa colo-

    car-se no contexto de uma ação na história da situação participar em

    uma atividade social e assumir uma postura ante os problemas. A reflexão

    crítica constitui-se em uma atividade pública e portanto política.

    Essa reflexão crítica como forma de atividade política nos coloca

    diante do conhecimento e exige de nós um envolvimento e um distan-

    ciamento da realidade para poder compreendê-Ia melhor e mais pro-

    fundamente. Por conta disso  o conhecimento não só é uma construção

    social  mas também é uma possibilidade de resgatar a dignidade do ser

    humano no interior da cultura à qual pertencemos.

    Nesse sentido alimentar as possibilidades infinitas das habilidades

    cognoscitivas dos sujeitos deve ser uma tarefa essencial de todo o processo

    educativo pois é apenas diante da necessidade de um vir a ser que é pos-

    sível a construção de um ser cidadão politicamente comprometido com

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO 

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    as transformações radicais da sociedade. Conhecer é desvendar na inti-

    midade do real a intimidade de nosso ser que cresce justamente porque

    a nossa ignorância vai se dissipando diante das perguntas e respostas

    construí das por nós como sujeitos entregues ao conhecimento.

    A tarefa primordial de um processo reflexivo no ensino é a de pro-

    porcionar a si e a toda a Educação um caminho metodológico que possi-

    bilite a formação de cidadãos autônomos. Até porque a autonomia é uma

    exigência política para a construção de uma sociedade democrática.

    Educar é ter a coragem de romper consigo mesmo para poder ins-

    taurar uma nova compreensão da ação e dela imprimir uma nova ação

    reflexiva tornando possível a ampliação do poder de autodeterminação.

    2 2 2 A d imensão políti do p ro esso

    de form ção e d profission lid de

    do edu dor

    Entender a ação do educador como ato político significa romper

    com uma visão que dicotomiza o ato pedagógico do ato político im-

    plicando avançar para uma concepção de que a Educação é conscien-

    tizadora. A Educação é um ato político portanto ninguém educa sem

    um projeto de formação cultural e esse projeto passa necessariamente

    por uma intencionalidade política.

    Entenda-se que o ato político do qual falamos não é o ato político

    partidário mas o ato capaz de despertar o gosto pela liberdade a so-

    lidariedade a responsabilidade para com o ser do outro e pelo mundo

    pelo próprio destino condições que fazem do ser humano um verda-

    deiro revolucionário. Isto se traduz em uma postura a favor da liber-

    dade da justiça da ética e do bem comum.

    A possibilidade de realização de nossos sonhos  projetos  utopias

    está diretamente relacionada ao ambiente educacional em que vivemos.

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    •• CAPíTULO   •

    Nesse sentido, a Educação, como algo que transporta ao ensino de

    disciplinas, ocorre como caminho para estabelecer o significado e o

    sentido social do conhecimento como espaço de esclarecimento e de

    atuação política. Isso quer dizer que, se o conhecimento não servir

    para nos tornar melhores e para melhorar o mundo em que atuamos,

    que sentido ele tem? Isso nos leva a pensar que há uma base ética

    que permeia o processo de construção do conhecimento e o com-

    promisso político que perpassa a Educação lhe são inerentes, embora

    possa estar confundida, ou escondida pelo discurso pedagógico ou

    pela visão ingênua da neutralidade.

    Portanto, a condição para uma formação integral consiste em um

    ativo compromisso político e em uma competente formação técnica.

    No entanto, não se pode correr o risco de reduzir tudo ao político ou

    ao pedagógico, mas considerar a dimensão política do ato pedagógico

    e o ato pedagógico da ação política. Isso significa relacionar o rendi-

    mento escolar com as condições socioeconômicas, a questão do acesso

    à escola, o que essa instituição ensina e seu conteúdo ideológico, a

    importância do que se aprende e a quem se destina a Educação.

    Nesse sentido, a formação do educador deve visar o ser humano e

    sua humanização como sujeito que possa atuar e modificar livremente

    seu mundo. Do ponto de vista desse modo de formar, significa pro-

    mover o ser humano e

    torná-Io

    cada vez mais capaz de conhecer os

    elementos de sua situação para intervir na realidade, transformando-

    a. Isso implica um processo contínuo e continuado de reflexão sobre

    a ação e uma ação refletida que possa avaliar até que ponto o real está

    na direção do ideal e até onde o ideal nos ajuda a realizar as coisas em

    uma práxis comprometida politicamente.

    Isso também implica visão epistemológica e metodológica na di-

    reção de um caminho que parte do empírico, passando pelo abstrato

    para chegar-se ao concreto. Vale citar que o concreto não é o ponto de

    partida, mas o lugar de chegada do conhecimento. Mas o concreto

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO

     

    9

    ponto de partida é o concreto real e o concreto ponto de chegada é o

    concreto pensado. O pensamento parte do empírico, mas este tem

    como suporte o real concreto.

    Dizer que a ação do educador é um ato político significa, no quadro

    social, dizer que a formação não está divorciada das características da

    sociedade e que a sociedade é dividida em classes sociais, cujos interesses

    são antagônicos; a formação pode servir a interesses de uma ou de outra

    das classes. A formação é um ato político na medida em que explica as

    contradições da estrutura contribuindo para a transformação estrutural

    da sociedade. Desse modo, é só por ingenuidade que se poderia acreditar

    no caráter apolítico da Educação e da formação dos educadores.

    Assim, as deficiências da Educação têm sentido político, que não

    pode separar-se da crítica do ensino, da crítica da economia, da buro-

    cracia, do Estado e da sociedade interna. O problema da Educação

    não é pedagógico, mas fundamentalmente político. Se a escola é opres-

    siva e seletiva, é porque é a escola da sociedade burguesa, e dispensa a

    Educação de que essa sociedade tem necessidade, a Educação que

    mantém o povo tutelado, admitida a possibilidade de selecionar um

    pequeno grupo para as necessidades de produção.

    A escola desempenha um papel político na proporção em que pro-

    paga uma educação que tem sentido político. Desta forma, a Educação

    efetivamente recebida pela criança, bem como o poder político, está,

    antes de tudo, a serviço da classe social dominante. Uma vez que traduz

    as relações de força no seio da sociedade global, a Educação é política.

    Conhecer e transformar são aspectos distintos da mesma unidade

    que compõe a práxis histórica do ser humano. O conhecimento começa

    e termina com a prática, pois o conhecimento dinâmico, que vai do

    conhecimento sensível ao conhecimento racional e deste volta à prática,

    é um processo que imprime uma direção ativa e consciente

    à

    ação re-

    flexivo-crítica, transformadora da realidade social, política, econômica,

    religiosa, cultural, implicando compromisso político radical.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    4

    ••.CAPíTULO I~

      3 A dim ensão éti do pro esso de

    form ção

     

    d profission lid de

    do edu dor

    Compreendemos a ética como práxis (ação-reflexão-ação, na sua

    dimensão política e epistemológica), princípio que rege o agir humano

    para o bem comum. Fundamento de liberdade que permite uma de-

    cisão consciente e responsável. Fundante da possibilidade do reto agir,

    da reta consciência, da plena liberdade e da libertação de toda e qual-

    quer forma de opressão. Somente este princípio da consciência nos

    possibilita uma práxis, como modo de ser, e o combate a toda forma

    de exploração do ser humano pelo ser humano. Na ética, respondemos

    pelos resultados de nossas ações. A responsabilidade lúcida é essencial,

    hoje, em toda ação humana orientada pela ética.

    A ética é uma postura de vida, relacionada com princípios gerais

    e universais presentes na consciência do indivíduo.

    É

    uma práxis em

    sintonia com o íntimo do ser. A ação ética é a melhor ação possível, a

    mais indicada, a reta ação, e não uma ação correta. O termo   correta

    nos levaria para a área da moral. A ação ética está ligada à sensibilidade

    e à capacidade de ouvir a própria consciência, que, por sua vez, é uma

    expressão da consciência universal.

    A ação ética é sempre o resultado de uma livre escolha, após se

    compreender que existem princípios que sugerem certa postura de

    vida. Os princípios, que a consciência apreende a partir da própria

    consciência, com a sua sensibilidade, não se alteram, nem sofrem in-

    fluência dos valores sociais e culturais. São estáveis e válidos em qual-

    quer época, não mudam em função do que é considerado correto por

    um grupo, nem são determinados por um novo mandamento.

    A ação ética é sempre resultado de um ato voluntário e não o sim-

    ples obedecer às aparências ou a uma regra. Ela é uma postura existen-

    cial que inclui a possibilidade de se agir, ou não, de certa maneira. Por

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    IIIo PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO~

    41

    ser algo consciente, internamente, não permite uma dupla maneira

    de ser. A retidão se preserva, mesmo quando se estiver só.

    O ser ou não ser ético é o resultado de algo que passa pela reflexão

    e torna-se uma ação externa. A compreensão e a prática estão interli-

    gadas. O ser humano está no mundo e a ética é existencial.

    O que determina uma atitude ética não são os costumes morais,

    o que é aceito pelo grupo e considerado certo O correto e o incorreto

    envolvem juízos de valor. Já a verdadeira postura ética, a reta ação, es-

    capa dos julgamentos valorativos.

    É

    um compromisso de responsabi-

    lidade com o ser do outro.

    O processo de individualização operado pela Filosofia grega só

    foi possível pela evidência de que o ser humano é portador da razão,

    da vontade e de uma identidade individual que ultrapassa a identidade

    cultural e, em parte, resulta dela. Razão (como possibilidade de pensar

    o próprio pensamento pela linguagem e pela língua), vontade, emoção

    e identidade são características essenciais que constituem o humano

    como tal. É por essa   essencialídade  que habita o humano, que não

    somos animais determinados pelos instintos.

    Razão e vontade fundamentam o ser da humanidade e possibilitam

    a construção de uma identidade única, indivisível, indissociável, irre-

    petível e inalienável em uma manifestação simultânea da realidade

    corporal/psíquica/espiritual. Assim, cada indivíduo é um horizonte

    onde se realiza e se potencializa a humanidade.

    Sendo essa a compreensão que podemos ter do ser humano, em

    uma Antropologia contemporânea, é justificável que a forma de distri-

    buição do poder político e econômico, em nossa sociedade, deva mudar,

    pois não corresponde mais

    à

    visão que o ser humano tem de si. O poder

    político é justo na proporção que é eficaz na solução dos problemas que

    enfrentamos. Se ele não possui eficácia, e é o que a prática política tem

    demonstrado, então sua estrutura há de ser transformada. Esta é a revo-

    lução da democracia que ainda não operamos em nossa sociedade.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    4

    CAPíTULOI~

    o ser humano é o único portador da humanidade, por isso a cons-

    ciência e a liberdade se tornam possíveis

    à

    medida que ele assume seu

    compromisso de responsabilidade ética diante de si e do outro. Se isto é

    um princípio, não só a forma de poder político deve mudar, mas também

    a distribuição dos meios de produção. A forma de ser da política, como

    democracia, há de «impor-se pela força da ética, para criar mecanismos

    possíveis para o desenvolvimento e valorização da humanidade.

    3

    Pressupostos epistemológicos à

    formação de educadores para

    a construção da identidade

    com o campo

    3 1 O processo reflexivo e a superação da

    ideologia hegemônica

    o pensamento não se reduz à sua exclusiva função de negatividade,

    a qual a reflexão apoia-se para surgir. Comporta uma função cons-

    trutiva, positiva, criadora e orgânica. Por isso, «a única atitude inte-

    lectual, que parece satisfazer suas tendências orgânicas sem com isso

    degradar-se em irreversível alienação consiste em problematizar os

    dogmas, mitos, e ideologias (Fougeyrollas, 1972, p. 129).

    Nesse sentido, o questionamento problematizador é fundante da cria-

    tividade e da reflexão como superadora da alienação. Freire (1987, p. 62)

    afirma que «seos homens são estes seres da busca e se sua vocação onto-

    lógica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição que

    sealastrapelas estruturas de poder epor meio da problematização dialógica

    e dialogalsuperar esseprocesso alienativo.Estanão é uma postura ingênua,

    pois o diálogo sobre a negação do próprio diálogo é uma forma de supe-

    ração do processo. Isto se liga à relação entre consciência e ideologia.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO   ••

    4

    Rouanet (1990), falando sobre o tema da consciência, diz que a

    ideologia mente duas vezes: a primeira quando mente, e a segunda

    quando diz a verdade. Ela mente quando diz que a consciência de-

    termina a existência. É a mentira idealista, que os profissionais da

    desmistificação são plenamente competentes para desmascarar. E

    mente ao dizer a verdade, ainda que de modo deformado: ela aponta

    com clareza para a importância intrínseca da consciência, mas o

    faz de forma tão estridente que os especialistas da suspeita não

    acreditam no que ela afirma, e vão procurar a verdade em outro lu-

    gar. Pela primeira mentira, destinada ao pensamento ingênuo, a

    ideologia escamoteia as condições de existência; pela segunda, des-

    tinada ao pensamento crítico, ela escamoteia aquilo mesmo que lhe

    é proclamado: as estruturas da consciência, impedindo que elas se-

    jam tematizadas em sua relação com as condições de existência.

    Para Engels (apud Rouanet,1990, p. 73),

    [...} a ideologia é um processo que o chamado pensador executa, certamente

    com consciência, mas com uma falsa consciêncla? As verdadeiras forças

    motrizes que o motivam permanecem ignoradas; de outra forma, não se

    trataria de um processo ideológico.

    Para Marx (apud Rouanet, 1990, p. 85-8), a ideologia tem início,

    historicamente, com a divisão entre o trabalho intelectual e material.

    A partir desse momento, a consciência pode verdadeiramente imaginar

    que ela

    é

    outra coisa que a consciência da prática existente, que ela repre-

    senta, realmente, alguma coisa, sem representar algo de real. A partir desse

    momento, a consciência adquire os meios de se emancipar do mundo, e de

    passar àformação da teoria pura, a teologia, afilosofia, a moral etc.

    5

    G rifo d o au to r. O tex to trata, especif icam en te , da questã o das ilu sões da consciência ou de

    com o um a fa ls a consciência pode fo rj ar um a fa lsificação da compreen são .

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    44

    •• CAPíTULO

    I •••

    A essência da ideologia, como produto da história, é ignorar a história,

    ou deformá-Ia. Mas essa deformação é em si um momento da história,

    uma ilusão socialmente condicionada, produzida por uma realidade social,

    podendo ser reproduzida somente na ilusão. A ilusão da ideologia, como

    falso saber sobre a realidade, é em si um momento dessa realidade, e não

    pode ser dissipada senão por uma refutação prática, capaz de modificar o

    ser, do qual o não ser da ideologia constitui o aroma espiritual :

    É parte integrante da ideologia ignorar seu enraizamento na prática,

    ignorar que só nela os enigmas que ela tematiza podem encontrar uma so-

    lução. Por isso, a derrocada da ideologia não se dá somente em sua crítica,

    por outra ideologia, mas em ações que se concretizam na prática como re-

    construção contraídeológica conciliada como práxis revolucionária e,

    como tal, transformadora de nosso ser no mundo. A ideologia opera aos

    níveis teórico e prático, sendo nesses níveis que deve ser desrnistificada,

    por meio da práxis e da reflexão sobre a relação entre práxis e ideologia.

    De um ponto de vista antropológico, a destruição de uma ideologia

    opera-se por um mergulho ou um segundo mergulho dessa ideologia

    na história da qual é a expressão. De um ponto de vista filosófico, a des-

    mitificação de um dogma, de um mito, de uma ideologia se opera pelo

    retorno à problemática original de que são provenientes. Não há como

    compreender ou superar um processo de alienação ideológica senão

    percorrendo os meandros, os fatos e as interpretações históricas que a

    fizeram surgir; isto quer dizer que só

    é

    possível compreender e superar a

    alienação por meio de uma interpretação histórica. Com isso, afirma-se

    que é preciso fazer uma hermenêutica dos fenômenos para o entendi-

    mento e a superação das formas ideológicas de alienação do humano.

    Apesar de nossa proposição à crítica, ela não se dá isolada de um

    contexto social e educativo. Ela é, como toda educação, um processo si-

    tuado em um dado contexto. Será esse contexto que irá possibilitar ou

    limitar que a reflexão, em seu ensino, constitua-se como um processo de

    construção da práxis crítica, fundamentada culturalmente. Nesse sentido,

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO   ••

    45

    além de termos de pensar em problemas de ordem procedimental, nos

    conteúdos e nos métodos de ensino, ainda temos de impetrar uma luta

    política no sentido de criar as condições objetivas para que a democracia

    e o pensamento possam ser exercidos com liberdade no espaço público

    na escola, de modo particular, e na Educação, de modo geral.

    A Educação torna-se significativa ao se propor como uma alter-

    nativa de leitura crítica da realidade. Essa não é uma tarefa exclusiva

    do ensino fundado na reflexividade, mas de todo o processo educativo;

    torna-se próprio da razão pelo fato de que o processo educativo se

    mostra mais como alienação do que como emancipação. Visto que a

    aprendizagem do pensar é uma atividade inerente à totalidade do pro-

    cesso educativo, a sala de aula de Filosofia pode ser um momento e

    um espaço privilegiado da aprendizagem da reflexão crítica (Ghedin,

    1998), como caminho e alternativa a reflexão atrelada à ordem vigente.

    Segundo Freire (1986, p. 24), a Educação é um processo que deve

    conduzir à reflexão, pois

    {... ] o que se vis a é a formação de cidadãos crít icos, ativ os, que intervenham

    no process o d e tr an sfo rmação da sociedade. Esse processo comporta o do-

    mínio das form as que perm item chegar à cultura sistematizada. E por esse

    motiv o {. ..] já esta ria jus ti fi cada a importância da reflexão.

    A melhor maneira de refletir é pensar a prática e retomar a ela

    para transformá-Ia; pensar o concreto, a realidade, e não pensar pen-

    samentos. A reflexão crítica, como processo, é superadora da ideologia

    ao executar um movimento inverso à própria ideologia. Enquanto a

    6 A Educação b rasile ira, ra d icalm en te m arcada pe lo positiv ism o de o rien tação com tiana,

    tem sido um instru m en to id eo lóg ico a serviço das classes dom in an tes e mantendo as classes

    trabalhadoras , quando não exclu ídas da esco la , exclu ídas da possibilid ad e de pen sar sistem aticam en te .

      A firmam os que o ap are lh o id eo lóg ico de E stado qu e assumiu a po sição dom in an te [. ..] é o apare lh o

    ideoló g ico esco lar   ( A lthusser, 19 85 , p . 77 ). Is to não quer d izer que , p o r co n ta de ssa re alidad e , a e s co la

    em par ticu lar e a educação em geral e ste jam im possibilitadas de op erar a m udança.

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    46

    ••.CAPíTUlO   • •

    ideologia? faz o movimento do pensamento que pensa os próprios

    pensamentos, a reflexão crítica inverte-se no sentido de que reflete a

    partir da prática, exerce sua atividade desde o fazer e nele instaura

    um processo reflexivo. O seu modo de operar não é automático, não

    acontece por si mesmo.

    É

    necessário haver o questionamento da pró-

    pria prática e, a partir dela, um processo contínuo de reflexão que sai

    da prática e vai ao pensamento e assim compreender seu modo de

    fazer. Isto quer dizer que é no constante e permanente questionamento

    e problematização de nossa ação, exercido de modo rigoroso e siste-

    mático, que podemos operar um processo de mudança. De certo

    modo, é ter preferência por estados cognitivos de conflito diante da

    interpelação da realidade que nos atinge diuturnamente quando não

    domesticamos nosso olhar e não ampliamos nossa surdez.

    Ao longo de décadas, a Educação tem pervertido as relações

    humanas e condenado grandes massas de classes trabalhadoras ao

    conformismo e

    à

    alienação, justamente por representar a lógica do

    sistema.

    É

    preciso romper, radicalmente, com essa lógica. Não há

    saída senão pela participação política do educador-educando, pois

    somente assim poderemos construir uma práxis libertária, capaz

    de oferecer elementos para que o educando-educador leia e com-

    preenda a realidade, sua face mais cruel, em que está inserido.

    Dando-se conta do meio no qual se insere e das causas de sua opres-

    são, poderá libertar-se de toda forma de conformismo e alienação

    encontrando e apontando caminhos para a participação ético-polí-

    tica de toda a sociedade (Ghedin, 1997).

    7   A id eo log ia p rop riam en te d ita só em erge com a d iv isão do tr ab alho e a cisã o d as classe s ,

    quando as id eias  e rr adas   p e rd em seu caráte r  im ediato   e são  e labo rad as   p e lo s in te lectuais ,

    a fim de se rv ir (para leg itim á-Ias ) às re lações de dom in ação ex is ten te s - em sum a, som en te quando a

    d iv isão en tre Senho r e E scrav o con ju ga- se co m a d iv isão do p róp rio tra balh o in te lectu al e fís ico  

    (Z izec, 1996 , p . 24 ). P o r isso , a opo sição en tre a id eo log ia com o un iverso da v iv ência

      e spon tânea  só pode ser ro mpid a m ed ian te um esfo rço ref lex ivo -crítico .

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO   •

    47

    Isto é possível pela prática pedagógica porque é uma prática espe-

    cífica que se relaciona dialeticamente com as ideias pedagógicas, ligada

    intimamente ao ato político consciente. Dessa forma, a relação existente

    entre reflexão, método e contexto é imprescindível para a Educação

    como processo político. A educação ético-política estabelece uma re-

    lação dialética entre a Educação e a política, ao mesmo tempo que

    abre um caminho novo entre arnbas, pois a prática pedagógica é uma

    prática política que deve tornar-se uma práxis como ação-reflexão-

    -ação transformadora do mundo (Ghedin, 1997).

    Então, a Educação deve ser uma prática refletida. Um discurso

    teórico-prático em que se dê a vivência cotidiana do fazer-ser pedagó-

    gico. A política não é só uma ação e a Educação não é só uma prática,

    mas ambas devem ser ações-reflexões, conduzindo o educador-edu-

    cando a um pensar sobre a transformação de si e da sociedade que está

    em constante mutação. A proposta por uma educação política quer

    ser um caminho para o fazer-ser pedagógico: a construção de um pro-

    jeto pedagógico capaz de gerar libertação política. O ato pedagógico é

    um ato político que só é autêntico quando for libertador das estruturas

    de uma sociedade opressora e repressora da liberdade humana.

    A dialética da Educação responde a uma dinâmica de contradição

    que marca politicamente as sociedades de classe. Conscientização e li-

    bertação são elementos importantes para se entender a Educação como

    ato político comprometido com asmudanças significativas da sociedade.

    Enquanto pensarmos o ato pedagógico como ato neutro : estaremos re-

    produzindo a política da neutralidade e colaborando para que a sociedade

    continue produzindo um modelo de educação que não se questiona

    sobre si e sobre a realidade social na qual se insere e da qual é parte.

    Enquanto não compreendermos a Educação como ato profun-

    damente político, estaremos reproduzindo um sistema de opressão,

    de marginalização e de exclusão. Nesse sentido, a Educação é meio

    que tem como fim não só a liberdade pessoal e individual, mas a

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    48

    lIo   CAPíTULO

      • •

    (liberdade) libertação política de toda forma de opressão. Combater

    a opressão é tarefa essencial de qualquer prática pedagógica. Contri-

    buir para com a desalienação e para a desideologização é tarefa fun-

    dante do processo educativo. É por esse motivo que o processo refle-

    xivo é tão necessário na Educação.

    O processo reflexivo-crítico-criativo como   instrumento 

    à

    Edu-

    cação pode ser fomentador na luta pela transformação da sociedade,

    na perspectiva de sua democratização efetiva e concreta, atingindo os

    aspectos não só políticos, mas também sociais e econômicos (Luckesi,

    1994), tornando-se uma postura de contestação e de proposição diante

    dos problemas com os quais nos deparamos cotidianamente. A reflexão

    há de ser a condição da rebeldia que não mais aceita as respostas

    prontas e não se conforma diante da pobreza, da fome, da miséria, da

    exclusão e do preconceito, mas reage indignada diante da desumani-

    zação do homem de da mulher.

    Segundo Saviani (1987),do ponto de vista prático, trata-se de retomar

    a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino

    das camadas populares. Lutar contra a marginalidade, por intermédio da

    escola, significa engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um

    ensino da melhor qualidade possívelnas condições históricas da atualidade.

    O papel de uma teoria crítica da Educação ou para a Educação é dar sub-

    sistência concreta a essa bandeira de luta, de modo a evitar que ela seja

    apropriada e articulada aos interesses dominantes.

    Somente pela reação consciente é que sepodem construir alternativas

    viáveis nesse contexto histórico. Porém, tal consciência precisa ser ela-

    borada e trabalhada cotidianamente no espaço escolar e fora dele. Nesse

    sentido, no plano teórico e prático, há de se operar uma passagem do

    senso comum

    à

    consciência crítica, isto é, buscar uma superação do

    dogmatismo, do determinismo e dos condicionamentos ideológicos que

    impedem o educando de se construir como ser humano crítico e criativo.

    Vamos tratar dessa possibilidade de mudança no tópico seguinte.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO   ••

    49

    3 2 A reflexão e o processo de

    superação do senso comum

    o

    senso comum indica uma visão de mundo fragmentada e até

    contraditória. São conceitos, significados e valores que adquirimos

    espontaneamente, pela convivência, no ambiente em que vivemos. O

    senso comum nasce do process,?, de acostumar-se a uma explicação

    ou compreensão da realidade, sem que ela seja questionada. É uma

     forma de ver a realidade (mítica, espontânea, acrítica). Estamos na

    esfera do senso comum, tanto à medida que recebemos, quanto na

    proporção que formulamos compreensões acríticas da realidade. Seu

    caráter acrítico decorre do fato de as visões que o compõem não terem

    vinculação efetiva com os elementos da realidade, já que o efetivo

    desvendamento da realidade produz o senso crítico (Luckesi, 1994).

    O ideal seria que o todo da compreensão e conduta de cada pessoa

    se desse de modo crítico, coerente, sistematizado. Contudo, para isso, é

    preciso muito trabalho (trabalho crítico de reflexão filosóficae científica).

    A compreensão limitada do senso comum consiste em olhar as partes

    de um todo e concebê-Ias em si, como se fossem totalidades em si mes-

    mas, isto é, conceber a Educação desvinculada da política, dissociada

    de um processo político-econômico mundial, em sua relação com um

    capitalismo financeiro com seus braços ideológicos da globalização e

    do gerenciamento do mercado, denota uma visão de senso comum.

    Estar no senso comum é não conseguir estabelecer relações entre

    as coisas que são propriamente humanas, isto é, não reconhecer que,

    em questão de humanidade, tudo é resultado da ação humana. O ser

    humano faz a si mesmo, é senhor de sua liberdade, de sua consciência

    e de sua responsabilidade (Sartre, 1997); é claro que em seus devidos

    limites, pois neles se fundamenta o senso comum. O todo é composto

    de partes e estas, em seu conjunto relacional, compõem o todo. O

    senso comum, porém, não percebe desse modo; é esta não percepção

    da relacionalidade das coisas que se caracteriza como senso comum.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    5

    IIIo   CAPíTULO I 

    Para os setores dominantes e conservadores da sociedade, interessa

    que o senso comum impere em muitos cantos da vida social e cultural,

    especialmente naqueles que se destinam às grandes massas, como é o

    caso da Educação e dos meios de comunicação.

    O senso comum interessa à situação conservadora, pois ele não

    possibilita o surgimento da crítica em seres humanos e dificulta ou

    retarda o processo de pensamento e de compreensão das atividades

    no interior da sociedade; pelo menos não possibilita um pensamento

    globalizador, mas particularizado do mundo social e de si mesmo;

    nessas circunstâncias, o ser humano vive a imediaticidade de sua exis-

    tência e, preso a seu cotidiano, torna -se incapaz de agir e pensar

    criticamente. O senso comum é o meio fundamental para a proliferação

    de formas de manipulação das informações e das condutas; por meio

    dele, propagam-se tantos outros atos políticos e sociais dos dirigentes

    e dos setores dominantes da sociedade que impedem ou dificultam a

    instauração de um processo de mudança a partir da base da sociedade.

    A principal estratégia dominante para manter-nos no senso comum

    é fazer-nos pensar e acreditar que possuímos um destino predeterminado

    e de que somos, individualmente, os responsáveis por nossas misérias e

    pelas mazelas sociais. O maior golpe em nossa consciência é fazer-nos

    acreditar que a sociedade é do modo que se apresenta a nós porque as

    pessoas não fazem a sua parte : Reduzir as mazelas do País ao nível do

    indivíduo é uma forma estratégica de transferir a responsabilidade política

    do Estado para cada sujeito, fazendo-os responsáveis pelos problemas

    gerados emantidos pela imensa  desigualdade social, política, econômica

    e cultural, impetrada pelas elites que se apropriam do poder.

    Por conta disso, a prática educacional não poderia atuar com base em

    elementos do senso comum, pois tem por objetivo formar consciências

    críticas, capazes de compreender, propor e agir em função de novas pers-

    pectivas de vida. Por isso,é preciso refletir e ultrapassar os limites do senso

    comum como entendimento e como orientação para a nossa prática.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    29/40

    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO~

    Isto quer dizer que a passagem do senso comum

    à

    consciência

    filosófica é condição necessária para situar a Educação em uma pers-

    pectiva revolucionária (Saviani, 1985, p. 13). Passar do senso comum

    à consciência filosófica significa passar de uma concepção fragmen-

    tária incoerente, desarticulada, implícita, degradada, mecânica, passiva

    e simplista a uma concepção unitária, coerente, articulada, explícita,

    original, intencional, ativa e cultivada (Saviani, 1996).

    O senso comum é contraditório, dado que se constitui em um amál-

    gama integrado por elementos superficialmente explícitos,caracterizados

    por conceitos herdados da tradição ou veiculados pela hegemonia e

    acolhidos sem crítica (Gramsci, 1977). A ausência da crítica é condi-

    cionante para a proliferação do dogmatismo, das ilusões da consciência,

    da mistificação da vida, da alienação do trabalho, da espiritualidade e

    impeditiva de uma interpretação livre e consciente do mundo.

    As relações entre senso comum e filosofia assumem a forma de uma

    hegemonia cuja plena significação radica na estrutura da sociedade. Em

    uma sociedade como a nossa, as relações entre senso comum e crítica

    travam-se na forma de luta, isto é, trata-se de desarticular os interesses

    dominantes e articular os interesses populares, dando-lhes a consciência,

    a coesão e a coerência de uma concepção de mundo elaborada, uma filo-

    sofia (Saviani, 1996). O problema não é o antagonismo existente entre a

    crítica e o senso comum, mas quando o senso comum executa um ato de

    fé em si mesmo, impedindo e coagindo toda forma de questionamento.

    Crítica e senso comum não são realidades antagônicas. A relação

    entre criticidade e senso comum é assegurada pelo político. O campo

    da ação é o espaço de relação entre o senso comum e a crítica. Para

    Gramsci (1995), é a crítica como práxis, fundando um modo de ser

    com uma postura de caráter filosófico. Isto quer dizer que uma filosofia

    da práxis só pode apresentar-se em uma atitude polêmica e crítica,

    como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento

    concreto existente, como crítica do senso comum.

    51

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    30/40

    5

    •••CAPíTULO

    I   •

    Nesse sentido, a filosofia da práxis é uma tentativa de propor a

    criticidade da consciência como caminho de liberdade, de responsa-

    bilidade com o ser alienado, não para mantê-lo nessa circunstância,

    mas para ajudá-lo a se libertar.

    A filo sofia da p ráxis não visa manter os

      simplorios  

    na sua filo so fia p rim itiv a

    do senso com um, mas busca, ao contrário, conduzi-los a um a concepção de

    vid a su pe rio r. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os

    s imp ló rio s não

    é

    para lim itar a ativid ade científica e para manter um a unidade

    ao nível in ferior d as m assa s, mas justam ente para forjar um bloco intelectual-

    -m oral, que torne politicam ente possível um progresso intelectual de massa e

    não apenas de peq uen os g ru po s in te le ctu ais (Gramsci, 1995,

    p

    20).

    Para Gramsci (1995), todos os homens são filósofos pois é impos-

    sível pensar em um homem e em uma mulher que não sejam também

    filósofos, que não pensem, já que o pensar é próprio do ser humano

    como tal. A diferença do pensar de todos os seres humanos para o pen-

    sar do filósofo é que o filósofo profissional ou técnico não só pensa

    com maior rigor lógico, com maior coerência, com maior espírito de

    sistema, do que as demais pessoas, mas conhece (ou deveria conhecer)

    toda a história do pensamento, isto é, sabe (ou deveria saber) quais as

    razões do desenvolvimento que o pensamento sofreu até ele e está em

    condições de retomar os problemas a partir do ponto onde eles se en-

    contram, após terem sofrido a mais alta tentativa de solução.

    Aqui surge outro problema, pois a nossa sociedade delega, ou

    pretende delegar, quase que exclusivamente, o papel de pensar

    à

    ciência

    e, em particular, ao cientista. Atribuir essa especificidade do fazer hu-

    mano a determinado grupo de indivíduos especializados fez que o

    cientista se tornasse um mito.

    Todo m ito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensa-

    mento . Est e é um dos resultados engraçados  trágicos) da ciência. Se existe

    uma classe especiali za da em pensar de maneira corr eta  os cienti sta s), os

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    31/40

    Iilr PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO  ••

     

    outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e p odem sim plesm ente

    fazer

    o

    que

    os

    cientistas m andam . [. ..] A final de contas, para que serve nossa

    ca beça ? A inda podemos pensar? Adianta pensar?

    (Alves, 1996, p . 8).

    o

    pensar especializado, técnico, científico ou filosófico é urna

    forma de especialização e aprimoramento da capacidade de pensar

    que é própria do ser humano. O cientista é um especialista que resolveu

    especializar-se em urna única técnica. Isto quer dizer que a ciência é

    urna especialização, um refinamento de potenciais comuns a todos.

    A ciência não é um órgão novo de conhecim ento. A ciência é a hipertrofia de ca-

    pacidades que to do s têm. I sto pode ser bom , m as p od e ser m uito p erig oso. Q ua nto

    maior a vis ão em p ro fu nd id ad e, menor a visão em extensão. A tendência da es-

    pecialização é conhecer cada vez m aís de cada vez menos

    (Alves, 1996, p . 10).

    A especialização, quando dogmatizada, retoma àquilo que os

    cientistas e especialistas chamam de senso comum. A expressão senso

    comum foi criada por pessoas que se julgam acima do senso comum,

    corno urna forma de se diferenciarem daqueles que, segundo seu cri-

    tério são intelectualmente inferiores.

    Quando se refere ao senso comum, um cientista está, obviamente,

    pensando nas pessoas que não passaram por um treinamento científico.

    Porém, quando o pensar científicoreduz o processo de conhecimento uni-

    camente a essa sistematização, a própria ciência torna-se senso comum.

    Assim, senso comum não é um estágio de ser do pensamento ou

    da ciência, mas quando qualquer pensar se dogmatiza em torno das

    próprias afirmações.

    É

    esse dogmatismo mistificador e mitificante da

    realidade que precisa ser superado. Quando se fala na superação do

    senso comum, estamos falando da necessidade em superar os mitos

    construídos corno única maneira de conhecer e de compreender a

    realidade, na qual todos os seres humanos estão inseridos.

    Senso comum, ciência e filosofia são processos e modos de com-

    preensão que se complementam, pois todos eles desejam, de algum

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    32/40

    54

    III CAPíTULO   ••

    modo, ou de alguma maneira, explicar, de modo compreensivo e coe-

    rente, como as coisas funcionam, como é a realidade e como podemos,

    a partir dessa compreensão, agir e transformar as coisas. Dito assim,

    o senso comum, a ciência e a filosofia são modos que nos impulsionam

    na direção de um pensamento que quer aprender a agir e agir para

    aprender como transformar o mundo. O senso comum e a ciência são

    expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreen-

    der o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. E

    [...} para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é in-

    ferior

    à

    ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de m ilhares de

    anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se ass emelh ass e à

    noss a ciência. A ciência, curiosam ente, depois de cerca de quatro século s,

    desde que ela surgiu com seus fundadores, está colocando sérias am eaças à

    noss a sobrevivência (Alves, 1996, p  18).

    Tanto o senso comum quanto a ciência e a filosofia necessitam, em

    suas bases e como companheiro do processo de compreensão, da reflexão

    que se fundamenta na crítica.

    É

    no movimento do pensamento refle-

    xivo-crítico que o processo de compreensão se dinamiza na direção da

    vida vivida e a partir dela capta as experiências e constrói conhecimento.

    Nós podemos partir das posições do senso comum  para chegar a uma

    nova compreensão das coisas, do mundo, do ser humano e de toda a

    realidade, mas, se pararmos nossa reflexão nessa compreensão a que

    chegamos, retomamos à fragmentação e ao senso comum :

    O caminho da reflexão crítica se constrói em espiral. O ponto de

    chegada é uma nova partida que nos possibilita outra compreensão,

    nos lançando novamente em um processo reflexivo. A grandeza hu-

    mana está justamente nisto: responder de modo diferente a problemas

    humanos que são comuns. É na negação dessa dinâmica que podemos

    correr o risco de negar a própria humanidade. O processo reflexivo-

    -crítico é nosso ponto de partida e nosso horizonte.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    33/40

    •••PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO 

    55

    3 3 A Educação para

    o pensamento reflexivo

    o

    pensar que nos distancia do mundo é o mesmo que nos possibilita

    cornpreendê-lo. A possibilidade do pensar é condição para a construção

    e a constituição da significação do mundo. Pensamos que o grande de-

    safio e tarefa da Educação, nesse momento, é educar para o pensamento,

    pela filosofia da práxis crítica e,consequentemente, para a solidariedade,

    para a democracia, para a cidadania, para a tolerância, para o reconhe-

    cimento do diferente, para o respeito às formas de manifestação cultural,

    para a paz. Porém, tudo isto será inútil se o pensamento reflexivo-

    -crítico, como método de desalienação, não se constituir na base fun-

    dante do processo educativo. Se isto não acontecer, cabe-nos responsa-

    bilizar toda a sociedade e suas elites gananciosas como responsáveis

    por toda forma de violência e morte existente neste país.

    Educar para o pensamento e ressignificar o mundo que habitamos

    é uma urgência. Educar para o pensamento é cultivar em nós e em

    nossas relações escolares, principalmente nas salas de aula, atitudes

    que possibilitem o diálogo. É importante observar que, nas salas de

    aula, geralmente, o silêncio para o pensamento é raramente valorizado.

    Toda explicação, texto ou trabalho de grupo deve propiciar no educando

    uma reflexão pessoal e interna (Souza, 1998). Isso nos coloca diante de

    nós mesmos e diante do mundo.

    É

    no silêncio do pensamento que se

    processam a problematização e o questionamento do real.

    Educar para o pensamento éprovocar a descontinuidade, uma ruptura

    no mundo cotidiano para reconciliar-se com ele em um novo significado.

    Abertura e imprecisão são características próprias da atividade do pensa-

    mento que precisamser assumidas como necessáriaspara apráticaeducativa.

    Fazerpensar melhor para que se possa, também, agir da melhor forma.

    A faculdade de pensar não gera nenhum código de conduta. O

    pensar deve ser uma atividade atribuída a todos, e não somente a

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    56

    •• CAPíTULO I~

    alguns. O problema é que todos pensam, mas nem todos o fazem de

    modo crítico, analítico e reflexivo. Para a Educação, não basta ensinar

    a pensar, é necessário que ela ensine a pensar a partir de uma práxis

    crítica. A questão não é que pensamos ou o que pensamos, mas como

    pensamos sobre as coisas, o mundo, a política, a economia, a cultura,

    a religião, a alienação, a democracia, a ideologia, a liberdade, a cons-

    ciência, a responsabilidade ética para com o outro.

    A questão não está só no pensar. Porém, não pensar é como andar

    dormindo, isto é, o não pensar é como o sono que nos massacra, nos

    antropomorfiza em vez de nos hominizar,  Pensar é potenciar e poten-

    cializar a existência de nosso ser no mundo, superando a impossibili-

    dade do improvável e afirmando, no próprio existir, a probabilidade

    de ser e interpretar o mundo e o nosso ser nele. Pensar torna-se cada

    vez mais uma problemática complexa, pois antes de tudo relaciona-se

    com o conteúdo do próprio pensamento e com os processos cognitivos

    que esta operação envolve. Pensar não é uma questão simples, mas

    trata-se de uma complexidade filogenética desenvolvida e ampliada

    ao longo de todo o processo histórico da existência humana. Mas essa

    não é tanto nossa questão aqui; nosso objetivo é poder saber e propor

    como o processo reflexivo pode ser desencadeado por meio da escola.

    Pensamos na escola particularmente por meio de seus processos

    de ensino-aprendizagem e na Educação de modo geral como forma

    de circulação das informações que, como dissemos, amplia e constrói

    nossa inteligência que garante a vida em sua práxis. Precisamos cultivar

    o pensamento, sua atividade, seus processos e meios como quem luta

    para preservar a própria existência. Isto porque:

    8

    O term o quer expressar a noção de que o hum ano p roduz-se a si m esm o

    pela cultura e é po r ela p roduzido . S egundo C orte lla (1998 ), não pode ser confundido

    com hum an ização , que é um co nce ito ético que ind ica o p rocesso de criar

    co nd ições de v id a m ais dignas para as pesso as co mo um todo .

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    35/40

    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO   ••

    57

    [. .. } uma vida sem pensamento é totalmente possív el, mas ela fracassa em

    fa zer desabrochar a sua própria essência - ela não é apenas sem sentido;

    ela não

    é

    totalmente viva. Homens que não pensam são como so nâmb ulo s

    (Arendt, 1995, p  143).

    Não basta pensar coisas, há de se aprender a pensar pensamentos

    que pensam sobre as coisas. O pensar que pensa as coisas e só elas fa-

    cilmente se deixa alienar nas amarras do sistema. O pensar que pensa

    o pensamento das coisas e volta a elas é desmistificador do fetichismo

    da realidade alienada pelo mercado. Pensar é sentir-se vivo e vivendo

    interpretar o mais profundo sentido de nossa existência no mundo.

    Pensar, nesse sentido, é uma tarefa hermenêutica que nos conduz

    da interpretação para a compreensão do mundo e desta para sua proble-

    matização. Perguntar ao vivido o sentido e o significado de ser,desenterrar

    as coisas soterradas nos escombros da inconsciência, acordá -Iasda esta-

    bilidade alienante de suas estruturas psíquicas para que se possam

    rever as condições em que a vida nos coloca diante do pensamento e

    os limites que o próprio pensamento impõe

    à

    existência é uma exi-

    gência educativa. Isto implica que

    [...} pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa, e isto implica que o

    pensamento tem sempre que com eçar de novo; é uma a tiv id ad e que acompanha

    a vid a e tem a ver com os conceito s como justiça,fe licid ade e virtude, que nos

    sã o oferec idos pela própria linguagem , expre ssando o significado de tudo o que

    aconteceu na vida e nos ocorre enquanto estamos vivos

    (Arendt, 1995, p . 134).

    Pensar o real já pensado e realizar o pensamento é um instrumento

    que possibilita a cidadania, isto é, o pensar é em si uma ação de si

    mesmo que não se restringe ao próprio ego, mas que implica ação.

    Essa ação é um agir político comprometido com a transformação do

    mundo. Qualquer forma de pensamento que realiza o contrário se

    propaga como alienação e ideologia.

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    36/40

     

    ••.CAPíTULO I~

    Por isso, educar para o pensamento é despertar de nosso sono de

    irreflexão; abortar nossas opiniões vazias e irrefletidas; indignar-se e

    admirar-se; abrir nossas janelas conceituais para o vento do pensamento

    e começar já o nosso diálogo interior, instigado pela gritante realidade

    que nos interpela a uma práxis transformadora do mundo e de nós

    mesmos.

    É

    preciso desdomesticar nosso olhar e diminuir a amplitude

    de nossa surdez. Abandonar a fragmentação do gesto em função da

    disseminação do pensamento e de sua estrutura reflexiva, tão necessária

    ao processo educativo que busca a autonomia dos sujeitos.

    A reflexão tem como meio a crítica dos fundamentos para tornar

    possíveis novos atos criadores. Nesse sentido, o educador faz a

    crítica/destruição dos fundamentos da Educação, propõe e projeta

    soluções novas e pertinentes a esse momento em que a humanidade

    geme as dores da violência, da discriminação, da exploração e da ex-

    trema desigualdade social. Há de se destruir essa tradição impregnada

    em nosso modo de ser culturalmente para construir outra civilização

    que não seja esta fundada nas relações

    pessoais, 

    mas aquela em que o

    direito e a cidadania valem como princípio democrático. Na verdade,

    9

    T odas as re lações hum anas se estabelecem em nível in terp essoaL O que estam os questionando são aquelas

    re lações que se estab elecem apenas na troca de fav ores , isto é, no B ras il há um hábito que é conse nso so cial

    estabelecido com o norm al, onde tu do p assa pela troca de fav ores (D a M arta, 1981 ).A s re laç õe s sã o sem pre

    entre pe ss oas , enquanto portad oras de um a indiv idualidade única, in d iv is ível e irrepetível O p rob lem a não

    é

    este tip o de relação, m as aquela q ue se ap ro veita d esta n ece ssid ad e fu ndante do hum an o p ara e stab elecer

    um pro cesso d e alie n aç ão p o lí tica. A qu es tã o é q ue fu nd ar a p olítica em relaç õe s p ur am ente m ercantil istas

    significa im pedir a co nstrução do

    cidadão

    liv re e consc ien te de seus d ireitos. C ontu do , n ão podem os nos

    esquece r de que a fundação da sociedade enco ntra- se no dom por exce lência, que é a últim a razão da tro ca

    (M au ss , 1974; L évi-S trauss , 199 7). S e para M auss a raz ão de se r do social enco ntra-se na tro ca (com o

    princí p io de recip rocidade e de reconhecim ento do outro ), esta não seria um efe ito da so ciedade, m as a

    próp ria sociedade em ato . (Portanto, se os fato s so ciais são estrutu ras da socie dad e, estaríam os

    neg ligenciando o   jeitinho   como e stru turante da cu ltu ra brasileira E sta questão abre perspectivas, as quais

    n ão e stam os em condições de tra ta r n e ste cap í tu l o.) Para L évi-Strauss , este p rincíp io está na pro ib ição do

    ince sto que não é tan to um a regra que pro íb e se casar com a m ãe, a irm ã ou a filha, e sim m uito m ais um a

    reg ra q ue obriga dar a outros a m ãe, a irmã e a f ilha. É um a regra do dom por excelência.

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    •• PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO   ••

    59

    {.. .] nossa crítica é conter a politização do exis te nte, das form as de exist ência,

    de pensamento e de cultura, iniciada a part ir dos momentos mais tard ios

    da modernidade. E essa crítica se dá não apenas devido ao fato dessa poli-

    tização se r te ndenciosa, capaz de alterar verdades, de f alsificar as in fo rmações

    e de util iza r

    o

    saber como meio de dom inação. Mas sobretudo devido ao

    fato de que com ela têm -se fechado as vias do possív el, tem-se unidimensio-

    nalizado tanto o universo social quanto o simples indiv íduo; tem -se reprimido

    quando não destru ído as fo rmas alternativas diferencia is. Assim , uma relação

    produtiva entre

    o

    real e

    o

    possível, entre

    o

    existente e a u to pia to rna-se defi-

    nitivamente ameaçadora e

    é

    p orta nto e xo rc iza da (Arruda, 1998,

    p .

    7).

    A reflexividade como processo de educação para o pensamento

    reflexivo-crítico não está pronta.

    É

    uma construção, no Brasil, pois

    este ainda está dando seus primeiros passos. Nós acabamos de sair de

    três décadas de negação do pensar reflexivo-crítico-criativo; tudo foi

    destruído, anos de construção foram destruídos, aniquilados, em nome

    da ditadura política que ocultou por trás de si um violento processo

    econômico de exploração e de espoliação de todos os direitos.

    Estamos diante de um processo de reconstrução em que forças

    antagônicas disputam a hegemonia do poder político-sociaL É ne-

    cessário resistir a uma tentativa, de alguns grupos, de apropriar-se

    do pensar e de seu pensamento para fazer dele uma crença, um

    dogma que apenas justifica o próprio sistema. Os educadores devem

    ser a referência de resistência contra essa sistemática política e essa

    política sistemática de domínio.

    A crise político-econômica na qual estamos mergulhados nada

    mais é que uma construção do próprio sistema; aliás, é uma disfunção

    da exploração não pensada ; é uma consequência naturalizada pelo

    próprio sistema. Tudo o que está ocorrendo e o que ocorreu nada

    mais foi e é que o resultado decorrente de um processo de pensamento

    que se apropria do saber para escamotear e destruir as classes que se

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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    6

    CAPíTULOI~

    opõem a essa hegemonia construída no País, nos últimos trinta anos

    da Ditadura. Romper com esse esquema é nossa tarefa de educadores

    comprometidos com a construção de outra sociedade, de outra na-

    cionalidade e de outra identidade antropológica.

    4 Considerações finais

    A primeira ideia que me vem ao pensamento ao procurar siste-

    matizar sobre os limites e as possibilidades de reflexões que podem

    ser desencadeadas no processo é: Chegado à conclusão, não há con-

    clusão, Pelo menos, há a conclusão de que não é possível concluir. De

    qualquer modo, é uma justificativa plausível que nos permite esconder

    as fraquezas: do autor e do próprio texto.

    Não é muito fácil confessar as próprias fraquezas. Porém, é delas

    e nelas, sendo reconhecidas e corrigidas, que nos fortalecemos. Nesse

    caso, penso que este texto tem mais limites em sua propositura do

    que perspectivas, como havíamos pensado no início. Mas é preciso

    confessar que a trajetória fala por si e desenha imagens que também

    se prolongam para além dos horizontes desenhados inicialmente para

    aquilo que se pensou dizer.

    Ao dizer o que pensamos, procuramos articular o que somos. A

     esquizofren ía presente no texto não é decorrente da forma e do pro-

    cesso reflexivo, mas das contradições ontológicas que perpassam o

    modo de ser do autor que, em muitos momentos, não sabe como con-

    duzir-se no emaranhado de contradições em que mergulha.

    De fato, não há conclusão daquilo que aqui foi desenhado, porque

    esta deve ser tirada pelo leitor ao pensar e fazer um exercício reflexivo

    sobre o que e como o autor quis desenhar ao propor o texto do modo

    como ele o propõe. A conclusão, como amarração das pontas dos textos

    aparentemente dissonantes entre as partes deste texto, não é (ou pelo

  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

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      PERSPECTIVAS SOBRE A IDENTIDADE DO EDUCADOR DO CAMPO~

    menos não deve ser) um esforço do autor, mas do leitor que deve, ne-

    cessariamente, trazer sua experiência existencial para poder aprofundar,

    a partir do que foi dito, a própria identidade que se forma enquanto

    pensa em seu ser no contraste com outras formas e modos de ser.

    A proposital não conclusão não está querendo dizer que não haja

    conclusão possíveL Quer dizer apenas que a conclusão deve ser tomada

    pelo leitor. Esse é o esforço necessário que cada pessoa deve fazer como

    forma de pagamento pelo esforço que faço ao pensar algo que deve nos

    chamar a atenção para nosso mundo mais propriamente construí do a

    partir da forma como nos percebemos como identidade étnica.

    É claro que a proposição de não concluir abre novos aspectos que

    devem ser colocados em questão pelo modo como devemos pensar nosso

    modo próprio de ser a partir de um modo de pensar. Com isso, quero

    dizer que, se não formos capazes de lembrar, no futuro, o que fomos no

    passado, é porque perdemos a capacidade de pensar sobre nós próprios e

    sobre nosso modo de agir como característico de nosso modo de ser.

    Nem sempre ação e pensamento conseguem conjugar uma harmonia

    mais plena. Porém, essa é uma exigência de todo o processo pedagógico.

    Aquilo que nos acontecesempre nos atinge,porém somente quando somos

    capazesde pensar nos sentidos enos significadosde tudo o que nos acontece

    é que somos capazesde continuar, apesar de todos os limites que a realidade

    nos impõe. Esseé o sentido da experiência.Ela acontece somente se somos

    capazesde refletirsistemáticae conceitualmentesobreaquiloquenos ocorre.

    Esseexercício de reflexão, mais do que um exercício de pensamento,

    é uma forma pela qual possibilitamos que um acontecimento qualquer

    seja registrado em nosso cérebro de modo que sempre poderemos nos

    lembrar pela simples razão de que ficou gravado em nossa memória de

    longa duração. São essas coisas que nos acontecem, que recebem uma

    carga de pensamento e reflexão, que se tornam experiências significativas

    para nossa existênciapessoal e constituem-se como elementos fundadores

    de uma identidade coletiva, porque pública, portanto, política.

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  • 8/15/2019 Perspectivas Sobre a Identidade Do Educador Do Campo

    40/40

    ~CAPíTULO I~

    Aquilo que olhamos nem sempre é percebido. Perceber significa

    pensar, deter o olhar para além daquilo que nos parece ser. De qualquer

    modo, está feito o desafio: concluir um texto inconclusivo para poder

    desenhar seu significado a partir das experiências pessoais e coletivas

    que se constroem nas relações publicamente assumidas como a de um

    grupo e não de um indivíduo exclusivamente.

    Está feita a proposta. Só nos falta o exercício da reflexão como con-

    dição e possibilidade de compreender o que somos a partir daquilo que

    vivenciamos em um espaço que é público.

    Evandro Ghedin

    Graduado em Filosofiapela Universidade Católica de Brasília UNB ; especialista

    em Antropologia na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas Ufam ; es-

    pecialista em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília UCB ;

    mestre em Educação pela Ufam; doutor em Educação pela Universidade de São Paulo

     USP ; pós-doutor pela USP;professor doutor da Universidade Estadual de Roraima

     UERR e professor pesquisador da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Ma-

    temática Reamec . Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Epistemologia.

    Atua principalmente nos seguintes temas: ensino de filosofia, epistemologia, filosofia

    da educação, metodologia do ensino e didática.