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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020
PENSAR A COMUNICAÇÃO INTERMUNDOS: fóruns cosmopolíticos e diálogos interepistêmicos 1
TO THINK ABOUT COMMUNICATION BETWEEN WORLDS: cosmopolitical forums and inter-epistemic dialogues
Luciana de Oliveira 2
Júlio Vitorino Figueroa 3
Resumo: O artigo apresenta um diagnóstico e uma plataforma teórico-metodológica. O diagnóstico busca
dar conta da apartada relação entre os estudos de comunicação e os saberes-fazeres de populações tradicionais no Brasil, sublinhando as mútuo-exclusivas relações entre Tradição e Modernidade,
constituidoras do campo da Comunicação Social. Segue-se então um esforço de articulação entre duas matrizes filosóficas, decolonialidade e cosmopolítica, do qual emergem duas proposições articuladas como uma plataforma para pensar a comunicação intermundos: 1) a de fórum cosmopolítico que busca enfrentar
a dicotomia Natureza X Cultura em face da aproximação etnográfica com outras formas de vida e suas pragmáticas; 2) a de diálogo interepistêmico, que, por via histórica de longa duração, reconhece as
diferenças culturais e as formas remanescentes do colonialismo do ponto de vista epistemológico, enfrentando a dicotomia Sujeito X Objeto pela via da interculturalidade como diálogo.
Palavras-Chave: Comunicação 1. Fóruns Cosmopolíticos 2. Diálogos Interepistêmicos 3.
Abstract: The article presents a diagnosis and a theoretical-methodological platform. The diagnosis seeks to
account for the distant relationship between communication studies and the know-how of traditional populations in Brazil, underlining the mutual-exclusive relations between Tradition and Modernity, which constitute the field of Social Communication. It follows an effort to articulate two philosophical matrices,
decoloniality and cosmopolitics, from which emerge two combined propositions to think about communication between worlds: 1) cosmopolitical forum that seeks to face the Nature X Culture dichotomy
with an ethnographic approach to other forms of life and their pragmatics; 2) inter-epistemic dialogues, which, through a long-lasting historical path, recognizes the cultural differences and the remaining forms of
colonialism from an epistemological point of view, facing the Subject X Object dichotomy through interculturality as dialogue.
Key-Words: Communication 1; Cosmopolitical Forum 2; Inter-epistemic Dialogues 3.
____________________________________________________________________ 1. Introdução
Preambularmente, o presente artigo surge de uma necessidade prática que se inicia no campo
sensível da experiência para alcançar o dos efeitos de pensamento: qualificar um fazer de pesquisa,
de extensão e de um projeto institucional de ensino em construção ligados aos saberes tradicionais
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Epistemologias da Comunicação do XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Sociologia e Política/UFMG. [email protected] 3 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Comunicação e Cultura/UFBA. [email protected]
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que vem descortinando novas práticas e aprendizados ligados ao campo de pesquisas em
Comunicação Social . Nesse caminho, uma das principais indagações que fez premente a presente 4
escritura foi a pergunta: o que saberes tradicionais têm a ver com a Comunicação? Manifestações,
movimentos de resistência e práticas comunicacionais corolárias vicejam a partir dos povos
indígenas e das mais diversas experiências de afirmação afrodiaspóricas (quilombolas, de terreiros e
de coletivos negros) oferecendo não só inventivas formas de ruptura com o poder biopolítico das
grandes corporações midiáticas e com o racismo estrutural como também inventivas formas de
afirmação existencial (linguísticas, territoriais, culturais, religiosas, científicas, filosóficas, poéticas)
e de autorreparação de traumas históricos e injustiças no campo dos direitos.
Ao realizar esse movimento que o intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015)
chama de contra-colonização, tais manifestações, movimentos e lutas por existência promovem um
saber comunicacional que escapa aos modelos gestados em sintonia com as experiências do regime
escópico hegemônico e suas formas preferenciais de representação que naturalizam as formas
discursivas do estereótipo e do estigma, criando sofisticados dispositivos de apagamentos e
invisibilizações.
Construímos dois campos de possibilidades àquela pergunta, ao tentar “defender" que a
relação desses saberes-fazeres tradicionais ou cosmopráxis guardam relação com a pesquisa em
Comunicação Social. Ciência moderna, gestada na virada do século XIX para o XX, desenvolvida
com os adensamentos populacionais e sociais associados ao fenômeno das massas bem como com
os avanços das tecnologias e técnicas de mediação da relação entre pessoas separadas
espacialmente, contando com as esperanças racionalizadas e racionalizantes do Iluminismo, como
4 Referimo-nos ao projeto institucional de ensino de graduação "Formação Transversal em Saberes Tradicionais" da Universidade Federal de Minas Gerais (2014-ATUAL), ao projeto de pesquisa "Regimes de Conhecimento e formas de vida na universidade" (2016-Atual) e ao Programa de Extensão Imagem Canto Palavra no Território Guarani e Kaiowá (2014-Atual). Encontro de Saberes é o nome de um projeto que começa em 2010, na UNB, idealizado pelo antropólogo José Jorge de Carvalho, à frente do INCTI/UNB. Sob inspiração desta experiência, na UFMG, a introdução de disciplinas de formação transversal busca promover a interlocução entre diferentes saberes e práticas (de mestres e mestras indígenas, quilombolas, populares tradicionais com os da academia). A pesquisa, uma etnografia multissituada (OLIVEIRA, 2017) nos territórios indígenas bem como em dispositivos e linguagens midiáticas, realizada em colaboração com pessoas e coletivos Kaiowá no Mato Grosso do Sul (MS), busca compreender ações de visibilização tanto da luta pela terra e do grave conflito fundiário quanto da resistência em manter sua forma de vida frente ao estado de guerra naquela região que, diga-se de passagem, ainda é desconhecido para a maior parte da opinião pública nacional e internacional. No campo da extensão, relaciona-se a ações no campo do cinema, em redes sociais, das artes visuais e da produção editorial também desenvolvidos em colaboração com os Kaiowá que são, por seu turno, agenciadoras dos processos de pesquisa. Em abordagem afim, a partir da relação entre decolonialidade e filosofia da diferença, temos pensado também na relação entre comunicação e saberes da experiência com adolescentes no sistema socioeducativo brasileiro (FIGUEROA e OLIVEIRA, 2019a; 2019b)
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relacionar a comunicação ao campo do tradicional — esse "passado de trevas", esse “resto" que
teima em não modernizar ou essa força minoritária/sem escala que subsiste residualmente à
modernidade?
Num primeiro momento e de forma mais diagnóstica, sublinhamos algumas das razões dessa
carência de diálogos entre os saberes tradicionais e os campos científico e prático da comunicação
em torno de uma reflexão sobre a sua gênese e como esta se forja como campo científico moderno
bem como aos mecanismos de poder ligados às mídias e às visibilidades. Mas, não só. Num
segundo momento, na terceira e quarta seções, apresentamos dois dispositivos de aliança entre
regimes de conhecimento e seus mundos, compreendendo uma ação criadora da pesquisa e da ação
na área, ao enfatizar dois gestos político-epistemológicos: 1) assumir os encontros de mundos como
desafios comunicacionais do contemporâneo, buscando inspiração em experiências que fazem viver
ações comunicacionais multidimensionais de resistência ao poder necropolítico (MBEMBE, 2018)
que conduzem travessias pelo moderno-capitalista-estatal de forma contra-colonial (SANTOS,
2015); 2) ao assumir os encontros de mundos como desafios comunicacionais, encampar as
incidências para dentro das formas teórico-conceituais-metodológicas constituídas na área,
implicando em riscos ao que já está estabelecido, na medida em que essas formas são marcadas
pelas experiências empíricas com as mídias corporativas e/ou redes sociais e ações desenvolvidas
por organizações privadas, mercadológicas, estatais e/ou enfatizando as formas técnicas e seus
dispositivos como ponto de partida da reflexão.
São duas as proposições que sugerimos então e que serão objeto de discussão mais adiante,
pensando a comunicação a partir de fóruns cosmopolíticos que possam conduzir a diálogos
interespistêmicos. O adensamento reflexivo em torno dessas proposições é o principal objetivo do
artigo. Para tanto são acionados autores e autoras de duas vertentes bastante distintas de
pensamento filosófico, sociológico e antropológico: a da ontologia francesa e a da decolonialidade
latino-americana. Uma advertência se faz então necessária: há diferenças entre autores e autoras
evocados e suas bases epistemológicas que não podem ser naturalizadas. Estas arestas produtivas
serão aqui, em alguma medida, discutidas e elaboradas. Por hora, é importante assinalar que nos
interessa enfatizar, por um lado, a afirmação histórica e epistêmica reivindicada pela corrente
latino-americana da decolonialidade baseada numa insurreição contra a dicotomia Sujeito X Objeto
e, por outro, base da virada ontológica, a admissão de múltiplas formas de existir e agências que
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conformam o jogo político entre mundos colocando em cheque as depurações modernas Natureza X
Cultura. Sugerimos que um eixo transversal, embora nada consensual, entre as vertentes indicia
possibilidades no que tange a um pensamento sobre a comunicação enquanto relacionalismo das
diferenças, multiplicidades, afecções e formas de emancipação no contemporâneo. Em conclusão,
analisamos os potenciais heurísticos da interface (BRAGA, 2011) entre comunicação e cultura no
sentido da descolonização de nosso pensamento que possa abrir outros caminhos de coabitação com
as diferenças e consequente alargamento epistêmico e político.
2. Comunicação: ciência moderna e os desafios da tradição
A maior parte dos livros-textos que balizam o ensino, as práticas e a pesquisa que delineiam
uma gênese emblemática para o surgimento da Comunicação como ciência ou como campo
descrevem-na a partir dos processos de complexificação social ocasionados pela passagem do
tradicional ao moderno juntamente com os processos de complexificação midiática ocasionados
pelo avanço nos meios técnicos de produção, transmissão e reprodução de dados sobre as interações
sociais. Ligada à gênese do moderno, marcam os estudos na área a consolidação das formas
organizacionais do mercado, a experiência política do e no Estado nacional (incluindo as
organizações midiáticas e privadas públicas) bem como os modos de vida urbanos e os valores do
individualismo e das experiências de estratificação social em classes e das massas. Essa forma de
construir nexo entre a modernização e os estudos da comunicação é tão aceita que quase não se
discute na área o que é a tradição.
Quando a tradição é evocada, em grande parte, sugere-se analisá-la pela dicotomia
comunidade/sociedade, para a qual a grande referência ainda é Toënnies (1947), entendendo a
comunidade como forma pré-moderna e antiga que foi substituída pela sociedade, forma de
aglutinação e organização, em geral vista como exclusivamente humana, na qual há regulação por
princípios utilitaristas e relacionamentos externalizados. A comunidade, ao contrário, é sustentada
por uma solidariedade mecânica quando a referência é Durkheim (2000) ou no modo de produção
feudal evocando Marx (1989) ou ainda por um ethos pré-capitalístico no qual a acumulação não é
valor racionalmente pensando e vivenciado com Weber (1967). Os estudos do urbano e da
constituição do individualismo terão em Simmel (In: SOUZA; ÖELZE, 1998) uma grande
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referência fundadora que se desdobra de diversas formas no pensamento da chamada Escola de
Chicago, encontrando-se com o pragmatismo e a visão interacional e relacional da comunicação. O
modelo de modernização eurocêntrico e euroexclusivista, bem como sua mais exitosa criação
extra-européia concretizada na experiência histórica estadunidense, é referência métrica e heurística
para avaliar e analisar os desenvolvimentos de todas as experiências comunicacionais a partir destes
modelos de pretensões universais e, em geral, perpassados por uma visão essencialista do social e
da sociedade.
Esse caminho sociológico, por assim dizer canônico, tem grande impacto no Brasil e no
mundo, tanto como pensamento social quanto como prática política, onde as tramas da tradição e da
modernidade se tecem em função do modelo europeu de modernização, enredando ciência e
colonialismo/colonialidade de forma intrínseca. Assim, o campo de estudos da comunicação se foca
nas formas de modelizar e teorizar corolários a esse modelo, ora concentrando-se na eficácia e
racionalidade dos meios técnicos de produção, ora nas consequências sociais e formas de interação,
ora mirando as experiências das linguagens, as linguajeiras e as discursivas, tanto em perspectiva
crítica quanto integrada. A Comunicação Social — em suas diversas áreas práticas e de pesquisa
científica — foi guiada por uma visão moderna de mediação, na qual podíamos imaginá-la como
um fluxo direcional do emissor ao receptor e vice-versa – o comunicador criando elos entre pólos:
do fato ao cidadão, a notícia; do produto ao consumidor, a propaganda; da organização aos
públicos, as ações de assessoria. Tal fluxo direcional se amplia com a complexificação técnica dos
meios e grandes esperanças de escapar às lógicas de poder que elas engendram aparecem com as
possibilidades de interação nas redes sociais digitais a partir dos anos de 1990 do século XX.
Quando a centralidade da cultura e da experiência bem como a noção de agência se tornam
pontos cruciais nas teorizações das ciências humanas — o que pode ser localizado historicamente
na segunda metade do século XX —, surgem pesquisas mais sensíveis às experiências minoritárias
como é o caso dos estudos culturais (nas vertentes britânica e latinoamericana), dos estudos de
recepção, das teorias críticas pragmáticas, dos pós-modernismos, dos modelos
relacionais/interacionais, do pós-estruturalismo, dos estudos de estética calcados nas imagens
disruptivas de “outros” povos. O diagnóstico crítico acerca das mídias — tanto como organizações
quanto como lócus de criação de linguagens, discursos e representações — tem profunda densidade
nas pesquisas da área. As análises, dirigindo-se majoritariamente a objetos em relação com
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processos midiáticos e de midiatização, têm construído uma densa crítica no que tange às formas
disciplinares ou diagramáticas de controle biopolítico em suas consequências coletivas e subjetivas
bem como aos problemas da representação de grupos sociais subalternizados e lugares de fala,
discursos hegemônicos ou das disputas por visibilidade ou mesmo das possibilidades criativas no
interior das interações comunicacionais em nível micro.
De todo modo, em grande medida, a licença social para realizar tais mediações ou para
analisá-las alimenta-se de uma imaginação moderna de representação naturalista e de tradução
autorizada. Em síntese, os sistemas midiáticos operam regimes de visibilidade e formas de
saber-poder monoculturais (e, como veremos adiante, melhor dito, mononaturais). Prevalece,
portanto, uma visão científica que depura dicotomicamente as posições Sujeito X Objeto e Natureza
X Cultura, a centralidade do euroexclusivismo e, em boa parte dos casos, do mediacentrismo.
Assim, a busca do diálogo com vertentes filosóficas que têm colocado em debate a pretensão de
universalidade e a hierarquização das formas de saber e dos regimes de conhecimento como forma
de combate a tais dicotomias e de encontrar outras possibilidades para análise das relações de poder
não naturalizadoras e/ou reprodutoras de certas categorias científicas são o ponto de partida
formador de uma sensibilidade conceitual e epistemológica aqui, propondo um encontro entre: o
chamado giro decolonial latino-americano (CASTRO-GOMEZ, 2000; LANDER, 2005; WALSH,
2002; 2006; BALLESTRIN, 2013; MIGNOLO, 2015; CARVALHO, 2018) com um pensamento
europeu dissidente e crítico que revisa seus fundamentos modernos, especialmente a partir da
chamada virada ontológica (DESCOLA, 2005; STENGERS, 2004; FISCHER, 2014; LATOUR,
2014; STRATHERN, 2014; VIVEIROS DE CASTRO, 2002), pensando como esse encontro pode
colaborar para a comunicação intermundos e as políticas de visibilidade agenciadas por movimentos
e pessoas oriundas de outros regimes de saber e que experienciam outras formas de vida.
Dessa sensibilidade conceitual, é que surgem os artefatos teórico-metodológicos alternativos
que, como em certos campos das ciências humanas, buscam constituir uma outra imaginação sobre
as fronteiras entre teoria-metodologia-dados etnográficos: o desejo de realizar diálogos
interepistêmicos — nome filiado à vertente filosófico-sociológica decolonial — fabricados a partir
de fóruns cosmopolíticos — nome filiado à vertente filosófico-antropológica da ontologia. Esses
nomes e os intentos que buscam expressar em nada facilitam a tarefa, em si cobram exigências de
formulação e explicitação que retomaremos nas duas próximas seções.
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3. Interfaces (im)prováveis I: fóruns cosmopolíticos e travessias
O termo cosmopolítica tem sido usado por filósofos e antropólogos em oposição à noção de
cosmopolitismo e como crítica ao antropocentrismo. Em lugar de universais que unificam e
pacificam uma experiência humana diversa culturalmente e naturalmente única, o termo se oferece
como alternativa a aparatos de comparação entre as diferenças e, consequentemente, a balizadores
políticos da construção de interações e formas de comunicação entre elas o relativismo cultural, o
multiculturalismo ou a mestiçagem que podem, enganosamente, conduzir a coabitação entre
mundos à simples convivência entre diferentes pontos de vista sobre um mundo único ou mesmo
esconder as violências, mal-entendidos e dificuldades do contato, ao fim e ao cabo, evitando-o. Em
lugar de uma comunidade política universal formada por algum tipo de consenso, essa vertente tem
buscado destacar o composicionismo, o trabalho artesanal, poético, filosófico e científico de
coletivos de agências e agentes humanas e não-humanas com suas linhas de forças e léxicos
próprios numa luta pela existência, esforço cosmopolítico, que cria formas de viver marcadas pela
não-equivalência, por correspondências instáveis e posicionais e maior abertura ao que a filosofia
pós-estruturalista chamou de um "nós singularmente plural", um "devir entre multiplicidades"
(DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 33).
Como proposta, não como conceito analítico ou, mais ainda, não como crivo para um árbitro
externo (o sujeito cognoscente da Ciência objetivista ), também tem buscado enfatizar as diferenças 5
insuperáveis e os mal-entendidos que envolvem a geração de conversações entre mundos bem como
a força "criante" das existências que não se dobram à maneira do poder englobante de sistemas
políticos estatais e corporativos. A principal colaboração da proposta cosmopolítica que
gostaríamos de trazer à discussão, diz respeito à ruptura da dicotomia Natureza X Cultura (tal como
desenhada a partir do modelo newtoniano de ciência), operada por seus autores e suas autoras
principalmente a partir da prática etnológica com as formas de pensamento não-ocidentais e com as
operações práticas de produção da ciência observadas nos laboratórios e nas posturas científicas
5 Phillipe Descola (2016) sugere que uma nova cosmopolítica deve se basear na crítica ao eurocentrismo e antropocentrismo. Antropoceno é o nome utilizado para falar desse tempo histórico e da experiência antropológica moderna que coloca o humano no centro do pensamento e da ação política como sujeito cognoscente. Nisso, há, obviamente também, um desejo de ruptura com a dicotomia Sujeito x Objeto. No entanto, caudatária do estruturalismo segue propondo universais, generalizações e, acima de tudo, não releva o papel dos intelectuais nativos como pessoas. Por isso, pensamos que a noção decolonial de diálogos interespistêmicos, a ser discutida a seguir, é que melhor responderá à necessidade de ruptura S X O.
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dentro de controvérsias públicas . É também na direção dessa ruptura que, por caminhos diferentes, 6
desenvolvem-se os projetos e ações institucionais descritos na introdução desse artigo e que
motivam essa reflexão: implodir essa dicotomia como forma de aprender a aprender com outros
regimes de conhecimento, com incidências naquilo que é próprio.
A filosofia que apresenta a proposta cosmopolítica, em larga medida, inspirada pela
relevantíssima militância ambiental, pelas etnografias em laboratórios científicos e pelas existências
de mundos e filosofias descortinadas pela etnologia indígena — os pensamentos mágicos pensados
como outra ciência, ideia cara à antropologia desde Lévi-Strauss e Evans-Pritchard (CUNHA, 2009)
— tem advogado a prática política especialmente a partir desses lugares e enfatizado que um existir
diferente e a resistência realizada por lideranças oriundas de outros mundos frente ao mundo
hegemônico Ocidental é, em si, o labor cosmopolítico. A inseparabilidade entre poder mágico,
poder de produzir conhecimentos e poder político é uma das marcas principais desse labor. Lendo o
pensamento de Marilyn Strathern, por sua vez produzido em diálogo com categorias de pensamento
oriundas do pensamento indígena nas terras altas da Nova Guiné, Renato Stutzman (2009, p. 5),
coloca um ponto esclarecedor sobre a relação entre natureza e cultura: O problema do dualismo natureza e cultura, para os modernos, seria, segundo Strathern, o esvaziamento de agência, de intencionalidade da “natureza”, que poderia, assim, ser controlada, manipulada pela “cultura”. Segundo Strathern, em vista de Hagen, teríamos de pensar, na contracorrente das noções que nos são caras, uma relação não-hierárquica – avessa, portanto, à gramática do controle – entre natureza e cultura. Os melanésios não estariam preocupados em postular a existência de um domínio inerte, alheio à ação e à intenção humanas. Eles não tornariam equivalentes selvagem e “natural”, doméstico e “cultural”. Que fazer, então, com a ideia de que isso que denominamos “mundo natural” possa ser pleno de intenção, consciência e agência? Eis o problema mais interessante.
Mas porque pensar em cosmopolítica, fora da chave dicotômica Natureza X Cultura, é
importante para a conformação de pensamento comunicacional? Na chave moderna, essa separação
implica em pelo menos dois problemas: uma restrição da agência comunicante ao humano, tal como
pensado pelo humanismo moderno (tudo o mais comunica em função da ação humana) e uma
6 Talvez o encontro entre esses campos de estudos tão distintos — a etnologia e os laboratórios científicos — esteja naquilo que Latour (1994) ofereceu às ciências sociais com uma crítica aos chamados grandes divisores criados pelos modernos, ao afirmar que a divisão entre Selvagens e Civilizados teria por fundamento grande divisão entre Natureza e Cultura. Do mesmo modo, como mostraremos na próxima seção, o enlace entre modernidade/colonialidade pelo viés histórico na vertente decolonial também constrói um nexo entre as divisões Humanos e Não-Humanos/Sujeito e Objeto bem como, de acordo com Mbembe (2018), a necropolítica decorrente dessa divisão.
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atribuição de poder a formas autorizadas de representação. Encontrar um lugar para repensar a
comunicação nesses dois pontos pode ser interessante ao pensamento crítico que se quer
criador/transformador, fora da ação de denúncia do poder biopolítico dos meios e das desigualdades
no campo representacional ou de um afã reparador da forma representacional numa camada de
superfície.
Em relação às agências em comunicação, as resistências indígenas e afrodescentes em sua
cosmopráxis (saber relacionado com um fazer), são mais do que movimentos sociais organizados
politicamente, embora muitas vezes o sejam também. São movimentos organizados
cosmopoliticamente. O que significa dizer que acionam formas de comunicação múltiplas que
enlaçam o tempo histórico e o tempo mítico, as paisagens terrenas e as paisagens cosmológicas, as
agências dos humanos com as agências dos espíritos, almas ancestrais, deuses e deusas gerando
pragmáticas existenciais e processos de subjetivação política que, além de incompatíveis com as
formas modernas, podem inspirar outros modelos comunicacionais multidimensionais. Os líderes
espirituais, conhecidos como xamãs nos estudos de etnologia e sacerdotes de terreiros nos estudos
das afro-religiosidades, são mediadores entre humanos e não-humanos, além de operarem um
trabalho de reconexão com o tempo e as histórias míticas. São comunicadores que realizam
permanentemente a cosmopolítica: “o que define o xamanismo é essa comunicação e mediação com
o mundo não-humano, um modo de obter conhecimento e agência” (STUTZMAN, 2005, p. 356).
Em relação à representação, é possível, para a ciência e para a ciência da comunicação, tolerar
outras formas de representação do mundo — a de um curandeiro indígena ou afrodescendente, por
exemplo — mas somente a ciência pode ter acesso à forma de representação verdadeira do mundo,
o que no campo prático da comunicação autoriza o jornalista, o publicitário ou o relações públicas a
descrever essas formas de existência ou sobre elas criar juízos públicos. Mas outras formas de
representação nunca são validadas como regimes de verdade e seus intelectuais não têm o mesmo
poder de julgamento nesses espaços públicos. No máximo, ganham a função produtiva, a partir
dessa invenção conceitual fenomenológica de Schultz, retomada na teoria crítica normativa de
Habermas, de mundo da vida. Mas aqui não é esse o caso: não se trata do mundo da vida observado
pela ciência da comunicação mas da vida que fabrica mundos e ciências da comunicação que
podem se comunicar.
Tanto a restrição de agências como um pensamento do comum — ou social — pela
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estabilidade em muito têm a ver com a gênese moderna da comunicação. Pensando o social em
composição — a sociedade, a cultura e a história não são substratos ou essências prévias à ação — e
a convivência pluriétnica, um gesto importante é buscar o que chamei de circuitos paramidiáticos
(OLIVEIRA, 2017) como ponto de partida de uma pesquisa em comunicação. Tal gesto ressalta
duas questões: a primeira, tomar como referência os mundos que muitas vezes não estão presentes
nas mídias . A segunda questão diz respeito a uma dimensão de caráter epistemológico: conhecer o 7
que é a comunicação a partir de um encontro de saberes: o saber científico em face de outros
saberes, chamados de tradicionais (CUNHA, 2009; CARVALHO, 2010), mas que são vivos e
atuais, a ponto de gerar uma desestabilização em nossos conceitos do comum, do social e, portanto,
do que seja comunicação social.
Descrita a importância de aproximar cosmopolítica e comunicação, resta a tarefa de justificar
a pertinência em aproximar a noção de fórum à proposta cosmopolítica como um gesto de
pensamento comunicacional. Há maneiras muito distintas de produzir os espaços de coabitação de
mundos que estão sendo inventadas pelos diplomatas de outras formas de vida em suas resistências
existenciais, epistêmicas e políticas. A noção de espaço que nos conecta ao segundo termo ao qual
buscamos dar vida nesse artigo: fórum cosmopolítico. A palavra fórum, que vimos introduzindo
mais a partir de experiências etnográficas dos encontros do que por uma reflexão teórica prévia
(OLIVEIRA; FLORES; VASQUES; GOMES, 2016; OLIVEIRA, 2016; OLIVEIRA, 2017), busca
dar conta desses espaços e dos esforços de construção de presença nos quais em geral, por iniciativa
de lideranças advindas do mundo indígena, quilombola e popular tradicional, as formas do mundo
hegemônico são subvertidas em favor do alargamento do político, do comunicacional, do
epistêmico e, no fim, da própria reinvenção das partes no plano existencial. Assim, buscamos não
criar outra depuração entre as formas cosmopolíticas não-modernas e os operadores políticos
ocidentais modernos.
A aproximação entre os termos "f'órum" e "cosmopolítico" poderia se aproximar daquilo que,
em montagem cinematográfica, ficou conhecido como "efeito Kuleshov". Na montagem entre uma
7 Se estão, aparecem sob três formas mais recorrentes: 1) sob mediação – especialmente jornalística, cujo grau máximo de proximidade com as vozes vivas dos sujeitos é o testemunho; 2) participação direta a partir de comentários ou emissão de opiniões (vale dizer que podem ser cerceados por mecanismos internos de seleção ou mecanismos do design informacional, bem como pelo próprio grau de acesso e auto-avaliação quanto à capacidade de participar, muitas vezes caracterizando mais uma guerra de mundos com opiniões que são faladas mas não ensejam o debate e a mudança de posições); 3) sob a forma do leitor suposto, da qual observadores especializados depreendem o diálogo mídia e sociedade a partir de noções como a de contrato de leitura.
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imagem e outra, há um horizonte de expectativa de ligação que, por assim dizer, põe em relação as
duas imagens por elas terem sido dispostas uma seguida da outra, como ocorre com os planos,
unidades visuais. As experiências de Kuleshov conduzem à ideia de que a força das imagens está
mais na relação do que nos elementos isolados, o que nos traz de volta à montagem dos termos
“fórum” e “cosmopolítico”. Admitindo que ambos, que se seguem, podem mimetizar a força de
duas imagens que se seguem, defendemos que o que se dá no contato entre ambos é criação, mais
do que "fórum" e mais do que “cosmopolítico" podem carregar por eles mesmos. O que buscamos
enfatizar é a necessidade de não simplesmente celebrar a cosmopolítica como resistência mas fazer
dela desafio relacional, epistêmico, político e comunicacional à forma de vida hegemônica, abrindo
possibilidades muito concretas de afecção, não só do ponto de vista de efeitos de pensamento mas
do próprio encontro entre mundos.
A palavra fórum foi já foi empregada por Michell Callon nomeando o que ele chamou de
“fóruns híbridos”. A noção de fórum cosmopolítico não guarda um parentesco direto com a
discussão de Callon, embora pela coincidência do termo, deva um exame mais detido a ela e ao tipo
de sensibilidade político-conceitual-metódica que ativa. No livro que escreveu em parceria com P.
Lescombes e Y. Barthe, eles explicam que
fóruns porque eles são espaços abertos onde grupos podem vir juntos para discutir opções técnicas envolvendo o coletivo, híbridos porque os grupos envolvidos são participantes querendo se representar são heterogêneos, incluindo especialistas, políticos, técnicos e leigos que se consideram envolvidos. Eles também são híbridos porque as questões e os problemas retomados estão endereçados, em diferentes níveis, a uma variedade de domínios: da ética à economia, incluindo psicologia, física nuclear e eletromagnetismo (CALLON; LESCOMBES; 8
BARTHE, 2009, p. 18, tradução minha).
8 “forums because they are open spaces where groups can come together to discuss technical options involving the collective, hybrid because the groups involved and the spokespersons claiming to represent them are heterogeneous, including experts, politicians, technicians, and laypersons who consider themselves involved. They are also hybrid because the questions and problems taken up are addressed at different levels in a variety of domains, from ethics to economic and including physiology, nuclear physics, and electromagnetism”
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Seguindo a leitura do sociólogo chileno Martín Tironi (2010) , há quatro elementos que 9
sustentam a concepção dos fóruns híbridos que guardam afinidades com o que queremos enfatizar:
1) o significado do que é social, político, cultural está em jogo e se redefinem nos espaços de
controvérsia e aprendizagem, ou seja, "no existen definiciones previas del mundo: éstas tienen que
ser sometidas a prueba, y es solamente a través de las pruebas que conocemos el mundo”; 2) as
performances das controvérsias geram novos entes e relações, novas categorias e atores, fazem
visíveis existências não percebidas antes delas e nomes para os elementos que compõem uma
situação conflitiva, sendo assim um modo de conhecimento do mundo; 3) sustentam um programa
político forte de aposta na abertura, configurando um modelo de decisão que rompe com toda a
tradição política de, frente à incerteza, tomar decisões definitivas. Propõem, em lugar disso,
observar os problemas que vão sendo descortinados pelas controvérsias e abertura a outras opções
que o futuro pode trazer; 4) a democratização se estende para a coexistência com agências não
humanas (plantas, vento, cisnes, químicos, água, rios, etc.). A mais importante colaboração, no
entanto, que a noção de fóruns híbridos pode aportar é o desejo de romper com a separação entre
cientistas super especializados e autorizados de um lado e a população ignorante do outro,
corroborando a relevância dos encontros de saberes de forma desierarquizada:
Bajo el modelo de los FH los no-especialistas son útiles no solamente para enriquecer la expertise oficial, sino que son constitutivos de la materia misma que está en discusión. Los diferentes saberes (desde los más profanos y anecdóticos hasta los más expertos y universales) se enriquecen progresivamente para generar productos y soluciones nuevas. La co-producción de saber dice Callon es el resultado de colectivos híbridos que se juntan para explorar, donde diferentes actores rigurosamente seleccionados (de ahí la idea de grupos concernidos) llevan a cabo lo que Callon llama un proceso de apprentissage collectif croise. (TIRONI, 2010)
Mas a noção de fóruns híbridos tem suas limitações para uma aplicação à comunicação
intermundos interessada em observar a multidimensionalidade ou transmodalidade nas formas
comunicacionais de outras experiências culturais. A própria noção de mundo é usada pelos autores
no singular e as agências múltiplas congregadas nas controvérsias estão circunscritas ao plano
9 Martin Tironi, professor da escola de Design da Universidad Alberto Hurtado e pesquisador do Núcleo ANT/Chile, tem uma profícua produção em torno do que chamou de encontros cosmopolíticos para analisar controvérsias tanto no contexto chileno como a instalação de um zoológico quanto no contexto mais amplo de questões globais como tecnologias de sensores,, design, a caminhada, sistemas públicos de bicicletas e as cidades inteligentes. Aqui nos referenciamos em seu artigo disponível em: http://www.icso.cl/practicasculturales/2010/11/foros-hibridos-para-una-sociologia-de-la-experimentacion/
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imanente da vida que se compõe de entes sociais e naturais, permanecendo uma forte visão
racionalista das controvérsias (espíritos, por exemplo, ficam do lado de fora ). Estas, por sua vez, 10
envolvem sempre assuntos de ciência e tecnologia — objeto preferencial da pesquisa dos autores —
que tomam como exemplos de controvérsias: vaca louca, AIDS, doenças neuromusculares,
nanotecnologia, organismos geneticamente modificados. Ou seja, meio ambiente e saúde são
domínios considerados férteis para o debate público e instauração das controvérsias sócio-técnicas.
Além disso, a própria constituição dos fóruns, pela natureza dos objetos em tela, acaba
circunscrevendo a iniciativa de sua criação não aos agentes e diplomatas de outros mundos. Como
chama atenção Stengers (2004), a expressão foi rapidamente subsumida pelo vocabulário do capital,
até porque está circunscrita a uma discussão sobre a ciência, técnica e o papel de experts e de
não-experts bem como da visão de fóruns oficiais e fóruns informais na produção de conhecimento.
Como assinalamos anteriormente, o conceito de representação é criticado pela proposta
cosmopolítica e isso é feito em conexão estreita com o conceito de tradução — ligado tanto ao
trabalho de ciência quanto ao das filosofias não-ocidentais. Ainda no contexto dos chamados fóruns
híbridos a noção de tradução se faz presente como objeto de poder: quem é capaz de traduzir os
interesses dos demais participantes à sua própria linguagem e interesse sairá vitorioso. Mesmo com
o intuito de transformar as formas tradicionais de participação, as formas de agrupação e os
elementos componentes de uma controvérsia não podem escapar às dinâmicas de tradução. O gesto
científico principal na comunicação é o de tradução intermundos: “transladar interesses significa, ao
mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses interesses e canalizar as pessoas para direções
diferentes” (LATOUR, 2000, p. 194).
4.Interfaces improváveis II: diálogos interepistêmicos e riscos.
Falar em diálogos interepistêmicos é falar do gesto “tentativo" (BRAGA, 2011) de um encontro
para o qual não há “protocolos" (CARVALHO, 2018) . Os encontros de mundos são 11
10 Renato Stutzman (2005), ao analisar extensa e espessa produção etnológica acerca dos povos tupi, destaca o papel dos conselhos de pajés, guerreiros e líderes de maloca nas relações entre guerra, xamanismo e política — a cosmopolítica. Conforme o autor, “o conselho era, assim, lugar da fala, mas também de fumo e cauim, pois pressupunha uma dupla comunicação, entre os homens, e entre estes e o mundo sobrenatural, fazendo dessa política necessariamente uma cosmopolítica e incluindo nesse parlamento a comunicação com os espíritos” (p. 266). 11 Carvalho (2018) chama a atenção para esse ponto, enfatizando a importância de criação de protocolos, não universais mas específicos para cada área de conhecimento, capazes de conduzir a diálogos interepistêmicos no que tange à dimensão pedagógica da experiência de encontro de saberes nas universidades.
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historicamente raros e marcados pela violência tanto nas dinâmicas universalizantes, racistas e
genocidas do Ocidente quanto nas condições de desigualdades econômicas, existenciais e étnicas de
contextos nacionais como o brasileiro. Quando acontecem, são muitas vezes mediados ou guiados
por lógicas criadas pelas regras da parte criadora de institucionalidades hegemônicas, garantindo
vantagens no domínio de seus dispositivos e linguagens. Decorre em grande parte dos esforços de
movimentos e coletivos minoritários muitas vezes ancorados nos campos do reconhecimento, da
reparação e da reconciliação, das disputas de memória e da própria experiência histórica guiadas
pela urgência ética de pedagogia decolonial de outros regimes de saberes-fazeres (caracterizados
como contra-coloniais pelo intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos, 2015) ao saber-fazer
científico extremamente colonizado por uma matriz eurocêntrica. A obra Livro Natural da artista
plástica Rosana Paulino que interroga a pseudociência justificadora da exploração dos processos de
colonização tematiza essa relação sob a forma de um livro de tecido, cujas três primeiras frases são:
“nós não invadimos, nós levamos o Progresso”, “nós não matamos, nós salvamos as Almas”, “nós
classificamos porque nós amamos a Ciência”.
A vertente decolonial, tem tratado de enfatizar a necessidade dos diálogos interculturais
(WALSH, 2002) com as matrizes de saber que compõem a experiência filosófica, existencial e 12
histórica no eixo sul global e apontado que as lutas no campo político — étnico-raciais, de gênero,
de classe — são, dessa forma, lutas epistêmicas ou lutas por um direito de existir não como objetos
de um conhecimento auto-autorizado que nega e mata outros regimes de conhecimento. Para
pensadores e pensadoras dessa vertente, o conhecimento euroexclusivista-caucasiano-androcêntrico
sustentou o colonialismo e suas continuidades no presente, no duplo vínculo entre
modernidade/colonialidade, de uma experiência de pensamento violentamente ancorada histórica e
territorialmente no racismo, no genocídio e no epistemicídio o que Walter Mignolo chamou de
"diferença colonial” (2015). De acordo com a feminista espanhola Tijana Limic (2015) , seguindo 13
12 Catherine Walsh (2002) desenvolve o termo a partir da análise das formas políticas na experiência de afirmação de movimentos negro e indígena na Colômbia. Sua mais interessante concretização dos diálogos, no entanto, floresce, a nosso ver, das conversações com Juan García Salázar, intelectual afroequatoriano, que desenvolveu uma pesquisa no campo da memória e do registro audiovisual de um extenso acervo de conhecimentos tradicionais com anciãos e anciãs da região de Esmeraldas no Equador. 13 A autora utiliza o termo diálogo interepistêmico e, embora nós não o tenhamos retomado a partir dela que o apresenta mais como um imperativo e menos como uma formulação, seu trabalho é, sem dúvida, uma grande inspiração. A principal delas é a arrogância à universalização de certos saberes em detrimento de outros, assim como de certas experiências políticas de emancipação, o que Limic concretiza analisando o campo dos feminismos, a conformação da noção de mulheres como núcleo identitário universal em detrimento de outras experiências femininas indígenas, negras e não-ocidentais. A pensadora analisa as motivações pelas quais algumas mulheres requerem para si a autoridade de
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o pensamento de Dussel retomado por Grosfoguel em diálogo com os trabalhos de Quijano e
Mignolo, a base epistemológica dessa construção a afirmação de um regime científico calcado tanto
no "ego cogito” (penso, logo existo) quanto no “ego conquiro” (penso, logo conquisto) que o
antecede historicamente em pelo menos 150 anos e também é usado como justificativa racional ao
genocídio/epistemicídio (“ego, extermino”, penso, logo mato) nas Américas. Descartes, Hegel e
Kant são os filósofos mais importantes para essa construção de acordo com Limic em sua leitura
das obras críticas de Dussel e Grosfoguel. As críticas à filosofia eurocentrada dizem respeito a dois
pontos principais, sintetizados pela autora na expressão "corpo política do conhecimento”, cuja base
remonta a Descartes: 1) o solipsismo (monólogo interior) como base da produção de conhecimentos
com a respectiva desconfiança dos sentidos e separação entre sujeito cognoscente e objeto do
conhecimento; 2) o universalismo que se desdobra a partir de dois aspectos: a geração de
enunciados “eternos" ou com prevalência abstrata a toda determinação espaço-temporal como um
sujeito cognoscente abstrato, esvaziado de corpo e com pretensões de validade universal que
independem de localização na cartografia de poder mundial. Há críticas ao primeiro aspecto, mas o
segundo se mantém forte!!
Hegel, por sua vez, criou a ideia da modernidade como um fenômeno local europeu, uma
construção germano-cristã apresentada nas suas Lições Universitárias, em meio ao enfrentamento
entre norte e sul da Europa, consagrando a História Universal ao norte e negando-lhe a validade
para o Sul (da Europa, da América Latina, da Ásia e da África), ocultando suas contribuições
fundamentais à subjetividade e à ontologia modernas. Kant dá sequência à corpo-política do
conhecimento cartesiana com suas reflexões em torno das categorias apriorísticas de pensamento
localizadas na mente dos “homens”. Mas, quem são homens para Kant? Se tomamos seus escritos
antropológicos, vemos que para Kant "la razón trascendental es masculina, blanca y europea. Los 14
hombres africanos, asiáticos indígenas, sureuropeos (españoles, italianos y portugueses) y todas las
mujeres (incluidas las europeas) no tienen acceso a la ‘razón’”. Dussel, em contraponto, reafirma a
falar por todas as mulheres, questionando-se sobre a base dessa universalidade, projetos políticos e de vida, bem como sobre as razões históricas que teriam autorizado a estas mulheres e não a outras. Tais posicionamentos estão em relação direta com os fenômenos da modernidade/colonialidade O artigo não menciona, entretanto, a importante crítica à persistência e predominância de um pensamento realizado por homens brancos (LUGONES, 2015), desconsiderando tanto a centralidade da colonialidade de gênero quanto a centralidade de um lugar autorizado de fala ligado ao mainstream acadêmico internacional (CARVALHO, 2018). 14 La geografía de la razón cambia con Kant, pues él escribe su filosofía desde alemania en el siglo XViii, justo en el momento en que otros imperios en el noroeste de Europa (incluidos Francia, alemania e inglaterra) desplazan a Holanda y en competencia entre sí constituyen el nuevo centro del sistema-mundo (GROSFOGUEL, 2008: 204).
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modernidade como fenômeno global vinculado ao colonialismo e ao imperialismo europeus a partir
do final do século XV. Portanto, recoloca a experiência da história junto com a história do
pensamento como passo fundamental para a desconstrução da separação Sujeito X Objeto,
reconhecendo regimes de saber que não operam essa depuração bem como as formas de vida que se
constituem dela prescindindo e colaborando à própria constituição da subjetividade moderna.
Para pensar a concretização dos encontros e das trocas de saberes como gesto
comunicacional, retomamos a noção de diálogo, tal como formulada no pensamento de Paulo Freire
(2003; 2008), para quem produzir conhecimento é produzir relação ao propor um processo de
educação dialógica, e não bancário de depósito do conhecimento, uma troca de saberes que
pressupõe que a pessoa que está diante de quem ensina é portadora de um saber e que ensinar é
aprender. O diálogo freiriano é uma redisposição para que as pessoas transformem o mundo e
ganhem significação enquanto pessoas. Antes do impossível diálogo entre os que podem pronunciar
o mundo - enquanto negam a pronúncia de outros – e os que acreditam não poder pronunciá-lo, é
preciso a imposição do verdadeiro diálogo. Fundado no amor, na humildade, na fé e na confiança, o
diálogo impõe-se para que seja possível a pronúncia do mundo, ato de criação e recriação, pelos que
crêem que não possuem esse direito (2003, p. 50-51). Freire já projetava encontros para o saber pelo
diálogo, em busca de simetria e autocrítica, algo que o aproxima ainda mais do que está discutido
aqui: “O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus
polos (ou um deles) perdem a humildade. Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a
vejo sempre no outro, nunca em mim?” (2003, p. 51). Algo extremamente valioso para o educador
era o “conteúdo programático”, que corresponde ao “o quê” do diálogo. Distante da conotação
rígida e apriorística que tomou a expressão, Freire vê nela algo cuja natureza é ser permeável. A
dialogicidade não tem início quando se encontram educador e educando, mas quando o primeiro se
pergunta sobre o “o quê” do diálogo. O conteúdo programático é a “devolução organizada,
sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma
desestruturada” (idem). Ao que tudo indica, para efeitos interepistêmicos, as fronteiras do conteúdo
programático se borrariam em nome de uma outra organização, mais ampla e autosuficiente, cujo
percurso de ser devolvido e reestruturado pudesse, inversamente, ser feito pelos próprios saberes
tradicionais. Inspirada em Freire, bell hooks (2013), caracteriza o que é diálogo a partir de
conversações filosóficas nas quais como acadêmica mulher negra feminista discute com o filósofos
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brancos e do sexo masculino buscando formar o que chama de comunidade pedagógica , calcada 15
numa solidariedade transfronteiriça que possa emergir para além de cristalizações sobre o que o
outro é bem como dos diferentes lugares de poder e fala. As alianças possíveis a partir de
experiências e, logo de existências, radicalmente diferentes.
O interepistêmico, como no conceito de interdisciplinaridade, poderia estar precedido do
multi ou do trans: um diálogo interepistêmico é multiepistêmico na medida em que implica dois ou
mais saberes, além de diversidades internas aos regimes de saberes; um diálogo interepistêmico
pode gerar conceitos transepistêmicos, ou seja, que se situam ou se nutrem de ideias e/ou de
experiências advindas de regimes de saberes diferentes. O prefixo inter acentua o relacionalismo
dessas alianças e inspira-se naquilo que a filósofa Hannah Arendt (2013, p. 23) chama de política: o
espaço ENTRE as existências, negando qualquer essência natural ou social à política, mas
afirmando-a como “instra-espaço” que se faz relação . 16
Diante agora do termo “diálogo interepistêmico”, faremos um segundo movimento digressivo.
Embora se possa afirmar, de maneira aparentemente inquestionável, que, por adjetivar, a palavra
“interepistêmico” qualifica o substantivo “diálogo”, e isso conclui o encaixe entre ambos, vamos
além dessa possibilidade. Há, em jogo, uma montagem que relaciona os dois termos quando há a
aproximação. Buscando inspiração nas categorias de uma montagem cinematográfica soviética,
nutrimo-nos dos pensamentos de Eisenstein (2002) sobre o uso contrapontístico na relação entre
som e imagem em um filme, pensamento não uniforme. Montando “diálogos” a “interepistêmicos”,
podemos dizer que não há redundância, que não há contraste entre eles, que não há puro acréscimo
do segundo termo ao primeiro e que não há subordinação de um dos termos ao outro, pois nenhum
15 Tanto hooks quanto Freire retomam diálogos concretos como forma de pensar o conceito de diálogo. A primeira dialogou e publicou diálogos com Gloria Watkins (ou seja, ela própria em sua persona de nascimento, já que bell hooks é seu nome de escritora, intelectual, artista e ativista), Ron Scapp e Mary Childers (HOOKS, 2013), além de Cornel West, Ken Paulson e James Hilman (https://bell-hooksinstitute.squarespace.com/#/bad-baby-bell-books-publications/). Já Freire trabalhou a noção de diálogo de forma mais conceitual (2003) para depois retomá-la como prática nas trocas estabelecidas com militantes, intelectuais, pais de estudantes e camponeses chilenos (2008). 16 Vale dizer que prevalece uma visão humanista, moderna e racionalista da esfera pública (esta última mais acentuada em Arendt que em Freire) que demarca suas posições. Daí a importância da imaginação cosmopolítica como forma de complexificação actancial e formas compósitas dos coletivos. Nesse sentido, distancia-se de visões racionalistas do sistema político especialmente da ideia de uma modernidade incompleta, tal como pensada por Habermas (2017) para se aproximar de projetos filosófico-políticos como o da transmodernidade de Dussel que propõe completar o processo de descolonização inconcluso e incompleto dos séculos XIX e XX. En lugar de una sola modernidad centrada en Europa y impuesta como un diseño global al resto del mundo, Dussel aboga por una multiplicidad de respuestas críticas descoloniales a la modernidad eurocentrada desde las culturas subalternas y el lugar epistémico de los pueblos colonizados en todo el mundo de respuestas a los problemas generados por la modernidad" (Dussel citado por LIMIC, 2015, p. 143).
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deles, como natureza, seria mero “acompanhante” do outro, o dominante. Eisenstein (2002, p. 29),
evocando o teatro japonês Kabuki, entende a relação entre som e imagem funcionando “como
elementos de igual significância”. E é nessa configuração que entendemos o vínculo entre “diálogo”
e “interepistêmico”.
5. Considerações Finais
Uma síntese primeira é: habitar com as diferenças é comunicação e a pesquisa em
comunicação é um trabalho com as diferenças. No movimento argumentativo do artigo, tentamos
apresentar, analiticamente, essa proposição a partir de dois gestos: um primeiro, de caráter
diagnóstico, apontar para as distâncias entre uma ciência da comunicação moderna e a comunicação
ligada à cosmopráxis produzida no âmbito de populações tradicionais que não deveriam ser vistas
como um “resto”, mas como formas de vida que podem inspirar outros modos de pensar, incluindo
o pensar sobre a comunicação. Em seguida, propomos uma reflexão em torno de duas proposições
capazes de tornar viável o caminho para se pensar a comunicação intermundos. De um lado a
proposta cosmopolítica e, junto com ela, a defesa da noção de fórum, como caminho para sublinhar
formas recursivas e espaços de encontros de mundos num trabalho de desconstrução da dicotomia
Natureza x Cultura, mostrando como essa junção pode servir ao trabalho intelectual em
comunicação ao romper com uma visão naturalista, antropoceno centrada dos processos
comunicacionais. De outro, os diálogos interepistêmicos como forma de sublinhar as diferenças
políticas que atravessam as interações nos seus diversos níveis e os desafios do diálogo entre
desiguais, marcadamente constituída pela depuração entre Sujeito X Objeto e pelo gesto tentativo -
como afirma Braga (2011) a comunicação sempre o é - de aproximação entre mundos que
funcionam sob regimes de conhecimentos que são diferentes.
O que buscamos destacar com as noções de fóruns cosmopolíticos e de diálogos
interepistêmicos é a afirmação de situações e modos de operação em que se destacam resistências
contra-coloniais (SANTOS, 2015), ou seja, aquelas que provocam rupturas inventivas com formas
de poder sobredeterminadoras e autoritárias, incluindo as da ciência, colocando em tela a relação
entre regimes de conhecimento/verdade e regimes de visibilidade. Tais rupturas têm, em face da
discussão aqui proposta, um valor pedagógico decolonial para instituições como a Mídia e a Ciência
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operada pelas formas comunicacionais dos contracoloniais. A comunicação não-moderna, daqueles
que jamais quiseram ser modernos, os circuitos paramidiáticos (OLIVEIRA, 2017) e as
possibilidades de escuta são caminhos profícuos de pesquisa para chegar a formas de comunicação
multidimensionais que escapam aos dispositivos biopolíticos e reafirmam formas de biopotência. A
geração de co-presença corporal e intersubjetiva é essencial para que esse enlace aconteça, daí que
metodologicamente envolve uma aposta na etnografia.
Capazes de acomodar múltiplas agências, múltiplos mundos, múltiplos vínculos (parentesco,
especialmente), o múltiplo de dentro e o múltiplo de fora, múltiplas experiências do tempo, os
fóruns cosmopolíticos gerados na implosão da dicotomia Natureza X Cultura apontam para formas
inventivas de criação de coletivos e de convivência entre regimes de conhecimento que perfuram as
visões de representação verdadeira e de tradução autorizada. Por outro lado, a subversão da
dicotomia sujeito x objeto a partir de diálogos interepistêmicos garante a convivência criadora entre
formas de saberes sem hierarquizá-los a partir de crivos como o problema da magia, do sagrado, ou
de um saber sem fronteiras. As descrições pormenorizadas dos fóruns cosmopolíticos são um passo
importante para a sistematização, a síntese e, por fim, a geração de protocolos nos próprios
encontros. Se o primeiro tem um enfoque temporal mais sincrônico, o segundo abre um eixo
diacrônico tanto de olhar para o passado (e agir sobre ele) quanto de mirar para futuros abertos.
Muitos desses discursos são assumidamente contra-hegemônicos, de resistência ou de
resposta às formas dominantes. Outros simplesmente buscam fazer sobreviver formas de vida que
não cabem nas lógicas de mercado e de Estado do capitalismo ocidental e suas formas de
dominação/opressão que incluem o genocídio, o etnocídio e o epistemicídio. O modo como operam
essas formas de vida parece subverter especialmente o tempo cronológico e vetorial do progresso
linear, buscando reinstaurar o tempo mítico e as formas de comunicação desdenhadas pela soberba
do moderno. Um exercício, portanto, de autorreparação no tempo.
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