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Os tripeiros, by António José Coelho Lousada The Project Gutenberg EBook of Os tripeiros, by António José Coelho Lousada This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Os tripeiros romance-chronica do seculo XIV Os tripeiros, by António José Coelho Lousada 1

Os Tripeiros[1]

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Historia do nome Tripeiros, (habitantes do Porto, Portugal)

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  • Os tripeiros, by Antnio JosCoelho LousadaThe Project Gutenberg EBook of Os tripeiros, by AntnioJos Coelho Lousada This eBook is for the use of anyoneanywhere at no cost and with almost no restrictionswhatsoever. You may copy it, give it away or re-use itunder the terms of the Project Gutenberg License includedwith this eBook or online at www.gutenberg.net

    Title: Os tripeiros romance-chronica do seculo XIV

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 1

  • Author: Antnio Jos Coelho Lousada

    Release Date: September 13, 2009 [EBook #29979]

    Language: Portuguese

    Character set encoding: ISO-8859-1

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    *Nota de editor:* Devido quantidade de erros tipogrficosexistentes neste texto, foram tomadas vrias decisesquanto verso final. Em caso de dvida, a grafia foimantida de acordo com o original. No final deste livroencontrar a lista de erros corrigidos.

    Rita Farinha (Set. 2008)

    OS

    TRIPEIROS.

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  • ROMANCE-CHRONICA DO SECULO XIV.

    POR

    A. C. LOUSADA.

    PORTO: TYPOGRAPHIA DE J. J. GONALVES BASTO,LARGO DO CORPO DA GUARDA N. 106.

    1857.

    I.

    A mensagem do Mestre.

    Alteradas esto do reino as gentes Co' o odo queoccupado os peitos tinha.

    CAMES, LUS. CANT. IV.

    Era uma estranha romaria, para quem no tivesse noticiados alvoroos a que a morte de Fernando 1.^o e ocasamento de Beatriz em Castella tinham dado causa, aque pelos meados de Maio de mil trezentos e oitenta equatro sahia pelas portas da cidade do Porto que davamsobre o rio, e mais pela chamada Porta Nova. Se fossefacil conduzir o leitor a vr do alto das torres que a

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  • defendiam aquelle gentio, acreditaria que elle tinhainvadido algum arsenal a procurar disfarce entre oguerreiro e o burlesco. Um popular cobria a cabea comum elmo adamascado, e, mostrando os joelhos atravs dogrosso estofo das calas, com ps descalos pisava aareia onde o montante que arrastava deixava um sulco;um outro, parecendo ter em menos conta a cabea do queo peito, abrigava este em uma couraa mais que farta, edeixava aquella ao sol e ao vento; este, vestindo apenasumas calas, se assim se podia chamar um cirzido detrapos, trazia suspenso de funda um escudo de couro,onde em tempos estivera pintada ou divisa ou braso, poisno era j facil adivinhar o que fra; de um cinto leonadopendia de um lado um estoque, do outro um punhal, e,como se no bastassem estas armas offensivas,empunhava um chuo enorme; aquelle levava um bacineteamassado e um gorjal ferrujento, e tinha por cinto degrosseira jornea uma funda, o provimento da qual, comose no fra uma arma facil de encontrar a cada passo,pesava em um sacco lanado aos hombros. De tempos atempos o bom povo, como lhe chamava o mestre de Aviz,abria aqui logar a um cavalleiro acobertado de ferro desdeos ps cabea, seguido dos seus pagens, ou escudeiros,alem a outros mais exquisitamente vestidos pelo antiquadodas armas, ou pelo incompleto. Havia capacete que, seCervantes o visse, no o deixaria ser original descrevendoo que deu ao seu heroe no principio das perigrinaes;

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  • peitos de ao polido, espelhando o sol, que disparatavamcom umas grevas desconjuntadas, enegrecidas, remendovisivel; feixes de armas que desdiziam umas das outraspelo valor, casando-se a facha grosseira com um estoquecuja bainha acobertavam ornatos de prata, montantes deToledo e adagas grosseiras. Os cavallos iam uns cobertosde ferro, outros apenas com os arreios necessarios parase poder cavalgar, e no poucos dos cavalleiros, e aospares at, montavam em mulas. Os cidados que assimsobrecarregavam os pobres animaes, costume vulgar poresses tempos e por muitos outros, vestiam em geral agarnacha negra, distinctivo dos doutores e physicos. Comeste mesmo traje, porm arregaado pela ponteira daespada, deixando vr a cala de duas cores e o borzeguimponteagudo via-se tres ou quatro aspirantes quelladistincta classe de medicos e letrados, e com elles algunsmonges, que tambem se mostravam affeitos s armaspelo modo como seguravam o punho da espada e cobriama tonsura com o bacinete. Um dos cavalleiros maisbizarros da romaria era tambem um ecclesiastico; pelomenos assim o demonstrava um roquete, que sobre armassoberbas vestia em vez de brial.

    De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas, astorres, os eirados e soteas nada havia nesta procisso; demarcial havia muito, tudo, a avaliar pelo enthusiasmo comque a saudavam, e pelos vivas que se juntavam s

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  • saudaes. Tinha decorrido uma boa hora desde quecorrera na cidade que umas gals demandavam a barra,e, posto que houvesse quem affirmasse logo que eramportuguezas, como dos de casa havia tanto a recear comodos extranhos, todos se tinham prevenido para as receber.Um pagem levara j a Ayres Gonalves e ao bispo D. Jooa nova de que eram expedidas pelo mestre de Aviz; pormestes senhores eram ento authoridades quasi nominaes,e deixavam por tanto, para no perderem o tempo, fazer asua demonstrao aos bons populares e aos cavalleirosque no eram de suas casas, creao, ou servio.

    Ideia de que no seculo decimo quarto era uma guerra civil,acompanhada de uma invaso estrangeira, nem todos osque passam os olhos por este capitulo faro. Hojehasteam-se duas ou tres bandeiras, ou mais, sequizerem, mas, o primeiro impeto passado, a machina civill vae funccionando peor ou melhor por conta dosgovernos provisorios; naquelles tempos, porm, ninguemse entendia por vezes. Cada fidalgo levantava o seu troode gente e vendia e revendia a espada; hoje era aoservio de um, manh ao de outro; os alcaides doscastellos, a maior parte dominando as povoaesprincipaes, juravam preito e perjuravam todos os dias, e asmunicipalidades lanavam, bom ou mau grado, pelamanh um bando em favor de um monarcha e tardeacclamavam outro. No meio desta bella ordem havia

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  • caudilho que dava em ambos os partidos belligerantes, esobretudo nos pacificos, aventureiros que se batiam por sie para seu proveito. Na menoridade do pae do regedor,como modesta e arteiramente se appellidara o irmobastardo de D. Fernando, e em quasi todos os reinadosantecedentes, a provincia de Entre Douro e Minho tinhatido a sua amostra destas amabilidades; mas o que agente da ordem chama revoluo e revoluo politica noestalara em tempo algum como agora. At ahi o povocontentara-se, salvo um ou outro caso, com evitar aponta da lana dos nobres senhores e o virote dos seushomens d'armas, e ainda mais de lhe franquear as arcas ede correr os cordes da bolsa, o que raras vezesconseguia. Os burguezes do Porto, o mais desenquietopovo de toda a provincia e do reino, tinham j dadomostras da sua fora aos bispos Martinho Rodrigues eVasco Martins, porm, nestas revoltas se entrava politicaera acobertada: elles no davam por tal. Desta vez oexemplo da capital fra-lhes contagioso, e mesmo semto bons motores como Alvares Paes, desempenhram asua tarefa por tal arte, que se pde dizer, que a lei por quese governavam era a sua. Ayres Gonalves de Figueiredo,o governador de Gaya admirra da outra margem avalentia dos pulmes dos partidarios do novo governo, e,posto que no estivesse bem seguro das suas ideiasquanto legalidade da regedoria, e preferencia de direitosdo mestre de Aviz sobre os do infante, dos deste sobre a

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  • irm, ou vice-versa, para no lhes avaliar as iras tambem,contemporisara, soltando as mesmas acclamaes. Nacidade havia um cahos. Os vereadores, governavam;governavam os juizes do povo e o juiz real; governavamos chefes das corporaes; governava, porm menos, obispo e os seus meirinhos; governavam at, oumandavam, os prisioneiros, ou tidos por taes, como era oconde D. Pedro de Transtamara, que no campo deCoimbra tivera as suas aspiraes coroa de Portugal, ea ser o terceiro marido legitimado de Leonor Telles;finalmente, mandavam todos, se a mais ninguem fosse,cada um a si.

    Do pequeno povoado que ficava extra-muros, compostode uma mescla de armenios, que nove annos antes tinhamdeixado cahir o throno de Livonio, o seu ultimo rei, aosgolpes de espada do sulto do Egypto; de gregos da Asia,escapados furia dos soldados de Amurath; de flamengose genovezes aventureiros, de mouros, os cultivadores daencosta em que o bairro se abrigava; da pequenapovoao, do bairro Armenio, augmentado ainda depoisda tomada de Constantinopla com os piedosos guardas deS. Pantaleo, ajuntava-se procisso sahida da PortaNova uma chusma de curiosos, que pela variedade devestuarios, lhe vinha dar realce. Como em taes casossuccede, toda esta gente se embaraava na marcha,pees a cavalleiros, cavalleiros a pees; todos fallavam,

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  • todos tomavam e davam concelho, e perguntavam pornovas de que iam dar ao primeiro encontrado uma versocorrecta e augmentada com reflexes de lavra propria eextranha. O espao que se estendia desde os muros atonde a Arrabida deixava apenas um caminho de cabras,aberto na rocha para quem se quizesse dirigir Foz doDouro, no foi pois transposto em menos de uma hora,pela vanguarda: uma grande parte do exercito popularnem l chegou. Os primeiros que encontraram uma dasgals subindo o rio, gritaram para os tripolantes que lhesdissessem por quem vinham, e como estes respondessemque pelo Mestre, sem mais attenderem, voltaram atraz,dando vivas, como se fosse aquillo reforo inesperado,que os viesse tirar de apuros.

    Nas gals no vinha reforo algum para os do Porto, unicaterra de importancia ao norte do reino, que no acceitracomo rei o marido de Beatriz, e tinha a braos setecentaslanas e dous mil infantes do arcebispo de Santiago e deoutros senhores castelhanos e portuguezes, sem contar osaventureiros de Fernando Affonso, que no eram nemuma cousa nem outra.

    D. Joo de Castella, feita em Santarem a cesso dosdireitos coroa por D. Leonor, a troco de vinganaspromettidas no povo de Lisboa, que a respeito della e emrosto esgotra um vocabulario immenso de nomes, de que

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  • Ferno Lopes d uma amostra, e a mimosera compedradas; D. Joo, resolveu-se, seno a cumprir o ajuste,pois se malquistra com a ambiciosa sogra por causa dedous judeus, a destruir a rebellio, como elle lhe chamava,no fco, e avanra at o Bombarral, ao passo queaprestava uma armada que, fechado o assedio por terra,cerrasse tambem as communicaes por mar.

    Os arredores de Lisboa talados, as povoaes saqueadasno podiam abastecer de viveres os sitiados; entre elles eCoimbra estavam os arraiaes inimigos, portantorecorria-se ao Porto, pedindo tambem um reforo denavios para impedir que o Tejo fosse bloqueado. D.Loureno, arcebispo de Braga, azafamra-se para armaras gals que deviam levar estes soccorros, e o mestre deAviz encarregra Ruy Pereira de uma missiva, em que aosbons burguezes se promettia mil regalias; pois D. Jooacceitra o conselho de dar tudo o que lhe fosse possiveldar, e prometter at o impossivel.

    Os vivas e o appendice a todo o enthusiasmo politico demorras, naquella quadra aos castelhanos, aos traidores eaos scismaticos, prolongaram-se at que as gals em quevinham Ruy Pereira e Gonalo Rodrigues vararam pertodos muros da cidade e principiou o desembarque destes eoutros illustres personagens, e ainda maior foi a algazarraquando o estandarte real appareceu. O conde de

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  • Transtamara, como primo do rei de Castella, no era doscoristas mais fracos deste grande cro desafinado, e frados primeiros cavalleiros que se apearam para receber osreaes mensageiros, com toda a cortezania. O povo sem fnaquella converso e pouco acatador nesse momento dasesporas de ouro, das cotas bordadas e cimeirashistoriadas; o povo, deixando escapar dessesepygrammas de que elle possue o molde particular, emvez de lhe abrir caminho, cerrava-se na sua passagem,fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisongeiro quetencionava prgar a Ruy Pereira. Ruy era umanotabilidade, como hoje se diz; porque ento ainda se notinha inventado as notabilidades, nem muitas outrascousas. Desde que explicra ao mestre de Aviz a opiniodo povo a respeito da rainha Leonor, notando que quandoandava para casar com sua mulher, fallavam todos emque se queria casar com Violante Lopes, e depois decasado ninguem mais de tal fallra; depois, sobretudo, quedra o golpe de merc ao conde valido, abaixo de seusobrinho, dos homens de espada com valimento na crte,era o primeiro, e para quem estava nas circumstancias deD. Pedro, portanto, pessoa que era prudente lisongear.

    J ento, como se ver no decurso desta narrao, seattendia a conveniencias.

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  • Em quanto os mesteiraes e burguezes embaraavam oconde, Martim Gil, abbade de Pao de Sousa, substituia-odignamente com duas rajadas de latim, a substancia dotodo, que o mensageiro perdeu por no entender a linguade Cicero, e uma enfiada de periodos em portuguezgarrafal, que entenderia perfeitamente, se a algazarrativesse cessado. Ruy Pereira satisfez-se com vr abrir efechar a bocca ao reverendo, e respondeu a toda estaeloquencia, fazendo-lhe um ponto no meio do recado,perguntando onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhetodas as boas casas da cidade desde os paos da S e oconvento de S. Domingos, at algumas das vivendasparticulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S.Domingos, mostrando mais pressa de descanar dosencommodos do mar, que de dar conta da sua misso. Oabbade tentou ento dar entrada na cidade dospassageiros e tripolantes da gal de Gonalo Rodrigues, edas outras que iam aproando ao longo da praia, um todoprocessional, porm luctava em vo; que era atdifficultoso fazer desembaraar os sitios de desembarque,onde o povo se apinhava, se acotovallava sem dardescano ao pulmo. O Douro no tinha ainda, nas suassoberbas, arrojando as terras roubadas nas campinasd'encontro praia; tornado esta to larga como hoje; nemos homens haviam com parapeitos avanado sobre o leitodaquelle. O espao existente logo alm de portas, ondehavia povoado, era to limitado, que, a distancia, parecia

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  • que as edificaes tinham para a agua serventia, como osda cidade das lagunas, a rainha do Adriatico; o estado deexaltao, e animo revoltoso ou independente dosburguezes e viles, porm, at em logares maisespaosos tornava difficil a empresa do abbade.

    Ruy Pereira, apesar de ter presenceado em Lisboa arevolta popular, fazendo-se popular elle mesmo, no o eratanto que levasse a bem aquella sem-ceremonia dosportuenses, e lanando sobre os mais proximos um olharpouco amavel, reprimindo a custo a vontade que tinha demandar abrir caminho a prancha de espada e conto delana, lamentava in mente os bons velhos tempos--que jento havia bons velhos tempos--em que a cousa peodescortinando a vontade no gesto de um rico homem, logoobedecia sem mais tugir ou mugir.

    Graas interveno dos juizes do povo e real, que,avisados da chegada dos navios e de quem eram aspessoas que elles conduziam, vinham para asaccommodar em pousada decente e fazer todas ashonrarias, que em tal caso competia, o embaraoterminou. As tres authoridades, duas municipaes, umareal, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foramfelizes, deve-se confessar, naquella occasio, por nohaver conflicto de poderes, nem recalcitrao dosgovernados, o que era raro, e deveram esta felicidade a

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  • estar satisfeita a curiosidade dos burguezes, e no serpreciso empregar barqueiro ou pescador algum naamarrao dos navios. A procisso comeou pois amover-se pelas estreitas ruas da cidade, e, em vez deparar em S. Domingos, seguiu at casa da camara nomeio sempre de grandes acclamaes ao mestre de Aviz,defensor e regedor do reino, e morras aos castelhanosherejes, scismaticos e traidores, o que fazia tragar semrplica a Ruy Pereira o ceremonial amofinador a que osubmettiam os edis portuenses, e a pressa que tinham desaber em que podiam servir a sua senhoria, o futuro rei.

    II.

    Um rapaz travesso.

    He elle um par bem 'scolhido.

    GIL VICENTE.--V. DA HORTA

    Quando o mensageiro do Mestre era processionalmentelevado pela porta, que tempos depois deu a um poeta como nome um trocadilho para um requerimento em verso, nomarulhar de curiosos e patriotas que se empuxavam,forcejando por abrir caminho para aquelle gargalo, umburguez que tornava respeitavel o sizudo do traje, umabarriga proeminente, onde batia uma gorda bolsa de couro

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  • e um esguio punhal, cabello branco, patrioticamentecortado, luctava para no ser levado na corrente, dandomostras pelo inquieto do olhar que procurava alguem. Afora da corrente era grande, porm, e arrastou-o pouco apouco at junto de uma das torres de defesa, onde aressaca o fazia tomar todas as direces e posiespossiveis no meio dos gritos das mulheres abafadas, dascrianas trilhadas, do estalar das armaduras, que,permitta-se a imagem, eram os crustaceos que as ondasdaquelle mar lanavam d'encontro s rochas. MestreGonalo Domingues suava por todos os pros e formavacom os cotovellos um amparo ao abdomen e quebra-mar mar, receando ser lythographado no muro, resmungandoao passo uma ladainha contra o causador daquelledesastre, segundo se lhe affigurava, um sobrinho que oacompanhra momentos antes, e que perdera de vista.Resolvido j a deixal-o por sua conta, pois no estava jem edade de se perder, e a escapar-se daquelle aperto,comeava a recuar, servindo-se dos cotovellos como deuma alavanca, quando sentiu umas mos callosaspousarem-lhe no hombro, sustendo-o na marcha. Sentindoaquella resistencia, sem vr quem a oppunha, pois lhe eraimpossivel voltar o rosto, e receando de novo ser levadopara o muro, empregou contra o individuo que assim lhecortava a retirada um cotovello, que estava na razodirecta da fora que o impellia: tudo isto acompanhado poruma praga:

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  • --Ms ters te colham, cabea de bogalho!

    A praga a meio, e uma das mos a erguer-se a descerfechada em murro, estourando no costado de mestreGonalo Domingues, que soltou um regougo, cambaleou eperderia de certo o equilibrio, se um mesteiral, que estavana frente, o no amparasse na queda. O burguez,incommodando com o peso o seu primeiro ponto deappoio, este o saccudiu para um dos visinhos, que orecambiou sobre o homem do murro, appresentando-lh'ode cara.

    --Se te apanhra aqui, maldito! tornou a exclamar mestreGonalo, soltando outro gemido: punha-te as orelhas afumegar. Tu m'as pagars!

    Esta exclamao a meia voz, dirigida ao ausente sobrinho,foi interceptada a meio pelo homem de murro, ummarinheiro, que, vendo o rosto afflicto do bojudo cidado,se contentou com dar-lhe um grande encontro,resmungando, como goso que v em perigo o osso queesburga:

    --Pois junte l mais isso conta, meu baleote.

    Mestre Gonalo estava affeito a ser mais bem tractadointra-muros: doeu-se da chufa dirigida ao seu physico pelo

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  • maritimo, e fez-se mais vermelho do que estava; fez-seroixo, se pde dizer, desde a raiz do cabello at aosqueixos, mas no reagiu. A sua indole era pacifica, apesardo punhal que o acompanhava; e demais, no via perto desi seno caras desconhecidas e rostos queimados pelo ardo mar, que podiam ser de vassallos da coroa, e estes,posto nessa occasio estivessem em harmonia com osvassallos da mitra, e j um pouco apagadas as divisesantigas, era de crr que por elle no tomassem partido.Comtudo, no se ficou, sem responder:

    --Se no est bom, deite-se, ou v travar razes competintaes, espadeleiros ou outra gente da sua egualha;no se metta com quem no se mette comsigo.

    --Olhem o outro! resmungou o marinheiro; abalroou-mecom os cotovellos pelos peitos, e diz que se no mettecom a gente; traz aquella cara que parece mesmo um odrea rever, e grita que um homem c est toldado!

    Gonalo Domingues, doendo-se da nova zombaria, tornoumais apropriada a imagem do marinheiro, e cerrando ospunhos exclamou:

    --Veja como falla!

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  • --Graas a S. Pedro; meu advogado, redarguiu o homemdo mar, levando a mo ao barrete--no facil de dizer seem atteno ao santo-apostolo, se em corteziazombeteira, pelo esgar que fez, ao senhorGonalo--graas a S. Pedro, fallo sem trave. E no mefaa biocos nem arremessos, accrescentou com ar maiscarregado: que, se me sobe a mar aos cascos?!...

    --Que l isso, mestre Gonalo? perguntou quasi aomesmo tempo um cidado de pouco menos edade que ointerrogado.

    -- este excommungado, que se metteu onde no erachamado, e me poz a paciencia em maior apuro do que ja trazia.

    --Excommungado elle! resmungou o marinheiro,recambiando o apdo que lhe fra dirigido, e fitando ora onovo, ora o antigo interlocutor.

    --Olhe, mestre Gil, tornou o burguez rubicundo,dirigindo-se ao recem-chegado; ia eu amofinado por causadaquella cabea de vento de meu sobrinho...

    --E que tenho l eu com seu sobrinho? tornou omarinheiro.

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  • --Isso mesmo queria eu que me dissesse! acudiu o senhorGonalo.

    E, voltando-se para o seu collega, continuou:

    --Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o maldito dorapaz se me escapou--ora sei eu l para onde!--e no seique digo de mim para mim, quando essa creaturinha,como se no tivesse da sua egualha mais com quemdesenferrujar a lingua, travou-se de razes...

    --Isso nada vale, mestre Gonalo! atalhou o homem aquem vimos dar o nome de Gil, dirigindo-se para ogaleote, que lhe voltou as costas, fazendo uma caretamuito expressiva para um companheiro, que, com umamo pousada no hombro delle, parecia, na posio quetomava, querer dizer que alli estava para ir em seu auxilio,se preciso fosse, que no era.

    O gordo burguez, vendo o antagonista voltar-lhe as costas,desafogou contra elle, com o seu amigo, a cholera, que oameaava com uma apoplexia; e em seguida desafogoutambem a respeito do causador, o estouvado sobrinho,que desapparecera. Apesar de ter escoado a multidopela porta da cidade, de estar j desembaraado otransito, volta dos altercadores havia uma reunio decuriosos, como de costume, cujo nucleo era uma boa

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  • duzia de garotos pertencentes, pelo que dos traposvestidos se divisava, a tres religies; pelo typo, a tresraas, e ao qual se juntavam por um segundo, que maisno fosse, os arrastados daquella procisso e todos osque por alli o acaso conduzia. Uma velha que regressavaaos lares com os aviamentos para a ceia, comprados natenda d'ao p da porta, soalheiro do bairro, no escapou,apesar de carregada, fora attrahente das lamentaesde mestre Gonalo; e, sabida a causa destas, seappressou em dar-lhe remedio.

    --Quer saber do seu sobrinho que esteve no convento,mestre Gonalo? Bem se v que o rapaz no tinha quedapara os latins e o hbito; aquillo um levantado! Tomesentido com elle, mestre! Agora o vi eu a correr pelabitesga que vai por p da casa de Joo Ramalho. A modosque elle...

    A reflexo da velha, se na phrase ficou incompleta, no oficou no gesto. A traduco deste era que o rapazcomeava a inclinar-se s saias. (Como demos atraduco, ajuntaremos, em nota intercalada no texto, quea boa santinha parecia, no ar malicioso que tomou,recordando-se dos seus tempos, ter delles saudade.)

    Gonalo Domingues, sem mais attender mulher daalcofa, tomou a direco do sitio indicado como o seguido

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  • pelo sobrinho, resolvido a descarregar nelle o mau humorexcitado pelo seu desapparecimento, pelos apertes quelevra, o cortejo que perdera, e, sobretudo, os apodos emurros do galeote. Em quanto para l se dirige, ruminandoaquellas passadas attribulaes, saibamos o que fazia otravesso rapaz.

    Como j viu o leitor, no antecedente capitulo, no tempo emque estas cousas succediam, as habitaes, em Miragaya,estavam mais perto do rio, ou melhor, o rio corria maisperto das habitaes. Entre S. Pedro e os muros, havia, noespao que abre a montanha, algumas bitesgas, de queainda se conserva uma amostra, povoadas umas, outrascorrendo entre cercados e muros; em outros sitios, umfraguedo deixava apenas o logar preciso para algumcarreiro no muito viavel. A povoao cerrava-se,apinhava-se mais para o p da velha egreja de S. Pedro, erareava progressivamente para o oriente e poente. Pertodos muros, havia to smente uma fieira de casas beirad'agua; depois o declive rude do monte onde se edificou oconvento dos Agostinhos, coberto de silvados e matto, quevinha angustiar mais o passo para a cidade. Onde setornava mais suave a encosta, subia um carreiro, que,depois de serpear por detraz de algumas das moradas dobairro do rei, se bifurcava, levando um brao a umadaquellas ruas, lanando outro pelo monte, serventia acasaes que se communicavam egualmente com a cidade

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  • pelo lado do Olival. Por este carreiro que tomraFernando, ou Ferno Vasques, o sobrinho do senhorGonalo Domingues, mal viu absorvida a ateno destenas gals reaes e seus passageiros. O rapaz correu poralgum tempo sem tropear, para o que preciso era estarbem affeito a trilhar similhante caminho, e s affrouxou opasso quando se approximava de uma casa de boaapparencia, cuja frente dava para a praia, habitao deuma das notabilidades do bairro, e que o foi depois, nahistoria, do piloto e mercador Joo Ramalho.

    A casa para o lado do rio nada appresentava de notavel nafachada: era um edificio de madeira como muitos dessaepocha; para o lado do monte, porm, era bastantepictoresca. A parte inferior escondia-se em uma moita dearbustos de um pequeno cercado, onde tambem selevantavam algumas arvores de fructo, uma das quaes,rompendo, com um brao lanado flor da terra o muro depedra insossa, saccudia sobre o caminho a folha, a flor emesmo o fructo, se a gula dos garotos esperava peloseffeitos do tempo. Acima do verde dos arbustosdescortinava-se uma varanda de pau, onde, no parapeito,davam passagem ao ar e luz aberturas symetricas,figurando folhas de trevo, e na parte superior, zelozias emxadrez, tudo pintado de encarnado vivo e verdeesmeralda, com que realava o branco que tingia otabique. De ambos os lados da varanda descia uma

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  • escada, cujos maineis se perdiam entre os arbustos,depois de se ligarem em um patamar, ao centro, para denovo se separarem, formando da sorte um corpo salientena fachada. Por cima da varanda abriam-se duasjanellas, todas lavradas, ornadas de zelozias tambem, etendo por baixo, sobre traves salientes, em cada uma dasquaes artista rude esculpira um animal sonhado, douscaixes com terra. Em um, apar do qual duas longascanas formavam um estendal, onde se via roupa a seccar,a providencia domestica semera salsa e a precauocontra feitios dispozera um p de arruda; no outro, haviaum p de amores perfeitos e outro de madresilvamarinhando por cordes passados para o guarda-chuvade madeira que os abrigava.

    Quando Fernando Vasques se aproximou da casa, depoisde alguns assobios, entre a trepadeira e por cima dosamores, appareceu, aberta a zelozia, uma cabea bempropria para encaixilhar entre aquellas flores. Imaginae umrosto oval, de uma carnao que se no podia dizerbranca, mas a que se no podia chamar trigueira, porqueo no era; uma pallidez, sem ser dessas que denunciamuma natureza enfesada, doentia; uma pallidez que lhedava um todo de brandura, de carinho, que fazia por vezesrealar um carmim vivissimo e trahia um olhar travesso, detravessura infantil, innocente; imaginae uma bocca de umlindo desenho, formando em cada extremo uma covinha

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  • engraada; uma bocca que parecia sorrir sempre, mesmoquando a fronte scismava ou as lagrimas desciam pelasfaces; imaginae que o nariz fra modelado pelo de umaestatua antiga, e imaginae, sobretudo, uns olhoscastanhos rasgados, assombrados por uma franja de ciliasto cerrada, que pareciam negros como a baga doloureiro; uns olhos, emfim, expressivos, verdadeirosespelhos d'alma, como lhes chamam os poetas, e tereisuma ideia das feies de Irene. Esta encantadora cabeaenfeitava-se com o mais soberbo cabello que se pde teraos quinze annos; negro, longo, serico, ligeiramenteondeado. Para maior realce da cr, parecia feita modaque vogava. As tranas, que vinham pousar no collo, alvocomo marfim, eram intermeiadas por fitas de l de umvermelho vivo, que se cruzavam depois na cabea evinham cahir soltas, dos lados, terminando em pingentesde metal dourado.

    As leis que faziam distinguir, pela cabea, as solteiras dascasadas e estas das viuvas cahiam em desuso.

    A filha de Joo Ramalho, apesar da curta edade, era umabellesa. O sangue de sua me, uma dessas bellas moasda Asia, em que se confundiam dous typos, o grego e oarmenio, predominando, desenvolvera aquelle corpogarboso; dera-lhe na adolescencia o acabado, a morbidezque s mais tarde, em geral, em outra edade se alcana.

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  • Com o corpo desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o aesmerada educao materna, que distava bem da vulgarentre a nossa burguezia naquelles tempos, e os carinhosda boa mulher, que o senhor Joo no comprehendiabem, entretido sempre nas suas viagens e rude, voltadostodos para aquella filha unica, em que se embellezavacultivando-lhe o corao, aformosearam-lhe a alma. Umabella alma faz um rosto, seno formoso, amavel; aintelligencia reproduz-se nas feies como aureola quelhes d realce; a natureza, j o dissemos, fra madrinha eno madrasta para com Irene: a bella menina, reunindo,pois, todas as formosuras, despertava a admirao e oamor ao mesmo tempo. A impresso produzida nosobrinho de Gonalo Domingues fra esta, e que o amornaquelle peito tinha boas raizes, dizia-o a confuso emque elle ficou, mal janella appareceu a gentil cabea.Fernando, um rapaz jovial e resoluto, como o diziam unsolhos castanhos cheios de fogo, um nariz ligeiramentecurvo, os lbios delgados, accentuados na extremidadepor um ligeiro buo; Fernando baixou os olhos, fez-severmelho, sentiu que os joelhos se dobravam,enfraquecidos, e, sem se attrever a fitar de novo aquellaappario, bom tempo gastou em puxar o barrete de umpara o outro lado da cabea e amarrotal-o nas mos, nemcreana bisonha que se dispe a abrir brecha na bolsapaterna, ou tem de responder por avaria feita, acabandopor desafivelar o cinto da jornea, como se carecesse de

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  • tomar largo folego para levar a cabo a sua empresa.

    No era esta a vez primeira em que alli se encontrava emtaes embaraos, porm nunca to graves tinham sido ascircumstancias. A gravidade no provinha da escapulafeita a seu tio, que j nem de tal se lembrava, mas daresoluo que tomra de realisar as suas ambies esonhos, as combinaes de tantas horas; de passar almde alguns gestos e sorrisos e umas saudaes feitas docimo da encosta, no fallando em uma enfiada de sons,que palavras se no podiam dizer, pois nem elle lhessoubera o sentido, soltados porta de S. Pedro entre unscomo arrepios, que attribuiu ao modo porque o encarou acultivadora da arruda, a creada a quem o senhor JooRamalho, por morte de sua esposa, confira o governo dacasa e a guarda da filha.

    Quasi egual fora da resoluo fra o abalo, comonestas cousas de costume, mas Fernando no estavaresolvido a deixar perder mais uma occasio: puxando obarrete sobre a nuca, subiu a um comoro, ao lado daquelha, ergueu os olhos e abriu a bocca, porm a palavraengasgou-se-lhe a um gesto de Irene. O pobre noprevera que prgar a sua confidencia daquelle sitio fra,querendo que ella a ouvisse, mettel-a tambem nos ouvidosdos visinhos, ou pelo menos das pessoas de casa, e amoa, levando um dedo aos lbios e indicando-lhe com

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  • um gesto que descia varanda para encurtar a distancia,se no enleio, no rubor se mostrava mal affeita quellasartimanhas, professadas pelo amor, ou quem suas vezesfaz, como do sexo a que pertencia, se mostrava maisprudente. Irene desceu, mas vencido a meio oinconveniente da distancia, furtava-se, encoberta pelocercado da horta, s vistas de Fernando. Este eclypse,como diria um poeta, foi que deu ao namorado um animode que elle proprio se espantou por muitos dias depois:atreveu-se a subir ao muro e marinhar pela arvore que sedebruava sobre a estrada, a esconder-se entre aramagem.

    Os discursos naquelle dia tinham m sorte: como o quefra destinado a Ruy Pereira, o pensado e repensado dosobrinho de Gonalo Domingues no vingou. A erudicodo abbade de Pao de Sousa achatara-se de encontro paciencia do fidalgo; as flores escolhidas para ornar adeclarao feita a Irene (to rico dellas o corao emque rebenta o amor!) as flores de estylo queimou-as umolhar lanado ao mancebo, traduzindo tanta cousa, que sum desses olhares podia dar bons tres capitulos comoeste em que se conta e commenta tanto successo. O olharde uma donzella, como a filha do piloto, nestasconfidencias de um primeiro amor--deixem dizer que oamor, o verdadeiro amor s vem muito mais tarde, deixem;que elles treleem, e julgam que o egoismo aquilata a

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  • paixo--; o olhar de uma donzella assim, encerra um mixtode affecto carinhoso, de volupia indefinivel, de pudor einnocencia, de receio e ousadia, que, para delle dar umaideia, a poesia mesmo uma linguagem descolorida.

    Fernando, mal se viu frente a frente com a moanamorada, sentiu um formigueiro nos ps, turbara-se-lhe avista, e teve de se agarrar aos ramos da arvore, para nocahir; quiz procurar o cabealho da sua declarao, pormnem uma s ideia lhe vinha mente; por mais de uma vezabriu a bocca, e teve de a fechar sem formular um unicomonosyllabo. Irene, na varanda, com a approximaotambem se acanhra, e occultava o seu embarao, ou,antes descobria-o, passando a mo pela fronte,levantando uma trana para logo a abaixar, enrolando edesenrolando uma das fitas, afogando e desafogando opescoo com o singelo colleirinho do corpete. Os minutosque assim passaram no foram poucos. Recuar depois deter chegado at alli era desairoso e difficil.

    O sobrinho de Gonalo Domingues fez o supremo esforopara no perder tudo.

    --Irene, Irenesinha! disse elle, amarrotando o barrete coma mo que tinha desembaraada.

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  • A moa fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos foramdesperdiados, se desperdiado se pde dizer aquelletempo passado em enleio, rpido na passagem, mas quedepois enche com a recordao tantas horas de vida.

    --Irenesinha! tornou Fernando, continuando a procurar amusa no barrete.

    A moa continuou a fitar o embaraado rapaz, aguardandoque alguma palavra mais seguisse invocao. O barreteno absorvera, ao que parecia, os galanteios estudados,amimados por tanto tempo, pelo que, depois de largapausa, Fernando desceu das regies do amor a cousasmais terrestres, na linguagem; procurou, se, o que maisprovavel, se no agarrou primeira idea visada, um pontode partida nos successos do dia, e titubeou:

    --No sabe que chegaram ahi umas gals de Lisboa?

    --Sei; respondeu a joven, baixinho, depois de olhar paratodos os lados a vr se alguem poderia ouvir aquellaconversao amorosa. Meu pae para l foi.

    --Foi? interrogou machinalmente o mancebo.

    --Foi, repetiu Irene, debruando-se pela varanda efazendo com uma das mos junto do ouvido uma concha

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  • para no perder uma s palavra.

    --Pois veem nellas muitos fidalgos de Lisboa. No os viudesembarcar?

    --Vi.

    --Disseram-me que iam em procisso cidade, e quetraziam um recado do senhor D. Joo!

    --E no foi vr?...

    --Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais baixa eintercortada, por muito que tenham que vr, eu antesquero estar aqui. A menina que no sei como no vaipara o lado da praia.

    --Para que? To longe fica o lugar onde vararam as gals,e est um gentio...

    --Ento, se podsse vr, no estava ahi.

    --Porque no? disse Irene, crando.

    --Porque... porque, titubiou Fernando, baixando os olhos;porque aquelles fidalgos com as jorneas bordadas,aquellas armas a espelhar so mais para se verem...

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  • --Da janella, tornou a moa, encolhendo os hombros; dajanella no se podem admirar esses alindes.

    Fernando baixou a cabea, desconcertado o seu intento. Amoa no vinha para o campo para que elle a queriatrazer: no o entendia, pensava elle, e se o no entendia porque o no amava. Se soubesse avaliar a entonao decertas palavras no pensaria daquella sorte; porm todosos namorados assim so: no reparam nas rosas ecolhem os espinhos.

    --Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem fazer umaleva para a guerra contra os scismaticos de Castella?tornou o mancebo, procurando levar a conversao ao fimdesejado.

    --Para que pensar nessas cousas!

    --E se me levassem? insistiu elle.

    --Mas elles no veem para isso; no, senhor Fernando?disse a donzella com uma inflexo de voz, que pintava oreceio de que uma affirmativa fosse a resposta.

    O sobrinho de Gonalo Domingues no notou estaexpresso e proseguiu:

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  • --No se lhe dava que eu fosse?

    --Eu?

    --Sim; parece que no teria pena alguma.

    --No diga essas cousas!

    --Pois devras magoava-a a minha partida?

    --Devras; disse Irene, passando a mo pelo rosto, paraoccultar as tintas do pejo, que a elle assomavam com estaconfisso.

    --No diz o que pensa, acudiu o mancebo, imprimindo,cheio de alegria, um tal abalo arvore, que esta, oscilandoo roando de encontro ao muro, fez desprender algumaspedras.

    --Jesus! vai cahir! exclamou a donzella, tornando-sepllida.

    --Ai! Irenezinha, s para vr se o que diz certo, de boavontade quebrava a cabea.

    A moa, em vez de responder, com um gesto impozsilencio ao seu conversado. Do lado de baixo ouvia-se os

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  • passos de quem para alli se dirigia, e pouco depoisappareceu Gonalo Domingues.

    -- meu tio, disse Fernando, com voz to sumida, quepara si to s parecia fallar, e no momento em que orotundo burguez passava distrahido junto do muro,querendo esconder as pernas que deixava pender de um eoutro lado do galho em que cavalgava, de novo oscilou aarvore violentamente, mais arruinando o muro a que seencostava.

    --Oh velhaco, que fazes ahi empoleirado?

    --Eu, senhor tio? accudiu o pobre rapaz, coando nacabea com toda a furia.

    --Sim, tu, Belzebuth! Salta c para baixo, que te ensino aandar a roubar fructa pelos cerrados.

    --Oh meu tio, a arvore no tem fructo; olhe bem.

    --Ento que fazes ahi?

    --Eu estava a vr...

    --O que, rapaz de m morte, cabea cca?

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  • --A vr se o via por algures, proseguiu o desconcertadomancebo.

    --Levadigas te colham! Procuraste atalaya bem longe docaminho. Ora, desce, que eu te vou ensinar chanasmelhores.

    --Cuidei que ia pela Aljama.

    --Algemia isso que tu ests a prgar. Desce, velhaco!

    --L vou, tio; disse Fernando, descavalgando, pormdeixando-se suspenso pelas mos do seu poleiro. Mas...

    --Mas o que? Por tua causa em boas me vi, e tu m'aspagars juntas. Eu farei de modo que no tenhas maisvontade de ir devassar hortas e cercados. Se vais poresse caminho, acabas nas mos da justia! exclamou osenhor Gonalo Domingues, com sobrecenho provocadopela recordao de desaguisado da praia.

    Fernando deitou donzella, que toda trmula seconservava encostada varanda, um olhar a furto, no seattrevendo, por envergonhado de ser assim, alli napresena della, tractado como uma creana, a umadespedida; com outro relance d'olhos avaliou se asameaas do tio no teriam, na execuo, algum desconto,

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  • e lentamente, soltando um suspiro, desceu da arvore emque, ao modo das aves, tinha soltado as primeirasconfidencias do amor. To depressa sentiu nos ps ocontacto do pedregulho da bitesga, como sentiu nasorelhas o da mo de mestre Gonalo, que acompanhavacada puxo com um epitheto pouco amavel, terminandopelo de ladro.

    --Ladro no! exclamou o rapaz dando um salto, feridopela insistencia do tio naquelle ruim conceito.

    --Ento que fazias alli, rapaz dos meus peccados?

    Alguem, no o interrogado, se encarregou de responder. janella onde vecejava a arruda assomou um rostoencarquilhado, meio occulto em uma enorme touca delinho a feio das que usam as freiras, e gritou com umavoz de canna rachada, debruando-se:

    --Menina Irene! menina Irene!

    Gonalo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu olbio inferior com um gesto que queria dizer muita cousa,e, entre outras, que atinava com o motivo de ter o sobrinhotrocado a procisso dos fidalgos por uma ascenso sarvores do senhor Joo Ramalho. Lembraram-lhe aspalavras e os momos da velha da praia.

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  • --J agora vamos pela Aljama, e de passo fallarei commeu compadre; disse em seguida, dando um encontro aomancebo e indicando o carreiro que subia a montanha.

    Mettendo-se a caminho, voltou a cabea, como a voltraFernando, para a casa do mercador, e viu na janella doandar superior, por entre a zelozia meia aberta, o rosto dagentil menina.

    -- f, disse elle por entre dentes, que o rapaz no temruim gosto; e ella...

    A palavra foi terminada por um sorriso, olhando paraFernando, como desvanecido do seu sangue. GonaloDomingues era um excellente homem, apesar de toda asua aspereza apparente.

    III.

    Os Velhacos.

    Aquelles cidados nobres praticavam n'isto com maisdeliberao, como homens, que tinham mais que perder,que os plebeus que seguiam o Mestre...

    CHRONICA DE D. JOO 1.^o

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  • Uma cidade da peninsula, no seculo XIV, no era umaggregado de individuos vivendo, como hoje, debaixo damesma lei--segundo reza a lei, entenda-se. Afra asdistinces de classes e senhorios diversos, havia adistinco de crenas, e a separao era visivel nasgrossas cadeias que tornavam ao cahir das Ave-Mariasincommunicaveis certos bairros. O Porto tinha de tudo:subditos da coroa e subditos da mitra, e no tempo em quesuccedia o que narramos, moradores que nemreconheciam uma, nem outra; havia christos, mouros ejudeus. Sobre um monte alteavam-se as torres da S, e ospaos fortificados do bispo; sobre o outro mais humildelevantava-se a esnoga, ou synagoga, e na encosta, entreum e outro, a pequena aljama appresentava-se, como osymbolo da religio do propheta de Yatreb, querendoapproximar-se do Evangelho e da Biblia, e lanandodepois pela encosta um ou outro casebre, como transiopara alguma morada de heresiarcha que se occultasseentre os foragidos do Oriente. A aljama era a mais pobre:a esnoga era a mais rica; a cruz, mais alta, dominando asduas, era a mais forte.

    Aljama, municipio, cathedral, esnoga, tudo fra cintadopela mesma muralha, como para viver em boafraternidade; mas esta aguara entre os dous filhos deAdo, quanto mais entre tanta gente. O judeu despresavao mouro; o mouro despresava o judeu; o christo

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  • despresava a ambos, e, como fizera a lei, talhra para simais regalias e para os outros mais tributos, reservando,para os que nada tivessem de seu, o direito de selamentarem em particular de algum pescoo de burguezarrufado, gilvaz de cavalleiro, pedrada de garoto e pragade rasca enraivecida, ou velha rabujenta. Era uma sortebem agradavel, feliz, comtudo, aquella, em comparao que lhes prepararam, aos judeus especialmente, unsbeatos mettidos em politica, de que se serviam paraganhar o cu, suppunham elles, e um bando de togas,garnachas e roupetas que se serviam do cu para apanhardinheiro. Aquella animosidade era a regra geral, mas todaa regra tem excepo, e na mouraria era s vezesrecebido com os braos abertos o mesteiral; na judeariahavia mo que se estendia ao burguez em prova deamisade sincera, e um ou outro filho de Israel achavaagasalho no chorado na casa do christo, mesmoquando aquelle no tinha a arca cheia de boas dobras;que em tal caso todas as portas se abriam, desde a dopao rgio ou episcopal e a do solar do nobre, at dacella do reverendo abbade, e a do leigo, e sobre elleschoviam honras e mercs; como eram prova viva D. Judase D. David, duas creaturas, que, fazendo grande arruidona crte, jogaram com os destinos do paiz, como bonsministros de finanas--o nome, o titulo ainda no estavacreado, mas a cousa j existia--no se esquecendo de tirardelle todo o succo possivel. Gonalo Domingues vivia em

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  • boa harmonia com o arabi, ou arrabi menor, harmonia queo devia lisongear, pois era at certo ponto umanotabilidade, como chefe dos judeus da cidade e comohomem de teres, e por isso se resolvera a subir a encosta,pelo lado do Olival, para fallar em certos negocios em quedesejava servir um seu compadre, e tractar da compra deporo de gado. O velho Gonalo, forureiro nos seusprincipios, reunira o cabedal bastante para alargar a reado seu commercio: estendera-o s carnes-verdes eensacadas e a pellames de todo o genero; tornara-se emfim um negociante de considerao, como um seu collegade Coimbra, que salvou a patria, emprestando a suasenhoria, o Mestre de Aviz, alguns punhados de dobras,servio que lhe rendeu a doao de alguns bensnacionaes e a gloria de ser o tronco de uma nobre familia.A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos do seculoXIX, lanando-lhe em rosto o no ser com a espada quelavrassem os seus escudos; mas porque no teempaciencia ou vagar de revolver os archivos da familia,seno deixaria de atirar pedra ao telhado dos visinhos,vendo os seus de vidro: se por tal de vidro os podemconsiderar. Deixemos reflexes, porm, e retrogrademosao bom tempo, que assim se chama sempre ao tempopassado, a apanhar o rico burguez e o sobrinho porta doOlival.

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  • No campo, que, extra-muros, por aquelles lados seestendia, ainda se viam alguns individuos, que, com osolhos postos no rio, pareciam analysar as gals chegadas;mas era visivel que, de todos os portuenses, estes, queassim ainda pasmavam, eram os menos curiosos, os maisindifferentes lucta travada. A boa parte, farrapos, que embom tempo tinham formado uma aljuba, denunciavamcomo decendentes de Tarik; a outros distinguia-os umcirculo de l amarella pregado nos grosseiros tabardos; oresto no se distinguia por cousa alguma da roupa, porquenaquelle cerzido de trapos nada se podia distinguir. Oscuriosos, os verdadeiros curiosos tnham, como vimos,descido baixa da cidade, e mais crescera o numerodepois que se soubera que nada havia que receiar dasgals, e que Ruy Pereira e os outros capitesdesembarcaram e seguiram processionalmente para ospaos municipaes. Gonalo Domingues, intercalando ascombinaes de seu negocio com reflexes sobre adescoberta feita dos amores de seu sobrinho, reflexesque faziam com que a este mostrasse gesto carregado, einteriormente se sorrisse, avivando na memoria os seusverdes annos: medindo de tempos a tempos a altura dosol, que no eram depois de Ave-Marias seguras certasparagens, passeava de um para o outro lado do campo:Fernando acompanhava-o, voltando a todo o instante acabea para Miragaya; procurando aproximar-se de sitiod'onde podsse ao menos vr a casa do mercador;

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  • reprehendendo-se por no ter aproveitado melhor o tempoque passra junto de Irene, dizendo uma fineza daquellasdo livro de cavallerias, que frei Gumeado lhe deixra lr;descorooado por aquelle final, que de certo o rebaixariano conceito da linda moa. O sobrinho andava toembebido, que nem sentia os ps tocar no cho, e ocampo no era jardim areado; o tio canava-se j deaguardar seu compadre, que no encontrra em casa,quando a appario de um personagem veio pr emmovimento os frequentadores do campo: unsdeslisaram-se, o mais sorrateiramente que lhes foipossivel, pela encosta e por entre o arvoredo, outrosperfilaram-se, e levaram as mos aos barretes, os que ostinham, mostrando, comtudo, pelo gesto, que no era aestima, mas o temor que os levava a esta delicadesa.

    O recem-chegado, personagem lhe chamamos, emostrava-o ser de conta entre aquella gente, era umafigura notavel. Um barrete de tela vermelha de formaexquisita rematava, assentado sobre um capirote, umafronte um pouco crescida e saliente, complemento de umrosto ossudo, moreno, em que dous olhos desesperadoscom a proeminencia de um nariz, que se mettia em tudode permeio, tinham acabado por enviar as pupillas, cadauma para o seu lado, a tomar conhecimento com asorelhas; o lbio superior era adornado por um bigodeesfarrapado, de cr duvidosa, ou de todas as cres

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  • possiveis--preto, branco, castanho, louro e ruivo--e deegual mescla eram os pellos que deixava crescer noqueixo. Da cabea no desdiziam o resto do corpo e ovestuario: trajava um gibo bipartido preto e vermelho, euma das longas pernas enfiava-se em uma cala eborzeguim vermelho, a outra em cala e borzeguim preto;do pescoo pendia-lhe uma medalha de metal amarello,com as armas da cidade, da cinta um grande punhal euma enorme bolsa de couro, e na mo sustinha umbasto, terminado por uma cabea de metal cinzelada, aoque parecia, por artista que tomra a delle por modello.Medalha e basto apregoavam que Tello Rabaldo era opae dos velhacos, cargo que no tem hojecorrespondente, por no tolerarem as luzes do seculoabsurdos. Tello superintendia, governava to smentecidados que em noites serenas teem o docel do leitorecamado de estrellas, jejuam sem devoo, deixamcrestar o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelofrio de Janeiro, e chamar-lhes velhacos era alterar asignificao das palavras, se no era malicia de legislador,que assim arrebanhava e baptisava alguns centos decreaturas, para que se persuadissem as de boa f que naterra no havia mais, como os hospitaes de doudoslisongeam muita gente que no forada a no ter lmoradia. Os velhacos, os verdadeiros, ento, como hoje,no se deixavam governar, sempre governavam tambem,e havia-os anafados, vestindo custosas telas e abrigados

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  • em paos soberbos.

    --Eh! boa gente! exclamou Tello, dirigindo-se aosindividuos que tractavam de lhe evitar a presena; entoassim querem fugir a seu pae! Vamos, venham receber abeno, como bons filhos, e com a beno uma boa nova.Ol, Pedro Choca! accrescentou, depois de honrar comum sorriso a facecia que servira de exordio, dirigindo-se aum dos que se desbarretava; que nenhum dos teus faltedepois de manh na Ribeira. Onde est o Joo Bispo?

    --Joo Bispo, redarguiu o interrogado, ha dias quedesappareceu.

    --O velhaco voltaria para o convento farto de estar deitadode barriga ao sol, ou se metteu outra vez com a filha dovelho Humeia, e est a fazer penitencia por ter peccadocom moura?

    --Ou se foi lanar com os scismaticos...

    --Para que? Toma conta em ti! Chegou-me aos ouvidosque te travaste com elle de razes por umas nonadas, ese me dste cabo do rapaz, em boa te metteste! Se nome trouxeres em breve novas delle, a tua pelle m'as dar.A pol do aljube est nova, e poder bem comtigo.

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  • Choca resmungou por entre dentes algumas palavras, e opae dos velhacos proseguiu:

    --Avisa aos compadres para que ou vo comtigo e mais asua gente, ou a levem para as tercenas. Que no falteninguem! Quero duzentos homens, bons pulsos...

    --Duzentos homens, bem sabe sua merc que nopodemos reunir. A melhoria da gente levou-a o senhorconde Gonalo; o senhor alcaide tem boa poro, e secreanas, mulheres e aleijados no servem...

    --E esses perros de cabea amarrada! exclamou Tello,designando um mouro que a curiosidade trouxera parajunto de Pedro Choca, capataz de uma turma de vdios.Quanto aos aleijados, sei de uma msinha que os pesos como um pero, ajuntou, mostrando o seu basto; omanco da porta da S que o diga. Vamos: sua senhoria(uma barretada) appellidou os bons homens da sua boacidade (outra barretada) para que o ajudassem a dar cabodos perros de Castella, e os alvazires do-vos honramettendo-vos na conta dos bons homens... fazendo-vostrabalhar. Que ninguem falte, e viva sua senhoria!

    --Viva sua senhoria! repetiram os vdios e com ellesGonalo Domingues, que se approximra da roda formadaao pae dos velhacos, roda desfeita a um signal por este

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  • dado com a vara, deixando a importante, incansavel eincorruptivel auctoridade, como lhe chamariam hoje, quetodos os encargos teem um ou mais adjectivos annexos,face a face com o burguez, que abria a bocca para indagarquaes os servios que o filho de Thereza Lourenoreclamava dos portuenses.

    A interrogao no foi formulada. Tello Rabaldo, cheio dasua importancia, fez uma leve saudao, carregou obarrete sobre um dos olhos em rebeldia, e girou sobre oscalcanhares ao mesmo tempo que um outro individuoassentava nos hombros do forureiro uma grandepalmada. Gonalo Domingues voltou-se a vr quemsegundava a amabilidade do marinheiro, e se noreconheceu logo o seu compadre, foi porque um abrao demetter costellas dentro o suffocou. O bom homem vinhalisongeado com a carta de que Ruy Pereira fra portador,lisongeado em extremo no seu patriotismo de localidade, eexpandia o seu contentamento daquella sorte e emexclamaes, que fizeram suspeitar ao tio de Fernando,que no estava em bom arranjo aquella cabea. D. Joochamava aos portuenses o seu bom povo, mimosera-oalm disso com outros epythetos taes como--leal,esforado, etc., e o portador, resolvido, apesar do seuenfado, a ser amavel e popular, pintra a amisade ereconhecimento do Mestre, pela espontaneidade da suaacclamao na cidade da Virgem, com taes cres, descera

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  • da sua dignidade prodigalisando sorrisos ao corpomunicipal, batendo no hombro de Luiz Giraldes de ummodo, que o nosso homem esteve por um triz a deixarcahir uma lagrima de commoo. Era uma alma candida eenthusiastica, apesar do involucro grosseiro, o compadredo senhor Gonalo Domingos; to candida que acreditavano desinteresse do Mestre de Aviz, suppondo quedefendia a coroa para a entregar ao filho de Ignez deCastro; to enthusiastica e patriotica que, quando, forade lhe perguntar o marchante se encontrra o arrabi,seccas as goellas e j sem alento para descrever areunio nos paos municipaes e mais epysodios daembaixada, se recordou do seu negocio, era tarde. O solia quasi a mergulhar no oceano, e era provavel no sque, na judearia estivessem fechadas as ruas, mas atque se l fossem, encontrassem as portas da cidadecerradas no regresso. Os dous burguezes separaram-se,pois: o patriota, compadre de Gonalo Domingues, seguiupelos campos em direco ao povoado de Cedofeita;est'outro, despertando o sobrinho de pensamentos em queno entravam nem compras, nem vendas, nem os direitosque os filhos de Henrique 2.^o de Castella e D. Pedro 1.^ode Portugal, podiam ter terra que pisava, tomou com elleo caminho de casa.

    As nuvens, que o norte espalhra no ar, como flocos dealgodo, ornadas pelas tintas que formam a gradao

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  • entre o rubro e o amarello vivo, davam ao cu aapparencia de um marmore, um todo que em pintura seriainverosimil; os edificios de Villa Nova e de Gaya cortavamcom o perfil o horisonte, vestindo pouco a pouco uma cruniforme, o cinzento-escuro. De um destes edificios, o quemais se avantajava, do castello de Gaya, as janellasesguias voltadas para o poente pareciam dar sahida aosfogos de um incendio. De que no era, porm, estechamejar mais que um reflexo do sol no occaso, sepoderia desenganar quem, mesmo nunca tendopresenceado este phenomeno, se nos anticipasse naresidencia do tenente do conde D. Gonalo, onde umahora depois lhe provariamos que a reflexo, aoappresentar Tello Rabaldo, no fra de leve feita: velhacosno eram s os que no tinham nem leira nem beira.

    Em uma das salas que no castello serviam de apposentoao alcaide, revestida de apainelados de carvalho, em quea luz do dia, coada pelos miudos vidros de cr, formandolosangos, embaava, e embaava egualmente a quedavam as tochas sustentadas por braos de ferro,passeava de um para outro lado um homem de algumaedade j, magro e de estatura mediana. No peito de umaespecie de camisola de panno de curtas fraldas, cujasmangas, farpadas nas orlas, pendiam at ao joelho,viam-se bordadas a verde com nervuras de ouro tresfolhas de figueira; o mesmo distinctivo se reproduzia em

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  • uma bolsa de couro, que, do lado contrrio ao estoque,acompanhava um punhal, nos fartos reposteiros das duasportas, que para a sala davam serventia, e na manga dajornea de um pagem, creana de dez annos, quecabeceava com somno a um canto. O barrete adornava-secom duas pennas de aguia, presas em fecho de ouro, e osborzeguins apresentavam uns longos bicos, moda que umepysodio da guerra travada deixou assignalada na historia.Encostados, no vo de uma janella, conversavam, em vozbaixa, uma dama e um individuo que se tornava notavelpor usar crescido o cabello, raro e de cr avermelhada, epor uma longa espada, de que affagava o punho. Do ladoopposto havia seis individuos, um dos quaes vestia hbitomonastico, e outro se acobertava com uma velhaarmadura de malha.

    O homem que passeava era Ayres Gonalves deFigueiredo; a dama era a esposa deste, D. Catharina; oindividuo, que lhe fazia companhia, o irlandez GuilhermeDown-Patrick; os restantes eram quatro cavalleiros,homens de solar de Entre-Douro-e-Minho, o capito debesteiros, Pero Bedoido, e frei Garcia.

    As passadas do alcaide soavam mais alto do que aspoucas palavras que toda aquella gente trocava entre si, evisivelmente preoccupava-o negocio, que no era para osoutros estranho, a no enganar o modo porque de tempos

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  • a tempos se fitavam e a meditao que se seguia. Duaspessoas se subtrahiam influencia geral, a castell e oirlandez: se se calavam era, ella para amimar uma galgabranca, que se enroscava sobre um escabello, elle paracom a vista percorrer a laaria e pendures do tecto.

    Segredos e silencio, aquelles olhares e gestos tinham umtodo mysterioso, que houve por bem quebrar AyresGonalves.

    --Que me dizeis, senhores? exclamou, estacando no meiodo passeio, como a procurar alvitre que viesse pr termo sua irresoluo, parecer que se conformasse com o quetinha na mente.

    Ninguem respondeu, porm, e o castello, lanando volta de si um olhar de quem queria lr nas physionomiasdos hospedes as suas intenes, proseguiu:

    --Sua senhoria quer em volta de si todas as lanas doreino, e no se lembra, ou no se quer lembrar de que ficadesguarnecida uma terra to importante como esta, ecercada por tantos senhores que levantaram voz pelarainha D. Beatriz. Deixa a cidade aos pees, aos pees,que tracta como a gente de prol?!

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  • --Em boa confuso vae pondo as cousas! Um dia,veremos, seno lhes pozer cobro s ousadias, vir arrayatomar-nos os solares; atalhou, abanando a cabea com arsentencioso, um velho fidalgo de Riba-Tua. Bem altaneirosandam j burguezes e mesteiraes!

    --Deixae, accudiu Affonso Darga, as encamizadas dospees, que tero seu cabo. O Mestre precisa de sustentara guerra, e lisongea por isso quanto mercador tem a arcabem provida de boas dobras, tornezes, gentis, florins epilartes. Aos do Porto pede elle agora uma armada,mantimentos e dinheiro.

    --Armada que nos levar a vr o rosto s hostes deCastella; tornou Ayres Gonalves.

    --Se se fizer.

    --O povo do Messias de Lisboa a arranjar. No viramcomo os alvazires propozeram logo uma derrama, ejuraram a Rui Pereira que teriam antes de um mez a nadoalgumas naus e outras se armariam dos melhores naviosdo commercio com Flandres?! Esto inchados com ovalimento que lhes do.

    --Por ahi se conhecem os viles...

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  • -- que do elles ao Mestre? Grande cousa! Em campo sever de que servem, e no campo que a contenda tem dese decidir. Iro com bstas, virotes e azevans fazer frentes lanas de Castella? Lingua teem elles; mas brio quenem toda a algaravia desses mestres em leis e clerigos,que o regedor tomou para seus conselhos, essesfalladores de Pisa e Bolonha, poder metter nessa gente.

    --Mas nella se estriba D. Joo, disse, meneando a cabea,um dos cavalleiros.

    --Para elles appella com boas palavras; a ns manda-nos,no recado, mas ordem! exclamou o alcaide. dessasgarnachas sahidas do nada que vem a desconsideraoem que nos tem.

    --Tempos do rei D. Fernando! suspirou Down-Patrick,recordando-se talvez de quando as hostes do duque deLencastre faziam, entre os alliados portuguezes e osinimigos de Castella, de tudo roupa de francez.

    --Era um bom rei o que Deus tem! ajuntou frei Garcia,fazendo uma momice de piedade.

    --Rei, e creado como rei, bem sabia elle onde estava afora e grandesa do reino e sua.

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  • --E melhor agasalho no nos fazem sempre no campo domarido da rainha D. Beatriz. Aos de sua casa aconselhouD. Leonor que fossem para o Mestre, que ao menos noera soffrego.

    --Com isso perdeu D. Joo: perdeu-o a altivez.

    --E ao Mestre no approveitaro as mercs rastejadas.

    --Elle no precisa de ns, tornou o velho, o maisdesappontado dos hospedes do alcaide, ao que perecia;faz cavalleiros a seu capricho do primeiro peo que se lheantolha.

    --Bons cavalleiros! observou, rindo, o mais moo dareunio. Por l andam montados em mulas fazendo rircom os seus ares de importancia. No ser preciso, paraos derribar, erguer clava ou montante: andam to mal ageito com arnez e grevas, to abafados pelos elmos, osque os teem, que ao primeiro arranco das azes vo aocho.

    --Em se tractando de lanadas comnosco que sehavero, bem o vdes, disse Ayres de S.

    --E ireis, senhor alcaide? interrogou Affonso Darga.

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  • --Eu, senhores, respondeu Ayres depois de algumahesitao, levantei voz pelo Mestre, mas recebi o castellodo conde D. Gonalo: obedecerei a sua senhoria em tudo,mas s abandonarei o castello...

    A phrase do alcaide no terminou. D. Catharina,approximando-se de seu marido, e impondo-lhe com umrelance d'olhos a conveniencia de no proseguir, atalhou:

    --Largos dias tendes para tomar conselho, cavalleiros;alegrae o sarau com outros contos. Cousas de tantaimportancia no se devem tractar de salto: o tempo que seleva a pensar em casos taes no perdido. Tomaiexemplo de D. Gonalo Telles, ajuntou mais baixo,dirigindo-se ao esposo.

    D. Catharina de Figueiredo era, at certo ponto, uma donaprudente, como chama um historiador, por egual conselhofabiano, a Beatriz Gonalves de Moura, aia depois daexcellente rainha D. Philippa. O exemplo do conde era umgrande exemplo, pois era de homem que sabia, ou pareciater de memoria o Sic vos non vobis de Virgilio, e dar-lhe ovalor devido nas cousas do mundo. D. Gonalo fechara-seem Coimbra, jogra com sua irm um jogo pouco leal eparecia aguardar que a sorte decidisse qual dospretendentes cora tinha razo e direito, ou fora e geitopara a segurar na cabea. O alcaide approveitou o

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  • conselho e abandonou o thema em que o lanra o mauhumor causado pela mensagem de Ruy Pereira.

    Palestra sobre outro assumpto era naquella occasiodifficil de sustentar. Os cavalheiros pouco a poucodeixaram a sala, e quando s restavam o aventureiro,Henrique Fafes, o mais moo dos da reunio, e frei Garcia,indicou este ultimo com o olhar o pagem quasiadormecido, tirando ao mesmo tempo da manga uma tirade pergaminho dobrada. Ayres de Figueiredo, sacudindocom violencia a creana de quem o reverendo pareciarecear a indiscripo, a poz, extremunhada, fra da porta,ordenando-lhe que se recolhesse, e em seguida percorreucom os olhos o escripto, que lhe appresentaram.

    --O alcaide de Monsaraz veio? disse elle terminando aleitura e dirigindo-se ao frade.

    --Senhor, sim, veio.

    --E no desconfiaram de nada?

    --Penso que de nada. As gals castelhanas noappareceram.

    --E de boa fonte houvestes esta proposta?

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  • --Do irmo do arrabi-mr, esse judeu a quem sua realsenhoria acaba de fazer merc.

    --Misser Guilherme, senhor Henrique, disse o alcaidedepois de fitar os dous por um momento, se pouco caso sefaz de ns em Lisboa, no campo dos que a sitiamteem-nos em apreo. D. Joo no to soffrego como opintavam, e a prova este pergaminho.

    Down-Patrick fez uma visagem e soltou um oh guttural,que expressava a pouca admirao que lhe causava oapreo em que o poderiam ter, como certo dos seusmuitos merecimentos.

    --Gonalo Rodrigues vos fallar depois d'manh em S.Domingos, disse frei Garcia, attrahindo o alcaide parajunto de uma das portas, a opposta quella por ondesahira o pagem. E depois, accrescentando algumaspalavras em voz baixa, sahiu pelo outro lado.

    Ayres de S, chamando Henrique Fafes e o irlandez,seguiu-o.

    Quando a sala ficou deserta, o reposteiro, junto do qualfrei Garcia fallra com o alcaide de Gaya, oscillou eappareceu entre elle e a hombreira da porta um rosto,onde a curiosidade e a malicia se pintavam.

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  • --A mulher tem razo, disse, referindo-se s palavras deD. Catharina, o curioso, depois de ter o ouvido escutapor alguns segundos; o tempo que se gasta em certascousas no se perde, e eu no perdi o meu. Ah! Garifa,minha pobre Garifa! exclamou em seguida, mudando deexpresso e ajuntando exclamao um suspiro, de ti que no apanho novas.

    IV.

    Dous namorados.

    ... Donde amor se atraviesa No hay padres reverenciados.

    (ROMANCES DE GAZUL.)

    Fernando, chegando a casa, o melhor predio da rua dosPellames, ao toque de Angelus, viu seu tio devorar comtodo o appetite uma grande posta de carneiro e umtassalho de toucinho, capaz do pr em debandada umexercito mahometano, regado tudo com o summo da uva.Gonalo Domingues, se dava descano aos dentes, no odava lingua, pois incetou, ao benedicite, um sermo,que, ao gratias, ainda no estava concluido. O velho fallouna creao do seu tempo, na obediencia da gente moa mais idosa em geral, e em especial quella de quem serecebe o po do corpo e o po do espirito; discorreu sobre

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  • as passadas travessuras do sobrinho, e foi cahir na ultima,terminando pela ameaa de um sevro castigo, em casode reincidencia. Fernando, ao inverso do tio, no tocavasequer em uma mealha do po alvo, que a criada com umprato de figos passos servira por mimo, e, com os olhosfixos na toalha, no soltava uma palavra de desculpa. Obom velho, notando aquelle extraordinario fastio e sizudez,tomou tudo por effeito da sua eloquencia, converso ecompuno do rapaz, e por um triz esteve, no final, aaddicionar ao sermo um palliativo, tirando o exemplo decasa, pois que o podia fazer; mas a necessidade dadisciplina, de conservar sempre perante o sobrinho umtodo de soberania, um sobrecenho, que julgavaindispensavel, embora no quadrasse com a affeio quelhe tinha, o detiveram. Fernando era, segundo elle, umestouvado, um leviano como seu pae, do que dra jprovas exuberantes, abandonando, depois dos estudos, oconvento de S. Francisco, ento extra-muros, para ondeum outro parente o chamra, a fim de o metter na estradado cu e do mundo pela clausura. O que nisto amofinavamais o forureiro era a boa disposio que mostrava omancebo para as letras, a intelligencia desenvolvida, quenos primeiros tempos fizera dizer a frei Gumeado, grandesabedor para aquellas epochas, que bem podia vir aaspirar a grandes dignidades da egreja e do seculo, a sergeral, bispo, ou chanceller. Todo o rigor, pois, queempregasse era pouco, e despediu-se do mancebo com

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  • toda a solemnidade, para dizer cuvilheira que, como porseu voto e lembrana, lhe levasse ao quarto alguma cousade comer.

    Se Gonalo Domingues soubera qual a atteno que lhedava o sobrinho, de certo no fizera semelhanterecommendao. bem certo que os annos trazem, svezes, experiencia e algum saber; mas no menos certoque proporo que vo passando se esquece muitacousa egualmente: aos sessenta perde-se a memoriados vinte, seno das aces praticadas, dos pensamentoshavidos; um mancebo pde muito bem avaliar o que noapreciar, no conseguir distinguir um homem a quem oinverno da vida tenha gelado o corao. A prdica entravatanto na absorpo de Fernando, como entrava amensagem do Defensor: as palavras do tio eccoavam-lheaos ouvidos como sons vagos, que se no reproduziam nomachinismo regulador chamado intelligencia e outrosnomes, segundo a face por onde visto, porque sonsdiversos o impressionavam. As fallas de Irene, asinflexes, os mais leves gestos preoccupavam-no: de unse outros tirava esperanas agora, logo motivos deamofinao; traduzia agora uma phrase, das poucasobtidas de Irene, por um modo que o corao trasbordavade alegria, e logo parecia-lhe que o timbre de voz, umnada sonhado lhe dava bem diverso valor; assignalavaaquelle dia como o mais feliz da vida, e recordando-se do

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  • desfecho do colloquio, em seguida; entristecia-se eamaldioava o tio, que o fizera descer do galho da arvoree dos braos da felicidade. O puxo de orelhas, sobretudo,doia-lhe, quando o recordava, mais do que lhe doera emMiragaya, julgando-se aos olhos da sua namoradadeshonrado... mais que deshonrado, ridiculo. Estecombate entre o desejo e o receio, durou, trazendo ainsomnia, at altas horas da noite; mas, a final, venceu odesejo, e a alegria espelhou-se-lhe no rosto. Fernando,nas azas da imaginao; voava do passado ao futuro, edeste quelle, amontoando as pedras do seu castello defelicidade. Deitando-se e apagando a luz sorria a todos ossonhos creados; sentia como nova vida a inflar-se nopeito, e parecia querer affogar-se em ar, tanto era o querespirava de momentos a momentos. Junto com a imagemda linda filha de Joo Ramalho toda a natureza era risonhanaquella miragem: as arvores reproduziam-se maisverdes, mais cheias de perfumes e mais bellas as flores;as aves nos cantos diziam todas--alegria; o cutransparente deixava adivinhar alm do manto azul umasegunda vida toda amor. O mancebo vira, bem o podemacreditar, bastantes vezes o cu, as arvores e as flores,mas nunca se lhe tinham affigurado assim: como estatuade Pygmalio, faltava-lhe o fogo no peito. A lavaredaatera-se naquelle dia, posto que incubasse havia muito.

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  • Fernando Vasques amava Irene desde que a vira, e vira-anessa edade em que se sente um vacuo no corao; a simesmo confessra j esse amor; mas definido, claro, sento rebentra: o vcuo enchera-se, e a trasbordar, epara o encher talvez o amaldioado puxo de orelhas, aprimeira grande contrariedade, entrasse por muito:talvez dizemos, e podiamos dizer certamente. O amorvive de contrariedades, de luctas, diz um phisiologista; ecomo um malicioso accrescentou que por isso s elle nasmulheres se creava, saibam, acreditem as leitoras quetodo o homem tem no corao o seu tanto ou quanto demulher, na mocidade sobretudo, e por isso no perde. Asmulheres lucram menos com o que recebem do homemem geral: no as compensamos. Como diziamos, porm,deixando reflexes, a correco de Gonalo Domingues, eainda, se quizerem, as poucas palavras trocadas entre osdous namorados, tinham ateado a lavareda no peito domancebo, e um dos effeitos della fra, de fazer acordarhomem quasi quem se deitra creana.

    Fernando, no dia seguinte, no era o mesmo rapaz; o tionotou aquella differena e attribuio-a ao jejum da vespera,com a mesma prespicacia com que attribuira a causa delle sua predica; e para contentar o rapaz, levou-o demanh, depois de tractar dos seus negocios e da politicado dia, a visitar frei Gumeado, que o costumava regalar,apesar da sua desero, com gulodices, em que no tocou

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  • dessa vez, e de tarde, a passeio at aos Carvalhos domonte, que assim se chamava o local onde o cabeudoparodiador do marquez de Pombal no Porto, o corregedorAlmada, edificou um theatro. O effeito destas amabilidades facil de adivinhar. O namorado de Irene, que, voltandocom a luz da madrugada lucta de esperanas e receios,anceava por occasio de ir buscar um desengano nosolhos da donzella, preso assim todo o dia, revoltou-seinteriormente contra a tutella do tio e desappontou-o comdesabrimentos. O velho pasmou, benzeu-se, e dacompaixo, do arrependimento da aspereza da vesperacahiu com um mau humor verdadeiro, tomando aquelleprocedimento por ingratido, protestou que a severidade,que at ahi lhe ficava nos lbios, ia ser posta em aco, ecomo assim se revoltra pelo leve castigo de umatravessura, elle trataria em primeiro logar de as impedir,no lhe deixando uma hora para folias, nem arredar p daloja de pellames; em segundo, se se furtasse suavigilancia, de passar alm do puxo de orelhas, dandocausa verdadeira a amuos.

    No outro dia, um domingo, no se esqueceu do seuprotesto o velho forureiro, e o desespero do sobrinhoaugmentou, tanto quanto augmentava o receio de perder oamor da linda moa; que, se at ao dia em que conseguiratrocar algumas palavras com Irene, muitos se passaramem que no descera a Miragaya, sem que tanto se

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  • amofinasse, aquella meia declarao e o desfecho mudraas circumstancias: daquellas em que se encontrava bempodem fazer ideia as leitoras e os leitores, aos quaes amemoria ainda conserva vivas as paginas da mocidade.

    Depois de jantar, porm--refeio que se tomava nessasepochas, mesmo entre aristocratas, desde as onze aomeio dia, exactamente hora em que hoje almoa muitagente--quando Gonalo Domingues executava, dormindo asesta, uma musica que se assemelhava a tempestade emchamin na combinao de assobios e notas decontrabasso, appareceu Luiz Geraldes, o mais respeitavelindividuo da burguezia, a procural-o para irem a S.Domingos, onde se devia tractar do meio de corresponder confiana que o mestre de Aviz depositra nos bonscidados da terra, assumpto em que o alvitre do forureiroera valioso, por se poder traduzir na linguagem sonora dasboas dobras de el-rei D. Pedro; appareceu Luiz Geraldes ecom elle a occasio que desde madrugada esperava eprovocra sombra de todos os pretextos. MestreGonalo, pois, a sahir, e Fernando a procurar na arca oseu melhor gibo e o barrete, a alindar-se, e a bater com aporta da rua na cara da velha creada, que lhe recordavaas ordens dadas pelo tio, avivadas segundos antes, e atrovoada que sobre elle e sobre ella descarregaria se ou oencontrasse na rua, ou o no achasse em casa,regressando.

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  • O namorado moo deitou a correr; mas, como em certoapologo, a pressa foi causa de vagares. Tal era o estadodaquella cabea que tomou o caminho seguido por seu tioe o grande amigo do Mestre, e ao cabo da rua daBainharia esbarrava com elles se um encontro de umhomem d'armas o no obrigasse a uma pausa, e na pausaa um espadeiro, que se sentava em um desses balces oumostradores que fechavam uma das portas das estreitas eescuras lojas, conservando nas ruas mais estreitas e nomenos escuras os freguezes, no ouvisse dizer para umvisinho que deitava a cabea por uma adufa:

    --L vae em cata de mestre Gonalo, que dobrou agoramesmo para o terreiro, o sobrinho... o filho de Vasco, queDeus haja.

    Fernando, quiz retroceder; porm, como o bom doespadeiro lhe gritasse que perto ia Gonalo Domingues,se o procurava, no teve remedio seno responder que iaa recado para as Aldas, e enfiar pelo arco de Sant'Anna,tomar caminho pelo lado da judearia e descer aos Banhos,onde lhe tolheu o passo o personagem que no capituloantecedente vimos no castello de Gaya, surdir por entre oreposteiro.

    --Vindes de S. Domingos? interrogou elle, pondo-se diantedo mancebo.

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  • --Oh! s tu Joo Bispo! exclamou Fernando, depois deexaminar o rosto do individuo, assombrado por um fartocapuz. Ha muitos dias que te no vejo.

    -- verdade, redarguiu o recem-chegado, dando pelonome, que ouvimos j da bocca do pae dos velhacos. verdade, repetiu; e palavra ajuntou um profundo suspiro.

    --Que tens, tu? Ests to triste como quando nos tinhamno convento.

    --D'onde nunca devra ter sahido! tornou Joo, soltandooutro suspiro.

    --Bem mudado ests, meu folio, ou isso momice nova?

    --Antes fra, Fernando! antes fra! mas finaram-se asalegrias.

    --Mas, ao que parece, a vida no te vae peor. Gibo novode barregana... boa adaga! disse o mancebo, medindo-ode alto a baixo.

    --Vesti isto; mas embrulhade em almafega respiravamelhor: o saio e as calas riam-se por todas as costuras,mas eu tambem ria, e agora bem vedes....

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  • --Vejo que ests sizudo como eremito, ou mestre em leis, verdade... Mas onde assim te pozeram? d'onde vens?

    --Do castello.

    --Do castello? Tomaste l moradia e servio?

    --Ou cousa parecida... que no se pode assim dizer depraa...

    --Segredo! Ora vejam Joo Bispo feito escrivo dapuridade do alcaide! exclamou o mancebo, sorrindo edando alguns passos para seguir seu caminho.

    Joo segurou-o por um dos braos, e encolhendo oshombros respondeu zombaria:

    --Mofai, que a vez a todos chega. Algum dia haveis dequerer bem a alguem....

    --E por isso te amofinas, quando no tens quem teempea de a vr a todo o momento! redarguiu Fernando,que se no recordou naquelle instante de outrocontratempo em amores, seno do que com elle se dava.

    --Vl-a!... vl-a! exclamou, tornando a suspirar o vadio. Oh!minha pobre Garifa!

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  • --Garifa, repetiu Fernando; Garifa... ora espera... Garifano era aquella rapariga moura que vinha ao terreirovender fructa?

    Joo Bispo fez com a cabea um aceno affirmativo.

    --Uma rapariga sempre alegre, que na procisso deCorpus tangia pandeiro e danava com tanta desenvoltura,trazendo o vestido cheio de cascaveis?

    --Sim.

    --Que to bem cantava umas cantigas castelhanas?

    --Sim.

    --Pois bonita era... pena que fosse moura! E tu, Joo...

    --Eu quero-lhe, quero-lhe como se em noite de S. Joo mefizessem feitio...

    --E feitio foi de certo; porque uma moura...

    --No sei se grande peccado o querer-lhe bem; mas cpara mim tenho que no. Ella moura, ; mas...

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  • -- por isso que to magoado te vejo? Querial-a christ, ecasavas.

    --No , no; porque m'a roubaram!

    --Roubaram-ta?

    --Roubaram. Ha uma semana, no sabbado, estava eu naencosta do Olival, ao p do regato, espera della, e eisque vejo o pae, o velho Humeia, vir direito a mim. O pobrehomem chorava como uma creana; as lagrimas eramcomo punhos pela cara abaixo e os soluos pareciamaffogl-o; cortava o corao! disse Joo Bispo, limpandocom a manga do gibo os olhos, sensibilisado ou pelarecordao da scena, que narrava, ou pela desappariode Garifa. O velho proseguiu, quando pde comear afallar, a pedir-me a filha, dizendo que lh'a entregasse; quebem tinha visto andar-lhe no seguimento, e na vespera aencontrra ainda alli mesmo a fallar commigo. Olha,Fernando, fiquei como quando me vieram dizer que meupae--Deus o tenha--era finado, e jurei quelle pobrehomem que no fra eu que lhe tirra a filha... e commigopela hostia consagrada jurei tambem descobrir-lhe arapariga. O velho acreditou-me, e disse-me cousas, queno poderei repetir; que no sei bem o que foram; masque pelo modo de as dizer me deram um n na garganta:parecia que tinha engolido uma ma inteira. Procurei

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 67

  • Garifa. Dous homens foram vistos a passar o rio nessanoite com uma mulher, me disse um petintal, e corri tudoem Gaya; alistei-me no troo de Pero Bedoido, para teroccasio de esquadrinhar todos os cantos do castello; masvl-a... vl-a... ainda a no vi! Desconfio, porm, que lesteja, e se l estiver, ai do rausador! Olhai, ellesderam-me esta adaga, e eu trago-a bem afiada, osouvidos attentos e os olhos abertos!

    Joo Bispo, ao soltar estas ultimas palavras, baixou a voze um veo sinistro lhe assombrou a fronte; por algunsinstantes permaneceu calado, e proseguiu depois, vendoque o sobrinho de Gonalo Domingues parecia atterradocom semelhante confidencia:

    --A alegria no pde durar sempre. Desde que, morto meupae, que por fora me queria vr tonsurado, fiz umareverencia ao guardio, dei um cascudo no porteiro e mefiz velhaco, visto que no convento no apprendi officio e desujeio estava farto, bem vestido, mal vestido, mais trapo,menos trapo, barriga mais cheia ou menos, tinha quasitodo o santo dia os dentes amostra; agora veio umrevez...

    --No s s tu, Joo, que os tens; eu...

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 68

  • --Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que eu dou umaensinadella, e...

    -- negocio em que nada podes. No sabes, Joo, disse omancebo, pondo a mo no hombro do seu antigocompanheiro, e chegando-lhe a bocca perto do ouvido,como em segredo; no sabes... eu tambem quero a umarapariga como s meninas dos meus olhos. Oh! maisbonita que a tua!

    --, disse Joo Bispo, com um meio sorriso.

    --Muito mais; porm, meu tio, tenho eu para mim...

    --No quer?

    --Parece-me que no.

    -- pobre?

    --Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo oshombros.

    --Mestre Gonalo Domingues rico, e...

    O namorado de Irene, ouvindo o nome do tio, lanou emtorno de si os olhos, como se receiasse que alli

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 69

  • apparecesse; lembrou-se que passava o tempo e ellepodia, de volta a casa, no o encontrar, se fosse grande ademora; recordou a causa do seu passeio, e fazendo umgesto de despedida, deu alguns passos em direco porta da cidade.

    --Se fr necessario o antigo companheiro das folias, no opoupeis. Os meus trapos nunca vos fizeram voltar o rosto,quando nos encontramos, e hei de mostrar que no tendesfeito mal, Fernando, disse o ex-novio, estendendo aomancebo um pulso que no era fraco. Ah! exclamou emseguida; no vindes do lado de S. Domingos?

    --No.

    --Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaya?

    --No.

    --E que tens a vr com o senhor alcaide, meu velhaco?disse uma voz, que logo Joo Bispo reconheceu por serde Tello Rabaldo.

    --Ah! sois vs! murmurou o interpellado, visivelmentecontrariado por aquella appario, em quanto Fernandodeitava a correr pela rua abaixo.

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 70

  • --Vosso servo, tornou o pae dos velhacos, tirando com arzombeteiro o seu barrete e segurando pelo capuz a JooBispo. O fidalgo de certo que s com fidalgos tem tracto epor elles procura; porm como est em behetria, para nohaver desaguisado, pondo-o fra, dou-lhe companhia maisch; mas que lhe far bom agasalho. Vamos! exclamoumudando de tom; para as tercenas j!

    --Senhor Tello, porm...

    --Vais seccar a goella sem proveito.

    --Senhor Tello, quizera fallar a Ruy Pereira.

    --Agora com Ruy Pereira! Grandes so os negocios!Bravo! continuou o pae dos velhacos, medindo Joo Bispode cima abaixo, como minutos antes fizera o sobrinho deGonalo Domingues, e como elle admirando a mudanaque na roupa havia; bravo! Parece que vamos ter contasgraves a ajustar! Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta amercador ou algibebe para vires assim garrido?

    --Sou bsteiro do rei.

    --Bsteiro do rei desde quando, velhaco? desde quefugiste com a filha do velho Humeia?

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 71

  • --Est excommungado! crdo! gritou uma velha dopequeno ajuntamento que se fizera volta dos dousinterlocutores. Ter contractos com aquella condemnadamoura, aquella...!

    A mulher disse nome que lhe valeu de Joo Bispo ummurro, que levava a fora proporcional raiva que lhecausra a abelhuda comadre, insultando Garifa.

    --Olhem o maldito! gritaram duas companheiras daaggredida. Onde est a justia? Que faz o senhor bispoque o no manda aoutar bem aoutado? E attreve-se emrosto do senhor Tello...

    --Calem a bocca, serpentes! berrou o pae dos velhacos,fazendo um gesto e meneando o seu basto.

    --Serpentes? grunhiu a velha, segurando com a mo osdentes que o socco pozera em vesperas de despedida.

    --Serpentes? pipitou uma das novas, esganiando-se.

    --Serpentes? resmungou a outra, ferrando os pulsos nasancas.

    --Serpentes! gritaram, grunhiram e pipitaram entregargalhadas e em todos os tons os garotos que j

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 72

  • embaraavam o transito.

    Tello Rabaldo viu a sua dignidade compromettida, o queno poucas vezes acontecia, e tractou de a salvar pelosmeios usados ainda hoje em embaraos--pela fora; ecomo mo no tivesse se no a sua, foi dessa que seserviu. Segurando sempre o namorado da moura pelaextremidade do capirote, fez rodizo com o seu basto;tomando-o pela parte superior, e uma escala salteada deais e uis sahiu dentre a roda de curiosos e curiosas,que augmentava.

    --O senhor alcaide! Ahi vem Ayres Gonalves! gritaramduas vozes quasi ao mesmo tempo.

    --Tolhido sejas tu, maldito! resmungou Joo Bispo,lanado em apuros com semelhante appario.

    --Senhor Pero! senhor Pero Bedoido! berrou o pae dosvelhacos, para o capito de bsteiros, que, seguindo oalcaide de Gaya, se dispunha a embarcar para o castello,e desepparecia por um dos postigos.

    --J nada fao, disse comsigo o ex-novio deitando o olhoa vr se o capito accudia ao chamamento. A pellecorre-me agora grande risco, se desconfiam de mim. Coma bocca no pixel no os apanho j!

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 73

  • --Ol, senhor Pero! sua merc no me diz se este velhacotomou servio? proseguiu Tello, querendo arrastarcomsigo Joo Bispo, mais talvez para sombra do capitodos bsteiros se fazer acatar, do que pela curiosidade desaber se o namorado de Garifa lhe mentira, ao que estavabastante affeito, para regular a sua justia pelo humor emque o apanhavam e no por depoimentos e confisses.Em materia de confisses dava f s feitas em potro, oude borzeguins, quando estava de boa feio, e felizmenteno era isto raro.

    --Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra ao seuprisioneiro; ainda ha pouco no tinhas que dizer a todos osfidalgos? Mais depressa se pilha um mentiroso do que umcxo.

    Pero Bedoido, ouvindo a voz do pae dos velhacos, parrajunto do postigo, que dava sobre a margem do rio, eretorcendo o bigode piscava os olhos para concentrar osraios visuaes afim de melhor reconhecer quem o chamava.Ayres de Figueiredo parra igualmente.

    Quem no deve no teme. Joo Bispo sentia os seusarripios pelos lombos, porque um pensamento, que o leitorexperto, e que de certo se recorda do dialogo apanhadoatraz do reposteiro, adivinhar, o punha, na consciencia,em hostilidade com o nobre alcaide, e se na presena

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 74

  • delle Tello Rabaldo de novo se referisse entrevista quepretendia ter com o tio de Nuno Alvares, a vida corria-lhegrave risco. Joo no tinha, porm, cursado em vo osestudos em S. Francisco e a eschola pratica develhacarias dos terreiros, praas e bitesgas da cidade daVirgem, para no achar um expediente bom ou mau comque se sahisse de apuros, momentaneamente que fosse.Tello segurava-o, tendo-o quasi esganado pelaextremidade do capirote, e o cabeo deste fechava nopeito e garganta por meio de quatro grossos botes.Desabotoado estava livre.

    --Senhor Tello, senhor D. Tello?! murmurou o rapaz,levando as mos j aos botes, e esgotando no submisso,no plangente da voz, e naquelle dom, o ultimo recursooratorio.

    --Ah! perro, velhaco! Eu te...

    O pae dos velhacos no concluiu a phrase: um cascudoque preparava como paga da nobilitao dada ao seunome, deu-o no ar, e com o costado no mesmo momentoapalpou o cho, depois de abalroar com as canellas dealguns curiosos.

    Um cro formado de um unisono de gargalhadas e degritos ensurdeceu os visinhos que enchiam as janellas e

    Os tripeiros, by Antnio Jos Coelho Lousada 75

  • atulhavam as portas. As gargalhadas provocara-as odesastre de Tello; os gritos soltaram-nos