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Para Mary, com amor

Para Mary, com amor - Grupo Editorial Record · em volta do chapéu de forma a esconder o rasgado. — O que foi agora, Sr. Holles? — Lancha atracada, senhor. O Leopard não tinha

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Para Mary, com amor

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As velas de um navio de velas redondas, estendidas para secar na calmaria.

1 Giba 12 Vela grande ou vela mestra 2 Bujarrona 13 Velacho grande 3 Vela de estai do mastro do traquete 14 Joanete grande 4 Vela de estai de proa 15 Vela de estai da mezena 5 Traquete 16 Vela de estai do alto da mezena 6 Velacho 17 Joanete de estai da mezena 7 Joanete de proa 18 Vela da mezena 8 Vela de estai 19 Draiva 9 Vela de estai do mastro grande 20 Velacho da mezena10 Vela de estai intermediária 21 Joanete da mezena11 Vela de estai do joanete

Fonte da ilustração: Serres, Liber Nauticus

Cortesia do Science and Technology Research Center,

The New York Public Library, Astor, Lenox, and Tilden Foundation

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Nota do autor

Quando a história e a ficção se entrelaçam, o leitor pode ter vontade de saber até que ponto os fatos registrados sofreram alterações. Neste livro tenho duas ações históricas de fragatas, e quando as descrevo atenho-me estritamente aos relatos contemporâneos, às cartas ofi-ciais sobre o serviço, às cortes marciais dos oficiais que perderam seus navios, aos jornais e revistas da época, a James, o melhor dos historiadores navais contemporâneos, é claro, e às biografias e memórias de quem participou das ações. Parece-me que, no que se refere à Marinha Real e à então nascente Marinha dos Estados Unidos, não há sentido em tentar melhorar os registros, uma vez que os fatos simples falam por si mesmos com a ênfase do costado de um navio; e a única liberdade que tomei foi colocar meus heróis a bordo. E mesmo assim, embora não sejam tão periféricos quanto Fabrice no campo de batalha de Waterloo, eles não desempenham papel decisivo nem alteram de forma alguma o curso da história.

Para os que gostarem de seguir a segunda ação em maiores de-talhes, posso recomendar a Memoir of Admiral Sir P. B. V. Broke, Bart., KCB etc. (Londres, 1866), do Rev. Dr. Brighton, MD. Parece às vezes uma hagiografia, e às vezes não é franca nem generosa com o inimigo; mas o autor teve contato com muitos dos sobreviventes do lado britânico (inclusive o Sr. Wallis, que aparece nestas páginas ainda jovem e que viveu até os 100 anos ainda no serviço ativo, o almirante de esquadra Sir Provo Wallis) e, com zelo talvez mais adequado ao médico do que ao pastor, ele relata cada bala, projétil, palanqueta ou lanterneta que atingiu os navios em batalha.

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E assim como minha imaginação não foi capaz de desfazer os fatos no que se refere a essas ações, também foi incapaz de produzir o inglês de um francês de valor igual ao de Anthelme Brillat-Savarin, que se refugiou nos Estados Unidos durante a Revolução (ele preparou esquilos ao molho madeira durante sua permanência) e cuja explosão há de ser imediatamente reconhecida pelos leitores da sua Physiologie du Goût, embora eu a coloque na boca de um dos meus personagens.

Finalmente, gostaria de agradecer ao Public Record Office e ao National Maritime Museum pela ajuda e gentileza de me enviar cópias dos livros de bordo originais e desenhos dos navios mencio-nados: tais documentos são a própria autenticidade e espero que pelo menos um pouco dessa qualidade tenha sido transmitida na história.

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Capítulo uM

A monção quente soprava suavemente do leste, levando o HMS Leopard para dentro da Baía de Pulo Batang. Todas as velas

que se podia içar foram içadas para que ele chegasse ao ancoradouro antes da virada da maré e para que entrasse na baía sem descrédito, mas elas compunham um espetáculo lamentável — remendadas, com lonas desbotadas tão finas que mal conseguiam bloquear a luz forte —, e seu casco era ainda pior. Um olho profissional seria capaz de perceber que ele antes havia sido pintado com o xadrez de Nelson, que era um navio de guerra quarta classe construído para cinquenta canhões em dois conveses; mas para um homem de terra, apesar do pavilhão e da bandeira nacional imunda no alto da mezena, ele pode-ria passar por um navio mercante decadente como poucos. E apesar da presença dos dois vigias no convés, olhando atentamente a linha da costa, de um verde extraordinariamente brilhante e aspirando o perfume das Ilhas das Especiarias, a tripulação do Leopard era tão reduzida que a ideia de ele ser um navio mercante se confirmava; além disso, um olhar pouco atento não distinguia nenhum canhão, e as figuras descompostas e em mangas de camisas no tombadilho mal poderiam ser vistas como oficiais superiores.

Aquelas figuras olhavam com a mesma intensidade ao longo da baía, para as margens verdes da enseada onde estava ancorada a nau capitânia, e, além dela, para a ampla casa branca que havia sido a residência favorita do governador holandês durante a estação chu-vosa: a bandeira da União drapejava sobre ela. Enquanto olhavam, um sinal foi içado no segundo mastro à direita.

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— Eles estão pedindo que icemos nosso sinal privado, senhor — disse o aspirante-sinaleiro, o telescópio ao olho.

— Pois faça-o, Sr. Wetherby, junto com o nosso número — disse o capitão; e para o primeiro-tenente: — Sr. Babbington, barlaventar e iniciar a salva.

O Leopard deslizou, o vento cantando suavemente em suas cor-das, a água quente sussurrando em seus costados. Em um silêncio absoluto a tripulação amantilhava as vergas, e o vento começou a bater de través. E no mesmo silêncio a costa contemplava o número do Leopard.

Aproou; veio suavemente ao vento, e sua única caronada come-çou a falar. Dezessete pequenas nuvens de fumaça e 17 tiros fracos como traques sobre o imenso mar profundo; quando o último gemido morreu, a nau capitânia começou sua resposta profunda e altissonante e outro sinal foi içado em terra.

— Capitão, apresentar-se à capitânia, senhor — disse o aspirante.— Preparar lancha, Sr. Babbington.O capitão foi para o seu camarote. Nem sua chegada nem a

presença da capitânia eram inesperadas, e seu uniforme completo estava estendido na sua cama, limpo e escovado para remover todas as manchas de água salgada, algas congeladas, liquens antárticos e mofo tropical até ficar puído em vários lugares e estranhamente fel-trado em outros; mesmo assim, o casaco azul com ornatos dourados, encolhido e desbotado, ainda apresentava um tecido honesto, e, ao vesti-lo, ele começou a suar. Sentou-se e afrouxou o lenço no pescoço.

— Eu ainda me acostumo, com certeza — disse ele, e ouviu então a voz de seu camareiro gritando numa fúria blasfema e en-surdecedora.

— Killick, olá, Killick. O que há de errado?— É o seu bicorne, senhor, o seu bicorne número um. O fas-

cólomo o pegou.— Então tome-o dele, por Deus.

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— Não me atrevo, senhor. Tenho medo de rasgar a renda.— Ora, senhor — gritou o capitão, uma figura alta e imponente,

passando ao camarote principal. — Ora, senhor — disse dirigindo-se ao fascólomo, um dos inúmeros marsupiais trazidos para o navio pelo médico, filósofo natural —, entregue-me imediatamente, ouviu?

O fascólomo encarou-o de frente, olho no olho, puxou da boca uma longa renda dourada e então deliberadamente recolheu-a no-vamente na boca.

— Mande chamar o Dr. Maturin — disse o capitão, olhando com raiva para o fascólomo; e, no momento seguinte: — Ora, vamos, Stephen, isto já está indo longe demais, o seu animal está comendo o meu chapéu.

— E está mesmo — disse o Dr. Maturin. — Mas não se preo-cupe, Jack; não vai lhe fazer mal. Seus processos digestivos…

Nesse ponto o fascólomo largou o chapéu, atravessou o camarote e subiu aos braços do Dr. Maturin, encarando de perto seu rosto com uma expressão de profunda afeição.

— Bem, posso mantê-lo sob o braço, junto de meus relatórios — disse o capitão, recolhendo um maço de papéis e apertando-os em volta do chapéu de forma a esconder o rasgado. — O que foi agora, Sr. Holles?

— Lancha atracada, senhor.O Leopard não tinha lancha, nada além de um bote remendado

e reformado a ponto de mal se ver uma única prancha que fosse da construção original. Foi considerado lancha para aquela ocasião, mas era tão pequeno que os tripulantes da lancha do capitão (que antes eram dez dos leopardos mais fortes, todos vestidos com ja-quetas de Guernsey e chapéus envernizados) não passavam agora de dois, o timoneiro Barrett Bonden e um hábil marinheiro de nome Plaice. Ainda assim, tratava-se da Marinha Real, e o bote, tal como o convés do Leopard, havia sido lixado e lavado com zorra até chegar a uma condição de brilho extraordinário, enquanto os

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próprios marinheiros haviam usado toda a sua inteligência naval em tudo que se referia a calças de lona e chapéus brancos de palha. Na verdade, o Leopard assumiu uma aparência quase naval quando seu capitão chegou ao convés: o oficial fuzileiro e seus poucos homens remanescentes haviam vestido seus casacos cor-de-rosa ou púrpura que antes haviam sido uniformes vermelhos e assumiram posição de sentido, tão retos quanto as suas próprias varetas no momento em que o capitão desceu pelo costado diante do resquício possível de cerimonial que os leopardos puderam oferecer.

— Aubrey! — gritou o almirante, que se levantou quando o capitão foi admitido e tomou-lhe a mão. — Aubrey! Por Deus, estou feliz em vê-lo. Já o dávamos por morto.

O almirante era um marinheiro gordo e atarracado com um rosto de imperador romano que parecia, e às vezes realmente era, ameaçador. Mas agora exalava prazer. Ele continuou:

— Por Deus, fico feliz em vê-lo. Quando os vigias me informa-ram da sua chegada, eu pensei que fosse o Active chegando antes do prazo; mas tão logo seu casco pôde ser visto, eu reconheci o velho e horroroso Leopard, que comandei em 93, o velho e horroroso Le-opard que voltava dos mortos! E, pelo que vejo, bastante castigado. Em que você se meteu?

— Aqui estão todas as minhas cartas, relatórios e declarações de condição, senhor — disse Jack Aubrey, pousando seus papéis na mesa —, desde o dia em que deixamos os Downs até esta manhã. Sinto muitíssimo por serem tão longos e tediosos, e também por ter demorado tanto para trazer até o senhor o Leopard, e nesse estado deplorável, o que é ainda pior.

— Bem, bem — disse o almirante, que colocou os óculos, olhou para a pilha e tornou a tirá-los. — Você sabe: antes tarde do que nunca. Dê-me um relatório sumário de tudo em que você se envolveu, e eu examino os papéis mais tarde.

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— Bem, senhor — disse Jack lentamente, organizando suas lembranças —, como sabe, recebi ordens de fazer escala em Botany Bay, para tratar da situação infeliz do Sr. Bligh; então, no último momento foi sugerido que se embarcassem vários condenados, que eu também deveria levar. Mas aqueles condenados traziam consigo a febre do cárcere, e quando chegamos a 12 graus ao norte da linha e depois de semanas sem fim de calmaria, a febre atacou da forma mais intensa. Perdemos mais de cem homens e ela durou tanto que fui obrigado a mudar o curso para o Brasil, para buscar provisões e desembarcar os doentes. Seus nomes estão todos aqui — disse ele, batendo numa das pilhas. — Então, poucos dias depois de zarpar-mos de Recife e tomarmos o curso para o Cabo, encontramos um 74 holandês, o Waakzaamheid.

— Isso mesmo — disse o almirante, com feroz satisfação. — Ele nos ameaçou. Um pesadelo infernal!

— Sim, senhor. Contando com tão poucos homens e em des-vantagem na artilharia, evitei a batalha e fugi até 41º sul, uma caçada muito longa. Conseguimos nos livrar deles, mas eles sabiam muito bem o nosso destino, e quando tomamos o rumo norte e oeste para o Cabo, algum tempo depois, lá estava ele novamente, a barlavento; e começou a ventar. Bem, senhor, para não ser tedioso, ele nos perseguiu até 43º sul, o vento aumentando e um mar muito encapelado; mas, prendendo nossos mastros, e lançando fora a nossa água, continuamos à frente, e um tiro da nossa peça de ré derrubou seu mastro de vante e assim ele adernou e naufragou.

— Então é verdade; por Deus! — gritou o almirante. — Muito bem, muito bem, de verdade. Ouvi que você tinha afundado o navio, mas mal pude acreditar. Não havia informação quanto às circunstâncias. — Ele agora via tudo com clareza: já conhecia as altas latitudes do sul, os mares e ventos enormes além dos graus quarenta, a morte instantânea de qualquer navio que adernasse. — Grande vitória. É um imenso alívio. Dou-lhe os parabéns de todo o coração,

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Aubrey — disse ele, apertando mais uma vez a mão de Jack. Elevou a voz, dirigindo-se a uma porta semiaberta: — Chloe, Chloe, aqui.

Apareceu uma jovem esbelta de pele cor de mel: vestia um saron-gue e um casaquinho aberto que revelava seios firmes e bem-feitos. Os olhos do capitão Aubrey se fixaram instantaneamente naqueles seios: engoliu em seco dolorosamente. Havia muito tempo não via um par de seios. Mas o almirante os via regularmente e, com não mais do que um olhar desinteressado, pediu champanhe e biscoitos, que chegaram imediatamente em bandejas trazidas por mais três jovens de mesmo porte, simpáticas e sorridentes; e quando o servi-ram, o capitão Aubrey notou que exalavam um odor de âmbar-gris e almíscar; talvez também de trevo e noz-moscada.

— São as minhas cozinheiras em terra — observou o almirante. — Descobri que são muito satisfatórias em pratos do país. Bem, à sua saúde, Aubrey, e à sua vitória: não é todo dia que um navio de cinquenta canhões afunda um de 74.

— Bondade sua, senhor. Mas temo que o que tenho a dizer agora não seja tão agradável. Depois de lançar fora quase toda a nossa água, só nos restou cerca de uma tonelada, então naveguei para sul e leste em busca de gelo flutuante: não tinha sentido percorrer cerca de mil milhas até o Cabo, e com o vento firme de oeste eu esperava seguir direto até Botany Bay tão logo tivéssemos completado nos-sa reserva de água. Encontramos gelo bem mais ao norte do que eu esperava, uma grande ilha de gelo. Mas infelizmente, senhor, tínhamos recolhido pouco mais que algumas toneladas quando o tempo piorou de uma forma que tive de chamar os botes; e então, no meio da neblina que baixou, batemos de popa na montanha de gelo, perdemos o leme e abriu-se um rombo no casco a bombordo. A entrada de água aumentou prodigiosamente apesar das velas que usamos para controlá-la, e foi então, senhor, que tivemos de lançar ao mar canhões e tudo mais em que pudéssemos pôr as mãos.

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O almirante anuiu com a cabeça, com expressão muito séria.— A tripulação se comportou melhor do que eu esperava; bom-

bearam água até ficarem esgotados. Mas quando a água chegou bem acima do convés inferior, foi-me sugerido que o navio fatalmente afundaria e que muitos homens desejavam se arriscar nos botes. Eu disse-lhes que deveríamos tentar mais uma vela para vedar o casco, mas que enquanto isso os barcos deveriam ser preparados e aprovisionados. Sinto muito ter de dizer isto, mas pouco depois alguns dos homens arrombaram a sala de bebidas e então instalou--se a desordem total. Os botes partiram em condição deplorável. Permita-me perguntar, senhor, se algum deles sobreviveu.

— A lancha chegou ao Cabo. Foi como eu fiquei sabendo do holandês, mas não tenho detalhes. Diga-me, algum dos oficiais ou jovens aspirantes foi com eles?

Jack fez uma pausa, girando o copo entre os dedos. As moças haviam deixado a porta aberta e no pátio externo ele viu cinco casuares mansos correndo na ponta dos pés, sérios como galinhas e muito parecidos com elas; mas galinhas com 1,5m de altura. No entanto, aquela visão mal passou pela sua mente consciente.

— Sim, senhor. Eu dei pessoalmente ao meu primeiro-tenente autorização para partir; e minhas palavras para os homens indicavam permissão sem sombra de dúvida. — Ele sabia que o almirante o observava sob a mão estendida sobre os olhos; acrescentou: — Tenho de dizer isto, senhor: meu primeiro-tenente se comportou como um perfeito oficial e marinheiro durante todo o incidente, fiquei plenamente satisfeito com sua conduta; e a água já chegava aos joelhos no convés inferior.

— Hum — disse o almirante. — Mas não parece bom. Algum outro oficial seguiu com ele?

— Somente o comissário e o capelão, senhor. Todos os outros oficiais e jovens aspirantes permaneceram e se comportaram muito bem.

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— Fico feliz em ouvi-lo — disse o almirante. — Continue, Aubrey.

— Bem, senhor, conseguimos controlar precariamente a inun-dação, adaptamos um equipamento de leme e partimos para as ilhas Crozets. Infelizmente não conseguimos chegar a elas, por isso tomamos o rumo de uma ilha que um baleeiro me havia indicado, localizada por um francês em 49º 44’ sul, a Ilha da Desolação. Lá carenamos o navio e fechamos o rombo, completamos o nosso suprimento de água, recolhemos provisões (focas, pinguins e um repolho muito saudável) e construímos um novo leme usando um mastro. Como não tínhamos uma forja, não conseguimos fixá-lo, mas felizmente aportou um baleeiro americano que tinha todas as ferramentas necessárias. Sinto ter de relatar, senhor, que nesse ponto um dos condenados conseguiu embarcar no baleeiro, junto com um americano que eu admiti como aspirante, e ambos fugiram.

— Americano? — gritou o almirante. — São todos iguais! Cri-minosos em sua maioria, e o resto não passa de mestiços sem raça. Eles dormem com mulheres negras, você sabe, Aubrey; sei de boa fonte que eles dormem com negras. Desleais; morram todos eles. Então esse sujeito que você admitiu como aspirante desertou, além de, não satisfeito, cooptar um inglês. Eis a gratidão americana! Todos iguais. Nós os protegemos dos franceses até 63 e o que eles fizeram? Pois eu vou lhe dizer o que eles fizeram, Aubrey: morderam a mão que os alimentava. Canalhas. E agora um dos aspirantes americanos atrai um dos seus prisioneiros. Provavelmente um sujeito condenado por parricídio, ou por grosseira imoralidade, ou pelos dois crimes, não tenho a menor dúvida. Farinha do mesmo saco, Aubrey, farinha do mesmo saco.

— Grande verdade, senhor, grande verdade; e quem encosta em piche não se livra mais dele.

— Terebintina remove o piche, Aubrey. Terebintina de Veneza.

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— Sim, senhor. Mas é preciso fazer justiça ao sujeito, e sou obrigado a dizer que ele nos ajudou muito durante a peste, agindo como auxiliar do médico. Ele fugiu com uma condenada americana, uma prisioneira com privilégios, tinha alojamento só para si. Uma mulher incrivelmente bela, a Sra. Wogan.

— Wogan? Louisa Wogan? Cabelos negros, olhos azuis?— Não notei a cor dos olhos dela, senhor. Mas era uma mulher

incrivelmente bela. E creio que se chamava Louisa. O senhor a conhece, senhor?

O rosto do almirante Drury assumiu um tom vermelho escuro — ele conhecia uma Louisa Wogan — conhecida do seu primo Vowles, alto oficial do almirantado — conhecida da Sra. Drury — nenhuma ligação possível com Botany Bay — um nome muito comum: mera coincidência — de forma alguma a mesma mulher — além do mais, agora o almirante se lembrava, os olhos da Sra. Wogan que ele conhecia eram amarelos. Mas não deveriam se estender naquele assunto: Aubrey podia continuar o seu relato.

— Sim, senhor. Assim, uma vez instalado o novo leme, partimos para Port Jackson; para Botany Bay. Depois de dois dias vimos o baleeiro, muito distante contra o vento; mas fui aconselhado... quero dizer, considerei ser meu dever não persegui-lo, dado o fato de a Sra. Wogan ser cidadã americana, e que, no atual estado de tensão, retirá-la à força de um navio americano poderia gerar complicações políticas. Suponho, senhor, que eles ainda não tenham declarado guerra contra nós.

— Não. Não que eu saiba. Gostaria que declarassem; eles não têm nenhum navio de linha e na semana passada três dos seus navios mercantes passaram por Amboyna; lindos prêmios!

— Claro, um prêmio é sempre bem-vindo, senhor. Seguimos, portanto, para Port Jackson, onde descobrimos que os problemas do capitão Bligh já tinham sido solucionados e que as autoridades não poderiam nos oferecer um único canhão nem um pedaço de vela, e

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muito pouco cordame. Nem tinta. Por isso, sem esperança de tirar nada dos militares responsáveis, que parecem ter rancor contra a Marinha desde a época do Sr. Bligh no comando, desembarquei os prisioneiros restantes e zarpei para este encontro com grande pressa. Quero dizer, levando em conta o estado do navio sob meu comando.

— Tenho certeza disso, Aubrey. Um feito grandioso, por Deus, e você é muito bem-vindo. Por Deus, pensei que você estivesse morto há muito tempo, em algum lugar debaixo de mil braças de água, e a Sra. Aubrey chorando desesperada. Não que ela tenha desistido de você: há dois meses, recebi um bilhete dela trazido pelo Thalia pedindo-me para enviar algumas coisas, creio que livros e meias, conforme eu me lembro, para a Nova Holanda, porque você certa-mente estava detido lá. Pobre mulher, pensei, está tricotando para um cadáver. Um bilhete tão bonito. Ainda o tenho. Sim — remexeu entre os papéis —, aqui está.

A visão daquela letra familiar atingiu Aubrey com força extra-ordinária, e por um momento ele seria capaz de jurar ter ouvido a voz dela: naquele instante foi como se estivesse na sala de refeições de Ashgrove Cottage, em Hampshire, no outro lado do mundo, e ela à sua frente à mesa, alta, meiga e linda, uma parte integral dele mesmo. Mas a figura do outro lado da mesa era na verdade um rude contra-almirante, que fazia a observação de que “todas as esposas eram iguais, até as navais; todas supunham haver um posto de correio em qualquer lugar onde um navio pudesse flutuar, pronto a levar e trazer suas cartas sem demora. Por isso os marinheiros são geralmente mal recebidos em casa, e acusados de não escrever com mais frequência: as esposas são todas iguais”.

— Não a minha — disse Jack, mas em voz baixa, e o almirante continuou:

— O almirantado também não desistiu de você. Deram-lhe o Acasta e Burrel se apresentou há muitos meses para substituí-lo no Leopard; mas ele morreu do fluxo sanguinolento, bem como

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metade dos seus homens e tanta gente aqui; e o que vou fazer com o Leopard, não sei dizer. Não tenho canhões aqui, a não ser os que conseguimos tomar dos holandeses, e nossas balas, você sabe muito bem, não servem para os canhões holandeses… e sem canhões ele só pode ser um navio de transporte. Deveria ter sido convertido para transporte há dez anos, ou 15. Mas isso não tem nada a ver com o caso presente: o que você vai ter de fazer, Aubrey, é trazer a sua bagagem para terra sem tardar, porque o La Flèche é esperado de Bombaim. Yorke está no comando. Ele só vai parar aqui para receber os meus despachos e voar para casa rápido como uma flecha. Rápido como uma flecha, Aubrey.

— Sim, senhor.— Flèche é a palavra francesa para flecha, Aubrey.— É mesmo? Eu não sabia. Muito boa, senhor. Excelente, de

verdade. Rápido como uma flecha. Vou repeti-la.— Claro que vai. E também vai dizer que é sua. E se Yorke não

se atrasar, se não ficar pelo Estreito de Sunda em busca de presas, você ainda terá a monção para a travessia, uma passagem famosa. Agora me dê uma ideia da condição do seu navio. É claro que ele vai ser inspecionado, mas eu gostaria de uma noção geral agora. E me diga quantos homens estão a bordo: você não acreditaria na minha fome de marinheiros. Nem ogros têm tanta.

Seguiu-se uma discussão altamente técnica em que as limita-ções do pobre Leopard foram francamente expostas — o estado do cavername, seus vaus deploráveis —, discussão que convenceu o almirante de que mesmo que tivesse os canhões para armá-lo, o navio não teria condições de suportá-los, dada a tensão imposta ao madeirame e ao grau chocante de apodrecimento que se espalhava desde a popa. A discussão, apesar de melancólica, foi perfeitamente amistosa: não se ouviram palavras duras até que chegaram ao tema dos marinheiros, oficiais e jovens aspirantes que, pelo costume do serviço, acompanhavam o capitão de um comando para o seguinte.

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Com um falso ar de indiferença, o almirante observou que, dadas as circunstâncias excepcionais, ele propunha retê-los todos.

— Mas você mantém o seu médico — disse ele. — Para falar a verdade, tenho várias ordens para enviá-lo de volta no primeiro navio e ele deve se apresentar imediatamente ao Sr. Wallis, meu conselheiro político. Sim, você certamente pode levá-lo com você, Aubrey, e esta é uma grande indulgência. Eu poderia mesmo lhe conceder um criado, embora o La Flèche talvez possa lhe fornecer quantos você desejar.

— Ah, não, senhor — gritou Jack. — Meus tenentes e Babbington estão comigo desde o meu primeiro comando; e os meus aspirantes, e todos os meus tripulantes de lancha, numa única chalupa podre? Isso é justiça, senhor?

— Que chalupa, Aubrey?— Quanto a isto, senhor, não estou me referindo a nenhum

barco em particular, foi uma alusão à Bíblia. Mas o que quero dizer é que é o costume imemorial do serviço…

— Devo entender que o senhor está questionando uma ordem minha, Sr. Aubrey?

— Nunca na minha vida, senhor, que o céu me condene. Qual-quer ordem por escrito com que o senhor decida me honrar, evi-dentemente, eu executarei de imediato. Mas, como o senhor sabe melhor que eu, o costume imemorial do serviço é que…

Jack e o almirante se conheciam fazia já vinte anos de encon-tros e ausências; haviam passado juntos muitas noites, algumas delas bêbados; a colisão dos dois, portanto, não tinha o veneno do encontro puramente oficial. Mas nem por isso era menos tenso, e logo suas vozes subiram até as jovens no pátio conseguirem entender claramente as palavras que diziam, até mesmo as reflexões pessoais, diretas no caso do almirante, levemente dissimuladas no caso de Jack; e muitas vezes elas ouviram gritarem “o costume imemorial do serviço”.

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— Você sempre foi um sujeito obstinado, cabeça-dura — disse o almirante.

— É o que dizia a minha velha ama — disse Jack. — Mas com certeza, senhor, até mesmo um homem sem nenhum respeito pelos costumes imemoriais do serviço, um inovador, um homem capaz de desprezar as rotinas da Marinha iria me condenar se eu não me colocasse ao lado dos meus oficiais e aspirantes, depois de eles se terem colocado ao meu lado numa situação horrivelmente descon-fortável. Eu não poderia permitir que meus jovens fossem colocados a serviço de capitães que não dão a menor importância para suas famílias nem para sua promoção e desertar um primeiro-tenente que me segue desde que era grumete, no momento mesmo em que tenho uma oportunidade de lhe oferecer uma promoção. Um golpe de sorte com o Acasta e Babbington será comandante. Apelo para o que o senhor mesmo praticou. Toda a Marinha sabe que Charles Yorke, Belling e Harry Fisher o seguiram de navio a navio e que se eles são todos comandantes e capitães efetivos é graças ao senhor. E eu sei perfeitamente que o senhor sempre cuidou muito bem dos seus jovens. O costume imemorial do serviço…

— Ora, f… o costume imemorial do serviço — gritou o almi-rante. E então, surpreso pelas próprias palavras, ficou em silêncio por um instante. Ele poderia, é claro, dar uma ordem direta, apesar de uma ordem escrita ser uma coisa inconveniente de se mostrar a todos. Por outro lado, Aubrey não somente estava com a razão como também tinha uma notável reputação de batalha, um capitão que tinha obtido uma tal quantia de dinheiro em presas que ficara conhecido como Jack Aubrey Sortudo, um capitão dono de uma bela propriedade em Hampshire, sendo seu pai um membro do Parlamento, um homem com possibilidades de assumir um cargo no almirantado, um homem considerável demais para um tratamento desatento. Além disso, o almirante gostava dele; e o Waakzaamheid havia sido um nobre feito. — Ora, bem, que seja! Que sujeito teimoso

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você é, Aubrey. Vamos encher as taças. Talvez lhe dê um pouco de bom-senso. Pode ficar com todos os seus homens, eu não ligo, além do seu primeiro-tenente. Se você os formou, aposto que eles vão discutir com o capitão toda vez que ele lhes der uma ordem. Você me lembra aquele velho sodomita.

— Sodomita, senhor? — resmungou Jack.— É. Você, que gosta tanto de citar a Bíblia, deve saber de quem

estou falando. O homem que discutiu com o Senhor por causa de Sodoma e Gomorra. Abraão, é este o nome! Fez o Senhor reduzir de cinquenta para 25 e depois para dez. Você pode ficar com Ba-bbington, os seus aspirantes, o seu médico, o seu patrão, mas não vamos mais discutir os seus tripulantes de lancha. É uma grande falta de juízo e presunção da sua parte, e de qualquer forma não há lugar para mais nenhuma alma no La Flèche, por isto este assunto está encerrado. Agora, diga-me, entre o seu pessoal que sobrou você consegue reunir uma equipe decente de 11 homens para um jogo de críquete? A esquadra está disputando um campeonato, navio contra navio, a 100 libras por equipe.

— Creio que posso, senhor — disse Jack, sorrindo. No instante mesmo em que o almirante pronunciou a palavra ele resolveu um pequeno problema que vinha atormentando um canto remoto de sua mente: o que seria aquele som absurdamente familiar que vinha do gramado atrás da casa? Resposta: era o ruído do choque do taco batendo na bola. — Creio que posso, senhor. A propósito, o senhor não teria mencionado a correspondência para o Leopard?

O conselheiro político do almirante era um homem de importância singular, pois o governo britânico tinha a intenção de acrescentar a totalidade das Índias Orientais Holandesas às possessões da Coroa, e não somente era necessário persuadir os governantes locais a amar o rei George como também os sistemas franceses e holandeses de influência e inteligência bem arraigados tinham de ser neutralizados

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e, se possível, erradicados. Mas ele vivia numa casa pequena e escura, sem nenhuma ostentação, nem a metade da pompa do secretário do almirante, e vestia-se despojadamente num casaco cor de rapé, sendo esta sua única concessão ao clima, e calças de nanquim, que em tempos idos já tinham sido brancas. Sua tarefa era difícil; ainda assim, como a Honorável Companhia das Índias Orientais tinha grande interesse na eliminação dos rivais holandeses, e como vários membros do gabinete eram proprietários de ações da companhia, ele podia pelo menos contar com um bom suprimento de dinheiro. Na verdade, quando seu visitante foi anunciado ele estava sentado sobre um de vários baús cheios de pequenos lingotes de prata, a moeda mais conveniente naquela região.

— Maturin! — gritou o político, arrancando os óculos verdes e apertando a mão do médico. — Maturin! Por Deus, como é bom revê-lo. Já o considerávamos morto. Como está passando? Achmet! — Bateu as mãos. — Café!

— Wallis — disse Maturin —, que prazer encontrá-lo aqui. Como está o seu pênis?

No último encontro dos dois ele tinha executado uma operação no seu colega de inteligência política e militar que desejava se passar por judeu: a operação, feita num adulto, se revelou bem mais com-plicada do que ele ou Wallis tinham imaginado, e Stephen havia muito era assombrado por ideias de gangrena.

O sorriso deliciado do Sr. Wallis ficou sério, uma expressão de autocomiseração lhe toldou o rosto e ele disse que estava bem, mas disse ter a impressão de que o órgão nunca mais seria o que já fora. Relatou em detalhe seus sintomas enquanto o perfume de café invadia a pequena sala imunda; mas quando o café apareceu num bule e numa bandeja de latão ele se interrompeu e disse:

— Ora, Maturin, eu aqui como um idiota a falar de mim mesmo. Por favor, conte-me da sua viagem, sua viagem terrivelmente árdua e prolongada; aliás, tão prolongada que já tínhamos quase perdido a

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esperança, e as cartas de Sir Joseph passaram de animadas a ansiosas e a, finalmente, quase melancólicas.

— Quero crer então que Sir Joseph está mais uma vez firme na sela.

— Mais firme que nunca; e com poderes ainda mais amplos — disse Wallis, e os dois trocaram um sorriso.

Sir Joseph Blaine havia sido o eficiente chefe da inteligência na-val. Os dois tinham conhecimento das manobras sutis que haviam causado sua aposentadoria prematura e das outras ainda mais sutis e muito mais inteligentes que o haviam levado de volta ao comando.

Stephen Maturin sorveu o café escaldante, o grão moca perfeito transportado em dhows da Arábia Feliz, e meditou. Era naturalmente um homem reservado e até mesmo dissimulado, o que talvez esti-vesse relacionado ao seu nascimento ilegítimo (seu pai era um oficial irlandês a serviço de Sua Mais Católica Majestade, e sua mãe, uma senhora catalã); mais ainda às suas atividades pela causa da libertação da Irlanda; e acima de tudo à sua aliança voluntária e gratuita com a inteligência naval feita com o único objetivo de derrotar Bonaparte, que ele odiava de todo o coração por um considerá-lo um tirano vil, cruel e vulgar, destruidor da liberdade e de nações, o traidor de tudo que havia de bom na Revolução. Mas a capacidade de manter a boca fechada lhe era inata, além da integridade, que fazia dele um dos mais respeitados agentes secretos do almirantado, particular-mente na Catalunha. Essa atividade era muito bem disfarçada por ser ele um ativo cirurgião naval, além de filósofo natural de renome internacional, conhecido de todos que professavam um interesse profundo pelo extinto solitário de Rodriguez (primo próximo do dodô), pela grande tartaruga terrestre Testudo aubreii, do oceano Índico ou pelos hábitos do tamanduá africano. Apesar de ser um grande agente secreto, ele tinha um coração, um coração amoroso que quase se partira por uma mulher chamada Diana Villiers: ela o havia preterido por um americano, preferência essa que era natural,

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já que o Sr. Johnson era um homem íntegro, inteligente, espirituoso e muito rico, enquanto Stephen era um simples bastardo pálido com estranhos olhos claros, cabelos esparsos e membros finos, além de muito pobre. No seu sofrimento, Maturin cometeu erros nas suas duas atividades — erros que podiam ser atribuídos ao abuso de tin-tura de láudano, seu vício à época — quando aconteceu de Louisa Wogan, uma americana conhecida de Diana Villiers, ser presa por espionagem e condenada ao degredo, ele recebeu ordens de ir com ela na qualidade de médico do Leopard. Era uma missão sem maior im-portância, comparada a outras que ele já havia executado, e à época lhe pareceu claro que Sir Joseph tencionava apenas afastá-lo. Ainda assim, sua ligação com a Sra. Wogan teve uma evolução curiosa… Quanto ele deveria informar a Wallis? E quanto Wallis já sabia?

— Parece que você usou a palavra “animado” quando aludiu às cartas de Sir Joseph. Uma expressão afetuosa.

Era um sinal para Wallis mostrar suas cartas se quisesse a con-tinuação do jogo em um nível razoavelmente franco; ele o fez imediatamente.

— Nada afetuosas, Maturin, posso lhe assegurar — disse ele, procurando uma pasta. — Tão logo recebeu o seu comunicado do Brasil, de Recife, ele escreveu para dizer que você tinha executado um golpe brilhante, que tinha extraído todas as informações possuídas pela senhora em muito menos tempo do que ele tinha esperado; que ele tinha um quadro razoavelmente completo da organização dos americanos; e que ele iria fazer o máximo para levar você de volta do Cabo por um despacho enviado pelo primeiro navio com destino àquela estação, mas que mesmo que isso não fosse possível, ele considerava bem aplicado o tempo da sua ausência. Isso já era uma linguagem forte a ser esperada de Sir Joseph, mas não foi nada em comparação com o elogio que escreveu quando seus papéis chegaram a ele, vindos do Cabo.

— Então os barcos sobreviveram?

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— Um barco. A lancha conduzida por um certo Sr. Grant, que entregou os seus papéis ao oficial naval em comando.

— Foram danificados? Eu estava com água pelos joelhos quando os escrevi.

— Havia manchas de água e de sangue, já que o Sr. Grant en-frentou problemas com os seus homens. Mas, com exceção de duas folhas, estavam totalmente legíveis. Sir Joseph me informou as linhas principais, acompanhadas, é claro, de tudo que era relevante para a situação. Ao mesmo tempo ele lhe enviou esta carta — passou-a a Maturin — e me disse para ver você como um exemplo de como enganar e dividir o inimigo. Eu deveria, disse ele, emular seus pro-cedimentos, na medida do possível, nessa esfera. Outros despachos se seguiram, cada um deles com uma carta para você: o tom delas, como já disse, passou à ansiedade e, ao longo do tempo, chegou quase ao desespero, mas sempre com o mesmo teor: você deveria retornar imediatamente, para explorar ao máximo a confusão causada nos serviços franceses e para renovar as suas atividades na Catalunha. Tenho um relatório condensado para você sobre a situação ali.

Wallis era um colega velho e já experiente, sem outros vícios que não a parcimônia, a mesquinhez e a fria lascívia, tão comuns entre os da inteligência; ele claramente já conhecia quase todos os pontos essenciais; também era claro que, como tinha quase perecido na viagem de vinda, Stephen Maturin poderia muito bem perecer na viagem de volta. O mar era um elemento traiçoeiro, e o navio, um transporte frágil — fragilis ratis — agitado pelas ondas ao seu bel- prazer e dominado por todos os ventos que sopram. Era importante que Wallis soubesse.

— Ouça — disse ele, e Wallis inclinou atentamente o ouvido, seu rosto expressando o mais intenso interesse e curiosidade. — Você sabe o começo de tudo, a prisão de Wogan na posse de papéis do almirantado? — Wallis anuiu com a cabeça. — Ela era uma agente de pouca importância, mas leal e bem recrutada, impossível de ser

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comprada; naturalmente ela fez o possível para informar o chefe sobre como havia deixado a situação, quem estava comprometido e quem não estava. Acontece que ela tinha um amante a bordo, um compatriota, um jovem inteligente e erudito de nome Herapath, que se engajou para ficar com ela. Ela o usou para transmitir a sua informação: eu a interceptei em Recife. Esta foi a minha primeira comunicação. No início da viagem eu tinha um assistente chamado Martin, um homem de uma das ilhas do Canal que havia sido criado na França. Ele morreu, e me ocorreu que com seus antecedentes ele seria um agente secreto muito convincente. Portanto eu inventei uma declaração geral da posição que supostamente teria pertencido a ele e que dizia respeito à nossa inteligência na Europa, com referências aos Estados Unidos e a outro documento dedicado às Índias Orientais. Não tinha informações suficientes para redigir um relatório sobre as Índias Orientais que fosse convincente para um especialista, por isso nem cheguei a tentar. Mas me orgulho de a minha análi-se da situação na Europa e minhas observações sucintas sobre os Estados Unidos poderem convencer até um homem cético como Durand-Ruel. Não preciso lhe dizer, meu caro Wallis, que o meu documento continha detalhes de agentes duplos, subornos, fontes de informações em vários ministérios franceses e nos de seus aliados; ele foi de fato concebido para confundir suas políticas, colocar fora de ação os seus melhores homens e arruinar sua confiança mútua. O documento foi encontrado entre os pertences do oficial morto e gerou suspeitas; cópias deveriam ser feitas para as autoridades do Cabo, para serem enviadas para a Inglaterra. Herapath e eu éramos os únicos homens a bordo fluentes em francês; meu tempo estava todo tomado, e a tarefa foi toda assumida por Herapath, que pas-sara a ser meu assistente. Estava convencido de que ele acabaria por informar à sua amante e que o poder de Wogan sobre ele era de tal ordem que, apesar da sua honrosa relutância e dos seus escrúpulos, uma cópia chegaria a ela e seria enviada do Cabo para os Estados

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Unidos. A cópia realmente chegou a ela e foi codificada (por falar nisso, tenho a chave do código), mas não atracamos no Cabo, pois estávamos sendo perseguidos por um navio de guerra holandês de força superior. Tranquilizei-me ao pensar de que ela certamente iria inventar um meio de enviá-la de Botany Bay e que a perda daqueles meses, ainda que infinitamente lamentável, não seria desastrosa, pois enquanto não existisse um estado declarado de guerra aberta entre os Estados Unidos e a Inglaterra, não poderíamos ter certeza de que os americanos passariam a informação para seus aliados franceses, ou no mínimo aos cobeligerantes franceses. Mas, na verdade, era muito provável, mesmo em época de paz, que os bons ofícios usuais se encarregassem de transmitir informalmente a essência, se não a totalidade. O Sr. Fox se dá muito bem com Durand-Ruel. Mas, diga-me, essa guerra já foi declarada?

— Pelas últimas informações que tenho, não. Embora eu não consiga perceber como ela ainda possa ser adiada por muito mais tempo, se o governo continuar adotando o atual curso de ação. Es-tamos estrangulando o comércio deles, além de prender e torturar seus marinheiros.

— Um curso absurdo, desnecessário, imoral e desastrado — disse Stephen, irritado. — E, todas as outras considerações à parte, uma guerra levaria a uma profundamente estúpida dispersão de nossas forças e esforços. O governo realmente pretende dar àquele patife do Bonaparte uma pausa de alívio apenas para recuperar alguns supostos desertores (que, por definição, não estão dispostos a servir) e atender a um rancor antigo e ignóbil? É uma completa loucura. Mas estou divagando. A Sra. Wogan deveria enviar o documento de Botany Bay; o que seria excelente, se ela tivesse chegado ali. Não chegou. Nosso navio colidiu com uma montanha de gelo e quase afundou: alguns homens partiram em botes, e a eles eu confiei o que consegui copiar da minha declaração, de forma que, no caso de eles chegarem ao Cabo, Sir Joseph tivesse noção do que estava

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se passando e pudesse tomar as medidas necessárias. Foi a minha segunda comunicação. À época eu tinha poucas dúvidas de que o capitão Aubrey nos traria sãos e salvos, mas devo dizer que a demora foi um tormento para o meu coração. Você há de imaginar a minha felicidade quando um baleeiro americano atracou na ilha onde nos tínhamos refugiado, a Desolação, um lugar que nem vou tentar descrever, os pássaros, as focas, os liquens, Wallis! Para mim era o paraíso. Um baleeiro americano com destino a Nantucket. Com cuidados infinitos eu induzi Herapath e Wogan a embarcar naquele navio e partir levando consigo o relatório. Você não pode imaginar o desgaste mental enquanto Herapath oscilava entre o amor e a honra, Wallis; nem a extrema dificuldade de ocultar de sua amante as mi-nhas manipulações. E, mesmo então, o zelo do meu capitão quase me derrotou: esse baleeiro, claramente reconhecido no horizonte, surgiu no início de uma manhã antes de eu me levantar, e só quando afirmei a ele que me enforcaria da verga principal, ou alguma coisa do mesmo teor, que consegui convencê-lo a retomar o nosso curso para a Nova Holanda, aquele continente tão interessante. Quando o perdemos de vista, o baleeiro se dirigia rápido, com todas as velas, em direção aos Estados Unidos, e quero crer que Louisa Wogan já terá apresentado seu presente envenenado com a mais perfeita e totalmente convincente certeza da boa-fé.

— Apresentou! — gritou Wallis. — Apresentou, e seus efeitos já podem ser discernidos, como tenho certeza de que você vai ser informado pelas cartas de Sir Joseph. Ele me disse que Cavaignac foi fuzilado; e que, seguindo suas sugestões, ele enviou, passando pela Prússia, presentes mais ou menos facilmente detectáveis a vários membros do departamento de Desmoulins por favores recebidos; e daí ele espera confiante um belo holocausto. Os bons ofícios estão em operação. Por Deus, Maturin, que golpe!

Os olhos de Stephen brilharam. Ele amava a França e a ideia francesa de como a vida deveria ser vivida, mas odiava com ódio

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destruidor o serviço de inteligência de Bonaparte. Ademais, ele havia sido interrogado por alguns dos seus membros, e levaria as cicatrizes até o túmulo.

— Um feliz acaso colocou Louisa Wogan no meu caminho, e eu não lhe contei do evento talvez mais importante das nossas relações. Ela sabia que eu era um amigo da liberdade, mas talvez tenha dado uma interpretação errônea às minhas palavras, pois antes de partir me sugeriu, com um olhar significativo, que procurasse por um ami-go dela em Londres, o Sr. Pole, do Gabinete de Relações Exteriores.

— Charles Pole, do Eepartamento Americano? — gritou Wallis, mudando de cor.

Stephen concordou com um movimento de cabeça. Trocaram um olhar muito mais significativo que o da Sra. Wogan e Stephen se levantou, plenamente satisfeito com o efeito de suas palavras.

— Posso lhe pedir para me dar as outras cartas de Sir Joseph? Gostaria de exultar durante algum tempo na privacidade do meu quarto.

— Aqui estão — disse Wallis, passando as cartas depois de uma pausa silenciosa. — Aqui estão. Sua correspondência particular está à sua disposição no gabinete do secretário, na Residência, a grande casa branca. Gostaria que eu mandasse um portador?

— Muita gentileza sua, mas acho que vou até lá. Quero muito rever um casuar.

— Há grandes chances de você ver um bando deles no escritório do almirante. O antecessor holandês era um grande apreciador de casuares e mandou vir um bando deles de Ceram. É a casa branca grande com os mastros de bandeira, não há como não vê-la. Por Deus, Maturin, que golpe!

Stephen a viu, mas não os casuares. Eram pássaros tímidos, e a visão de um grupo de marinheiros que voltavam do campo de críquete forçou-os a correr sobre os pés enormes para a sombra dos sagueiros. Os marinheiros estavam nominalmente encarregados de

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um jovem do Cumberland, mas a democracia do jogo ainda estava neles e eles gritavam “Como vai, Leopard?”, “Você precisa de tinta?” e “Pegue alguns dos nossos mosquetes e prepare seu navio de guerra, ha, ha, ha”, brandindo os tacos e rindo do próprio humor com uma veemência que sufocava os apitos agudos do aspirante e que fez os casuares (apesar de serem mansos desde o ovo) se recolherem mais fundo na sombra.

Os jogadores de críquete mal tinham desaparecido quando Stephen encontrou o capitão Aubrey, que descia as escadas com um pacote sob o braço.

— Olá, Stephen — gritou ele —, você aqui! Estava justamente pensando em você. Recebemos ordens de voltar para casa imedia-tamente. Deram-me o Acasta. Aqui estão as suas cartas.

— O que é o Acasta? — perguntou Stephen, olhando para o pequeno pacote sem grande interesse.

— Uma fragata de quarenta canhões, provavelmente a mais pesada em serviço, à exceção do Egyptienne, da Endymion e da Indefatigable, é claro, com seus canhões de 24 libras. É o melhor veleiro de todos à bolina. Dois pontos fora do vento, e ele seria capaz de dar joanete de proa até mesmo ao velho Surprise. Uma autêntica maravilha com fundo revestido de cobre, Stephen; eu tinha certe-za de que o próximo seria um tedioso navio de linha de batalha, eternamente indo e vindo diante de Brest, ou polindo o cabo Sicié. Meu tempo com fragatas está começando muito bem.

— O que vai acontecer ao Leopard?— Vai se converter em transporte, como eu venho lhe dizen-

do desde Port Jackson. E quando o almirante vir o estado do seu cavername, duvido que transporte nele qualquer coisa de valor; o gelo lhe deu um castigo mais cruel que o sofrido por qualquer navio que tenha continuado flutuando. Não, ele deve terminar seus dias como navio de transporte, e Deus ajude o homem que o comandar numa tempestade.

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— Está me dizendo que temos de voltar para casa imediatamen-te? — Stephen gritou com raiva.

— Tão logo o La Fléche chegasse, para despachos. Amanhã ou talvez depois de amanhã ele entra, ancora junto ao cabo, ma-nobrando para não perder nem um momento sequer da monção, apenas o suficiente para Yorke ir a terra para receber os billets doux do almirante, de alguns homens reformados por invalidez e de nós, e então partir tremendo todo.

— Entendo, um navio notoriamente frágil. Muito bem, são todos iguais.

— Eu quis dizer vibrando. Uma flecha vibrando. Você entende?— Como pode falar com tanta tranquilidade quando na mesma

frase você me diz que devemos ir para casa sem qualquer chance de olhar a riqueza das Índias, passar pela flora e fauna com frígida indiferença, sem o menor exame? Sem ver a fabulosa árvore upas? Tem de ser assim?

— Temo que sim. Mas você deve lembrar que teve a sua opor-tunidade na Desolação: focas e pinguins empalhados, ovos de albatroz, aqueles pássaros com bicos estranhos; o porão do Leopard está atulhado deles. E você também não deixou de aproveitar a Nova Holanda, com seus malditos fascólomos e todo o resto.

— É verdade, Jack. Não pense que sou ingrato. E é evidente que vou ficar contente quando tiver em casa o mais cedo possível a minha coleção; a lula gigante já está em avançado estado de de-composição, enquanto os cangurus estão agitados por falta de uma dieta adequada. Mas eu queria muito ver um casuar.

— Sinto muito, de verdade, mas as exigências do serviço… — disse Jack, que se horrorizava ante uma nova leva de rinocerontes de Sumatra, orangotangos e filhotes de pássaro roca. — Stephen, suponho que você não seja muito bom com uma bola e um taco.

— E por que você faria uma suposição tão injuriosa? Ainda não encontrei um igual no hurly, ou taco, como você o chama, desde Malin Head até Skibereen.

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— Só pensei que você talvez estivesse acima dessas coisas; mas fico muito feliz com o que me diz. O almirante nos desafiou para um jogo e não há leopardos suficientes para formar um time.

O capitão do Leopard, apesar de madrugador, não encontrou seu médico à mesa do desjejum. Também não encontrou seu oficial nem o aspirante do turno. Não era anormal, pois, mergulhado na correspondência de casa, ele não tinha convidado nenhum dos dois, mas o Dr. Maturin era o companheiro invariável e ele quis saber a razão de sua ausência.

— Killick, onde está o médico?— Ele foi a terra antes do raiar do dia — disse Killick, com um

sorriso lascivo.Na mente de Killick havia apenas uma razão válida para ir a

terra, com exceção de se embebedar. Poderia ter tentado uma graça se o capitão estivesse no seu humor alegre de todas as manhãs em vez da expressão biliosa e envelhecida, como se tivesse passado a noite em claro.

— Está bem, esqueça — disse Jack, num tom que levou Killick a encará-lo com genuína preocupação.

Serviu-se de uma caneca de café e espalhou as cartas na mesa e as organizou na ordem mais próxima da cronológica, o que era uma tarefa difícil, pois, apesar de toda a sua insistência, Sophie raramente se lembrava de colocar a data. Entre as cartas havia al-gumas contas, e vez por outra ele acrescentava mais uma parcela, assoviava e ficava mais sério.

Killick entrou discretamente com um prato de rins, o petisco preferido do capitão, e o colocou silenciosamente entre os papéis.

— Obrigado, Killick — disse Jack, distraído.Os rins ainda estavam lá, frios como lhes permitia o sol tropical,

quando o Dr. Maturin subiu a bordo com a sua atitude elegante de sempre, chutando as portinholas, xingando os homens que o

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ajudaram a subir pelo casco do navio e chegando sem fôlego ao convés, como se tivesse acabado de subir correndo o Monumento. Estava sobrecarregado com muitos volumes e seus companheiros desalentados pensavam ter detectado uma píton num dos cestos redondos tampados.

Poucos homens o ajudavam ou examinavam sua bagagem; so-mente os leopardos feridos e aleijados estavam disponíveis. O resto estava ocupado. Os outros aspirantes do navio estavam reunidos no passadiço de bombordo, furiosamente rolando bolas revestidas de vela para Faster Doudle, o guarda-meta do Leopard, que as agarrava com a mesma precisão com que um cão de caça agarra um rato e com a mesma concentração feroz, enquanto toda a tripulação embaixo e todos os fuzileiros passavam observações agudamente críticas. Pois, apesar de o Leopard carecer de tinta, canhões e homens, eles estavam determinados a representá-lo dignamente na partida contra os homens do Cumberland. Vários entre eles eram homens de Kent e Hampshire, criados no gramado de críquete; e o Sr. Babbington, o primeiro-tenente, se distinguiu por ter marcado 47 corridas con-tra o clube de Marylebone no próprio campo de Broad Halfpenny Down. Estava muito ativo entre eles e as tarefas normais da manhã haviam sido abandonadas, substituídas por gritos de incentivo. Ao ver Stephen ele gritou:

— O senhor não esqueceu a partida, não é, doutor?— Nunca! — respondeu ele, brandindo um pedaço de madeira

branca recém-cortada. — Acabei de cortar o meu hurly de uma nobre árvore upas.

Dirigiu-se à oficina do carpinteiro e de lá para o camarote, e já dava um relato completo sobre a árvore upas — “completamente explodida, é claro, sem o menor cheiro de cadáver nas proximidades, mas uma visão interessante: acreditava ser ela prima da figueira” — quando notou a expressão do amigo e se interrompeu.

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— Espero que as notícias de casa sejam boas, meu caro. Sophie e as crianças estão bem?

— Ótimas, Stephen, obrigado. Ou melhor, a caxumba atacou as crianças depois da nossa partida, e George teve a gengiva vermelha logo depois do Natal. Mas estão todos bem agora.

— Caxumba. Muito bom. Quanto mais cedo, melhor. Se a nossa partida tivesse sido adiada um pouco mais, eu teria sugerido levá-las todas para uma casa com doentes. Eu gostaria que o governo infec-tasse todas as crianças, principalmente os meninos, numa idade bem precoce. Uma orquite que desanda é um espetáculo melancólico. E Sophie, está bem?

— Estava, pela última carta. Aliás, em todas ela lhe manda lembranças, como eu já deveria ter-lhe dito. Mas foi escrita há muito tempo, e como ela tem suportado a tensão, eu não sei.

— Ela ficou sabendo que Grant trouxe o barco em segurança até o Cabo? — Jack fez que sim com a cabeça. — Ela tem as suas cartas do Brasil, portanto sabe que você não estava satisfeito com Grant. E sabe que ele deve ter apresentado a situação como desesperada para se justificar: raciocinando com base nesses dois fatos, ela deve descontar o que ele disse. Deve ter total confiança no tratamento que você deu à situação. No mínimo, vai subestimar o perigo.

— Você tem toda razão, Stephen. Foi exatamente o que ela fez, e me escreve como se estivesse certa de que eu sobrevivi. Nunca demonstra a menor dúvida, em nenhuma dessas cartas, Deus a aben-çoe. E espero que as minhas, enviadas de Port Jackson, já tenham chegado. Mas mesmo que tenham, ainda há a ansiedade causada por esse maldito sujeito, Kimber. É dele que eu estava falando.

A essas palavras o coração de Stephen se apertou. O maldito Kimber havia convencido Jack Aubrey de que havia prata nos dejetos das antigas minas de chumbo nas suas terras; que aqueles dejetos poderiam ser tratados por um processo secreto e produzir os metais residuais; e que se algum dinheiro fosse gasto na empresa, os

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lucros seriam enormes. Do pouco que Stephen sabia de metalurgia, a coisa não era fisicamente impossível, mas tanto ele quanto Sophie consideravam Kimber um impostor, um dos muitos vigaristas que perseguiam marinheiros de licença em terra. Stephen sabia que em sua função Jack Aubrey era imensamente capaz, e que na guerra ele era tão inteligente e precavido quanto Ulisses — geralmente enga-nador, raramente sendo enganado. Mas não tinha uma boa opinião sobre a inteligência do amigo, ou mesmo do seu senso comum, em terra, e havia feito o possível para alertá-lo contra o projeto.

— Mas, pelo que me lembro, você estabeleceu limites rigorosos — disse ele, observando atentamente o rosto de Jack.

— É verdade — disse Jack, evitando encará-lo. — Eu segui o seu conselho; ou parte dele. Mas a verdade, Stephen, a verdade é que, na agitação da partida e das providências para os cavalos e estábulos novos, eu assinei alguns papéis que ele me trouxe à noite sem dar toda a atenção que devia ter dado. Pelas coisas que ele vem fazendo, novas estradas, picadas, galerias, máquinas, edifícios e até mesmo a ideia de uma sociedade por ações, é possível se pensar que um dos papéis seria uma procuração.

— Devo entender que você não leu tudo?— Não completamente, ou eu teria farejado alguma coisa. Você

sabe que eu não sou tão bobo assim.— Ouça, Jack — disse Stephen —, se você ficar pensando nisso,

sem todos os dados ou uma boa assessoria, vai apenas perder tempo e se angustiar. Conheço bem a sua constituição: quem a conheceria melhor? Não foi feita para suportar angústia prolongada e acima de tudo inútil. Você precisa disciplinar a mente, meu caro. Pois tem de considerar que, graças a essa ordem abençoada, você vai estar em casa muito mais cedo que o mensageiro mais rápido, aliás você mesmo será o mensageiro mais rápido, e que, portanto, você tem o dever de estar razoavelmente alegre, ou pelo menos aparentar alegria. Aproveite os esportes de campo, como o jogo desta tarde, até que

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chegue o La Flèche. Mas não ocioso, não sozinho. Falo com toda seriedade, irmão, como médico.

— Tenho certeza de que você tem razão, Stephen. Lamentar e amaldiçoar não são a resposta: vou me agitar em terra até o La Flèche vir. Normalmente eu estaria sentado trancado no camarote com os livros do navio, fechando as contas: livro da tripulação, livro da rouparia, livro da enfermaria, as informações dos artilheiros, do aspirante e do carpinteiro, contas trimestrais de provisões, livro de ordens, livro de cartas e todo o resto. Mas eles se perderam no mar: todos menos o diário de bordo, minhas observações e alguns outros documentos que eu levei para o almirante. Portanto, posso pelo menos jogar com a consciência tranquila. Mas vou lhe dizer, Stephen, o La Flèche nunca vai chegar cedo demais para mim, apesar de eu adorar um jogo de críquete. Se já não tivéssemos ordens para ir para casa, eu pediria uma licença, ia me declarar doente ou mesmo abandonar o serviço para poder voltar. — Pensou durante um momento, com uma expressão grave; e então, com um esforço evidente de disciplina da mente, perguntou: — Esse é o seu taco, Stephen?

— É. Acabei de discuti-lo com o carpinteiro e vou trabalhar a ex-tremidade distal com uma lima de osso, para aprofundar a ranhura.

— Parece muito o taco do meu avô — disse Jack, tomando-o nas mãos. — Faz uma curva para fora na ponta. Você não o acha um tanto leve, Stephen?

— Não. É o hurly mais pesado que já foi cortado de uma árvore upas mortal.

O jogo começou precisamente na hora, de acordo com o relógio do almirante Drury: Jack ganhou o sorteio da moeda e escolheu começar. For uma partida certamente democrática, mas democra-cia não era o mesmo que anarquia; certas decências tinham de ser preservadas, e o capitão do Leopard, com seu primeiro-tenente,

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abriu caminho, enquanto o almirante deu início aos procedimen-tos, lançando para Babbington. Tomou a bola do seu capelão e a esfregou durante algum tempo, encarando fixamente o tenente com um olhar frio como aço; então, com um leve salto, ele lançou um lob cruel. Ela caiu fora do off stump e Babbington rebateu; mas, ao jogar, a bola ameaçou seus órgãos vitais, e, inclinando-se para trás, ele lançou mansamente a bola exatamente nas mãos do almirante, para o aplauso entusiasmado dos cumberlands reunidos.

— Que tal? — perguntou o almirante ao capelão.— Muito bem, senhor — disse o capelão. — Quero dizer, fora!Babbington voltou abatido.— Você deve observar o almirante — disse ele ao capitão Moore,

dos fuzileiros, que o substituiu. — Foi o twister mais diabólico que você já viu.

— Vou jogar defensivamente durante a primeira hora e cansá- lo — respondeu Moore.

— Você deve correr, lançar e pegá-los de surpresa com um full- toss, senhor — disse Doudle. — É a única maneira de afastá-lo do seu length. É a única maneira de rebater aquele tipo de lob.

Alguns leopardos concordaram, outros sentiram que era prefe-rível esperar, acostumar-se à sensação do espaço de jogo antes de começar a arremessar; e o capitão Moore partiu seguido por um mundo de conselhos contraditórios.

Sem nunca ter assistido a um jogo de críquete, Stephen teria gos-tado de ver o conselho seguido por Moore, na verdade, ver em que consistia o jogo, que era obviamente diferente em muitos aspectos do de sua juventude. Teria também preferido continuar deitado na gra-ma, à sombra de uma majestosa canforeira, olhando o espaço verde brilhantemente iluminado com as figuras em branco dispostas sobre ele no padrão de uma dança ou talvez de uma cerimônia religiosa — quem sabe uma combinação dos dois —, um campo resplandecente cercado por um anel de figuras, algumas completamente de branco,

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outras com casacos azuis, outras ainda de sarongues brilhantes; pois os cumberlands já tinham suplantado os soldados holandeses no afeto das belas locais. Mas naquele momento surgiu um mensageiro trazendo uma nota: o Sr. Wallis lamentava muito importunar o Dr. Maturin, mas seu assistente confidencial havia adoecido; havia um despacho da maior importância a ser codificado antes da chegada do La Flèche e, se o prezado Dr. Maturin não estivesse ocupado, o Sr. Wallis ficaria infinitamente grato por sua ajuda.

— Não estou exatamente livre, colega — disse Stephen ao chegar ao escritório pequeno e sujo. — Meu navio está disputando um jogo de críquete, e eu devo participar. Mas o capitão Moore declarou que iria jogar defensivamente durante mais ou menos uma hora; embora eu não consiga entender como ele poderia gastar… Não importa: você lê en clair e eu cifro. Quero crer que você esteja usando 36 com desvio duplo.

O despacho rolou lentamente; numa voz monótona e desinteres-sada, eram relatados os processos tortuosos de Mynheer van Buren na corte do sultão de Tanjong Puding, os passos surpreendentes dados pelo Sr. Wallis para neutralizá-los — a Stephen nunca parecera que Wallis fosse um homem tão sanguinário nem que tivesse somas tão grandes à sua disposição —, concluindo com uma declaração objetiva da situação a favor e contra a ocupação britânica de Java, do ponto de vista político.

— Eles resolvem a questão ética — disse Wallis. — Ela não me interessa. O que me diz de um copo de negus?

— Com toda certeza — disse Stephen. — Trinta e seis com desvio duplo é um trabalho árido. — Mas seu destino era nunca beber aquele negus.

— Senhor, senhor — gritou um aspirante afogueado do Leopard, um rapaz absurdamente belo chamado Forshaw que sempre tivera uma atitude gentil e protetora em relação ao Dr. Maturin. — Final-mente o encontrei. É a sua vez! Doudle está fora... o senhor entra...

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e estamos em dificuldades... o almirante me disse para correr... corri até o hospital, e corri até Madame Titine... nove wickets derrubados e só temos 46... estamos em grandes dificuldades, senhor.

— Acalme-se, Sr. Forshaw — disse Stephen. — É apenas um jogo. Perdoe-me, Wallis; é esse o compromisso de que lhe falei.

— Como homens adultos conseguem pensar em jogar com ta-cos e bolas neste tempo — disse Wallis para a porta que se fechava enquanto bebia o negus de Stephen —, eu não consigo entender.

— Por favor, senhor, depressa — gritou Forshaw sobre os seus ombros. — O almirante está saltando de um lado para o outro; estamos em grandes dificuldades. Cuidado com o galho, senhor. Nove wicketes derrubados e só 46. O Sr. Byron marcou um duck, como também o velho Holles.

— Como é que você pôde pensar que eu estaria na casa de ma-dame Titine, Sr. Forshaw? — perguntou Stephen. — E o senhor está proibido de ir lá.

— Ah, senhor, depressa — gritou mais uma vez o menino, sal-tando atrás de Stephen para forçá-lo a correr. — Deixe-me carregar o seu taco. Nós dependemos inteiramente do senhor. O senhor é a nossa única esperança.

— Bem, vou dar o máximo de mim, é claro — disse Stephen. — Diga-me, Sr. Forshaw, o objetivo é derrubar o wicket do adver-sário, não é?

— Claro que é, senhor. Por favor, depressa. Tudo que o senhor precisa fazer é garantir a sua parte e deixar o capitão fazer o resto. Ele ainda está no jogo e ainda há uma esperança, se o senhor ga-rantir a sua parte.

Saíram da vegetação tropical, saudados pelo aplauso geral.Stephen avançou carregando seu hurly: sentia-se particularmen-

te bem e em forma; era novamente dono das suas pernas e já não tropeçava ao andar, caminhava com passo elástico. Jack veio ao seu encontro e lhe disse em voz baixa:

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— Garanta a sua parte, Stephen, até acostumar os olhos; e cui-dado com os twisters do almirante. — E então, ao se aproximarem do almirante: — Senhor, permita-me apresentar meu caro amigo, Dr. Maturin, médico do Leopard.

— Muito prazer, doutor — disse o almirante.— Peço desculpas, senhor, por me apresentar tão tardiamente;

fui convocado…— Por favor, sem cerimônias, doutor — disse o almirante, sor-

rindo: as 100 libras do Leopard estavam praticamente no seu bolso, e aquele recém-chegado não parecia muito perigoso. — Vamos começar?

— Certamente — disse Stephen.— Vá para a outra ponta — murmurou Jack, sentindo frio apesar

do sol tórrido.— O senhor vai querer outro taco? — perguntou o juiz quando

Stephen chegou ao final do pitch.— Não, senhor, obrigado — respondeu ele, segurando o cinto e

percorrendo o campo com os olhos. — Já tenho o meu.Um sorriso voraz surgiu no rosto dos cumberlands: eles se apro-

ximaram, agachados, as mãos enormes bem abertas. O almirante segurou a bola diante do nariz durante um longo momento, fixando o adversário, e então soltou um lob que zumbiu ao voar. Stephen observou o movimento da bola, dançou para recebê-la quando tocasse o chão, cortou seu movimento quando quicou, controlou-a em direção ao espantado cover-point e, ainda correndo, a recolheu no côncavo do seu hurly, correu com passos saltitantes até o meio do campo, parou de repente em meio ao espanto silencioso, tomou- a na mão, lançou-a para o alto e com um grito lançou-a contra o wicket de Jack, arrebentando o stump mais próximo e lançando a metade superior numa curva graciosa que atingiu o chão no exato momento em que os canhões do La Flèche ecoaram pelo campo saudando a bandeira.

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