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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros NUNES, A. Ensaio etnofotográfico - Entre águas que passam e brincadeiras que ficam: crianças tuxá na margem do rio São Francisco. In: CARVALHO, MR., and CARVALHO, AM., org. Índios e caboclos: a história recontada [online]. Salvador: EDUFBA, 2012, pp. 128-146. ISBN 978-85-232- 1208-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Parte II - De índios a caboclos, de caboclos a índios Ensaio etnofotográfico - Entre águas que passam e brincadeiras que ficam: crianças tuxá na margem do rio São Francisco Ângela Nunes

Parte II - De índios a caboclos, de caboclos a índiosbooks.scielo.org/id/mv4m8/pdf/carvalho-9788523212087-06.pdf · nhos de lata, desfiles de moda. Troncos imitavam canoas, árvores

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros NUNES, A. Ensaio etnofotográfico - Entre águas que passam e brincadeiras que ficam: crianças tuxá na margem do rio São Francisco. In: CARVALHO, MR., and CARVALHO, AM., org. Índios e caboclos: a história recontada [online]. Salvador: EDUFBA, 2012, pp. 128-146. ISBN 978-85-232-1208-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

Parte II - De índios a caboclos, de caboclos a índios Ensaio etnofotográfico - Entre águas que passam e brincadeiras que ficam: crianças tuxá na margem

do rio São Francisco

Ângela Nunes

PARTE II

DE ÍNDIOS A CABOCLOS, DE CABOCLOS A ÍNDIOS

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ENTRE ÁGUAS QUE PASSAM E BRINCADEIRAS QUE FICAM*

CRIANÇAS TUXÁ NA MARGEM DO RIO SÃO FRANCISCO

Ângela Nunes

Bahia. Julho de 1987. Lembro-me da lufada de ar quente e úmido ao sair do avião em Salvador. Das conversas com Pedro e Rosário. Do aperto no coração, antecipando o novo e desconhecido. De Carlos, parceiro na viagem em que conheci os índios Tuxá e amigo para sempre. Do motorista que nos conduziu ao sertão, perguntando se íamos armados. Da natureza exuberante sendo tomada pela aridez, pelos cactos e arbustos sem folhas teimosamente mordiscados por cabras magras. Do sol a queimar a pele e a semicerrar os olhos. Da poeira que se agarrava na garganta. Do horizonte quase sem vivalma. Da entrada em Rodelas e de Carlos me apontar “veja, essa é a rua dos índios”. Da minha perplexidade, não obstante avisada... afinal, era uma rua igual às outras. Ou quase... Do refrigerante que bebemos à chegada, porque não havia água, e que me deixou ainda mais sedenta. Da ducha refrescante na casa das generosas freirinhas.

À noite fomos à rua dos índios, ou seja, à aldeia indígena. Havia crianças por todo o lado, entrando numas casas e saindo doutras, brincando, cantarolando, gritando, rindo e, ocasionalmente, choramingando ou dormitando no colo de alguém. Havia som de música e televisão, muito alto, saindo de cada casa. Carlos apresentou-me ao cacique e sua família, e aos moradores de mais duas casas. Ao saberem o que me tinha levado a Rodelas, logo irrompiam nomes de jogos e brincadeiras... e uma

* Agradeço a Paula Morgado o delicado trabalho de retoque nas fotografias que compõem este ensaio.

ENSAIO ETNOFOTOGRÁFICO I

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senhora idosa, misto de índio e negro, disse “criança é o que não falta aqui... parece formiga... e brincadeira... tenho uma neta que é perigosa para essa coisa!”. As três semanas que se seguiram foram mágicas e memoráveis. O diário de campo relido e as imagens reolhadas são uma viagem no tempo. Em vários sentidos. No autobiográfico também. Lembro-me, anos antes (1981-82), das conversas com Pedro Agostinho no café Martinho da Arcada, em Lisboa. Eu falava-lhe de crianças e ele falava-me de índios. Perguntei se seria possível juntar ‘crianças’ e ‘índios’ e ‘antropologia’. Ele não sabia quem o estivesse fazendo, mas disse que sim. Num papel que guardo até hoje, ele escreveu o nome de duas antropólogas que poderiam acolher a ideia. Uma delas foi Aracy Lopes da Silva, que viria a tornar-se minha orientadora e amiga.

Esta viagem ao sertão da Bahia aconteceu antes de eu começar a estudar antro-pologia. Foi no ano em que a barragem de Itaparica, no rio São Francisco, fecharia as comportas e formaria um lago, submergindo três aldeias, entre elas Rodelas, onde vivia o povo indígena Tuxá. Uma equipe do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, coordenada por Pedro Agostinho e Rosário Carvalho, estava a proceder o salvamento arqueológico da área, antes que as águas subissem, e a acompanhar os índios no processo de relocamento para uma aldeia nova. Perguntei se podia juntar-me a eles. Concordaram. E eu fui. Com Carlos Etchevarne, arqueólogo. Eles sabiam o que me movia. Na volta a Salvador, conversamos intensamente sobre as minhas observações, fotografias, diário de campo. Jorravam ideias e entusiasmo de todos nós. E os três puseram-me um ultimato (obrigada!): levar tudo aquilo para os estudos sobre etnologia indigena no Brasil. Poucos meses depois, fiz o vestibular e entrei na Universidade de São Paulo (USP).

Conheci os Tuxá num momento difícil e, provavelmente, confuso nas suas vidas, em que o dinheiro das indenizações previstas em lei, e sob a responsabilidade da Companhia hidroelétrica de São Francisco, parecia colmatar a enorme perda emi-nente, material e imaterial. O lugar dos ancestrais, do culto dos “encantados”, as mangueiras seculares, a aldeia onde a maioria tinha nascido, a ilha que lhes garantia o sustento, tão rica em aluviões... tudo estava prestes a desaparecer. Na verdade, ne-nhum dinheiro poderia pagar isso. E uma aldeia nova, ainda sem alma, esperava-os mais acima, longe das águas.

As crianças, entre tarefas domésticas e sua azáfama brincante, não estavam alheias à mudança. Alguns adultos diziam que com a chegada da televisão e outros bens de consumo, já não se brincava como ‘antes’. Mesmo assim, apesar das novelas, Xuxa e super-heróis da época, registrei um repertório de brincadeiras riquíssimo. As crianças

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nhos de lata, desfiles de moda. Troncos imitavam canoas, árvores serviam de balanço. Brincavam com a areia, pedras e água do rio, a terra dos caminhos, paus, com o seu corpo, bibicletas, bolas, chinelos e as galinhas que passavam. Brincavam sozinhas e umas com as outras, menores e maiores. Pulavam corda, faziam rodas, corriam, saltitavam, pulavam, cantavam. Brincavam de glória, bobinho, pega-pega, podre, mata, dominó, bozó, palito, rapa pião, bitola, bitolão, atirei o pau no gato, esconder o pau, caiu do poço, gata pintada, rainha, balança caixão, casamento francês, ximão, barra da presa, choco, bambolê, garrafão, bostinha de cabra, jogo das pedras, bila, boneca, fita, cão... Também brincam de dançar o Toré, escondidos numa clareira da mata, usando os adornos Tuxá e entoando os seus cantos. Uma das brincadeiras que frequentemente faziam, na margem do rio, era a construção de diques com areia e pedra, moldando represas que enchiam de água até que rebentassem. As rupturas nos diques soltavam a água que, de novo livre, escorria pela margem até o rio São Francisco, retomando o seu caudal.

As fotografias selecionadas para este ensaio – intencionalmente, sem legendas – fazem parte de um extenso acervo recolhido há mais de duas décadas. O ensaio revisita uma aldeia que há muito deixou de existir, as brincadeiras que animavam a sua rua, as clareiras, a margem do rio e os seus brincantes. Talvez um dia possam essas crianças, hoje adultas, legendar as suas imagens e memórias.

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