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DIRETORIA 2003-2005

Presidente

Adriana Giarola Kayama

1a. Secretária

Helena Jank

2o. Secretário

José Augusto Mannis

Tesoureira

Denise Garcia

Conselho Editorial Maria Lúcia Pascoal, Editora (UNICAMP)

AndréCavazzotti (UFMG)Cristina Tourinho (UFBA)Fernando Iazzetta (USP)

Conselho Consultivo

Carlos Sandroni (UFPE e UFPB)Carole Gubernikoff (UNIRIO)

Fausto Borém (UFMG)João Pedro de Oliveira (Universidade de Aveiro - Portugal)

José Roberto Zan (UNICAMP)Lenita Nogueira (UNICAMP)

Maria De Lourdes Sekeff (UNESP)Rafael dos Santos (UNICAMP)

Regis Duprat (USP)Samuel Araujo (UFRJ)Vladimir Silva (UFPI)

Wellington Gomes (UFBA)

OPUS : Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - ANPPOM - Ano 11, n. 11 (dez, 2005) - Campinas (SP) : ANPPOM, 2005.

AnualVersão Impressa: ISSN - 0103-7412 - Versão Eletrônica: ISSN - 1517-7017

Música - Periódicos. 2. Musicologia. 3. Composição (Música). 4. Música -Instrução e ensino. 5. Música – Interpretação. I. Associação Nacional de Pesquisa ePós-Graduação em Música (Brasil)

CDU 78(05)

Os resumos dos artigos da OPUS 11. estão indexados em RILM Abstracts of

Music Literature. New York: Cuny.

Os textos aqui apresentados são de estrita responsabilidade de seus autores.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRA-DUAÇÃO EM MÚSICA - ANPPOM

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EditorialMaria Lúcia Pascoal .......................................................................... 07

Artigos

Música Eletroacústica: permanência das sensações e situaçõesde escuta.Carole Gubermikoff ........................................................................... 09

Beethoven: o significante imaginário.Maria de Lourdes Sekeff .................................................................. 37

O “atalaia da fé” contra as máculas do século: o missionário mú-sico Ãngelo de Siqueira.Diósnio Machado Neto ...................................................................... 63

Uma análise das fugas para piano de Bruno Kiefer: umabusca por padrões estilísticos na sua escrita contrapontística.Rafael LiebichAny Raquel CarvalhoCristina Capparelli Gerling ................................................................. 98

O conceito de paradoxo para Ernest Widmer.Leonardo Loureiro Winter .................................................................. 121

Asmathour (1971) - para coro e percussão - de GilbertoMendes: uma abordagem analítica do uso de contrastes dedensidade e de intensidade.Adriana Francato ............................................................................... 140

Poliônimo: definição de alguns termos relativos aosprocedimentos harmônicos pós-tonais.Antenor Ferreira Corrêa .................................................................... 153

Paralelo entre as óperas “Malazerte” e “Pedro Malazarte”.José Fortunato Fernandes ................................................................ 176

Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades.Acácio Tadeu de Camargo Piedade ................................................. 197

Transformação dos processos rítmicos de offbeattiming e cross rhythm em dois gêneros musicaistradicionais do Brasil.Marcos Branda Lacerda .................................................................. 208

SUMÁRIO

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Aspectos interculturais da transcrição musical: análise de um cantoindígena.Maria Ignez Cruz Mello ..................................................................... 221

“Formas sonoras em movimento”: a natureza do belo musical se-gundo Hanslick.Mario Videira ..................................................................................... 237

Coesão descursiva nos Estudos op. 25 de Chopin: aspectos detonalidade e subtematismo.Daniel Bento ..................................................................................... 249

A impropriedade do raciocínio por análise comparativaentre música e linguagem verbal.Ricardo Goldemberg ......................................................................... 260

Crítica musical no jornal: uma reflexão sobre acultura brasileira.Liliana Harb Bollos .......................................................................... 270

ENTREVISTAS

Entrevista com Pierre Schaeffer.Bernadete Zagonel ............................................................................ 283

Reflexões, experiências e opiniões do compositor Claudio Santoro.Iracele Vera Lívero ............................................................................ 304

GRUPOS DE TRABALHO ............................................................... 321

SUMARIO DOS NÚMEROS ANTERIORES ......................................375

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO ....................................................... 379

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Música é movimento

Música é vida.

À memória de

H. J. Koellreutter

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EDITORIAL

É preciso registrar o crescimentoda participação na revista OPUS,que apresenta no n. 11 as seçõesde artigos, entrevistas e uma novasobre Grupos de Pesquisa e osGrupos de Trabalho (GTs) queestiveram reunidos no XVCongresso Nacional daANPPOM, realizado na UFRJ, em2005.

Entre os artigos de abertura, ostrês primeiros são estudos sobretemas bem diferentes, mas deinteresse à comunidade musical:Carole Gubernikoff analisa apermanência das sensações nassituações de escuta da músicaeletroacústica; Maria de Lourdes

Sekeff discorre sobre sua pesquisa que procura possíveisligações entre música e psicanálise, cujo recorte musical éBeethoven e Diósnio Machado Neto resgata a figura do Mestrede Capela Ângelo de Siqueira, nos aspectos históricos e culturaisda região centro-sul do Brasil no século XVIII.

A música brasileira do século vinte está reunida nos textos queapresentam vários aspectos de análise, como Rafael Lubisch,Any Raquel de Carvalho e Cristina Gerling analisam aspectosda polifonia na música do compositor gaúcho Bruno Kiefer;Leonardo Winter discute o conceito do paradoxo em músicasegundo a concepção de Ernst Widmer e Adriana Francatolevanta questões sobre a densidade sonora em peça vocal deGilberto Mendes. Os termos para se entender a música chamadapós-tonal são objeto do estudo de Antenor Ferreira nosexemplos diversificados da literatura internacional e brasileira eJosé Fortunato Fernandes compara manuscritos e libretos deduas óperas, uma de Lorenzo Fernândez, outra de CamargoGuarnieri, centradas na figura de Malazarte.Três artigos sobre Etnomusicologia: Acácio Piedade analisa

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principalmente aspectos de improvisações da chamada “músicainstrumental” brasileira e apresenta algumas das característicassócio-culturais dessa música no seu contraste com o jazz norte-americano; tratando de música advinda de culturas estrangeiras,Marcos Lacerda demonstra processos rítmicos de dois gêneros:a polca paraguaia e toques de candomblé em ritmo ternário; apossibilidade de uma transcrição e uma análise da música deíndios do Xingu, no Mato Grosso é o que nos apresenta apesquisadora Maria Ignes Mello.

Temas como estética, aspectos de música e linguagem verbal eainda a crítica de música estão reunidos nos trabalhos de MárioVideira, apresentando as formas sonoras em movimento,segundo Hanslick; Daniel Bento, na comparação de tonalidadese subtematismo nos Estudos para piano, op. 25 de Chopin;Ricardo Goldemberg focalisa as similaridades entre música elinguagem verbal, comparando as áreas de aprendizagem,leitura, estrutura formal e neurologia e Liliana Bollos reflete sobrea cultura brasileira através dos artigos de crítica jornalística.

Duas entrevistas, dos compositores Pierre Schaeffer e ClaudioSantoro, que fizeram parte de tese de Doutorado e dissertaçãode Mestrado das autoras, Bernadete Zagonel e Iracele Líveroacrescentam informações sobre música contemporânea.

Inaugurando mais uma seção, Grupos de Pesquisa e deTrabalho, o primeiro relata as atividades do grupo coordenadopor Dorotéa Kerr e Any Raquel de Carvalho e, a seguir, os quese formaram e reuniram no XV Congresso da ANPPOM em 2005,agregando pesquisadores de várias universidades nacionais einternacionais. São eles: Análise Musical, teoria e prática;Efemérides e ação Musicológica no Brasil; Etnomusiclogia ePolíticas Públicas para a Área de Cultura; Música e Mídia; OPortuguês Brasileiro cantado: novas estratégias de investigação;Semiótica Musical: métodos de trabalho de significação musicale o Grupo Sigismund Neukomm.

A todos, uma boa leitura!

Maria Lúcia Pascoal

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MÚSICA ELETROACÚSTICA: PERMANÊNCIA DASSENSAÇÕES E SITUAÇÃO DE ESCUTA

Carole Gubernikoff

Resumo: Pensar a permanência da música eletroacústica como gênero da composição musicalem geral põe em cheque a sua própria natureza e levanta questionamentos quanto ao seunascimento e situação de escuta. Levando em consideração aspectos filosóficos, históricos e delegitimação social, o artigo aborda a continuidade da composição eletroacústica em relação à suaforça de criação e sua permanência na sensibilidade através da escuta. Contar a história damúsica eletroacústica é percorrer as opções de Pierre Schaeffer, entre a radio-arte e a música eretraçar a linha nômade deste pensamento.

Palavras-chave: Música eletroacústica. Permanência das sensações. Situação de escuta. Objetomusical.

Abstract - To think about the permanence of electroacoustic music as a gender of musiccomposition in general checks its own nature and brings up matters relating to its birth and listeningcondition. The article takes into consideration philosophical, historical and social legitimacy aspectson what concerns aspects of its creational forces and its durability through listening sensibility. Totell the story of electro-acoustic music means to follow the nomadic line established by PierreSchaeffer’s choices involving radio art and music.

Keywords: Electroacoustic music. Permanence of sensations. Listening situation. Musical object.

INTRODUÇÃO

ste artigo abrange dois capítulos de fundamentação paraa análise da música eletroacústica. O primeiro trata dapermanência das sensações, considerando-a como

fundamental para o estudo da história da arte em geral e paraa história da música, levando em consideração que uma históriada sensibilidade não pode ser construída através dedocumentos, como as partituras, mas sim, de sua realizaçãosensível. A música eletroacústica, então, estaria na posiçãode desvelar este princípio que se encontrava implícito na

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análise de textos musicais, mas que não vinha sendoproblematizado até o surgimento desta questão nos meios dereprodução eletrônica. Para realizar esta tarefa, recorre aconceitos criados por Gilles Deleuze e Felix Guattari, ahistoriadores, como Fernand Braudel, para o estudo defenômenos de longo alcance e a coloca na tensão entre aescuta do senso comum e a intensificação da escuta. A seguirretoma a temática da intensificação da escuta para recontar ahistória de sua criação como um acontecimento com força decriação de futuro (a terceira síntese do tempo), dentro de umcontexto de experimentação e de tomadas de decisão queressoam nas criações de seus compositores até hoje. Sãodiscutidos aspectos relativos à sala de concerto e à escutaacusmática, problematizando o conceito de escuta reduzida,de oralidade e das metodologias experimentais propostas porSchaeffer.

MÚSICA E PERMANÊNCIA

Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta pontaextrema que separa nosso saber e nossa ignorância e quetransforma um no outro.1

O que nos faz dizer que uma obra de arte permanece? E amúsica, que por definição é uma forma de expressão temporale evanescente, pode permanecer?

Para seguir a trilha lançada por esta pergunta e chegar àanálise musical de obras eletroacústicas e que estão nos limitesda sensibilidade contemporânea, é preciso apresentar umponto de vista filosófico que fundamente sua abordagem.

A sociologia tem tentado explicar a permanência de obras de

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arte por fatores de legitimação social complexos, mas, namaioria dos casos, a permanência não é considerada comoum valor ou relacionada a valores e menos ainda a aspectosrelacionados com a sensibilidade.2

Em vários textos de Gilles Deleuze encontramos referênciasa uma discussão sobre o valor e a permanência de obras dearte ou literárias, baseada não apenas em documentoshistóricos ou nos processos de legitimação social, mas nassensações. Suas obras filosóficas se dividem em livros queexplicam o pensamento de alguns filósofos e livros em que opensamento deles está ativo no interior de sua própria filosofia.No prefácio de seu livro Diferença e Repetição 3 diz queescrever um livro de filosofia no século XX é como reescrevera sua história, uma vez que os conceitos criados por outrosautores passam a se constituir “na filosofia”. Ou seja, a filosofiaé a permanência dos conceitos filosóficos e dos valores criadospor eles. A lista dos filósofos com quem Deleuze trabalhaconstitui numa linhagem de autores que ele considera emcontinuidade: os Estóicos, Espinoza, Hume, Kant, Nietzsche,Bergson.

Mas, não são apenas os conceitos filosóficos que permanecem.Deleuze, algumas vezes em parceria com o psicanalista FelixGuattari, se debruçou também sobre outras permanências: naliteratura, nas imagens, com os dois livros sobre cinema, namúsica, na pintura, na psicanálise e no inconsciente e nossignos. Em resumo, poderíamos afirmar que todos os livros eartigos que escreveu servem para afirmar a existência e apermanência do pensamento.

Uma pergunta se coloca imediatamente: como escrever sobre

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tantos assuntos e de maneira tão fecunda? Uma possívelresposta pode ser encontrada no prefácio de Mil Platôs, “ORizoma”, espécie de apresentação das linhas gerais de seusprocessos de pensamento não lineares:

Não há mais uma tripartição entre um campo de realidade, o mundo,um campo de representação, o livro e um campo de subjetividade, oautor. O que há no livro é um agenciamento que põe em conexãoalgumas multiplicidades capturadas em algumas destas ordens, mesmoque um livro não continue no livro seguinte, nem seu objeto continueno mundo, nem seu assunto em um ou vários autores.4

Os agenciamentos são as relações que se estabelecem atravésde captura de exterioridades que se tornam um livro, uma obrade arte ou uma composição. O livro ou a obra musicalpermanecem, mesmo que o assunto ou as ações e paixõesque produziram esta ou aquela obra já não mais existam.

A questão da permanência de obras que estão direta ouindiretamente relacionadas com a composição eletroacústica,cuja questão central é a escuta empírica, não intermediadapela notação ou pela representação abstrata, deve levar emconsideração estas conexões de multiplicidades. Por sua vez,a concentração na escuta não é indiferente ao seu objeto etem focalizado, principalmente, a noção de timbre. Estasquestões, que surgiram com sua criação não “evoluíram”. Elaspermanecem e se apresentam a nós, mesmo hoje,imediatamente, em toda sua complexidade. Mesmo que nãotenha havido uma fundação propriamente dita, o início de umaestética composicional ligada à tecnologia de reprodução emfita se constituiu em uma nova linhagem musical, semintermediação da escrita e de instrumentistas. Utilizavam-seapenas gravadores, associados à tecnologia de produção ereprodução de sons por meios elétricos e eletrônicos, sem a

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intermediação de músicos intérpretes. Podemos considerar afundação da música eletroacústica como um acontecimentoque aponta para seu futuro e não para o passado e é nestesentido que ela é fundadora de uma linhagem.

Para abordar este tipo de criação artística, são necessáriosinstrumentos conceituais que levem em consideração assensações e uma duração imediata. Para a análise musical, adificuldade encontra-se em elaborar um pensamento teóricosem o suporte da representação abstrata escrita.

Vários aspectos apontam para uma ruptura com a músicaconvencional: utilização de sons que ultrapassam o sominstrumental; realização diretamente sobre suporte eletrônico,sem intermediação da escrita ou do instrumento; difusãoespacializada e não apenas frontal, como na músicainstrumental e vocal que utiliza o palco italiano.

Apesar de todos estes aspectos considerados “de ruptura”,um traço importante e significativo de continuidade foi mantido:a intensificação da escuta na sala de concerto. Oscompositores de música eletroacústica, ou mais precisamente,seu fundador, Pierre Schaeffer, não optaram pela músicaincidental, nem pela música ambiente, mas por formas derepresentação social em que tanto os compositores como ospúblicos estão ligados à tradição da música de concerto.

Este fato nos leva a perguntar: por que a sala de concerto sehá tantas outras formas de arte funcional: instalação (como éo caso de algumas das obras de Rodolfo Caesar), trilha sonora,meio ambiente e paisagens sonoras (as Soundscapes deMurray Schaeffer), as artes cinético-sonoras e tantas outras

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que a imaginação é capaz de criar. E no entanto, a opção foipela sala de concerto.

Do ponto de vista da música eletrônica alemã, esta opçãopareceria óbvia, uma vez que foi formulada para dar seqüênciaao desenvolvimento do pensamento quantitativo, porparâmetros, da música serial. Mas, para a música concreta,que podemos chamar de acusmática, esta relação com a salade concerto poderia não ter sido tão óbvia.

Laura de Pietro, em sua dissertação de mestrado Música

Eletroacústica: Terminologias5 , debate este item mostrandoque a decisão sobre o espaço de música de concerto não foisem conseqüências.

Para Michel Chion, a “imposição “seja uma música”, foi freqüentementemais um empecilho que um estímulo, impedindo a música eletroacústicade tornar-se uma “arte autônoma dos sons, podendo englobar a músicatradicional como o cinema integra o teatro, a pintura, etc...[...] Não se trata apenas do que se compreende como música, mas desua inclusão num sistema de regras próprias de circulação efinanciamento e suas instituições.6

Mais de cinqüenta anos após a fundação da músicaeletroacústica e num outro estágio de desenvolvimentotecnológico, em que praticamente todas as etapas dacomposição e da difusão sonora foram digitalizadas e em queo auxílio do computador se tornou a base da composição ecampo de desenvolvimento de programas, a dificuldade de setrabalhar com uma base empírica, através de uma lógica dassensações, procurando encontrar campos genericamenteconsistentes para se formular uma teoria, continua. Umapossibilidade para esta dificuldade, excluindo a hipótese deque seria uma arte para iniciados que dominam um jargão

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limitado a um pequeno grupo de usuários, é aceitá-la comoinerente ao pensamento. A lógica cartesiana nos ensina, desdeo século XVI, que toda a complexidade pode ser reduzida aelementos simples. Entretanto, o trabalho com as sensaçõesnos coloca na duração imediata, no devir sonoro, sempossibilidades de suspender o fluxo temporal para observarsuas relações abstratas. Esta complexidade irredutível não sedá nem no campo teórico, nem no campo da história factual,nem nos processos de legitimação social, mas no plano dasensibilidade e é lá que elas permanecem como questão.

Gilles Deleuze e Felix Guattari discutem este aspecto no livroO que é a Filosofia quando distinguem três tipos depensamento: o pensamento científico, que cria funções, quemede e distingue; o pensamento filosófico, que cria conceitose nomeia; e o pensamento artístico, que cria blocos desensação, os afectos e os perceptos. O pensamento artísticose distingue dos demais por pertencer ao campo do sensívele isto faz com que eles proponham uma filosofia que se debruçasobre a permanência da sensação:

O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações,quer dizer um composto de perceptos e afectos.

Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estadodaqueles que o gozam; os afectos não são sentimentos ou afecções,eles ultrapassam a força daqueles que passam por eles. As sensações,perceptos e afectos, são seres que valem por si próprios e excedem atodo o vivido. Eles o são na ausência do homem, na maneira comoestá preso na pedra, na tela, ao longo das palavras, é ele mesmo umcomposto de afectos e perceptos. A obra de arte é um ser de sensaçõese nada mais. Existe por si.

Os acordes são afectos. Consonâncias ou dissonâncias, os acordesde sons ou de cores são os afetos da música ou da pintura.

Rameau distinguia a identidade do acorde e do afeto.O artista cria osblocos de afectos e perceptos, mas a única lei da criação é que o

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composto deve se bastar a si mesmo. Que o artista o faça se manterde pé sozinho é o mais difícil [...]

Se mantiver em pé por si próprio não é ter um alto e um baixo, não éser reto (...), é apenas o ato pelo qual o composto de sensações seconserva em si mesmo[....]

Pintamos, esculpimos, compomos, escrevemos as sensações. Assensações como perceptos não são percepções que remetem a umobjeto (referências). Se elas se parecem com alguma coisa é umasemelhança produzida por seus próprios meios e o sorriso na tela éfeito de cores, de traços, de sombra e de luz[...]

É a matéria que se torna expressiva.7

Nestes fragmentos de texto podemos acompanhar o esforçodos autores para dar legitimidade ao pensamento artístico,não por meio da representação social ou psicológica, mas sevoltando para a matéria e para a expressão como elementosauto-suficientes, portadores de uma integridade individual eautônoma. Neste sentido, defendem a idéia que a arte é umpensamento tão legítimo, importante, completo e legítimoquanto qualquer outro:

Pensar é pensar por conceitos, por funções ou por sensações e nenhumdeles é superior a outro, ou mais plenamente, mais completamente,mais sinteticamente “pensado”. 8

Esta teoria faz lembrar a metafísica aristotélica na qual ouniverso é regido por uma finalidade e os vários movimentossão atualizações de potências de diferentes naturezas. Asfinalidades seriam regidas por quatro causalidades: a causamaterial, a causa formal, a causa final e a causa eficiente.9

Um famoso exemplo de como estas causalidades operam édado pela relação entre o escultor e escultura: A causa material,o mármore, aguarda as causalidades formal e eficiente paraatender à sua finalidade de se tornar escultura. A expressão

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estaria na própria matéria, cabendo ao escultor cavar a imagemque nela já está contida.

De acordo com Deleuze/Guattari o objetivo da arte édesumanizar (desantropomorfizar) as percepções e asafecções. Neste sentido, o devir da obra de arte vai além dovivido e do sentido.

O artista pode ter vivido ou sentido algo que era grande demais, atémesmo intolerável e os combates da vida com o que a ameaça [...] fazexplodir as percepções vividas numa espécie de cubismo, desimultaneidade de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul,que não têm outro tema ou assunto senão eles mesmos.10

Voltando para a música eletroacústica, podemos dizer que aescuta e as composições eletroacústicas ultrapassam em muitoo vivido e o sentido no senso comum, põem em questão eproblematizam a escuta humana, apontando para umaultrapassagem da escuta usual. Não por acaso, os sons fontesda música eletroacústica, os objetos sonoros, podem serextraídos de sons cotidianos: portas que batem ou rangem,pedras que rolam, trens, passos, como se fossem sonoplastiasintensificadas e sem relação de causalidade. Mas, da mesmamaneira que na música de concerto tradicional e da maneiradescrita por Rameau, eles devem “se bastar a si mesmos”, “semanter em pé”.

Muitas vezes podemos reconhecer um determinadoprocedimento tecnológico utilizado na composição, ouclassificar pelo ouvido as recorrências estilísticas herdadasou criadas, como em qualquer gênero artístico.. Estageneralidade é que pressupõe a existência de um estilo deépoca e que permite um mínimo de teorização e socializaçãode conhecimentos. Uma obra de arte, entretanto, se caracteriza

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por este estado de se manter por si só, de ser umasingularidade, um único bloco de sensações.

O que permanece na música eletroacústica não é a decifraçãode sua forma, nem a descrição de seus elementos constitutivos,nem mesmo as técnicas empregadas com computadores eseus programas genéricos. A única maneira que encontramospara expressar esta arte do século XX é procurar seu análogoem outras formas do pensamento contemporâneo, cumprindoo vaticínio de que a obra de arte deve corresponder àsnecessidades tecnológicas, técnicas e estéticas de seu tempo.

Trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição;de substituir representações mediadas por signos diretos; de inventarrotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamenteo espírito.11

Nietzche, em seu livro, O Nascimento da Tragédia, propõe uma“metodologia” histórica na qual, a tragédia, após sua fundaçãodionisíaca, no “espírito da música”, perde o vigor e setransforma gradativamente em drama. Parafraseando estametodologia, poderíamos dizer que o máximo vigor da músicaconcreta se deu quando de sua fundação, não porque aqualidade das obras ou a dimensão da proposta fossequalitativamente ou quantitativamente mais avançada, mas porsua força de acontecimento.

Um acontecimento não é necessariamente de intensidade maisforte, ou de dimensões maiores, nem se inscreve no plano doespetacular. A força do acontecimento é medida pela suacapacidade de produzir o que Deleuze chamou em Diferença

e Repetição, de “síntese do futuro”. Eventos inaugurais, cujoaspecto principal não é a evolução com o tempo, mas as

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repetições diferenciais de uma mesma força que é capaz deproduzir futuro ou de gerar sentido.

Assim, a “questão” da escuta e da eletroacústica, sua tensãocom a escuta “musical”, regida por sistemas de notas e porsons discretos não será, num futuro próximo ou longínquo,“superada”. Se as obras artísticas ou os sistemas expressivosfossem historicamente superados, perderiam seu vigor, umavez que suas condições de produção já foram ultrapassadas.O que fascina nas histórias das formas de expressão é a suapermanência enquanto diferença.

O historiador Fernand Braudel, quando foi confrontado comramos das ciências sociais que lançaram mão de metodologiasestruturalistas de interpretação e insatisfeito com a históriafactual, criou alguns conceitos importantes. Em artigo escritona década de 50, criticava a história factual de maneira dura,comparando os fatos da história considerados “importantes”com a luz de pirilampos fosforescentes: “suas luzes pálidasreluziam, se extinguiam, brilhavam de novo, sem romper a noitecom verdadeiras claridades”. Para ele, a simples narrativa dosdados da história eram “clarões sem claridade; fatos semhumanidade”.12

O fortalecimento das ciências sociais, que se deu com osurgimento das abordagens estruturalistas fez com que fossenecessário criar diferentes níveis e planos de duração histórico-temporais, pensar em diferentes velocidades históricas, emciclos de longuíssima duração, entre os quais as formas deexpressão artística estariam incluídas. Desta maneira, o fatode que na história da música européia, que se estende àsAméricas a partir do Século XVI, o sistema harmônico tonal

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ter sucedido ao sistema harmônico modal, não significa que osistema modal tenha sido superado ou tenha perdido seu vigor.Houve apenas um deslocamento sobre o foco de visão dahistória quando o acontecimento da harmonia tonal seapresentou como força de produzir futuro. O fato da músicano início do século XX ter assumido, em algumas correntesmais radicais, o abandono das regras estritas da harmoniatonal, não significa que esta “acabou”, uma vez que as obrasvigorosas que se utilizaram deste sistema, quando estavamem acordo com as necessidades de seu tempo, permanecemem seu vigor. Entretanto, atualmente a música tonal se encontranum estágio em que predomina o senso comum e não aencaramos mais como produtora de futuro.

A música eletroacústica explode em seu vigor na segundametade do século XX, a partir da década de cinqüenta. O tipode intensificação da escuta que ela promoveu e que se afirmoupor meios analógicos até a década de 70 não será,provavelmente, superado. O espaço da música de concertoprovavelmente não a incorporará como um gênero a mais entreas suas criações, exatamente porque ela se dissolveria nocampo do senso comum e perderia, nesta absorção, suaespecificidade. Mas, apesar de não se confundir com asmúsicas tonais, seriais ou experimentais de vanguarda,permanece no campo da “intensificação da escuta”, emcontinuidade com a música de concerto, com suas salasplanejadas para a absoluta concentração.

Situação de escuta

O desafio mais importante que a música eletroacústicaapresenta é a escuta. Num concerto acusmático, a sala está

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geralmente numa semi-obscuridade, com caixas acústicascercando os ouvintes por todos os lados e emitindo sons quedesafiam a imaginação. A conseqüência para o espectador éde intensa fabulação, provocada pelo caráter ambíguo do queestamos escutando: um misto de sons e ruídos, sem escalasde referência, sem pulsação definida e estável, sem gestosinstrumentais reconhecíveis, sem intérpretes no palco. O fatode estarem sentados numa sala de concertos com palcoitaliano, aumenta a situação paradoxal: o palco vazio, napenumbra e a platéia cercada por sons, muitas vezescontínuos, que percorrem o espaço em todas as direções. Alinearidade confortável do discurso musical, com sua seqüênciade notas e cadências previsíveis é substituída por sons quedesconhecemos a origem, que não correspondem a gestosinstrumentais nem a sistemas de formas de ataqueconsagrados pelo uso e aos quais estamos habituados.

A decisão de manter a música eletroacústica na sala deconcertos foi essencial para a manutenção da classificaçãode Música e não Arte Sônica, por exemplo: seu lugar socialpermaneceu o da música de concerto assim como seu público.A relação contemplativa, de extrema concentração nos sonstambém foi outro fator importante. Esta decisão intensificou oimpacto na escuta que esta arte significou.

Há, na história da fundação da música eletroacústica e suasduas correntes, questões sobre a sua natureza (sons ouruídos?) e modo de agir musical (pensamento concreto ouplano abstrato) que permanecem até hoje. Desde que as duascorrentes, a Musique Concrète francesa e a Elektronische

Musik alemã se tornaram a “música eletroacústica” não houvepropriamente uma “evolução” das questões envolvidas, mas

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algo que se colocou imediatamente em toda sua complexidadee que permanece como questão. Ela não evoluiu de umaquestão simples e aos poucos foi se complicando, mas seapresentou como imediatamente complexa. A natureza datensão entre as duas correntes parecia ser, a princípio, entrea atitude experimental da composição acusmática e o controledos parâmetros e do nível de controle abstrato dos parâmetrossonoros. Em 1949, Pierre Schaeffer se expressava da seguintemaneira:

Nós chamamos nossa música de música “concreta” porque ela seconstitui a partir de elementos pré-existentes, tomados de qualquermaterial sonoro, seja ele ruído ou som musical, depois compostoexperimentalmente por uma construção direta, chegando a realizar umavontade de composição sem o auxílio, tornado impossível, da notaçãomusical comum.13

As linhas mestras já estavam definidas: a) - elementos pré-existentes, dependendo de técnicas de gravação; b) – empregode qualquer material sonoro, ruído ou som musical; c) - atitudeexperimental, significando que a atenção deveria se concentrarnas qualidades intrínsecas do som que seriam definidas demodo empírico, ao longo da duração; d) - construção direta,significando o trabalhar diretamente sobre o extrato de materialgravado e através da “redução” fenomenológica; e - aidentificação de traços sensíveis que realizariam “uma vontadede composição sem o auxílio da notação”. Neste trecho,Schaeffer aceita que a “notação musical comum” era umpoderoso auxílio da composição.

A história do início da música concreta é contada como frutode um acidente e que o acaso teria agido de forma fundamental.Pierre Schaeffer, sentado em seu estúdio na OrganizaçãoRadiodifusão Francesa, ao escutar um disco arranhado

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produzir o fenômeno do sillon fermé (sulco fechado), dá-seconta do potencial gerador de novas escutas. Sem subestimara função do acaso em suas criações, este é o aspectoromântico da história. Porém, desde 1943 ele já haviaorganizado um laboratório onde desenvolvia pesquisas etécnicas sonoras ligadas à gravação. Este laboratório eraperfeitamente adequado a uma instituição pública de produçãoe difusão radiofônica e era o espaço de pesquisa eexperimentação de uma “arte radiofônica”. Neste sentido, otrabalho de Antonin Artaud foi absolutamente pioneiro.Utilizando os meios expressivos do radio-teatro, dentro datradição do folhetim, produziu um programa com um textoradical e iconoclasta, que continha gritos, ruídos, palavras efonemas soltos, sem sentido, além do texto propriamente dito:“Para acabar com o julgamento de Deus”.14

A atitude irreverente e desafiadora esteticamente não era,portanto, nova no cenário da radiodifusão francesa na décadados 40.

O estudioso da música concreta e biógrafo de Pierre Schaeffer,John Dack apresenta uma análise muito positiva da funçãosocial e artística de Pierre Schaeffer no cenário cultural europeudo período que antecede e que sucede a Segunda GuerraMundial.15 Para ele, as idéias de Schaeffer eram característicasda cultura francesa da época e permanecem relevantes paraa música eletroacústica até hoje. Objeto sonoro é qualquersom, de qualquer natureza, que através de processos degravação e manipulação de suas características sejaempregado na composição de obras musicais.

16

O período que antecede os textos teóricos puramente musicais,

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de 1948, já contém algumas idéias que germinarão sob a formada música concreta. Uma delas é o poder criativo das máquinasque não se contentam em retransmitir o que lhes era dado,“elas começaram, de sua própria vontade, a fazer coisas queeu antropomorfizo um pouco, mas convenhamos que acidentessão criativos”.

17

Esta inter-relação com a máquina, deixando espaço para oacaso e para a decisão tomada no que Bergson chama deintuição imediata, se manterá como uma das característicasmais importantes da música eletroacústica e será objeto depesquisa de Rodolfo Caesar, como no caso da utilização dosmicrofones como verdadeiros instrumentos, intermediáriosentre imaginação artística e a captação da realidade.18

É ainda John Dack quem nos conta que a experiência maissignificativa de Pierre Schaeffer, antes da formulação daMusique Concrète, foi uma transmissão radiofônicaexperimental chamada La Coquille à Planètes ondeexperimentou pela primeira vez a “sonoplastia” com “música”,dando um novo significado e função aos sons “ambiente”. Seconsiderarmos estes sons como “pensados musicalmente”, adata da primeira obra concreta, pode ser antecipada em cincoanos, incluindo “Águias” da série no repertório da músicaconcreta.

Outro aspecto importante que este autor enfatiza é adramatização produzida pela descontextualização de sonsgravados. Este também foi um assunto tratado pelosintelectuais da época e que John Dack reputa a um “humanismode Pierre Schaeffer”. Ainda neste texto lemos que MarshallMac Luhan, o teórico da comunicação de massas, havia notado

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que sentar no escuro para conversar criava novos sentidos àconversação e que ouvir rádio enfatizava alguns dos sentidos.Esta situação de escuta, doméstica e trivial, pode ter dadoorigem à utilização do termo acusmático, uma escuta semreconhecimento da origem do som. Entretanto, a opção pelasala de concertos e não pelo desenvolvimento de uma arteradiofônica, fez com que a situação de intensificação desentidos relacionados com a noite prevalecesse.

Rodolfo Caesar reconhece este esforço como fundamental.Diminuir a visão implica em intensificar a audição.

A orelha, órgão do medo, não teria evoluído tanto se não fossem asnoites e a obscuridade das cavernas e florestas, de acordo com o modode vida da idade da timidez...Sob a luz clara do dia as orelhas sãomenos necessárias. Isto explica porque a música adquiriu o caráter deuma arte noturna, da obscuridade.19

Entretanto, era importante diferenciar a banalidade da escuta

de música gravada, como o advento da indústria cultural, e a

situação de escuta da música eletroacústica. Na música

gravada ou na arte radiofônica é possível identificar a origem

do som. Na proposta schaefferiana a origem do som deveria

ser no mínimo, disfarçada. A passagem da arte radiofônica

para a música concreta, com seus objetos sonoros e a

passagem da dramaturgia para a música criaram novos

conceitos estéticos importantes para a escuta. A mudança

produzida pelos conceitos de objeto musical e de escuta

reduzida representou uma mudança qualitativa em direção

daquilo que estava reprimido no inconsciente do próprio: Pierre

Schaeffer, filho de músicos e violoncelista transformou um

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destino num devir, pois no destino há uma predestinação daqual não podemos escapar: no devir construímossimultaneamente a nós mesmos e ao mundo.

Os três conceitos fundamentais cunhados por Pierre Schaeffersão: “acusmático”, “objeto musical “(ou objeto sonoro) e “escutareduzida”.

A palavra acusmático tem sua origem numa tradição pré-socrática. Pitágoras vedava com um véu a entrada do local deonde ele falava. Isto lhe possibilitava falar no silêncio e naescuridão, propiciando a seus discípulos o desenvolvimentode técnica de concentração e de escuta sem terem sua atençãoatraída por nada além de suas palavras.

A escuta reduzida rompe com a cadeia de causalidade eestabelece uma distância, uma separação, entre um som e asua origem ou causa, transformando os significantes e osíndices em abstrações. Um dos exemplos clássicos é o doruído de um motor de automóvel que ao invés de ser entendidocomo o índice de um carro que se aproxima, é ouvido naintegralidade de suas qualidades sonoras: duração, textura,extensão e intensidade, a partir de uma tipologia que serádesenvolvida. Num concerto acusmático os ouvintes estãocolocados numa situação de encontro incontornável com ossons, mergulhados numa massa sonora que os envolve e dasquais não devem conhecer nem as causas, nem as origens.

O Objeto Sonoro é todo som de qualquer natureza que, gravadoe submetido a manipulações, adquira uma configuração própriae autônoma. Este conceito se estende a Objeto Musical, queadquiriria um conceito musical completo. A diferença de

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extensão destes dois conceitos tem sido questionada porRodolfo Caesar que busca uma não cisão entre eles. A palavra“concreto”, utilizada por Schaeffer, refere-se não apenas aosom concreto, mas a uma escuta concreta, o som em suaintegralidade e não apenas o privilégio da altura e do ritmoou a separação em parâmetros.

A transformação proposta por Pierre Schaeffer atingiu tanto amúsica quanto a utilização da tecnologia de reprodução. MichelChion interpretou esta “ordem” - “seja uma música” – comonegativa, impedindo-a de ser “uma arte autônoma dos sons”.20

Cabe a nós nos perguntar se esta autonomia não lançaria a“arte dos sons” à mercê dos avanços tecnológicos e dos meiosde reprodução e manipulação, analógicos e digitais, daindústria do efeito sonoro, podendo, neste caso, ser nãoapenas superada como ultrapassada. Ao invés de apontar parao futuro, ela estaria prisioneira do presente que se tornariaimediatamente passado e caracterizado com “tecnologiadatada”.

Sem o auxílio tornado impossível da notação, a músicaeletroacústica poderia se tornar objeto de uma cultura oral?Muitos compositores de eletroacústica ainda se questionamsobre o tipo de oralidade necessária para a apreensão damúsica eletroacústica. O compositor Gerald Bennett seperguntou, de maneira bastante pessimista sobre uma novacultura da oralidade e da improvisação que estaria se formandoa partir da diminuição do interesse pela cultura literária, ousimplesmente escrita, que estaria se apoiando noscomputadores e em operações simples possibilitadas por eles.

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Eu achava que a condição de pertencer a uma cultura extremamenteoral (dentro de nossa cultura ocidental) fosse específica da músicaeletroacústica. Afinal, os instrumentistas sempre tiveram de trabalharcom partituras. Mas, eu vejo situações similares cada vez maisfreqüentes em outras áreas da pedagogia musical. ... ao ensinarcomposição instrumental eu vejo os alunos menos interessados no“métier” que nas gerações anteriores. Eles gostam do que “soa bem”.[...]Fiquei sabendo pelos professores de instrumento que os jovensinstrumentistas, apesar de não serem menos talentosos, estão menosinteressados em estudar que há 20 ou 30 anos. Mas, por outro lado,improvisam melhor e aprendem de cor muito mais rápido.21

Rodolfo Caesar também partilha deste olhar razoavelmentepessimista em relação à extrema divulgação da músicaeletroacústica (eletrônica) nos meios de cultura de massa ecomo forma de implementação de recursos através dautilização de equipamentos de informática:

Esta técnica tornou-se uma das favoritas da música eletroacústica nosanos sessenta e setenta. Atualmente o ‘loop’ sustenta, em suarepetitividade anacrônica da musique concrète dos primeiros anos, todosos gêneros techno, fazendo ressurgir uma impressão de sillon fermé.22

Ou seja, ambos reconhecem que há uma banalização dosrecursos tecnológicos e da utilização de técnicas de samplers23

que, ao invés de estimular a criatividade e a invenção, nosentido experimental dado por Schaeffer, torna a relaçãosubserviente às manipulações pré-fixadas pelas máquinas.Desta maneira, há o risco da música eletroacústica ser umdos elementos que integram uma cultura mais voltada para aoralidade que para a literaturalidade, mais interessada numaapreensão imediata que na historicidade.

Outro aspecto importante é a extrema concentração no som emenos nos processos de elaboração. Os processos deelaboração podem se tornar extremamente banais, como foiapontado pela crítica de Rodolfo Caesar, ou seus recursos

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tecnológicos de tal forma utilizados de maneira imediatista esuperficial que se tornam facilmente reconhecíveis. O riscodesta extrema concentração na tecnologia produz o mesmorisco da imediaticidade na música instrumental improvisada:um aprendizado rápido dos procedimentos mais usuais, atécnica e o senso comum substituindo a estética.

Experiência e experimental

Além de acusmática, a música concreta se pretendiaexperimental. Esta palavra apresenta outros dilemasimportantes. Um deles é sobre a natureza da experiênciaartística. A experiência científica utiliza a experimentação paracomprovar suas hipóteses através da repetição. Naexperimentação artística a experiência serve para aumentaros limites cognitivos que estariam pré-figurados ouconfigurados pela existência na cultura.

A existência na cultura foi descrita pelo biólogo chilenoHumberto Maturana que observou o homem como “um animalque se torna humano na experiência da existência” e analisoua formação do critério da percepção estética a partir daobservação dos comportamentos e dos condicionamentosbiológicos. Seu texto se inicia com um alerta sobre arelatividade das convicções teóricas:

Aquilo que cada um quer manter invariável ou conservar determinaaquilo que se admite mudar nas diferentes circunstâncias da vida e asdiferentes teorias desenvolvidas para explicar a experiência, diferemexatamente nisto.24

O pensamento e a teoria que vai expor em seguida se baseiaem sua experiência como cientista e vamos tomar algumas desuas observações sobre o comportamento biológico do homem

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como guia para o trabalho com as sensações que se tornamobjeto de formulações estéticas.

Aprendemos a viver como vivemos, vivendo da maneira que vivemos eo fazemos enquanto corporeidade e maneira de ser na troca deconversações (nos intercâmbios) ao longo da vida.[..]Então é possível dizer que as mudanças estruturais de qualquerorganismo, assim como as mudanças estruturais do sistema nervososeguem um curso modulado pela história de vida do organismo nosseus domínios de existência, uma história da ativação das mudançasestruturais, não uma história de eventos..25

Para Maturana, existimos em nossa corporeidade e para nostornarmos humanos é importante qualificar o que nos fazhumanos.

O primeiro critério é o da observação. Como observadores:distinguimos e separamos objetos, relações e depoisnomeamos como se fossem separados de nossa observação.Esta nomeação é o linguajar. Mais ainda, tudo o que fazemoscomo humanos na linguagem fazemos no fluxo das emoções,de tal forma que linguajamos nossas emoções e emocionamos(emoções não são os sentimentos) nosso linguajar. Estaconcepção compreende o homem como um sistema molecularauto-poiético26 que existe numa dinâmica contínua demudanças estruturais geradas internamente e que interagemcom o meio ambiente. Assim, o humano surge do jogo entre ocorpo humano e a maneira humana de viver (nos linguajandos

e nos emocionandos).27 Este viver-vivendo que inclui apreservação da espécie e do modo de viver é o que podemoschamar de experiência e a experimentação no campo daestética seria uma conseqüência deste modo de ser do artista.

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Para Maturana, a fruição estética corresponderia a um bemestar do humano em seu meio ambiente.

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Mas, a base de nossa argumentação é estética e não há naexperiência estética apenas fruição de bem estar.

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Nossaposição é diametralmente oposta à do biólogo Maturana, queconclui pela experiência estética como um viver plenamenteem harmonia com o meio ambiente : uma conversação« consensual ». Entretanto, podemos tomar a liberdade delevar as premissas da experiência para realizar exatamente oque diz o início do artigo: mudamos sempre na medida do quequeremos conservar. E o interesse desta tese é conservar ovalor da experiência estética como experimentação.

O pensamento artístico envolve a criação de blocos desensações e é fundamental distinguir a experiência científicada experiência estética, o senso comum do artístico. É nestadistinção que a arte se “desumaniza” e ultrapassa o sentimentoindividual.

Há dois movimentos aqui. Um, em que Schaeffer diziaantropomorfizar, tornar humano, o acaso; outro, no sentidocontrário, ultrapassa os sentimentos pessoais e as nomeaçõesda linguagem comum e da função científica.

Pierre Schaeffer e a experiência musical

Pierre Schaeffer, assim como outros músicos envolvidos comtecnologia e informática, teve de enfrentar o dilema entreexperiência científica e música experimental. A partir daimplantação dos estúdios de composição e formação do Grupode Pesquisas Musicais (Groupe de Receherches Musicales,

GRM), que ainda existe no INA, Institut de L’Audio Visual, daRadio e Televisão Francesa, a questão se apresentou.

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A música concreta de caráter “experimental” surgiu logo apóso início da formação dos compositores do Groupe. Suaspreocupações apontavam para alguns pontos importantes30 .

1 - A morfologia e a tipologia sonoras eram preliminaresao dado musical, passar do sonoro ao musical implicava em“determinar um repertório de signos musicais possíveis”.

2 - O fator sociológico da experiência musical deveriaser levado em consideração: “alguma coisa me diz que nãoestou enclausurado na minha subjetividade”. A mera formaçãode grupos não era suficiente. “A nova sociedade musicaldepende de um diálogo inicial que prefigure esta sociedade,cuja importância ultrapassa assim a simples experimentaçãosobre as percepções”.

3 - Schaeffer propõe exercícios de descondicionamentoe recondicionamento que se resumiam a uma livre nomeaçãoe comparação entre objetos sonoros e a seguir oestabelecimento de novos critérios musicais. Estes novoscritérios não teriam sentido se não fosse estabelecida uma“metalinguagem” para falar dos sons que deveria incluir umaintenção de escuta. A atitude deveria estar associada àintenção, caso contrário todo esforço demonstrativo se tornariainútil. “A metalinguagem constitui uma necessidade orgânica,atada a uma arte, de possuir terminologia adequada”. A eficáciada terminologia só será efetiva se percebermos que mesmona escuta mais solitária dos sons (de quem produz e escutasimultaneamente) existe um terceiro, a sociedade.

A classificação dos sons, entretanto, apresentava “a intrusãode dois objetivos no mesmo laboratório: um analítico, de ordemcientífica e outro sintético, de ordem artística”. Para resolver oimpasse, Schaeffer propõe a passagem da criação de fitas

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experimentais para fitas didáticas, estabelecendo assim asbases para o Solfejo (e teoria) dos Objetos Sonoros, umtreinamento análogo ao solfejo praticado com muito rigor nosconservatórios franceses.

O princípio de base é a possibilidade de análise sensível deum som qualquer através do “artifício”, ou do esforço, da escutareduzida. Não por acaso, o resultado desta prática é aproposição de um solfejo generalizado dos objetos sonorosque funciona como um análogo do solfejo de notas e ritmos daformação do músico tradicional. Este solfejo generalizado adotaas mesmas técnicas de isolamento e concentração de algunsaspectos selecionados para o adestramento da sensibilidadeanalítica, ampliando consideravelmente o âmbito de ação. Aoinvés de concentrar os esforços sobre o reconhecimento eentonação das notas e dos ritmos, o som é percebido na sua“totalidade expressiva”, para a qual todos os parâmetrosconcorrem globalmente, e não em separado como na propostaserial.

A escuta reduzida e o objeto sonoro, são dois conceitosinterdependentes e subordinados ao princípio de isolamentode um som, ou de uma seqüência sonora, que é derivado da“descoberta” do circuito fechado, da repetição em anel. Estarepetição produz um objeto que não evolui, que se congela notempo e ele então se torna manipulável a partir de um suporteconcreto, a fita.

Estas considerações dizem respeito ao período anterior àcriação dos seqüenciadores eletrônicos e que mudamcompletamente as relações temporais. Se anteriormente haviaa justaposição, mesmo que imperceptível, de eventos fixos, a

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seqüência prevê extensões temporais significativamentelongas, oriundas de um circuito eletrônico.

O GRM atual se encontra num novo clima, que é o das máquinaseletrônicas, máquinas que formulam seqüências, que apresentam amúsica numa outra forma: não são mais objetos isolados, feitos pedaçoa pedaço. Mas conjuntos temporais importantes, oriundos de um circuitoeletrônico, trabalhado no sentido da invenção. Está-se na presença,não de objetos, mas de seqüências que fazem apelo ao julgamentomusical. 31

Desde a criação da música eletroacústica, a indústria deinstrumentos elétricos e eletrônicos se associou à informáticano desenvolvimento de instrumentos e meios de difusãosonora, criando um novo mercado de consumo extraordinário.Centros de pesquisa e experimentação musical se tornaramcentros produtores de bens de consumo, musicais e deinformática. Por outro lado, a escuta empírica envolvida nosestúdios de composição originários está sendo substituída pelaaprendizagem de programas desenvolvidos por engenheirose músicos que nem sempre são originários da músicaexperimental ou de vanguarda. Na melhor das hipóteses algunsprogramas atendem a objetivos composicionais de um grupode compositores; na maior parte das vezes, estes programasatendem às necessidades do “mercado”.

Quando Schaeffer enfrentou o dilema entre a “fita experimental”e a composição musical, optou por uma pedagogia dossentidos, pelo desenvolvimento da escuta. Organizou o “Solfejodos Objetos Musicais”, intuindo que cabe aos artistas a criaçãode obras que se sustentem a si mesmas através dassensações.

Notas:

1 DELEUZE, G - 1988

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2 GUBERNIKOFF, C. - 20003 DELEUZE, G - 19884 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. 19805 PIETRO, L. DI 2000.6 PIETRO, L. Di - 20007 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. – 19918 DELEUZE, G. GUATTARI, F. 19989 ARISTOTELES 197910DELEUZE, G.& GUATARI, F. 199811 DELEUZE,G. 1988 [1968]12BRAUDEL, F - 197813SCHAEFFER, P.[1949] in Chion, 1982.14 ARTAUD, A., 1977.15 DACK, J. – « Schaeffer and Radiophonic Art », in: www.sonic.mdx.ac.uk/research/dackpierre.html16 O conceito de Objeto Sonoro se confunde com o de Objeto Musical.. A princípio a diferençaseria de dimensão, o objeto musical integrando o objeto sonoro em sua constituição. Mas, adiferença tem sido problematizada por Rodolfo Caesar que não separa os dois conceitos. A idéiade objeto como uma configuração delimitada com características prórpias foi empregada porDidier Guigue17 SCHAEFFER, P. – in Dack, idem18 ver adiante, na análise, o conceito de microphone-shaping, morfo-microfonar19 NIETZSCHE F, in CAESAR, R 1993.20 CHION, M. 1982.21 BENNET, G 1995 – Thoughts on the Oral Culture of Electroacoustic Music22 CAESAR, R 1999.23sample em inglês significa simplesmente amostra, no sentido de elaborações feitas a partir defragmentos de som.24 MATURANA, H. 199325 MATURANA, H 199326 auto poiésis significa que é auto gerado, num processo dinâmico e permanente de consitituiçãodo mundo e de sí.27 as expressões usadas por Maturana são languaging e emotioning

29Esta idéia está mais próxima dos conceitos de Paisagem Sonora do canadense Murray Schafer..30 Os próximos temas tratados a seguir se encontram em SCHAEFFER, P. 199631SCHAEFFER, P. in THOMAS, J.C., 1989.

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Carole Gubernikoff: É doutora em Comunicação (UFRJ), com bolsa especial de doutorado(CNPq) realizada no IRCAM, Paris e pós doutorado (CAPES) na Universidade de Columbia, emNova York. É professora de análise musical do Instituto Villa Lobos (UNIRIO), pesquisadora eprofessora do Programa de Pós Graduação em Música da UNIRIO, com trabalhos de teoria eestética contemporâneas.

e-mail: [email protected]

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S

BEETHOVEN - O SIGNIFICANTE IMAGINÁRIO

Maria de Lourdes Sekeff

Resumo: A presente pesquisa objetiva uma aproximação música x psicanálise, considerandonossa condição de falantes dotados de um inconsciente que encontra na arte, na música, umaatividade de expressão e produção de sentido. Atentando aos limites impostos por cada umadessas ciências procura-se refletir o processo de subjetivação, partindo do entendimento demúsica como alteridade e autonomia, e o processo de criação como auto-realização, relacionadocom pulsão e desejo. Justifica-se a pesquisa haja vista que psicanálise e música lêem o homemem sua vida cotidiana e em seu caminho histórico; ambas são “receptáculo daquele lugar deopacidade intransponível que é o imaginário” (Metz,1980); ambas são infiltradas pelo inconscientee envolvem expressões e emoções. O suporte teórico é encontrado em Freud e Maynard Solomon.O recorte musical adotado é Beethoven e a metodologia, bibliográfica e “interpretativa”. Uma dasconclusões a que se chega é que, tanto na psicanálise quanto na música, é possível a percepçãode uma “outra fala” ampliando os limites da compreensão e experiência humana.

Palavras-chave: Música. Psicanálise.Inconsciente. Pulsão. Criação.

Abstract: The present research objective is an approach music x psychoanalysis, consideringour condition of speakers endowed with an unconscious that finds in the art, in the music, anexpression activity and sense production. Attempting to the limits imposed by each one of thathuman sciences the research quest to reflect the “subjectivation” process, departing of the musichow autonomy as well as the creation process how a self-realization, related with trieb (pulsion)and with desire. The research it is justified in view of psychoanalysis and music read the man inhis daily life and in his historical courser. They are “receptacle of that place of insurmountableopacity that it is the imaginary” (Metz,1980), they are infiltrated by the unconscious and theyinvolve expressions and emotions. The theoretical support is found in Freud and Maynard Solomon.The adopted musical cutting is Beethoven and the methodology is both bibliographical and“interpretative”. One of the conclusions, is that, in the psychoanalysis and in the music it is possiblethe perception of a “other speech” that enlarges the limits of the comprehension and humanexperience.

Keywords: Music. Psychoanalysis. Unconscious. Trieb (pulsion). Creation.

O psiquismo humano se constitui noe pelo contato com o outro.

olitário, amargo, excêntrico, canhestro, um Tristão semIsolda, assim era Beethoven (1770-1827). Suas cartas,

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retratos, música, falam de um artista nascido em Bonn, filhode um medíocre cantor da corte local, como um indivíduocomplexo. Essa análise foi feita por Tovey, Thayer, Newman eSolomon, que afirmam entre outras coisas que, ao contrário deMichelangelo que suportou humilhações do papa, ao contráriode Haydn que durante a maior parte de sua vida esteve a serviçodos Esterházy e de Mozart que era obrigado a comer comcozinheiros, a nobreza é que se curvava ante Beethoven,suportando suas excentricidades, em nome da música.

Formado em companhia de um pai autoritário, alcoólatra, quedesejava explorá-lo como um “gênio do piano” a exemplo deMozart, era em favor desse projeto que Johann conduzia aeducação do filho, sacrificando seus estudos regulares em favorde um extenuante treinamento musical. Provavelmente esse fatodeve ter contribuído para tornar Beethoven uma pessoa amarga.Gozando sempre de poucas horas felizes como costumava dizer,seus estudos gerais1 foram interrompidos aos onze anos emprol da aprendizagem musical, esta sempre processada de formainteiramente desorganizada, ao contrário da educaçãosistemática conferida a Mozart.

Baixo, atarracado, rosto variólico, irascível, um “espanhol louco”como era chamado em razão da tez morena e do gênio violento2,Beethoven era freqüentemente tomado por crises de melancoliae fúria. Intransigência e insubmissão marcariam suapersonalidade, bem como um rigor moral e intelectual onde nãocabia a mentira e a hipocrisia. Ao longo dos tempos ele se ligou“a uma série de famílias como um filho ou irmão substituto”3, e adespeito dos sucessivos amores voltou-se sempre para a mulherinacessível. Mas ainda hoje emociona a história da Amada

Imortal, identificada por Solomon como Antoine Brentano.

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Sucedendo à morte do irmão Ludwig Maria, o primogênitofalecido com menos de uma semana de vida, Beethovensempre expressou o sentimento de não ser desejado nemamado. Ao lado dessa litania, sempre fez persistentes alusõesa doenças e depressões. Misturadas à raiva contra um paiviolento, autoritário e fraco, tais disposições se adensariamperto dos 20 anos quando, por improbidade paterna, foraobrigado a se tornar o mantenedor da família. Em VienaBeethoven disfarçaria sua difusa angústia psicológica “comuma postura irascível de artista orgulhoso, intransigente,forçado a lutar contra um mundo que não o compreendia”.4

Iniciando a vida como pianista, arrebatou os salões da nobrezavienense, classe à qual tanto aspirava pertencer. Por issonunca desmentiu a notícia de que era filho natural de Fredericoo Grande, rei da Prússia. A aspiração obsessiva à nobrezalevara-o a substituir o termo“van” do nome por “von”, na medidaem que “van”, predicado flamengo, nomeava apenas a regiãode origem do seu proprietário, e “von”, alemão, era denotativode nobreza. Essa impostura seria desfeita por ocasião de umaação levada ante um tribunal reservado aos membros danobreza5, pois não sendo um de seus pares, ele seria“obrigado a admitir sua origem não aristocrática”.6

Beethoven descobriria Plutarco, Homero, Platão, Shakespeare,na companhia da família Breuning. Conheceria Schiller eGoethe (seria até amigo pessoal deste último), e tomariaSócrates e Jesus7 por modelo.

Identificado com o avô8, seu “herói”, falecido quando Beethovenainda era bem criança, o temperamento retraído, a dificuldadeem aprender aritmética, a solidão sempre procurada, tudo

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contribuía para um refúgio na fantasia. E fantasias ele asrealizava com, na e pela música9. Mas ele nunca fora criançaprodígio como Mozart, nem tampouco compositor precoce. Comocompositor, diz Albrechtsberger seu antigo professor decomposição,“Beethoven nunca aprendeu e nunca aprenderácoisa alguma..[...] é um caso perdido”.10

Republicano, progressista, eterno revoltado, ele que tambémse considerava rei (“Eu também sou rei”), era tomado por fortesimpulsos criadores e costumeiramente dizia que tinhanecessidade de exprimir, de compor, de passar para as notas oque oprimia o seu coração, carecendo para isso de solidão. “Oartista carrega dentro de si a própria felicidade [...]. Vivo só,mas não me aflijo por isso, pois sei que Deus está mais perto demim que dos outros”.11

Quando de sua morte (1822) o cemitério de Wahring foi tomadopor uma pequena multidão de vienenses. Estes acompanhavamnão o enterro de algum rei, de algum monarca, mas o enterrode um plebeu, bisneto de padeiro, filho de alcoólatra, músicofamoso, glória nacional, patrimônio da humanidade.

Os problemas

Com uma vida atribulada por freqüentes agruras emocionaisBeethoven recorria a um exterior defensivo para dissimular umadebilitada sensibilidade a embates psicológicos. Acossado pelanecessidade obsedante de trocas contínuas deresidência12 (provavelmente uma metáfora de suas freqüentesmudanças de estado de espírito) e calculista como sempre,desde cedo começou a pôr dedicatórias em suas músicas,destinando-as a pessoas influentes.

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Exagerou-se muito a biografia de Beethoven com odesarrazoado de um destino trágico, misoginia e amoresdesesperados. O seu verdadeiro drama foi sim a surdez, deprofundas conseqüências psicológicas, levando-o às fronteirasdo colapso emocional e provocando, ao lado de pensamentossuicidas, o grito de desespero do seu Testamento de

Heiligenstad.

A partir dos 45 anos (1815) seriam somadas à sua históriamal-estares e preocupações advindas da tutela do sobrinhoKarl (1806-1858), “tomado” da mãe Johanna a quem Beethovendepreciativamente apelidara de Rainha da Noite, numaanalogia ao personagem de A Flauta Mágica, de Mozart. Naanálise de Solomon, a “captura” do sobrinho foi o modofantasioso que Beethoven encontrou de reparar sua própriasuposta ilegitimidade [...] e de se tornar o pai nobre de umfilho de plebeu13 . Ainda segundo Solomon, as atitudesconflitantes em relação a Karl e Johana advinham dorelacionamento que acabou por se estabelecer entre os três,suscitando uma forma de “casamento” e de “família”, em quenenhum dos integrantes gozava da necessária legitimidade.

Arrogante, contraditório, Beethoven açulava a nobreza (“Prefiroque me considerem um déspota que amigo de senhoresfeudais”) e ao mesmo tempo, incoerentemente, abjurava opovo: “A ralé devia ser separada das pessoas de classe maiselevada, e eu fui cair exatamente no meio dela”, afirmou certavez, negando-se a comparecer perante uma corte de justiça“juntamente com sapateiros e alfaiates”.14

A contradição também dominava seus ideais políticos: porvezes atacava o republicanismo e a democracia, por outras

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seus ataques eram dirigidos à oligarquia. Com isso levantavasuspeitas sobre a sua pessoa e motivava uma certa vigilânciada polícia vienense de Metternich. E de tal modo que, emdeterminado momento, a polícia imperial manteve discretavigilância sobre ele. Mas Beethoven não oferecia perigo algum,jamais ele fora um revolucionário como Wagner posteriormenteo fora, por exemplo.

Beethoven ardia de entusiasmo por Napoleão. Assemelhados,ambos possuíam quase a mesma idade e uma história de vidacomum: pequenos burgueses que alçaram à posição devencedores; gênios que se fizeram por si; forte ambição edesejo de poder (um na política, o outro na música); umaenergia feroz; conquistaram o “mundo” por meio do merotalento pessoal e provocavam o receio e admiração de todos.Assim, enquanto Napoleão se tornou o herói francês,Beethoven se tornaria o herói musical vindo da Renânia, um“Napoleão da música”. Foi a Napoleão que dedicou a Sinfonia

Eroica15 , composta por entusiasmo ao então cônsul Bonaparte.A decisão de rasgar a dedicatória quando este se coroaraimperador teria sido calculadamente política, dada que asituação vigente assim o exigia, garantindo a Beethoven odesejado passaporte à cidadania vienense.16

Todos esses problemas ressoam no processo criativo docompositor, haja vista que construções musicais não resultamde algoritmos; a vida do artista se enlaça ao processo decriação, imprimindo à sua produção um estilo pessoal, único.Mesmo porque o homem é produzido por sua história, seuambiente e seu psiquismo. Daí, se se reconhece acomplexidade da natureza de Beethoven, sua produção setorna compreensívelmente mais humana.

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Importa agora, no limiar dos 50 anos, refazer seu retratopsicológico. Inseparável dos Cadernos de Conversação17 quecomeçara a utilizar em 1818 em razão da surdez, Beethovenvive atormentado por queixumes físicos, dores abdominais,crises de bronquite, colite, estresse, hipocondria e crisesdepressivas. Totalmente surdo (ao que parece nos últimos dezanos de vida a surdez foi total), a acidez no trato com asautoridades era tolerada, graças a uma impunidade garantida,de um lado por sua celebridade e, de outro, pela fama de serconsiderado meio louco. Não que ele o fosse, mas a suspeitade que genialidade e loucura estão sempre intimamenteenlaçadas já vem desde os tempos de Platão. E a instabilidadepsíquica de artistas célebres com graves transtornos psíquicoscomo Van Gogh, Gauguin, Tolstoi, Rachmaninof, Tchaikovski,Schumann, sempre estimulou essa opinião. E de tal modo queo célebre escritor americano Edgar Alan Poe questionoumesmo se a loucura não constituía a forma mais elevada deinteligência.

Muito à frente do seu tempo musicalmente falando e nãosabendo lidar bem com problemas a não ser os musicais,Beethoven mergulha na solidão final. E ainda que a músicarepresentasse uma solução de compromisso, quando ocorriamconflitos mais exacerbados, algo mais forte impossibilitando a“transformação” das dificuldades em produção musical, suasforças eram então desviadas e consumidas na solução dosmesmos. Com menos libido à disposição para o habitualenvolvimento musical Beethoven mergulhava então naimprodutividade criadora. São estes seus famosos períodosde “inércia criadora”, registrando-se agora um intervalo de oitoanos estéreis, algo provavelmente nunca igualado na históriada arte em geral. Entretanto, a despeito de tudo Beethoven se

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recupera e se volta, sempre, para a música. O resultado é,entre outras obras, uma série de sonatas para piano,profundamente “íntimas” e meditativas, como o são as cincoúltimas.

Os freqüentes contrastes entre êxtase, esgotamento emudanças de humor seriam refletidos em suas obras porsúbitas mudanças de andamento, dinâmica, intensidade,densidade tímbrica. E isso na medida em que a criação musicalcontorna, encobre, disfarça conflitos e até representa um“mecanismo de defesa”, mas nunca os penetra, nunca osrevela, nunca os resolve.

O fim traria um apaziguamento emocional e a renúncia à lendada ascendência “nobre”, com os últimos meses de vidapropiciando reconciliações e sentimentos de amor.

Ao contrário de Haydn e Mozart, Beethoven jamais foi umcriador de músicas para a nobreza, não obstante muitas delasterem sido dedicadas aos nobres. Transformado em figurapública como até então jamais acontecera a qualquer outrocompositor, ele ajudou a difundir a idéia do artista herói, doartista patrimônio da humanidade. Ao final da vida se tornarapermanente e universal, a despeito de “ter passado de moda”.E tal como Shakespeare, sua morte “autenticaria” o salvoconduto de pertencer ao mundo inteiro!

A surdez

Frente a um Beethoven totalmente surdo emerge a questão:como ele compunha? ora, a música se processa em váriasáreas do cérebro e, na escuta por exemplo, o curso é o que

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segue: as ondas sonoras penetram no ouvido pelo pavilhãoexterno e são captadas por receptores sensoriais.O nervoauditivo conduz os impulsos nervosos do ouvido interno parao cérebro onde, no lobo temporal, na 1ª.circunvolução temporalesquerda, na chamada região de Wernicke18 (regiãoresponsável pelo conhecimento e posterior reconhecimentodos sons das palavras ouvidas), dá-se a percepção auditiva.Com o hábito de ouvir música o indivíduo, mesmo semnenhuma educação musical, acaba por desenvolver um sub-centro dentro da região de Wernicke, sub-centro responsávelpela compreensão e posterior reconhecimento dos sonsmusicais ouvidos. O funcionamento dominante dessa sub-região determina o chamado tipo auditivo a quem, paracompreender e evocar a música, basta imaginar-se ouvindo-a

mentalmente.

Com esclerose do ouvido interno como demonstra umdocumentado estudo de Francisco Hartung (“A surdez deBeethoven”, Revista Paulista de Medicina, 1946), frente aossons Beethoven podia não percebê-los da mesma forma queuma pessoa dotada de audição. Não obstante lograva imaginá-

los, além do que captava as vibrações sonoras pela pele,músculos, ossos, processo que lhe permitia “construir”internamente o som musical.

A exemplo da região de Wernicke tem-se no cérebro a chamadaregião de Kussmaul (no lobo parietal esquerdo, na prega curvaà esquerda), responsável pela percepção e compreensão dossinais gráficos lidos, desde que se receba instrução nessesentido. Com a aprendizagem e o hábito da leitura e escritamusicais o indivíduo acaba por especializar um certo númerode células dessa região, desenvolvendo um sub-centro dentro

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da região de Kussmaul, tornando-se com o funcionamentopredominante desse sub-centro, o chamado tipo visual, comumnos regentes. Para evocar e sentir a música basta imaginar-se lendo-a ou vendo-a escrita. Beethoven era tanto um tipo

auditivo quanto visual, o que lhe possibilitava “ouvir” o infinito,como dizia Victor Hugo. Surdo, ele compõe suas obras entãocom o esforço da imaginação e do pensamento.

O significante imaginário

Falar de Beethoven músico é salientar a existência de umadimensão inconsciente co-determinando a sua produção.Sofrendo a ação de várias linhas de força, umas que eledeterminou, outras que o determinaram, como sujeito, e naimpossibilidade de satisfazer plenamente o desejo (no sentidotomado por Freud19 ), Beethoven se volta à permanente tarefade realizá-lo na produção simbólica, o que significa dizer, nacriação de obras musicais. Daí a pertinência de um olhar àsua vida, como feito aqui.

Falar de Beethoven músico é também remeter sua produçãoàs circunstâncias práticas em que foi gerada, os modelos deque dispunha, as formas musicais existentes, astransformações por ele efetuadas.Tendo em conta esseselementos infere-se que, ao contrário de Bach, o matemático

da música, e de Mozart o poeta, Beethoven é o filósofo damúsica, dado que suas obras sustentam uma produção desentido filosófico ao lado de um conteúdo dramático-expressivo(obras intermediárias) tanto quanto de caráter meditativo,místico, abstrata (última fase), sem jamais deixarem de serco-moventes. Embora o idealismo de sua produção tenha sidotomado como “confusamente” romântico por muitos teóricos,

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a sua literatura testemunha um classicismo básico com o qualele constrói, com a experiência humana de dar sentidos, aexperiência simbólica da criação musical, sem qualquersubmissão a leis que lhe são externas. Sua produção absorveutodo o significado de vida que ele experimentava. Criandodentro da cultura a que pertencia e expressando assim seumundo interno, ele enriquece a civilização com suas obrasencontrando, na construção de um “significante imaginário” (osignificante musical), uma gratificação narcísica e um canalde escoamento para sua agressividade.

A música de Beethoven transcende a origem no compositor,na medida em que, mesmo resultando de expressão, suafunção é a de ser ela mesma. É assim que elas se voltam parasi, comentando o seu próprio fazer e exigindo que sejamolhadas em sua própria elaboração. O modo como Beethovendiz o que diz, a forma como constrói as redes de significação,a maneira como caminha de um significante a outro, a lógicainterna dos encadeamentos, a singularidade e inteireza da qualse nutre o seu trabalho de construção, tudo legitima umaprodução que acaba por encontrar em si mesma algo que aconstitua. Daí que o que sua obra exprime, diz respeito,musicalmente, à singularidade de uma estruturação formal, edeve ser pensada a partir desta. Por outro lado, o diálogo dossignificantes deslizando de um a outro revelam sempre umsentido expresso e outro latente, este último clarificado pelasucessão de um novo significante. É assim que Beethovenprovavelmente tornou suportável a si mesmo o vazio da falta,fixando pulsões a um representante e conferindo-lhes direção.

No caso da escuta, considerando que esta envolve obra eouvinte, cria-se em função desse diálogo uma desejada relação

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de alteridade no sentido tomado por Silvana Rea20 emTransformatividade (2000), com a obra beethoveniana falandonão só do outro (texto) mas do outro dentro de nós. Daí alegitimidade da afirmação, caiu na rede da escuta, é

significativo, tem sentido!

Objeto musical

Beethoven fez da música o seu objeto relacional21 . Compondo,ele reinveste o destino de suas pulsões, deslocando o objetivoprimacial da pulsão para um objeto de valor sócio-cultural,tornando-o o alvo pulsional. Compondo, Beethoven “criava”formas de existência, de subjetivação.

Ora, para a psicanálise, pulsões originam fantasias e isso jádesde o início. É como considera Melanie Klein22 , “já nonascimento há pulsões e relação”, com a pulsão incluindo a“fantasia de um objeto que a satisfaça”.23 Existindo em atuaçãosobre um objeto, a pulsão cria “tanto uma relação com este[...] quanto uma experiência emocional inconsciente na mentedo sujeito”.24 Daí, com o objeto atraindo e a pulsão investindo,Beethoven transforma o seu alvo em busca da satisfação.

De mais a mais as experiências corporais do bebê, vivenciadascomo fantasias, são experimentadas em sensações as quaisposteriormente podem assumir outras formas, como porexemplo, a forma de imagens sonoras, de imagens musicais,como aconteceria com Beethoven. Infere-se então que amúsica, para Beethoven, é objeto capaz de satisfazer pulsões.E é assim que ao longo do tempo ele procede aodesenvolvimento de um trabalho criativo, satisfazendosimultaneamente desejos agressivos, sexuais, anelos

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narcísicos e ... sentimentos estéticos! Propiciando um saberno qual ele reconhece ali seu lugar de sujeito, um sujeito quevive entre o mundo interno e o externo, com fantasias einspirações ocorrendo como relações entre ambos os mundos,Beethoven desenvolve o uso simbólico da música (escritamusical) e cria músicas com autonomia e propriedade, músicaque por seu turno são imantadas do “poder” de fazer emergir,com seus efeitos (ecos e ressonâncias), a verdade singulardo sujeito da escuta.

Com esse entorno tem-se que o inconsciente nutre a obra deBeethoven. E quando se diz que o inconsciente alimenta asua obra tem-se em conta duas razões: primeiro, que suaprodução contém sentidos e relações latentes que sedenunciam nas ressonâncias suscitadas na escuta; e segundo,as múltiplas possibilidades de percepção e de fruição dostraços (estilo) que marcam a sua produção. Assim comoBeethoven compositor possui uma vida psíquica própria, única,singular, assim também esta se presentifica em sua obra, adespeito dessa presentificação jamais resultar numcomparecimento direto. Ela se dá em função de fantasias esensibilidades, interesses, inspirações e referências queacabam por lhe direcionar a escolha dos temas, motivos,figuras e até do tratamento musical elaborado, resultando daíuma obra ímpar, única, capaz de suscitar estranhamentos.

Considerando por outro lado que na música o inconsciente seconstrói também na escuta entre compositor e receptor, tem-se a possibilidade de uma hipótese interpretativa, passível deelucidação através de análise perceptiva e musicológica (sese pensa em termos estritamente musicais abarcando o modo

como o compositor diz o que diz), e também uma hipótese

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interpretativa, passível de análise psicológica, se se atenta àsemoções que a obra motiva no receptor (sem esquecer que oinconsciente envolve também “fatores trans-individuais cujapresença é explicada de modo simples e eficaz pelo fato detodos estarmos inscritos na cultura e na sociedade)”.25

Por outro lado, embora a produção de Beethoven, uma vezconcluída, se assinale como alteridade e autonomia ondea”intenção” do compositor não goza de nenhum privilégio eonde o texto não apresenta um sentido único, o que significadizer que ela é multívoca e que sobrevive à subjetividade doseu criador, ainda assim a sua vivência tanto quanto a suaescritura “envolvem” marcas do criador/receptor (estilopessoal), possibilitando a singularidade de ambos.

A maioria das obras de Beethoven é inspirada em problemashumanos, bem diferentes daqueles que caracterizam a épocadas perucas empoadas. E o que dá especificidade à suacriação é exatamente o tratamento que ele confere à forma

musical, uma forma herdada por um lado e transformada poroutro.

Embrenhado em emoções, expressões e em sensações comseu viés de criação de sentidos, estas últimas se sustentamna própria imanência da matéria sonora: Sinfonia n.6, Pastoral,

1808. Nos rascunhos a obra receberia o título de Sinfonia

Característica: memórias da vida campestre. Por ocasião dotrabalho pronto Beethoven aporia a significativa observação:“mais expressão de sensações do que pinturas [...]”. O mesmose observa na Sonata Pastoral em ré maior op.28, que comolugar psíquico de constituição de subjetividade lhe possibilitariaencontrar, “na inscrição da pulsão no registro da simbolização

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e na reordenação do circuito pulsional, uma economia outra”,facultando-lhe “o trabalho de criação”.26 De inspiração idílica,a Sinfonia Pastoral evoca sensações bucólicas e “fala” de umBeethoven “andarilho”, tal qual o pai Johann. Esse éBeethoven, compositor que se faz fazendo, compositor que“inventa a si mesmo no fazer”.27

As suas sonatas (recorte adotado) trabalham relações entresignos, conjuntos, estruturas, potências significantes, som etempo, classes de discurso, desejos e fantasias. Como ametáfora é instrumento da narração, sendo Beethoven umcompositor tonal, metáforas e metonímias interagem no seutrabalho de necessidades expressivas, possibilitando-lhe, eao receptor, a fruição de um padrão psicológico de formas eimagens sonoras que fluem num plano tridimensional, ou seja,pensar a música além da significação. Estruturada nummovimento analógico de similaridades, contigüidades e tramasrelacionais, a lógica construtora de sua música traz e tornapresente a equivalência das imagens e formas sonoras. E aquiencontra-se um dos veios de proximidade música x psicanálise,no sentido em que a “fala” dessa música é essencialmentepoética a exemplo da “fala” do inconsciente, cujo tom, Freuddemonstrara (1905), é poético: o inconsciente fala e seu tom époético. Esse efeito poético “nasce do movimento que instauraa verdade na dimensão da singularidade absoluta ao mesmotempo [em que] inscreve-a nas determinações universais dopsiquismo humano, para além das variações impostas pelotempo e pelo espaço”.28

A fala da música é poética sem jamais constituir um discursocaótico. Ela é orgânica, racional (a despeito da ludicidade e“grãos de loucura” do criador), dadas as interferências

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(precisas no rigor) do processo secundário sobre o primário.De mais a mais, trazendo em certa medida a marca daopacidade o que lhe garante um alto índice demultissignificação, sua música se funda em procedimentostécnicos racionalmente aprendidos, além do que atende aexigências de sempre fazer sentido ao outro, na medida emque se endereça à alteridade.

Os temas marcadamente conflitantes das sonatas do2º.período, parecem representar alegorias pulsionais que,concebidas com traços narcísicos, encontram nesse trabalhouma via de satisfação, um tipo especial de prazer sustentadona reorientação (sublimação) de energias represadas nopsiquismo. Por outro lado a urdidura do tecido composicional,a condução da ação dramático-musical, a feitura de um ritmoharmônico respondendo pelo dinamismo das sensações deaceleração e desaceleração (Sonata em lá bemol maior), ojogo do apolíneo e dionisíaco (Sonata em dó maior, Aurora), atragicidade (Sonata Appassionata), a liberdade inflexional dopathos (Sonata ao Luar), o drama e jogo temáticos (Sonata

Patética), o bucólico e pastoril (Sonata Pastoral), o trabalhocompetente da organização do código enfim seduzem oreceptor, possuindo-o na própria escuta, levando-o a sedefrontar com o novo, com o original, com o prazer do inédito.

Dentro desse contexto o subjetivismo manifestado nacoexistência nada pacífica da dramaticidade e ironia, dacomplexidade e espontaneidade, luz e sombra, faz de suasobras um instrumento psicológico, uma atividade de expressão.Nesse sentido, aliás, ele foi o primeiro compositor a escreverpor inspiração e vontade próprias, a despeito de atender aalgumas encomendas.

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Analisando uma produção que, com exigências em torno deuma metalinguagem explora o duplo sentido, a tautologia, osjogos de sons, fragmentos escalares, postulados tímbricos,alturas, intensidades, densidades, texturas, infere-se que .amúsica de Beethoven é o que é, por que foi feita como foi

feita.

Clássicas, as sonatas do 1º.período são marcadas peloraciocínio tautológico, pelo trabalho de temas e figuras que sedão à contemplação de modo narcísico. Apolíneas,arquiteturais, despreocupadas como a época, virtuosístiscas,simétricas (Sonata em fá menor)29, seguindo as pegadas deHaydn e Mozart, elas desvelam já aqui algum traço da forçagranítica que marcaria a sua produção para todo o sempre.

Vivendo a importância atribuída por Kant ao indivíduo que vaiaparecer nele, como um aspirante a herói Beethoven se serveda sonata para concretizar esse vago ideal humano. É assimque começa a emersão de uma nota dissonante: a Sonata

Patética (1799)30, provocando um certo desassossego nasociedade vienense. Nessa obra que não significa patética nosentido acanhado do termo e sim cheia de pathos, desentimento, a intenção de Beethoven é “co-mover por meio damúsica”.31

Românticas, as sonatas do 2º.período (1801-1811) sãoacrescidas da poética da subjetividade, cuja linguagem cheiade claridade e tonalidades surpreendentes desperta em nóssentimentos ainda obscuros, não podendo serem apreciadassenão dentro da categoria do sublime. Com isso se querenfatizar uma dimensão “mito-poética” que também ésubentendida à psicanálise como considera Conrad Stein, a

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despeito de Freud sempre ter se considerado fundador de umaciência sustentada no modelo das ciências da natureza.

Nesse período Beethoven se compraz numa arte da expressão,procurando “representar” sentimentos íntimos e objetivandoressonâncias que possibilitem a percepção da música como“uma experiência física na qual [su]a alma (e a do receptor)seria transportada”.32 Com esse entorno ele abre o reino docolossal, do imensurável, ratificando a distinção entre sublimee belo. Vige o “significante imaginário”.

Explorando o estilo heróico, um entre os vários modelos queintroduz na música instrumental, e fazendo uso da oratóriadramática, Beethoven recorre ao tom de dó menor paraexprimir sentimentos capazes de induzir comoção: 5ª.Sinfonia,Abertura Coriolano, Concerto n.3 para piano e orquestra.

Inseridas na cultura a que pertencem, essas obras secaracterizam particularmente em termos de forma musical. Nassonatas Beethoven traz o drama do teatro para a música,trabalha a estrutura do pensamento dialético (tese/antítese/síntese), estrutura seus temas e desenvolvimentos numa redede metáforas e metonímias, e em todos os períodoscomposicionais jamais rompe com os princípios clássicos, massempre os transforma. É assim que, enquanto processosimbólico, a música lhe possibilita lidar com a ausência, como corte. E é assim que Beethoven “constrói” a cultura musical.

Possibilitando às suas obras irem além do descompromissadoclassicismo vienense ele dá voz a personagens que, comoexemplo do que acontece no psiquismo humano, pertencem àcategoria de personagens universais e permanentes. Seus

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dramas em movimentos de sonata, caracterizados peloprincípio do der kampf, simbolizam a própria dialética docompositor. Expressam um combate entre dois elementos, doistemas, dois personagens, um “contrariante”, rítmico, outro“implorante”, melódico, que no final, na reexposição, fundem-se numa mesma tônica, solucionando o conflito inicialmenteapresentado. Com a solução gera-se algo inteiramente novo,uma outra significação. Envolvendo uma estrutura depensamento infere-se então que o que norteia a forma-sonataé o desenvolvimento de um raciocínio capaz de gerar novasidéias, novo sentido, nova significação.

Penetrando no patético, no elegíaco, no revolucionário, nodramático (Sonata Patética), na repetição e diferença,Beethoven encontra na música um canal de expressão quepsicologicamente parece ter, sim! a função de restaurar anseios

narcísicos. Com esse sentido ele materializa o sublime. Abre-se o reino do colossal. Tratando de tragédias, lutas, vitórias,conflitos, (sempre os seus!), só umas três ou quatro de suasobras terminam tragicamente, como a Sonata Appassionata.

A mais romântica e mais dramática das sonatas do 2º. período,a Appassionata apresenta Beethoven no auge de sua forçacriadora. O pathos”33 da ordem do excesso, a força dramáticae o veio poético suscitam comparações com o Inferno de Dante,com o Rei Lear e Macbeth de Shakespeare, e com tragédiasde Corneille. Obedecendo a um plano rígido que disciplinasuas linhas de força, Beethoven trabalha contrastes em tornodo som e seus registros (grave, médio, agudo), dotando asonata de um caráter tímbrico que enfatiza o subjacente sentidosombrio e “aflito”.

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O lirismo beethoveniano é geralmente expresso pelo tom delá b maior,“ tonalidade emotiva” como lembra Cooper34,tonalidade que parece conferir intensidade particular àsdificuldades psicológicas inerentes às suas idéias musicais.Explorando modulações enarmônicas, contornando sons“construídos em redor de sua verdade”, percorrendo tonsmediânticos (Sonata Waldstein) caracterizando o que Toveychamou de “travessia do Rubicão”35 e expandindo limites(Sonata Appassionata), suas representações musicais seriaminvestidas da figura do herói, com Beethoven “se dizendo” dediferentes maneiras. Percorrendo os universais do nascimento,paixão, morte e ressurreição, o mito do herói para quem tudodá certo fala de um Beethoven sempre agarrando o destino

pela garganta. Esse estilo perderia sua razão histórica de sercom o fim das guerras napoleônicas, propiciando o surgimentodo um novo e último estilo, o pós-classico.

O período pós-clássico (1817-1827), precedido por uma fasede inércia composicional que se estenderia por vários anos,cede lugar à introspecção, sugerindo um novo compositor,voltado a diferentes religiões, cristãs, mediterrâneas, orientais,egípcias. Enredado no fazer musical Beethoven expressa umafé religiosa que se traduz numa música de caráter meditativo

e metalingüístico.

Essa mudança se denuncia no recitativo instrumental, nasonoridade áspera, na polifonia instrumental dura, no uso demodos eclesiásticos, nos ritmos pontuados, na exploração deelementos com conteúdo simbólico, com as “imperfeições”técnicas (atribuídas à surdez) ainda mais acentuadas. Nadade dramas, elegias ou cânticos de triunfo. A música agora éabsoluta, “transcendente” ainda que poética, metalingüística,

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sublinhada por um certo escape às condicionantes exigênciasde ordem, harmonia e equilíbrio ligadas à visão tradicional dobelo, a despeito da estrutura clássica de algum modo sempreestar presente. Algumas dessas composições nem parecemdestinadas à execução e sim à leitura. E de tal modo que parao compositor contemporâneo Pierre Boulez, a pujança virulentado contraponto nas últimas obras de Beethoven representouum perigo para o Sistema tonal.36

Explorando técnicas e formas arcaicas, voltando os olhos aobarroco que de forma semelhante à lógica do inconsciente éafeito ao paradoxo; fazendo uso “sinfônico” do piano, orientadopor uma nova concepção de belo; gerando uma polifonia cadavez mais densa, desenvolvendo um sentido de gestalt ealçando às alturas de uma música extra-mundana, nessasúltimas sonatas (verdadeiras sinfonias) Beethoven indica ocaminho para o abandono das leis básicas de música em vigorpor centenas de anos. O que comove nessa produção é a“faculdade” de afetar a sensibilidade do receptor que acabapor se deixar “arrastar” para além dos sons. Beethoven fazmúsica de foro íntimo e volta ao geometrismo musical. É assimque ele se universaliza e se perpetua tornando-se um mito,nutrido da representação idealizada que então se faz dele ede sua obra, marcada por duas dimensões, uma universal euma individual.

Tentando uma aproximação entre sujeito e objeto, nessa últimafase Beethoven “percorre” a poética barroca da imaginação,tanto quanto posteriormente seria explorada a alegoria nosartistas modernos. Está-se aqui no universo, não mais dacontradição ou da luta entre opostos como na fase heróica,mas no universo do metafísico, com o compositor acolhendo

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idéias diferentes, sem exclusões ou sínteses, o que também éencontrado em manifestações do inconsciente. Embora sema paixão e turbulência que a arte barroca incita, o que significadizer, sem comportamentos passionais, o infinito do ser daescuta se move agora na finitude do movimento sonoro, numarelação com o que o transcende.

Com as cinco últimas sonatas (Op.101, 106, 109, 110, 111)Beethoven aponta a modernidade. Estas sonatas de sabormetafísico e metalingüístico se fazem trazendo em si suaspróprias regras, com a poética da construção aliando-se àpoética da expressão. Nelas Beethoven se esvazia datragicidade, assume o exercício da metalinguagem e apresentauma intensificação ao hermetismo e à liberdade de criação. Ouniverso de suas necessidades continua intermediado pelodas representações, com sua produção carregando consigouma rede de elementos que possibilitam situar o Outro a quemse dirige. Ele não se encontra no mundo da contradição, masno mundo do paradoxo, acolhendo idéias antagônicas semexclusões ou sínteses, como acontece nas manifestações doinconsciente. Na lógica do paradoxo a qual de algum modoatrai Beethoven, ele procura situar o infinito do ser na dimensãofinita da natureza, na dimensão finita do humano, tendo comoreferência o caráter aurático, impossível de ser esgotado emsua contemplação.

As cinco últimas sonatas37 são o verdadeiro legado queninguém naquele tempo compreendeu, embora a escuta dessepatrimônio se processasse sempre dentro do mais absolutorespeito. Sem dramas, essas obras “falam” de um mundoíntimo, pessoal, vivenciado num contraponto cerrado e deexpressão enigmática. Todo o século XIX considerou essa

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música difícil, esquisita, incompreensível. Hoje, entretanto, jánão se pensa assim. A aspereza do som e a complexidadecontrapontística utilizadas resultam, sim, das concepçõesnovas de um mestre dos grandes invernos, um mestre quealcançou a “maturidade psíquica”.

Dentre esses monumentos emerge A Sonata Op. 106,

Hammerklavier38, dominando a música do séc. XIX, a músicaprogramática de Berlioz, a música dramática de Wagner e amúsica absoluta de Brahms como diz Carpeaux.39 Constituindoa mais longa de todas, ela levantaria uma tempestade deprotestos, incompreendida que foi por seus “desnorteados”ouvintes. Obsessivamente concentrada, monstruosamenteampla, escandalosamente difícil, ela seria no futuro defendidacom entusiasmo por Wagner. O uso quase obsedante de 3as.descendentes com uma determinação nunca antes ouvida naliteratura musical, a mescla de classicismo (Allegro) comfantasia e pathos romântico (Scherzo e Adágio), a mestria comque o tempo musical é trabalhado, o decidido desafio dosacordes iniciais, as páginas de resignação do movimento lento,o poema trágico, sombrio do Adágio sostenuto ( 3º movimento)suscitando a sensação de se estar contemplando a dor deBeethoven em intimidade profunda com o teclado, o conteúdotrágico do último movimento terminando numa grandiosa fugaa 3 vozes e a série de trilos, construídos de forma orgânica etímbrica, simbolizam a quinta essência da função poética namúsica.

Combinando o princípio do processo formal com umarecorrência polimorfa, a Hammerklavier arrasta tudo consigo,as intenções de Beethoven, a surdez, o livro de anotações,“biografia”, idéias, montagem. É assim que ele encanta e

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fascina, tomando de assalto o ouvinte com a nudez icônica,material, formal e expressiva de seus significantes.

Esse o Beethoven pós-clássico cuja música, marcada por umaestética metafísica se justifica por si. Vivido em meio a gravesproblemas com o sobrinho Karl, o estilo pós-clássico éelaborado com materiais não identificáveis em seusantecessores. Caminhando em direção ao infinito que nuncaseria atingido Beethoven faz música pura; opera um efeito desentido que autoriza a percepção de significantes, esimultaneamente desvela os temas da maneira “como [o] sonhomanifesto – (n)uma simples e condensada seqüência deimagens, mascarando uma infinidade de pensamentos dosonho latente”.40

Com um trabalho de contração, expansão, obliteração, gerandoum estilo de feição simultaneamente arcaica além deprenunciador do futuro, é desse modo que Beethovenintensifica o sentido da emoção e funda o suporte da coerênciade um saber condensador de representações, materializandouma subterrânea corrente de misticismo e determinando osnovos rumos da música.

Lembrando João A. Frayze-Pereira41,

Se os artistas são sedutores [...] é porque foram vítimas de uma seduçãoprimeira, exercida pela própria linguagem. Nesse sentido, é pela viadesviante da poesia, da pintura, da escultura (e da música, acrescento),que o pesquisador-teórico encontrará junto ao artista matéria-primatambém para pensar um encaminhamento para a tensão sujeito-objeto,para a questão da alteridade e da intersubjetividade que,essencialmente, acredito, é uma questão central também da Psicanálise,desde as suas origens.

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Notas:

1 Beethoven nunca passara da escola elementar. E mesmo aí foi um aluno sofrível.2 É possível que tenham existido traços de sangue espanhol no compositor, haja vista que osBeethoven eram belgas pelo lado paterno e os espanhóis ocuparam a Bélgica no século XVII. InTHOMAS, Henry e Dana Lee. Vida de Grandes Compositores. RJ: Ed. Globo, 1952, p. 62.3 SOLOMON, Maynard. Beethoven. RJ: Zahar, 1987, p.122.4 LOCKWOOD, Lewis. Beethoven: a música e a vida. SP: Códex, 2004, p.25.5 SOLOMON, op.cit, 130.6 Nessa ocasião Beethoven fora coagido a admitir sua origem não aristocrática ante o Lanchechet(tribunal destinado à nobreza), onde então corria um processo seu contra a cunhada Johanna,mãe de Karl.7 Todos os que conheceram Beethoven afirmam que ele era ateu. Entretanto, uma vez já maisvelho ele afirmara: “Meus modelos foram Sócrates e Jesus”. In LUDWIG, Emil. Beethoven. SP:Companhia Editorial Nacional, 1960, p.177.8 A forte identificação psicológica com o avô paterno, diz Solomon (1987: 39) “pode muito bemrefletir um repúdio do pai. A criança poderá conviver com uma imagem insatisfatória de seu pai,idealizando seu avô”.9 Para Freud, aliás, desejos insatisfeitos são a força motriz das fantasias; cada fantasia contéma realização de um desejo e melhora uma realidade insatisfatória.10 THOMAS, Henry e Dana Lee. Op.cit., p. .61.11 Id, p.68.12 Beethoven trocou de residência umas quarenta vezes em sua vida.13 SOLOMON. op.cit., p.329.14 In LUDWIG, Emil op.cit, p.202.15 Sinfonia n.3, em Mi bemol (Eroica), op.55. Inicialmente ela foi chamada Sinifonia Grande.Intitulada Bonaparte (1804). O título Eroica só seria usado a partir de outubro de 1806.16 Dedicada inicialmente a Bonaparte, é possível que o incidente da folha rasgada tivesse sidoprovocado por motivos políticos. Afinal, a expressão Eroica substituíra a dedicatória a Napoleão,o que ocorreu na época em que Bonaparte derrotara os austríacos, submetendo-os à humilhantepaz de Pressburgo. Seria inadmissível um compositor alemão dedicar uma Sinfonia a um inimigonacional. De mais a mais Beethoven era professor do arquiduque Rudolph, estando a serviço dosHabsburgos, o que tornava imprudente uma homenagem a um inimigo.17 Com a surdez Beethoven passou a se comunicar através dos chamados Cadernos deConversação.18 A região de Wernicke responde pela compreensão da linguagem falada e situa-se atrás daorelha. Já a região de Broca compreende o centro de produção da linguagem e está situada atrásdo olho.19 REA, Silvana. Transformatividade. SP: Annablume/ FAPESP, 2000, p.4120 Embora Melanie Klein compartilhe algumas das idéias de Freud, ela acabaria por tomar umcaminho diferente, desviando o foco da pulsão para os sentimentos.21 In REA, Silvana. Op.cit, p. 45.22 Id, p.43.23 In MEZAN, Renato op.cit., p.377.24 BARTUCCI, Giovana. 2002, p.13.25 MINERBOI, Marin. In Silvana REA. Transformatividade, 2000, p.214.26 MEZAN, Renato. Freud, pensador da Cultura. SP: Brasiliense, ‘1985, p.211.27 Sonata para piano n.1, em fá menor, op. 2 (1795).4 movimentos: I Allegro, II Adágio, III Menuettoallegretto. Prestíssimo.28 Sonata para piano n.8, Patética, em dó menor, op.13 (1799). 3 movimentos: I Allegro molto conbrio, II Adágio molto, III Finale. Prestíssimo.29 BUCH, Esteban. Música e Política: a Nona de Beethoven. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p.39.30 LOCKWOOD, Lewis op; cit., p. 204.

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31 Appassionata foi nome dado à Sonata pelo editor hamburgês Cranz.32 COOPER, Barry (org.), p.269.33 In COOPER, op.cit, p.218.34 BOULEZ, Pierre. Apontamentos de Aprendiz. S P: Perspectiva, 1995, p.22735 Sonata para piano em Lá maior, op.101; Sonata em Si bemol maior, op.106; Sonata em Mimaior, op. 109, Sonata em Lá bemol maior, op.110 e Sonata em Dó menor, op.111.36 Sonata para piano n.29, em si bemol maior, op.106, Grosse sonate für das Hmmmaerklavier(1818), conhecida simplesmente como Hammerklavier.37 CARPEAUX, O. M. Uma nova História da Música. R J: Ediouro, s/d, p.13938 SOLOMON, Maynard. op.cit., p.403.39 In REA, Silvana. Op.cit, p.16.

Referências bibliográficas:

BARTUCCI, Giovanna (org.). Psicanálise, Arte e Estéticas de Subjetivação. Rio de Janeiro: Imago,2002BOULEZ, Pierre. Apontamentos de Aprendiz. S P: Perspectiva, 1995.BUCH, Esteban. Música e Política: a Nona de Beethoven. Bauru, SP: EDUSC, 2001.CARPEAUX, O. M. Uma nova História da Música. R J: EdiouroCOOPER, Barry (org.). BEETHOVEN. Um compêndio. Guia completo da música e da vida deLudwig van Beethoven. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.LOCKWOOD, Lewis. Beethoven: a música e a vida. SP: Códex, 2004.LUDWIG, Emil. Beethoven. SP: Companhia Editorial Nacional, 1960.MEZAN, Renato. Freud, pensador da Cultura. SP: Brasiliense, 1985.MINERBOI, Marin. In Silvana REA. Transformatividade, 2000. SP: Annablume/ FAPESP, 2000.REA, Silvana. Transformatividade. SP: Annablume/ FAPESP, 2000.THOMAS, Henry e Dana Lee. Vida de Grandes Compositores. RJ: Globo, 1952.

Maria de Lourdes Sekeff: É Doutora em Música (UFRJ). Livre-Docente e Professora Titular(UNESP). Musicista e Pesquisadora, lidera Grupo de Pesquisa Institucional. Possui formaçãoem Música (UFRJ), Filosofia (UFRJ) e Pós-Graduação também em Comunicação e Semiótica(PUC-SP). Criadora/fundadora do Movimento Nacional Ritmo e Som (UNESP). Autora dos livrosDa Música, seus usos e recursos. SP: Unesp, 2002 e Curso e Discurso do Sistema Musical.SP: Annablume, 1996. Organizadora juntamente com o prof. Edson Zampronha dos livros ARTEe CULTURA: Estudos interdisciplinares. SP: Annablume/ FAPESP, 2001, 2002 e 2004. Durantequatro anos escreveu sobre música no jornal O Estado de São Paulo.

e-mail: [email protected]

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A

O “ATALAIA DA FÉ” CONTRA AS MÁCULAS DOSÉCULO: O MISSIONÁRIO MÚSICO ÂNGELO DESIQUEIRA.

Diósnio Machado Neto

Resumo: A mais antiga fonte musical brasileira é paulista, datada de meados de 1730. Atravésde um estudo de caso sobre o mestre-de-capela Ângelo de Siqueira, principalmente em fontesprimárias, o artigo discutirá a conjuntura sócio-cultural que permeava o exercício da arte na regiãomeridional do Brasil, na época referida. O foco do estudo é a questão étnica que envolvia ovínculo na sucessão e conquista das provisões para o mestrado da capela, regido pelos cristãos-novos paulistas, assim como os desdobramentos desse fenômeno no decorrer do século XVIII.Ângelo de Siqueira é considerado como agente de difusão de práticas religiosas que envolvem,inerentemente, questões musicais. Como missionário, o padre-músico percorreu toda a regiãocentro-sul do Brasil, do Rio Grande a Cuiabá, intervindo e absorvendo as formas nativas deefetivação do culto católico. O problema se configura como importante aspecto para questõessobre a formação dos acervos musicais setecentistas, assim como sobre as práticas culturaiscoevas.

Palavras-chave: Ângelo de Siqueira. Música colonial brasileira. Cristão-novo. História da Igreja.

Abstract: The oldest Brazilian musical sources known today are from São Paulo state, datedfrom the mid-1730s. Based on a case study on the chapelmaster Ângelo de Siqueira, dealingmostly with primary sources, this article discusses the socio-cultural context of music making inmeridional Brazil during the aforementioned decade. It will focuses on the ethnic issues that involvedthe succession and provisions for the chapelmastership, controlled by the new-Christians, as wellas the development of this phenomenon throughout the eighteenth century. Ângelo de Siqueira isconsidered here as an agent of dissemination of religious practices that implied musical issues.As a missionary, the priest-musician went on expeditions all over the region from south to mid-western Brazil, from Rio Grande to Cuiabá, adjucating and concurrently absorbing the nativeforms of rendition of the Catholic cult. This is a very important matter for the formation of eighteenth-century musical archives as well as for the understanding of coeval musical practices.

Keywords: Ângelo de Siqueira. Brazilian Colonial Music. New Christian. Church History.

principal fonte musical brasileira da primeira metade doséculo XVIII é oriunda de São Paulo (cf. DUPRAT, 2003,pp.76-9). Entre os inúmeros aspectos já amplamente

debatidos, o singelo acervo mogiano ilustrou com sons o

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considerável conhecimento historiográfico sobre músicos eorganização da arte no Brasil meridional, em datas anterioresà intensa produção musical mineira.1 Nos diversos textosproduzidos ao longo de aproximadamente 40 anos por Duprat,fica evidente que as práticas musicais paulistas não eramtímidas nem tampouco desarticuladas, como chegou a imaginarFrancisco Curt Lange (1966, p.18). São Paulo evidentementesofria os rigores da política metropolitana portuguesa, voltadaprincipalmente para o desenvolvimento do litoral, porém estavalonge da inatividade resultante da distância dos principaiscentros econômicos da colônia, ou da indolência dos“mamelucos aventureiros”. Como mostraremos adiante, amúsica paulista até meados do século XVIII, articulada ao redordo clã Lopes de Siqueira, constitui-se nos vícios e virtudes doexercício da arte no Brasil, distinguindo-se, hoje, apenas pelariqueza das fontes historiográficas disponíveis.

A família Siqueira foi um firme tronco da música paulista daprimeira metade do século XVIII. Três músicos dessa linhagem,Manuel Lopes de Siqueira (pai e filho)

2

e Ângelo de Siqueira,se sucederam no mestrado da capela da matriz de São Paulo,de 1681 a 1733. Foram ao todo 52 anos de predominânciasobre a arte paulista, que se desdobraram em inúmeros alunos(DUPRAT, 1995, p. 26), relações religiosas e políticas que comcerteza consolidaram uma tradição musical, já em parterevelada pelos Papéis de Mogi.3 Para ilustrar o dito, podemosconsiderar desde fatos singelos: a coexistência de FaustinoXavier do Prado na matriz de São Paulo sob o compasso deÂngelo de Siqueira (o que poderia justificar determinadasquestões estilísticas da música mogiana, seja pelo uso oucomposição autônoma); como estruturas mais complexas: ofato do cabido paulistano no decorrer do século XVIII ter se

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formado em grande parte com elementos oriundos da escolade música dos Siqueira.

O presente texto presume justamente aprofundar-se nessecenário, discutindo através de um estudo de caso ascaracterísticas e potencialidades referentes à atividade musicalem épocas remotas do século XVIII. Trataremos de questõescomo a articulação da profissão em São Paulo e sua vinculaçãocom os cristãos-novos; a conversão dos músicos ao estadoeclesiástico, nos idos da década de 1720; o intenso trânsitodos músicos paulistas em muitas paragens do territóriomeridional, principalmente de Ângelo de Siqueira,potencializando um dinâmico intercâmbio de valores (culturaise materiais); e por fim a inserção desses profissionais nasaltas esferas de decisões na colônia, principalmente nosbispados, durante todo o século XVIII.

Realizaremos a articulação desses problemas através dasamplas fronteiras do caso Ângelo de Siqueira. A trajetória dopadre-músico paulista, nascido em 1707, concentra inúmeraspossibilidades de análise histórico-cultural: foi mestre-de-capela licenciado; “compositor de solfas” e professor de ditaarte; conseguiu licença para representar causas jurídicas diantedos tribunais cíveis, sem ter cursado Leis na Universidade deCoimbra; Juiz dos Resíduos dos tribunais eclesiásticos; oradorpredileto da Câmara de São Paulo; missionário apostólico,viajando por quase toda a região centro-sul do Brasil, assimcomo regiões de Portugal e Espanha. Além disso, edificoucapelas, organizou e dirigiu Seminários, como o da Lapa, noRio de Janeiro, e, por fim, legou seis livros de devoção queconstituem fontes preciosas para o estudo da religiosidadepopular no século XVIII, entre eles, o famoso livro Botica

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Preciosa, de 1754. Sua vida constou das preocupações deilustres historiadores, como Sérgio Buarque de Holanda.Tornou-se, ademais, tema de monografias de Alberto Lamegoe do Cônego Paulo Florêncio da Silveira Camargo (1951, pp.13-115), ambas explorando a esfera religiosa. Em suma, adensidade histórica desse personagem funda a nossapreocupação desde agora manifesta.

Os cristãos-novos e a prática da música em São Pauloseiscentista

O mestrado de Manuel Lopes de Siqueira (1661-1718) iniciou-se no ano de 1680.4 No período em que esteve à frente dacapela da matriz paulistana (1680-1718), o músico construiuuma ampla rede de circulação social que expandia muito osestreitos limites de atuação a que nos acostumamos ver osprofissionais da área, no final do século XVIII. Lopes deSiqueira não somente conseguiu uma reputação queatravessou as fronteiras de São Paulo, como se projetou nasucessão do mestrado da matriz paulistana.5 O prestígio domúsico era tal que os dois seguintes mestres-de-capela damatriz paulistana foram seus próprios filhos: o padre ManuelLopes de Siqueira (1692–1725) e o celebrado padre Ângelode Siqueira (1707–1776); eles atuaram no mestrado de 1718a 1725, e de 1725 a 1733 (CAMARGO, 1953, p.353, vol. 3),respectivamente. Outro filho seu, José Ribeiro de Siqueira(DAESP, Inventários do 1º Ofício de Notas de São Paulo, ord.699, doc. 14657), também era mestre-de-capela, além deescrivão dos órfãos (SILVA LEME, 1905, p.249, vol. 6), davizinha vila de Santana do Parnaíba. O conforto profissionalque Lopes de Siqueira legou aos seus filhos, no entanto, erauma pequena parcela de suas possibilidades. Isso porque o

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músico constituiu um patrimônio considerável, até mesmoinvejável para os padrões da época, considerando as pessoasprincipais da cidade.6 Siqueira era credor de importantesfamílias, o que era capitalizado mais como crédito social doque como lastro pecuniário; possuía peças de ouro,escravatura, “administrados do gentio”; enfim, incorporava bensincompatíveis com a função de mestre-de-capela, masfundamentais para o trânsito entre os “homens principais davila”.

Considerando o soldo estipulado pela Real Fazenda ao mestre-de-capela da Sé paulista em 1745, 40$000 anuais, podemoster a dimensão da disparidade dos bens de Manoel Lopes.Para levantar a soma declarada no seu inventário ele deveria,no mais simples cálculo, acumular integralmente seus ganhosdurante 39 anos, fato pouco provável quando se uma proleconsiderável (sendo todos os homens alunos do Colégio dosJesuítas); mesmo assim isso não se efetivaria, pois trabalhou“apenas” 38 anos na função. Ao poder emprestar altas somasde dinheiro vemos, também, que possuía facilidade de liquidezeconômica. Portanto, por todos os ângulos, o acúmulopatrimonial de Lopes de Siqueira nos orienta a outros vínculosque não passariam, diretamente, pela atividade como mestre-de-capela. Em tese, o capital do músico poderia estarassociado a um patrimônio já herdado do pai mercador ouconstituído através de benefícios advindos de uma redebastante dinâmica de influências nas altas esferas de SãoPaulo.

Manuel Lopes de Siqueira era presente em inúmerasirmandades, o que não era incomum às pessoas de certaposse. Chegou a ser membro da mesa diretiva da Irmandade

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São Miguel e Almas (DUPRAT, 1995, p.27)7, porém é poucoprovável que essa atuação fosse um diferencial, somado aomestrado da capela, na constituição do dito patrimônio. Sobraentão uma segunda hipótese: o músico participaria ativamenteem uma comunidade coorporativa que concretizasse inúmerasoperações sociais que justificariam o elevado pecúlio. O vínculoa um núcleo social específico, rígido e associativo, promoveriainúmeras possibilidades de consolidação profissional e dealargamento das possibilidades de acúmulo financeiro. Ofenômeno caracterizava-se através da administração de bensde irmandades, contratação de serviços junto ao Senado daCâmara, incorporação de benefícios régios, enfim, na aquisiçãode relações estreitas com a circulação monetária da sociedadepaulistana; o próprio cargo de mestre-de-capela poderia estarassociado a esse “trânsito”. No caso de Lopes de Siqueira oseu sucesso poderia estar vinculado ainda a sua ascendência:os judeus convertidos, ou cristãos novos, que chegaram a SãoPaulo nas primeiras movimentações coloniais e nessa terracriaram profundas raízes nas instâncias de poder.8

Segundo José Gonçalves Salvador (1988, p.3), um quinto dapopulação portuguesa seria de hebreus, na época do édito deDom Manuel que forçou a conversão da etnia, em 1497:

Para o Brasil não foram poucos os que vieram uma vez iniciada acolonização, tanto que em 1649 objetavam os inquisidores do Reino aD. João IV, a propósito da criação da Companhia Geral do Comércio,cujos acionistas eram da referida etnia. Que, se com isso se pretendiaconservar intacta a religião católica nas conquistas, [...], menos seconseguiria por semelhante processo, ‘visto serem os habitantes delasna maior parte da nação hebréia’ (apud, Ibidem).

Seria necessário lembrar que o sentimento católico, somadoao interesse comercial vinculado à comunidade dos cristãos-novos provocaria um julgamento exacerbado. No entanto,

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Salvador demonstra que, na Capitania de São Paulo, acomunidade judaica era deveras importante. Inúmeras foramas manifestações que encontraram na região um povo“indômito e suspeito na fé, ‘muchos de ellos son cristianosnuevos’” (apud Ibidem, p. 3). Outras referências se dirigiam àpopulação paulista como “infetada de judaísmo” de tal formaque o próprio Rei Felipe IV, II de Portugal, foi alertado paramanter os índios nas reduções, por haver “no una gravilla dejudios congregados en aquel paraje” (apud Ibidem, p. 3).

A mais contundente manifestação da etnia dos Siqueira estános processos de “genere et moribus”9 de Ângelo de Siqueira(ACMSP, PHGM, nº1-8-120) e Lopo Rodrigues Ulhoa (Idem,nº 1-4-74), primos irmãos. Nele, a ascendência hebréia deManuel Lopes de Siqueira se revela como impedimento.Inúmeras testemunhas participantes do inquérito eclesiásticoimputaram à avó Esperança da Mota o título de cristã-nova. Opróprio vigário da matriz de São Paulo, Bento Curvelo Maciel,estendia a qualificação a Manuel Lopes da Siqueira:

Sempre ouvi rumor que o pai do justificante chamado Manuel Lopes deSiqueira, já falecido, era cristão-novo, cujo dito não posso, com verdade,certificar, porque além de não ser natural desta cidade [Manuel Lopesde Siqueira teria nascido na Vila de Santos] poderá resultar de algumavoz vaga argüida por algum malévolo, assim como padeceram a mesmanota muitas famílias desta sobredita cidade moradoras, as quais seacham hoje purificadas” (ACMSP, PGM, nº1-8-120)

Interessante declaração, pois o vigário deixou nota dúbia sobreo caso, alegando que a fama poderia ser maledicência, e mais,isso seria incomum em São Paulo. Poderiam as vozes oficiaisrevelar, em época de um crescente puritanismo na sociedadeportuguesa, o fato do mestre-de-capela da matriz paulistanaser cristão-novo e ter durante tanto tempo atuado comofuncionário da Igreja, com anuência de inúmeros vigários10? A

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dúvida do padre Curvelo é desvelada no decorrer do processo,pois até mesmo pessoas próximas à família, como oscompanheiros de cantoria Francisco Cunha e Estanislau deMoraes (filho de um antigo músico paulistano, Luiz PorratPenedo), não deixaram dúvidas sobre as reminiscências decristão convertido no sangue de Ângelo, por parte paterna.

Ângelo de Siqueira lutou anos contra essa mácula. Sua“liberação” para as ordens eclesiásticas ocorreu apósapresentar um documento histórico com a genealogia dafamília, a nobilitate probanda. Dito documento foi “resgatado”por Lopo Ribeiro nos antigos códices expedido pelo juizordinário de São Vicente, nos idos de 1623. O juiz em questãoera Diogo Moreira, que por coincidência foi o primeiro mestre-de-capela com provisão da capitania11 . Somente um detalherevela a trama...Diogo Moreira era filho de Isabel Velho e JorgeMoreira, família unida em consórcio com pessoas “da nação”,como Luis Gomes da Costa, irmão do tronco da qual ascendemos Siqueira. Fecha-se um intrincado círculo de proteção, ondeduas famílias, os Costa-Mota e os Moreira-Velhocompartilharam, durante o século XVII, o problema do sanguee da estratégia de ocupação de cargos importantes, entre eleso de mestre-de-capela. Como diz José Gonçalves Salvador:“É certa, outrossim, a mácula dos eclesiásticos descendentesdos Gomes da Costa [Esperança, avó de Ângelo de Siqueiraé uma das Costa], e dela não escaparam diversos filhos deSão Paulo” (SALVADOR, 1969, p.39)

Seguindo a genealogia a seguir podemos perceber a uniãoentre essas famílias de comprovada etnia hebréia, cujas raízesestariam nos imigrados portugueses (sefarditas) Estevão,Martim e Luiz Gomes da Costa. Silva Leme (1905) assevera

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que Estevão foi casado com uma filha de Martim Afonso deSouza, cuja geração associou-se à família Mota. Seu irmãoLuis uniu-se com uma filha do capitão-mor de São Vicente,Jorge Moreira, como revela José Gonçalves Salvador (1969,p.43):

Aparece [Luis Gomes da Costa] identificado como cristão-novo navisitação do Santo Ofício em 1595. Uma de suas pretendentes aocasamento recusara-o por aquele motivo, conforme disse Antônio deLeão, companheiro do pe. Pero Leitão a Ana Tristão, comadre da mãeda jovem. Casou, porém com Ângela Moreira, filha do capitão-mor JorgeMoreira e de Isabel Velho, dos Garcia Velho.

A união dos Costa com os Moreira-Velho provavelmente nãofoi fruto do acaso. Um descendente da família, homônimo dovigário da matriz de São Paulo no início do século XVII, GarciaRoiz12 , recebeu em 1662 impedimento por impureza de sangue(Ibidem, p.17). A alegação costumeira de “raça infecta” recaiuna sua bisavó materna, mãe de Isabel Velho casada com GarciaRodrigues. Em suma, o matrimônio entre essas famílias indicarelações veladas onde a etnia alinhavava uma complexa redecujos vínculos transcendiam os encontros da crença e seexpandiam para uma estratégia de atuação públicacorporativista.

Entre as ocupações relacionadas com as famílias em questãovemos um considerável potencial para a proteção contra asperseguições e impedimentos, através da forja de documentosoficiais ou inserção nos círculos de poder da sociedade local.Elementos da progênie hebréia controlaram tabelionatos,incorporaram-se na Igreja ou na administração régia em altospostos, como juízes e vereadores. Em suma, o esquema parafalsear provas visando constituir “limpeza de sangue” nasinquirições de “genere” estaria, em tese, arquitetado.

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Outrossim, a “acomodação” dos pares era conseguida poraqueles que já estariam no sistema.

Um número considerável de eclesiásticos descendem dasfamílias citadas acima, o que também chama a atenção é aprática da arte da música. No tronco dos cristãos-novospaulistanos, vemos os mestres-de-capela Diogo Moreira(provisão de 1599); o seu sobrinho bisneto João de RoxasMoreira (provisão de 1669); e a Família Lopes de Siqueira, daqual destacamos quatro mestres-de-capela (Manoel Lopes deSiqueira filho e sua geração: Manoel, José Ribeiro e Ângelo)e inúmeros músicos como: Antônio Raposo de Siqueira; osirmãos Lopo Rodrigues Ulhoa, Antônio Lopes de Gusmão;Francisco Lopes Ribeiro; Antônio Muniz Mariano (sobrinho deManoel Lopes de Siqueira filho) e Ângelo Ribeiro do PradoSiqueira (filho de José Ribeiro de Siqueira) - *Veja diagrama

O discipulado dos Siqueira é evidente, logo o vínculodoutrinário seria natural e inerente. No entanto, o cenário seenriquece na medida em que se percebe uma relação estreitade aprendizado entre as gerações mais antigas, o que forjariao nó górdio da questão: uma tradição enraizada nos primórdiosda colonização, onde a assimilação das estruturas litúrgicasestaria maleável às intervenções dos convertidos e,conseqüente, consolidação de suas práticas. Seguindo a datade nascimento dos músicos atuantes no século XVII é possívelorganizar a tese sobre uma cadeia cognata estabelecida peloscristãos-novos paulistas seiscentistas.

Por estudos na documentação disponível calculamos a datade nascimento do paulistano João de Roxas Moreira emmeados de 1616.1 Como encontramos notícias de Diogo

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Jorge MoreiraIsabel Velho, tida

Pe. DiogoMoreira - mestre

Suzana

Isabel

Mariana

João deRosas Moreira

Mestre-de-canelade...

Paula BalthazarGodoy Godoy

João deGodoy Moreira

Eufêmia da

João deGodoy Moreira

Ângela - LuisGomes da Costa,denunciado pelainquisição

Estevão Gomes da Costa -Isabel Lopes de Souza

Filipa Gomes da Costa -Vasco...

Atanásio da Motta-Luísa Machado

Inês da Motta -Antonio Raposo

Filipa - Pedro deSeabra

Isabel - DionísioCosta

Luisa de Gusmão- Simão Ribeiro

Esperança G. daCosta e ...

Pe. AntônioRaposo

Eufêmia Antônio Roposode Siqueira

Manoel Lopes deSiqueira - Joana

Francisco Lopesde Siqueira

Pe. Manoel Lopesde Sequeira

Pe. Ângelo deSiqueira

José Roberto deSiqueira

Ângelo RaposoAcusado naInquisição, em1729, dejudaizante e filhode cristão

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Moreira – o tio-bisavô – ainda em 1625, participando comomembro do Senado da Câmara paulistano, é provável que Joãode Roxas tenha aprendido música ainda sob a influência –que poderia ser diretamente ou por algum discípulo – doprimeiro mestre-de-capela com provisão régia da capitania.Devemos lembrar nesse momento as determinações doGovernador Geral, Dom Francisco de Souza, que, no ato daprovisão dada ao padre Diogo, assinalou, como de costumeem todos esses documentos, que o beneficiado teria “aobrigação de ensinar o canto de órgão na capitania” (IAN/TT,cod.15, Papéis do Brasil, p.23 §19).

João de Roxas estabeleceu-se em Santos, onde Manuel Lopesde Siqueira nasceu em 1661. Como vimos, em 1661, João deRoxas Moreira já atuava como mestre-de-capela na matriz deSantos, onde deveria, por obrigação de provisão, ensinar o“canto de órgão”. Nessa época, o futuro mestre-de-capela damatriz paulistana contava com aproximadamente oito anos.Para aproveitar a tessitura aguda dos jovens cantores, já quea participação das mulheres no culto era proibida, o ensinomusical começava em tenra idade; para ser “moço do coro”, afaixa etária variava entre oito e quinze anos. Dessa forma,Manuel Lopes estaria dentro dos limites para iniciar-se na arteda música pelas mãos do mestre-de-capela João de RoxasMoreira, possível discípulo do cristão-novo Diogo Moreira. Seainda considerarmos que o músico assumiu o mestrado damatriz de São Paulo, em 1680, conseqüentemente podemosimaginar que seu treinamento deu-se em uma idade infantil.

A observação da efetivação dessas pessoas nos cargos, dandosolução de continuidade à vida, é a parte mais visível doproblema. Difícil é o alcance das estruturas culturais na qual

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estavam inseridos e, possivelmente, sentiam-se conjurandoao mesmo tempo em que “acomodavam” seus ritos e crenças.A ação velada de usos e costumes, o cuidado com o símbolocatólico, a presença disciplinada nas cerimônias deveriam seralgumas normas para a sobrevivência. Nesse sentido,estratégias como participação em irmandades, até mesmoresgatando o sentido de grêmio de ofícios como associaçãocomunitária, assim como a criação de vínculos econômicosconsideráveis com pessoas da elite era fundamental para otrânsito e salvaguarda social (CARNEIRO 1998, p.206 e seg.).Isso porque, o próprio ambiente que legava uma liberdadesincrética não poderia ser desconsiderado como algoz. Nesseintenso jogo de representação religiosa dos cristão-novos, osincretismo seguramente ocorria nas entrelinhas do cultocatólico, nos vãos da sociabilidade, através de pequenasmodificações nos textos ou rubricas litúrgicas, garantidos eestabilizados pela condição inquestionável de determinadogrupo ou indivíduo na comunidade; a importância da sucessão,como vemos no caso dos mestres-de-capela, seria fundamentalpara consolidar usos formando tradições e, assim, legitimar efluir aspectos importantes das formas ritualística, quandopossível.

Devemos considerar também que o catolicismo exercido noBrasil, principalmente nas primeiras duas centúrias, eracorrompido por inúmeros fatores, inclusive pela dificuldade deordenações haja vista a falta de bispados2 . Sendo assim, o“desvio” ritualístico forjava-se naturalmente pela própriainconsciência, ou consciência consuetudinária. Os sefarditas,potencialmente mais conscientes pela própria condiçãopreconceituosa na qual viviam, zelavam pelas suas certezase as transmitiam às suas gerações na segurança privada de

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seu lar ou no bojo de sua comunidade. Logo, seria inocênciaou positivismo monolítico acreditar que a liturgia ortodoxa, asbulas papais, como as tridentinas, por exemplo, fossemobedecidas mecanicamente, conscientes ouinconscientemente. As alterações poderiam ocorrer nos vãosde certos dogmas cristãos estranhos aos judeus. A crença naSantíssima Trindade, na Sagrada Família, da mesma formaque o culto mariano, enfim, o Novo Testamento, não fariasentido, a não ser pela sobrevivência, para o convertido deconveniência. Porém a manifestação, ou melhor, adesconsideração dos símbolos católicos não poderia sermanifestada explicitamente. Entreatos velados que podem serobservados em expressões usadas como “Deus pai, DeusFilho, e o Deus Espírito Santo” (descrença na Trindade) ou nocaso do indivíduo que em uma procissão na Vila de São Vicenteacudia os personagens do Antigo Testamento e deixava Cristosem seus serviços (SALVADOR, 1969, p.159).

Por outro lado, um aspecto importante que devemos consideraré a profunda religiosidade dos judeus. Esse fenômeno pôdeter sido adquirido pelos cristãos-novos. Assim, na medida emque contamos um considerável número de eclesiásticospaulistas de progênie hebréia podemos também compreenderparcialmente a tendência a uma religiosidade disciplinada e aobservância consciente e argumentada da doutrina católicacomo fruto inerente do passado sefardita. Em suma, asinceridade da conversão, ou até mesmo o esquecimento dasraízes pela distância das gerações através de um naturalenfraquecimento doutrinário pela inserção cada vez maior nomeio católico, não teria fragilizado a devoção fervorosa, o rigorda busca do conhecimento teológico, o sentido sacrifical emissionário, típico do judaísmo. Como veremos adiante, o padre

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Ângelo de Siqueira, de notória origem cristã-nova, tendo atémesmo familiares próximos denunciados na inquisição pordiscutir a Lei de Moises (Ibidem, p.43), tornou-se um dos maisilustres eclesiásticos brasileiros no século XVIII, dotado denatural sensibilidade para os sincretismos culturais.

O músico Ângelo de Siqueira

Ângelo de Siqueira, batizado em 12 de maio de 1707(CAMARGO, 1951, p.10), desde a infância foi um músico quetrabalhou nas igrejas paulistanas, obedecendo a um sistemade educação prática que envolvia filhos e agregados ao mesmotempo em que aumentava a capacidade de operacionalidadedo profissional-professor, no caso o mestre-de-capela. Noentanto, quando postulou a titularidade do cargo, em 1726, asdúvidas sobre a pureza de sua descendência impediram asautoridades eclesiásticas de legitimá-lo, por provisão, ao corpocerimonial. A incerteza da homogeneidade dogmáticarepresentada pela suspeita semítica deixou esquecido o próprioreconhecimento da tradição familiar no mestrado. O problemado “genere”, então, revelou-se como nunca antes na suafamília, pois o impedia de receber as ordens sacras, assimcomo a sua prosperidade como músico, pois a suspeita era,também, um entrave para a obtenção de uma provisão que opermitisse exercer o mestrado na matriz paulistana.

No entendimento de Ângelo não haveria justificativa para oimpedimento, pois ele se dizia totalmente enraizado comomúsico na cidade de São Paulo, por ser, pelas suas própriaspalavras: “o único Mestre de Capela, não só da Matriz, senãode todos os conventos da dita Cidade ensinando a solfa, atanger harpa, órgão, e compondo solfas para assistir com

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músicas as festividades; e por que só ele (sic) ensina, e temescola na dita cidade” (ACMSP, PHGM, doc. 1-8-120, p.1).Esqueceu-se, talvez por conveniência, de citar sua raiz, atéporque seu irmão e antecessor na capela da matriz haviarecebido as ordens sacras, o que seria um antecedentefundamental para comprovar a limpeza do sangue.Evidentemente as conjunturas se modificaram desde aordenação do seu irmão e o processo recrudesceu;seguramente eram os indícios na colônia do puritanismo quelentamente doutrinava a ideologia política lusitana.

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A provisão para o mestrado da matriz paulistana só saiu apósa conclusão do processo de “genere”, instruído nos tribunaisda prelazia de São Paulo.16 Sendo assim, em 5 de janeiro de1733,

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Ângelo conseguiu a habilitação às ordens sacras, eem 13 de maio, do mesmo ano, estava oficializado comomestre-de-capela (CAMARGO, 1951, p.27).18 Ora, o gesto daprelazia foi claro na busca pela unidade religiosa do músico,isso porque somente confirmou a provisão para o mestradoapós a ordenação para as ordens sacras, dirimindo oficialmenteas dúvidas quanto à pureza do sangue. Logo, ao contrário dopoder secular, para as autoridades eclesiásticas não haveriapossibilidade de existir como mestre-de-capela sem antes serum músico de claro sentimento doutrinário. O que se valorizavaera o âmago religioso do músico, o que poderia ser impossívelsendo um cristão-novo.

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A retórica puritana das autoridades eclesiásticas ficou notóriana dificuldade dos trâmites. Ângelo não era um estrangeiro,nem muito menos um iniciante na arte; muito pelo contrário,era um profundo conhecedor da sua profissão. Ainda 1730,quando o jovem contava 27 anos, um libelo nos revela um

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caso exemplar que dimensiona a condição e consciência dojovem artista.

Sendo chamado para cantar na Semana Santa pelo seu antigocompanheiro de coro, o então vigário Antônio Alvarez da Rocha,Ângelo aceitou, pois como ele mesmo afirmou “não foicostumas a ir cantar na Semana Santa a Igreja Matriz destacidade, mas antes foi dos primeiros que se achavam todas asocasiões com sua pessoa e mais que lhe tocava como é notório,que vem a ser ele com sua pessoa e Arpa e um Tiple (sic)”. Oimpasse se formou na medida que o vigário contestou umcostume imemorial segundo o mestre-de-capela, ou seja,deveria a fábrica da igreja pagar dois músicos, dos quatronecessários para realizar o ofício. No processo revela-se acausa: Ângelo teria cobrado um valor pela cantoria quecontrariou o pároco. Pela singularidade da peça, cabe aqui atranscrição de três tópicos, de onze, da argüição do músicodiante do tribunal eclesiástico de São Paulo (ACMSP, PGA,Crime-São Paulo, 1730, Alvez Rocha – Ângelo de Siqueira):

De muitos tempos para cá [tempo] imemorial se costumou cantar nasSemanas Santas com obrigação de que o Reverendo Vigário dessedois músicos e o mestre-de-capela outros dois músicos e por estamesma forma se notificou sempre de sorte que aos dois músicos quelhe tocavam ao Reverendo Vigário pagava ele na forma do quecostumavam pagar.A razão de não irem os dois músicos que tocavam ao reverendo autuante(sic) foi por que ele [o músico] duvidou pagar-lhes o estipêndio de umamoeda nova a cada um que é o que eles pediam para cantar toda aSemana Santa e procurando ele autuado reduzir a alguns pelo preçoda mesma moeda, que também lhes queria dar o Reverendo autuanterepugnaram todos dizendo que havia outras Igrejas onde tinha melhorconveniência.Que no tempo presente estava introduzido pagar-se a cada músico porcantar a Semana Santa uma moeda nova, e por menos ninguém oqueria fazer e esta taxa foi vista pelo mesmo Reverendo autuante antesde ser pároco, no tempo em que cantava, pois por menos não cantavanas Semanas Santas e ainda em outras músicas de outras festas pedia

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e pagava-se em dobro com o que tomaram exemplo os mais músicos.

Como o padre Antônio Álvares recusou o pedido de Siqueira,ele se apresentou somente com dois músicos, que seriam,segundo ele, o que lhe caberia consuetudinariamente. Naverdade, os “dois músicos” que trouxe Ângelo era força deexpressão, já que ele se apresentou sozinho com sua harpa,o que constituiria, todavia, duas vozes. Intempestivamente, ovigário revoltou-se contra a atitude do mestre-de-capela e oproibiu de cantar, o que foi um grande escândalo. É nessemomento que podemos perceber a ampla prática dos músicosno trato com a liturgia musical, e articular um dos eixos daquestão.

Ao perceber a gravidade do caso, o padre Antônio Nunes deSiqueira mais Antônio Pires de Santiago juntaram-se ao mestre-de-capela para realizar o ofício, motivados, por que não, porum sentido de proteção da integridade profissional de Ângelode Siqueira, antigo companheiro de cantorias. Sem embargo,tal situação foi incluída no teor da acusação – queixa crimediante dos tribunais eclesiásticos -, feita pelo padre AntônioÁlvares da Rocha:

Em Domingo de Ramos se achou o dito autuado [Ângelo de Siquiera]na dita Matriz com um tiple (sic), razão porque se resolveu o reverendoautuante [Antônio Àlvares da Rocha] a celebrar os ofícios divinos semmúsica, o que, vendo o reverendo padre Antônio Nunes de Siqueira eAntônio Pires Santiago entraram a cantar com o dito mestre de capela,e se fez a função solenemente.

Além da questão do zelo que os companheiros de cantoriatinham pelo mestre-de-capela, podemos explorar outrofenômeno do caso: a disposição dos músicos que acudiramno coro para a realização da festa. Em tese a justificativa partiria

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pelo uso de um repertório de pequena dimensão passível deinúmeras reiterações, assim como por uma destreza advindade uma prática contínua, até mesmo do repertório usado. Nomesmo sentido, o estilo musical poderia favorecer execuçõeseventuais. Tomando como exemplo os Papéis de Mogi,coetâneos do caso, vemos como factível a tese acima, pois oscódices estruturam-se na escrita homofônica do estilodeclamatório romano, baseada em acordes triádicos, comritmos regulares, cuja técnica vocal não exige virtuosidade,ou seja, não há uso de coloraturas. Enfim, não seria difícil ummúsico profissional realizar, mesmo considerando assingularidades do tempo, uma leitura da peça sem um préviopreparo.

Seja como for, revela-se a unidade dos músicos paulistanos ea configuração de que Ângelo era um músico de reputação erespeito, haja vista o cuidado de seus companheiros. Assim,as dificuldades da ordenação só podem ser justificadas atravésda radicalização da administração religiosa, como dissemosacima. Durante décadas a família Siqueira foi orgânica à Igreja,tendo inúmeros membros ordenados ou ocupando cargos denotório destaque. Evidentemente a mácula do cristão-novo nãofora esquecida, mas tolerada. Ângelo não teve a mesma sorte,pois enfrentou o vórtice do puritanismo que chegava ao Brasile determinava inúmeras modificações na administração dasesferas sociais, entre elas a própria expansão da estruturareligiosa, com a criação de novos bispados a partir do ano de1745.20

Evidentemente, o Puritanismo não resolveu os problemas dosincretismo religioso da população, no entanto, algumas açõesalteraram estruturas que anteriormente gozavam de maior

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liberdade na sua configuração. Entre elas o próprio exercícioda música, pois os tribunais eclesiásticos passaram a promovero licenciamento dos músicos, tal qual o procedimento utilizadono Direito e na Medicina.21 Enfim, o próprio repertório musicalpode estar atrelado a essa política puritana, ao manter o estilodeclamatório romano como modelo imarcescível para a liturgia.

Paradoxalmente, essa conjuntura que tanto prejudicou oestabelecimento do jovem músico criou as condições para quesua disciplina religiosa e o espírito de entrega espiritualincondicional, aliada a um preparado jesuítico e judaico, porque não, dos estudos da religião, o consolidassem como figuraexponencial do corpo eclesiástico brasileiro. A sinceridadecatólica de Ângelo é inquestionável, assim como o sentido deexercício da religião herdado de seus antepassados semitas.Por outro lado, a música, ao que tudo indica, não trouxesatisfações a Siqueira. Tanto assim que no seu livro Botica

Preciosa a oração destinada aos músicos também serviria paracurar dores de cabeça: “Remédio para as dores de cabeça, epara os músicos cantarem bem os louvores a Deus, e tangerembem os instrumentos músicos, e órgão, e confiança no martírio,de que é advogada Santa Cecília” (SIQUEIRA, 1754, p.204).Já em 1736, Ângelo de Siqueira não mais se encontrava àfrente do mestrado-da-capela da matriz paulistana, entãoocupado por Matias Álvares Torres. Começava nessa épocauma singular aventura missionária, vivida por um músicobrasileiro de sensibilidade construída nos preconceitossofridos, e que permitiam um entendimento amplo dosincretismo cultural, evidentemente dentro das possibilidadesdo credo do seu tempo.

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O missionário de muitos cantos

Entre 1736 e 1745, ano crucial para a consolidação de Ângelode Siqueira como referência religiosa em São Paulo, o antigomúsico foi construindo em São Paulo uma sólida reputaçãojurídica. Tanto assim que em 1739 recebeu uma provisão paraadvogar “nos auditórios da cidade de São Paulo”, assinadopor Dom Luís Mascarenhas (apud CAMARGO, 1951, p.32).Não é de se estranhar o desenvolvimento de Ângelo na artedo Direito. Formado pela Ratio jesuítica22, o jovem Siqueiraadquiriu a destreza do debate pela doutrina do probabilismojesuítico. A emulação era a base do sistema educacional dospadres da Companhia23, tanto assim que os polemistas jesuítasforam fundamentais para o desenvolvimento da lógica científicado século XVII e XVIII.

Seguindo as pesquisas do monsenhor Paulo Florêncio daSilveira Camargo (1951) observa-se que Ângelo a partir dadécada de 1740 assumiu uma intensa atividade eclesiástica.Fundou uma irmandade e construiu sua capela, a Igreja deSão Pedro, demolida nas primeiras décadas do século XX; foinomeado Escrivão da Vara (Ibidem, p.34), assim como assumiua paróquia da acima citada igreja paulistana. Enfim, ocupoudiversos cargos na administração eclesiástica quenecessitavam de conhecimento das ordenações jurídicas,assim como reputação ilibada24; a mácula de cristão-novodesaparecera. A proximidade com as leis, o vínculo ancestrale o lastro econômico da família, tornaram Ângelo pessoaorgânica na Câmara do Senado da cidade de São Paulo. Comomostra Florêncio Camargo (1951, p.38 e seg.), os vereadorespaulistanos tinham no padre-músico seu orador predileto, seussermões eram celebrados com “agrado geral deste povo”, como

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testemunham os camaristas, em 1744 (apud Ibidem, p. 39)...omúsico ficara esquecido junto aos problemas da etnia.

A sua reputação atravessou o oceano e o reconhecimentochegou com a nomeação para missionário do bispado, principalcargo de orientação litúrgica. Foi um presente dado peloprimeiro bispo de São Paulo a um nativo verdejante que reuniainúmeras condições para realizar um trabalho de correção eexpansão religiosa: músico, instruído na teologia, conhecedordas leis, e principalmente versado nos usos e costumes dospaulistas. Era, também, o aceno de uma política de boavizinhança para um povo considerado indômito e revoltoso.

Viajar não era segredo para o padre-músico. Em documentaçãode 1738, revelando um caso com potencial rico de insinuações,considerando o mito da expansão cultural para Minas Geraisdistante dos “mamelucos” paulistas, vemos o padre-músicona região de São João D’el Rei, como atesta a seguinte carta:

Diz Francisco de Almeida Lara que achando-se nas minas do Rio dasMortes a seus negócios e assistente em casa de Felisberto Sal[...] nadita casa assistia juntamente o R.do P.e Ângelo de Siqueira e todosuniformemente eram camaradas e amigos de essas portas adentro, eisto em julho de setecentos e trinta e oito [...] (ACMSP, PGA, Crime-São Paulo, Francisco de Almeida Lara contra o padre Ângelo deSiqueira).

Não seria a última vez que Ângelo estaria nas paragensmineiras, ou melhor, seria a primeira de inúmeras...

Desde 20 de agosto de 1744, o padre Ângelo de Siqueira “porespecial provisão de Dom Frei João da Cruz, então Bispo doRio de Janeiro, exercia o cargo de Missionário da Capitaniade São Paulo” (CAMARGO, 1945, p.57). Em 1746 ampliaram-se os poderes de Siqueira ao ser nomeado pelo Bispo Dom

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Bernardo, Missionário Visitador. Entre muitas missões epoderes concedidos em alvarás, destacamos (Ibidem, p.58 eseg.):

• Aumentar as fábricas das igrejas, inclusive solicitandosesmarias para o povo cultivar e assim poder aumentar aarrecadação dos dízimos.• Levantar dados a respeito da região e seus habitantes,entre outros, a fertilidade dos casais, para então averiguarpossíveis desvios espirituais e propor soluções.• Conceder dispensas matrimoniais, ou seja, verificar eanular impedimentos, como por exemplo, questões deconsangüinidade.• Administrar as fábricas (o caixa de pé de altar) nas igrejasonde estivesse visitando.• Conceder indulgências• Corrigir o culto, verificando a Exposição do SantíssimoSacramento, realização de procissões, Te Deum etc.Destacamos que a questão musical era fundamental nessaação.

Em suma, Ângelo de Siqueira deveria coordenar uma missãode espiritualização católica de dimensão somente comparávelà dos jesuítas de primeira hora. Para tanto percorreu, durante17 anos, uma considerável extensão territorial do centro e sulda colônia. Esteve desde os limites da região castelhana nosul (Rio Grande, Santa Catarina, Curitiba) até o mais agressivosertão do centro-oeste brasileiro; com certeza visitou inúmerasvilas de Minas Gerais, Goiás, destacando Vila Boa de Goiás eCuiabá. É possível comprovar tal afirmação percorrendo aspáginas do livro Botica preciosa, isso porque o missionárioinúmeras vezes cita casos ocorridos nas paragens que visitava

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(cf. SIQUEIRA, 1754, pp. 105 e seg.). Em Campos doGoitacazes, Capitania da Paraíba do Sul, fundou um seminário,cujo orago era a sua santa protetora, Nossa Senhora da Lapa.A mesma santa foi evocada para o seminário que construiu noRio de Janeiro, em 1751.

As ilações sobre o potencial de disseminação musical sãoilimitadas. Ângelo de Siqueira não era um simples viajanteque pudesse levar na algibeira alguns papéis de música.Estava preparado para realizar reformas radicais nas formasnativas de representação litúrgica. Evidentemente a músicaera intrínseca à ação, mais ainda sendo ele um mestre-de-capela cuja tradição na arte da música, como vimos,atravessava largamente os limites da eventualidade, comumno Brasil colonial. A dimensão de sua vida, então, amplifica oproblema, pois a semente de Ângelo se espalhou como elepróprio diz no prefácio da Botica preciosa (1754):

[...] em dois Seminários [Rio de Janeiro e Campos], e em dezesseteigrejas, umas fundadas de novo, e outras reedificadas [...] tudo pormeio de dilatadas e laboriosas missões, que com desprezo das fadigasde uma peregrinação tão larga, e só instalado do zelo da salvação dasalmas, fiz e edifiquei em várias povoações, e dos sertões dos Goitacazese Cuiabá.

Todo esse complexo amplia-se na medida em que o padre-músico-missionário excursionou, a partir da década de 1750,para as regiões ibéricas. Estabeleceu, como ele mesmoconfessa, relações de privacidade com o próprio rei Dom JoséI (CAMARGO, 1951, p. 61). Continuou, como Saulo, com oespírito peregrino, percorrendo inúmeras regiões de Portugale Espanha, curando em nome de Nossa Senhora da Lapa efundando igrejas como a Real Capela da Lapa, em Famalicão(LAMEGO, 1913, p. 47).

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Igreja do Carmo, antiga Igreja da Lapa do Desterro, Rio de Janeiro

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Ângelo de Siqueira25

Como resultado de suasexperiências missionárias,Ângelo de Siqueira sentiu-secômodo para enviar ao Secretáriode Estado, recomendações decomo administrar a religião nacolônia ultramarina. Na leituradesse documento revela-seentão a sensibilidade do padremúsico para as diferenças,demonstrando a tolerância comque seus antepassadossefarditas não foram agraciados.Inicia dizendo que asOrdenações da Bahia nãoconseguiam corrigir a religião noBrasil pois “não se pode observarpela diferença do país”. Assim sugeriu que cada bispadotivesse sua ordenação baseada nas idiossincrasias: “asresoluções acomodadas ao bispado do país respectivo e quesejam úteis ao serviço de Deus e ao bem comum do povo quenele habita”. Essa notável postura de compreensão culturaltolerante era somente uma introdução. Continuoudemonstrando que nos sertões do Brasil o impedimento deconsangüinidade deveria ser abolido, haja vista a formaçãodos núcleos habitacionais ao redor de poucas famílias. Disse,ademais, que era conveniente isentar gentios, pretos e todo equalquer pobre, de pagamento pelos papéis civis (batismo,casamento etc) pois, segundo Ângelo, a cobrança motivava amendicância generalizada. Conclamou a Fazenda Régia à

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aumentar as côngruas eclesiásticas no Brasil, “cento por cento”,principalmente nas povoações mineiras, “por que ali vão maiscaros os mantimentos”. Retomou no seu discurso o princípiojesuíta das reduções do gentio, sugerindo que os“descobridores” andassem sempre com missionários, quepoderiam inclusive ser os formados nas suas instituições.Terminou sugerindo uma nova divisão interna dos bispados,demonstrando toda a ciência sobre a geografia de sua terra.Asseverou que a urgência estava não só na administração dosacramento, mas principalmente no sossego dos povos.

Ângelo de Siqueira terminou seus dias no seminário queconstruiu perto do morro do Desterro, hoje Santa Tereza, noRio de Janeiro. Faleceu em 1776, e a torre da igreja que estavasendo construída ficou incompleta como homenagem póstumae eterna. O padre-músico, antes de ser um precioso objeto deestudo, é um testemunho de fé, construído sobre uma difícilrelação com a religião no Brasil colonial, que quase o condenoupor ser filho do sincretismo. No entanto, mesmo tendo sofridoo preconceito da raça, não deixou de homenagear suafundação:

Eu que sou paulista pelo meu nascimento, e por meus avós, tambémtenho logrado o influxo de explorador, e se não descobri, como meusparentes, tesouros de bens temporais, faço agora manifesto ao mundoum de riquezas preciosas. Os meus patrícios os descobriram para ouso da vida, eu o manifesto para a utilidade das almas.

De cristão-novo a missionário brasileiro; uma conclusãosincrética.

No momento em que parcela da musicologia nacional sepreocupa, com razões e méritos, com a sistematização dearquivos e posterior gêneses autorais por meio de informações

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codicológicas, procuramos trazer à luz um problema inerenteao trânsito humano, muitas vezes desconsiderado comovariante na concepção dos enunciados sobre a prática musical:a cultura como eixo de fruição das linguagens que atuam naconsubstanciação da recepção, tanto física como ideológica,criando as possibilidades idiossincráticas de operação darealidade. Assim, representações, coleções, usos e costumesjustamente se amalgamam nos estranhamentos e ajustes dasdiversas formas de linguagem à disposição de umacomunidade. Ângelo de Siqueira é um caso exemplar desseprocesso dinâmico de formação de identidade e difusão devalores, no encontro das diferenças.

Vimos que o seu próprio alicerce cultural está inserido em umcomplexo problema étnico que enfraquecia as estruturas daslinguagens dominantes e dos discursos oficiais, pelo vórticeexistencial. Desde o berço, inúmeros paradoxos deviamconfrontar-se na formação de seus valores e símbolos, regendosuas certezas nos vãos da inconfidência. No entanto, Siqueira,de raiz semita, tornou-se um erudito das leis e um dos maisefetivos membros da disciplina de Cristo, em uma regiãomarcada pelo sentimento libertário. Eterno imigrante, o padredistribuiu pelo Brasil meridional suas concepções mais intimasde religião, assim como princípios e materiais necessários paraa efetivação da fé, entre eles a música. Cabe recordar que asincertezas na realização do culto católico eram de tal dimensãoque se viu na obrigação de descrever os passos da missa, ecomo se portar para o bom serviço religioso (1754, p.54 e seg.).

Enfim:• No que diz respeito aos cristãos-novos, podemos suporque se ocorriam modificações nas concepções dogmáticas,

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elas não deveriam afetar a estrutura litúrgicaconsideravelmente, ou mesmo o espetáculo litúrgico, hajavista a permanência dos Siqueira durante 50 anos à frenteda capela paulistana, formando, ademais, gerações demúsicos que ocuparam importantes cargos no cabidopaulistano, em meados do século XVIII. Entre eles,destacamos o próprio Faustino Xavier do Prado, intimamenterelacionado com a fonte musical mais antiga do Brasil.• Uma das formas de manifestação da cultura hebréiaefetivada pelos cristãos-novos foi certamente a disciplinareligiosa e a atenção aos estudos teológicos. ÂngeloSiqueira é um exemplo desse fenômeno.• Vimos como, nas primeiras décadas do século XVIII,retornou a preocupação com a limpeza de sangue comoinstrumento de controle da crescente secularização.Certamente esse fenômeno contribuiu para a preservaçãode estruturas ancestrais no espetáculo litúrgico. No casoda música, podemos relacioná-lo ao uso do estilodeclamatório romano. A partir da segunda metade do séculoXVIII, o puritanismo foi combatido oficialmente pelo Marquesde Pombal e a música religiosa lusitana, então, iniciou umprocesso progressivo de aproximação ao universo da ópera.• Ângelo de Siqueira foi um agente oficial e ativo de difusãodas práticas musicais, haja vista sua função de corregedordo culto católico. Essa prática, em tese, não só vigorou nosseus seminários, onde certamente zelava pela arte que ofundou, mas possivelmente nas diversas regiões na qualatuou como visitador.• Por fim, Siqueira mostrou-se sensível às manifestaçõesculturais nativas dos povos que visitava. Com certeza, suasexperiências, desde a raiz semítica de sua família, nortearamas considerações que fez sobre o estado da religião no

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Brasil, da mesma forma que se manifestaram, como frutoda tolerância, no vínculo às crendices populares queconsubstanciaram a Botica preciosa; Siqueira incorpora,assim como Antônio Viera, um complexo processo de“endosecularização”. Isso potencializa uma concepçãosincrética importante que pôde ter marcado o viés da coleçãode papéis e conceitos, tanto pedagógicos como prático dareligião, e, conseqüentemente, da música usada nos seusdomínios.

Notas:

1 Dados sobre o exercício da música em São Paulo anteriores ao século XIX surgiram maissistematicamente a partir das crônicas de Carlos Rezende de Penteado (cf. FOLHA DA MANHÃ;Edição Comemorativa do IV Centenário. São Paulo, 24 e 25 de janeiro de 1954). Desde 1958,Régis Duprat vem sistematicamente realizando pesquisas que resultaram em uma série depublicações e gravações que aprofundaram o conhecimento do passado musical da capitaniapaulista. Destacamos entre eles o texto publicado na Revista História, da Universidade de SãoPaulo (Régis Duprat, Música na Matriz de São Paulo colonial, v.75, 1968, pp.85-103); noSuplemento Literário de “O Estado de São Paulo” (Régis Duprat, Músico de São Paulo no séculoXVIII, 21-11-1970; no Yearbook for Inter-American Musical Research, Texas University, Austin,EUA, 1975 (1977), v. XI, pp.8-68; assim como os livros de sua autoria: Garimpo musical. SãoPaulo: Novas Metas, 1985 e Música na Sé de São Paulo colonial. São Paulo: Paulus, 1995, domesmo autor. Mais recentemente, tratei das amplas relações da atividade paulistana com outrasregiões, como Santos e Mogi das Cruzes, na dissertação de mestrado, Música Sacra em terra deSantos, ECA/USP, 2001 e no capítulo do livro de Parcival Tirapelli, Igrejas Paulistas: Barroco eRococó. São Paulo: Editora UNESP, Imprensa Oficial do Estado, 2003 (Régis Duprat & DiósnioMachado Neto, Os manuscritos musicais de Mogi das Cruzes, pp. 76-79).2 O mestre-de-capela Manuel Lopes de Siqueira era filho homônimo de um comercianteestabelecido em Santos, que na década de 1670 se transferiu para São Paulo (ACMSP, PHGM,nº 1-2-28). Como os primogênitos na linha de sucessão eram homônimos e ambos mestres-de-capela da matriz de São Paulo, passaremos a chamar de filho o músico nascido em 1661 e netoo nascido em 1692.3 Além dos músicos citados no texto de 1995 (Duprat) como alunos de Manuel Lopes de Siqueira(Pascoal Mendes, Estanislau de Morais, Luiz Domingues, Antônio Nunes de Siqueira, FranciscoCarrier, João de Moura, Antônio Álvares da Rocha e Francisco da Cunha) podemos ainda relacionaroutros elementos que participavam nas cantorias dos Siqueira, no decorrer dos longos anos quea família esteve à frente da capela de música paulistana: Antônio Raposo de Siqueira e SimãoRibeiro Castanho (irmão e cunhado de Manuel Lopes, o pai, respectivamente); Antonio Muniz dasNeves, Francisco Lopes Ribeiro e Lopo Rodrigues (sobrinhos); Antonio Pires Santiago, FelixNabor, Eusébio de Barros, João Gonçalves, Antônio Álvares Villela, Jacinto Albuquerque de SaraivaSá e Melo, Manuel Homem do Amaral, Francisco das Chagas, João e Matias Álvares Torres(ambos declaradamente alunos de Manuel Lopes de Siqueira, como averiguamos no processoPGA - autos cíveis João Alves Torres - São Paulo – 1730, depositado no Arquivo da CúriaMetropolitana de São Paulo). Todos esses músicos aparecem citados em inúmeras contas detestamentos pertencentes ao fundo Inventários não publicados (ordens pesquisadas no universo

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do nº494 a 516, referentes aos anos de 1683 a 1739) do Departamento de Arquivos do Estado deSão Paulo (DAESP).4 Efetivamente a provisão para mestre-de-capela em benefício de Manuel Lopes de Siqueira foipassada em 1680, mais precisamente, em 20 de março; como nos informa o monsenhor CamargoSilveira: “...convém trazer algumas das últimas nomeações do P. Francisco da Silveira Dias, jáprotonotário apostólico e ainda administrador do bispado: mestre-de-capela em São Paulo a favorde Manuel Lopes de Siqueira, pela retirada de José da Costa Cabral...” (1953, p.24, vol.3)5 Em um inquérito de “genere” realizado para a ordenação do seu filho Ângelo pode-se notar asólida reputação do músico: José de Meira, cidadão da vila de Santos, afirmou, “que nunca tevenoticia de Ângelo de Siqueira, mas que só por fama tinha notícia de Manoel Lopes de Siqueira,por ser harpista e mestre-de-capela da cidade de São Paulo” (ACMSP, PHGM, nº1/2/28, p.14v)6 O inventário feito no cartório do 1o Ofício de Notas de São Paulo, em 1718, está anexado aosautos, de mesma natureza, aberto após o falecimento de Joana de Castilho – esposa de ManuelLopes -, em 1714 (DAESP, Inventários não publicados, ord. 699, doc.14657). Nele, o própriotestador declarou que possuía: “Um par de bichas de ouro que pesaram dezoito oitavas avaliadosem 21$800 // Um par de brincos de ouro avaliados em 7$000 // Um anel com argolas de ourocinco oitavas avaliados em 5$000 // Umas casas de dois lanços de taipa de pilão –: Um lançoassoalhado com seus corredores cobertos de telhas e seu quintal na Rua de Manoel de Sá quepartem de uma banda com o quintal das casas que foram do defunto Salvador Cardoso, e deoutra com o beco que vai sair a Igreja Matriz que foram avaliados em 300$000”. Segundo nosinforma Carlos Lemos: “a palavra ‘lanço’ significa uma série de cômodos encarreirados, um atrásdo outro, formando uma fila perpendicular à rua” (LEMOS, 1999, p.24). Ademais, o mestre-de-capela declarou: três escravos; e dois administrados, ou seja, ameríndios. Tinha ainda umaimportante soma em dinheiro que estava em forma de créditos com algumas das principais pessoasda cidade: “Capitão Pedro Porrat Penedo a juros por uma escritura 438$187 - Declarou mais quedevia o dito acima de juros de dois anos e dez meses 99$318 // Capitão Manoel Avilla, dinheiro deempréstimo 10$000 // Capitão Baltazar da Silva, credito de 12$000 //Fernando Agirre do Amaral,por credito de 25$000 // Capitão Mor Manoel Bueno da Fonseca 200$000, divida feita em abril de1718 e devia mais de juros de dois anos 41$050”. Quanto a instrumentos musicais encontramos:“Uma harpa em bom uso que foi vista e avaliada em 8$000 // Três harpas mais inferiores queforam vistas e avaliadas cada uma a três mil reis que fazem soma de nove mil reis // Uma [viola]nova que foi avaliada em dois mil reis // Uma viola usada que foi avaliada em mil reis”. As contasfinais apresentaram que o patrimônio de Lopes de Siqueira somava 1.243$040; o funeral custara74$880, e o falecido devia créditos que alcançaram 62$780, um líquido de 1.105$380.7 O caso da irmandade de São Miguel e Almas de São Paulo é muito significativo, pois, ao albergarum considerável número de músicos poderia desdobrar-se, mesmo que indiretamente, comouma corporação de ofício, muito comum na época. Dessa forma às atividades normais de umairmandade – organização de eventos festivos, assistência social e financeira para os membros,associação ideológica etc -, agregar-se-iam políticas de regulação e exploração da atividademusical, buscando, em tese, a formação de um corporativismo de sentido monopolizante.Considerável grupo de músicos que atuaram, em sua grande maioria, nas duas primeiras décadasdo século XVIII assistia à mesa diretiva,: Manoel Lopes de Siqueira (pai e filho), Ângelo de Siqueira,Antônio Nunes, Matias Álvares e João Álvares Torres, ainda Luiz Porrat Penedo e seu sobrinhoEstanislau de Moraes, Francisco Carrier, Antônio Raposo da Siqueira, Francisco da Cunha, LuizDomingues, Lopo Rodrigues, Manoel Homem do Amaral, Felix Nabor, Antônio Álvares da Rochae Patrício de Oliveira Cardoso; este último chegou a ser subchantre da Sé na década de 1760.Como podemos perceber, os citados acima coincidem com os profissionais sempre relacionadoscom as cantorias dos Siqueira, nas diversas igrejas paulistanas.8 A presença dos hebreus na Península Ibérica é registrada desde tempos imemoriais. Ainda noséculo VII encontram-se relatos de diversas comunidades estabelecidas na região (SALVADOR,1969, XIX). A convivência com os cristãos, no entanto, não era continuadamente tumultuada,como em princípio poder-se-ia imaginar. Em algumas épocas, os hebreus encontraram trânsitosocial livre, ajudando com suas habilidades para o comércio e administração financeira o governo

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de inúmeros monarcas. No entanto, a exposição contínua a um ríspido preconceito, principalmenteda Igreja, culminava, de tempos em tempos, em massivas conversões.Em Portugal, como assegura Maria Luiza Tucci Carneiro (1983, pp.43-53), os judeus receberamtratamento mais tolerante se comparado com outras regiões da Europa católica; isso não querdizer que não fosse discriminatório. A maioria dos reis anteriores ao Concílio de Trento, marcoinstitucional do preconceito sistemático, valeu-se dos conhecimentos, serviços e fazendas dacomunidade hebraica, como por exemplo Dom Diniz. Assim, e apesar das políticas segregantesmais incisivas iniciadas por Dom Afonso VI (1325-1357), os hebreus continuaram, em Portugal,constituindo grandes fortunas e conseguindo representatividades sociais notórias.Sempre nos referenciando ao trabalho de Maria Luiza Carneiro (1983), no final do século XIV, asituação começou a modificar-se. Fernando I, rei de Aragão, forçou a conversão dos judeus,causando grande êxodo para Portugal, onde encontraram a proteção de Dom João I (Ibidem,p.45). Porém, a Igreja Católica convivia incômoda com a situação e durante as seguintes geraçõesreais exerceu forte pressão contra a comunidade, incitando publicamente seus adeptos a rechaçar,inclusive, os convertidos. Em 1449, uma reação contra um aumento de imposto culminou com aelaboração de um “estatuto de sangue”, a “Sentencia Estatuto”, onde claramente relacionavam-se os “defeitos” do sangue às máculas da sociedade. Apesar da reação de Dom Pedro II, quenessa época acolhia os refugiados do Santo Ofício espanhol e de seu inquisidor-mor Tomas deTorquemada, a luta étnica se intensificava também em Portugal. O início do governo de DomManuel não modificou a situação vivida com Dom João II. No entanto, a estratégia de aproximaçãocom o reino espanhol levou o monarca a modificar suas posturas e determinar a eliminação, pelaexpulsão ou conversão, de todo judeu ou mouro das terras lusitanas.Em 1497, Dom Manuel, antigo beneficiário dos talentos dos hebreus, encontrou-se em um impasse,pois muitos resistiram às determinações acima expostas. O único caminho encontrado foi aconversão forçada. Institucionalizou-se o cristão-novo e consolidou a América, no imaginário e naação, como refúgio ideal para os inúmeros adeptos da Lei de Moises contrários à aculturação.Esse anseio de migração foi reforçado após o massacre dos cristão-novos ocorrido no ano de1506, em Lisboa, e principalmente no período da instauração da Inquisição, em 1531. Em 1542,tem-se a notícia de um número considerável de cristãos-novos que conseguiram migrar de Portugal(CARNEIRO, 1983, p.80).9 O Processo de “Genere et Moribus” foi um instrumento oficial de inquirição de pureza de sangueinstituído em Portugal em meados do século XVII. O recrudescimento do Santo Ofício com asditas “nações infectas” levou a monarquia a proibir a participação de diversas etnias, principalmentea hebréia, no corpo administrativo; inclusive na Igreja via Padroado Régio. Logo, o dito processoera uma salvaguarda administrativa que vigorou até início do século XIX. Era realizado pelo tribunaleclesiástico através de inquérito e submetia-se a ele não só aspirantes às ordens eclesiásticas,mas todos aqueles que almejavam carreira administrativa. Ilustres personagens da nossa históriapossuem processos de “genere”, entre eles, Alexandre e Bartolomeu de Gusmão, os irmãosAndrada, Thomas Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa.10 Na primeira metade do século XVIII, o número de processos de “genere” supera em muitoqualquer outra época, o que assevera uma atenção maior com a questão da pureza de sangue.11 Diogo Moreira recebeu provisão de Dom Francisco de Souza, Governador Geral do Brasil, em1599, como atesta o seguinte documento: “D Francisco de Souza Gov. Gal. do Estado, este,estando em São Paulo, nomeou por provisão de 18 de julho de 1599 ao pe. Diogo Moreira mestrede capela da cidade de São Paulo com o ordenado de 20$000 pago pela fazenda real, com aobrigação de ensinar o canto de órgão na capitania” (IAN/TT, Papéis do Brasil, cod.15, p.7v, §18). Essa provisão foi registrada na Câmara de São Vicente e copiada na segunda metade doséculo XVIII, provavelmente por Marcelino Pereira Cleto, quando ocupou cargos administrativosna Vila de Santos.12 Como informa Salvador (1969), Garcia Roiz era filho de Garcia Roiz Velho e Maria Betim, ouseja, bisneto de Isabel Velho casada com Garcia Rodrigues, tronco da família Garcia Velho.13 O padre Roxas Moreira chegou a Santos em meados de 1655 (devemos destacar a presençadesde as primeiras épocas da família Moreira ocupando cargos eclesiásticos em Santos).

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Considerando na equação as datas em que está em Santos – 1658 -, mais o limite para seordenar – 26 anos, assim como o fato de vir da paróquia de Nazaré, podemos aproximar a data deordenação ao redor de 1645. Logo, teria nascido nos meados de 1620, e não mais tarde. Poroutro lado, a irmã mais nova – terceira filha do casal – assume o matrimônio em 1633. A idadebase para um casamento, na época da colônia, deveria margear os 15 anos, portanto, a irmã deJoão de Roxas teria nascido em meados de 1618. Como ele era o mais velho, nasceu pelo menosdois anos antes da irmã em questão, ou seja, em 1616, e muito dificilmente além dessa data.14 José Gonçalves Salvador exemplifica a dificuldade que os visitadores tinham para corrigir asdoutrinas, na capitania meridional: “Fluminenses e paulistas não temiam as autoridades, nemmesmo quando revestidas de poderes inquisitoriais, fossem administradores ou oficiais do SantoOfício. Aqueles, de um modo geral, tiveram um fim lamentável, e a um destes chegaram a apedrejarainda abraçado ao crucifixo” (1969, p.157).15 Maria Luiza Carneiro indica que no início do século XVIII a monarquia portuguesa assumiu umapostura hermética contra as modificações sócio-culturais que estavam ocorrendo na Europa.Uma das estratégias foi justamente investir contra os estrangeiros e, novamente, contra os cristãos-novos. A estratégia da Igreja portuguesa era se opor à crescente secularização da sociedadeestabelecendo, junto à aristocracia, um movimento conhecido como Puritanismo. Diz apesquisadora: “as impurezas são combatidas de todas as formas pela ordem nobiliárquica-eclesiástica. Combate-se as impurezas de idéias e as impurezas do sangue, com o objetivo queocorra desequilíbrio do sistema de atuação sustentado pela Igreja Católica” (cf.CARNEIRO, 1988,p.175).16 Devemos ressaltar que o fato de ele ser mestre-de-capela da matriz não significava estar comprovisão, logo, com direito ao estanco.17 Régis Duprat amplia as informações dadas pelo Monsenhor Camargo Silveira, em 1951. Omusicólogo localiza a data de matrícula da prima tonsura e ordens menores em 10 de abril e odiaconato em 3 de maio (DUPRAT, 1995, p.30).18 Nessa mesma época chegava a São Paulo o padre mogiano Faustino Xavier do Prado(referenciado nos mais antigos papeis de música encontrados no Brasil até a presente data) paratrabalhar na matriz (cf. MATTOS, 1992). Evidentemente participaria das cantorias do mestre-de-capela Ângelo de Siqueira. Cabe ressaltar que a datação dos Papéis de Mogi justamente indica aconfecção em meados da década de 1730.19 O impedimento por raça infecta graduava-se distintamente. Se para com o judeu, econseqüentemente o cristão novo, os impedimentos eram intransponíveis, para o mulato haviauma maior tolerância. Em 1714, Pedro da Costa, filho de pardos, conseguiu a dispensa deimpedimento de cor para a sua habilitação às ordens sacras, após oito anos de espera. Um dosargumentos que o habilitando usou foi que o seu conhecimento seria útil à Igreja: “o suplicantesabe solfa e toca o instrumento da harpa, o que tudo é [comum] ao serviço da Igreja Matriz da vilade Santos sendo sacristão seis ou sete anos como constara da certidão [junta] aos autos paratanto”. Na mesma página que consta a declaração anterior, o veredicto: “Visto fez parte com queservir a Igreja dispensamos com o suplicante no impedimento da cor e irregularidade para asordens menores e sacras” (ACMSP, PHGM, doc. 1-3-53, p.29). A dispensa, no entanto, baseava-se em um extenso processo de “genere”; a utilidade como músico é evidente que pesou no ânimodas autoridades eclesiásticas, posteriormente.20 Uma das determinações dos inúmeros alvarás que trataram da instalação do bispado de SãoPaulo determinou que se “respeitasse o modo de residir e servir no Coro” (CAMARGO, 1945, p.47). Para termos uma idéia das modificações que precisou enfrentar o novo primeiro bispo, DomBernardo Rodrigues Nogueira, em 1747, ou seja, dois anos após a constituição do bispado deSão Paulo, houve o entendimento do cabido que era necessário trazer de Portugal elementospara elevar o nível do coro da Sé recém-criada, um para a função de subchantre (cargo responsávelpela organização do coro, assim como, pelos exames de proficiência na arte) e outro para sercantor. Dessa forma, Antônio Lopes de Figueiredo, assim como, Francisco de Sales Lisboa,“mestre de cerimônias, capelão cantor e sacristão mor desta Sé de São Paulo” (ACMSP, 5:doc.1-28-248) chegaram para dar alento a um coro que só poderia contar com os músicos formados

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pela escola dos Siqueira. Segundo Régis Duprat (1995, p.46) o jovem padre português, Franciscode Sales Lisboa, foi nomeado, em 1755, como professor de cantochão do coro da Sé de SãoPaulo. Essa movimentação é clara no sentido de reestruturar o cerimonial da catedral com maiorrigor, para isso, nada melhor do que dois egressos das escolas portuguesas para revitalizar aspráticas do espetáculo litúrgico da antiga matriz de São Paulo.21 Em 1730, o músico João Álvares Torres pediu o seu licenciamento no tribunal eclesiástico deSão Paulo. Esse raro documento demonstra o esforço da Igreja por estabelecer um rígido controlesobre os profissionais que atuavam dentro de sua esfera. O licenciamento não garantia a provisãopara o exercício do mestrado, no entanto, era um título que facilitava inúmeras ações do músico,entre elas o próprio direito de estabelecer escolas de música. Futuramente estaremos apresentandoum trabalho sobre o licenciamento, onde examinaremos detalhadamente a questão.22 No inventário de Manoel Lopes de Siqueira filho (DAESP, Inventários do 1º ofício, ordem 699,doc.14657), o juiz dos resíduos revela a urgência dos trâmites haja vista os jovens Ângelo e JoséRibeiro estarem estudando com os padres da Companhia e necessitarem de auxílio pecuniário.23 O desafio ou “concertatio” faziam parte das regras do Ratio, “recomendavam-no em todas asescolas inferiores, ‘ut honesta aemulatio, quae magnum ad studia incitamentum est, foveatur’;era uma adaptação feliz da “disputatio” tão freqüentes dos grandes torneios filosóficos e teológicosda Idade Média” (FRANCA, 1952, p. 64)24 Em 1738, Ângelo de Siqueira assina como Promotor dos Resíduos (DAESP, Inventários nãopublicados, ordem 506, doc. 20 e 21), ou seja, pessoa encarregada de verificar as contas dosinventários, arrecadar as dívidas com credores, providenciar o sepultamento de pessoas falecidassem testamento, entre outros25 O retrato de Ângelo de Siqueira foi encontrado por Alberto Lamego e reproduzido pelo monsenhorFlorêncio Camargo na monografia de 1951 (p.13). Sobre o singular achado, o biografo diz oseguinte: “Lamego esteve no Porto e encontrou um quadro, retrato do padre Ângelo de Siqueira,transferido da sacristia da Real Capela da Lapa [Siqueira foi o fundador dessa capela que albergouo coração de Dom Pedro I, do Brasil] para o hospital construído em frente à dita igreja” (CAMARGO,1951, p.93). Cabe ressaltar que o quadro constituiu a primeira imagem de um músico brasileiro.

Referências bibliográficas

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Abreviaturas e siglas de arquivos e coleções citadas

ACMSP - Arquivo da Cúria Metropolitana de São PauloDAESP - Divisão de Arquivo do Estado de São PauloIAN/TT - Instituto do Arquivo Nacional/Torre do Tombo (Portugal)PGA - Processos gerais antigos do ACMSPPHGM - Processos históricos de genere et moribus do ACMSP

Diósnio Machado Neto: É Mestre (ECA/USP) com a Dissertação “Música Sacra em Terra deSantos”, sob a orientação do Prof. Dr. José Eduardo Martins e atualmente cursa doutorado nomesmo programa. Desde 2002 é professor de História da Música e Música Brasileira noDepartamento de Música da ECA/USP, além de coordenador adjunto do Laboratório de Musicologia(LAM) e da revista Música. Possui artigos em publicações nacionais e internacionais.

e-mail: [email protected]

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UMA ANÁLISE DAS FUGAS PARA PIANO DE BRUNOKIEFER: PADRÕES ESTILÍSTICOS NA SUA ESCRITACONTRAPONTÍSTICA

Rafael Liebich Any Raquel Carvalho

Cristina Capparelli

Resumo: Este trabalho oferece um estudo dos padrões estilísticos definidos através da análisedos processos contrapontísticos encontrados no terceiro movimento da Sonata I, Fuga e Toccatae do movimento final de Duas peças Sérias da obra para piano de Bruno Kiefer. Considerando adiversidade de possibilidades estéticas na música do século XX, e os aspectos tradicionais daescrita fugal, faz-se mister investigar como Kiefer tratou uma técnica composicional consagrada,preservando de modo singular e consistente o estilo inovador sempre atribuído às suas obras.

Palavras-chave: Análise Musical. Fuga. Bruno Kiefer.

Abstract: This study offers a view of the stylistic patterns defined by the analysis of the contrapuntalprocesses used in the third movement of Sonata I, Fuga e Toccata, and the final movement ofDuas peças sérias [Two serious pieces], from the piano works of Bruno Kiefer. Considering thediversity of aesthetic possibilities in twentieth-century music, and the traditional aspects of fugalwriting, it is appropriate to investigate how Kiefer dealt with such a technique, preserving aninnovating style in a consistent manner, which has always been attributed to his music.

Keywords: Mmusical Analysis. Fugue. Bruno Kiefer.

runo Kiefer (1923 – 1987) tem sido reconhecido comocompositor singular e consistente cuja música distingue-se por “uma originalidade que nem sempre soa natural,

embora soe sempre individual, sempre claramente identificável”(CHAVES, 1994, p. 81).

As duas fugas a duas vozes apresentadas neste texto finalizamrespectivamente, Duas peças sérias (1957) e a Sonata I (1958),ambas do primeiro período. Além destas duas fugas, há apenas

B

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uma outra no segundo movimento de Reflexões (para órgão),escrita em 1986.

O presente trabalho analisa os elementos da linguagemmusical empregada em cada fuga tais como melodia, ambienteharmônico, organização rítmica e estrutura. Cada elementocomposicional foi analisado com relação ao seu aspectoestrutural e funcional, considerando as diferenças estilísticasexistentes entre o período barroco e a primeira metade doséculo XX. A próxima etapa tratou da análise dosprocedimentos contrapontísticos de cada fuga para verificar ecaracterizar seu distanciamento das obras escritas nalinguagem fugal tradicional do período barroco. Por último, comos dados obtidos, procurou-se reconhecer padrões queconfigurem um estilo para a escrita contrapontística nas duasfugas para piano do compositor.

DUAS PEÇAS SÉRIAS (1957), SEGUNDO MOVIMENTO: EA VIDA CONTINUA...

E a vida continua... utiliza um poema de Carlos Drummond deAndrade como epígrafe (GANDELMAN, 1997, p. 89). A fuga,escrita a duas vozes, desenvolve-se por 73 compassos e éprecedida pelo movimento Música para as vésperas do último

suspiro. De caráter ágil, com andamento moderadamenterápido, a fuga apresenta seções bem definidas: uma exposição,três reexposições intercaladas por três episódios, uma inserçãoinesperada na segunda metade da obra de um fragmento daprimeira peça, e coda, conforme o quadro abaixo:

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Na Exposição (c. 1 – 9) o sujeito é apresentado na voz superior,iniciando e concluindo em Si (Figura 1), rico em cromatismo edelineado predominantemente por graus conjuntos quepreenchem os freqüentes saltos de 4ª aumentada. A resposta,na voz inferior, é real, com imitação à 5ª (Fá#). As semicolcheiasconstantes caracterizam a repetição de um padrão rítmico nosujeito.1

Caracterização da Fuga

1. EstruturaEm Duas Peças Sérias, a fuga está inserida como o segundomovimento deste conjunto. A textura essencialmentecontrapontística da fuga, associada ao trabalho de elaboraçãomotívica e à manutenção da função e organicidade doselementos estruturais apontam para a adoção de um caráterautenticamente neobarroco.

Esta fuga apresenta um equilíbrio no número de seções(Quadro 1): entre a exposição e a coda, existem trêsreexposições, três episódios e a inserção de um fragmento

Fig.1: Sujeito, c. 1 – 5

Secões Exposição Ponte 1ª

Reexpos.

Episódio

Reexpos.

Episódio

Reexpos.

Episódio

Toccata

Compas-

sos

1-9 9-11 12-15 16-24 25-28 29-40 41-44 45-56 57-84

Quadro 1: Estrutura geral de E a vida continua...

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trazido do primeiro movimento (ligado ao último episódio). Osepisódios são de tamanho irregular: o primeiro é curto, comapenas 7 compassos; o segundo é mais longo (16 compassos)e o terceiro, é composto por 6 compassos.

A interrupção antes da última reexposição (c. 50 – 54) repetematerial já apresentado no primeiro movimento. Este recursoaponta para o processo das autocitações. Em Kiefer, esta“estratégia composicional envolve a reutilização de idéiasmusicais idênticas que transitam de peça para peça”(CARDASSI, 1998, p. 140). Em E a vida continua..., além deconferir coesão e unidade à obra, esta autocitação proporcionatambém um descanso para o movimento constante desemicolcheias característico da fuga, pois ao reviver o caráter“Desalentado” promove também uma mudança de atmosfera.Uma característica marcante desta fuga é a organização daexposição e da última reexposição, no que se refere àapresentação do material temático. Nestas seções, o materialtemático é apresentado nas suas alturas originais, sendo quena última reexposição, o material temático está disposto aocontrário da exposição, ou seja, em espelho, delineando o inícioe o fim da fuga.

2. TonalidadeMesmo que o idioma musical não seja tratado de modotradicional, o compositor utiliza uma armadura de clave comdois sustenidos que identifica a tonalidade centrada em SiMenor, ressalvando-se que o S não reflete de imediato estaconfiguração. Analisando o S desta fuga, verifica-se o uso dasdoze notas da escala cromática. Mesmo assim, a disposiçãodas alturas está de tal forma organizada que demonstra ainclinação do S para um centro tonal. Desta forma, este S pode

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ser caracterizado como tonal, com “organização cromática livredas suas alturas e inclinação a um centro tonal predominante”com pequenas células/intervalos tonais de menor força(GRAVES, JR., 1962, p. 2).

A tonalidade de Si menor é sustentada pela armadura de clavee também enfatizada tanto no salto inicial quanto no final,ambos prefigurando uma 4a justa (Si/Fá# – Fá#/Si, identificadosem azul), contrastando com os freqüentes saltos de 4a

aumentada (identificados em vermelho; Figura 2). Estecontraste configura uma relação forte de I – V, o que colaborapara o estabelecimento de uma relação auditivamente clara,reconhecida também como um traço da sintaxe tonal.

Apenas uma ocorrência do S é transposta (2a reexposição, c.40); as entradas de CS são diferentes apenas na 1a

reexposição (duas entradas, c. 16 e 20), onde a entrada de Rtambém ocorre com transposição (c. 20). As outras entradas,tanto de S e R, quanto de CS (na exposição – c. 1 ao 9 – e naultima reexposição – c. 54 ao 61) ocorrem sempre nas mesmasalturas.

3. Ambiente HarmônicoAs transposições de CS ocorrem apenas na primeirareexposição (à 3a abaixo, e à 5a acima do original,respectivamente – c. 16 ao 24), tanto na sua ocorrênciasimultânea com S (que permanece na altura original) quantocom R (que também está transposta, à 3a do original). Além da

Fig. 2: Sujeito completo, c. 1 – 5

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transposição, o conteúdo melódico do CS também é alterado,estabelecendo assim novas relações intervalares intrínsecas eextrínsecas.

Visto que as vozes exibem alto grau de independência, a formaçãode acordes reconhecíveis como pólos tonais fica obliterada. Oextenso uso de cromatismo e de intervalos dissonantes em S, Re CS também contribui para este fenômeno. Assim, verifica-se aausência de uma progressão harmônica, o que não implica naausência de células tonais. Nesta fuga, o uso contrastante deintervalos consonantes e dissonantes no material temáticocontribui para a percepção de um pólo referencial, amparado emuma estrutura diatônica implícita (Fig. 2). Quando da ocorrênciado material temático em uma das vozes, a configuração deelementos diatônicos acaba descaracterizando as decorrentesrelações verticais. Vale ressaltar que os processoscontrapontísticos não são nem causativos nem resultantes dasrelações harmônicas.

Dois eventos importantes relacionados à harmonia nesta fugaapontam para a manutenção de um clima de indefinição eambigüidade. O primeiro é a presença simultânea de ummovimento escalar nas teclas brancas e da apresentação do Stransposto à 7a alterada acima do original (Fig. 3). Este movimentoescalar inicia em Si (c. 40, voz inferior), estando o grau conjuntoanterior (Lá) ligado por articulação à célula precedente. No finaldeste movimento escalar (c. 43 – 44), percebe-se a preparaçãode uma cadência que configuraria Dó Maior, mas que não chegaa se concretizar. A ambigüidade implica em dificuldade dedefinição de uma escala que acompanhe S, podendo ser Lá (oumodo eólio), Si (modo lócrio), ou até mesmo Dó Maior (ou modojônico) como anteriormente mencionado.

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O segundo evento é a presença simultânea do S na alturaoriginal (voz superior) e de um segundo movimento escalar,agora em Si Menor (voz inferior, c. 58 – 62), no final daúltima reexposição. O único aspecto não determinado é seo 7o grau da escala é maior ou menor: a escala é antecipadapela sensível (7a maior), mas na sua conclusão, bem comono decorrer de sua apresentação, é sempre utilizada a 7a

menor. Esta abordagem confirma as características daprodução pianística inicial de Kiefer, tipificadas por umambiente de exploração e expansão das possibilidadesharmônicas.

4. Organização RítmicaAs l inhas que compõem esta fuga, ainda quecomplementares, apresentam uma tendência pronunciadaà independência rítmica. Elementos sincopados e nãosincopados são freqüentemente colocados em oposição.Esse recurso é derivado do contraste entre o caráter de S ede CS.

Existe em S uma estrutura rítmica simétrica. Cada um deseus quatro compassos permanece sem ação durante oprimeiro tempo, seja por pausa ou por nota ligada. Essaorganização configura dois padrões rítmicos que se alternamsimetricamente, conforme indicado pelas setas na figura 4.

Fig. 3: Segunda reexposição, c. 40 – 44

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Além da alternância destes dois padrões, pode-se verificarque, agrupados, estes padrões compõem um membro queé repetido na apresentação de S (indicado pelas chaves).

Fig. 4: Simetria no sujeito (c. 1 – 5)

S é apresentado sem alterações rítmicas no decorrer de todaa obra. A simetria rítmica e a relação proporcional deste materialcom a fórmula de compasso são preservadas. A fórmula decompasso binária é mantida com algumas exceções: a primeiradelas, c. 24, não interfere na estrutura, pois tem função deprolongamento. As outras três ocorrem em virtude da jámencionada passagem do breve retorno do primeiro movimento(c. 50 – 54).

As células sincopadas e em oposição provocam uma resultanterítmica simétrica não-sincopada. Esta figuração se mantémconstante no decorrer do movimento. Vale mencionar algunseventos onde o ritmo requer delineamento especial: a presençade um ostinato com agrupamento assimétrico (c. 34 – 39, vozsuperior) e o acréscimo de um valor que gera um deslocamentona figuração previamente estabelecida.

5. Técnicas ContrapontísticasA coesão da textura polifônica desta fuga é obtida através deum extenso trabalho de elaboração motívica nos episódios,apontando relação com uma de suas funções tradicionais. Apresença de seqüências rítmicas e/ou melódicas integra demaneira marcante todos os episódios.

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A busca por organicidade revela-se no início da fuga, pelareutilização do material intervalar da primeira peça desteconjunto. O complexo intervalar formado por 5a justa com 2a

maior é utilizado na primeira célula do S da fuga, acrescido de2a menor (Fig. 5).

Fig. 5: Acorde inicial de Música para as vésperas do último suspiro (5a, c. 1) e fragmento inicialdo S de “E a vida continua...” (5b, c. 1).

Sobre a formação dos intervalos entre as vozes, verifica-seque os intervalos de 3as e 6as, bem como as 8as e 5as

(considerados essenciais nas fugas tradicionais barrocas), sãopouco utilizados nesta obra. O intervalo essencial destemovimento é a 4a aumentada. As justaposições e inversõesdeste intervalo (5a diminuta, 7as, 2as) ocorrem consecutivamenteem encadeamentos paralelos, com alguma alternância deintervalos menos dissonantes (3as, 6as, ou 5as). Essasdissonâncias são, em sua maioria, inseridas e/ou resolvidaspor salto em uma das vozes, como por exemplo, nos c. 12 –16, e 25 – 27.

No decorrer dos episódios, percebe-se que a maioria dosmotivos elaborados está baseada em intervalos de 4a

aumentada (ou 5a diminuta), intervalos provenientes do materialtemático. As seqüências estão estruturadas em grausconjuntos. Os graus conjuntos (2as) são derivados da inversãode 7as, relação recorrente entre S, R e CS nas exposições ereexposições, e que também caracteriza as transposições domaterial temático.

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Predomina entre as vozes o movimento contrário. O movimentooblíquo é utilizado principalmente na introdução dedissonâncias por salto. É freqüente o uso de dissonânciassucessivas não resolvidas. Nos 2o e 4o episódios, observa-seo uso de seqüências descendentes paralelas, onde o materialseqüenciado descreve movimento contrário em relação àdireção das vozes (c. 10 – 12, e 47 – 49).

SONATA I (1958), TERCEIRO MOVIMENTO: FUGA ETOCCATA

Este movimento é uma fuga a duas vozes que se desenvolvepor 84 compassos. A figuração rítmica é um elemento estruturalimportante, visto que mantém a propulsão do movimento,conduzindo para a seção rápida final – a Toccata. As freqüentesmudanças nas fórmulas de compasso ocasionadas pelaocorrência do material temático atribuem uma característicadefinidora para as exposições. As dinâmicas estão claramentemarcadas para ambas as vozes. Ao contrário da fuga E a vida

continua..., aqui não se percebe a força centrada sobre umatonalidade, apesar de centros referenciais ocasionais. Segueuma descrição mais detalhada dos aspectos estruturais emusicais de cada uma das seções.

Na exposição (c. 1 – 9), S (iniciando em Dó, Figura 6) está

Secões Exposição Ponte 1ªReexpos.

1ºEpisódio

2ªReexpos.

2ºEpisódio

3ªReexpos.

3ºEpisódio

Toccata

Compas-sos

1-9 9-11 12-15 16-24 25-28 29-40 41-44 45-56 57-84

Quadro 2: Estrutura geral do terceiro movimento da Sonata I - Fuga e Toccata.

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Fig. 6: Sujeito completo, c. 1 – 5

baseado em figurações arpejadas, dispostas numa progressãode tríades diminuta, menor e maior. Seguem duas figuraçõesque utilizam saltos de 4a, 5a, 6a e 7a. A estrutura rítmica estábaseada em três motivos principais (indicados pelas setas,Mot. 1, Mot. 2 e Mot. 3, respectivamente). R ocorre na vozinferior, com imitação à 5a acima (Sol, c. 5).

CS (iniciando em Mi, Figura 7) baseia-se em figuraçõessincopadas, com uso freqüente de trítonos e terminaçõesmelódicas por semitom – ambos intervalos derivados do S,sendo a 2ª a inversão da 7ª. R e CS estabelecem um diálogo.

Fig. 7: Contra-sujeito completo, c. 5 – 9

Caracterização da Fuga

1. Estruturassim como E a vida continua..., este movimento tambémapresenta um equilíbrio no número de suas seções (Quadro 2):após a exposição, uma ponte ligando três reexposiçõesintercaladas por três episódios, efetua a ligação com a Toccata.Este é um aspecto marcante com relação à estrutura destemovimento. Nas fugas do período barroco seria mais

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convencional a disposição contrária, ou seja, a Toccata antesda fuga.

Os episódios têm duração semelhante: primeiro episódio, 9compassos; segundo episódio, 11 compassos; terceiro episódio,11 compassos. Um aspecto comum entre os três episódios é asua organização em duas partes; o primeiro e terceiro episódiossão divididos por breves transições (menores do que doiscompassos), e o segundo episódio é interrompido por um gestodescendente conclusivo, mudança de andamento e pela barradupla (c. 33 – 34, meno mosso). Essa preocupação com asimetria aponta para o equilíbrio estrutural do movimento. Estafuga insere-se como movimento de uma obra maior (Sonata).

A manutenção dos elementos estruturais, bem como de suafunção e organicidade, preservam uma identidade relacionadacom os traços característicos da fuga do período barroco. Oextenso trabalho de elaboração motívica aliado à texturapolifônica assegura a integridade do tecido contrapontístico.

2. Tonalidadenalisando o sujeito desta fuga, observa-se uma organizaçãoem duas partes: a primeira, estruturada sobre figuraçõestriádicas, dispostas em uma progressão: diminuta – menor –maior; e a segunda, composta de saltos de 4a, 7a, 6a e 5a, comcromatismo e síncope. A aparente fragmentação do sujeito,sugerida pela instabilidade rítmica e melódica, configura umaausência de um centro tonal claro e imediato, embora seidentifique a configuração de freqüentes intervalos de 7a,compostos por fragmentos melódicos sucessivos, estruturadosem 4as aumentadas (Figura 8). Além desta organização, pode-se verificar uma mudança de registro do início para a parte

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Fig. 8: Sujeito completo (c. 1 – 5), intervalos recorrentes identificados.

aguda de S (indicada pelas setas), coincidindo com a inversãodo intervalo composto pela primeira tercina.

O sujeito desta fuga pode ser caracterizado como atonal, dadaa organização cromática das suas alturas. S apresenta umpadrão de onze alturas, estando o Lá ausente. O cromatismonão é evidenciado por graus conjuntos, mas, sua constituiçãotriádica e seus saltos intermediários estabelecem eixoscromáticos. Os intervalos recorrentes de 4as e 7as com seucaráter dissonante não definem uma tonalidade; sua reiteraçãoconfigura uma polarização dessas células.

Ocorre apenas uma única transposição do S, no compasso 25(dentre suas quatro entradas, excluindo-se a entrada de R naexposição). O CS também é transposto uma única vez, nodecorrer de suas três ocorrências. Esta transposição à 4aJacima do original (Lá), ocorre no c. 12 e é repetida no c. 25.

3. Ambiente HarmônicoA recorrência de intervalos dissonantes e o cromatismoapresentados no material temático impregnam a tramacontrapontística tecida no movimento. No decorrer dosepisódios, observa-se que os motivos são baseados emintervalos de 4a e 7a, e suas respectivas inversões (5a e 2a,intervalos derivados do material temático).

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As seqüências estão estruturadas em graus conjuntos ou terças(inversão de 6as), ou seja, intervalos derivados da relação entreos materiais temáticos (S e CS) nas exposição e reexposições.Tanto S quanto CS são transpostos apenas uma única vez nodecorrer do movimento. Deve-se ressaltar que não háocorrência simultânea de S e CS transpostos.

Observa-se em alguns momentos, especialmente no primeiroepisódio (c. 16 – 24), o uso de figurações triádicas emprogressão, mas no sentido linear – ou seja, ocorrendo emuma das vozes (Figura 9). Dada a problemática na identificaçãode pontos verticais polarizados, a sucessão horizontal nãoaponta para progressões relacionadas harmonicamente,apesar de configurarem movimentos seqüenciais.

Fig. 9: Primeiro episódio, c. 17 – 20: sucessão paralela de padrões harmônicos diversificados.

A partir destes dados, pode-se constatar também a ausênciade progressão harmônica, já que a ênfase recai sobre o aspectolinear. Isso não implica em ausência de células polarizadas,que são estabelecidas basicamente por reiteração. A sucessãode motivos (fragmentos elaborados) muitas vezes configura oencadeamento seqüencial de alguns complexos triádicosorganizados em combinação de terças e sextas, em suasdiversas qualidades e que, em justaposição, proporcionamencontros ocasionais de segundas e quartas.

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Além destes aspectos, a variedade do teor harmônico destasformações triádicas, a forte independência (rítmica e melódica)das vozes e a ausência do caráter modulatório nos episódios(de acordo com os aspectos tradicionais barrocos) contribuempara a ausência de relação entre as seqüências horizontais.O amplo uso de cromatismo corrobora a complexidade noreconhecimento destas formações e de seu teor, bem comodas relações decorrentes.

4. Organização RítmicaÉ importante observar nesta fuga, a dinâmica de oposição queocorre entre o ritmo das exposições do sujeito e dos episódios.O caráter sincopado e tenso, característicos do materialtemático, opõe-se ao caráter fluido dos episódios. Um intensotrabalho de elaboração motívica, constituído essencialmentede seqüências rítmicas e/ou melódicas, proporciona ummovimento propulsor. Esta dinâmica de oposição, originada jána variedade do material rítmico do S, contribui para aelaboração da tensão rítmica crescente neste movimento,desencadeando a Toccata.

Freqüentes mudanças de compassos ocorrem nestemovimento: ao todo, 17. As 14 primeiras (que ocorrem até oinício da Toccata), são constantes e regulares, e servem paraa manutenção da integridade do material temático. Este nãosofre alterações significativas, à exceção da entrada dasegunda reexposição (S sozinho e transposto à 3a acima, c.25), que apresenta uma pequena alteração na célula inicialdo S (Fig. 10b). Mesmo que essa alteração ocorra apenascomo uma diminuição no valor da nota final da célula principalde S (o motivo triádico em tercinas), o material temático não édescaracterizado.

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Apesar da instabilidade rítmica do material temático,proporcionada pela sua assimetria, a figuração se mantémconstante e regular no decorrer do movimento. Portanto, estasmudanças de fórmula de compasso que ocorrem antes daToccata não alteram a estrutura do movimento, mas confirmamsua função rítmica em relação ao material temático. As outrastrês mudanças de fórmula de compasso ocorrem no início eno decorrer da Toccata (c. 57, 65 e 67, respectivamente). Dadaa profusão de figurações rítmicas e melódicas nesta seção,estas últimas mudanças de fórmula de compasso nãoapresentam uma relação significativa com os elementoselaborados, e nem com a estrutura da seção.

Visto que as mudanças na fórmula de compasso ocorremapenas em decorrência do material temático, os episódiosconservam a integridade do seu fluxo. Esta estabilidadeassegura sua fluência e também contrasta com o caráter daexposição e das reexposições.

Por outro lado, o uso de figuração rítmica variada do S(especialmente do contraste evidenciado pelo uso das tercinas)torna-se um elemento gerador para a formação de polirritmias,bem como da alternância e a coexistência de padrões rítmicosassimétricos. É importante mencionar a presença de umostinato com agrupamento assimétrico que preserva a métrica

Fig. 10: Sujeito original (10a, c. 1 – 5) e sujeito alterado (10b, c. 25 – 29)

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proporcional à fórmula de compasso (c. 51 – 56, voz inferior)e coexiste com a figuração repetitiva na voz superior (c. 54 e55).

5. Técnicas contrapontísticasA organização em duas seções de cada episódio desta fuga édigna de menção. Nos primeiro e terceiro episódios há uso decontraponto duplo quando da elaboração do material motívicoque se alterna entre ambas as vozes em cada uma das seções.Há também seqüências em todos os episódios e ainda, usode imitação no início da Toccata.

O segundo episódio, localizado na parte central da fuga,assume o caráter de um ponto de equilíbrio da estrutura. Alémde sua localização, a organização em duas seções, separadaspor barras duplas (c. 33 e 34), colabora na compreensão deum gesto finalizador. Este gesto produz um efeito dedesaceleração (antes da barra dupla, c. 33) e sua continuaçãosugere o reinício do trabalho de desenvolvimento do material,através da mudança de andamento indicada: meno mosso. Éneste episódio que se nota o uso mais livre de intervalosdissonantes, bem como a flexibilização dos aspectos rítmicosdos motivos elaborados.A organização dos episódios aponta para uma preocupaçãocom o equilíbrio e a simetria do movimento. A disposiçãocontrária deste movimento em relação ao tradicional – Fuga eToccata, ao invés de Toccata e Fuga – foge do mais usual.

Nesta fuga, intervalos dissonantes coexistem em ocorrênciasproporcionais em relação a intervalos consonantes. Asdissonâncias são freqüentemente introduzidas e resolvidas porsalto em pelo menos uma das vozes; isso contribui para a

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predominância de movimento oblíquo entre as linhas. Éfreqüente o encadeamento paralelo de dissonâncias; aintensidade da dissonância nesses encadeamentos varia deacordo com os intervalos utilizados, e com o contexto.

Nos primeiro e terceiro episódios verifica-se a presençasimultânea de estruturas baseadas em terças, sejam estasmaiores ou menores, em seqüência (c. 17 – 20, 45 – 48). Estasseqüências estão estruturadas, na maior parte das ocorrências,em movimento paralelo de suas fundamentais; isso pode serpercebido na direção comum entre as linhas. Ao mesmo tempo,os intervalos melódicos internos dos motivos elaborados nasseqüências estabelecem movimentos contrários paracompensar o paralelismo.

CONCLUSÃO

Apresentam-se a seguir, as conclusões sobre os diversosaspectos analisados nas duas fugas para piano de BrunoKiefer:

• Foram detectados graus significativos de semelhança naapresentação do material temático em ambas as fugas:

1) Preservação da relação intervalar entre S e R nasexposições conforme as características das fugastradicionais do período barroco, salientando-se que nestecaso não há preocupação com a função tradicional da Rtonal – ou seja, o compositor emprega o recurso derespostas reais que preservam a configuração intervalaroriginal;

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2) Transposição do CS nas primeiras reexposições, com Se R nas alturas originais;3) Ausência de CS nas segundas reexposições queapresentam apenas o S transposto;4) Recapitulação do material temático nas alturas originaisna reexposição final de cada uma das obras;5) Ausência de ocorrência simultânea de S e CS transpostosno decorrer das duas fugas; se S é transposto, CS estáausente; CS transposto ocorre com S na altura original.

• Manutenção constante do tecido contrapontístico estruturadoe do trabalho essencial de elaboração motívica nos episódios.Uso dos principais recursos da escrita contrapontística de fuga:contraponto duplo, stretto, imitação e seqüências sobrefragmentos derivados do material temático, apontando umaênfase nos aspectos lineares em ambas as fugas, em oposiçãoà preocupação com o aspecto vertical;

• Preocupação com simetria e equilíbrio estruturais em ambasas fugas; uso de procedimentos comuns a fim de conferirunidade e coesão aos movimentos através da elaboração deseções equilibradas e simétricas;• As diferenças de caráter rítmico entre as fugas não implicamem ausência de consistência e regularidade na apresentaçãodo material temático; a coesão estrutural é assegurada porum equilíbrio funcional entre as seções, coerente com o caráterdo discurso rítmico, melódico e harmônico de cada fuga.

Deve-se salientar algumas diferenças entre as fugas para pianode Bruno Kiefer: E a vida continua... apresenta um Scaracterizado pelo uso contrastante de intervalos dissonantese consonantes, assim como uma preocupação com a simetria

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e com o equilíbrio rítmico. Nesta obra, a preocupação com asimetria na construção de S reflete-se no decorrer de todo omovimento, através da manutenção de uma figuração rítmicaequilibrada e na regularidade da apresentação do materialtemático. O uso do cromatismo permite que o contraponto sejarealizado em regiões melódicas não relacionadasharmonicamente, enfatizando a linearidade do tecido.

Já no terceiro movimento da Sonata I, S apresenta umainstabilidade rítmica e melódica, através do uso de figuraçãorítmica variada e de intervalos dissonantes, ainda querecorrentes. O uso extenso de cromatismo permite a formaçãode padrões diversificados no seu teor harmônico. Nesta Fuga

e Toccata, a variedade de figuras rítmicas e os intervalosmelódicos dissonantes e recorrentes de S proporcionam, comoelementos geradores, uma dinâmica rítmica tensa e umaelaboração harmônico-melódica imprevisível.

Ao contrário da organização estrutural proposta por Gandelmanpara esta fuga, “Toccata a partir de Tempo I [(c. 41)]” (1997, p.91), determinou-se o início da Toccata somente no c. 57, apósa conclusão do movimento ostinato da voz inferior e dafiguração rítmica em desaceleração na voz superior (c. 55 e56). Sugere-se esta organização após considerar que o terceiroepisódio (c. 45 – 56) confere equilíbrio ao movimento, econtribui para a simetria em relação ao primeiro episódio (c.16 – 24). Essa simetria pode ser observada tanto nasemelhança do material elaborado, como nas estruturas, poisambos dividem-se em duas partes. Assim, o segundo episódio(c. 29 – 40) assume papel de vértice, colocando-se como pontocentral de equilíbrio.

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O próprio movimento em desaceleração (c. 56 e 57) sugereuma pausa ou uma finalização para a fuga. O motivo marcantedo S (tríades em tercinas) reaparece nos compassos 57 e 58em movimento sucessivo, tornando-se uma célula a partir daqual todo o movimento conseqüente na Toccata é gerado.Tratando-se da escrita contrapontística nestas obras:

• Constatou-se uma íntima aproximação do estilo de Kiefercom os padrões tradicionais da fuga do período barroco –função e caráter das seções preservadas; movimento entreas vozes conduzido de acordo com as característicastradicionais, consistência no tratamento motívico e naselaborações decorrentes;

• Verificou-se ainda que, apesar das semelhanças estruturais,as fugas preservam linguagens individuais no que se refereao conteúdo intervalar do material temático, na disposição dasalturas e na organização dos motivos e suas decorrentesrelações. Entre as duas peças percebem-se semelhanças notratamento das dissonâncias. O compositor privilegia aregularidade e consistência na apresentação do materialtemático apesar das linguagens adotadas.A escrita contrapontística de Bruno Kiefer nestas duas fugascaracteriza-se pelo emprego de procedimentos tradicionaisaliados a uma estrutura coesa. As inovações concentram-sesobre a melodia, harmonia e ritmo de cada fuga. A coesãoestrutural é assegurada pelo emprego de procedimentoscaracterísticos da técnica fugal, aproximando-se dos modelosbachianos.

A linguagem musical é expandida quanto ao uso de intervalosdissonantes nas melodias, construindo novas resultantes

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verticais. Seu estilo na escrita fugal, se por um lado é tradicionalna estrutura e na utilização de procedimentos contrapontísticos,por outro, adota uma linguagem moderna, distinta e definidapara cada fuga, coerente com as propostas musicais do seutempo.

A consistência destes aspectos confirma a fusão de um estiloque reflete o passado, em relação à estrutura e organicidadedas fugas, e de um idioma inovador, em relação aos seuscontornos e delineamentos. O conjunto destas qualidadesdefinidoras assegura a singularidade, a integridade e o valordo discurso musical de Bruno Kiefer.

Notas:

1 A partir deste ponto, serão adotadas as abreviações S para sujeito, CS para contra-sujeito, e Rpara resposta, para referir-se ao material temático.

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Partituras

KIEFER, Bruno. Duas Peças Sérias. Partitura para piano (manuscrito). Porto Alegre, 1957._____________. Sonata I (1958). São Paulo: Ricordi, 1973.

Discografia

KIEFER, Bruno. E a vida continua – obras para piano solo de Bruno Kiefer. Cristina Capparelli,piano. Porto Alegre: FUNPROARTE, 1995.

Rafael Liebich: É Mestre em música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)e graduado em música pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atua como pianista,camerista, e pesquisador ligado ao Grupo de Pesquisa em Práticas Interpretativas do Programade Pós-Graduação em Música da UFRGS.

e-mail: [email protected]

Any Raquel Carvalho: É Doutora em música pela University of Georgia (EUA), professora eorientadora de mestrado e doutorado no PPG-Música do Instituo de Artes da UFRGS. Atua comoorganista, concertista e conferencista no Brasil e no exterior. Como pesquisadora do CNPq temdesenvolvido trabalhos na área de contraponto, fuga e música brasileira para órgão.

e-mail: [email protected]

Cristina Capparelli Gerling: É Doutora em música pela Boston University (EUA), professora depiano no Departamento de Música e orientadora de mestrado e doutorado em práticas interpretativasno PPG-Música da UFRGS. Como pianista, conferencista e pesquisadora do CNPq, tem publicadoregularmente sobre análise musical no Brasil e nos Estados Unidos.

e-mail: [email protected]

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C

O CONCEITO DE PARADOXO PARA ERNST WIDMER

Leonardo Loureiro Winter

Resumo - O presente artigo trata do estabelecimento do conceito de paradoxo em música segundoa acepção do compositor suíço-brasileiro Ernst Widmer (1927-1990). A partir de uma declaraçãodo compositor da importância do paradoxo na obra “As Quatro Estações do Sonho” op. 129,foram investigadas as utilizações do termo e aplicações na estrutura musical tendo como suportea análise da produção teórica e declarações de Widmer. A pesquisa indicou, em relação aoparadoxal, a presença de dois elementos inter-relacionados: o comportamento eclético e arelativização de conceitos, além de identificar elementos contrastantes na estrutura musicalsegundo o entendimento do compositor.

Palavras-Chave: Ernst Widmer. Paradoxo. Música Brasileira.

Abstract - This work aims to establish the concept of paradox in music according to theunderstanding of the composer Ernst Widmer (1927-1990). The research’s starting point was acomposer´s statement, found on the manuscript’s preface of “As Quatro Estações do Sonho” op.129, referring to the paradox as a relevant element. The composer’s sense of the term and theidentification of paradoxical elements on musical structure were investigated through analysis oftheoretical writings. The survey summoned the presence of two relationship elements: the eclecticbehavior and the relativeness of concepts and also identified contrasting elements on musicalstructure.

Keywords: Ernst Widmer. Paradox. Brazilian Music.

Introdução

ompositor, pianista, regente e educador de destaque nocenário musical brasileiro da segunda metade do séculoXX, o suíço-brasileiro Ernst Widmer (1927-1990)

desenvolveu a maior parte de sua obra composicional noBrasil.1 Premiado em concursos nacionais e internacionais decomposição,2 Widmer produziu uma extensa obra musical emmais de 170 composições catalogadas.3 Suas obras abrangemdiversos gêneros musicais: óperas, sinfonias, ballets, missas,

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oratórios, música para orquestra, coro e orquestra, concertospara diversos instrumentos, música de câmara e vocal, obraspara instrumentos e fita magnética, música para peças teatrais,trilhas de filme, entre outras.

A análise do conjunto das obras do compositor revelainfluências estéticas diversas. Em suas composiçõesidentificamos a conjunção sincrética de elementos associadosa diferentes culturas: música folclórica nordestina, música davanguarda européia e norte-americana, música afro-baiana eda música folclórica de diversos países. Essa conjunção deelementos - por vezes presente em uma mesma obra - permiteconstruções musicais onde características estéticasdiversificadas podem ser identificadas, resultando em um“mosaico” musical.

Em 1981, Ernst Widmer compôs uma obra para duas flautastransversais e orquestra de cordas intitulada “As QuatroEstações do Sonho” opus 129.4 Essa obra foi composta comoresultado de uma encomenda realizada ao compositor pelaCuradoria de Desenvolvimento Cultural do Cantão de Aargau,Suíça. Com aproximadamente vinte e quatro minutos deduração, a obra é constituída por quatro pequenos poemassinfônicos concertantes, onde cada movimento recebe adenominação de uma estação do ano: Primavera, Verão,Outono e Inverno.

Conforme anotações do compositor -escritas em alemão - nofrontispício do opus 129:

As quatro estações do sonho para 2 flautas e orquestra de cordas, deErnst Widmer, opus 129 - 1981 [...] quatro pequenos poemas sinfônicosconcertantes, executados isoladamente, aos pares, em número de três

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ou em qualquer seqüência das estações do ano: Primavera, Verão,Outono, Inverno como em Vivaldi e Haydn; Outono, Inverno, Primavera,Verão como no Hemisfério Sul; Inverno, Primavera, Verão, Outono,conforme o ano no calendário nórdico; Verão, Outono, Inverno,Primavera, na seqüência do calendário do hemisfério sul.5 [traduçãonossa]

Anexo ao texto musical, o compositor apresenta um textoexplicativo sobre a obra:

Estações do Sonho - ou desestações salienta o paradoxal queacompanha o ciclo original do tornar-se, ser e desvanecer: a Primaveraé despertar e tristeza, o Verão zênite e chuva morna, o Outonomaturidade e ímpeto, o Inverno contemplação e suaves colinas nevadasensolaradas.6 [grifo e tradução nossos]

Neste depoimento do compositor, observamos que, apesardeste afirmar que a obra “... salienta o paradoxal”, não explicitade que maneira isto é realizado, nem descreve qual(is) o(s)elemento(s) paradoxal(is) no opus 129. Além disso, outrasquestões surgem desta problemática: O que é paradoxo emmúsica? Qual o conceito do termo para o compositor?

Para a definição de paradoxo, segundo a acepção de Widmer,é necessário considerarmos diferentes aspectos. Essesaspectos abrangem desde idiossincrasias pessoais, contextosgeográficos, históricos e sócio-culturais a áreas específicasde atuação profissional (composição musical, pedagogia, etc).O entendimento de que esses aspectos formam um conjuntode características e atitudes e que estes são, em última análise,indissociáveis da personalidade do compositor é fundamental.Através dessa linha de pensamento e da construção doentendimento do termo na análise de escritos, declarações eentrevistas do compositor é que serão procuradas as acepçõesdo conceito para Widmer.

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A análise de textos de Widmer7 (artigos, monografias, teses,comunicações, relatórios, projetos, entrevistas e declarações)permite traçar, em relação ao paradoxal, a presença de doiselementos inter-relacionados: o comportamento eclético eheterodoxo como princípio pessoal, musical e educativo e arelativização dos conceitos. Enquanto que o ecletismo permitea convivência sincrética de elementos distintos, a relativizaçãobusca a flexibilização do pensamento e a inclusão de elementosdistintos - o “isto e aquilo” - na mesma estrutura8 . O seguintefluxograma permite a representação do que foi exposto,mostrando a relação entre esses elementos:

Fig. 1 - Relação entre ecletismo, relatividade e paradoxo para Widmer.

Ecletismo Relatividade

Paradoxo

A primeira afirmação paradoxal a ser analisada é a declaraçãode princípios do Grupo de Compositores da Bahia - do qualWidmer foi mentor, fundador e professor da maioria dosintegrantes - presente no boletim informativo número 1 do grupo(1966). O artigo único dessa declaração propõe que “...principalmente estamos contra todo e qualquer princípiodeclarado”.1 Esta declaração de princípios contraditórios podeser compreendida vinculada ao contexto no qual o grupo surgiu:ao mesmo tempo em que se declaram receptivos a outrasinfluências musicais, também afirmam sua independência em

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relação a escolas composicionais. Nas palavras de Widmer,alguns anos mais tarde, este princípio representava um “...esforço consciente de uma postura não-dogmática valorizandoa diversidade idiossincrática” e evitando “... um tolhimentooriundo de técnicas e estilos já sistematizados”.2 É atravésdesses procedimentos de valorização e aceitação dasdiferenças individuais e da posição flexível e heterodoxaassumida por Widmer e membros do Grupo de Compositoresda Bahia, que o ecletismo aparece como uma alternativa viávele coerente na busca de uma identidade composicional.Observamos ainda nas deliberações contidas no mesmoboletim informativo, posicionamentos dúbios e irônicos taiscomo: “... não se revogue indisposições em contrário” ou “... oque ocorrer de normal não será responsabilidade nossa”,manifestando o interesse e desejo do grupo na renovação dasestruturas musicais tradicionais.3

No artigo de “Travos e Favos” publicado em 1985, Widmerreflete e explicita as posições do conceito paradoxal emconexão com o comportamento heterodoxo e a convivênciasimultânea (sincrética) de realidades contrastantes, prestandoum depoimento significativo:

Em nossa época os planos, por mais heterogêneos que sejam, sesobrepõem: o regional, continental, universal.Para encontrarmos a nossa identidade precisamos livrar-nos depreconceitos, preceitos, correntes, correias e escolas. Não basta tirarantolhos, é preciso também tomar cuidado de não munir-se de antolhosalheios...Nesse sentido, o movimento do Grupo é anti-escola, descondicionadore paradoxal.Na verdade, creio que dualismo, antagonismo e contradição pertençamao passado. O movimento do Grupo permitiu-me abrir os olhos quantoao trabalho de meus colegas, especialmente ao de Walter Smetak echegar a vislumbrar que o dual está virando trial, o dilema trilema, e otemido choque de estilos ecletismo.Ecletismo como ‘estilo’ de uma época sincrética.São contracampos que vêm substituir contraponto e harmonia, com adiferença de que, desde o seu surgimento, assumem feições estruturais

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e não estruturalizantes, paradoxais e não paradigmáticas,heterogêneas e não homogêneas.4 [grifos nossos]

Nesse artigo observamos o reconhecimento por parte docompositor da importância da época, do meio social, culturale geográfico na formação do indivíduo e da superposição dereferências diversas (regionais, continentais e universais) emsuas escolhas composicionais. A caracterização, por parte docompositor, da atualidade como uma época sincrética permitecom que seja possível a unificação de idéias e influênciasdiversificadas no campo musical. Particularmente para Widmer,essa diversidade reflete-se na música através da justaposiçãoou superposição de elementos de diferentes culturas(nordestinas, européias, folclóricas de diversos países, etc.),resultando em um conjunto de influências distintas. Para ocompositor, a busca de uma identidade composicional érealizada através da independência de posições, daflexibilidade das escolhas e da superação de conceitosdefasados (“tirar antolhos”). A oposição de elementos, o conflitode dualidades e o contraditório são substituídos pelo ecletismoem convivência sincrética. Para Widmer, a “resposta musical”a uma época onde se apresentam tão diversificadas opções érealizada através do ecletismo sincrético, permitindo aflexibilidade de diferentes influências. Conforme o compositor,a aplicação musical de um estilo eclético possui vantagens secomparada à ortodoxia do ensino tradicional de música,estabelecendo padrões flexíveis, não-estruturalizantes notratamento do material musical.

1. Ecletismo

A origem de um estilo musical eclético em Widmer pode sercompreendida na análise da trajetória pessoal do compositor:

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nascimento e formação musical européias, imigração para oBrasil, aceitação e assimilação de uma nova realidade cultural.Além disso, a opção por residir em Salvador - onde amiscigenação racial e cultural se faz presente de maneirasignificativa - possibilita a convivência de diferentes culturasem um único lugar, contribuindo para a diversidade deinfluências. Adicione-se a estas mudanças geográficas,culturais e sociais, que a convivência, aceitação e,principalmente, a assimilação de uma nova realidade no Brasilcontribuíram na flexibilização e relativização dos conceitos parao compositor. Por outro lado, essa mudança provocou areavaliação da cultura européia em termos amplos (pessoais,culturais, composicionais, educativos, etc.), estabelecendo umreferencial flexível e abrangente. Note-se também que, apesarde Widmer residir no Brasil durante a maior parte de suacarreira composicional, os laços com a terra natal forammantidos através de contatos esporádicos, fazendo com queo compositor vivenciasse as diferenças e contrastes culturaisde maneira significativa.

A análise dos textos do compositor demonstra umcomportamento eclético em relação à criação musical. Em umaafirmação sobre princípios composicionais, Widmer declaraseu posicionamento contra a ortodoxia e a busca incessante -por parte de alguns compositores da vanguarda - daoriginalidade estética como pressuposto fundamental:

Eu não ando correndo atrás da originalidade, mas quando digo umacoisa, ela vem sempre como uma coisa nova. Minha música é umamúsica nova menos pretensiosa, menos ortodoxa, por que o pior dovanguardismo é que ele é ortodoxo, não pode usar maneiras que osantigos usavam porque deixaria de ser vanguarda. É por isso que tiveramde inventar a transvanguarda e assim vai, acabando num beco semsaída, por causa do ortodoxismo. Eu sempre fui heterodoxo antesdo choque, muito antes do choque.5 [grifo nosso]

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Nesta declaração, observamos a crítica de Widmer em relaçãoà busca incessante do “novo” e na ortodoxia de posiçõesassumida pela vanguarda musical. A essa ortodoxia, ocompositor prefere a heterodoxia e a flexibilização, sempreocupação com a originalidade como pressupostocomposicional.

Assim como na composição musical, no campo educacional aheterodoxia de posições também era utilizada como princípio.No terceiro boletim informativo do Grupo de Compositores daBahia em 1968, Widmer proporciona um depoimento sobreseu comportamento heterodoxo em relação ao ensinocomposicional:

Sou contra escola, por que sou pela aplicação de princípiosheterodoxos. Por isso mesmo procuro sempre estimular a composição“livre”, paralela e anterior ao estudo da teoria, do contraponto, daharmonia, da análise, da fuga, do cânone, do prelúdio-coral, dosrecercarsonatavariaçãorondós [sic].6 [grifo nosso]

A associação de escola composicional com soluções “prontas”e ortodoxas permite vislumbrar a aplicação da filosofiaheterodoxa e flexível do professor de composição, incentivandoa descoberta, por parte dos alunos, de “soluções”, sem impor(pre) conceitos na criação musical.No “Esboço de um auto-retrato a partir de vários pontos devista”, um texto preparado pelo compositor para um encontrode compositores suíços em 1980, Widmer proporciona umdepoimento sobre sua posição heterodoxa:

A distância adquirida transformou-me em profeta do relativo. Ajudou-me também a livrar-me de determinados escrúpulos. Assim, porexemplo, a pressuposição de que deve-se escrever ou evitar escreverde tal ou qual forma segundo Webern [...], e que isso ou aquilo sejanecessariamente trivial ou kitsch. Penso que cada nova aquisição deveser utilizada, e que os estilos e escolas que por princípio contradizem

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os seus predecessores, são ultrapassados por regras e hábitos. Seique isso me rotulou de heterodoxo e vários colegas torcem o nariz,gritam e esperneiam, porque o sincretismo ameaça a unidade artística.7

A essa declaração, podemos associar a mudança geográficado compositor e o encontro de uma realidade cultural distintade sua terra natal. Esses elementos, segundo Widmer,contribuíram positivamente na sua formação musical,permitindo livrar-se de dogmatismos estilísticos. Dessamaneira, o sincretismo passava a representar uma soluçãoviável e abrangente das possibilidades musicais, contrapondo-se à ortodoxia de soluções consagradas e “modismos”musicais. Widmer comenta:

O serialismo, pós-serialismo, mesmo o minimalismo são uma espéciede modismo que muitos brasileiros adotam por que vêm de fora.Enquanto nós já temos aqui, na fonte, o candomblé, o batuque docandomblé que é uma música minimalista e que tem toda aquelapujança, toda aquela força.8

Outro elemento que reforça a associação de Widmer àscaracterísticas ecléticas é a descrição realizada pormusicólogos sobre o compositor. Béhague descreve ocompositor como “... uma gradual convergência de intuição eintelecto, ingenuidade e sofisticação, originalidade etradicionalismo. Este conjunto de atitudes resultou no que ele[Widmer] chamou de fases ‘progressivas’ e ‘regressivas’,freqüentemente em coexistência”.9 Neves afirma que “…Widmer, como seus alunos, assumirá posição de ecletismoconsciente e intencional dentro da politécnica que enriqueceseu universo sonoro”.10

2. Organicidade e relatividade

Na análise dos textos do compositor identificamos a presença

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de dois princípios norteadores das atitudes de Widmerenquanto compositor e pedagogo: a organicidade e arelatividade. Esses conceitos foram sendo amadurecidosgradativamente ao longo da carreira composicional e docentede Widmer até sua formulação definitiva em 1988. Uma dasprimeiras referências encontradas está presente no texto“Problemas da Difusão Cultural” de 1979, onde o compositorfaz referências sobre o papel da relatividade na cultura e naarte. Neste texto Widmer afirma que “... a diversificação erelatividade são virtudes fundamentais [para se compreendercultura e arte]”.11 No artigo “Tentativas de refletir e denunciar...”,publicado na revista ART da Escola de Música e Artes Cênicasda UFBA em 1981, observamos a descrição de duas “forças”que, além da emoção, criam a obra de arte. A primeira “força”tem origem nas referências do indivíduo e na construção desua identidade. A segunda “força” é associada com a buscade princípios inovadores, no inconformismo e na rebeldia.

Segundo Widmer:

Além das emoções, há duas forças básicas que disciplinam e fazem aarte jorrar:-uma congênita, raiz, afirmativa e identificadora;-outra circunstancial, contexto, inconformista e inovadora.Ambas convivem no artista e na sua obra cuja trama paradoxal emjustaposições de fórmulas e experiências, rituais e prospecções,chavões e estalos, reflete sua época, sua origem, seu mundo, sendopor isto mesmo, orgulhosamente única, inimitável, não-industrializável,original. 12 [grifo nosso]

Observe-se neste texto a presença de dualidades que seinterpenetram e influenciam, convivendo com a personalidadedo compositor e de sua obra. Para o compositor, o processocriativo apresenta influências de diferentes facetas resultando,deste convívio de princípios diversos, o ecletismo sincrético.

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Note-se também, a referência feita pelo compositor dajustaposição paradoxal presente na composição de uma obracomo resultante destes princípios dualistas.

Os princípios de organicidade e inclusividade foramsintetizados mais tarde pelo compositor no texto “A formaçãodos compositores contemporâneos ... e seu papel na educaçãomusical” de 1988. Conforme Widmer:

A primeira lei tem a ver com o ato criador, que se constitui das seguintesfases: conceber, fazer nascer, deixar brotar, vingar, vicejar eamadurecer—portanto um processo rigorosamente orgânico do qualresulta a forma, e o qual implica em podar, criticar ininterruptamente.13

[grifo nosso]

Neste texto presenciamos a transformação e amadurecimentodo conceito para o compositor: se anteriormente os princípioseram designados de “forças” presentes na criação musical,neste momento tratam-se de “leis”, apresentando influênciasinclusive na forma musical, no desenvolvimento lógico,coerente e conseqüente das idéias musicais envolvidas. Esseamadurecimento dos conceitos demonstra a coerência econtinuidade da linha de pensamento do compositor em relaçãoà criação musical e suas escolhas. Segundo Lima, aorganicidade manifesta-se em Widmer através da “... escolhade métodos e processos envolvidos em compor ou ensinar, nodesenvolvimento lógico das idéias musicais, na relaçãoorgânica com os indivíduos e idéias envolvidas permitindo quea personalidade de cada um se manifeste e desenvolva semimposição do professor”.14 Ainda conforme Lima, aorganicidade manifesta-se na música de Widmer através dasseguintes características:

• Utilização de motivos como elementos unificadores;

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• Utilização da escala octatônica como repositório de conjuntos [014] e[025];• Formação de conjuntos complexos a partir de uma “idéia básica”;• Desenvolvimentos surgem do próprio material utilizado;• Valorização de procedimentos variacionais [...];• Valorização de artifícios de simetria como elementos estruturais emconexão com a elaboração motívica e a montagem serial;• Legitimação da “idéia geradora” como elemento unificador dacomposição, permitindo conexões no processo composicional.15

Já o princípio oposto e complementar, denominado de“relatividade”, trata-se de (segundo Widmer):

A segunda lei se baseia na relatividade das coisas, dos pontos de vista[...] Devemos admitir que não se trata mais de dualismos como ‘ou istoou aquilo’ [...] e sim da realidade paradoxal do ‘isto e aquilo’.Inclusividade em lugar da exclusividade.16 [grifos nossos]

Este é um depoimento fundamental no entendimento do termoparadoxo para o compositor. Através dele relacionamos oconceito paradoxal com a postura “inclusivista” de Widmer,permitindo a existência simultânea de princípios contraditóriose fazendo desta convivência eclética um elemento vital,refletindo-se nas mais diversas áreas como composição,pedagogia e atitudes pessoais. Segundo Lima, a relatividaderefere-se “... à convivência de opostos; à mistura de verdadesculturais distintas; quando as possibilidades orgânicas dedesenvolvimento esbarram no imprevisível, na transcendênciapara a realidade paradoxal e inclusivista”.17 Ainda de acordocom Lima, na música de Widmer, a inclusividade manifesta-se:

• Quando o tonal e atonal se entrecruzam de maneira inesperada eaparentemente incoerente;• Na justaposição de serialismo, tematicismo e centricidade;• Contigüidade e interpenetração de elementos contrários que setransformam em elementos definidores da forma musical;• Recursos de indeterminação associados à tendência de valorizaçãodo som se desenvolvem paralelamente as técnicas de elaboraçãomotívica e montagem serial;

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•Tendências referencialistas;•Valorização simultânea de atitudes lógico-dedutivas e da busca deimpacto sensorial-sonoro.18

3. Aplicações na estrutura musical

Pesquisando o conjunto de escritos de Widmer, observamosdepoimentos do compositor sobre elementos estruturaiscontrastantes em música. A identificação, por parte docompositor, desses elementos na estrutura musical de umaobra permite com que elementos musicais sejam confrontadosna superfície musical, ocasionando o surgimento de relaçõesmusicais paradoxais.19

Na estrutura musical, Widmer identifica elementoscontrastantes no ritmo, na melodia, na forma, na notaçãoutilizada e no emprego de sistemas musicais diferenciados.As seguintes referências foram encontradas:

* Ritmo, melodia e forma como elementos contrastantes:

Na tese “Bordão e Bordadura”, escrita para o concurso deprofessor assistente da escola de música e artes cênicas daUFBA, o compositor compara elementos fundamentais daestrutura musical do início da polifonia ocidental ao séculoXX.

Segundo Widmer fazem parte de estruturas musicaiscontrastantes:

ritmo: regular, métrico;melos: melodias, encadeamento de acordes baseados num baixo;forma: frases, períodos, movimentos;contrastando com muitas obras do período atual(que por isso requerem novos processos de análise):ritmo: livre, assimétrico;

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melos: manchas (fatias horizontais) de timbres, super e justaposiçãode faixas sonoras, ausência do baixo ou do “canto firme”;forma: fases, blocos sem início nem fim (fatias verticais).20

Observe-se que enquanto os primeiros elementos estruturais(ritmo regular, melodias e frases melódicas) estão associadoscom as técnicas composicionais da musical “tradicional”(conforme os padrões ocidentais), os outros elementosestruturais (ritmo livre, faixas sonoras e blocos) estãoassociados com as técnicas composicionais da música devanguarda da segunda metade do século XX.21

* Grafia como elemento contrastante:

No artigo “Grafia e prática sonora”, escrito para apresentaçãono “Simpósio Internacional sobre a problemática da grafiamusical” (realizado em Roma em 1972), o compositor observaque “... no início da segunda metade deste século [século XX],à linguagem musical, que se tornara sempre mais emaranhadae complexa, sobreveio paradoxalmente uma simplicidadenova provocando, como conseqüência, também, uma notaçãonova”.22 [grifo nosso]. No entendimento do compositor,enquanto a escrita tradicional de música tem a exatidão comoprincípio, a nova grafia - utilizada por compositores davanguarda do século XX - permite múltiplas soluções ecaminhos sendo, portanto, favorável à criatividadeinterpretativa.23

* Utilização de diferentes sistemas musicais:

Outro elemento de contraste na estrutura musical das obrasdo compositor manifesta-se através da superposição oujustaposição de sistemas musicais distintos (modais, tonais,

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atonais). No artigo “Cláusulas e cadências”, publicado narevista ART de 1984, o compositor comenta o processo deelaboração da obra “Sertania” op. 138 em relação àjustaposição modal e serial: “... isto fez [o processocomposicional] com que Sertania fosse predominantementemodal, embora enveredando uma serialização progressiva”.24

Conclusão

A conclusão aponta para a inter-relação de princípios ecléticose relativistas como geradores do conceito paradoxal emWidmer. A postura eclética de Widmer (envolvendo atitudespessoais, composicionais e educativas) conjuntamente com arelatividade e flexibilidade dos conceitos permitem com quedistintos princípios estético-musicais sejam combinados econfrontados. O conceito paradoxal é de importânciafundamental no entendimento e compreensão da música docompositor, onde influências estéticas diversas (como, e.g,música folclórica nordestina, música de vanguarda européia enorte-americana, música modal, tonal, e atonal) convivemsincréticamente na superfície e estrutura musicais. Aidentificação de elementos estruturais contrastantes em músicarealizada pelo compositor faz com que esses elementos, aoserem utilizados simultaneamente na superfície musical,possibilitem a identificação de elementos musicais comcaracterísticas paradoxais.

Genericamente a pesquisa conclui que não é possível obteruma definição absoluta do que seja paradoxo emmúsica.[grifos nossos] Esta dificuldade de estabelecer umconceito geral para o termo aplicado à música provém decaracterísticas inatas a esta, onde o significado é estabelecido

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pelo contexto musical que, uma vez modificado, transforma osignificado. Estabelecer um conceito definitivo do que seriamelementos paradoxais em música também não é possível, poisum elemento musical não apresenta a capacidade decontradizer o outro, atuando, no máximo, como elementocontrastante ou complementar na superfície musical. [grifosnossos] Nesse sentido, o paradoxo em música e a utilizaçãode elementos paradoxais na música devem ser compreendidosassociada ao estudo estilístico de cada compositor onde, umavez estudado e decifrado o conjunto de características e dereprodução de padrões musicais, poderiam ser estabelecidosconceitos aplicáveis para determinado compositor e, maisespecificamente, uma obra.

Notas:

1 A carreira composicional de Widmer pode ser dividida em duas fases: um período suíço,correspondendo aos anos de formação musical e primeiras composições (de 1927 a 1955) e umperíodo brasileiro, correspondendo à maturidade composicional e maior número de obrascompostas (de 1956 a 1989).2 Entre os prêmios conquistados por Widmer em concursos de composição destacam-se: PrixHugo de Senger des Jeunesses Musicales Suisses (Suíça, 1960), Prêmio do Congresso pelaLiberdade da Cultura (Roma, 1963), Prêmio Comissão Estadual de Música (São Paulo, 1968),Prêmio do II Festival da Guanabara (Rio, 1970), Concurso Nacional de Composição organizadopelo Instituto Goethe e Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (1973), Prêmio Associaçãodos Críticos de Arte de São Paulo (1974, 1983 e 1985), Prêmio Governador do Estado de SãoPaulo (1975), Concurso Nacional Associação de Ballet do Rio de Janeiro (Rio, 1976), ConcursoNacional de Composição de Canção de Câmara (1980), Prêmio no Concurso Funarte / CasaVitale (1980), entre outros.3 Catálogo de obras organizado pela Ernst Widmer Gesellschaft: Ernst Widmer Werkverzeichnis,Willy Bruschweiler (org.), (Brugg: EWG, 1999), 58 p. Livros que apresentam biografia e relaçãode obras de Widmer: Ilza Maria Costa Nogueira, Ernst Widmer: perfil estilístico, (Salvador: Ufba,1997), 200 p.; Paulo Costa Lima, Ernst Widmer e o ensino de composição musical na Bahia,(Salvador: Fazcultura / Copene, 1999), 300 p. Entre teses que apresentam relação de obras deWidmer destacamos: Paulo Costa Lima, “Estrutura e superfície na música de Ernst Widmer: asestratégias octatônicas”, (Tese, Doutorado em Artes, USP/ECA, 2002), 417 p.; Pedro Robatto,“Concerto para clarineta e piano op.116 de Ernst Widmer”, (Tese, Doutorado em Música, UFBA,2003), p 197. Além dessas referências, uma relação de obras de Widmer foi editada peloDepartamento de Cooperação Cultural, Científica e Tecnológica do Ministério das RelaçõesExteriores e organizada até o ano de 1977.4 No frontispício da partitura do opus 129, o compositor apresenta o título da obra em alemão(“Jahrestraumzeiten”) e em português (“As Quatro Estações do Sonho”). Neste trabalho seráadotada a nomenclatura portuguesa para a obra.

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5 “Jahrestraumzeiten für 2 Flöten und Streichorchester von Ernst Widmer, opus 129 - 1981 [...] 4Kleine, Symphonische Konzertgedichte, einzeln, paarweise, zu dritt oder in beliebegerJahreszeitenfolge zu spielen: Frühling, Sommer, Herbst, Winter, wie bei Vivaldi und Haydn; Herbst,Winter, Frühling, Sommer, wie in der südlichen Hemisphäre; Winter, Frühling, Sommer, Herbst,nach dem Kalenderjahr des Nordens; Sommer, Herbst, Winter, Frühling dem Kalenderjahr dersüdliche Hemisphäre zu folge’. WIDMER, Ernst. As Quatro Estações do Sonho, op. 129. Suíça:manuscrito do compositor, 1981, obra para duas flautas transversais e orquestra de cordas.6 “Jahrestraum - oder Jahresunzeiten heben das neben dem Ur-Zyklus des Werdens, Seins undVergehens hergehende Paradoxale hervor: So ist der Frühling Neuerwachen und Trauer, derSommer Zenith und lauer Regen, der Herbst Reife und Schwung, der Winter Besinnung undsanfte Schneesonnenhalden’. WIDMER, ibid.7 Para uma análise detalhada dos escritos de Ernst Widmer consultar LIMA, Paulo Costa. ErnstWidmer e o ensino da composição musical na Bahia. Salvador: Copene, 1999, 358 pp.8 Uma distinção deve ser feita em relação aos conceitos de relatividade e inclusividade: enquantoque a relatividade refere-se à heterodoxia e flexibilidade do modo de pensar, a inclusividade refere-se à junção de elementos de características diversas. A inclusividade pode ser considerada comouma resultante do princípio da relatividade. Segundo Lima, comentando o verso de Antônio Brasileiro- “A verdade é uma só: são muitas” - afirma que “... esse verso resume o que Widmer chamarámais adiante de ‘Lei da Inclusividade’, e tem um formato especial de paradoxo, mostrando apossível convivência de duas afirmações opostas num mesmo gesto”. LIMA, ibid., p. 84.1 Grupo de compositores da Bahia. Boletim informativo nº 1, Ernst Widmer (org.), Salvador:Escola de Música da UFBA, 1966.2 WIDMER, Ernst. Travos e Favos. ART: revista da Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA,Salvador, nº 13, p, 69, abr. 1985.3 GRUPO DE COMPOSITORES DA BAHIA 1966, p. 1.4 WIDMER 1985, op. cit. , p. 69-70.5 WIDMER, Ernst. Em busca de incertezas. In Programa do concerto da Orquestra Sinfônica daBahia em comemoração do sexagenário de Ernst Widmer. Entrevista concedida a Marcos Gusmão.Salvador: Teatro Castro Alves, 1987, 26 de maio de 1987.6 GRUPO DE COMPOSITORES DA BAHIA [ref. 1968], p. 6.7 WIDMER, Ernst. Skizze eines Selbporträts unter verschiedenen Gesichpunkten. (apud Lima1999, op. cit., p. 97).8 WIDMER 1987, op. cit.9“... a gradual convergence of intuition and intellect, naiveté and sophistication, originality andtraditionalism. This complex of attitudes has resulted in what he has called ‘progressive’ and‘regressive’ phases, often in coexistence”. BÉHAGUE, Gerard. Music in Latin American. EnglewoodCliffs: Prentice Hall, 1979, p. 350.10 NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi, 1981, p. 170.11 WIDMER, Ernst. Problemas da Difusão Cultural. In: Cadernos de Difusão Cultural da UFBA.Salvador: UFBA, 1979, p. 17.12 WIDMER, Ernst. Tentativa de refletir e denunciar. ART: revista da Escola de Música e ArtesCênicas da UFBA, Salvador, p. 8, abr. - jun. 1981.13 WIDMER (apud LIMA 1999, op. cit.), p.77.14 Ibid. p 331.15 Ibid., p. 333.16 Ibid., p. 77.17 Ibid., p. 333.18 Ibid., p. 335.19 Elementos contrastantes são em determinados sub-níveis contraditórios. Elementoscontraditórios, quando sobrepostos na superfície musical podem acarretar o surgimento deelementos musicais paradoxais. Observe-se que foi Widmer quem definiu esses elementos comocontrastantes. A aplicação desse conceito, a princípio, é aplicável somente para a música do

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compositor.20 WIDMER, Ernst. Bordão e Bordadura. ART: revista da Escola de Música e Artes Cênicas daUFBA. Salvador nº 4, p. 22, jan. - mar. 1982.21 No caso do op. 129, ambas estruturas musicais estão presentes na obra.22 WIDMER, Ernst. Grafia e prática sonora. In Simposio Internacional sobre a problemática daatual grafia musical. Roma, Instituto ítalo-latino americano, p. 135, out. 1972.23 Ibid. , p. 135.24 WIDMER, Ernst. Claúsulas e cadências. ART: revista da Escola de Música e Artes Cênicas daUFBA. Salvador, nº 11, p. 42, ago. 1984.

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________. Paradoxon versus paradigmas.Salvador; UFBA, 1988.WIDMER, Ernst; LITTO, Frederic M. Relatório da discussão preliminar para a implantação daPós-Graduação em Artes na Universidade Federal da Bahia. Salvador: CAPES/UFBA, 1978.

Leonardo Loureiro Winter: É Doutor em Execução Musical - Flauta Transversal (UFBA),professor de instrumento e coordenador de música de câmara na Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS). Vencedor de vários concursos, atuou como solista de orquestrasbrasileiras. Membro do Trio de Madeiras de Porto Alegre (flauta, clarineta e fagote) e do DuoCoraggio (flauta e clarineta) apresentou-se em recitais no Brasil, Argentina e Suíça, divulgandonovas obras. Integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) desde 1990, é tambémmúsico convidado de diversas orquestras. Em 2003, a convite da Ernst Widmer Gesellschaft,realizou viagem de estudos à Suíça, pesquisando o acervo do compositor Ernst Widmer,depositado naquele país.

e-mail: [email protected]

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ASMATHOUR (1971) – PARA CORO E PERCUSSÃO – DEGILBERTO MENDES: UMA ABORDAGEM ANALÍTICA DOUSO DE CONTRASTES DE DENSIDADE E DEINTENSIDADE

AdrianaFrancato

Resumo: O presente artigo aborda a obra Asthmatour, para coro e percussão, composta em1971 pelo compositor brasileiro Gilberto Mendes e propõe uma análise musical enfocando o usode contrastes de densidade e de intensidade pelo compositor no decorrer da obra. Na análise,foram usadas como referências manuscritos que retratam seu processo composicional e queforam compilados pela pesquisadora Rosemara Staub de Barros Zago (ZAGO:2000) e obrasteóricas de autores que analisam os movimentos surgidos no século XX, como David Cope(COPE:1993) e Michael Nyman (NYMAN:2000). O compositor cria uma estrutura delimitada edefinida e, a partir dela, utiliza o recurso da montagem na organização dos materiais, num processoaberto à criação do intérprete.

Palavras-chave: Asthmatour. Gilberto Mendes. Análise musical.

Abstract: This paper is about Asthmatour (1971), a piece for choir and percussion done by theBrazilian composer Gilberto Mendes involving a music analysis that focus the use of density andintensity contrasts. It used, as references, Mende´s manuscripts compiled by Rosemara Staub deBarros Zago (ZAGO:2000) and books from authors that studied the XX century musica waves asDavid Cope (COPE:1993) and Michael Nyman (NYMAN: 2000). In his composition process,Mendes creates a very well defined and delimited structure. From this, he uses the assemblyprocess resource giving to the musicians a open way to participate as the music creation(indeterminacy)

Keywords: Asthmatour. Gilberto Mendes. Musical analysis.

Introdução

sthmatour, para coro e percussão, foi composta em 1971,pelo compositor brasileiro Gilberto Mendes e estáinserida entre as obras de sua segunda fase

composicional, por ele denominada Experimentalismo.

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A sua fase experimental foi muito profícua e criativa,destacando-se sua participação ativa e revolucionária nocenário musical brasileiro. Gilberto Mendes foi um dosprotagonistas da transformação da música brasileira, com ainserção de idéias, técnicas composicionais e meio deinformação1 que preconizavam uma música que fosseintegrada aos avanços tecnológicos e à linguagem que sedescobria e experimentava em outros pólos culturais do mundo.Foi um período marcado por sua participação no Grupo Música

Nova, nos Festivais de Verão de Darmstadt, na elaboração doManifesto Música Nova2 e na criação e organização do FestivalMúsica Nova, existente até hoje.

Asthmatour3 sintetiza, de certa forma, procedimentos usadospelo compositor em outras composições experimentaisanteriores a ela, como: Nascemorre (1963), Cidade (1964),Blirium C-9 (1965), Motet em ré menor ou Beba Coca-Cola

(1966), Santos Football Music (1969) e Vai e Vem (1969).

É uma peça ligada, esteticamente, à Indeterminação, apesardo compositor mencioná-la como aleatória. Isto se dá devidoao fato de entendermos a aleatoriedade como parte integranteda Indeterminação, de modo semelhante ao colocado por DavidCope, em seu livro “New Directions in Music”4 . Indeterminação,para ele, abarca procedimentos aleatórios e de Acaso. Elapressupõe a arte como um processo e determina uma maneirade proceder. Pode compreender níveis diferentes de resultado:podem-se encontrar composições com procedimentosindeterminados e performance determinada ou composiçõesdeterminadas com performances indeterminadas ou ainda,composições indeterminadas com performance tambémindeterminada.

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Gilberto Mendes utiliza, nesta peça, o termo aleatório paradesignar quadros ou partes onde os sons devem ser realizadosde modo desencontrado, por ele designado “com entradasdesencontradas, evitando a formação de qualquerperiodicidade entre eles”. Os quadros ou partes dão certaliberdade ou abertura à criação do intérprete que, a partir deelementos sonoros determinados pelo compositor, deveorganizá-los da maneira como lhe convier.

Asthmatour, assim como Santos Football Music, parte de umaidéia composicional profundamente enraizada na polifonia, queé marcada pela simultaneidade de várias vozes e pelaocorrência ao mesmo tempo de diferentes planos sonoros.Logo, de início, é marcante a natureza dos materiais sonorosutilizados na construção da trama polifônica e que podem serdivididos em três grandes grupos: sons vocais diversos (quese destacam pela exploração timbrística, como por exemplo:estalos de língua de tipos diferentes, gargarejos, entre outros),sons percussivos corporais (como por exemplo: estalos dededo, palmas, entre outros), sons percussivos instrumentais(som de crótalos, maraca e pandeiro) e sons vocais (palavrasou frases faladas ou entoadas).É uma peça caracterizada também pela simultaneidade e pelasobreposição de diferentes planos. Fazendo uma analogia comimagens visuais, poderíamos visualizar Asthmatour comoresultado de telas cujos diferentes desenhos sobrepostos emsua totalidade formam a composição final, e que, sobrepostosparcialmente, formam outros arranjos que contêm as imagensiniciais mas que demonstram resultados finais distintos doobservado na sobreposição de todas as telas (composiçãofinal).

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No manuscrito “Receitas Técnicas”, Gilberto Mendes defineum de seus processos composicionais:

“O que faz a trama interessante é a simultaneidade (complexidade) e alinha única, ambas trabalham em suas relações em si mesmas, que é:compor a massa simultânea, ora igual, ora contrastada em seu próprioingrediente, ora estreita, ora larga. Ver tudo o que é possível, partindodo que é possível fazer com o material à mão” (ZAGO: 2002; 120)

Considerando esta sua característica composicional – a criaçãode vários planos constitutivos simultâneos – é possível tecercomentários analíticos, considerando os diferentes parâmetrosmusicais e observando que cada um deles possui umencadeamento específico e um direcionamento próprio. Porisso, dentre as inúmeras possibilidades de análise desta obra,apresentamos uma análise partindo do uso de contrastes dedensidade e de intensidade.

Uso de contrastes - de densidade e intensidade

Asthmatour é uma peça composta a partir de contrastes e elespodem ser observados nos diferentes planos e níveis deorganização. Com relação à organização dos materiaissonoros utilizados, Gilberto Mendes contrapõe sons muitocurtos e explosivos (como é o caso dos estalos de língua) esons com perfis melódicos (como o som vocal, entre suspiro egemido tomando como base a vogal A usado no quadro I).Com relação aos elementos organizacionais do materialsonoro, há a contraposição e a simultaneidade na utilizaçãobloco e ponto, massa sonora e linha.

Considerando parâmetros como densidade e intensidade, éimportante notar a utilização da repetição como uma fator deadensamento psicológico e a presença do número três como

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elemento organizador do encaminhamento do discursomusical. Sob estes aspectos, podemos dividir a obra em trêspartes (ou seções): Introdução, Desenvolvimento – Conclusãoe Coda. A primeira, formada pelos quadros I, II; a segunda,quadros III, IV, V, VI, VII, VIII, IX e X (até ação teatral) e aterceira seção, formada pelo quadro X (partir do jingle), comopode ser observado nos quadros de Variação da Densidade

mostrados abaixo:

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Na Introdução, o compositor cria uma ambientação pontilhista,utilizando materiais melódicos e timbrísticos na criação de uma“atmosfera rarefeita”5 . Esta ambientação inicia-se no quadroI, de maneira esparsa. Aos poucos, há um adensamento e umcrescendo, culminando num corte súbito no momento maisintenso e agudo. O segundo quadro, inicia-se com palmas emuníssono que, aos poucos, se diluem num aplauso. Há umretorno, então, à atmosfera criada no primeiro quadro,reforçando a intenção inicial do compositor. Aos poucos,novamente, há uma adensamento e um crescendo rumo aofinal do quadro, finalizando com um corte súbito no momentomais intenso. Longo silêncio.

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Inicia-se outra parte (seção), denominada Desenvolvimento –Conclusão e nela, observamos que há um direcionamento quesegue o seguinte movimento, em geral: estabilidade – aumentode densidade e intensidade (expansão) – clímax com cortesúbito – nova estabilidade. Nele, observamos três grandesexpansões que serão explicitadas abaixo e que estão descritasno Quadro da Variação de Densidade que segue esta análise:

Primeira expansãoPode ser observada nos quadros III e IV.

O quadro III inicia-se com a palavra ASTHMATOURpronunciada por vozes solistas e repetida três vezes(estabilização). O mesmo recurso é usado com a palavraTOUR, que também é pronunciada três vezes por vozessolistas (vai aumentando em densidade pois a palavra TOURé mais curta e é repetida em intervalos mais curtos de tempo –expansão); em seguida o coro todo entra, de mododesencontrado e evitando formar periodicidade, entoando apalavra TOUR em movimento melódico ascendente (crescenteaumento de densidade e de intensidade até atingir o clímax);há, então, um corte súbito no momento mais intenso (clímax).Finalizando esta primeira expansão, no quadro IV, há asobreposição de ostinato rítmico-melódico com um acordesustentado (nova estabilização).

Segunda expansãoEsta segunda expansão abrange os quadros V, VI, VII e VIII enela observamos dois movimentos concomitantes: há umadensamento do discurso e um reforço de sua intenção, coma repetição dos materiais sonoros utilizados.

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O quadro V inicia-se com gargarejos (estabilização) queconduzem à crise asmática (clímax) onde há um corte súbitoseguido pela imitação sonora da bombinha do aparelho Dispné-

Inhal por seis vezes consecutivas (nova estabilização). Aqui,há um adensamento do discurso e esta nova estabilizaçãotambém serve como propulsora de um novo impulso rumo aum novo clímax (quadro VII – repetição da crise asmática)ainda mais intenso que o anterior, numa compressão dodiscurso que ajuda a gerar um aumento de densidade e a darênfase psicológica ao discurso com a demonstração da afliçãoprovocada pela crise asmática. Novamente, há um corte súbitono momento mais intenso (clímax) e uma nova estabilização(quadro VIII), com a repetição da imitação sonora da bombinha.

Terceira expansãoSe concentra nos quadros IX e X (final da ação teatral).

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Nesta terceira expansão, Gilberto Mendes quebra odirecionamento que vinha ocorrendo durante a peça com aintrodução de uma cadência de engano, no início do quadroIX. A expansão inicia-se após a cadência de engano e finalizacom o segundo clímax – cena de estrangulamento de um doscantores - considerado o momento mais intenso de toda aobra.

O quadro IX inicia com frases pronunciadas por vozes solistasmasculinas que são entremeadas por intervenções do coro.

Estas frases podem ser subdivididas em duas partes: “Onegócio é de pasmar!” – primeira parte e “É de pasmar!” –segunda parte.

O coro, então, entra e pronuncia a palavra asthma de mododesencontrado, evitando a formação de periodicidade, só queaqui o movimento é descendente e a sonoridade geral ao invésde crescer, diminui gradativamente até sobrar somente umavoz grave pronunciando esta palavra. É o primeiro anti-clímaxda peça – cadência de engano.

Este procedimento é repetido imediatamente na seqüência,com as frases “Conheça o novo tratamento contra a asthma”“Viajar!”. O coro, nesta segunda vez, pronuncia a palavra arde modo desencontrado, evitando a formação de periodicidade,novamente num movimento descendente, até sobra somenteuma voz masculina solista na região grave. É o segundo anti-clímax e funciona como um eco do primeiro – repetição dacadência de engano.

Na seqüência, Gilberto Mendes retoma a direcionalidade

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crescente observada na primeira e segunda expansões, coma repetição (pela terceira vez) do procedimento de utilizaçãode frases pronunciadas por vozes masculinas solistas -estabilidade. A condução musical cresce em densidade eintensidade com a repetição, por todos os coralistas, de mododesencontrado e evitando a formação de periodicidade, dafrase “A arma do ar contra a asthma” (clímax). Desta vez, oclímax não é seguido por corte súbito. Gilberto Mendes o desfazretomando os sons utilizados no decorrer da peça e aambientação pontilhista observada na Introdução, numprocedimento de fusão e filtragem (estabilidade).

Este ambiente pontilhista serve como fano de fundo para aação teatral que culminará no clímax mais intenso da peça.Um cantor sai do meio da platéia, sobe ao palco, mantém umdiálogo agressivo com outro cantor do coro e tenta estrangulá-lo (clímax). Esta cena também sofre um corte súbito e o discursoé interrompido por um longo silêncio (pausa de 15 segundos).No diálogo observado entre os dois cantores que participamda ação teatral, há uma síntese do movimento discursivoobservado nesta terceira expansão: o estrangular tem umdiscurso crescente, isto é, que aumenta em intensidade e avítima, um discurso decrescente, pois, diminui em intensidadea cada resposta.

Na Coda, há um jingle, uma frase pronunciada por uma cantorasolista (estabilidade) e termina com uma pausa de 8 segundos,com os cantores imobilizados como se posassem para umafoto.

É interessante notar que, se eliminássemos a parte central dapeça – Desenvolvimento e Conclusão – e juntássemos a

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Introdução e a Coda, teríamos o mesmo movimento direcionalobservado na parte central: estabilidade, expansão, clímax ecorte súbito no momento mais intenso (observados naIntrodução) e nova estabilidade (observada na Coda)6 .

Concluindo, como foi enfatizado durante a explicação analíticados diferentes aspectos constitutivos da obra, Gilberto Mendesutiliza com muito recorrência o número três e seus múltiplos.Podemos considerá-lo como um elemento organizador dodiscurso musical em vários níveis: na criação das palavras-chave, dos materiais sonoros, nas expansões do discurso. Onúmero dois também é recorrente na condução estrutural eajuda a dar ênfase às intenções do compositor.

Notas:

1 No Manifesto Música Nova, elaborado por Gilberto Mendes e outros integrantes do Grupo MúsicaNova, o Grupo propõe uma “reavaliação dos meios de informação: importância do cinema, dodesenho industrial, das telecomunicações, da máquina como instrumento e como objeto:cibernética”;“comunicação: mister da psico-fisiologia da percepção auxiliada pelas outras ciências, e maisrecentemente, pela teoria da informação”2 O Manifesto Música Nova foi publicado na Revista Invenção nº 3, de junho de 19633 A dissertação de mestrado intitulada “ Asthmatour (1971) - para coro e percussão - de GilbertoMendes: elaboração de partitura oficial supervisionada pelo compositor” defendida pela autorateve por finalidade registrar esta obra em forma de partitura que se encontra disponível na bibliotecada Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.4 David Cope. New Directions in Music. 6ª ed., Dubuque: Brown & Benchmark, 1993.5 Denominação dada pelo próprio compositor na partitura oficial de Asthmatour6 Isso nos remete a uma estrutura musical do século XIII que pode ser observada no moteto Alle,psallite – Alleluya, de compositor desconhecido. Nele, o texto é musicado de tal forma que o inícioda composição se encaixa perfeitamente ao final de cada frase e ao final dela, formando semprea palavra Alleluya:

Alle, psallite cum luyaAlle, concrepando psallite cum luya

Alle, corde voto Deo toto psallite cum luyaAlleluya

O Madrigal Ars Viva gravou este moteto na época em que Gilberto Mendes cantava e compunhapara o coro (LP Madrigal Ars Viva – 1971) sob regência do maestro Klaus-Dieter Wolff. Noencarte deste LP, escrito por Gilberto Mendes, há uma definição do objetivo existencial do Madrigale nela é possível observar uma forte influência da música antiga em sua formação: “O Madrigalfaz parte do movimento ARS VIVA, um laboratório onde se recria a música antiga e se cria amúsica nova” (encarte do LP Madrigal Ars Viva – 1971).

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Referências bibliográficas

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Gravação

CD Madrigal Ars Viva – música nova para vozes. Madrigal Ars Viva, regência: Roberto Martins,Santos, 1999

Partitura

Mendes, Gilberto. Asthmatour. Partitura organizada por Adriana Francato. Escola de Comunicaçãoe Artes – USP. 2003

Manuscritos e esboços do compositor da peça Asthmatour

Adriana Francato: É Mestre (2003) pela ECA–USP com a pesquisa intitulada “Asthmatour –para coro e percussão (1971), de Gilberto Mendes: elaboração de partitura oficial supervisionadapelo compositor”, orientação do Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Ramos, a qual serviu de basepara o artigo acima. Bacharel em Piano (UNESP); professora de música no Colégio Santa Maria,atua como regente em grupos corais amadores e pertence ao Studio Coral – Vozes Femininas.

e-mai: [email protected]

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POLIÔNIMO: DEFINIÇÃO DE ALGUNS TERMOSRELATIVOS AOS PROCEDIMENTOS HARMÔNICOS PÓS-TONAIS

Antenor Ferreira Corrêa

Resumo: Tão vasto quanto os procedimentos técnico-harmônicos pós-tonais são as designaçõesque esses acabam por receber, mesmo quando parecem referir-se a coisas semelhantes. Pode-se observar essa faceta na leitura de capítulos ou tópicos de livros que ressaltam essa proliferaçãopanssêmica com títulos do tipo: atonalismo livre, pantonalismo, pandiatonicismo, tonalismo livre,tonalidade suspensa, entre outros. Qual seria a diferença entre a tonalidade flutuante ou suspensa?Entre o tonalismo livre e o atonalismo livre? No que a politonalidade distingue-se da pantonalidade?Todo dodecafonismo é atonal? Neste trabalho, pretende-se fornecer uma distinção conceptualentre as terminologias utilizadas para referir-se aos processos analítico-composicionais decorrentesda expansão do sistema tonal, bem como oferecer exemplos para essas nomenclaturas. Portratar-se de um estudo crítico de caráter descritivo e interpretativo baseia-se em modelosmetodológicos de análise de conteúdo fornecidos por Bardin (1977); todavia, a maior parte destetrabalho fundamenta-se nos escritos de Réti (1978) e Kostka (1999). A falta de consenso e denormatização para as diversas terminologias usadas para tratar do repertório pós-romântico epós-tonal (sobretudo do início do século XX) justifica essa pesquisa, cujos resultados viabilizama compreensão dessas terminologias, além de funcionar como ponto de partida para uma maiorreflexão sobre o assunto.

Palavras-chave: Pós-tonal. Pantonalidade. Atonalidade.

Abstract: Numerous terms may refer to post-tonal musical processes: free atonality, pantonality,pandiatonicism, free tonality, suspended tonality, and so on. Nonetheless, the Brazilian literaturedoes not tell the difference between suspended and floating tonality, between free tonality and freeatonality, nor between pantonality and polytonality. Can every twelve-tone music be consideredatonal? This paper aims at presenting a conceptual distinction among several terms applied toanalytical and compositional techniques that took place after the expansion of the tonal system. Italso includes a few examples of these names. Theoretical background is based on Réti´s (1978)and Kostka´s (1999) writings. This discussion helps to understand that terminology and may alsowork as a starting-point for further reflection about this subject.Keywords: Post-tonal. Pantonality. Atonality.

Introdução

m finais do século XIX, a inserção de cromatismos naharmonia de base diatônica propiciou a expansão doE

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discurso musical para regiões harmônicas distantes datonalidade inicial da obra. Criou-se, então, um estado detonalidade expandida e de passagens com tonalidadessuspensas e flutuantes. Quando os vínculos com o pólo atrativoinicial foram contundentemente enfraquecidos, nem sequer oretorno da tônica no desfecho da obra fazia-se necessário.Permitia-se ao compositor terminar uma peça em umatonalidade completamente diferente daquela em que começara(procedimento usado por Mahler, Richard Strauss eSchostakovich, entre outros, que recebeu o nome de tonalidadenão-concêntrica). Esse tonalismo livre, por vezes, possuía nãouma, mas várias tônicas transitórias que quando empregadassimultaneamente criaram a politonalidade. Os artifíciosempregados na expansão do discurso harmônico tonalacabaram por debilitar o antigo sistema a ponto de não maisse sentir o poder atrativo do centro tônico, condição que aospoucos desembocaria no atonalismo livre. A proliferação devárias tendências, no início do século XX, para tratar o materialmusical e entendimentos diversos por parte dos autores queteorizaram sobre essas práticas acabaram por criardificuldades terminológicas na designação dessas técnicas,impasses que não foram satisfatoriamente resolvidos. Háexemplos de autores denominando como atonal livre oprocedimento entendido por outros como pantonal, ou usandoo termo dodecafônico como sinônimo de atonal (realidadesdiversas, como se verá adiante). Tendo em vista essasdivergências, pretende-se, por meio da elaboração de umalista de verbetes explicativos, fornecer uma breve distinçãoentre os conceitos envolvidos de maneira a delimitar eexemplificar alguns desses procedimentos analítico-composicionais surgidos a partir do pós-romantismo edesenvolvidos pelos compositores da prática pós-tonal. Desde

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já, é preciso salientar que “harmonia” é aqui entendida naacepção ampla do termo, enquanto relações entre sons, e nãoapenas no seu sentido vertical. Esta pesquisa teve início e é,portanto, decorrência de minha dissertação de mestradoEstruturações Harmônicas Posteriores à Prática Comum,defendida no programa de Pós-Graduação do Instituto de Artesda UNESP em 2004. Espera-se que as definições eentendimentos aqui trabalhadas não fiquem restritas ao usoadequado da nomenclatura, mas, também, sirvam como pontode partida para a expansão da sistematização dos temasrelativos ao repertório pós-tonal.

Apontamentos Preliminares

Basicamente é possível elencar dois tipos de processoscomposicionais: aqueles possuidores de um centro de atraçãotonal e os que prescindem da existência do mesmo. Apesarde ampla, essa divisão já apresenta o primeiro obstáculosemântico a ser superado, quer seja, o entendimento doadjetivo tonal. Uma qualidade tonal, por si só, não pressupõea existência de um pólo de atração. Tonal, bem como sistema

tonal, refere-se a relações de alturas (opondo-se, por exemplo,a relações métricas, dinâmicas ou timbrísticas) semimplicações para com um centro atrativo. Com isto, torna-seclara a discordância de Schoenberg contra o adjetivo atonal

com o qual queriam classificar a sua música, já que esta nãoprescindia, obviamente, de relações sonoras, mas sim daexistência da tônica. Deste modo, qualquer composição quese utilize de alturas será tonal, possuindo ou não um centrotônico. Réti sugere o termo tonicalidade para designarcorretamente uma música organizada em função de uma tônicae explica: “tonalidade é uma abreviação lingüisticamente mais

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aprazível de tonicalidade” (1978, p.7); similarmente,atonalidade seria uma variação de atonicalidade. Contudo, apalavra tonalidade já está mais do que consagrada pelo uso,de modo que comporta, indevidamente ou não, referência paracom um centro ou pólo de atração.

A partir dessa grande divisão, torna-se possível agrupar asdesignações para as práticas pós-tonais em 3 categorias:

a.Aquelas que implicam na existência de relaçõesfuncionais formais para com um centro ou pólo de atração;b.Aquelas em que existe uma renúncia ou ausênciaintencional de relacionamento para com um centro tônico;c.Aquela que admite para com um pólo atrativo relaçõesformais e fenomênicas, isto é, relações não notadas nasuperfície musical, mas geradas pela percepção que recria“relações ocultas entre vários pontos de uma teia melódicaou contrapontística” (RÉTI, 1978, p.65).

Cada uma dessas categorias apresenta procedimentoscaracterísticos que serão descritos a seguir:

1. A primeira categoria compreende as designações:tonalidade expandida, tonalidade suspensa, tonalidadeflutuante, tonalismo livre, pandiatonicismo, politonalidade.

Tonalidade expandida

Também chamada de tonalidade estendida, pois estende atonalidade inicial da obra para regiões harmônicas distantes,por meio do uso intenso do cromatismo. Esse processo visa aevitar a confirmação da tônica pelo gradual afastamento dela

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e de suas regiões próximas, impedindo assim, a identificaçãoperceptual do centro tônico primário da obra. Nesse processo,o relacionamento funcional é substituído pelo relacionamentoacórdico. No relacionamento funcional os acordes sãoconsiderados pela relação que mantém para com o centrotônico da obra; no acórdico, as relações acontecem a partir damovimentação linear de entidade para entidade, envolvidasna passagem em questão. Assim, na tonalidade expandida, amovimentação acórdica baseada, por exemplo, no ciclo dequintas é substituída pelo relacionamento cromático, quefunciona como o elo de ligação mais próximo entre os acordes.Tomando-se o Prelúdio n°. 1 (C) do Cravo bem Temperado deBach, observa-se que o mesmo possui uma concatenaçãoentre acordes baseada, majoritariamente, em graus conjuntos(diatônicos e cromáticos). A concepção harmônica dessamovimentação, entretanto, é funcional, pois sempre fazreferência à tônica principal da obra (C). Mesmo em passagenscom ligeiros afastamentos da tonalidade inicial, em queocorrem tonicizações no nível estrutural secundário (comp. 6,10 e 12), como mostra o Ex. 1, a idéia básica do relacionamentoacórdico é fundamentada no ciclo de quintas. Vale notar aquebra da movimentação por graus conjuntos em pontoscadenciais (comp. 10 e 18). O Ex. 2, Sonata n°. 3 para Cello e

Piano de Camargo Guarnieri, em contrapartida, apresenta umasucessão iniciada em um acorde de F com sétima no baixocuja movimentação é realizada, predominantemente, por meiode cromatismos, fazendo com que o sentimento tonal, ou seja,a indução para um pólo de atração, seja enfraquecido. Nota-se que as harmonias usadas não pertencem exclusivamenteao campo harmônico de F, este é estendido pelo acréscimode acordes de outras regiões tonais. São, também, exemplosdesse procedimento os Prelúdios n°. 2 e 4 do Op. 28 de Chopin.

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Tonalidade suspensa

Primordialmente ocorreu em passagens ou seções musicaisonde as relações para com o centro tonal estavam mascaradas,mas não suprimidas, posteriormente suas características foramempregadas como estrutura global das composições. Nãoexiste a intenção de rompimento com o centro tonal, já que atonalidade encontra-se presente, mas de maneira ambígua ounão explícita. A tonalidade suspensa é lograda pelo uso deelementos debilitadores do sentimento tonal, como por exemplo(Cf. PISTON, 1998, p.507): acordes complexos; atribuição de

Fig. 2: Camargo Guarnieri, Sonata n°. 3 para Cello e Piano, II Movimento (comp. 16-28), parte dopiano.

Fig. 1: J. S. Bach, Cravo Bem Temperado, Prelúdio n°. 1 (C), comp. 5-19

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funções tradicionais para acordes que não sejam constituídospor tríades; resoluções irregulares; variações rápidas do passoharmônico; modulação freqüente e continuada; modos escalasmistas; funções tonais longínquas, “deslocação do centro tonalmediante a ampliação do princípio da dominante secundária”(PISTON, loc. cit.); clusters e poliacordes, entre outros. Oemprego desses elementos tem o propósito de não permitir aidentificação do centro tonal. No Ex. 3, Jimbo´s Lullaby deDebussy, nota-se o uso de alguns desses elementos, como:movimento paralelo de tríades Gb/Bb, Fm/Ab, Ebm/Gb, Db/F

(comp. 33); emprego do agregado acórdico desfuncionalizadoAb-Cb-D-F-Bb (comp. 34); não resolução de tensões (acordediminuto do comp. 37); utilização de modos ou escalas nãoconvencionais, como tons inteiros (comp. 39-40), cromática(comp. 47-48); uso de linhas melódicas não funcionais, comoa subida usando as notas do hexacorde G-A-B-Db-Eb, porém,chegando em Db, sonoridade contrastante com o que foraexposto até o momento; tonicizações locais, como a chegadaem Gb (comp. 53) preparada pelo pedal em Db; não resoluçãode dissonâncias, comp. 52, cujas notas caminham diretamenteao acorde de Gb.

Fig. 3: Debussy, Jimbo´s Lullaby, compassos 33-53

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Tonalidade flutuante

Processo composicional que não se atém a um único póloatrativo, mas “flutua” ao redor de várias tônicas sem sedirecionar efetivamente para um centro exclusivo. Com isto,uma vaguesa harmônica é impingida ao discurso musical. Podehaver o uso de harmonia triádica, embora sem sugerirsubordinações a nenhuma tônica em especial. Guardasemelhança com as sucessões de acordes empregadas nasseções de transição, sem que, como estas, atinjam objetivosharmônicos específicos. É um estado estrutural no qual váriastônicas exercem simultaneamente seu poder de atração, semque uma destas torne-se o pólo conclusivo. Schoenbergcomenta:

dois casos muito expressivos de tonalidade flutuante em minhas própriascomposições são: o Lied com orquestra – Op. 8, n.º 5 – Voll jenerSüsse [Pleno daquela doçura], que oscila principalmente entre Réb-Maior e Si-Maior, e no Lied Lockung [Sedução] – Op. 6, n.º 7 –, queexpressa um Mib-Maior sem que no decorrer da peça surja, uma vezque seja, a tríade de Mib-Maior de modo a poder ser consideradanitidamente como uma tônica. A única vez em que se estabelece possuino mínimo uma tendência à subdominante (SCHOENBERG, 2001,p.528).

Algumas características desse processo podem serobservadas no Ex.4, Sonata n. 2 para violoncello e piano deCamargo Guarnieri:

• Todos os acordes comportam classificação no sistema desuperposição por terças; porém, não há movimentocadencial que induza a consideração de um deles comotônica desse trecho. No início, o acorde de C#m pareceimpor-se enquanto tônica; contudo, a tonicização da quinta(G#) deste acorde pelas suas sensíveis superior e inferior

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(F## e A), no reiterado motivo de acompanhamento, aliadaà movimentação paralela de quintas (C# -G# para D# - A#

que conferem um caráter religioso a este movimento,entretanto, enfraquecem a independência entre as vozes)tornam obscura a identificação da tônica;• Há uma grande sucessão de acordes maiores (comp. 6 a14) alheios ao campo harmônico de C#m;• Ocorre a mudança de modo menor para maior no pontocadencial que poderia confirmar C#m como tônica (comp.14);• Nos compassos 21 e 22 há uma cadência (Sr – D – T)sobre Db [ Ebm – Ab7/5+ – Db7+ ];• Embora não conste neste exemplo, mais adiante nocompasso 30, ocorrerá o estabelecimento de C como tônicapor meio da cadência Sr – D/D – D – T (Dm7/9/13 – Db7 –

G7/11+ – G7– C ).

Portanto, nesse trecho é possível perceber a flutuação tonalao redor de alguns pólos atrativos, sem que haja o predomínioabsoluto de algum deles.

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Tonalismo livre

Expressão usada por Leon Dallin [free tonality] para indicar oprocedimento composicional em que não há o reconhecimentode hierarquias entre as 12 notas à exceção da tônica, ou seja,a “função tônica tradicional é preservada, mas as outras 11notas da escala são iguais, livres e independentes de cadaoutra” (DALLIN, 1975, p.46). O Ex. 5, linha melódica dosviolinos na Sinfonia em Eb de Hindemith, é empregado porDallin para demonstrar as características do tonalismo livre.Segundo ele, o centro tonal em F# é estabelecido logo deinício pelo intervalo ascendente de quarta justa e pelomovimento cadencial do último compasso desse exemplo.Todas as 12 notas são usadas com independência, semapresentar uma preferência especial por aquelas que estariamimplícitas na escala de F#. Assim, não há resolução de notasalteradas, já que não se pode falar em nota fora da escalaquando não se tem uma escala principal definida. Dallin admite,

Fig. 4: Camargo Guarnieri, Sonata n°. 2 para Violoncelo e Piano, II mov. (comp. 3-22), parte dopiano.

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contudo, que é tênue a linha divisória entre o ultracromatismopós-romântico e os procedimentos do tonalismo livre, sendoque neste, a contagem estatística do número de ocorrência decada nota deve ser tomado como parâmetro para determinaçãodo centro tonal.

Pandiatonicismo

Refere-se, então, ao uso livre das notas de uma escaladiatônica, não restrito pelos princípios da harmonia tradicional.De acordo com Dallin, esse termo foi “cunhado por NicolasSlonimsky para descrever a música que, em reação aoexcessivo cromatismo tonal e à atonalidade, volta-se para osrecursos da escala diatônica. Somente a ausência decaracterísticas melódicas e de funções harmônicas separam-na da música diatônica convencional” (DALLIN, 1975, p.136).Essa técnica é, as vezes, referida como “harmonia de notasbrancas” (Cf. PISTON, 1998, p.487 e OWEN, 1992, p.366).Réti, por sua vez, assinala que “no pandiatonicismo atonalidade pode reinar no sentido vertical, mas não encontraidéia tonal correspondente diretamente nas sucessões

Fig. 5: Hindemith, Sinfonia em Eb (cf. DALLIN, 1975, p. 47)

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horizontais” (1978, p.119). Slonimsky, criador do termo,considera:

em 1937 eu propus o termo pandiatonicismo para descrever asexageradas harmonias diatônicas e seus constituintes melódicos. Otermo criou raízes e é agora convenientemente conservado comorelíquia nos dicionários de música (...) este tipo de harmonia éencontrada nas obras de Debussy, Stravinsky e muitos outroscompositores. Acordes pandiatônicos são construídos sobre quintas equartas justas, quarta aumentada, sétimas e, também, terças maiorese menores. O acorde pandiatônico típico, contendo todas as sete notasda escala (usualmente da escala maior), é: C – G – D –F – B – E – A.A presença da nota F empresta ao acorde um sentimento de sétima dedominante (SLONIMSKY, 1983, p.3).

No Ex. 6, História do Soldado de Stravinsky, observa-se o usopredominante do diatonicismo, tendo por base as notas daescala de G. Algumas formações acórdicas não podem serexplicadas pela superposição convencional de intervalos deterças, contudo, são notas pertencentes à escala diatônica debase.

Fig. 6: Stravinsky, História do Soldado, Música para Cena 1, compassos 10 – 23

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Politonalidade

Uso simultâneo de dois ou mais centros tonais auditivamentedistinguíveis, muito embora “eles sejam mais óbvios para osolhos do que para os ouvidos” (DALLIN, 1975, p.133). Divergeda pantonalidade não só pelo refinamento lingüístico causadopelo uso dos prefixos poli e pan, mas pela essência de seusfundamentos, pois politonalidade implica no possível uso devárias tonalidades, enquanto pantonalidade representa todosos relacionamentos tonais, quer sejam formais ou fenomênicos(vide adiante). É possível encontrar na literatura uma série deobras, sobretudo de Milhaud e Stravinsky, em que esseprincípio é aplicado; no entanto, no Ex. 7, Concerto para bateriae orquestra de Milhaud, apresenta-se um fragmentodemonstrando o emprego dessa técnica. Nos compassos de1 a 4 uma linha melódica é harmonizada simultaneamente comterças menores (pentagrama superior) e maiores (pentagramainferior), de onde seria possível subentender as tonalidade deAm e A, respectivamente. O mesmo fragmento melódico éharmonizado diferentemente (compassos 45 a 47),superpondo, agora, as tonalidade de Am e Fm. Note-se quelinearmente as tonalidades são confirmadas, porém, negam-se verticalmente.

Fig. 7: Milhaud, Concerto para bateria e pequena orquestra (redução harmônica comp. 1-4 e 45-46)

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2. A segunda categoria abarca os termos atonalidade,atonalismo livre e dodecafonismo.

A rigor, atonalismo livre e dodecafonismo são duas facetas daatonalidade, diferenciando-se pelo uso livre ou sistemático queo compositor faz dela. Dodecafonismo refere-se a uma técnicaespecífica, que visava a fornecer uma sólida base estruturalpara os procedimentos atonais surgidos nas duas primeirasdécadas do século XX, ao passo que atonalismo livre designaas composições atonais realizadas antes da promulgação datécnica dodecafônica. Dallin prefere os termos atonalidade não-

serial e atonalidade serial para descrever estes procedimentosque renunciam à importância do centro tonal. Grosso modo,atonal significa ausência de centro tonal, contudo, Kostkaoferece a seguinte definição: “música atonal é aquela em queo ouvinte não percebe o centro tonal” (1999, p.106) e coloca aquestão da percepção como mais um componente a ser levadoem conta nas definições.

Lansky e Perle, ao analisarem as diferenças fundamentaisentre tonalidade e atonalidade, apontam para duas de suascaracterísticas marcantes e diferenciais: o alto grau deinterdependência entre as várias dimensões da composição(como altura, ritmo, dinâmica, forma, etc.) apresentado pelatonalidade e o auxilio que lhe é prestado pela existência deum vasto corpus teórico. Na atonalidade, contrariamente, asrelações funcionais entre as dimensões musicais não sãoclaramente definidas e a teoria não é suficientemente completapara sua compreensão, posto que, embora as obras atonaisapresentem propriedades comuns, estas propriedadesmanifestam-se de maneiras diversas, quedando-se então, aforma como o mais elevado parâmetro unificador (cf. LANSKY

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& PERLE, 1980, p.669-673). Por divergir em essência datonalidade, a atonalidade não possui lastro ou vínculoshierárquicos, nem uma força esquemática estruturadoramusical, mas é, antes, a ausência e negação dessas forças.Recorde-se que a harmonia tradicional funcional subordinaos graus da escala ao centro tônico, ou seja, parte do princípioda subordinação hierárquica nas relações entre os diferentesgraus da escala. O fato de compor sem uma base estruturalclara reguladora de suas relações, fez com que o estilo livre

esbarrasse no problema do surgimento de resquícios tonais,principalmente de significados harmônicos, em meio aodiscurso atonal. Decorreu dai a necessidade sentida,principalmente por Schoenberg, de restringir estas“sublevações” tonais, donde resultou sua técnica decomposição com “doze notas relacionadas somente entre si”,que conferia uma firmeza à este tipo de estrutura não tonal,mas induzia a uma construção abstraída de significadosharmônicos internos. Esse feito, em tese, impossibilitaria falarde uma harmonia dodecafônica (técnica que apresenta maiorproximidade com o contraponto, porque os aglomeradossonoros resultam de movimentos lineares), ao passo que “apantonalidade pode englobar o atonalismo livre, tomando-ocomo parte de seu sistema planetário de múltiplas tonalidades”(RÉTI, 1978, p.111). Essa integração é possibilitada pelo fatodo atonalismo livre (como exposto anteriormente) apresentarresquícios tonais passíveis de serem captados pela escuta,interpretando-os em função de um centro atrativo, mesmo queefêmero e fugaz.

Uma voz destoante desses entendimentos é a de Alois Hába.Para ele, tonal é toda música construída sobre alguma escalade base. Ao admitir a existência de escalas com mais de sete

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notas, chegando até a abranger todo total cromático, ou mesmosistemas microtonais, toda música será tonal. Assim, “oconceito de atonal é equívoco e supérfluo” (HÁBA, 1984,p.109).

3. A terceira categoria compreende um outro tipo deformação estrutural, a pantonalidade.

Retomando a divisão efetuada anteriormente, existem doistipos de linhas musicais: uma concebida com a intenção deincondicional não-relacionamento tonal e outra que, mesmoveladamente, mantém o pensamento voltado para um centrode atração. Na pantonalidade há a ocorrência de uma espéciede tonalidade indireta, isto é, uma tonalidade não aparente,mas engendrada pela percepção a partir da audição dosfenômenos sonoros. “Os grupos sonoros, como um todo,evocam uma atmosfera que não expressa nem atonalidadenem tonalidade, mas uma condição estrutural mais complexa,multitonal ou um estado pantonal” (RÉTI, 1978, p.65).

A pantonalidade resgata o tipo de unidade e atração tonalsimilar ao encontrado, por exemplo, nas melodias gregorianasou em cantos judaicos antigos, nos quais era possível sentir aunião da melodia com uma nota fundamental de base sem anecessidade do mecanismo de resolução de tensão existenteno uso de acordes. As linhas melódicas eram concebidas noseu direito próprio e possuíam um impulso tônico específico.Esse relacionamento criou o tipo de tonalidade denominadatonalidade melódica. Nesta, a força que impele para a tônicaestá diretamente ligada à reiteração da altura (nota) tônica,compreendida como tal no ato da escuta. É preciso lembrarque a altura é o fator preponderante para a consecução da

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tonalidade pois a tonalidade é um fenômeno que cria unidadesestruturais ao centrar uma frase, grupo de frases ou mesmouma peça inteira a uma nota a partir da qual o grupo usualmentecomeça, com qual ele termina e para qual o ouvido relacionacada parte dele. E já que a essência composicional da nota éa altura, pode-se afirmar que tonalidade está baseada emalturas (RÉTI, 1978, p.77).

Embora Schoenberg tenha sido um dos primeiros a sugerir otermo pantonalidade para designar o estilo de composiçãonascente, principalmente, a partir da segunda década do séculoXX, Réti constata nas composições de Debussy os primeirosindícios desse conceito, justamente por este resgatar o tipode tonalidade melódica. A vertente Schoenberg, por seu turno,conduziria à atonalidade. A percepção da tonalidade por meiode alturas é caracterizada pelo fato de que repetições eretomadas acabam por atribuir um acento tônico à determinadanota no curso de uma composição, de modo que esta notaassuma um papel de tônica local, mesmo não havendo umatonalidade única e global a governar toda a obra.

A pantonalidade pode ser entendida como uma conseqüênciada confluência de vários procedimentos. Réti assinala, porexemplo, que “a idéia de tônicas variáveis [movable tonics],de flutuação harmônica, é o ponto de partida para oentendimento do fenômeno da pantonalidade” (RÉTI, 1978,p.67), além de considerar a tonalidade expandida comoprecursora histórica da pantonalidade. A pantonalidade difereda politonalidade (ou bitonalidade, pois, na maioria das vezes,verifica-se a existência de duas regiões tonais) no que tangeao uso massivo de múltiplos centros tônicos, ao passo que apolitonalidade geralmente limita-se à mera utilização conjunta

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de distintas armaduras de clave em distância intervalar detrítono ou segunda menor. “Pantonalidade é um conceitocomposicional genérico, como tonalidade ou atonalidade. Nãopode ser definida por um esquema rígido ou por um conjuntode regras, mas pode fazer-se compreensível somente peladescrição de sua natureza e de seus efeitos, examinando-sesuas diversas facetas e qualidades” (ibid., p.108). Assim sendo,considere-se o exemplo a seguir (Ex. 8, Sonata Concord, deCharles Ives).

Em sua análise desta peça, e especificamente deste trecho,Réti (Cf. 1978, p.64) entende não haver qualquer dúvida deque C funciona como um tipo de tônica. No entanto, não seouve um C puro, mas um C sobre um ponto de órgão [organ

point] em A. Antes do final, este mesmo motivo em A é utilizadopara introduzir uma frase atonal. Esta frase termina em C#,formando com A e com a nota G, seguinte no baixo, umaespécie de dominante intermediária que anuncia o acorde deDm que entrará nas vozes superiores. Apesar da nota C# dosoprano, a tônica original C ainda é reiterada no baixo. Somentecom a nota G do baixo a fundamental é alterada (passando deC e/ou A para G). Simultaneamente a esta variação defundamentais, uma outra frase centrada tonicamente em Bm

é ouvida na região intermediária. Esta frase em Bm conduzpara a nota conclusiva C#. Mesmo com todas estasimultaneidade de tonalidades, a base tônica original (Csuportado pelo ponto de órgão em A) continua sendo ouvida.A última harmonia audível (G – D – C# – A) é simplesmente adominante de C com a adição de um C# atonal. Resumindo:

Temos C e A como tônicas globais [over-all tonics], G como a últimafundamental audível, posteriormente as harmonias de B e D, semesquecer da frase atonal concluindo em C# (que neste contexto

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harmônico deve ser entendido como Db). Todas estas tônicas eharmonias justapostas soando quase simultaneamente, como raiosrefletidos a partir de um conjunto de espelhos, genuinamente formam apantonalidade (ibid., p. 65).

O Ex. 9 apresenta a redução de dois compassos do IIImovimento da Música para Cordas, Percussão e Celesta deBéla Bártok (as notas soam no registro em que estão escritas).Observa-se que o xilofone reitera a nota G sobre um D que éconsistentemente sustentado pelas cordas. A celesta, por sua

Fig. 8: Charles Ives, Sonata Concord (Cf. RETI, 1978, p.149)

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vez, reforça a díade G# - D, ao passo que o piano executauma espécie de arpejo dos acordes de Bb5+ e E5+. Nos baixos,a nota Eb funciona como tônica, porém, o uso do trítono (Eb –

A) frusta, de certa forma, o efetivo caráter tônico. Ao passoque o tímpano, pela repetição da nota Bb, tende a confirmareste Eb como tônica deste trecho. Esta multiplicidade detônicas superpostas e/ou concomitantes identificam apantonalidade preconizada por Réti.

No Ex. 10 pretende-se apresentar uma aplicação destesprincípios. Trata-se de um fragmento original que preserva aambigüidade tonal ao criar uma atmosfera de nãorelacionamentos diretos. As flautas e clarinetes executam umamelodia que pode ser interpretada como possuindo um centrotônico em Fm. O vibrafone constrói uma linha deacompanhamento claramente direcionada para o agudo, sendoque as notas de ponta sugerem o perfil melódico B – C – D – F

Fig. 9: Bártok, Música para Cordas, Percussão e Celesta. III movimento(comp. 31-32).

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suportado por um Ab repetido. As cordas e trompas (soandoonde estão escritas) podem sugerir a seguinte sucessão deacordes: Ab6, Db7+, Cm9, Bbm o que não indicariaexplicitamente nenhuma tônica específica. Os baixos reiteramuma espécie de pedal na nota B. Observa-se assim, oprocedimento descrito por Réti como multitonal, em que há apolarização, mesmo indireta, de vários centros tonais.

Conclusão

Sumariamente, pode-se compreender que duas característicasbásicas perpassam a pluralidade de tendências musicaisoriginadas, principalmente, no início do século XX, quer sejam,a orientação ao encontro da manutenção de centros tônicos(conduzindo à criação de técnicas que, de um modo mais oumenos evidente, conservavam uma funcionalidade harmônica)

Fig. 10: fragmento construído com a aplicação de procedimentos pantonais (as notas soamonde escritas)

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e a negação incondicional de quaisquer espécies de vínculoshierárquicos ou elos tonais (produzindo, num primeiromomento, a ausência de significados harmônicos em virtudedo desejo de liberdade composicional irrestrita). Todavia, esseestado de coisas, ao qual Réti atribui a alcunha do “grandedilema estrutural da música contemporânea” (RETI, 1978,p.112) apresentaria uma imbricação comum, pois, partindo dospressupostos da incondicional tonalidade ou incondicionalatonalidade, algo “A grande síntese das tendências musicaisde nossa era” (RETI, 1978, p.118).

Apesar da pluralidade de procedimentos composicionaissurgidos no início do século XX (decorrentes da busca pornovas maneiras de tratamento do material musical, sobretudono campo harmônico que tencionava substituir ou reformularos processos arraigados à tonalidade), foi possível a realizaçãode uma sistematização, ou mesmo uma determinação, dessesartifícios. O fato dos compositores não se restringirem a umatécnica específica, mas valerem-se de várias delas em umamesma obra, dificulta a escolha dos exemplos e a elaboraçãode definições fechadas. Contudo, tendo por base trabalhosde consagrados teóricos, realizou-se uma formalização deprincípios composicionais que, mesmo não sendo absoluta,se oferece enquanto uma delimitação satisfatória.

Referências Bibliográficas

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Antenor Ferreira: É Mestre em música (UNESP). Doutorando (ECA-USP), sob orientação doProf. Dr. Amilcar Zani. Bacharel em Composição e Regência (UNESP). Percussionista daOrquestra Sinfônica Municipal de Santos (SP).

e-mail: [email protected]

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PARALELO ENTRE AS ÓPERAS “MALAZARTE” E“PEDRO MALAZARTE”

José Fortunato Fernandes

Resumo - Este paralelo propõe-se a identificar as semelhanças e diferenças encontradas entreas óperas Malazarte, de Lorenzo Fernândez e Graça Aranha, e Pedro Malazarte, de CamargoGuarnieri e Mário de Andrade. São abordados aspectos relacionados aos libretistas, aoscompositores, ao texto e à música que julgamos importantes ou curiosos. Para tal, analisamosos libretos e as partituras e para identificar os elementos de brasilidade, utilizamos como parâmetroo Ensaio sobre a música brasileira de Mário de Andrade. Este paralelo não pretende julgar asobras, mas apenas comparar os aspectos que colaboraram para a sua concepção, em especialos elementos de brasilidade.

Palavras-chave: Brasilidade. Ópera. Modernismo.

Abstract - This parallel one intends to identify the likeness and differences found among theoperas Malazarte, of Lorenzo Fernândez and Graça Aranha, and Pedro Malazarte, of CamargoGuarnieri and Mário de Andrade. Aspects that we judged important or curious related to thelibrettist, to the composers, to the text and to the music are approached. For such we analyzedthe librettos and the partiturs and to identify the Brazilian characters, we used as parameter theEnsaio sobre a música brasileira of Mário de Andrade. This parallel one doesn’t intend to judgethe works, but just to compare the aspects that collaborated for its conception, especially theBrazilian characters.

Keywords: Brazilian character . Opera. Modernism.

ste paralelo propõe-se a identificar as semelhanças ediferenças encontradas entre duas óperas brasileiras:Malazarte, de Lorenzo Fernândez e Graça Aranha, escrita

entre 1931 e 1933, e Pedro Malazarte, de Camargo Guarnierie Mário de Andrade, escrita em 1932. Estas óperas foramescolhidas para serem pesquisadas pelo fato de terem sidoescritas em uma mesma época por dois grandes compositoresdo nacionalismo brasileiro e principalmente por apresentaremo mesmo tema: Malazarte, o personagem do folclore brasileiro

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caracterizado por sua esperteza. Malazarte pode sercomparado ao espírito inventivo de Scapin e de Figard: temas artimanhas de um e a graça do outro. Também é comparadoao flamengo Till Ulenspiegel, por suas travessuras, aMephistophélès, a Don Juan, por seu misticismo, e a Don Césarde Bazan, por sua displicência. A origem da personagemMalazarte é explicada por Camille Mauclair: sua concepçãovem do Mediterrâneo e se liga a Ulisses, fértil em artimanhas.Também pode encarnar algumas características do diabo dosvelhos contos italianos, sendo que da Itália passou à Espanhae Portugal, e por fim ao Brasil, onde tem se caracterizado comoum ser das florestas1 .

O trabalho foi realizado a partir das partituras autógrafas doscompositores: Malazarte de Lorenzo Fernândez que seencontra na Biblioteca Nacional de Música, no Rio de Janeiro,e Pedro Malazarte de Camargo Guarnieri que se encontra noInstituto de Estudos Brasileiros da USP, em São Paulo. Ostextos utilizados para a concepção de ambas óperas foramelaborados por escritores considerados modernistas na época.Graça Aranha, que escreveu o livro Malazarte em 1911 e inicioua adaptação do mesmo para o libreto da ópera em 1931, foiconsiderado aquele que daria impulso ao movimentomodernista, mas atualmente é considerado um pré-modernista.Já Mário de Andrade, que adaptou o texto de Lindolpho Gomespara o libreto da ópera em 1928, foi, indiscutivelmente, o líderdo movimento. Este esteve à frente tanto do movimento literárioquanto do musical. Aliás, na ausência de Villa-Lobos, ele foi oorientador estético dos compositores daquele período.

Embora integrando o movimento modernista, o espírito satírico-paródico deste não está presente no libreto de Graça Aranha,

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indo de encontro àquilo que acreditava ser a base da estética:a alegria. Ao contrário, o libreto trata de tragédias que envolvemMalazarte, Dionísia, Eduardo, sua mãe e sua noiva Almira,Raymundo, sua mãe Militina e sua noiva Filomena. O enredoocorre por volta de 1850 e se situa no Rio de Janeiro noprimeiro, segundo e terceiro ato, e no quarto, em Icaraí. Oprimeiro ato se inicia na véspera de Natal. Militina e a mãe deEduardo ouvem os coros de pastorinhas enquanto ele colheflores para a sua noiva Almira. A mãe acompanha Eduardo eMilitina entra na casa. Então surge Malazarte que, nãoencontrando ninguém, deita-se num banco do jardim e fingedormir. Militina o vê e vai chamar a mãe de Eduardo, que aacompanha. Malazarte finge acordar e conta as suas façanhas.Eduardo, a mãe e Militina entram na casa e então chegaFilomena, a noiva de Raymundo, filho de Militina. Ela seencanta com a volta de Malazarte e este tenta seduzi-la. Elepega o violão e toca um batuque. Filomena dança e váriaspessoas, atraídas pela música, dançam encerrando o primeiroato. No início do segundo ato Malazarte e Filomena estão juntosquando surge Raymundo, que convida Malazarte para umapescaria naquela noite. Filomena os adverte que quem pescana noite de Natal morre afogado. Raymundo zomba da crendicee entra para ver sua mãe. Em seguida Malazarte, Filomena eRaymundo seguem o bloco das pastorinhas. Surgem Eduardoe Militina que conversam sobre histórias antigas. Então chegaAlmira e começam a conversar sobre encantamentos. Eduardolembra-se de quando a Mãe d’Água lhe aparecia sentada sobrea borda do poço. Ele e Almira vão até o poço e começam ajogar flores na água. Eduardo vai colher mais flores e Almiracomeça a invocar a Mãe d’Água. Enquanto joga flores no poçoé atraída pela Mãe d’Água e se atira nele, terminando assim osegundo ato. O terceiro ato se inicia com Eduardo imerso em

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profunda tristeza. Malazarte chega e zomba dele. Ouve-sevozes infantis gritando “mãe da lua” atrás de Militina, queenlouqueceu com a morte de Raymundo na pescaria na noitede Natal. Dionísia entra em cena protegendo-a. Eduardo seinteressa por ela por lhe lembrar a Mãe d’Água. Apósconversarem, Dionísia se afasta, mas Eduardo, sentindo-seatraído, a segue, finalizando o terceiro ato. O quarto ato seinicia com Dionísia na praia sendo banhada pela lua. Surgemas Iaras, cantando e dançando. Ao longe os pescadorestambém cantam. Dionísia está imersa em seus pensamentosquando surge Malazarte em um barco. Ele tenta seduzi-la,mas ela lhe resiste. Malazarte a convida para ir com ele e elaaceita depois de certa resistência. Dionísia vai embora comMalazarte enquanto Eduardo, atraído pelo mistério da Mãed’Água, se atira ao mar, encerrando a ópera. A única cenacômica que aparece no texto original do drama, que é a cenaem que Malazarte consegue convencer o advogado credor dafamília de Eduardo a comprar um urubu que supostamenteadivinhava e falava, foi suprimida da ópera de LorenzoFernândez. Um espírito fatalista substituiu o satírico-paródico.Este, em contrapartida, é encontrado no libreto escrito porMário de Andrade, em situações cômicas que envolvem oAlemão, sua mulher Baiana, Malazarte e seu gato. O enredose passa em Santa Catarina, em uma casa típica do interioronde moram Alemão e Baiana. A história começa com achegada de Malazarte, um aventureiro que encontra Baiana àsua espera para o jantar. Após algum tempo são surpreendidospela volta inesperada do Alemão que, ingenuamente, nãopercebe que Malazarte galanteia sua mulher e acaba porconvidá-lo para o jantar. Durante a refeição, Malazarte simulauma conversa com seu gato e diz ao Alemão que este éfeiticeiro e lhe está revelando onde estão guardadas saborosas

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iguarias, aquelas que haviam sido escondidas com a chegadarepentina do Alemão. Após a refeição, o Alemão cai no sono ea Baiana diz que quer fugir com Malazarte, mas este pede aela que fique com o marido. Alemão acorda e propõe compraro gato feiticeiro de Malazarte e este o vende por bom preço.Enquanto a Baiana chora o seu destino, pois foi rejeitada eficará sem o dinheiro que o marido ganhou, Alemão despede-se de Malazarte e diz que sua casa estará sempre de portasabertas. É exatamente a presença do animal na ópera deCamargo Guarnieri, e Mário de Andrade substituiu o urubupor um gato, que faz com que a trama se desenvolva e chegueao desfecho que teve. Se o animal fosse suprimido da óperaPedro Malazarte, certamente o enredo tomaria um outro rumo.A sátira das situações em que cada um acredita levar vantagemsobre o outro é muito clara no libreto de Mário de Andrade.

É interessante notar que em ambos casos a iniciativa dacomposição da ópera partiu do libretista e não do compositor.O texto de Graça Aranha existia desde 1911. Foi ele quemprocurou Lorenzo Fernândez para que este musicasse seutexto. Em 1931, vinte anos depois do texto original ter sidoescrito, o libreto começou a ser elaborado por Graça Aranha.Este mostra certa preocupação em ser autêntico em seu texto.Apesar de utilizar uma personagem folclórica, ele coloca asua filosofia em evidência, seus pensamentos e sentimentos,evitando a comicidade pertinente às travessuras de Malazarte.Não sabemos se inicialmente aceitou ou não a interferênciade Lorenzo Fernândez na elaboração do libreto. O fato é quesua morte foi a causa da “parceria” do compositor que teveque assumir a conclusão do libreto já iniciado pelo escritor.Da mesma forma, foi Mário de Andrade quem ficouentusiasmado com a idéia da composição de uma ópera

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nacional, tanto que, três dias após terem tido a idéia, apareceucom o libreto pronto. Ele utilizou um texto folclórico compiladopor Lindolpho Gomes em livro editado em 1918. Ao contráriode Graça Aranha, ao conceber o libreto, Mário de Andradenão se preocupou em compor uma obra original queexpressasse seus pensamentos e sentimentos, ou em adaptaruma obra-prima de algum grande escritor com quem seidentificasse. Mário de Andrade não utilizou um textooriginalmente seu e também não pretendeu se manter sozinhona elaboração de tal empreendimento. Sabemos que acaligrafia de Camargo Guarnieri foi identificada no manuscritodo libreto2 . Sua intervenção não foi repudiada. O que importouna concepção do libreto foi a obra em si, e não a projeção queela poderia dar aos seus criadores.

O texto de Graça Aranha, apesar do racionalismo filosófico eo apego à escrita artística, está intimamente relacionado aofolclore, o que lhe dá um caráter nacionalista. Tanto na peçaquanto no libreto, encontramos a retratação de tradições, festase instrumentos populares. A visão da Mãe-d’Água, das Iarasna Praia de Boa Viagem e o desfile do rancho das pastorinhasna noite de Natal são elementos que formam a brasilidade.Somam-se a estes elementos de cunho popular as letras dascanções folclóricas inseridas no libreto: Nau catarineta,Jardineiro de meu pai, Terezinha de Jesus e Eu vi, eu vi no

fundo do mar.... Em seu libreto, Mário de Andrade caracterizoufolcloricamente o que não era definido: o local onde a cenaacontece, a data, a origem das personagens, as cantigas.Encontramos uma fusão regional que também se caracterizapela diversificação de pratos típicos proposta pelo escritor. Eo cenário também não deixou a desejar, apresentando muitoselementos que compõem as residências da região rural doBrasil.

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Graça Aranha uniu ao folclore brasileiro sua filosofia monista.As personagens de Malazarte supriram a necessidade decomunicar seu pensamento de uma forma que não fosseestranha ao povo, principalmente através de uma personagemfolclórica conhecida por todos. Malazarte representa o serintegrado no Todo universal, identificando-se com a alegriade viver de Filomena e Dionísia, e contrapondo-se ao terrorde Eduardo. Malazarte antecipou o pensamento de A estética

da vida contendo em germe a idéia panteísta da fusão dosseres no inconsciente. Parece-nos que Graça Aranha teve umapreocupação maior com a exposição de seu pensamentofilosófico do que com a arte em si. Além da dificuldade em seentender seu pensamento filosófico, outro fator que separasua obra do gosto popular é o uso de uma linguagemrebuscada. Assim, deduzimos que, apesar da utilização deelementos do folclore, a concepção de Malazarte não foi paraa grande massa, mas para uma elite intelectual. Já Mário deAndrade utilizou substratos populares para compor seu libreto.Ao contrário de Graça Aranha, parece-nos que sua maiorpreocupação foi com a arte, e não com a mensagem filosófica,o que não quer dizer que a composição de tal libreto tenha selimitado a um trabalho puramente artístico, pois refletiu opensamento filosófico do escritor na consideração da arte comoportadora de uma função social. O libreto de Pedro Malazarte,como suporte para a música vocal, tornou-se possibilidadesocializadora. Esta orientação, que consistiu na submissãode Mário de Andrade às exigências da matéria, conduziu-o àsua vocação social. Assim, ao elaborar o libreto, ele teve diantede si um conto folclórico com características próprias que forampreservadas: o cenário com seus objetos rurais, aspersonagens com seu figurino, sua linguagem, seus hábitos,enfim, todas estas características foram respeitadas em função

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da obra, evitando-se as incoerências. As definições do localonde se passa a cena e da origem das personagens, asmodificações relacionadas às comidas, a inclusão de uma festajunina com cantigas amazônicas, enfim, todos os elementosestranhos ao texto de Lindolpho Gomes foram criteriosamenteincluídos respeitando o material do mesmo. O objetivo de Máriode Andrade foi a aproximação da arte às massas. O fato de terse utilizado de um conto folclórico permitiu que o libreto fossecomposto dentro de uma linguagem conhecida do povo, parao povo. Se pensarmos na finalidade do texto do libreto de Pedro

Malazarte, chegaremos à conclusão que não teve comoobjetivo a exposição de um pensamento filosófico explícito,como no libreto de Graça Aranha, mas sua finalidade foi divertiro público.

Como já foi dito, no libreto de Graça Aranha, a figura do fúnebree agourento urubu, que acompanha Malazarte no drama e foio motivo da única cena cômica, foi suprimida. O libreto daópera Malazarte revela a tragédia do terror do ser humanoquando toma consciência de sua separação do Todo universale o leva à triste fatalidade. Para Graça Aranha, o drama traduza idéia de que só há tragédia naquilo que é insolúvel para oser humano. Desta forma, percebemos uma semelhança entreMalazarte e a ação dramática das tragédias gregas, que seapoiam sobre a contraposição entre realidades e mitos: falamda luta dos heróis contra o destino, dos deuses e seus poderes.Tais características são patentes no libreto. Outra característicaque encontramos em Malazarte é a indefinição do caráter daspersonagens como protagonista e antagonista. Estescaracteres deixam de existir, pois o homem não passou a serconsiderado nem bom nem mau, mas fruto do meio. GraçaAranha afastou-se de uma idéia maniqueísta. Para Mário de

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Andrade, a comédia sempre esteve muito mais próxima dopovo do que a tragédia. Ele defendeu a força socializante daarte através da internalização do critério social. Para ele acomédia tem uma força socializante maior do que a tragédia.É muito clara a relação das personagens do seu libreto com acommedia dell’arte. As características de Malazarte sãoperfeitamente associáveis às de Arlequim. Mário de Andradedefendeu a função estética da ópera cômica, pois esta foi aforma em que o drama musical atingiu a melhor expressão demúsica pura, com um êxtase desinteressado e proporcionandoum intenso prazer. Ele diz que

“(...) o que é contradição no drama musical, vira valor estético nacomédia musical. Quanto mais prazer desinteressado, mais artístico é.A ópera cômica é a única solução esteticamente perfeita da artedramático-musical. E quanto mais cômica, mais artística” 3 [grifo nosso].

Gostaria de chamar a atenção para a proximidade entre afilosofia e a religião nos textos dos libretistas. Tanto GraçaAranha quanto Mário de Andrade fizeram alusões à religião.O primeiro a relacionou com a filosofia do terror; o segundo autilizou como força socializante. Tanto as crendicessupersticiosas, herdadas dos ameríndios e africanos, quantoa prática religiosa proposta pelo cristianismo através daadoração do menino Jesus estão presentes no libreto de GraçaAranha. Já o libreto de Mário de Andrade traz a sua estéticacoletivista, o caráter sociológico da religião como instaladorada vida social. O enredo do libreto decorre durante acomemoração de uma festa de São João celebrada pelo coro,festa religiosa que tem um caráter muito mais social quereligioso, que já faz parte do folclore brasileiro.

O drama escrito por Graça Aranha foi publicado em francês e

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português. Posteriormente ganhou uma versão italiana. Nomanuscrito da ópera encontramos a versão dos três idiomas.Por ocasião de sua estréia, foi cantada em italiano. O texto deMário de Andrade foi escrito em português, mas existe umaversão italiana registrada no próprio manuscrito da partiturade Pedro Malazarte. Em sua estréia, a ópera foi cantada emportuguês. Acreditamos que, apesar da existência da versãoitaliana, esta nunca tenha sido utilizada.

As óperas em questão foram escritas na mesma época. Nãosabemos quando surgiu a idéia da ópera Malazarte por GraçaAranha, mas sabemos que a adaptação do drama para a óperafoi iniciada em 1931 concomitantemente com a composiçãomusical. A adaptação do libreto foi interrompida pela morte deGraça Aranha e Lorenzo Fernândez propôs-se a terminá-la.Devido às dificuldades que o compositor encontrou para talempreendimento, a ópera somente foi concluída em 1933. Aidéia da ópera Pedro Malazarte surgiu em 1928. Nesse anoCamargo Guarnieri começou a escrever a música e logo emseguida interrompeu seu trabalho, retomando-o somente em1930. Mais uma vez o interrompeu, passando o ano de 1931pensando sobre o assunto. Em 1º de janeiro de 1932 reinicioua composição da ópera e a concluiu em 6 de fevereiro domesmo ano.

A concepção das óperas esteve muito relacionada aoexperimentalismo instrumental surgido no século XX que levoua uma valorização dos instrumentos de sopro e percussão e auma conseqüente desvalorização do naipe de cordas. LorenzoFernândez experimentou essa nova sonoridade em sua ópera,mas às vezes percebemos certos arroubos românticos atravésdas cordas. Com a expansão do jazz, houve um

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desenvolvimento de pequenas orquestras com instrumentistassolistas virtuoses. Tanto Lorenzo Fernândez quanto CamargoGuarnieri experimentaram essa nova sonoridade em suasobras. Mas quanto às óperas, ambos escreveram, inicialmente,para grande orquestra. A diferença é que o segundo areescreveu para orquestra de câmara em 1943, estando maisde acordo com a nova sonoridade proposta para a música doséculo XX, enquanto o primeiro manteve resquícios dasonoridade romântica do século XIX.

Os elementos de brasilidade estão presentes em ambasóperas, mas foram abordados de forma diferente. Encontramosum caráter pitoresco na ópera Malazarte, constatado atravésdas citações diretas do folclore, como Nau catarineta, Jardineiro

de meu pai, Terezinha de Jesus e Eu vi, eu vi no fundo do

mar..., que é uma “linha d’água” do catimbó nordestino. Mastambém existem trechos onde a brasilidade é afirmada atravésda ambiência criada através de elementos ameríndios, negrose crioulos. Também encontramos loas natalenses, serestasurbanas, enfim, música de origem popular. Na ópera Pedro

Malazarte, a brasilidade é caracterizada pela utilização deformas populares, como a embolada, a modinha e a ciranda.Também encontramos citações do folclore brasileiro, como ococo Mulher não vá, a Ciranda, cirandinha e Caçador quer

pegar o carão, mas estas citações foram modificadas, evitandoo caráter pitoresco.

Tanto Lorenzo Fernândez quanto Camargo Guarnieri utilizaramas constâncias rítmicas pesquisadas por Mário de Andrade ediscutidas em seu Ensaio sobre a música brasileira: a síncopa,a repetição sistemática de um valor pequeno (semicolcheia)criando legítimos recitativos, o ritmo livre criado por uma falsa

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síncopa, os movimentos livres dos compassos criados atravésda transformação de ritmos ternários em binários por falta deacentuação, resultando na mudança do padrão do compasso,os compassos binário simples e composto, quaternário eternário.

Ao utilizar a síncopa em Malazarte, Lorenzo Fernândezdesequilibrou a estrutura musical através de umasupervalorização do ritmo em detrimento da melodia, harmonia,timbre ou forma. Nos trechos em que a síncopa estámarcadamente presente, temos a impressão de que somenteela aparece. Já Camargo Guarnieri evitou essasupervalorização do ritmo sincopado através da utilização dapolifonia. Dessa forma ele conseguiu com que a síncopaestivesse presente em Pedro Malazarte sem que houvesseum desequilíbrio entre os outros elementos estruturadores damúsica. A seguir temos dois exemplos de síncopa: o primeirona ópera Malazarte e o segundo na ópera Pedro Malazarte.

Quanto à utilização da repetição sistemática de um valorpequeno (semicolcheia) criando recitativos, LorenzoFernândez o faz de forma similar aos tradicionais recitativosque se aproximam da fala, ou seja, com certo empobrecimentomelódico. Camargo Guarnieri não abre mão da riquezamelódica. Ele utiliza essa constância rítmica, herdada datradição ameríndia e africana, de forma agradável, distante daforma quase falada, mas sem perder a característica de açãodo recitativo tradicional.

O ritmo livre criado por falsas síncopas é utilizado tanto emMalazarte quanto em Pedro Malazarte. A única diferença queencontramos é que, proporcionalmente, Lorenzo Fernândez outilizou em maior quantidade do que Camargo Guarnieri.

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Fig. 2 – síncopa em Pedro Malazarte – c. 73-76

Fig. 1 – síncopa em Malazarte – Ato I – c. 434-437

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Lorenzo Fernândez utilizou mais o ritmo livre do que a síncopae exatamente o contrário se deu com Camargo Guarnieri.

Os compassos binário simples e composto, quaternário eternário foram amplamente utilizados nas duas óperas. Comoexemplos, temos na ópera Malazarte o batuque em bináriosimples, a marcha-rancho e a modinha em quaternário simples.Na ópera Pedro Malazarte percebemos uma constância dautilização do binário simples.

Também o movimento livre dos compassos criado através datransformação de ritmos ternários em binários por falta deacentuação, resultando na mudança do padrão do compasso,foi encontrado tanto em Malazarte quanto em Pedro Malazarte.Não encontramos diferenças na utilização dessa constâncianas citadas óperas. Não poderíamos deixar de citar a influênciadessa prática através de seu constante emprego nastendências européias da música moderna daquele período.

Algumas das constâncias melódicas pesquisadas por Máriode Andrade e comentadas em seu Ensaio foram utilizadas tantopor Lorenzo Fernândez quanto por Camargo Guarnieri. Sãoelas: os modos lídio e mixolídio, a escala hexacordal desprovidade sensível, a melodia composta por saltos de 7a, 8a e 9a, ossons rebatidos, a melodia em terças, as frases descendentese o término da frase na mediante.

O modo lídio foi utilizado tanto em Malazarte quanto em Pedro

Malazarte. Ele foi parcamente utilizado na primeira, pois oencontramos somente no Ato I em melodias cantadas porEduardo e Filomena. Parece-nos que é um modo de menorpreferência tanto por Lorenzo Fernândez quanto por Camargo

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Guarnieri. Este último o empregou em pequena quantidadeem sua ópera, modificado de forma criativa pela interferênciado constante cromatismo que faz parte do seu estilo, mas semperder a característica da quarta aumentada que caracterizaa música do nordeste brasileiro.

Quanto à utilização do modo mixolídio, está igualmentepresente em ambas óperas. Ele aparece pouquíssimo na óperaMalazarte, sendo encontrado apenas no Ato I em melodiascantadas por Malazarte. Já em Pedro Malazarte, encontramosesse modo bastante utilizado em diversos trechos, tambémde forma modificada pela interferência do cromatismo deCamargo Guarnieri, mas sem perder a característica da sétimaabaixada que, como a quarta aumentada no modo lídio, tantocaracteriza a música nordestina brasileira.

A utilização da escala hexacordal desprovida de sensível foiencontrada de forma marcante apenas na ópera Malazarte.Lorenzo Fernândez a utilizou com maior constância na melodiada marcha-rancho que o coro canta ao encenar o rancho daspastorinhas no Ato II. Em Pedro Malazarte encontramospequenas frases desprovidas de sensível, mas em poucaquantidade, deixando de ser uma característica marcante daópera.

Encontramos a presença de melodias compostas por saltosde 7ª, 8ª e 9ª tanto em Malazarte quanto em Pedro Malazarte,sendo que em ambas óperas encontramos uma preferênciapelo salto de 8ª e pequena quantidade do salto de 9ª. Essessaltos audaciosos, que são característicos da modinhabrasileira, são encontrados na que foi escrita por LorenzoFernândez para Malazarte, claramente de forma pictórica. Jána modinha que Camargo Guarnieri escreveu para a Baiana

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não encontramos nenhum desses saltos, e nem por isso ficoudescaracterizada.

Tanto os sons rebatidos quanto a melodia em terças,características das toadas caboclas brasileiras, foramamplamente utilizados nas duas óperas. Tanto em Malazarte

quanto em Pedro Malazarte, as terças foram utilizadas emprofusão nos instrumentos, algumas vezes no coro e nenhumavez em dueto dos cantores solistas. Os sons rebatidos e asterças foram utilizados tanto independentemente quantosimultaneamente. A seguir, temos dois exemplos de sonsrebatidos, o primeiro na ópera Malazarte e o segundo na óperaPedro Malazarte. Da mesma forma, temos dois exemplos deterças em ambas óperas.

Ex. 3 – sons rebatidos em Malazarte – Ato IV - c. 308-309

Ex. 4 – sons rebatidos em Pedro Malazarte – c. 653-658

Ex. 5 – terças em Malazarte – Ato III – c. 465-468

Ex. 6 – terças em Pedro Malazarte – c. 13-17

As frases descendentes e o seu término na mediante forammuito utilizadas nas óperas em estudo. Nós as encontramosnos instrumentos, no coro e nas vozes solistas. Visto queLorenzo Fernândez se mostrou mais afeiçoado ao sistema tonal- inclusive ele utiliza as armaduras nas claves -, o término dasfrases na mediante tornou-se mais evidente. CamargoGuarnieri aboliu as armaduras nas claves e sua linguagempor vezes beira ao atonalismo devido ao seu exacerbadocromatismo, o que tornou mais difícil a identificação desteelemento de brasilidade.

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Haja vista não existir uma harmonia brasileira, Mário deAndrade identificou alguns processos harmônicos maishabituais na música nacional que foram discutidos em seuEnsaio. Dentre esses processos encontramos o sistemapentatônico, os modos lídio e mixolídio, o tonalismo harmônicoe a polifonia.

No que se refere ao emprego do sistema pentatônico, não oidentificamos em nenhuma das duas óperas.

Na ópera Malazarte o modo lídio foi encontrado, como jádissemos, em pequena escala caracterizando apenas algumasmelodias. Ele aparece na ópera Pedro Malazarte, mas tambémem pequena quantidade. Como nas melodias, também recebeua interferência do cromatismo de Camargo Guarnieri, maspreservou suas características.

O modo mixolídio foi utilizado na ópera Malazarte, mas empequena escala. A sétima abaixada aparece com freqüêncianessa ópera, mas poucas vezes caracteriza tal modo. Na óperaPedro Malazarte esse modo aparece com mais freqüência,sendo que, como nas melodias, a harmonia recebe ainterferência do cromatismo, mas sem perder suascaracterísticas.

O tonalismo harmônico é encontrado em ambas óperas. Mesmoquando se vale da politonalidade, Lorenzo Fernândez a utilizade forma mais tradicional, sendo mais evidente. Já falamos douso das armaduras nas claves. Ao contrário de LorenzoFernândez, Camargo Guarnieri não lança mão das armadurasde clave e seu politonalismo contém dissonâncias mais durasdevido ao seu cromatismo, o que dificulta um pouco aidentificação das tonalidades trabalhadas.

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Quanto à polifonia, esta é encontrada em ambas óperas. EmMalazarte a polifonia remete-nos mais pictoricamente às flautasseresteiras e aos baixos melódicos. A textura dessa ópera éem sua maioria a de melodia acompanhada. Já em Pedro

Malazarte são raros os trechos com textura que não sejapolifônica. Camargo Guarnieri trabalha a polifonia não só nosextremos agudos e graves - como nas flautas e nos baixos -,mas na maior parte do tempo e na maioria dos instrumentos.

Quanto ao timbre caracteristicamente brasileiro, Mário deAndrade qualificou-o em seu Ensaio como anasalado. Essetimbre nasal é caracterizado pela utilização de algunsinstrumentos, tais como o violino, a viola, a sanfona, o oficleide,etc. Além destes instrumentos que anasalam a músicabrasileira, ele ainda fala dos instrumentos típicos, tais como oreco-reco, a sanfona, o triângulo, o cavaquinho, além de citarinstrumentos ameríndios e africanos.

Em alguns trechos de Malazarte, o som anasalado dasmadeiras nos remete ao timbre brasileiro comentado peloescritor, embora muitas vezes encontremos uma sonoridaderomântica através da ação do naipe de cordas e da intensidadeda grande orquestra. O triângulo e o pandeiro, que sãoinstrumentos típicos do populário brasileiro, foram utilizadosem algumas músicas para acentuar seu caráter popular. Asonoridade conseguida pela orquestra de câmara de CamargoGuarnieri, na qual é ressaltado o timbre anasalado dasmadeiras, aproxima-se do timbre brasileiro definido por Máriode Andrade. Como Lorenzo Fernândez, Camargo Guarnieriutilizou instrumentos típicos em sua orquestra: o triângulo, ochocalho e o reco-reco. Estes instrumentos enriqueceram muitoo caráter popular de sua ópera. Gostaria de chamar a atenção

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para o fato de que a valorização das madeiras nas tendênciasda música moderna daquele período também interferiu naconcepção tímbrica das óperas.

No que diz respeito à forma, Mário de Andrade identificou aconstância na música brasileira da peça curta em doismovimentos sem repetição do primeiro, da forma estrófica comou sem refrão, da melodia infinita e da forma coral de caráterantifonal.

Lorenzo Fernândez utilizou formas populares em sua ópera.Dentre elas encontramos o batuque, que tem forma ABA, amarcha-rancho e a modinha, ambas com forma estrófica ABcom refrão. Também encontramos a forma antifonal utilizadacom coro e solista. Acreditamos que o problema da utilizaçãoda forma popular na ópera de Lorenzo Fernândez está no fatode escrever tão pictoricamente que o compositor perdeu assuas próprias características, dando-nos a impressão de quetais partes foram enxertadas por apresentarem um estilo tãodiferente dos demais trechos da ópera. Camargo Guarnieritambém utilizou as formas populares em sua ópera: ascirandas, que apresentam forma monotemática, uma embolada,em forma estrófica ABC com refrão, uma modinha, em formaestrófica AB com refrão. A forma foi a paixão de CamargoGuarnieri, sendo o tratamento polifônico a grande marca deseu estilo. Apesar de não utilizar as formas pictoricamente,sua ópera não perde, em momento algum, suas característicasnacionais. Em 1957 a ópera Pedro Malazarte foi apontada porEurico Nogueira França como uma exceção dentre as óperasnacionais como único verdadeiro exemplo de ópera brasileira.

Nem Lorenzo Fernândez e nem Camargo Guarnieri tiveram

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suas óperas estreadas logo após a conclusão da composição.Malazarte estreou em 30 de setembro de 1941 após oito anosde sua conclusão. Sabemos que trechos da ópera foramexecutados em forma de concerto. Pedro Malazarte estreouem 27 de maio de 1952 após vinte anos de sua conclusão. Em1943 houve um projeto para que a ópera fosse encenada,ocasião em que Camargo Guarnieri fez a versão da óperapara orquestra de câmara. Mas tal projeto não se concretizou,tendo que esperar mais nove anos para ir à cena.

São muitas as semelhanças e diferenças entre as óperasMalazarte e Pedro Malazarte. Elas refletem a formação e aestética de seus compositores. Cada uma representa, com suascaracterísticas peculiares, a ânsia de um período pelacristalização da música brasileira de forma nacionalista emoderna através da utilização dos elementos de brasilidade.

Notas:

1 MAUCLAIR, Camille. Préface. In: ARANHA, José Pereira da Graça. Malazarte: légend en troisactes. Paris: Librarie Garnier Frères, [1911], p. VI.2 TONI, Flávia Camargo. Pedro Malazarte e o Ensaio sobre Música Brasileira: duas parcerias deSebastião e Lusitano. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 13, Belo Horizonte, 2001. Anais... São Paulo, Artcolor, 2001, p.222.3 ANDRADE, Mário de. Pequena história da música. 8ª edição. São Paulo, Livraria Martins Editora;Belo Horizonte, Editora Itatiaia Limitada, 1980, p. 118-119.

Referências bibliográficas:

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José Fortunato Fernandes: É Mestre em Musicologia (ECA – USP), onde teve como orientadoro Professor Dr. Régis Duprat na dissertação “Brasilidade na ópera: um paralelo entre Malazartede Lorenzo Fernândez e Pedro Malazarte de Camargo Guarnieri”; Bacharel em Piano (UNIRIO)e em Música Sacra (STBSB). Entre suas atividades atuais, constam as de professor no Centrode Estudos Musicais Tom Jobim, Faculdade Teológica Batista de São Paulo e ConservatórioSanta Cecília, regente no Projeto Guri e cantor no Coral Bacarelli.

e-mail: [email protected]

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A

JAZZ, MÚSICA BRASILEIRA E FRICÇÃO DEMUSICALIDADES

Acácio Tadeu de Camargo Piedade

Resumo - Este artigo resulta de minhas pesquisas sobre a música popular brasileira instrumental,ou jazz brasileiro, conhecido no Brasil pelo rótulo “música instrumental”. Para tratar deste tema,apresento uma reflexão sobre questões como imperialismo cultural, identidade nacional,globalização, regionalismo e musicalidade. Tenho pesquisado o tema baseando-me no discursonativo e na análise de peças musicais, principalmente no âmbito das improvisações, e apresentoaqui algumas características sócio-culturais da “música instrumental”, em especial no seu contrastecom o jazz norte-americano. Procuro mostrar como, no interior do jazz brasileiro, constantementeemerge uma dialética do interno e do externo que tem implicações fundas, particularmente atravésde tópicos musicais nos temas e improvisações. Chamei de fricção de musicalidades esta marcado tenso diálogo da música instrumental, característica fundante deste gênero.

Palavras-chave: Jazz. Música instrumental. Música popular.

Abstract - This article results from my research on instrumental Brazilian popular music, or Brazilianjazz, in Brazil called “música instrumental”. To deal with this subject, I present a reflexion onquestions about cultural imperialism, national identity, globalization, regionalism and musicality.I`ve been researching this subject based on the native discourse and on the analysis of musicalpieces, particularly at the level of improvisations, and I present here some socioculturalcharacteristics of “música instrumental”, especially in its contrast with North-American jazz. Iintend to show how in Brazilian jazz it constantly emerges a dialectics of the inner and the outerwhich has deep implications, particularly through musical topics in the themes and improvisations.I called friction of musicalities this mark of the tense dialog of “música instrumental”, a fundamentalcharacteristic of this genre.

Keywords: Jazz. Instrumental music. Popular music.

“música instrumental”, ou mais propriamente, a músicapopular brasileira instrumental, ou ainda, o “jazzbrasileiro”, é um gênero musical que, apesar de muito

apreciado no Brasil e internacionalmente, é pouco divulgadoe, além disso, pouquíssimo estudado pela musicologiabrasileira. Os estudos de música popular, em geral, têm se

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dedicado muito mais ao mundo daquelas tradições popularesantes ditas “folclóricas” e à esfera da MPB1 do que ao universoinstrumental. Este privilégio da canção como objeto de estudotem relação com a idéia de que na canção há um tipo de acessodireto ao significado, que se encontra nas letras. Certaconcepção de canção toma sua dimensão narrativa comopreponderante na significação (Tatit, 1996), enquanto outrosautores afirmam que a análise da canção não pode se limitarà letra (Frith, 1988; Bastos, 1996), e que, portanto, a sua“instrumentalidade” é igualmente fértil de significado. Deixareide lado o debate no campo da análise da canção e na dialéticaentre letra e música para enfocar um gênero cuja identidadeprincipal, inscrito na sua designação ambígua de “músicainstrumental”, entende-se primordialmente enquanto não-canção. Mas esta via desvia-se igualmente do caminho da“música pura”, defendido pelo menos desde Hanslick (1992[1854]): a música “em si”, neutra e independente de processossócio-culturais2 . A compreensão da música instrumentaldepende da descoberta de seus nexos “musicoculturais”, daía necessidade de uma atenta análise musical que inclua oolhar para a cultura e para o discurso.

Venho estudando o jazz brasileiro buscando focalizar estamúsica como um gênero musical em sua plenitude, pertencenteao conjunto da música popular brasileira e apresentando umarelação típica com o jazz norte-americano (Piedade, 1999,2003). Esta relação, ao mesmo tempo de tensão e de síntese,de aproximação e de distanciamento, tem profunda correlaçãocom discursos sobre imperialismo cultural, identidade nacional,globalização e regionalismo. Para dar conta da forma com quea musicalidade brasileira e a norte-americana se encontramno jazz brasileiro, constituinte deste gênero musical, tenho

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falado de uma “fricção de musicalidades”, inspirando-me nateoria da fricção interétnica de Roberto Cardoso de Oliveira(1964, 1972). Cardoso de Oliveira desenvolveu este conceitoa partir dos anos 60, para dar conta da relação entresociedades indígena e a sociedade brasileira, que ele via comoconflituosa. O conflito, inerente à situação de fricção interétnica,se explica pelos interesses diversos das sociedades emcontato, sua vinculação irreversível e interdependência, e pelasituação de domínio e submissão ali engendrada. Nesteconceito, Cardoso de Oliveira se afasta da idéia detransmissão, aculturação ou assimilação, ligadas ao paradigmaculturalista anterior, desenvolvido principalmente por DarcyRibeiro (1970). O enfoque passa, da mudança cultural, para ainteração continuada entre duas sociedades, que formam umsistema intersocietário que exibe, em seu cerne, umadesigualdade; a fricção interétnica seria, assim, o “equivalentelógico (mas não ontológico) do que os sociólogos chamam daluta de classes” (Cardoso de Oliveira, 1967). Não é um objetivodeste texto lembrar as pertinentes críticas que foram feitas aeste conceito (ver Oliveira Filho, 1988:44-49), mas sim mostrarcomo este conceito foi inspirador para pensar a tensão entrea musicalidade brasileira e a norte-americana, no seio damúsica popular instrumental brasileira.

Nos supra-citados artigos sobre jazz brasileiro, entendimusicalidade como uma espécie de memória musical-culturalque os nativos compartilham. Musicalidade seria, assim, umconjunto de elementos musicais e simbólicos, profundamenteimbricados, que dirige tanto a atuação quanto a audiçãomusical de uma comunidade de pessoas. No caso do jazz,esta comunidade é internacional e multicultural, e seus“nativos” compartilham o que chamei de “paradigma bebop”,

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ou seja, uma mesma musicalidade jazzística que torna possívelo diálogo entre um trompetista sueco, um pianista tailândês eseu público, numa jam session em Caracas; enfim, algo comouma língua comum. Mas o jazz brasileiro, como procureimostrar, ao mesmo tempo em que canibaliza o paradigmabebop, busca incessantemente afastar-se da musicalidadenorte-americana, isto através da articulação de umamusicalidade brasileira. Esta dialética seria, assim, congênitae essencial ao jazz brasileiro enquanto gênero musical: dotadode uma estabilidade em termos de temática (a fricção demusicalidades sendo aqui constituinte, evidenciando-seprincipalmente nas improvisações), de estilos(fundamentalmente idiomas regionais, como a musicalidadenordestina) e de estruturas composicionais (no código musicalpropriamente, como na rítmica e no emprego de determinadosmodos)3 . A fricção de musicalidades surgiu então como umasituação na qual as musicalidades dialogam mas não semisturam: as fronteiras musical-simbólicas não sãoatravessadas, mas são objetos de uma manipulação quereafirma as diferenças. Este diálogo fricativo de musicalidades,característico da música instrumental, espelha uma contradiçãomais geral do pensamento: uma vontade antropofágica deabsorver a linguagem jazzística e uma necessidade de brecareste fluxo e buscar raízes musicais no Brasil profundo. Creioque o duplo movimento deste gênero musical pode ser pensadoem diversos universos da música brasileira4 .

Sim, porque se trata de uma espécie de jogo, neste gêneromusical manifestando-se entre o idioma do jazz e asmusicalidades brasileiras, que promove um encontro que sefinge mas que nunca se realiza plenamente. Mais que umencontro, trata-se de um confronto: a ficção do encontro

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musical é que ele é uma fricção. O discurso dos músicos,críticos e apreciadores fala de fusão, sincretismo, mistura,influência. Estas noções somente fazem sentido através dadistinção que lhes é implícita: o “novo” gênero “absorve” umamusicalidade outra que, no entanto, mantêm-se distintajustamente porque é percebida. E assim, não há umadissolução dos termos da musicalidade, e isto claramenteporque se trata não apenas de termos musicais mas culturais,e cultura não se dissolve facilmente, nem se digerecompletamente. Fica uma espécie de esquizofrenia criativano jazz brasileiro: olhos que buscam o global e umauniversalidade da linguagem jazzística, que conscientementeé tomada a partir de uma matriz de musicalidade norte-americana, e olhos nas costas, que miram os territórios daraiz, os terrenos da origem, a eclosão da diversidade musical“autêntica”5 . Esta afecção congênita do jazz brasileiro podebem ser tributária de aspectos muito mais gerais da identidade:a forma como os brasileiros se pensam enquanto brasileiros epensam o Brasil. Para DaMatta, há um confronto entre o Brasilinterior, rural, patriarcal, holístico, e o Brasil da costa, urbano,individualista. Esta duplicidade DaMatta chamou de dilemabrasileiro (1979). Em que medida o dilema brasileiro seinscreve na fricção de musicalidades e no jazz brasileiro? Ameu ver, integralmente.

Muitas vezes, o discurso respectivo deste olhar para dentro,aquele que emprega noções como fusão, sincretismo, mistura,influência, e mesmo resgate, porta um pouco do ideáriomodernista, conforme explicitado por Mário de Andrade, quecompreende este mundo popular como fonte interior para umamúsica verdadeiramente brasileira, mas que necessita sertrabalhado, cultivado, qual diamante bruto, para ganhar a forma

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elevada na qual merece uma existência nacional e global6 .Este pensamento é persistente, e vem alimentando toda aestética nacionalista. Interessa ao artista nacionalista somenteo que é tido como verdadeiramente nacional e, desta forma, oideário antropofágico também parece se aplicar aqui,curiosamente invertido: não exatamente “só me interessa oque não é meu” mas “só é meu o que me interessa”. Olharpara o dentro do Brasil musical e aceitá-lo em sua crueza, nãoapenas chorinhos e escalas nordestinas mas também hip hop,funk, punk, caipira, brega, mangue, indígena, parece nãobastar, ou mesmo incomodar a muitos: somente alguns traçosmerecem ser candidatos a musicalidades “absorvíveis”. A MPBpode ser entendida como uma máquina de seleção, a todo otempo colhendo de fora e de dentro elementos aceitáveis paraapresentá-los na roupagem da brasilidade.

Para além do discurso ele mesmo, há um discurso que émusical em sua essência, independente da linguagem. Parailuminá-lo, faço aqui uma breve incursão em meus estudossobre música indígena. Na análise da música de flautas dosíndios Wauja (Piedade, 2004), mostrei que neste repertórioinstrumental há uma espécie de fala que se pronuncia: trata-se de um discurso musical que revela uma forma de pensarmanifestando-se no conjunto das operações que entram emjogo na música. Estas operações são da ordem da invençãode proposições sistemáticas que se manifestam na forma deidéias musicais, que por sua vez são moldadas, sobretudo,conforme premissas culturalmente anteriores, pois a idéia éparte de um sistema musical e é a partir dele que ela se tornapossível. Creio que estas noções estão em operação no jazzbrasileiro, e talvez mesmo em qualquer música instrumental.

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É o caso da fricção de musicalidades, que pode ser observadaem termos musicológicos no discurso musical que se pronuncianas composições e improvisações dos músicos da músicainstrumental. O jazz brasileiro, como procurei mostrar, aomesmo tempo em que devora o paradigma bebop, buscaincessantemente afastar-se desta musicalidade norte-americana através da articulação de uma musicalidadebrasileira. Esta tensão é congênita e essencial ao jazz brasileiroenquanto gênero musical, na concepção acima mencionada.Faz parte desta estabilidade o embate entre o mixolídionordestino e a blues scale, uma marca fundamental do jazzbrasileiro. Aqui, as musicalidades dialogam, mas não semisturam, suas fronteiras musical-simbólicas não sãoatravessadas mas são objetos de uma manipulação que acabapor reafirmar as diferenças. A metáfora mecânica da fricçãoimplica que os objetos postos em contato se tocam e esfregamsuas superfícies, podendo chegar a trocar partículas, mas osnúcleos duros das substâncias tende a se manter. Por istonão é o caso de se falar em complementaridade, como muitosdiscursos ingenuamente fazem, pois o caráter não éconstrutivo, mas sim de tensão e flexibilidade, e muitas vezesde ironia, como nos exemplos de fricção de musicalidadesenvolvendo paródia no jazz (Monson 1996,106-125).

Apesar do discurso nativo eventualmente afirmar que estatensão é algo indesejável, um elemento descaracterizador quetende a desaparecer numa futura fusão ideal, penso que naverdade é precisamente aí que se encontra uma parteconstituinte muito saliente deste gênero, uma forte marca deidentidade que lhe dá seu caráter ao mesmo tempo nacional eglobal. Esta fricção tem uma relação com o senso comum deuma hegemonia cultural norte-americana no Brasil e com a

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associação do jazz a algo invasivo e indesejado na culturabrasileira.

Qualquer análise do jazz brasileiro tem de passar pelolevantamento dos elementos musicais em jogo, como motivos,escalas, acordes, seqüências de acordes, riffs, grooves,improvisos, forma da peça, dinâmica da performance, bemcomo dos significados incorporados a eles (ver Meyer, 1967).Acredito que é muito importante fazer transcrições deimprovisações, audições, performances conjuntas e análisedo discurso nativo. O fato é que há no jazz brasileiro inflexõesrítmico-melódicas específicas e dissincronias no pulso queevocam uma certa “frouxidão”, isto conforme um certo caráterde abertura e relaxamento que é atribuído à música brasileiraem geral, e tais elementos são carregados de significaçãocultural e implicações ideológicas. Por exemplo, os tipos delevada de bateria, o ponto exato em que deve ocorrer um toquede caixa, os golpes nos pratos muitas vezes assimétricos,aspectos aparentemente flexíveis, na verdade sãoconhecimentos compartilhados e envolvem muita precisão:como propõe Keil, são discrepâncias participativas (Keil, 1994).O discurso nativo, o que inclui não apenas os músicos mastambém os apreciadores e experts, está repleto de metáforascentrais para uma compreensão da estética do jazz brasileiro,e seu estudo, associado à análise de processos musicaisemergentes, pode mostrar como o jazz brasileiro veiculasignificado e crítica cultural, sentimentos e sensibilidade morale política. Os conhecimentos compartilhados são, portantoigualmente da ordem sóciomusical e podem levar aoconhecimento dos gestos elementares do gênero, ou seja, ostópicos retóricos centrais do jazz brasileiro.

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Creio que esta verificação pode se beneficiar da teoria dostópicos (ver Agawu, 1991). Isto porque a musicalidade secondensa no discurso musical através de fórmulas de retóricamusical que portam significado cultural e historicamentemarcado. A teoria destes gestos elementares é uma excelentevia na compreensão da significação musical e da musicalidade,mas gostaria de enfatizar que os tópicos são também topo-lógicos, ou seja, sua plenitude significativa se dá não apenaspor sua feição interna, mas pela posição de sua articulaçãono discurso musical. Entendo que há uma lógica na progressãode posições na cadeia sintagmática de um discurso musical, eque os tópicos encontram sua ativação na sua exatalocalização. Estas posições podem ser móveis, tendo o caráterde espaço de possibilidade que se abre em determinado pontodo discurso musical.

Um exemplo que pode ser mencionado aqui é o caso daexecução de certas estruturas rítmico-melódicas, que pode serchamado de “citação em contexto”. O músico de jazz,improvisando no chorus de um determinado tema, executa umaparte de um tema diferente do tema da peça que estáimprovisando, este tema novo sendo presumido comoreconhecido pela audiência (por exemplo, trechos de um temafamoso, como a marcha fúnebre, o hino nacional, etc.), sendoque é necessária uma certa adaptação para o encaixe destetema no contexto rítmico-harmônico. Quanto mais difícil foresta adaptação, mais valorizada será a citação. Trata-se deuma exibição de domínio técnico, de uma inventividade quedepende da capacidade de encaixe ou bricolagem. Ao mesmotempo, o tema citado carrega um sentido próprio que contaminao discurso musical, revelando sua imbricação músico-significativa com outros domínios (nos exemplos citados: a

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morte e a nação). Citação em contexto é um tópico no sentidode configurar uma posição “vazia” no discurso que pode serpreenchida de maneira determinada, gerando uma inesperadacamada de significado que se agrega à improvisação. Ostópicos, entendidos como posições estruturais dotadas dedeterminadas qualidades expressivas, são experimentadospelos intérpretes bem como pela audiência. Acredito no valorhermenêutico destes gestos elementares, mas não na suaestabilidade: é muito raro um topic como trompa da caccia,que atravessa séculos da música ocidental, sempre conotandoaspectos da natureza e da realeza. Justamente por seu carátertransitório ou mutante, é importante encontrar estes fragmentosde discursos musicais que atravessam os oceanos falandoentre si através do jazz.

Notas:

1 Entendo a sigla MPB como referente ao gênero musical que abarca o mundo cancional urbanoque se delineia ao longo do século XX, inscrito em um universo mais amplo que é o supergêneromúsica popular brasileira.2 Aqui também se fala do “nível neutro” (Nattiez, 1975) ou da “semiose intrínseca” (Martinez(1997).3 Venho empregando uma concepção de gênero musical inspirada nos gêneros de fala (cf. Bakhtin,1986) tanto no estudo do jazz e como da música indígena (Piedade, 1997, 1999, 2003, 2004).Tanto os gêneros de fala quanto os literários são inspiradores para se pensar gêneros musicais,pois em todos estes casos, um gênero somente pode se constituir em relação a outro: os gênerossurgem do discurso meta-discursivo, ou seja, constituem discursos sobre discursos, e discursossão criados através do diálogo (Todorov, 1990). Ver uma aplicação desta concepção de gêneromusical no estudo de Walser sobre o Heavy Metal (1993).4 Encontro ressonância aqui com as duas linhas de força no entendimento da música no Brasil,conforme levantadas por Travassos: o dilema entre seguir um modelo externo (europeu, norte-americano) ou procurar um caminho próprio (e interno), e a dicotomia popular/erudito (Travassos,2000).5 A autenticidade é uma peça de discurso que, como aquele da apropriação, habita “sítios deguerra” (Feld, 1994:270).6 Trata-se de uma narrativa “modernista”, no sentido de Hamm (1995).

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Acácio Tadeu de Camargo Piedade: É Doutor (2004) e Mestre (1997) em Antropologia pelaUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel (1985) em Composição (UNICAMP).Professor do Departamento de Música da Universidade do Estado de Santa Catarina. Integra osGrupos de Pesquisa, MUSICS (Música, Cultura e Sociedade)UDESC/ CNPq e MUSA (Arte,Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe)UFSC/ CNPq. É Membro do International Councilfor Traditional Music (ICTM) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação Nacionalde Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e Membro-fundador da AssociaçãoBrasileira de Etnomusicologia (ABET). Autor de artigos publicados em revistas nacionais einternacionais.

e-mail: [email protected]

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TRANSFORMAÇÃO DOS PROCESSOS RÍTMICOS DEOFFBEAT TIMING E CROSS RHYTHM EM DOIS GÊNEROSMUSICAIS TRADICIONAIS DO BRASIL

Marcos Branda Lacerda

Resumo - O artigo trata de um processo rítmico comum a que foram provavelmente submetidosdois gêneros da música brasileira tomados de empréstimo de culturas estrangeiras: a polcaparaguaia e toques do repertório de candomblé que transcorrem em base rítmica ternária.Primeiramente, procura-se definir certos recursos rítmicos característicos dos repertórios deorigem. São empregados para isso os conceitos de cross rhythm e offbeat timing, estabelecidosnos estudos sobre música africana que recaem sob a concepção genérica de sincopação epolirritmia. Assume-se a seguir que estes recursos, no mínimo, podem ter exercido um papelimportante na transmissão de repertórios no Brasil, posto existirem elementos suficientes paraque se possa estabelecer o nexo entre eles e sua origem. No entanto, o que se verifica é asupressão destes recursos e a adaptação a modelos distintos.

Palavras-chave: Alujá. Polca Paraguaia. Ritmo.

Abstract - This article deals with a rhythmic change common to two genera of Brazilian music offoreign origin: the Paraguayan Polka and “toques” in ternary rhythm from Candomblé repertoire.First, some rhythmic processes are defined in the original repertoire of the two genera. Crossrhythm and off beat timing are the concepts employed, as established in African music studies.We assume that these ressources at last may have had an important role in the transmission ofrepertoires in Brazil, since there are elements establishing a link between them and their origin.What is perceived in this case though is the withdraw from these ressources and an adaptation toproper models.

Keywords: Alujá. Polca Paraguaia. Rhythm.

presente trabalho tem como finalidade apresentar aestrutura rítmica de dois gêneros musicais brasileirostomados de empréstimo de culturas diversas e que

passaram por desdobramentos semelhantes e comparáveisao se fixarem no país. Trata-se do ritmo afro-brasileiro Alujá edo gênero de dança Polca Paraguaia.1

O

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Tanto o ritmo Alujá, praticado sobretudo nas casas decandomblé da Nação Kêtu, quanto alguns tipos de construçãomelódica da Polca Paraguaia, transcorrem em base rítmicaternária. De acordo com o que sabemos de suas origens, estesgêneros dão margem à formação de estruturas polirrítmicasem offbeat timing ou cross rhythm. Lançamos mão deprocessos de construção musical aplicados particularmente àmúsica africana. Trata-se de conceitos associados à idéia geralde síncopação, mas que são ainda mais específicos e podematuar favoravelmente na análise de outros estilos musicais.Passemos em primeiro lugar à uma definição sumária destesrecursos:

• Uma configuração rítmica transcorre em posição de offbeat

quando faz uso consistente de um ponto de apoio rítmicoconstante, deslocado e independente do valor rítmicoreferencial de uma peça musical. Isto é, cria-se um planométrico não coincidente com o plano métricohierarquicamente definido como básico.

• Uma relação em cross rhythm se dá no caso desobreposição de configurações rítmicas em partesinstrumentais diversas baseadas em valores rítmicosdiferentes, mas constantes. Estas configurações possuemum ponto de convergência e se relacionam habitualmentenas razões de 4:3 e 3:2. O conceito pode também serempregado no caso de estruturas linearmente combinadas,isto é, de forma justaposta em uma mesma parteinstrumental.2

Estes processos podem ser vistos nos exemplos de ritmosafricanos que contêm o standard pattern em alguma de suas

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partes instrumentais, conforme os exemplos abaixo. Osrepertórios africanos aqui mencionados representam estilosmusicais de povos que exerceram influência na formaçãocultural afro-brasileira:3

Ex. 1. Textura rítmica de Kiriboto (Iorubá)4

Ex. 3. Textura rítmica de Agbadza (Ewe)6

Ex. 2. Textura rítmica de Solejebe (Fon)5

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Em Kiriboto (v. ex. 1) nota-se o standard pattern no omele abo

(tambor-suporte grave) e sua inserção numa base rítmicaternária evidenciada pelo omele ako (tambor-suporte agudo).A textura geral da peça contém uma relação em cross rhythm

(4:3) entre as articulações do ako efetuadas nas duasmembranas do instrumento e a cadeia principal de beats

manifestada sobretudo no omele ako. Por beat principalentende-se o intervalo de tempo estabelecido pela seqüênciade três pulsos. As articulações do ako, ao contrário, se repetemregularmente a cada quatro pulsos, estabelecendo uma relaçãopolirrítmica em relação à concepção ternária admitida paraeste ritmo.

Em Solejebe (v. ex. 2), o standard pattern está na parte do gan

- que também em algumas comunidades brasileiras designa oagogo. Nesta peça observa-se um exemplo de offbeat timing:enquanto as partes do assan (chocalho) e do alekle 1 (tambor-suporte agudo) transcorrem conforme a cadeia principal debeats, a parte do alekle 2 (tambor-suporte grave) ocorre emdefasamento de um pulso em relação àquela medida de tempo.O exemplo contém um trecho da participação do tambor grave(hungan), no momento em que desenvolve um segmentobaseado exatamente na relação de offbeat. A medida de tempoque serve ao hungan e ao alekle 2 é, portanto, de mesmaduração do beat, mas retardado em relação a ele.

Em Agbadza (v. ex. 3) estabelece-se novamente uma relaçãopolirrítmica entre, por exemplo, a parte dos tambor-suportekagan e a cadeia de beats. A primeira articulação do padrãodeste instrumento é retardada em um pulso em relação aoprimeiro beat estabelecido pelo início do padrão do gancogui

(que também corresponde ao agogo). Mas a parte do kagan

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tem por base um valor diferente e contrastante com o beat

principal, estabelecido pela seqüência das últimas quatroarticulações do padrão do gancogui. Aí caberia definirtecnicamente uma complexa relação polirrítmica entre as partesde Agbadza, que omitiremos aqui por razões de espaço. Paraos fins deste breve estudo, basta observar que a convergênciade todas as partes na 5ª e na 7ª articulação do standard pattern

não se estabelece senão na aparência, posto que estasposições não coincidem com as posições ocupadas pelos“beats principais.”

No Brasil são conhecidos os toques Alujá (para Xangô), o toque

de Ogum e o toque de Kêtu ou Vassá que contêm o standard

pattern na parte do agogo (ou gan, segundo a terminologiaIorubá e Fon, respectivamente).7 De acordo com o quesabemos do repertório de Candomblé da Bahia, estes toquessão praticamente os únicos que transcorrem em base rítmicaternária. Os dois tambores-suporte (lé e rumpi) somam-se nareprodução do mesmo padrão do agogo mas em valoressubdivididos (v. ex. 4a), ou então na execução da cadeia depulsos com uma acentuação de grupos que enfatizam a baserítmica ternária segundo a qual é normalmente concebido ostandard pattern (v. ex. 4b).

Ex. 4. (a-b) Alujá

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A existência do standard pattern na cultura brasileira éexpressão direta da apropriação de padrões musicais da ÁfricaOcidental, cf. assinalou Kubik (v. nota 3). No entanto, a partirdos exemplos acima, aos quais poderiam somar-se outros,verificamos que as formas de combinação desta estrutura comas demais partes instrumentais modificam-seconsideravelmente. A pesquisa de estilos musicais da ÁfricaOcidental revela que estes processos estão estreitamenteligados à formação da textura musical de ritmos que contêm ostandard pattern. Os exemplos de etnias presentes na formaçãomusical brasileira demonstram este fato enfaticamente. Daíparece-me razoável aceitar que processos de construçãopolirrítmica em offbeat ou cross rhythm tenham exercido algumtipo de pressão na formação de estruturas brasileiras. Apesardisso, cabe-nos constatar que estes recursos foram antesdispensados no processo de formação da sensibilidade rítmicalocal. As construções texturais conhecidas na música de cultoafro-brasileira, ainda que lançando mão de estruturasnitidamente provindas da África, prescindem dos processosde offbeat e cross rhythm a despeito de sua estabilidade naÁfrica. Em Alujá, poderíamos observar no máximo a formaçãode ritmos aditivos na parte dos tambores a partir do repiquedas articulações 3 e 7 do standard pattern (v. ex. 4a). Esteprocedimento não seria aplicável aos estilos africanosconhecidos.

A polca paraguaia

No outro extremo do território brasileiro ocorre a assimilaçãode estruturas de países hispano-americanos igualmentesujeitas a modificações no processo de assimilação. O exemploapresentado a seguir é a Polca Paraguaia.8 A polca é executada

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em sua origem em partes distintas e bem diferenciadas. Estaspartes mantêm em comum a estrutura rítmica do baixo,invariavelmente constituído por valores de dois pulsos (asemínima) no interior de cada unidade métrica de seis pulsos,conforme notação usada por seus próprios praticantes.Somado a isso, o modo pregnante de articulação silábica empulsos (colcheias) do texto cantado fornece um possível modelometro-rítmico para a polca.

A primeira parte desenvolve-se regularmente em duas quadrascom versos em redondilhas maiores (sete sílabas), cf. o textono exemplo 5. A última sílaba acentuada de cada verso recaiinvariavelmente no último pulso da unidade métrica de seispulsos, cf. ex. 6a. Isoladamente, este fato caracterizaria oemprego regular da síncopa. No entanto, a distribuição internade acentos em alguns versos (aqui versos 1 e 2) aponta paraa ocorrência de dois dáctilos subseqüentes (v. ex. 5a). Emoutros versos tem-se a seqüência regular mas variada deacentos, mantendo-se a acentuação final na mesma sílaba (v.ex. 5b).

Ex. 6. Polca paraguaia: textura rítmicada parte A

Ex. 5 Polca paraguaia: textocom acentos (parte A)

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Ex. 7 Polca paraguaia: texto com acentos (parte B)

Desta forma, a construção com sete sílabas, cada uma com aduração de um pulso, de articulação constante, com aacentuação final ocorrendo necessariamente em posiçãosincopada e que muitas vezes comporta um acento na primeirasílaba, implica na formação de uma estrutura consistente emoffbeat. Isto é, a parte do baixo e a linha vocal se utilizam deacentos métricos constantes mas diferenciados e nãoconvergentes (v. ex. 6a-b).

A segunda parte diferencia-se da primeira na construçãopoética, mas se utiliza do mesmo recurso de construção texturalpolimétrica. O modelo de verso transcorre em redondilhasmenores. A seqüência de dáctilos do exemplo (5a) é substituídapor uma seqüência de troqueus. Com isso abre-se espaço paraa emissão de um verso por ciclo métrico sem interrupção,incrementando a sensação de aceleração. Aqui também érealizada a conclusão sincopada do verso e o conseqüenteajuste de toda estrutura rítmica a uma relação em offbeat coma parte do baixo, que segue fornecendo o mesmo modelorítmico da primeira parte (v. ex. 7-8).

Ex. 8. Polca paraguaia: testura rítmca da parte B

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A assimilação (ou desassimilação) da estrutura rítmica da polcaparaguaia encontra-se ainda em processo de transformação.Nos modelos acima (exemplos 5-8), ela pode ainda serencontrada, de forma oscilante, em grupos brasileiros formadosem estreito contato cultural com as populações paraguaias. Alíngua guarani tem aí presença obrigatória. Quando se entrano domínio brasileiro, propriamente dito, o que se tem éinicialmente a neutralização da diferença formal entre as partesA e B: no Brasil, bastaria uma das estruturas para a criação deuma peça musical. Ademais, realiza-se um ajuste da estruturado verso ao padrão da parte do baixo. Com isso, tornam-sesimultâneos os ataques ou finalizações de ambas as estruturas.Mantendo-se a distribuição de acentos do verso, oretardamento em um pulso da emissão vocal de cada versogera uma relação em cross rhythm entre as duas partes. Aquiloque era antes percebido como sincopação, isto é o empregoconsistente de offbeat, neutraliza-se em favor da relaçãopolirrítmica em cross rhythm (v. ex. 9).

Ex. 9. Polca paraguaia “do Brasil:” textura musical

Ex. 9. Polca paraguaia “do Brasil:” textura musical

A estrutura ternária da linha vocal pode ser ainda maisabsorvida pelo padrão métrico do baixo, neutralizando arelação em cross rhythm entre estas partes. Entretanto, umelemento textural presente na estrutura da polca paraguaiapode ser mantido em conjunto com o baixo e a maneira

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rítmicamente adaptada de emissão vocal. Este elemento é omotivo do rasgueado destinado ao violão, que fornece tambéma harmonia da peça musical. Suprime-se, portanto, a formapregnante de emissão silábica e constante; a construção doverso não está mais atrelada à rigorosa distribuição de acentose contagem de sílabas e suprime-se também a marcanterelação polirrítmica em cross rhythm entre baixo e voz. Resultadaí uma estrutura próxima às construções valseadas, emcompasso ternário, perfeitamente conhecida dos estilosurbanos brasileiros. A relação de cross rhythm mantem-se, noentanto, entre violão e baixo como uma evocação atenuadadas estruturas originais.

Conclusão

Dito da forma acima, parece ter tomado lugar no Brasil antesum processo de esvaziamento rítmico da textura musical doque processos de transformação estilísticas propriamente ditos.No entanto, este trabalho restinge-se à observação de aspectosque, a despeito de sua importância, não definem integralmenteas características de estilo dos repertórios brasileiros. Tratou-se aqui de formas musicais cíclicas, nas quais os ciclos detempo, seguindo os padrões de estilo originais, são dados emunidades relativamente reduzidas. Traduzidos para o universoocidental de formas musicais, teríamos unidades quecompreenderiam um único ciclo de 12/8 para Alujá e o 6/8para a parte B da polca paraguaia. O 12/8 poderia ser tambémadmitido para a parte A da polca paraguaia, resultante da junçãode um verso a uma pausa subseqüente. É certo que Alujá referejá linguisticamente a origem africana e é praticadoessencialmente em ambiente de culto. Daí provavelmente a

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persistência de sua prática. Se a função exercida pelo standard

pattern seria funcionalmente equivalente ao papel que exercena música africana, resta por ser melhor discutido. A partir dacomparação aqui realizada, vemos que a necessidade deregulação rítmica no exemplo brasileiro é consideravelmentemenor. Padrões dessa natureza nos parecem tanto maisnecessários aonde mais se acumulam os processos rítmicoscom que estão combinados e com os quais se assombrammuitos pesquisadores, dada sua exuberância e complexidade.9

No entanto, tais processos tendem a formar um arcabouçorítmico de difícil combinação com formas específicas dedesenvolvimento melódico, por exemplo. A forma cíclica podenão adaptar-se a necessidades impostas pela combinaçãoentre traços de estilos diversificados que compõem a realidadebrasileira.

Nos exemplos africanos, a polirritmia presente na composiçãotextural, terá como extensão a alternância permanente deatitudes por parte do executante do tambor solista. Ele poderácombinar virtuosísticamente frases que se referem ora a umpadrão presente na textura rítmica, ora a outro. Mas isso, ainda,dentro de perspectiva fundamentalmente instrumental. Damesma maneira, a forma de emissão vocal e os desenhosmelódicos restritivos da polca paraguaia apontamaparentemente para a necessidade do mesmo rigor de controlede tempo e sincronia rítmica. Os exemplos aqui analisadossugerem que esse não seria o comportamento definido pelasensibilidade musical brasileira - ou mesmo afro-brasileira -,que deve sua formação à uma relação de forças entre traçosestilísticos de múltiplas origens.

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Notas

1 Na primeira versão deste trabalho incluí uma apreciação sobre o ritmo Ijexá que apresentacaracterísticas de redução em relação a um possíveil modelo africano. Esta parte foi retiradadaqui em razão de espaço e da necesssidade que ela impõe de uma abordagem ainda maisespeculativa.2 Estes conceitos estão bem definidos em Locke, David. “Principles of offbeat timing and cross-rhythm in southern Eve dance drumming.” Ethnomusicology 26 (2),1982, p. 217-246, e, do mesmoautor “Atsiagbeko, the polyrhythmic texture.” Sonus 4, 1983, p. 16-38. O termo offbeat, no entanto,é empregado por este pesquisador na leitura da parte do tambor solista; na descrição das partesinstrumentais fixas é usado o conceito genérico de polirritmia.3 Com relação à legitimidade de se dar o crédito à estas culturas na formação da música afro-brasileira, no que concerne aos repertórios aqui abordados, vale lembrar a seguinte observaçãode Kubik: “Where the twelve-pulse standard pattern occurs, especially in its seven-stroke versionand when its played by a bell or bottle, we have an almost certain clue that we have a West AfricanCoastal tradition before us, Yoruba, Fõ, Akan [Ewe] or the like.” Kubik, G. “Angolan traits in blackmusic, games and dances of Brazil.” Estudos de Antropologia Cultural, 10, Lisboa, 1979, p.19.Observe-se apenas que entre os Iorubá a execução do stard pattern e de outros padrões comfunção similar não cabe necessáriamente a um instrumento estridente.4 Kiriboto é parte do repertório dos tambores bàtá para a cerimônia de Egun na cidade de Pobè,Benin. V. Lacerda, M. Kultische Trommelmusik der Yoruba in der Volksrepublik Benin. Bata-Sango und Bata-Egungun in Pobè und Sakété, 2 Vols. Hamburg: Verlag der MusikalienhandlungKarl Dieter Wagner, 1988, vol.2, p. 23-9.5 Solejebe é parte do repertório de culto Fon na cidade de Ouidah, Benin, e é abordada emtrabalho ainda em preparação.6 Agbadza faz parte do repertório Ewe e possui várias abordagens teóricas. A presente transcriçãofoi extraída de Lacerda, M. “Textura Instrumental na Africa Ocidental: A Peça Agbadza.” In RevistaMúsica 1 (1), São Paulo, 1990. V. também Lacerda (1988:201) e Locke (1982:235).7 Foram usadas como fontes de informação as apresentações de Alujá pela Casa de Luís daMuriçoca (Salvador-Bahia) registradas em discos e de casas do recôncavo bahiano, cf. Tiago deOliveira Pinto, Capoeira, Samba e Candomblé. Berlin:Museum fuer Volkerkunde, 1991, p.182-5.8 Os exemplos sobre os quais se baseiam as considerações sobre a polca paraguaia são objetoda dissertação de mestrado de Evandro Higa Os gêneros musicais polca paraguaia, guarânia echamamé: formas de ocorrência em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. ECA/USP, Junho de2005. Agradeço ao autor pela disponibilização de várias informações concernentes ao trabalho.9 É comum em abordagens dos estilos africanos mencionados revelar-se a admiração nutridapelo pesquisador pela habilidade com que os músicos desempenham seu papel.

Referências bibliográficas

HIGA, Evandro. Os gêneros musicais polca paraguaia, guarânia e chamamé: formas de ocorrênciaem Campo Grande, Mato Grosso do Sul. ECA/USP, Junho de 2005.KUBIK, G. “Angolan traits in black music, games and dances of Brazil.” Estudos de AntropologiaCultural, 10, Lisboa, 1979, p.19.LACERDA, Marcos. Kultische Trommelmusik der Yoruba in der Volksrepublik Benin. Bata-Sangound Bata-Egungun in Pobè und Sakété, 2 Vols. Hamburg: Verlag der Musikalienhandlung KarlDieter Wagner, 1988, vol.2, p. 23-9._________ “Textura Instrumental na Africa Ocidental: A Peça Agbadza.” In Revista Música 1 (1),São Paulo, 1990.LOCKE, David. “Principles of offbeat timing and cross-rhythm in southern Eve dance drumming.”Ethnomusicology 26 (2),1982, p. 217-246.

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____________”Atsiagbeko, the polyrhythmic texture.” Sonus 4, 1983, p. 16-38.PINTO, Tiago de Oliveira. Capoeira, Samba e Candomblé. Berlin:Museum fuer Volkerkunde,1991, p.182-5.

Marcos Branda Lacerda: É professor do Departamento de Música ECA/USP e pesquisador demúsica africana. Prepara atualmente um estudo sobre estruturas rítmicas da música fon paratambores.

e-mail: [email protected]

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O

ASPECTOS INTERCULTURAIS DA TRANSCRIÇÃOMUSICAL: ANÁLISE DE UM CANTO INDÍGENA

Maria Ignez Cruz Mello

Resumo - Este artigo apresenta algumas idéias a respeito do processo de transcrição musicalpartindo da etnografia do ritual feminino de iamurikuma, realizado pelas mulheres do grupo indígenaWauja, que vivem na região dos formadores do rio Xingu, no Mato Grosso. Esta etnografia fazparte de minha recém defendida tese de doutorado em Antropologia Social, cujo foco está centradona análise de um extenso repertório de cantos femininos. Ao enfatizar o método de transcriçãomusical como um processo eminentemente cultural, chamo a atenção para questões ligadas àpercepção musical e à importância do discurso nativo na fundamentação da análise.Palavras-chave: Música indígena. Transcrição musical. Análise musical.

Abstract - This article presents some ideas regarding the process of musical transcription,departing from the etnography of the feminine ritual of iamurikuma, which is carried by the womenof the Indigenous group called Wauja, who live in the region of the Xingu river, in the State ofMato Grosso. This etnography is part of my doctoral dissertation in Social Anthropology, whosefocus is the analysis of an extensive repertoire of feminine songs. Through the emphasis on themethod of musical transcription as an eminently cultural process, I draw the attention on questionsrelated to musical perception and to the importance the native discourse in the analysis.

Keywords: Indigenous Music. Musical transcription. Musical analysis.

Os Wauja e a música ritual

s Wauja são um povo indígena, que vive na Terra Indígenado Xingu no estado do Mato Grosso. Nesta região, vivemoutros nove povos indígenas, todos pertencentes a

famílias lingüísticas diferentes1 . Entre estes grupos se observaum sistema sócio-cultural compartilhado, com uma redeintertribal de casamentos, comércio e cerimônias, sistema queantecede ao contato com os brancos2 . Apesar da diversidadelingüística e do intenso contato entre eles, estes grupos fazemquestão de não falar a língua de seus visinhos, e quando se

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encontram, seguem falando somente a língua de seu grupode origem, mesmo que estejam entendendo o que o outro diz.Este fato sinaliza na direção do ritual como forma privilegiadade comunicação dentro do sistema xinguano3 . O ritual, no AltoXingu, é a forma ideal de comunicação entre as diferentesalteridades reconhecidas pelos povos que vivem ali. É no ritualque os diferentes grupos se encontram, que questõesfaccionais são expressas, e é exclusivamente através dosrituais que homens e mulheres se permitem fazer provocaçõesmútuas, e que humanos e espíritos trocam ameaças e favores.A música, neste contexto, exerce papel fundamental4 , pois éela que institui o ritual ao lidar com proporções, repetições evariações5 . Ela instaura o conflito, ao mesmo tempo em que omantém sob controle. Como bem esclarece Menezes Bastos(1990), a música no Alto Xingu representa o pivot entre o mitoe a dança, ela é a forma de se ir da cognição à motricidadepassando pelo sentimento.

O iamurikuma

O ritual de iamurikuma, do qual extraio o exemplo musical queserá analisado mais adiante, é uma atualização do mito cujatemática é a transformação das mulheres em seres poderosose perigosos chamados iamurikuma. As mulheres, no mito, setransformam nestes seres após serem enganadas peloshomens, que, ao irem para uma pescaria coletiva acabam nãovoltando para casa no dia combinado e passam a fabricarmáscaras para se transformarem em apapaatai6 na intençãode matar as mulheres. Estas, em represália, comemdeterminadas frutas que as deixam “loucas” e passam a cantare dançar no centro da aldeia - como normalmente só os homensfazem -, se pintam e se adornam como os homens, abandonam

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os filhos homens dentro de pilões de madeira, e partem dalilevando somente suas filhas, através de um buraco na terra.Quando os homens são alertados sobre esta transformação,voltam correndo para a aldeia a fim de dissuadi-las, porémelas estão decididas a não ficar mais na aldeia e vão emboracantando.

O ritual de iamurikuma é, portanto, uma atualização deste mito.É realizado quase que anualmente, mas não possui uma datacerta, como é o caso de outras festas. É um ritual intertribal -envolvendo convidados de outras aldeias da região- em quetomam parte somente as mulheres da região, sendo que ochefe da aldeia anfitriã muitas vezes toma parte conduzindoos cantos. No entanto, acompanhei um ritual de iamurikuma,

em sua versão intratribal, quando somente as mulheres Waujaparticiparam, e que teve a duração de dois meses e meio.Neste período acompanhei muitos finais de tarde em que umgrupo de mulheres se reunia no centro da aldeia para cantar edançar. Algumas madrugadas também foram preenchidas peloscantos femininos que se estendiam até o amanhecer. Por vezesos homens saíram para pescarias coletivas em função da festae, em outras ocasiões, ocorreram agressões e provocaçõesentre homens e mulheres, sempre de forma comedida e dentrodos limites impostos pela ética local7 . A temática dos cantosfemininos girou em torno das relações afetivas, do ciúme,inveja, namoro, sexo, além de muitos cantos fazeremreferências diretas ao mito de origem da festa. Também foicomum ver as mulheres usarem deste espaço ritual parareclamarem de atitudes dos homens através de cançõesespecialmente compostas por elas.

Em minha tese de doutorado (Mello, 2005) aprofundo o

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conhecimento sobre o repertório feminino, a partir da análisede um extenso conjunto de canções deste ritual, partindo doprincípio de que é necessário investigar o material a sertranscrito como produto cultural, e que este tem especificidadesque estão para além do texto musical em si.

Percepção e transcrição musical

Neste artigo pretendo apresentar alguns dos resultados a quecheguei nesta pesquisa de campo, enfatizando o método detranscrição musical como um processo eminentemente cultural.Chamo a atenção para o fato de que a percepção musical dopesquisador, moldada dentro dos parâmetros da músicaocidental, é um elemento central no processo de transcrição eanálise, e desta forma, o pesquisador tem que lidaranaliticamente com uma música absolutamente estranha a seusistema matriz. Tais constatações são fundamentais para seatingir um resultado satisfatório na transcrição musical.Segundo Anthony Seeger, “as transcrições nunca devem serum fim em si mesmas, mas sim uma ferramenta para levantarquestões” (1987:102). Criar partituras para um contexto musicalem que os sons não são pensados em termos de grafia, nosleva a uma desconstrução da partitura em sua baseepistemológica e cultural. Nesta direção, a reflexão nos conduza uma interpretação sobre a notabilidade em música, sobre asconexões entre a grafia musical enquanto instrumentodescritivo ou prescritivo (Charles Seeger 1958), sobre astransformações que incidem na música através de uma partiturae sobre como a notação musical pode re-alimentar o próprioobjeto que descreve, a saber, as músicas (Zampronha 2000).

A reflexão sobre a natureza da transcrição musical está

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presente em diversas obras etnomusicológicas, ainda que deforma dispersa (Blacking 1967; Nettl 1964). A importância datranscrição no estudo e prática da percepção musical éabsolutamente central: podemos afirmar, com Gorow (1999),que a transcrição é um procedimento-chave para o músicoprofissional. Mais do que isso, ela é um veículo de acesso àmusicalidade e ao sistema musical nativo, e por isso é umprocedimento muito empregado na Etnomusicologia, tanto emestudos de sociedades tradicionais (Beaudet 1997; Feld 1982;Piedade 1997, 2004; Mello 1999, 2005; Menezes Bastos 1990;Montardo 2002; Coelho 2003) quanto de gêneros ocidentais,como o jazz (Berliner 1994; Monson 1996), ou a música popularbrasileira (Menezes Bastos 1996; Araujo Jr. 1992).

Até recentemente, as reflexões sobre a Percepção Musicalgeralmente foram marcadas por um reducionismo euniversalismo notável. Ainda nos anos 60, os estudos sobre otema geralmente tratavam de aspectos físicos do som e daaudição tomando como base o ouvido musical tipicamenteocidental, bem como a música do Ocidente, e a partir daírealizando generalizações científicas, em busca de leis para aPercepção Musical (Winckel 1967; Jeans 1968). Somente nasúltimas décadas é que se deu a constatação de que o ouvidomusical é muito mais cultural do que biológico, ou seja, a formacomo se ouve música depende da cultura onde esta músicatem significado.

Na etnografia do ritual de iamurikuma, através de umadescrição densa, busco a aproximação do sistema musicalWauja por meio de uma reflexão antropológica sobre música.Este estudo está apoiado no paradigma interpretativo quetem suas fundações filosóficas na hermenêutica (Oliveira

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1988), levando à abordagem das dimensões simbólicas daação social. Sob esta perspectiva, a música é um sistemasimbólico que não apenas codifica a cultura, mas que tambémparticipa efetivamente na sua transformação. Por isso, amusicalidade não é unicamente uma questão de talentomusical, bem como a Percepção Musical não constitui apenasdescrições de como fazemos representações mentais deestruturas sonoras: musicalidade é o espaço aberto na culturapara a música, e a Percepção Musical é uma capacidade quese constitui através dos significados das formas simbólicas deuma cultura. Estes pressupostos conduzem ao tratamento damúsica como sistema cultural (Geertz 1998) e da transcriçãomusical como tradução cultural.

Classificação do repertório

O ritual de iamurikuma que presenciei teve início em 14 deagosto de 2001 e se encerrou em 1 de novembro, e, ao longodestes oitenta dias, pude registrar cerca de 200 cantosdiferentes. Selecionei para transcrever e analisar 51 cantosfemininos, considerados como parte significativa desterepertório, no sentido de apontar para o sistema musical emfuncionamento no ritual. Neste conjunto de cantos, algunsforam classificados como iamurikuma, por estarem ligados àtemática do mito de origem do ritual, e outros cantos foramchamados de kawokakuma, repertório que guardasemelhanças estruturais com as músicas das flautas kawoká,executadas apenas por homens. Tem-se aqui, no mínimo, doisrepertórios distintos (cada qual podendo ser tambémsubdividido), tanto no que diz respeito à forma quanto aoconteúdo.

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As mito-músicas8 iamurikuma são executadas em momentossolenes do ritual, rememoram passagens pontuais do mito econtam sempre com a participação do chefe ritual para conduzirseu desenrolar, tanto musical quanto coreográfico. O repertóriode iamurikuma, apesar da austeridade, também comporta, emalgumas poucas situações, brincadeiras e provocações, comoas músicas do “morcego” e da “perereca”, que têm forteconotação sexual. Já no repertório de kawokakuma o nortenão é o mito mas as paixões Wauja, especialmente o ciúme-inveja, uki. A estabilidade destes cantos está relacionadaàquela das músicas das flautas kawoká, cuja coerênciatemática constitui unidades nomeadas, como por exemplo,kisoagakipitsana, mepiyawakapotowo, sapalá, uialalaka,

mututute, maiyuwatapi, entre outras, as quais Piedade identificacomo suítes nos repertórios das flautas (cf. Menezes Bastos,1990). Muitas das peças que compõe estas suítes fazem partetambém do repertório feminino de kawokakuma, mantendocaracterísticas similares em termos musicais entre aquelasexecutadas pelas flautas e as vocais. Portanto, o fato dasmulheres afirmarem que seus cantos são “música de flauta”9 ,e nomearem conjuntos temáticos de cantos da mesma formaque são nomeadas as suítes instrumentais, esclarece o graude consciência que as mulheres têm sobre as sutilezas eespecificidades deste repertório, que, apesar de todos estescantos serem considerados kawokakuma, são subdivididos deacordo com uma tipologia que mantém relação com aqueladas flautas. Estes diferentes tipos de cantos seguemprescrições em relação à topologia e cronologia, o que significaque determinados cantos só poderão ser executados emdeterminados espaços (centro da aldeia, dentro das casas,etc.) e em partes específicas do dia. Por exemplo: os cantosconsiderados kisoagakipitsana, só serão cantados de

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madrugada, ou os chamados iapojenejunelele não podem sercantados depois que o sol se põe.

O papel da transcrição musical neste trabalho é o de colocarem diálogo algumas unidades mínimas das peças musicais,que neste caso são motivos e frases musicais, de modo acompreender o que está envolvido no processo da criação ereprodução musical. Tais unidades são detectadas pelosnativos como fundamentais na constituição e elaboração dorepertório musical. Como pude observar durante osensinamentos de Kaomo, o mestre flautista, a Kalupuku, aprincipal cantora da aldeia, são estes motivos que merecematenção especial durante os ensinamentos, tanto para osdemais flautistas (Piedade, 2004:149), quanto para as cantorasde kawokakuma. Assim, vê-se que a importância do uso datranscrição musical para a análise deste material recai sobresuas especificidades, visto que o nível motívico é bemobservável através das ferramentas de análise fornecidas pelatranscrição, o mesmo não poderia ser dito sobre um repertóriocuja característica dominante fosse, por exemplo, atimbrística10 .

Elementos de análise

Para economizar espaço, utilizei transcrições reduzidasseguindo o modelo criado por Piedade em sua análise damúsica das flautas kawoká (op.cit.), que pretendem portar asinformações principais, essencialidade que só pode serencontrada através das pistas abertas pelo discurso musicalnativo.Cada peça é constituída por um conjunto de temas e motivos.Dependendo da peça, um motivo pode ter poucas ou muitas

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notas, quando pode ser entendido como uma frase. Os motivosaparecem escritos integralmente somente uma vez natranscrição, nas demais repetições, aparecem apenas as letrascorrespondentes a eles (a), (b), (c), etc., grafadas sobre umalinha, e não sobre o pentagrama. Dependendo da peça, cadamotivo pode ser, assim, curto, com poucas notas, ou não tãocurto, quase uma frase, sendo designados por letras (a), (b),(c), etc., e podendo ter uma ou mais variações cada um,designadas por (a’), (a’’), etc. As variações são entendidascomo aplicações de princípios fundamentais de diferenciaçãono interior dos motivos, operações tais como transposição,pequena alteração intervalar ou rítmica no início ou no final domotivo, adição ou exclusão de uma nota, entre outras.Variações em conjuntos de motivos, entendidos como frasesque constituem os temas, são chamadas de transformações,ocorrendo por mecanismos de inclusão e exclusão de motivos,ou através de variações nos seus motivos constituintes. Éimportante ressaltar que o que diferencia uma variação de umnovo motivo é a resposta estrutural desta seqüência de notasno interior da peça. Os motivos, portanto, são as partesconstitutivas dos temas a que chamei de A e B e neste aspecto,bem como no que diz respeito ao englobamento de A e B omaterial das peças kawokakuma é similar àquele da músicadas flautas kawoká (Piedade, op.cit). A inserção do poema, daletra na canção, se dá sempre sobre o tema B, chamado entãode B

L

. Há também a frase K, que surge geralmente no iníciodas peças, e também como separação dos temas A e B eainda no final, correspondendo sempre ao centro tonal dascanções. Muitas vezes esta frase aparece duplicada, o que éindicado por K K.

O modelo de análise que adoto inspira-se em Menezes Bastos

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(1990) e Piedade (2004). Assim como estes autores, tomo omotivo como unidade mínima do estrato sintático (cf. Lidov,1975). Segundo a análise de Piedade, a idéia de motivo, nasua minimalidade, não pressupõe uma economia demovimentação melódica, como é o caso na teoria tradicional(Schoenberg, 1993 [1967]), mas é dada pela sua colocaçãona estrutura da música e pelo seu desenvolvimento no interiorda peça e, em termos comparativos, nas outras peçascongêneres. Das análises musicais, destacaram-se váriasoperações fundamentais no âmbito motívico da música dekawokakuma: variação tética, variação sufixal, fusão, tipobordadura, jogo alternante 3M/3m, motivo justaposto decitação, adição, exclusão, prolongamento rítmico, motivo dedissolução e motivo de retomada. Nota-se uma grandeimportância dada às terminações de motivos, frases e temas,bem como ao englobamento do tema A pelo tema B . No âmbitodas letras, encontrou-se nexos entre a canção, o mito aspaixões, aparecendo algumas temáticas recorrentes, como omote do defeito físico. Na relação letra-música, notou-se fatoresimportantes como a inversão de texto e a flexibilização rítmica.

Apresento a seguir, um exemplo de transcrição e análise deum dos cantos de kawokakuma presentes em minha tese.

CANTO PARA MATSIRAPÁ

Aitsa tsama piyãkuwehene

nuya Matsirapá

Aitsa tsama piyãkuwehene

nuya Matsirapá

nelele neputahatayai

Piulaga waakunapu

Matsirapá

Aitsa tsama piyãkuwehene

Você não despediu de mim

Matsirapá

Você não despediu de mim

Matsirapá

Estou chorando no caminho

No caminho para o rio

Matsirapá

Você não despediu de mim

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Canto para Matsirapá

Segundo as palavras da cantora Kalupuku, “tinha um homemque se chamava Matsirapá. Ele foi embora e as mulheres queele namorou ficaram com saudade e fizeram a música dizendo:“Matsirapá, por que você foi embora sem avisar, sem despedirda gente? Estou triste, chorando. Quando vou pro rio eu choro,quando vou pra roça eu choro, quando vou para o Iyakunapu

[caminho para o posto de vigilância] eu choro. Por que vocênão avisou?”.

A frase K é a seguinte (sua altura pode variar de uma peçapara outra, de acordo com o centro tonal em questão):

Fig. 2 Análise das frases.

A seqüência de temas e motivos deste canto é a seguinte:

Fig. 1 Frase K.

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Nesta peça ocorre uma operação que surpreende por suaconsistência lógica. A primeira vez em que o tema A aparece,ele é composto pelos motivos (a b a c d), e logo em sua primeirarepetição o motivo inicial (a) é excluído. O tema B

L

apareceentão, e também nesta peça o tema B não é cantado semletra. Neste B

L

ocorre o englobamento de A (a d a c d), havendouma transformação de (d) em (x). Neste caso, o motivo (x) éuma flexibilização rítmica de (d). Este processo ocorre emmuitas peças, especialmente na adaptação de B em B

L

,ocorrendo uma passagem de uma rítmica de compasso simplespara uma de compasso composto. Para a notação daflexibilização rítmica, na transcrição foi necessário o uso dequiálteras.

O tema B é baseado nos motivos (e f e f ) + b’ + A englobado(a’ b’a’b’c xxx), no qual há a exclusão de (d) e inclusão de(xxx). Pelo equilíbrio nos motivos (e f e f ), a tendência éentender (b’) como parte incluída em A. O tema A reapareceduas vezes, intercalado por K, mantendo uma exclusão doprimeiro motivo (a). Seguem duas repetições de B

L

e um Afinal. Ocorre que, na segunda apresentação de B

L

há aexclusão de seu cerne (e f e f), restando ali somente o tema Aenglobado, após o que o tema A final é apresentado, só quecom uma inclusão de (b): assim, percebe-se o tema Aaparecendo agora em sua forma integral, (b a b a c d), pelaprimeira vez, ao final da peça.

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O motivo (x) é cantado com o nome de Matsirapá, objeto dacanção. Seu nome é pronunciado justamente no motivo queintercala as repetições do tema B

L

e que reforça a 2a maiorabaixo do centro tonal. Conforme a explicação da cantora, estehomem deixou a aldeia, causando saudade em suasnamoradas. O espírito da canção é, portanto, aquele de umaespécie de romantismo, uma saudade amorosa, uma tristezaapaixonada, bem diferente da jocosidade explícita e uki (“ciúme-inveja”) que há em outras tantas canções. Esta saudade queatormenta a compositora aparece aqui conforme seusignificado para a ética e a patologia Wauja: a saudade é

Quadro resumido da análise motívica:

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perigosa, pois expõe o saudoso aos apapaatai, pois, a pessoasaudosa deseja o que não pode ter à mão. Subjacente aoromantismo do canto, percebe-se uma preocupação em levareste desejo não satisfeito para outro plano, o musical, nosentido de exorcizá-lo. Através da música, os Wauja podemexteriorizar e tornar público sentimentos ao mesmo tempoconflitantes, quando não expressos, e inadequados para seremverbalizados.

De forma um tanto resumida, quero chamar a atenção para atranscrição musical, entendida como ferramenta analítica, que,por meio de seu artifício descritivo, permite o acesso adeterminadas estruturas composicionais que apontam para alógica do sistema, provendo assim ligações entre a atividadecriativa e a experiência estética. Sob este prisma, a atividadeprincipal da análise é baseada na comparação, desde omomento em que se constituem as unidades mínimas deanálise, até a construção de modelos abstratos, a comparaçãoé o ato central da análise (Bent, 1987). Através dela, chega-seao grau de similaridade ou diferença entre unidades discretas,tanto aquelas mínimas, como entre os motivos dentro de umapeça, quanto entre unidades maiores, como uma peça dentrode um conjunto maior de peças. Com este recurso se poderiachegar, hipoteticamente, a um conjunto virtual de todas aspossibilidades do sistema musical analisado.

Notas:

1 Os grupos que ali vivem são: os Wauja (também conhecidos na literatura etnológica comoWaurá), os Mehináku e os Yawalapiti pertencem ao grupo de línguas aruak; os Kamayurá e Awetísão falantes de uma língua tupi; os Kuikúro, Kalapálo, Matipú e Nahukuwá pertencem à famílialingüística karib; e os Trumái, falantes de uma língua isolada.2 Para um aprofundamento do conceito de sistema xinguano ver MENEZES BASTOS (1990) eMENGET (1993).3 Também de acordo com FRANCHETTO (2001).4 Para Ellen BASSO, os rituais xinguanos são instaurados e conformados por uma visão musical

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do universo (1985).5 Para um estudo etnomusicológico aprofundado sobre operações composicionais que lidamdiretamente com a questão da constituição da diferença entre os Wauja, ver PIEDADE (2004).6 De modo bastante resumido, os apapaatai são espíritos que povoam o cosmos Wauja, e a elessão atribuídas as causas de muitas doenças. São seres que têm a capacidade de penetrar nospensamentos dos humanos quando estes estão a desejar algo que não podem realizar, início doprocesso de adoecimento.7 Para uma descrição completa destes oitenta dias de ritual, ver Capítulo IV em MELLO (2005).8 Assim como as mito-músicas Marubo, cf. descritas por Werlang (2002), a relação ente o mitoe a música no caso do repertório iamurikuma se dá em termos ontológicos, muitas vezes sendodifícil dividir o conceito.9 Esta afirmação surpreende não apenas por se tratar de uma transposição vocal de um repertórioinstrumental, mas principalmente pelo fato das mulheres serem proibidas de ver as tais flautaskawoká, sob pena de sofrerem um estupro coletivo.10 Este é o caso da música das flautas Jurupari presente entre diferentes grupos do Alto RioNegro (Piedade, 1997).

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Maria Ignez Cruz Mello: É Doutora em Antropologia Social (2005), Mestre (1999) pelaUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Bacharel em Composição e Regência (1986)pela UNICAMP. Professora titular do Departamento de Música da Universidade do Estado deSanta Catarina (UDESC). Integrante do Grupo de Pesquisa Música, Cultura e Sociedade -MUSICS, UDESC/CNPq e do Núcleo de Pesquisa Arte, Cultura e Sociedade na América Latinae Caribe - MUSA, UFSC/CNPq. Autora de artigos sobre Antropologia em publicações nacionaise internacionais.

e-mail: [email protected]

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N

“FORMAS SONORAS EM MOVIMENTO”: A NATUREZA DO

BELO MUSICAL SEGUNDO HANSLICK.

Mário Videira

Resumo: Os estudos acerca da estética musical de Hanslick geralmente enfatizam sua afirmaçãode que os sentimentos não são o conteúdo da música. Tal afirmação causou inúmeras controvérsiase discussões entre músicos, críticos musicais e estetas e, graças a ela, o ensaio de Hanslick éconsiderado como a mais influente expressão do formalismo musical. Entretanto, uma investigaçãoadequada de sua outra tese – que afirma que formas sonoras em movimento são o conteúdo damúsica – é geralmente deixada de lado pelos musicólogos. Neste artigo discutiremos osfundamentos dessa tese de Hanslick, utilizando o método de análise estrutural do texto.

Palavras-Chave: Hanslick. Formalismo, música e sentimentos. Estética musical.

Abstract: Studies about Hanslick’s musical aesthetics often emphasize his statement that thecontent of music is not feelings. This statement caused many controversies and discussionsamong musicians, music critics and aestheticians. Due to this, Hanslick’s essay is widelyconsidered the most influential expression of musical formalism. However, an adequate investigationof his other thesis – which states that the content of music is tonally moving forms – is often setaside by musicologists. In this article I discuss the foundations of Hanslick’s thesis, using themethodology of structural analysis of the text.

Keywords: Hanslick. Formalism, music and feelings. Musical aesthetics.

os dois primeiros capítulos do ensaio Do Belo Musical,Hanslick expõe a sua tese negativa, ou seja, procuraexplicitar o que não é o belo na música, rejeitando o

pressuposto errôneo, segundo ele, de que o belo musicalpoderia consistir na representação de sentimentos [Darstellen

von Gefühle].

Tendo estabelecido isto, passa à exposição de sua tesepositiva, a qual procurará responder à questão acerca danatureza do belo na música.

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A seu ver, a natureza do belo na música é algo deespecificamente musical: “um belo que, independente e nãonecessitado de um conteúdo vindo de fora, está somente nossons e em sua ligação artística”.1 O que nos agrada comobelo está nas “relações plenas de sentido” dos sons, os quaistêm em si mesmo seu atrativo. Em outras palavras, o belomusical está nos próprios sons e em sua combinação artística.

A partir do exame do material a partir do qual o compositorcria, a saber, os sons no seu conjunto, Hanslick afirma aexistência de inúmeras possibilidades de combinações demelodia, harmonia, ritmo. À melodia, considerada por ele comofigura fundamental da beleza musical, dá-se a primazia,seguida pela harmonia e ritmo.

Essa afirmação segundo a qual os sons são o material a partirdo qual a música é criada, parece não suscitar grandescontrovérsias. Contudo, no que diz respeito à primazia namúsica dever ser dada à melodia ou à harmonia já se constituinuma tomada de partido um pouco mais polêmica.2 Entretanto,essa discussão aparece no ensaio com o propósito deresponder à questão acerca do que deve ser expresso comesse material sonoro. Ora, se a opinião comum não tinhadúvidas em afirmar que a música deveria representar ouexpressar sentimentos, Hanslick defende que a música deveexpressar Idéias musicais. A seu ver, “uma idéia musical trazidainteiramente à manifestação é já um belo autônomo, um fimem si mesma, e de modo algum apenas meio ou material paraa representação de sentimentos e pensamentos”.3

Se nos primeiros capítulos, Hanslick havia demonstrado queos sentimentos não são o conteúdo [Inhalt] da música, a essatese negativa ele irá contrapor, no terceiro capítulo de seu

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ensaio, a sua tese positiva, segundo a qual “formas sonorasem movimento são o único e exclusivo conteúdo e objeto damúsica”.4

O autor defende a tese de que a música proporciona Formasbelas sem ter por conteúdo um afeto determinado. Essa idéiapode ser compreendida por meio das analogias que elefornece. Primeiramente, ele compara a música a um arabesco,porém um arabesco vivo, em contínua autoformação, comoemanação de um espírito artístico.

De acordo com Seligmann-Silva, o conceito de arabesco,

[...] proveniente da terminologia utilizada para as artes plásticas,discutido, entre outros, por Goethe com relação à pintura e aos relevosdecorativos denominados “arabescos”, [...] foi introduzido por Herderno âmbito da crítica literária em seus Humanitätsbriefe. Os primeirosromânticos desenvolveram este conceito em estreita conexão com ateoria do romance por eles estabelecida. O “arabesco” indica para elesbasicamente a forma primitiva da fantasia, o livre jogo da imaginaçãoe, em última análise, o mergulho no heterogêneo e a exposição doinfinito (grifos nossos)5 .

Essa noção de arabesco, tão cara ao romantismo literárioalemão, parece estar bastante próxima dessa noção de“arabesco vivo” que Hanslick aplica à música. De fato, essacomparação entre música e arabesco não era nenhumanovidade e podemos encontrá-la no vigésimo oitavo dosFragmentos e estudos, escritos por volta de 1799-1800, porNovalis: “A verdadeira música visível são os arabescos,desenhos, ornamentos, etc”.6 Outro exemplo pode serencontrado na questão posta por F. Schlegel: “Não ocupa oarabesco um lugar na pintura similar àquele da fantasia namúsica?”7

Similarmente ao arabesco, Hanslick faz ainda uma analogia

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entre música e as Formas e cores belas, em constante eprogressiva alternância de um caleidoscópio. Porém, ressaltaque, diferentemente do caleidoscópio, na música as Formassão emanação direta de um espírito artístico criador.

Para ele, “toda arte parte do sensível [Sinnlichen] e com ele setece”.8 Além disso, a música se dirige à Fantasia, àsensibilidade consciente, numa contemplação dos sons quese estruturam. Segundo o autor, se não se conseguiucompreender a plenitude da beleza que vive no puramentemusical, a culpa é da subestimação do sensível: a) em estéticasmais antigas: em favor da moral e do ânimo; b) em Hegel: emfavor da “Idéia”.9

Além disso, escreve Hanslick, a “teoria do sentimento”desconhece que toda arte parte do sensível: ignoracompletamente o “ouvir” e passa imediatamente para o “sentir”.

A dificuldade em descrever o belo autônomo na música deve-se sobretudo ao fato de que este não possui nenhum modelona natureza e não expressa nenhum conteúdo conceitual. Porconseguinte, qualquer descrição do belo na música só se podefazer por meio de áridos termos técnicos ou ficções poéticas.

Entretanto, longe de quaisquer devaneios românticos, Hanslickdefende uma completa autonomização da música da exigênciade representar ou suscitar quaisquer sentimentos ou conteúdosalheios à própria especificidade musical. A seu ver, a música:1) deve ser apreendida como música, 2) só pode sercompreendida a partir de si mesma, 3) só pode ser fruída emsi mesma. Contudo, de modo algum tal modo de apreensão,compreensão e fruição “especificamente musical” deve sertomado como mera beleza acústica, como um “jogo de sons

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que faz cócegas ao ouvido” (designações que, a seu ver, sãousadas para designar a falta de animação espiritual da música).Pelo contrário, a seu ver a beleza musical exige um Conteúdoespiritual [geistigen Gehalt]. Ele escreve: “não reconhecemosbeleza alguma sem espírito”. Assim, o conceito de Formapossui, na música, uma realização inteiramente peculiar: “asFormas, que se configuram a partir dos sons, não são vazias,mas sim, preenchidas, não são mera delimitação linear de umvazio, mas espírito que se configura de dentro para fora [sich

von innen heraus gestaltender Geist]”. Dessa forma, “oConteúdo espiritual [geistige Gehalt] encontra-se na relaçãomais estreita com essas Formas sonoras”.10

Hanslick compara a música a um “quadro” cujo objeto nãopodemos exprimir em palavras nem subordinar aos nossosconceitos; a uma linguagem que falamos e compreendemos,mas que não somos capazes de traduzir.

Voltando à questão do material da música, Hanslick escreveque “o compor é um trabalhar do espírito em material apto aoespírito”.11 Segundo ele, pode-se caracterizar o materialmusical como: a) elástico e penetrável para a fantasia artística;b) não constrói com pedras brutas como a arquitetura, mascom o efeito de sons que já se desvaneceram; c) de naturezamais espiritual e delicada que qualquer outra matéria artística.Além disso, o mesmo não se consegue por mera justaposiçãomecânica, mas por meio da criação livre da fantasia.

Como podemos perceber, para o autor, a composição musicalé considerada como uma criação de um espírito que pensa esente, de forma que tal composição possui a capacidade deser ela mesma plena de espírito e sentimento. Por ser obra deum espírito racional, o Conteúdo espiritual está nas próprias

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formações sonoras. Aliás, tal Conteúdo [Gehalt] é exigido emtoda obra de arte musical. “Toda arte tem por objetivo trazer àmanifestação externa uma Idéia vivificada na fantasia doartista”. No entanto, diferentemente das demais manifestaçõesartísticas – sobretudo as artes plásticas e a poesia – “esteideal na música é sonoro; e não algo de conceitual, que teriade ser traduzido primeiramente em sons”.12

Ao contrário do senso comum de sua época, Hanslick afirmaque compositor parte da invenção de uma melodia (motivos etemas), e não do propósito de descrever musicalmente umapaixão. Em sua atividade, o compositor refere-se sempre aesse tema, com o objetivo de expô-lo em todas as suasrelações, sem qualquer referência a algo externo: “agrada-nos em si, como o arabesco, a coluna ou os produtos do belonatural, como a folha e a flor”:

O belo de um simples tema autônomo manifesta-se no sentimentoestético com aquela imediatidade que não suporta qualquer outraexplicação a não ser, quando muito, a finalidade interna do fenômeno[innere Zweckmäßigkeit der Erscheinung], a harmonia de suas partes,sem referência a um terceiro que exista no exterior.13

Hanslick, portanto, considera errônea a opinião que distingue“música bela” com e sem Conteúdo espiritual. A seu ver, aexpressão espiritual de um tema é influenciada pelasdeterminações puramente técnicas, musicais do mesmo, semque seja necessário apelar para o sentimento.14

O efeito passional de um tema, da mesma forma, tem sua causanão na pretensa disposição de ânimo que se apossava docompositor, mas sim em fatores musicais objetivos (cromatismo,tonalidades, etc.). Assim, o efeito de uma melodia éconseqüência de fatores puramente musicais. Dessa forma, a

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fundamentação filosófica da música deveria consistir nainvestigação da natureza de cada elemento musical singular,da sua relação com uma impressão determinada e, por fim, naredução destas observações particulares a leis gerais:

Mas nunca se explica o efeito psíquico e físico de cada acorde, decada ritmo, de cada intervalo quando se diz: este é vermelho, aquele éverde, ou este é a esperança, aquele, o mau-humor, mas somenteatravés da subsunção das propriedades musicais específicas sobcategorias estéticas gerais e estas sob um princípio superior. Explicadosassim os distintos fatores musicais no seu isolamento, seria necessárioainda demonstrar como eles se determinam e se modificam nas maisdiversas combinações.15

O autor dirige ainda sua crítica às concepções queestabeleciam a melodia como “inspiração do gênio”, como“portadora da sensibilidade e do sentimento”, e a harmonia

como “portadora do Conteúdo sólido”, como produto dareflexão. Para ele, tal como o espírito é um só, do mesmomodo a invenção musical de um artista também é uma só:melodia e a harmonia de um tema nascem simultaneamentenuma mesma armadura da cabeça do compositor: melodia,harmonia, ritmo e timbre são por ele concebidossimultaneamente: “o Conteúdo espiritual só corresponde aoconjunto de todos eles, e a mutilação de um membro lesatambém a expressão dos restantes”.16

“Portanto”, escreve ele, “a ‘fundamentação filosófica da música’deveria investigar primeiramente quais determinaçõesespirituais necessárias estão ligadas a cada elemento musical,e como se relacionam entre si”.17 O ato da criação musicalnada tem a ver com a representação18 de um conteúdodeterminado, mas sim com a realização artística de uma idéia

musical que nasce da fantasia do compositor19 e, uma vezque os materiais empregados pelos compositores são os

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mesmos (os sons, escalas, etc.), o que distingue a produçãomusical entre estes não é a suposta representação desentimentos mais elevados, ou a representação mais ou menoscorreta de um sentimento, mas sim o tratamento que cadacompositor dá aos seus temas, a maneira como os desenvolve,a originalidade ou banalidade de suas harmonias, ritmos, etc.

Assim, o belo de uma peça musical tem suas raízes somentenas suas determinações musicais. Da mesma forma, as leisde construção de uma peça musical obedecem somente àssuas determinações musicais.

Hanslick critica a concepção que afirma que a sonata e asinfonia deveriam representar em cada um de seus movimentosestados anímicos distintos entre si, mas conexos uns com osoutros. Ele lembra que as leis científicas devem possuirrelações necessárias, mas não se encontra tal relação denecessidade quando se relacionam determinados sentimentoscomo conteúdo dos movimentos musicais. Desse modo, eleconclui que a unidade de uma sinfonia deve ser exclusivamentemusical, ou seja, deve ter seu fundamento em determinaçõesmusicais, e não num sentimento que se atribui de maneiraarbitrária a cada uma de seus movimentos:

Do ponto de vista estético é indiferente se Beethoven [...] escolheudeterminados assuntos; não os conhecemos, por isso, não existempara a obra. O que existe é a própria obra, sem comentário algum [...].Para o juízo estético não existe o que vive fora da obra de arte.20

Como conclusão do terceiro capítulo, Hanslick busca fixar trêsaspectos de seu conceito de belo musical:1) Atribuição de validade universal ao belo musical. Este seriaválido para todas os estilos, mesmo para os mais opostos.

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2) Completa separação entre estética e história da arte.Hanslick considera que juízo estético e compreensão históricasão coisas totalmente distintas: “o paralelo de especialidadesartísticas com situações históricas determinadas é um processoda história da arte, e não um [processo] puramente estético”.21

A seu ver, o esteta teria que ater-se às obras e investigar oque é belo nelas, e o porquê, sendo que as condições pessoaisou o ambiente histórico do compositor seriam desprovidos derelevância para a consideração estética da música. Hanslickfaz aqui uma crítica à estética hegeliana. A seu ver, Hegelteria confundido o seu ponto de vista voltadopredominantemente para a história da arte, com o “puramenteestético”, comprovando na música “determinidades que elaem si jamais teve”.22

3) Estabelecimento da autonomia da música com relação àmatemática e à linguagem. Inicialmente cabe notar que, aoafirmar que o belo musical nada tem a ver com a matemática,Hanslick tem em mente uma concepção que relaciona amatemática com algo de mecânico e, por isso, e nega qualquerpossibilidade de um “cálculo” da composição. Para ele, “amatemática regula meramente a matéria [Stoff] elementar parao tratamento apto ao espírito”.23 A matemática, a seu ver, ocupaum papel oculto, e as relações desta com a música restringem-se meramente à parte física da mesma, como as vibraçõesdos sons, relações de consonância e dissonância, etc.

Se por um lado, ele nega o papel importante que a matemáticadesempenharia na música – tal como pretendiam as teoriasde Rameau – por outro lado, ele nega também o parentescoentre música e linguagem – que marca os escritos deRousseau.

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No entender do autor, as analogias que se tentou estabelecerentre música e linguagem são limitadas, uma vez que esteconsidera que o ponto principal na música é a significaçãoautônoma e a beleza dos sons, enquanto que, na linguagem,o som é simples meio de expressão. Ou, nas palavras dopróprio Hanslick, “na linguagem, o som é apenas meio para ofim de algo a expressar [...] enquanto que na música o somsurge como fim em si”.24

A crítica à música como linguagem vem aqui em favor de suaplena autonomia frente a quaisquer exigências de que a músicaexpresse um conteúdo externo a ela própria. A estética musicaldeve, pois, tratar do belo e não da (pretensa) significação damúsica (a qual, como vimos, reside nela mesma, e não numconteúdo externo).25

Assim, Hanslick irá apontar como uma das mais importantestarefas da estética musical: a) Expor a diferença fundamentalentre a essência da música e a da linguagem; b) Estabelecero princípio de que, onde se trata do especificamente musical,perdem toda aplicação as analogias com a linguagem.

Por fim, cabe notar ainda que Hanslick não nega que a músicapossa suscitar sentimentos nos ouvintes, nem nega apossibilidade de se associar acontecimentos à música, mascomo estes não possuem o requisito da necessidade, ou seja,são contingentes, variam de pessoa a pessoa, são meramentesubjetivos e arbitrários, e não podem servir como fundamento

de nenhuma proposição estética.

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Notas:

1 HANSLICK, E. Vom musikalisch-Schönen: Ein Beitrag zur Revision der Ästhetik der Tonkunst.Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973, p. 32.2 A querela entre Rameau e Rousseau é um dos exemplos dessa polêmica.3 Ibid., p. 32.4 Ibid., p. 32.5 SELIGMANN-SILVA in BENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão.Trad. M. Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 143.6 NOVALIS. Werke und Briefe. München: Winkler, 1962, p. 497.7 Apud DAVERIO, J. Nineteenth-Century Music and the german romantic ideology. N. York:Schirmer, 1993, p. 26.8 HANSLICK, E. Op. Cit., p. 33.9 De acordo com Hegel, “o conteúdo da arte é a Idéia e sua Forma é a configuração sensívelimagética”. Além disso, para ele a arte “tem a tarefa de expor a Idéia para a intuição imediata numaforma sensível”. Cf. HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética I. Trad. M. A. Werle. São Paulo: Edusp,2001, p. 86 e 88.10 HANSLICK, E. Op. Cit., p. 34.11 Ibid. p. 35. No original alemão: “Das Componiren ist ein Arbeiten des Geistes in geistfähigemMaterial”.12 Ibid., p. 36.13 Ibid., p. 36-7.14 Para ele, os sentimentos são apenas fenômenos como outros, que proporcionam analogiaspara a caracterização do caráter musical. Hanslick afirma que, no entanto, deve-se precaver dedizer que tal ou tal música descreve o orgulho, e assim por diante.15 Ibid., p. 39.16 Ibid., p. 40.17 Ibid., p. 40.18 Tal como ocorre na música programática, cuja compreensão fica comprometida se não tivermosconhecimento do programa.19 “Não se procure a representação de processos anímicos ou acontecimentos determinadosnuma peça musical, mas antes de tudo, música [...]. Onde falta o belo musical não poderá substitui-lo jamais a inoculação sutil de algum significado grandioso, e é inútil fazê-lo, quando aqueleexiste”. Ibid., p. 42.20 Ibid., p. 4421 Ibid., p. 45.22 Cf. DAHLHAUS, C. Estética Musical. Trad. A. Morão. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 81.23 HANSLICK, E. Op. Cit., p. 47.24 Ibid., p. 49.25 Em nota de rodapé, Hanslick critica a escola de crítica musical “que gosta de se esquivar àquestão de se uma música é bela, com profunda meditações sobre o que de grande ela significa”.Isso deve-se ao fato de que, ao perguntar-se sobre o pretenso “significado”, pelo “conteúdo” deuma peça musical, acaba-se por deixar de lado a própria música e suas determinaçõesespecificamente musicais.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. M. Seligmann-Silva.São Paulo: Iluminuras, 1999.DAHLHAUS, C. Estética Musical. Trad. A. Morão. Lisboa: Edições 70, 1991.DAVERIO, J. Nineteenth-Century Music and the german romantic ideology. N. York: Schirmer,1993.

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Mário Videira: É Mestre em musicologia (UNESP) com a dissertação Do Idealismo aoFormalismo: Hanslick e o Belo Musical, orientado pela Profa. Dra. Lia Tomás. Graduado emmúsica pela ECA/USP. Atualmente é doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo, naárea de estética sob orientação do Prof. Dr. Marco Aurélio Werle, com a pesquisa: “Música esubjetividade na filosofia clássica alemã”. É pianista e professor.

e-mail: [email protected]

HANSLICK, E. Vom musikalisch-Schönen: Ein Beitrag zur Revision der Ästhetik der Tonkunst.Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973.HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética I. Trad. M. A. Werle. São Paulo: Edusp, 2001.NOVALIS. Werke und Briefe. München: Winkler, 1962.

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COESÃO DISCURSIVA NOS ESTUDOS OP. 25 DE CHOPIN:ASPECTOS DE TONALIDADE E SUBTEMATISMO

Daniel Bento

Resumo - Este trabalho aborda conexões entre os doze Estudos op. 25 (1837) de FryderykFranciszek Chopin (1810-1849). A possibilidade de unificação envolvendo essas peças já foralevantada por Charles Rosen; no entanto, para justificá-la, aqui são desenvolvidos e associadosdois específicos parâmetros de abordagem. O primeiro refere-se aos relacionamentos tonaisseqüencialmente estabelecidos nessas composições. O segundo adapta o conceito desubtematismo de Carl Dahlhaus, que trata de aproximações que não cheguem a consolidartemas ou outras estruturas mais cristalizadas da composição. Por meio desses parâmetros,confirma-se coesão em pares de peças vizinhas e em grupos maiores delas, processo aquiintitulado de união múltipla.

Palavras-chave: Tonalidade. Subtematismo. Chopin.

Abstract: This essay examines connections among the twelve Études op. 25 (1837), written byFryderyk Franciszek Chopin (1810-1849). Charles Rosen had already mentioned such unificationpossibility; nevertheless, two specific parameters of approach are here explored and associatedin order to justify it. The first one deals with tonal relations sequentially established in thesecompositions. The second adapts Carl Dahlhaus’s concept of subthematicism, which seizesconnections that do not consolidate themes or other kinds of quite crystallized compositionstructures. By means of those two parameters, it is possible to verify unity in pairs of pieces nextto each other and in larger groups of them, a process here called multiple union.

Keywords: Tonality. Subthematicism.Chopin.

Introdução

Charles Rosen percebe a existência de um funcionamentoglobal nos Estudos op. 25 de Fryderyk Franciszek (ouFrédéric François) Chopin (1810-1849), compostos entre

1835 e 1837 e publicados neste último ano em Leipzig, Parise Londres. O autor afirma:

N

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A segunda dúzia [de estudos de Chopin], opus 25, é ainda maisimpressionante [do que o opus 10], em parte porque a poesia é maisintensa, o cromatismo mais pronunciado, mas também porque Chopinorganizou o grupo de forma a fazê-lo funcionar como um todo: cadaestudo parece originar-se diretamente de seu antecessor. A tonalidadede cada um é intimamente relacionada àquela de seu sucessor, àexceção dos últimos dois, onde o padrão se quebra.1 [...] É evidenteque Chopin estava tentando criar uma obra unificada a partir de umasérie de peças diferentes: que essa tentativa não tenha sido planejadade antemão, mas sim posteriormente instituída em estudos previamentecompostos, sugere o colapso da organização no fim, uma vez que osúltimos três estudos são os únicos em tonalidades não relacionadasintimamente.2

Não desejamos nos aprofundar no julgamento do autor quantoà poesia “mais intensa” e ao “cromatismo mais pronunciado”das peças op. 25 em relação às op. 10 (estas publicadas em1833 em Leipzig, Paris e Londres e compostas entre 1830 e1832) simplesmente por considerarmos a primeira questãoexclusivamente subjetiva e a segunda logo refutada por umestudo como o op. 10 número 2 (em lá menor), intrinsecamentecromático do começo ao fim. Em verdade, não propomos aquiuma comparação direta entre op. 25 e op. 10, conjunto depeças que já abordamos em trabalho anterior.3 No entanto, apossibilidade de um funcionamento global do op. 25 — adespeito de a apresentação independente de suas partesintegrantes assegurar, desde o século XIX, a presença docompositor nos programas dos pianistas4 — será examinadaa seguir, tanto através das conexões harmônicas entre astonalidades das suas doze composições quanto por intermédiodo conceito de subtematismo de Carl Dahlhaus (1928-1989),definido mais adiante.5 Tal conceito não é mencionado porRosen, mas parece justificar algumas das aproximações queele mesmo aponta, como aquela envolvendo o quinto e o sextoestudos,6 detalhada em seção posterior deste texto.

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Plano tonal

Há certa controvérsia quanto a uma específica ordemenvolvendo os três estudos que Chopin compõe em 1839 e1840 para o álbum Méthode des méthodes de piano de IgnazMoscheles (1794-1870) e François-Joseph Fétis (1784-1871),álbum originalmente publicado em 1840 e que conta com obrasde Chopin, Fétis, Sigismond Thalberg (1812-1871), FelixMendelssohn (1809-1847), Franz Liszt (1811-1886), JacobRosenhain (1813-1894), Theodor Döhler (1814-1856), StephenHeller (1813-1888), Edward Wolff (1816-1880), Adolf vonHenselt (1814-1889), Julius Benedict (1804-1885), Jean-Amédée Le Froid de Méreaux (1802-1874) e Wilhelm Taubert(1811-1891). Afinal, em edições de 1840 desse método(portanto preparadas enquanto o compositor era vivo) o estudoem ré bemol maior aparecia como segundo e o em lá bemolmaior como terceiro, em oposição aos manuscritos docompositor (e em oposição também a diversas ediçõesposteriores das três peças), que colocavam o em lá bemolmaior como segundo e o em ré bemol maior como terceiro.Todavia, algo do gênero jamais ocorreu seja em relação àspeças op. 10, seja em relação às peças op. 25: não há dúvidasquanto à ordem interna desses dois volumes, como hoje asconhecemos ela se mantém desde a época das primeirasedições. No caso do op. 10, há mesmo a indicação attacca il

presto con fuoco num dos manuscritos de Chopin (indicaçãoque, no entanto, não foi reproduzida nas primeiraspublicações), unindo terceiro e quarto estudos.

Nesse contexto, de acordo com a possibilidade de unificaçãodas peças op. 25, devem ser examinadas as relações entresuas tonalidades.

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Testemunha-se já de início a aproximação por tonalidadesrelativas,7 associando primeiro estudo (em lá bemol maior) esegundo (em fá menor). O terceiro estudo (em fá maior) centra-se no que seria a tonalidade homônima do segundo, e o quarto(em lá menor), no que seria a dominante relativa do terceiro.Quarto e quinto estudos estabelecem uma relação do tipotônica menor-dominante menor (pelas suas tonalidades,respectivamente lá menor e mi menor); o final do quinto comterça de picardia e o sexto como um todo lembram o tipo deligação encontrada entre o terceiro e o quarto, ou seja, o sextoestabelece a dominante relativa (através de sol sustenidomenor, sua tonalidade) em relação à conclusão do quinto (emmi maior). O diálogo entre o sexto e o sétimo também se nutredo final com terça de picardia no primeiro deles, de forma a sesugerir o fim do sexto (em sol sustenido maior) como dominantena tonalidade do sétimo (dó sustenido menor). Dessa forma,emerge tipo de afinidade — já chamada em outros trabalhosnossos de união múltipla8 — que transcende o âmbito apenasdos pares de peças vizinhas: em termos harmônicos, osestudos 5, 6 e 7 unem-se especificamente por meio da terçade picardia, e, paralelamente, essas peças e o estudo 4estabelecem quatro tonalidades menores consecutivas (lámenor, mi menor, sol sustenido menor e dó sustenido menor).

Como segundo e terceiro estudos (em fá menor e em fá maior,respectivamente), sétimo e oitavo firmam diálogo portonalidades homônimas, mas por enarmonia, uma vez que osétimo constrói-se em dó sustenido menor e o oitavo constrói-se em ré bemol maior. Há relação do tipo dominante-tônicaentre a tonalidade deste (ré bemol maior) e a do nono (solbemol maior). Verifica-se aproximação comparável, mas por

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enarmonia, entre nono estudo (em sol bemol maior) e décimo(em si menor). As maiores distâncias harmônicas, como bemnota Rosen,9 dão-se entre décimo estudo (em si menor) edécimo primeiro (em lá menor) e entre este e décimo segundo(em dó menor). Entre décimo e décimo primeiro (em si menore em lá menor, respectivamente) identifica-se uma relaçãoharmônica comparável à dos graus II-I no modo menor(considerando-se lá menor como I). Se o décimo segundo (emdó menor) a princípio estabelece a tonalidade homônima datônica relativa do décimo primeiro, esses estudos aproximam-se mais na medida em que o último deles termina no modomaior, sugerindo-se, no fim, o diálogo entre relativas (lá menore dó maior). Sendo os últimos três estudos em tonalidadesmenores (si menor, lá menor e dó menor) forma-se tambémuma união múltipla.

Subtematismo

Carl Dahlhaus apresenta como elemento essencial para oentendimento da produção tardia e pré-tardia de Ludwig vanBeethoven (1770-1827) o que ele chama de subtematismo.Considera subtematismo certos aspectos composicionais quenão se cristalizem de forma concreta, mas que de alguma formaainda influam na apreensão das construções musicais. Apesarde o termo supor de antemão um âmbito melódico-rítmico (umavez que evoca tema e tematismo), o autor isola ocorrênciassubtemáticas de caráter melódico,10 rítmico11 ou até mesmopuramente harmônico.12

Como exemplo de subtematismo no plano melódicoconsiderado pelo autor nas suas reflexões sobre Beethoven,

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merecem destaque suas formulações acerca do primeiromovimento (Adagio-Allegro) da Sonata para piano em mi bemolmaior op. 81a (1810), Les adieux:

É claro como resultado, mesmo mais do que claro, que embora ocromatismo nunca seja um tema, no sentido de aparecer numa Gestalttemática, ainda assim, como uma estrutura ‘subtemática’, ele tem umainfluência tão grande no processo formal quanto os temas que podemser vistos de fora como sustentáculos do desenvolvimento musical.13

Nos planos harmônico e rítmico, o primeiro movimento(Moderato cantabile molto espressivo) da Sonata em lá bemolmaior op. 110 (1822) é também mencionado por Dahlhaus.Neste movimento, o autor grifa conexões para ele ao mesmotempo abstratas e relevantes. É exemplo o começo da transição(compassos 12-15), com praticamente a mesma14 fundaçãovertical dos primeiros quatro compassos da obra (I-V4/3-I6-V7).Paralelamente, a repetição da banal estrutura harmônica doscompassos 1 e 2 (I-V4/3), não só nos compassos 12 e 13, mastambém nos compassos 5 e 6, demonstra associação entreharmonia e intensificação rítmica (primeiro a batida ésubdividida em semicolcheias no 5, depois em fusas no 12)que gera um “‘subtemático’ curso de eventos”15 independentedas proposições melódicas.

Desta forma, é certo que Dahlhaus não apenas considera comosubtemáticas estruturas melódico-rítmicas (que não cheguema formar temas). Parece dar atenção a qualquer elementocomposicional mais abstrato que seja capaz de induzir umareavaliação dos processos criativos de uma obra. Tantodetermina o subtematismo dentro de um único movimento comoo faz em movimentos de uma mesma peça, identificandocoesão entre eles. Com relação a este último caso, mais umavez é exemplo a Sonata op. 110, com a estrutura melódica lá

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bemol-ré bemol-si bemol-mi bemol presente tanto no primeirocompasso do primeiro movimento quanto no tema da fuga quese constrói a partir do compasso 27 do terceiro movimento(Adagio ma non troppo-Allegro ma non troppo). Osubtematismo, portanto, é neste presente trabalho adaptado:nas peças op. 25 de Chopin é utilizado como ferramenta deunificação de composições independentes, transcendendo oslimites de uma mesma e única peça.

Assim, em Chopin entre primeiro e segundo Estudos op. 25,nota-se a polirritmia como elemento unificador subtemático,presente quase sempre neste e a partir do fim do compasso16 daquele. Apojaturas que caracterizam o terceiro estudorelacionam-se com grupos de duas notas em grau conjunto nalinha de tercinas do segundo. Por sua vez, a ênfase noscontratempos, sendo consideradas também as acentuações,marca tanto o terceiro quanto o quarto estudos. Além disso,aproxima quarto e quinto o salto ascendente seguido porrepetição de altura e grau conjunto descendente (comoexemplificam os compassos 1 e 2 do quarto e 1, 2, 5 e 6 doquinto — Fig. 1).

Fig. 1. Chopin - Estudos op. 25. Perfil comum, quarto (compassos 1 e 2) e quinto Estudos (c. 1,2, 5 e 6).

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No caso da quinta e da sexta peças, há a afinidade notada porRosen16 (brevemente mencionada na introdução destetrabalho), entre a oscilante figuração em semicolcheias típicadesta e o trinado do fim daquela — notável exemplo desubtematismo que vem a indicar o conceito como, de fato,ferramenta útil na abordagem do discurso global do op. 25.Paralelamente, arpejos e graus conjuntos no baixo, emdeslocamentos de sentido definido mas oscilante, a partir do43 no sexto estudo e do 29 no sétimo, propõem o diálogo entreessas peças, bem como o faz o pensamento cromático escalar.Estando este presente também no oitavo estudo — em linhasduplas, como no sétimo —, presencia-se uma união múltipla

por ele gerada, envolvendo sexto, sétimo e oitavo estudos.Interligam oitava e nona peça as bordaduras, o cromatismo eas proporções reduzidas dos seus períodos (e dascomposições como um todo). Havendo presença freqüente debordaduras também na décima composição, constata-se outraunião múltipla (oitavo, nono e décimo estudos). É bem notávela antecipação do décimo primeiro estudo nos compassos 29 e30 do décimo (Fig. 2), também pelo andamento (Lento).

Paralelamente, o cromatismo é presença regular nessas duaspeças, e a bordadura lenta já no início do décimo primeiroestudo alude à união múltipla que envolve as três composiçõesanteriores. Por último, a ampla ascensão no fim do décimo

Fig. 2. Chopin - Estudos op, 25. Décimo (c. 29 e 30) e décimo primeiro Estudos (c. 1 e 2).

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primeiro antecipa o início com perfil ascendente do décimosegundo, e os grupos rítmicos de quatro semicolcheias no fimdeste (e nos compassos 16, 18 e 20) são insinuados na coda

(a partir do compasso 89) daquele (Fig. 3).

Fig. 3. Chopin - Estudos op. 25. Décimo primeiro (c. 89) e décimo segundo Estudos (c. 81).

Considerações finais

As observações realizadas neste trabalho demonstram aexistência de ininterruptas conexões nas doze peças op. 25de Chopin. Basicamente, tais conexões dão-se em grupos deduas peças vizinhas. No entanto, há diversos casos do queaqui se chamou de união múltipla, isto é, justificam-senumerosas aproximações entre grupos maiores do que os deduas composições. São exemplos as ocorrências mapeadasque aproximam os Estudos 4, 5, 6 e 7, 6, 7 e 8, 8, 9 e 10, e 10,11 e 12.

Certas afinidades entre peças são bastante evidentes (entrequarto e quinto Estudos e entre décimo e décimo primeiro,para se citar dois casos), isto é, quase se emancipam dosubtematismo e passam a integrar os processos propriamentetemáticos. Outras, por sua vez, são consideravelmente maistênues (segundo e terceiro Estudos, por exemplo), ou seja,insinuam um processo bem mais abstrato por trás dasestruturas, colocando até mesmo em dúvida se, de fato, é

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pertinente uma abordagem que procure, no op. 25, um conjuntounificado. Todavia, é na associação dos dois critérios aquiaplicados — o primeiro correspondendo às conexões tonais,e o segundo, às relações subtemáticas — que esse problemaparece se dissipar. As claramente associadas bases tonaisdos doze Estudos aumentam a pertinência das afinidadessubtemáticas mais tênues, que sem dúvida se mostrariamexcessivamente frágeis em outros contextos (nos quais nãohouvesse relações entre tonalidades). A coesão discursiva nosEstudos op. 25 depende tanto do plano harmônico geralrevelado pelas suas doze peças quanto das relaçõessubtemáticas em níveis locais, firmando-se acomplementaridade desses dois âmbitos.

Notas:

1 ROSEN, Charles. The romantic generation. Cambridge: Harvard University Press, 1995. p.369.2 Ibid. p. 371.3 BENTO, Daniel. Subtematismo e unidade nos estudos op. 10 de Chopin. In: CONGRESSODA ANPPOM, XV, 2005, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPPOM/UFRJ, 2005. noprelo.4 RITTERMAN, Janet. Piano music and the public concert, 1800-1850. In: BUTT, John. (Org.)The Cambridge companion to Chopin. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. p . 30.5 Os recortes e as conclusões deste artigo integram tese de doutorado atualmente emdesenvolvimento no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica daPUC de São Paulo, com bolsa da FAPESP. Além dos estudos op. 25 e op. 10 de Chopin, na tesesão abordados, também do ponto de vista da coesão discursiva, os dois volumes de O tecladobem temperado, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Tendo mencionado a obra, esclarecemosque propomos O teclado bem temperado como tradução de Das wohltemperirte Clavier (ao invésde O cravo bem temperado) porque na época do compositor outros instrumentos de teclado(além do cravo) garantiriam sua execução; paralelamente, clavier, cujo significado transformou-se no período em que Bach viveu, no amplo sentido pedagógico inerente a Das wohltemperirteClavier referia-se em termos gerais aos instrumentos de teclado (abarcando, por exemplo, órgão,cravo, espineta e clavicórdio).6 ROSEN, Charles. Op. cit. p. 370.7 Forma de aproximação bastante importante também no op. 10 e nos Prelúdios op. 28 (1839).8 Cf. BENTO, Daniel (2004a, 2004b e 2005).9 ROSEN, Charles. Op. cit. pp. 369, 371.10 DAHLHAUS, Carl. Ludwig van Beethoven: approaches to his music. Oxford: Clarendon Press,1993. pp. 217, 218.11 Ibid. pp. 217, 216.12 Ibid. p. 216.13 Ibid. pp. 209-10.

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14 Praticamente a mesma fundação harmônica porque o compasso 15 apresenta V6/5 no lugar deV7.15 DAHLHAUS, Carl. Op. cit. p. 216.16 ROSEN, Charles. Op. cit. p. 370.

Referências bibliográficas:

BENTO, Daniel. Aspectos de coesão discursiva em O cravo bem temperado (volume I) de J. S.Bach. In: FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE DA ESCOLA DE MÚSICA E BELASARTES DO PARANÁ (EMBAP), III, 2004, Curitiba. Anais... Curitiba: ArtEMBAP, 2004. (noprelo)._____________. Subtematismo e coesão discursiva em O cravo bem temperado (volume II) deJ. S. Bach. In: FÓRUM DO CENTRO DE LINGUAGEM MUSICAL, VI, 2004, São Paulo. Anais...São Paulo: ECA-USP, 2004. pp. 39-44._____________. Subtematismo e unidade nos estudos op. 10 de Chopin. In: CONGRESSO DAANPPOM, XV, 2005, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPPOM/UFRJ, 2005. (noprelo).DAHLHAUS, Carl. Ludwig van Beethoven: approaches to his music. Oxford: Clarendon Press,1993.RITTERMAN, Janet. Piano music and the public concert, 1800-1850. In: BUTT, John. (Org.)The Cambridge companion to Chopin. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. pp. 11-31.ROSEN, Charles. The romantic generation. Cambridge: Harvard University Press, 1995.

Daniel Bento: É Mestre e atualmente doutorando do Programa de Estudos Pós-Graduados emComunicação e Semiótica (PUC- SP); bolsista (DR-II, FAPESP), orientado pelo Prof. Dr. ArthurNestrovski. Bacharel em Composição e Regência (UNESP). Autor de Beethoven, o princípio damodernidade (Annablume/FAPESP, 2002), pesquisa premiada (Congresso IC-UNESP, 1999).Paralelamente, desenvolve atividade pianística, apresentando-se em recitais.

e-mail:[email protected]

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M

A IMPROPRIEDADE DO RACIOCÍNIO POR ANALOGIA NA

ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE MÚSICA E LINGUAGEM

VERBAL

Ricardo Goldemberg

Resumo: O trabalho analisa as similaridades entre música e linguagem verbal nas áreas daaprendizagem, leitura, estrutura formal e neurologia. Apesar das similaridades em cada umadestas áreas, o argumento que se apresenta é que a tentativa de caracterizar as duas linguagenscomo manifestação cognitiva compartilhada deve ser tratada com cautela. A existência demecanismos comuns deve-se ao fato de que ambas utilizam uma combinação de processosmentais genéricos que se adaptam conforme as demandas da tarefa à qual se propõe.

Palavras-chave: Música. Linguagem verbal. Cognição musical.

Abstract: This paper analyses the similarities between music and verbal language in the areas oflearning, reading, formal structure and neurology. Although there are similarities in each of theseareas it is argued that an attempt to characterize both languages as a shared cognitive manifestationhas to be treated cautiously. The existence of common mechanisms is due to the fact that bothutilize a combination of generic mental processes that adapt themselves accordingly to the demandsof the proposed assignment.

Keywords: Music. Verbal language. Music cognition.

úsicos proficientes freqüentemente dizem, em suaatividade performática, que tem “algo a dizer” e quesua linguagem é “universal”. Como modo de expressão

a atividade musical tradicional se mostra curiosamente próximaà linguagem verbal e, em alguns momentos, é até possível sefalar em “vocabulário, sintaxe e gramática” de um estilomusical.

As similaridades entre música e linguagem verbal podem ser

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encontradas em diversos contextos. Sloboda (1985) nota quemúsica e linguagem são manifestações comuns a todos osseres humanos e acredita que sejam expressões inatas decognição e comunicação. O autor comenta que crianças têmuma pré-disposição natural para o aprendizado das regras dalinguagem e da música através da exposição a exemplos. Assuas capacidades perceptivas precedem as capacidadesprodutivas e elas são capazes de compreender a existênciade construções formais antes mesmo de serem capazes deinventar outras, compostas pelos mesmos elementos.

Outros argumentos de natureza comportamental apontam parao fato de que as duas linguagens ocorrem no domínio do tempoe envolvem a utilização de padrões sonoros com significadospróprios. Deve-se notar que ambas são capazes de gerar umnúmero ilimitado de seqüências inéditas e reforçar o fato deque as duas linguagens são mediadas pelos mesmos canaisde produção vocal e de percepção auditiva. Além disso, asduas linguagens utilizam símbolos arbitrários para registraraspectos proeminentes dos padrões sonoros e odesenvolvimento da leitura requer anos de treinamento,tornando-se mais eficiente a partir do reconhecimento deestruturas.

As analogias entre música e linguagem verbal são estimulantesdo ponto de vista intelectual, sobretudo quando se consideraque os investigadores podem lucrar verificando como osproblemas são atacados e resolvidos em cada um dos meios.Entretanto, as tentativas de se conectar as duas linguagenscomo manifestação cognitiva compartilhada podem serenganosas e devem ser tratadas com cautela. Algumasanalogias tendem a ser metafóricas e o real significado das

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similaridades existentes deve ser avaliado de maneiracriteriosa, evitando-se inferências a partir de falsospressupostos.

Uma avaliação mais focada leva a um detalhamento contextualem conformidade com a literatura. A grande maioria dostrabalhos aponta para a existência de alguns aspectoscomumente comparados nas áreas da aprendizagem, leitura,estrutura formal e neurologia.

Com relação à aprendizagem básica, educadores musicaisproeminentes se aperceberam dos benefícios de um enfoquede ensino baseado na linguagem. Suzuki, em seu método deensino musical, adotou uma postura clara neste sentido pois“através da sua observação da naturalidade com que ascrianças aprendem a linguagem, ele percebeu que elaspoderiam ser ensinadas música de maneiras similares às queaprenderam a imitar os pais” (Landers apud Dunbar-Hall,1991). O próprio conceito de educação musical que privilegiaa aprendizagem do som antes do símbolo tem uma origempsicolingüística.

Na aquisição dos aspectos motores, o desenvolvimento naperformance instrumental assemelha-se à aquisição daproficiência lingüística. Bloomfield (apud Alvin, 1968) afirma:

O comando de uma linguagem não é uma questão de conhecimento;as pessoas falantes são praticamente incapazes de descrever os hábitosque compõe a sua linguagem. O comando de uma linguagem não éuma questão de prática. Pode-se aprender quais notas são produzidaspelas teclas do piano e pode-se memorizar as notas e acordes quecompõe uma determinada peça de música, mas ainda seremostotalmente incapazes de tocar a peça até que a tenhamos praticadomuitas e por muitas horas. A mesma coisa é verdade com a linguagem.É útil saber como funciona, mas este conhecimento não é proveitoso

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até que se tenha praticado muitas e o processo todo se realizar semesforço. Entender a forma é apenas o primeiro passo. Copie as formas,leia-as em voz alta, aprenda-as de memória, e daí pratique-as muitas emuitas vezes, dia após dia, até que elas fiquem completamente naturaise familiares. O aprendizado da linguagem é um aprendizado porrepetição (“over-learning”); menos do que isso é inútil.

Ainda com relação à motricidade, Alvin (1968) aponta para oconceito de “plateaus” que podem ser problemáticos nosprocessos de aprendizagem da música e da linguagem verbal.Musicistas encontram situações deste tipo na forma depassagens difíceis que desafiam as técnicas da práticacotidiana. Prática adicional parece não contribuir para oaprendizado até que, repentinamente, a habilidade semanifesta em uma revelação espontânea (insight). Estesplateaus aparentam ser, de maneira errônea, falhas naaprendizagem e se manifestam na aquisição da proficiênciamusical, lingüística e de diversas habilidades motoras.

No que diz respeito à leitura musical, “palavras e música sãoanálogas uma vez que ambas dependem no agrupamento desímbolos em unidades perceptuais distintas” (Christ, 1954).De maneira mais específica, Rayner e Pollatsek (1977 apudWeinberger), mostram que a leitura musical requer umequilíbrio entre dois processos aparentemente conflitantes.

Primeiro, ocorre uma codificação visual da partitura; prefere-se queisto ocorra anteriormente à performance de maneira que a partitura etodos os seus detalhes possam ser compreendidos antes da suatransformação em atos motores. Entretanto, se os olhos se encontraremmuito na frente pode ocorrer um excesso de informação que interferirácom a performance. Através do controle cuidadoso da apresentaçãode uma partitura através do computador, sincronizado com aperformance, os autores determinaram a abrangência perceptual deste“olhar na frente”. Eles ressaltam que a leitura em voz alta e a digitaçãodatilográfica apresentam “aparências” similares, sugerindo que o fatorde limitação é o mesmo nas três situações e que isto reflete a limitaçãoda capacidade da memória de curta duração. (Weinberber, 1998)

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Por outro lado, Goolsby (1994 apud Weinberger), ao observaros movimentos oculares durante os processos de leituramusical e verbal, constatou a existência de diferençasrelevantes. De um modo geral, observa-se na leitura musicalproficiente um grande número de movimentos ocularesregressivos e curiosamente, menor atenção à detalhes do quena leitura verbal. Sob este ponto de vista, o autor aponta parao fato de que ocorre um maior número de fixações em pontosvazios ou irrelevantes de uma partitura do que em um texto,embora a performance musical requeira uma reprodução maisexata daquilo que está escrito. Segundo Weinberger (1998):

Parece que a estratégia musical utilizada em música é olhar na frentepara determinar onde a partitura está “se dirigindo” (obtendo-se uma“imagem mais ampla”), fazendo inferências a respeito de muitos detalhesda partitura (a partir de conhecimento como por exemplo, harmonia damúsica tonal ocidental), de maneira a se obter uma estrutura conceitual(“framework”) a partir da qual se pode rememorar notas que estão nafrente daquelas que estão sendo tocadas – e repetir este processocomplexo novamente. Tudo isto ocorre com uma freqüência de cinco aseis vezes por segundo! Portanto, aparentemente a leitura musical nãoé uma instância da leitura verbal mas um processo em si mesmo.

Apesar destas evidências, é irreal se fazer conjecturas tomandocomo base o movimento dos olhos. Ainda que, de maneirahipotética, os processos cognitivos de leitura musical e verbalsejam compartilhados é provável que se manifestem, do pontode vista comportamental, de maneira distinta em função dasespecificidades do material submetido à leitura.

Na procura de similaridades entre a música e a linguagemverbal, a análise estrutural é a área onde as comparações sefazem mais pertinentes. Sob este ponto de vista, a teorialingüística de Noam Chomsky (1928-atual) se aproxima dateoria musicológica de Heinrich Schenker (1868-1935). Ambosargumentam, em sua respectiva área de conhecimento, que o

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comportamento humano obtém de maneira obrigatória, suportena capacidade de se formar representações mentais, abstratase subjacentes.

Uma das principais afirmações de Chomsky é que, em nívelprofundo, todas as linguagens naturais possuem uma mesmaestrutura representativa da universalidade do intelecto humano.Da mesma maneira, Schenker argumenta que todas boascomposições musicais possuem um mesmo tipo de estruturasubjacente e que esta é reveladora da natureza da intuiçãomusical. Convém notar que não existem evidências apontandopara o fato de que Chomsky, na época da formulação de suateoria, tivesse conhecimento das proposições de Schenker.

Sloboda (1985, p.13), ao discutir a similaridade destasproposições estruturais, afirma:

Portanto, quais são as principais similaridades entre Chomsky eSchenker? Talvez a similaridade mais fundamental refere-se àdiferenciação entre estrutura superficial e profunda. A estruturasuperficial é, em linhas gerais, a forma assumida por uma seqüêncialingüística (ou musical) na medida em que é expressa (ou escrita) ... Aestrutura profunda é uma entidade abstrata, não uma sentença em simesmo, a partir da qual ambas estruturas superficiais podem serderivadas através da aplicação de regras transformacionais.

Em nossos dias, o conceito de gramática musical éfreqüentemente referenciado na musicologia cognitiva, em geralsob o ponto de vista de Jackendoff e Lerdhall (1983). Estes autorescombinaram os conceitos metodológicos formais de Chomskycom a percepção de Schenker na tentativa de descrever como oouvinte experiente na tonalidade cria, de maneira intuitiva, umacompreensão abrangente da estrutura musical. Trata-se de umateoria complexa, composta de regras analíticas básicas e amaneira pela qual elas interagem na organização de

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representações musicais de acordo com o seu grau de abstração.Possivelmente, o aspecto mais pertinente desta discussãoestrutural é que música e linguagem possuem propriedadesespecíficas que demandam uma organização gramaticalcomplexa. Em função disto, é lícito pressupor que sereshumanos possuem recursos psicológicos próprios pararepresentar tais gramáticas que, por sua vez, refletem umacapacidade mental própria de organizar materiais perceptivosde maneira hierárquica e independente de uma expressãoliteral do mundo exterior.

Por fim, uma avaliação comparativa entre música e linguagemsob o ponto de vista neurológico mostra com bastante clarezaque os processos que servem à música e à linguagem sãodistintos. Segundo Gardner (1994), uma das primeirasevidências neste sentido advém do trabalho experimental deDeutsch (1975) no qual se examinam os mecanismos pelosquais estímulos musicais são apreendidos e registrados nocérebro.. Em seu estudo, os sujeitos recebem um conjunto denotas para lembrar e em seguida, diferentes materiais deinterferência são apresentados. Se o material for de naturezaverbal, a interferência é mínima (2% de erro) ao passo que aapresentação de materiais de natureza musical afeta a memóriado conjunto de maneira bastante relevante (40% de erro).

Gardner (1994), em sua argumentação a partir de evidênciasde ordem neurológica, cita casos de indivíduos que tiveramos cérebros danificados e passaram a sofrer de afasiassignificativas sem perder a capacidade musical. Da mesmaforma, é possível tornar-se musicalmente incapaz semprejuízos relevantes na capacidade lingüística. Segundo oautor:

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Os fatos são os seguintes: enquanto as capacidades lingüísticas sãolateralizadas quase exclusivamente para o hemisfério esquerdo emindivíduos destros normais, a maioria das capacidades musicais,inclusive a capacidade central da sensibilidade ao tom, está localizada,na maioria dos indivíduos normais, no hemisfério direito. Assim, danosaos lóbulos frontal e temporal direitos causam pronunciadas dificuldadesna discriminação de sons e em sua reprodução correta, embora danosnas áreas homólogas no hemisfério esquerdo (que causam dificuldadesdevastadoras na linguagem natural) geralmente deixem as capacidadesmusicais relativamente não prejudicadas. A apreciação musical tambémparece ficar comprometida por doenças no hemisfério direito (conformeos nomes pronunciam, a amusia é um transtorno distinto da afasia).(p.92)

A análise comparativa entre a música e linguagem verbal nãoproduz conceitos falsos ou verdadeiros. Cada uma destascapacidades tem as suas próprias particularidades e aindaque utilizem os mesmos canais orais-auditivos decomunicação, tenham uma forte componente motora eapresentem uma estrutura de organização hierárquica bastantesemelhante, não é possível se falar em um compartilhamentoabrangente.

Provavelmente, frente à enorme plasticidade da mentehumana, existem mecanismos cognitivos comuns às duascapacidades. Entretanto, isto não as faz similares e apenasindica que cada uma das duas capacidades sob análiseenvolve uma combinação de processos mentais queisoladamente, possuem uma função mais genérica e seadaptam conforme as demandas da tarefa à qual se propõe.

Ainda que as analogias entre música e linguagem verbal sejamestimulantes do ponto de vista intelectual, elas não devem serassumidas a priori. Segundo Sloboda (1985, p.12-13):

Meu ponto de vista é que a analogia lingüística em músicamerece séria atenção embora eu faça três observações: 1)

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Seria tolo reivindicar que música é simplesmente uma outralinguagem natural; 2) A analogia pode ser explorada de maneirametafórica e poética, mas que cientistas estão corretos emserem cautelosos; 3) Ainda é uma questão aberta quão longea analogia pode ser levada, e a sua aplicação ainda está sujeitaà verificação empírica e argumentação que caracteriza oesforço científico. (p. 12-13)

O problema com analogias é que a sua procura pode-se tornarum fim em si mesmo. Nestas circunstâncias, as comparações“são baseadas na suposição de que os dois modoscompartilham tanto que devem compartilhar ainda mais, semconsiderar uma reflexão adequada a respeito das propriedadesúnicas da cada um deles” (Barrett, p.68).

Curiosamente, uma pequena questão de natureza especulativapermanece. É possível que, na história da evolução humana,as capacidades musical e verbal tenham surgidoconcomitantemente como formas de expressão bastantepróximas. Foi apenas na medida em que estes processos setornaram especializados que surgiu uma tendência à suadissociação. Hoje em dia, e sobretudo na idade adulta, osaspectos tidos como similares refletem apenas a maneiragenérica como o cérebro e os órgãos receptores se organizame relacionam com o mundo externo.

Referências bibliográficas

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Ricardo Goldemberg: É Doutor em Psicologia Educacional (UNICAMP), com pós-doutoradona Universidade de Londres; Mestre em Educação Musical pelo Holy Names College e Bacharelem Música pela Berklee College of Music (Boston, EUA). Docente do Departamento de Músicada Unicamp desde 1984, onde tem atuado nas áreas da percepção musical, acústica musical edisciplinas teóricas no Curso de Graduação, bem como de metodologia da pesquisa na Pós-Graduação.

e-mail:[email protected]

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CRÍTICA MUSICAL NO JORNAL: UMA REFLEXÃOSOBRE A CULTURA BRASILEIRA

Liliana Harb Bollos

Resumo - Este artigo discute a importância da recepção crítica de uma obra artística no universojornalístico e procura elucidar alguns princípios da crítica musical como ferramenta para ummelhor entendimento da nossa música dentro de cultura brasileira. Diferentemente da crítica demúsica erudita, que produziu um jornalismo de características literárias desde o início do séculoXX, com expoentes como os escritores Mário de Andrade, Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux,a crítica de música popular teve início efetivamente com o advento da bossa nova, alvo da primeiragrande manifestação de crítica nos jornais brasileiros, influenciado pela indústria cultural e pelopoder dos meios de comunicação.

Palavras-chave: Música Brasileira. Crítica Musical. Apreciação Musical.

Abstract - This article argues the importance of the critical reception of an artistic workmanshipin the journalistic universe and looks to elucidate a few principles of musical critique as tools for abetter understanding of our music whitin the Brazilian culture. Different from the critique of classicalmusic, that produced a journalism of literary characteristics since the beginning of the centuryXXth, with writers like Mário de Andrade, Murilo Mendes and Otto Maria Carpeaux, the critique ofpopular music effectively had its beginning with the advent of bossa nova, target of the first greatmanifestation of critique in Brazilian periodicals, influenced by the industry of culture and thepower of the communicate channels.

Keywords: Brazilian music. Musical critique. Musical appreciation.

rimeiro grande crítico de música brasileiro, além deescritor, pesquisador e professor de piano, Mário deAndrade escreveu resenhas sobre apresentações

musicais na capital paulista em diversos jornais e revistasdurante décadas. Parte desse material está no livro Música e

Jornalismo (1993), uma seleção de resenhas publicadas noDiário de S. Paulo entre 1933 e 1935. Murilo Mendes, tambémescritor modernista e poeta, colaborava regularmente em

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jornais escrevendo sobre música erudita com a proposta deauxiliar seus leitores a compor uma discoteca de música. Suasresenhas, editadas no livro Formação de Discoteca (1993), alémde informar o leitor, analisam estética e historicamente obras dosgrandes mestres, contribuindo para que os leitores pudessemanalisar e apreciar a obra indicada. Otto Maria Carpeaux, escritoraustríaco radicado no Brasil desde 1940, é autor do livro Uma

Nova História da Música (1958), uma das primeiras publicaçõessobre música em língua portuguesa, além de colaborar em jornaisregularmente.

Notamos nos textos desses escritores que há uma preocupaçãode analisar os aspectos musicais da obra com a intenção deinformar e enriquecer a cultura musical do leitor, trazendo para otexto interpretações muitas vezes técnicas acerca do repertórioem si. Consideramos ser esse aspecto o mais importante de umacrítica: discorrer sobre a obra em si, sem se ater a formulaçõesexternas que nada contribuem para o entendimento eesclarecimento da obra analisada. Vamos, então a algumasconsiderações sobre a palavra “crítica”. Segundo o dicionárioAurélio, a palavra “crítica” do grego kritiké, feminino de kritikós, éa arte ou faculdade de examinar e/ou julgar as obras do espírito,em particular as de caráter literário ou artístico. A palavra “crítica”,por sua vez, também se origina da palavra grega krinein (krinen)

que quer dizer quebrar: o esforço de quebrar uma obra empedaços para pôr em crise a obra em si. Acreditamos ser essa afunção da crítica: fragmentar uma obra de arte, colocar em crisea idéia que se tem do objeto, para, assim, poder interpretá-la.

Diferentemente da crítica de música erudita, que produziu umjornalismo cultural de características literárias desde a primeirametade do século XX com expoentes importantes da nossa cultura

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como os escritores Mário de Andrade, Murilo Mendes e Otto MariaCarpeaux, a crítica de música popular no Brasil teve inícioefetivamente com o advento da bossa nova, na segunda metadedo século XX, alvo da primeira grande manifestação de críticanos jornais brasileiros. Influenciado pela indústria cultural e pelopoder dos meios de comunicação (e mais tarde pelaobrigatoriedade do diploma de jornalismo), esse formato dejornalismo impôs novos padrões à crítica musical, sendo o escritorsubstituído pelo “cronista”, pelo jornalista não-especialista, e iráexplorar do texto um caráter mais ideológico e histórico e menosestético, deixando os aspectos musicais para segundo plano.

Consideramos esse fato um aspecto negativo da crítica musical,criando mesmo um obstáculo para o entendimento do repertóriomusical brasileiro, pois, o objetivo da crítica jornalística é o de sercapaz de identificar o projeto do artista analisando a obra,possibilitando que esta seja divulgada e assimilada por outraspessoas. Segundo o crítico de música do jornal Folha de S.Paulo,Arthur Nestrovski:

“A crítica expressa, sem dúvida, alguma coisa de gosto pessoal, tantoquanto guarda (ou deveria guardar) algo de objetivo e informativo também.Mas ela é mais do que opinião e reportagem e mais do que a soma dosdois. O critico não está só defendendo uma escolha; o que interessa é anatureza dessa escolha” (Nestrovski: 2000, p.10).

Percebemos, nestas palavras, que a crítica necessita estar aolado do objeto de estudo e não se posicionar contra ou a favordeste. Ao defender uma escolha, o crítico tem de ter, acima deseu gosto pessoal, conhecimento do que é debatido. O próprioAdorno pontua que o êxito de um crítico (de cultura) é apenaspercebido a medida em que ele exerce a crítica, interpreta a obra:

O conhecimento efetivo dos temas não era primordial, mas sempre umproduto secundário, e quanto mais falta ao crítico esse conhecimento,

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tanto mais essa carência passa a ser cuidadosamente substituída peloeruditismo e pelo conformismo. Quando os críticos finalmente nãoentendem mais nada do que julgam em sua arena, a da arte, e deixam-se rebaixar com prazer ao papel de propagandistas ou censores,consuma-se neles a antiga falta de caráter do oficio (Adorno: 2001,p.10).

Podemos dizer que esse sintoma acontece com algumafreqüência nas resenhas jornalísticas e na grande maioria dostextos sobre música, pois o crítico, tendo essa carência deconhecimento pregada por Adorno, ocupa-se em admitir seugosto pessoal, ao invés de se preocupar em interpretar a obra,analisá-la. Entretanto, ao fazer uma análise de um cd ou deum concerto, na grande maioria das vezes, a crítica musicalnão dá conta de entender e interpretar o projeto de um artista,do mesmo modo como é chocante a ausência de comentáriosanalíticos sobre música, especialmente a popular. O própriocompositor Chico Buarque, em entrevista há mais de dez anospara a Folha de S.Paulo (09/01/94) já afirmava que não temoscrítica de música, somente de letra:

“É muito difícil alguém que compreenda a parte musical mesmo. Entãoé difícil encontrar quem saiba escrever sobre Tom Jobim. Nemcompensa, é claro. Você não vai publicar uma partitura num jornal,publica uma letra, porque qualquer um pode julgar aquilo. Para mimisso é frustrante, porque eu vejo a letra tão dependente da música etão entranhada na melodia, meu trabalho é todo esse de fazer a coisaser uma coisa só, que, geralmente, a letra estampada em jornal mechoca um pouco. É quase uma estampa obscena”. (Chico Buarque:1994)

Do mesmo modo que artistas se sentem frustrados com areceptividade crítica da imprensa, o público acaba criando umaidéia errônea do objeto analisado. Não deveria haver umaprodução de textos da mesma ordem com que se produzmúsica, capaz de instigar o leitor a discernir e interpretardeterminada obra? Na prática, raros são os críticos que

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conhecem música suficientemente bem para analisá-la; agrande maioria acaba usando o espaço para fazerconsiderações ideológicas, fora do contexto musical.A história da música popular brasileira se iniciou praticamenteno início do século XX, e, com a chegada do rádio e dagravação eletromagnética ao país por volta de 1928, tivemosacesso a discos importados e também começamos a produzirnossos próprios discos. Por outro lado, diferentemente daerudita, a música popular praticamente não foi pauta dos jornaisdiários em circulação na época, restando às revistasdirecionadas ao entretenimento, as primeiras publicaçõessobre o tema, como a Phono-Arte, PRA Nove, Radiolândia,Revista da Música Popular, entre outras. A evolução da músicapopular brasileira na primeira metade do século XX se deu,portanto, longe dos fatos jornalísticos, diferindo da músicaerudita que tinha seus concertos mais famosos semprepautados nos jornais. Somente com João Gilberto é que osjornais começaram a se interessar pelo novo fenômenomusical.

Podemos considerar que a música popular brasileira passoupor duas grandes fases que conseguiram sintetizar,esteticamente, a época em que se deram, trazendo novasdivisas musicais e o aprimoramento musical do país: a Épocade Ouro e a Bossa Nova. A primeira se desenvolveu nos anos1930, de intensa criação, profissionalização da classe musical,além do grande número de artistas que surgiu como LamartineBabo, Noel Rosa, Custódio Mesquita, Carmen Miranda, AriBarroso, Orlando Silva, Pixinguinha, entre muitos outros(Severiano, 1998: 86). Entre a geração de 30 e a bossa nova,tivemos a ascensão do baião com Luis Gonzaga e HumbertoTeixeira e a proliferação do samba-canção, influenciado pela

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invasão do bolero em todo o mundo, propiciando o maiormomento do rádio, até então.

Por outro laço, a evolução da música popular americanatambém se deu paralelamente com a brasileira, ou melhor, foimodelo para a música de outros países, impondo, quasesempre, os padrões americanos de difusão. Se as polcaseuropéias influenciaram a nossa música (maxixe, lundu) noséculo XIX e nós criamos o choro, as marchinhas e mais tardeo samba, nos EUA a influência também se deu com o ragtime

e o blues, miscigenando, assim, os povos europeu e negro.Nos Estados Unidos, a Era do Swing nos anos 1930, comorquestras se apresentando em salões de baile para um públicoexpressivo, representou grande influência para oscompositores brasileiros da Época de Ouro, como CustódioMesquita, Vadico e Ismael Silva, entre muitos, criando asfamosas canções-fox. Entretanto, o samba desenvolvido poreles sempre foi considerado brasileiro, assim como outrosgêneros como o choro e a valsa brasileira, que outrora já seinfluenciaram por outras músicas e danças.

Na década de 1940 tivemos a proliferação do samba-cançãoinfluenciado pela invasão do bolero em todo o mundo,propiciando, talvez, o maior momento do rádio, até então. Comisso, os programadores das rádios começaram a influenciar apreferência musical de seus ouvintes, instaurando-se, assim,a massificação dos meios de comunicação que conhecemoshoje. Paralelamente, o mercado do disco, principalmente noRio de Janeiro e São Paulo, ampliava-se, a ponto de tornar asua indústria uma das mais importantes do país (Tinhorão,1997: 57), impondo, assim, um “ajuste” no repertório musical

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nacional, com boleros enfadonhos e canções fox, influenciadaspela música popular americana.

Em meados de 1950, havia alguns artistas que já buscavamuma saída para aquela música abolerada imposta pelos meiosde comunicação, e, por conta novamente das lojas de discos,aproximaram-se do novo estilo que estava se formando nosEstados Unidos, o cool jazz. Com características quasecamerísticas - suavidade, pausas, contraponto e harmonizaçãosutil -, o cool jazz se impôs, nos anos 1950, procurando sedistanciar do modo nervoso do estilo bebop. Como principaisrepresentantes dessa nova corrente jazzística destacam-se ocompositor e arranjador Gil Evans ao lado do trompetista MilesDavis. No Brasil, surgia em proporção mais modesta, umageração que pode ser considerada precursora da bossa-nova.Dela fazem parte artistas como Dick Farney, Lúcio Alves, SílviaTeles, Agostinho dos Santos, o conjunto-vocal Os Cariocas,Johnny Alf, Luís Bonfá, Garoto e Radamés Gnatalli.Já a bossa nova surgiu no cenário musical brasileiro emmeados de 1958 com a canção Chega de Saudade (A.C.Jobim/Newton Mendonça) interpretada pelo cantor e violonista JoãoGilberto e foi alvo da primeira grande manifestação de críticanos jornais brasileiros. Impressionado com o som inovador docantor baiano, Antonio Carlos Jobim, arranjador da gravadoraOdeon em 1957, convidou João Gilberto para participar dodisco Canção do Amor Demais (Festa) da cantora ElizeteCardoso. Na época ela era uma das principais cantoras dopaís e estava gravando um disco somente com músicas deJobim e Vinícius de Moraes. Isso se deu em janeiro de 1958 eJoão Gilberto tocou violão em duas faixas do disco: “Chegade Saudade” (Jobim/ Moraes) e “Outra vez” (Jobim). Pela

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primeira vez a batida que simbolizaria a bossa nova estavasendo gravada, porém a forma de cantar de Elizete Cardosoera convencional, fazendo uso do vibrato, característica vocalda geração do samba-canção que João Gilberto passou aabolir, desde a “concepção” dessa sua nova maneira de cantar.A forma com que o violão foi tocado, simplificando o samba eao mesmo tempo fazendo uso de harmonia sofisticada,provocou uma reação imediata de músicos, críticos, e tambémda gravadora Odeon, que instantaneamente convidou Gilbertoa gravar o seu primeiro single, com “Chega de Saudade” deum lado e “Bim Bom” (João Gilberto) do outro.

Quando o cantor e violonista João Gilberto lançou o seuprimeiro single, em 1958, com “Chega de Saudade” (A.C.Jobim/Newton Mendonça) e “Bim Bom” (J.Gilberto), o públicoimediatamente notou a originalidade, ou pelo menos, aestranheza daquela música, quando as rádios começaram atocar. O impacto que essa música provocou foi enorme,considerada um verdadeiro divisor de águas, gerando asprimeiras críticas jornalísticas, mas também influenciando oestilo de compor de vários músicos, ansiosos por uma músicamais leve que o samba-canção. Em pouco tempo o cantorbaiano se transformou na figura mais polêmica da músicabrasileira e impôs um novo padrão estético à música popularbrasileira, inventando um diálogo entre a voz e o violão,transformando o violão em instrumento participante doprocesso criativo e não somente um “acompanhante” da voz,tão comum na época.

O próprio poeta Manuel Bandeira escreveu em 1924, que “paranós brasileiros, o violão tinha que ser o instrumento nacional,racial” (Bandeira, 1955). Ao contrário do piano, introduzido nas

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casas da alta classe média no final do século dezenove, oviolão foi escolhido pela classe menos favorecida por ser maisbarato, transformando-se no instrumento mais significativo damúsica popular brasileira, percorrendo o choro, o samba, abossa nova com desenvoltura durante todo o século XX. JoãoGilberto, por sua vez, conseguiu com que o violão migrassetambém para a classe média, impondo ao violão um lugar nãosomente nas rodas de samba, mas também nas casas deconcerto. Vimos, a partir de Gilberto, a música americana sevoltar para o violão, criando uma contraposição clara entre osgrupos de jazz, que têm o piano como instrumento central(acompanhado de contrabaixo e bateria) e a nova sonoridadeadquirida pelo violão. Com isso, o violão toma o lugar do piano,criando uma sonoridade “nacional”, marca de um estiloinconfundível que João Gilberto, a partir de “Chega deSaudade”, consagrou.

Com o interesse cada vez maior de se aprender violão econseguir mais alunos, muitas escolas de música buscarammétodos rápidos de aprendizagem, em detrimento de umensino formal direcionado. O que vimos foi a banalização doensino da música popular, cooperando, de uma certa forma,para a depreciação da cultura popular e a proliferação demétodos pouco convincentes para o aprendizado da músicapopular em geral. O ensino da música popular nasuniversidades brasileiras, ainda bastante recente, foiimplantado na Unicamp em 1989, e na cidade de São Paulo,maior cidade do Brasil, este curso não é oferecido por nenhumauniversidade pública, cabendo essa tarefa a algumasfaculdades particulares da região metropolitana.

Havia no Brasil dos anos 1950 uma sede de afirmação

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desenvolvimentista em todos os setores. Havia Brasília e apromessa de estradas e de progressos. Havia uma arquiteturase firmando, como resultado do crescente surto imobiliário.Havia um Brasil aparecendo diante do mundo, com o seunacionalismo acentuado (Paulino, 1964). Por outro lado, asemissoras de rádio não supriam a classe média no seu anseiode boa música. As emissoras de rádio preferiam, por umaquestão de comodidade, priorizar a música comercial, maisrentável. E na hora de travar um diálogo musical com essaclasse média sedenta de renovação, apelavam para a músicaestrangeira, (principalmente o jazz americano), já conhecida,de repercussão assegurada. Se antes os jovens da zona suldo Rio de Janeiro só ouviam jazz, passaram a se interessartambém pela bossa nova, e conseqüentemente pelo violão. Abatida que João Gilberto imprimiu, desde a sua primeiragravação com Elizete Cardoso (Canção do amor demais,1958), foi decisiva para que muitos jovens se interessassemem tocar esse instrumento.

Constatamos, nesta pesquisa sobre crítica musical brasileira,que, a partir do advento da bossa nova houve um movimentonos jornais para tentar explicar o movimento bossanovista,formando-se, assim, dois grupos de críticos de música popular.Primeiramente formou-se um grupo conciliador, que sepreocupou em interpretar a nova música, mais de que impor oseu gosto, sua preferência, como musicólogos vindos da áreaacadêmica. O outro grupo, formado, em grande parte porcronistas que trabalhavam no jornal, mostrou-se em parte hostilao movimento, tendo admitido seu gosto pessoal muitas vezes,não conseguindo propor uma interpretação da obra. Devemos,aqui, nos remeter a Antonio Candido, que faz algumasconsiderações sobre o trabalho crítico afirmando a importância

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de ultrapassar a sua pessoa como crítico, sem exibir apersonalidade de si próprio e sua preferência por um textopartidário, pois o trabalho do crítico só começa quando eleultrapassa a sua pessoa, num esforço de colocar em primeiroplano aquilo que lhe parece a realidade da obra estudada(Candido:1943).

Um outro fator que contribuiu para a disseminação doscronistas na imprensa foi a obrigatoriedade do diploma dejornalismo a partir da década de 1960, afastando, assim, aintelectualidade dos jornais. A crítica de música erudita, porsua vez, a partir da década de 1960 viu sua participação nojornal diminuir, cedendo um pouco do espaço (que já erapequeno) à crítica de música popular, em decorrência dointeresse abrupto dos leitores pela bossa nova, e mais tardepelas outras formas de música popular, como o tropicalismo.A Bossa Nova teve, de fato, grande importância na constituiçãoda música popular brasileira atual, assim como a Época deOuro, sintetizando, em parte, a originalidade e a força da culturanacional com uma música sofisticada, mas também simplesem sua essência. Devemos sempre nos preocupar em melhoraro gosto musical de nosso país também através de uma melhordivulgação da “alta” música, popular e erudita. Não hápossibilidade de diminuirmos a música comercial dos meiosde comunicação se não melhorarmos a qualidade da músicaque ouvimos em casa. Para tanto, faz-se necessário que hajaum aprimoramento do ensino musical brasileiro constante,através da aquisição de livros e discos, assim como de umengajamento político de instituições culturais egovernamentais, para que assim melhore o nível cultural dapopulação brasileira em geral. Se Manuel Antônio de Almeidapercebeu em 1855 que a música popular era “uma das nossas

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raras originalidades”, dado o seu papel tão importante nacultura brasileira moderna, a música popular já começa a serestudada de forma mais criteriosa e pontual, para que sereconheça o real contexto em que as canções se dão, e assimpossamos contribuir para o melhor entendimento da culturabrasileira.

Referências Bibliográficas:

ADORNO, T.W. Prismas. São Paulo: Ática, 2001.ALMEIDA, M. A. Memórias de um Sargento de Milícias. 9a ed. São Paulo: Ática, 1979.ANDRADE, M. Música e Jornalismo:Diário de São Paulo. São Paulo: Hucitec-Edusp, 1993.BANDEIRA. M. Literatura de Violão. Revista da Música Popular n° 10. Rio de Janeiro, 1955.CAMPOS, A. Balanço da Bossa e outras bossas. 5a ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.CARPEAUX, O.M. Uma nova história da música. Rio de Janeiro: Zahar, 1958.CANDIDO, A. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades e Editora 34, 2002.CASTRO, R. Chega de Saudade. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.MASSI, A. Chico Buarque volta ao samba e rememora 30 anos de carreira. Folha de S.Paulo,SãoPaulo, 09 jan.1994. http://www.chicobuarque.com.br/texto/entrevistas/entre_09_01_94.htmMENDES. M. Formação de Discoteca. São Paulo: EDUSP, 1993.NESTROVSKI, A. Notas Musicais: do barroco ao jazz. São Paulo: Publifolha, 2000.NESTROVSKI, A. O livro da música. São Paulo: Companhia das letrinhas, 2000.PAULINO, F. 1964. Bossa Nova apesar dos bossanovistas. Revista Finesse. Rio de Janeiro, Jun.p.21-23.SEVERIANO, J. e Z Mello. A canção no tempo, 3.ed. São Paulo: Editora 34, 1998.TINHORÃO, J. R. Música Popular: um tema em debate. São Paulo: Ed. 34, 1997.TINHORÃO, J. R. História Social da Música Popular Brasileira. Lisboa: Caminho da Música,1990.

Referências Discográficas:CARDOSO, E. Canção do Amor Demais. Festa. FT 1801. 1958. 1 CD.GILBERTO, J. “Desafinado”. N.Mendonça e A.C.Jobim [Compositores]. In: Getz/´Gilberto featuringA.C.Jobim . Verve-EUA 314521-414. 1964.1 CD.GILBERTO, J. “Desafinado”. N.Mendonça e A.C.Jobim [Compositores].In: Chega de Saudade.Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1959. 1CD.

Liliana Harb Bollos: É Mestre pela Universidade de Música de Graz, (Áustria) e graduada emperformance (piano jazz) pela mesma universidade. Atualmente, doutoranda em Comunicação &Semiótica (PUC-SP) desenvolve a pesquisa A crítica de música popular e suas implicações nacultura brasileira, sob a orientação do Prof. Dr. Arthur Nestrovski. É professora da Faculdade deMúsica Carlos Gomes (SP) e pianista.

e-mail: [email protected]

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ENTREVISTA COM PIERRE SCHAEFFER

Bernadete Zagonel

Resumo: Em 1990 tive a oportunidade de entrevistar o compositor Pierre Schaeffer em suaresidência, em Paris. Na ocasião, estava preparando minha tese de Doutorado pela Universidadede Paris IV - Sorbonne, na qual tratava de questões relativas à Música Contemporânea. Assim,o teor dessa conversa girou em torno das concepções e do entendimento de Schaeffer sobre estamúsica e de suas expectativas quanto ao presente e ao futuro desta arte. Foi uma conversadescontraída e franca, em que Schaeffer expõe suas idéias estéticas com simplicidade e clareza.Transcrevo aqui, numa tradução livre, os melhores momentos desta entrevista, com a intenção,principalmente, de colaborar para o melhor conhecimento desta personalidade que foi PierreSchaeffer, o criador da Música Concreta.

Palavras chave: Música concreta. Pierre Schaeffer. Entrevista.

Abstract: Le 1990 j´ai eu l´opportunité de faire um entretien avec le compositeur Pierre Schaeffer,chez lui, à Paris. À l´occasion, je préparais ma thèse de Doctorat à l´Université de Paris- IV,Sorbonne, où je traitais de questions relatives à la Musique Contemporaine. Ainsi, le contenu decette conversation tourne autour des conceptions et des points de vue de Schaeffer sur cettemusique, et de ce qu´il pensait sur le présent et le futur de cet art. C´est une conversationdécontractée et franche, où Pierre Schaeffer expose ses idées esthétiques avec simplicité etclarté. Je fais ici la transcription, dans une traduction libre du français vers le portugais, desmeilleurs moments de cet entretien, dont le propos est, surtout, celui de colaborer pour que l´onpuisse mieux conaître la personnalité de Pierre Schaffer, le créateur de la Musique Concrète.

Keywords: Musique concrète. Pierre Schaeffer. Entretien.

B. Z.: Como o senhor vê os caminhos seguidos pela MúsicaContemporânea desde o nascimento da Música Concreta, em1948, até nossos dias?

P. S.: Eu não sei se a Música Concreta pode ser consideradacomo uma das grandes transformações da MúsicaContemporânea (MC). Eu a sinto mais como uma tentativalateral para escapar do hermetismo da MC, das idéias pré-concebidas, mais como um terreno de experimentação, um

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lugar de reflexão, um laboratório onde, provavelmente pelaprimeira vez, se coloca a questão de saber o que ouvimos,como ouvimos, de que é feita a música além das referênciasque temos tradicionalmente, o que chamei de músicaexperimental, pensando na grande mutação das ciênciasquando elas se tornam experimentais em vez de sersimplesmente dogmáticas e dedutivas. Então, foi isso o quechamei de música concreta: tem por referência uma músicaque seria experimental, baseada na observação e naracionalização de dados de escuta, de dados naturais de trocaentre os sons que podemos produzir na natureza e no homemvisto como aparelho receptor e inteligência de escuta.

B. Z.: Como compositor, o senhor já trabalhou com a músicafeita por instrumentos ?

P. S.: A música com instrumentos ? Sim, eu sou de uma famíliade músicos, logo, aprendi piano e, graças a Deus, solfejo, muitocedo em minha vida e fui banhado pela música tradicional.Como eu tinha um bom ouvido, isso funcionava muito bem, eeu era muito bom aluno de solfejo, e um aluno de pianopossível. Então, logo que abordei a música concreta, eu aabordei com muito cuidado, com um sentimento secreto deviolar um território desconhecido, mas também de violar,provavelmente, as regras de base da escuta musical.

B. Z.: Quando o senhor começou a fazer essas experiênciasjá tinha uma idéia de onde poderia chegar?

P. S.: Não, quando a gente começa uma experiência, não sabejamais para onde vai.

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B. Z.: Mas o senhor tinha em mente que caminho queria tomarou foi realmente uma experiência para ver...

P. S.: Pode-se desculpar as pessoas, seres contemporâneoscomo eu, que trabalharam com músicas novas, sendo que osinstrumentos eletroacústicos eram recentes, que os músicosnão os tinham jamais experimentado e, é certo que, dasmanipulações com discos, e mais ainda, com gravadores, comfita magnética, poderiam sair combinações sonoras que nãopoderíamos ter fabricado antes. Então, não podemos recusaros experimentadores musicais, o cuidado, a preocupação, acuriosidade, o desejo de ir ver o que poderia estar se passandonesses continentes sonoros inexplorados, e o que se poderiadescobrir aí. Não podemos recusar a eles essa curiosidade(ou, essa curiosidade deles). O que há de mais admirável, éque a maior parte deles pensou, em seguida, em poderperseguir, construir músicas novas, até mesmo revolucionaras músicas novas. E devo dizer, sem falsa modéstia, que apósanos e anos de experimentação, tive a sabedoria de reconhecerque este caminho não levava a nada, somente a construçõessonoras, senão gratuitas, ao menos desobedientes a todas asregras de uma possível estética musical.

B. Z.: Costuma-se dizer que o senhor é o inventor da músicaconcreta. Como o senhor vê essa questão após todos essesanos?

P. S.: Percebo isso como um velho pode perceber seus errosde juventude. Ele não pode negá-los, não é?

B. Z.: Erros? Por que o senhor considera isso um erro?

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P. S.: Digo erros de juventude como se diz de um rapaz quefez besteiras.

B. Z.: Então, ter inventado essa música é ter feito besteira?

P. S.: Quer dizer, eu não gosto muito do termo “inventar umamúsica”, apesar de que, com efeito, os contemporâneostomaram a coisa como uma invenção. Eu sustentei, durantemuitos anos de fervor e de experimentação, que havia aí umamúsica possível, em todo caso, um continente sonoro, musical,a ser reconhecido. Então não posso negar este caminho quesegui durante muito tempo, mas o que é mais incrível é queeste caminho seguido com assiduidade, com muita energia,pois eu tenho muita energia e sou “cabeçudo”, não levava anada. Sou então um dos contemporâneos que ousa dizer:trabalhei muito, mas isto não levou a lugar nenhum.

B. Z.: Então o senhor se arrepende?

P. S.: Não devemos nos arrepender do que fazemos. Imagineos exploradores que acreditam haver um continente novo emalgum lugar, não podemos condená-los por quererem ir lá.Podemos recriminar os que estiveram lá, que se aperceberamque não havia nada; podemos condená-los por voltar e mentirdizendo que há alguma coisa. Meu mérito está em ter estadolá e ter hoje a coragem de dizer: não há nada.

B. Z.: O senhor acredita que a música tomou um rumo erradoou uma nova via a partir das suas experiências?

P. S.: Certamente, não exatamente a partir de meus trabalhos.A música contemporânea, em seu conjunto, se enganou sobre

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a possibilidade de um progresso musical. Enfim, todo meupensamento está contido nessa fórmula: não há progressomusical, a música é limitada como é limitado nosso planeta, eas pessoas que querem descobrir novas músicas são comopessoas que gostariam de deixar a terra e ir para lugaresinabitáveis.

B. Z.: O senhor vê alguma outra alternativa de música hoje?

P. S.: Bem, não há outra alternativa. E um dos escândalos dopensamento contemporâneo é que, na verdade, não se queradmitir que não haja outra alternativa, que a música é umcontinente limitado, que ela é limitada muito mais pelaspossibilidades de nosso ouvido que pela possibilidade de fazersons, digamos, novos. Podemos fazer máquinas que fazemsons em áreas extremas de violência ou de originalidade, masessas performances sonoras não são assimiláveis. Éexatamente como se você dissesse que é ridículo continuar acomer pão, legumes e bife, se há uma porção de outras coisaspara se comer. Sim, muitas coisas mesmo. Coisas que nãosão venenos, mas que não são exatamente gostosas, como anouvelle cuisine: ela não vai muito longe.

B. Z.: Neste caso então o senhor acha que, ou a música párapor aqui, ou ela volta para trás, é isso?

P. S.: Eis aí uma constatação em que você acaba de resumiras alternativas: ou a música pára, ou ela volta para trás. Então,antes de sabermos o que faremos, se vamos parar ou voltar, épreciso fazer uma constatação: saber se a área musical élimitada e se podemos sair dessa, se podemos encontrar outracoisa além do material sonoro com o qual trabalhamos há

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séculos. Assim, o fato de que se deva parar, que não se possair mais longe, que não possamos acumular as mudanças, éum fenômeno tão novo e escandaloso para os contemporâneosque eles não quiseram, não somente admitir, mas tambémconstatar. Minha originalidade, um dos raros músicoscontemporâneos conhecidos por suas tentativas, é de ser umdos exploradores que teve a coragem de ir nesses lugaresque chamei de inabitáveis, de voltar relativamente são e salvoe de dizer: muito bem, meus amigos, não vão lá, não há nada.Pois é, minha mensagem se restringe a essa constatação,muito negativa, mas firme, e que pode ser útil. Eu digo: não válá, não há nada, não há música.

B. Z.: O senhor acredita que não há música aí. Então seriaassim que o senhor explicaria a reação do público em relaçãoà música contemporânea?

P. S.: O público que sempre duvidou, que primeiro rejeitou asmúsicas novas, em geral estava errado: quando se tratavadas músicas novas do século XVIII ou XIX, que eram osromantismos, que eram, digamos, as evoluções que vão deBach a Debussy ou mesmo Stravinsky, creio que o públicotinha reações habituais de rechaçar a novidade e tinhadificuldade em se deixar cativar, mas em seguida era, dealguma forma, cativado. Desta vez, o público nem ao menos arechaça, ele não a ouve, ele não quer ouvir isso, isso lhe fazmal aos ouvidos, à sua sensibilidade, a seu desejo de músicae, com efeito, a recusa do público em geral contra essa músicaestá fundamentada no bom-senso.

B. Z.: O senhor não acredita que seja apenas uma questão dehábito, de familiaridade com este tipo de música?

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P. S.: Não. Não é uma repetição das recusas que conhecemosdurante alguns séculos onde o público começou rejeitando asmúsicas novas, os modos novos da música, e acabou porassimilá-la, por apreciá-la. Creio que há aí uma inovação: háalgo na evolução musical que é tão inumano, tão grotesco,tão absurdo no sentido do bom senso que a recusa doscontemporâneos é totalmente justificável. Aliás, oscontemporâneos de hoje não a recusam mais do que recusaramos contemporâneos do tempo de Bach ou de Debussy. Opúblico contemporâneo vai aos concertos de músicacontemporânea, há os fanáticos, os amadores e,conseqüentemente, não recusa a música contemporânea. Aocontrário, o público foi de uma lucidez, de uma gentileza noapetite por música nova como jamais em outros tempos. Nãohá nenhum tipo de freio no público. O que há, infelizmente, éum freio na música em si mesma, que vem para ser consumida,mas que não é “consumível”.

B. Z.: O senhor acredita que as músicas que se faz hoje comos computadores, e todas essas pesquisas atuais, seriam acontinuação das pesquisas que o senhor iniciou com a músicaconcreta?

P. S.: Os computadores são uma outra coisa. Eles podem serusados de duas maneiras: são empregados para fabricar sons,materiais sonoros, ou para combiná-los. Os computadores sãoduas coisas bem distintas: pode-se fazer computadores quecombinam os sons do piano, os doze sons da escala cromática,enfim, são combinadores de sons. Ou se pode utilizar ocomputador para fabricar sonoridades novas, desconhecidas,que não são realizadas pelos instrumentos acústicos. Creioque é preciso distinguir estes dois empregos do computador:

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para fabricar sons desconhecidos, timbres, como se diz, podeser relativamente interessante, mas também relativamentelimitado. O emprego deles para fazer a combinatória sonora éuma outra coisa. Estas são máquinas para compor e a elas épreciso dar regras. E que regras lhes daremos senão as dacomposição habitual?

B. Z.: Tradicionais, então ?

P. S.: Tradicionais ou modernas. Podemos muito bem dar aocomputador regras para fazer música serial ou música àmaneira de Stravinski ou de Bach. Mas o gesto de invençãonão está no computador, ele está na lei que damos aocomputador.

B. Z.: Em sua opinião, a utilização desses computadores nãoleva a uma estética nova ?

P. S.: Não.

B. Z.: Então a gente deve retomar os mesmos sistemas decomposição de sempre ?

P. S.: É preciso dar ao computador uma lei, mesmo se a gentelhe der uma lei para obedecer ao acaso, combinar um certoacaso, uma vez que os acasos podem se definir relativamentebem. Então podemos dar ao computador escolhas de acaso,ou modos de acaso, ou acasos mais ou menos aleatórios oumais ou menos lógicos e conseqüentemente, o computadorfará aquilo que lhe dissermos.

B. Z.: Como o senhor vê a eliminação do gesto instrumental

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ou vocal a partir desta música feita com ruídos e sobre suporte?

P. S.: Bem, você tocou num ponto que me traz antigossofrimentos, porque a falta de gesto na manipulação da músicaeletroacústica é uma carência, uma privação, uma enfermidadeque me afetou muito. Quando eu trabalhei, nem mesmo comos computadores, mas na eletroacústica, sem computador, ofato de não mais ter gestos para fazer, o fato de não maisencontrar composições musicais ou mesmo fontes sonoras emharmonia com a gestual humana já era um sofrimento, não é ?É certo que esta separação do som de suas raízes, de seugesto instrumental, é também uma fonte de abstração temível.

B. Z.: Hoje se tenta reconstituir estes gestos por computador.O que o senhor acha dessas pesquisas?

P. S.: Vejo isso como uma espécie de volta um pouco ridículaaos modelos antigos. O melhor seria não usar o computadornesses casos, pois não há nada melhor do que um bomviolinista, ou um bom pianista com um bom piano para realizarestes gestos. Não necessitamos recorrer a estas máquinascomplicadas para imitar e imitar mal, ou mesmo imitarmos bem,esses gestos que são tradicionais e que foram objeto de umesforço secular e aos quais os virtuosos consagram suas vidas.

B. Z.: Com relação ao teatro musical...

P. S.: Teatro musical ? Eu nem sei o que é..

B. Z.: Não ?

P. S.: Não. Talvez não queira nem saber, mas eu nunca

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encontrei uma boa definição de teatro musical, a menos quevocê me dê uma...

B. Z.: É difícil (risos). É uma música que dá muito valor ao gesto,que coloca o gesto em cena, que faz do gesto uma parte damúsica também. Enfim, é mais ou menos assim que eu o vejo...

P. S.: Sim, mas apenas esta definição já aponta o ridículo dele,porque isolar o gesto de seu efeito musical e encontrar o gestopelo gesto é transformar o violinista em boneco. Se você olharo agitar de um pianista ou um violinista por detrás de um vidrono estúdio, vai encontrar um personagem, uma espécie deboneco cômico ou trágico. Se for cortado de seu efeito sonoro,o gesto não tem mais sentido.

B. Z.: Sim, mas um gesto exagerado...

P. S.: Mas os gestos musicais não são gestos interessantesesteticamente, são gestos instrumentais. É como se você semetesse a fazer, digamos, um ballet com pessoas que serramtoras de madeira ou que limam metais, ou um pequeno balletcom relojoeiros que ajustam pequenas roldanas de relógios,dizendo que você vai fazer um ballet estético, que usa comomaterial os gestos dos artesãos. Isso não tem sentido.

B. Z.: Mesmo esse teatro musical que, digamos, faz realmenteteatro, que tenta colocar um texto, um cenário, uma história ?

P. S.: Bom, há muito tempo que se faz isso. Chama-se ópera.(risos). É um gênero bem conhecido no qual jamais acreditei,mesmo quando é “Lohengrin”. Quando muito, quando é Gluck,Haendel, passa...

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B. Z.: O senhor não gosta de ópera ?

P. S.: Não gosto de ópera, acho isso ridículo.

B. Z.: Por que?

P. S.: Porque a música, notadamente a declamação, o canto,não é feito para acompanhar uma ação. É lento demais, massobretudo, porque a ação musical não tem nada a ver comuma ação dramática.

B. Z.: Do ponto de vista do conteúdo de cada um ?

P. S.: Sim, do ponto de vista do conteúdo, a ação musical temsuas exigências. Ela exige gestos, tempos, andamentos, elaexige situações que não têm nada a ver com situaçõesdramáticas. A situação musical é dramática por si só, pois elaexige que homens sejam medidos com sons graças ainstrumentos, que são instrumentos tradicionais, que têm suasregras de jogo, e não com uma ação dramática. Seu dramáticoimita, mais ou menos, a vida, os gestos da vida, as situaçõesda vida e, conseqüentemente, as situações musicais não têma ver com as situações emprestadas da existência dos pobreshumanos.

B. Z.: O senhor pensa da mesma forma quanto à música feitapara ballet ?

P. S.: A música feita para ballet é diferente. De um lado, há nofosso pessoas que fazem música, e de outro, dançarinos quedançam. A cada um, seu trabalho.

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B. Z.: De acordo. Isso porque a música não está totalmentemisturada a...

P. S.: Então, quando é bem feito, evidentemente, o dançarinoparece seguir a música tão de perto que até parece fazê-la,produzi-la. Mas cada um tem seu trabalho, o trabalho é bemdividido.

B. Z.: Voltando para a música eletroacústica: como o senhorvê a ação do GRM (Groupe de Recherche Musicale), o grupoque o senhor começou?

P. S.: O GRM entrou nessa aposta difícil de perseguir umamúsica que, na verdade, não é totalmente eletrônica, maseletroacústica; ele continuou fiel a meus ensinamentos, queeu saiba, considerando que nem todos os sons são bons paraa música. É preciso primeiro passar pela audição, pelos limitese refinamentos, pelas exigências do ouvido humano e, comoconseqüência, percebe-se que nem tudo é bom nacombinatória musical. De modo que, nesse aspecto, a grandetradição musical, eu não posso negar o talento que têm, maseles estão, evidentemente como todos os contemporâneos,no mesmo tipo de impasse.

B. Z.: O senhor acha que eles seguiram um bom caminho ?

P. S.: Não podemos negar seu gosto pela experiência, suaresistência para continuar a exploração musical, mas tambémnão podemos negar que tanto eles como outros encontrarãoas limitações que já indiquei.

B. Z.: E quanto ás pesquisas feitas no IRCAM?

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P. S.: Não vou falar mal do IRCAM como normalmente faço.Estou cansado de dizê-lo, penso que o IRCAM é um lugarbem equipado, onde há pessoas que têm seguramente muitotalento, mas que sempre possuíram um “non-sense” por umaespécie de mito do progresso musical com o qual eu nãocompactuo. Eles são bem equipados, há rapazes inteligentes,que têm valor...

B. Z.: E quanto aos resultados?

P. S.: Penso que o resultado é triste em relação aos meiosque os contemporâneos colocam lá. Compreendemos bem queos contemporâneos estejam possuídos pelo desejo deultrapassar a música, de ir à descoberta de novos continentesmusicais, uma vez que a descoberta não está somente namoda, mas que a descoberta científica já mostrou suasconquistas em todas as áreas. Acontece que, no meio musical,ela se choca com as limitações do universo e principalmente,do universo humano, do aparelho auditivo e da inteligênciahumana e provavelmente, também com as leis gerais,universais, que são as da música.

B. Z.: O senhor parou de compor?

P. S.: Sim, parei de fazer minhas tentativas, minhas modestastentativas de composição porque fiz essas tentativas não tantopor querer ser compositor - apesar de que, quando somosjovens, somos capazes de todo tipo de besteira – mas paraprovar a mim mesmo se eu conseguiria encontrar esses limites,para compreendê-los e compreender em que eles se opunham,de maneira definitiva, a uma tentativa de expressão. Com efeito,tive alguma sorte e algum sucesso em minhas pequenas

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composições e não posso me queixar da acolhida que tive.Em geral elas foram bem acolhidas, mas a cada vez, provei amim mesmo que aí se encontravam limites, e que não haviaprovavelmente, extensão possível de expressão musical foradas áreas tradicionais.

B. Z.: O senhor acha que significaria se repertir, se continuassea fazer isso?

P. S.: Bem, se repetir, com os meios tradicionais, é certo que agente também encontra limites, porque a evolução musicalprovou que, em um certo momento, ela patina, e fora dos sonstradicionais, dos doze sons da escala, os intervalos que oouvido sabe apreciar, as relações simples, pode-se tambémescutar música eletroacústica, pode-se ouvir relaçõesdiferentes, pode-se ouvir coisas mais complicadas, mas elasnão dão ao receptor humano, se ouso expressá-lo assim, seouso apreciá-lo em termos de recepção, ela não dá, de formanenhuma, as mesmas satisfações e a mesma compreensãoque a música tradicional, a música que é articulada com osdoze sons.

B. Z.: O que o senhor pensa das correntes que vão buscarnas músicas extra-européias certas fontes de inspiração ?

P. S.: Eu mesmo me interessei muito por este procedimento,uma vez que tive a chance de me ocupar de rádios d’além-mar e de viajar muito e, então, tive a chance de experimentaressas músicas negras, indianas, essas músicas de diferentescontinentes, inclusive a música chinesa. Isso me permitiuobservar que essas músicas parecem primeiramente muitodiferentes, e é isso que, por primeiro, toca os ouvidos europeus,

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acostumados ao do-re-mi-fa-sol dos conservatórios. Mas quandoesse ouvido se exercita a escutar essas músicas percebe-seque elas são feitas com a mesma escala, os mesmos materiaissonoros, são arquiteturas um pouco diferentes. É um poucocomo se você descobrisse arquiteturas, a ligação é bastanteboa, e dissesse que são sempre feitas de pedras, de madeira,sob as leis de peso e, conseqüentemente, arquiteturas diferentesse parecem pelas leis da construção, dos materiais, as leis depeso, as leis da resistência dos materiais e as leis daperspectivas.

B. Z.: Mas, mesmo assim, isso enriquece a música quefazemos ?

P. S.: Se isso enriquece a música que fazemos aqui não sei,porque, nesse momento, trata-se de imitar, de incorporar.Digamos que isso enriquece nossa escuta como nós nosenriquecemos pela aprendizagem de línguas diferentes, línguasdiversas, de uma literatura que não é a nossa. É sempreinteressante ouvir os outros se expressarem em suas línguas.Mas daí a dizer que isso enriquece nossa própria língua, não.Nossa língua, por exemplo, o francês, não se enriquece tantode aportes estrangeiros. Podemos enriquecer um pensamentoeuropeu com um pensamento asiático, sim. Podemos enriquecerum pensamento pelo confronto com um outro, porque cadagrande grupo humano tem suas tradições, sua inteligência, suasintuições. Mas daí a demarcar as línguas em relação umas àsoutras, os pensamentos de umas em relação às outras, há umanuance. Não se deve demarcar, é preciso compreender.

B. Z.: O que o senhor diria aos jovens compositores que estãoiniciando?

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P. S.: Esta é uma questão muito embaraçosa que eu assumiao longo dos anos em minha vida, pois eu só poderia lhesdizer uma coisa: - Muito bem, pessoal, vocês estão chegandoum pouco tarde, e não creiam que poderão fazer como se feznos Séculos XIX e XX, em que cada geração descobre umaparte nova da música. Creio que vocês chegam um pouco tardee serão obrigados, desta vez, a aprender a música como elaé, talvez a ser compositor, mas não querer, como fizeram seusantepassados, ter a pretensão de renová-la.

B. Z.: Quais foram as últimas inovações da música: a concreta,os aportes do ruído e de todos os tipos de som...?

P. S.: Ah, não, eu penso que já está fora do domínio musical.Penso que estas iniciativas foram úteis para conhecer umpouco mais os fenômenos acústicos da escuta, mas pensoque a evolução musical está praticamente parada há algumtempo.

B. Z.: Quais as obras do Século XX que mais marcaram?

P. S.: É preciso saber do que falamos. Se falarmos da evoluçãoda música tradicional até os seus extremos, inclusive dododecafonismo, por exemplo, (então tudo o que pareceu serao mesmo tempo um progresso e uma decepção nos anoscontemporâneos, notadamente a música serial, que marcou,em minha opinião, uma derrota e um ponto sem volta, enquantoque no século precedente, a música pareceu fazer umprogresso gigantesco e acelerado nos períodosimpressionistas e, digamos, com Debussy, Stravinski, eoutros.), então, como costuma acontecer ao final de umprogresso, ele parece se acelerar e de repente parar

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bruscamente. Eis o que surpreendeu os contemporâneoshabituados a tanto progresso, a tantas novidades no meio desteséculo e no fim-de-século, ver de repente uma parada, umaespécie de quebra, uma espécie de derrota.

B. Z.: Na música concreta, eletrônica e eletroacústica há obrasimportantes?

P. S.: A música eletrônica, concreta, e acústica também, têmseus autores de talento, geniais mesmo, como Pierre Henry,por exemplo. A derrota desta música não tira das pessoas seutalento, sobretudo seu apetite, sua coragem, seu empenho dequerer, a qualquer preço, fazer música com esses materiais,com esses procedimentos. Mas isso tampouco impede decondenar esse progresso musical como tentativa, comoesperança, de ultrapassar largamente o domínio musicaltradicional para encontrar continentes inexplorados e do queviver durante alguns séculos.

B. Z.: Quer dizer que, apesar dos materiais e dessa maneirade trabalhar, eles conseguem fazer música?

P. S.: Eles conseguem fazer a música deles, as músicas quetêm agora nomes especializados, uma vez que as músicas...(é preciso agora distinguir entre as músicas que são concretas,eletrônicas, eletroacústicas, entre outras.)... então, a músicaé marcada por seu selo de fabricação, por seu segredo defabricação...

B. Z.: E pelas ferramentas...

P. S.: Sim, pelas ferramentas. Então não é mais uma música

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que se pretende universal como era a música até o SéculoXX, onde pouco importava com o quê se fazia música, erasempre música. Agora, a música é marcada por seusprocedimentos de fabricação. Conseqüentemente, ela já é umamúsica menos interessante.

B. Z.: O senhor vai a concertos?

P. S.: Sim, isso acontece...

B. Z.: Em geral, que tipo de concerto o senhor prefere?

P. S.: Tenho o hábito de ir a todos os concertos, não tenhopreferência. São os burgueses que dizem: -Eu vou a esses oua aqueles concertos. Eu, profissionalmente, vou a todos osconcertos por hábito profissional. Se você me perguntar a qualconcerto, prefiro ir a um concerto onde se toca Bach, porexemplo. Como nos tempos de Nadia Boulanger. Nunca fuimais feliz do que nesses momentos.

B. Z.: O senhor vai aos concertos do IRCAM?

P. S.: Aos concertos do IRCAM, vou com algumas restri-ções,reclamando antecipadamente, e em geral saio tãodecepcionado quanto na chegada. (Risos).

B. Z.: Mesmo quando é o Ensemble Intercontemporain quetoca?

P. S.: Acho que eles têm muito talento e que os obrigam afazer acrobacias, mas isso não significa que as obrassatisfaçam, porque todos os contemporâneos partem de idéias

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idiotas,com pretensões que contradizem a experiência.

B. Z.: Muito bem, acho que já falamos o bastante. Muitoobrigada, Monsieur Schaeffer.

Paris, em 22 de maio de 1990.

Bernadete Zagonel: É Doutora pela Universidade de Paris IV - Sorbonne (França) e professorana UFPR.

e-mail: [email protected]

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REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS E OPINIÕES DOCOMPOSITOR CLAUDIO SANTORO

Iracele Vera Lívero

Resumo: Este trabalho faz parte da dissertação de mestrado Santoro: Uma História em Miniaturas-Estudo analítico-interpretativo dos Prelúdios para piano de Claudio Santoro” da própria autora,realizada na Unicamp. Trata-se de uma entrevista com o compositor Cláudio Santoro, concedidaao compositor Raul do Valle, em Heidelberg (Alemanha), em 1976. Este material foi gravado emfita K7 e cedido à pesquisadora que transcreveu e inseriu em seu trabalho, estando redigido aquiapenas uma parte dessa entrevista. A ordem de distribuição do assunto, bem como a adaptaçãodas frases ficaram a critério da pesquisadora. O objetivo é poder transmitir aos estudiosos damúsica, o pensamento e as opiniões de um relevante compositor brasileiro, principalmente noque diz respeito à música contemporânea.

Palavras chave: Claudio Santoro. Compositor brasileiro. Música contemporânea.

Abstract - This work is part of the author’s Master degree dissertation entitled “Santoro: A Historyin miniatures - An analytical and interpretative study of Claudio Santoro’s piano preludes”. It’sbased on the interview given by Santoro to the composer Raul do Valle, in Heidelberg, Germany,1976. This material was recorded in tape (K7) and later passed to the author, who transcribed itand inserted parts into her dissertation, where here it is presented just part of it. The subject’sordinations of the original interview, as well as the adaptation of phrases were entirely done by theauthor. The aim here was to bring to the researchers in music the thinking and the point of viewsof one of the most relevant Brazilian composers of contemporary music.

Keywords: Claudio Santoro. Brazilian composer. Contemporary music.

Música Contemporânea nos Últimos 50 Anos:

dodecafonismo, que foi uma das primeirasrevoluções, vamos dizer assim, do nosso século (pramim não foi propriamente uma revolução mas uma

evolução), é uma conseqüência de toda evolução da técnicado passado, principalmente da técnica contrapontística. A maior

“O

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parte da técnica dodecafônica está baseada em cima datécnica tradicional do contraponto. E acontece que os primeiroscompositores que usaram a técnica dodecafônica ,experimentaram; quer dizer, foi uma técnica de experimento,e quando ela começou a se cristalizar, se acabou.

Na minha opinião, ela é o clímax, é o final de todo um período.Vem desde o início, quando as técnicas da polifonia vocal secristalizaram; e esta evolução toda, passando pelo barroco,classicismo, etc, até chegar ao dodecafonismo. Isso é o clímax.Então acabou, quer dizer ficou um beco sem saída, apesardeles saírem para técnica serial, chamada serialismo dos anos50, que é o desenvolvimento do pós Webern, naturalmenteum pouco menos musical e mais técnica, vamos dizer assim,do que música. Mais experiência do que realização.

Tanto que você começa a pensar: qual é grande obra desteperíodo? Tem uma outra coisa feita pelo Stockhausen e peloBoulez. São coisas que estão tão serializadas, maismatemático do que propriamente musical, e o resultado é quehoje em dia isso ficou ultrapassado e ninguém mais toca.”

Problemas da Música Contemporânea:

“Eu acho que um dos grandes problemas da músicacontemporânea, é como está sendo feita a educação musicalnos conservatórios. O que acontece? Você estuda música hojeexatamente há mais de 200 anos atrás, a não ser a técnicano piano que melhorou: o digital mais do que o emocional.Então o que acontece, toda a formação da juventude musicaldos conservatórios do mundo inteiro de uma certa forma éfalsa. Eu acho que o sujeito deve conhecer Bach, e tudo mais,

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mas não só Bach; quanto muito chegam a Debussy, Ravel eagora um pouquinho de Schoenberg ou de Webern..

A música que nós fizemos nos últimos 10 anos não temnenhuma vez, não é tocada, ninguém sabe, ninguém faz porqueos professores são pessoas antigas, que tiveram formaçãoantigas. Transmitem aos alunos uma formação feita de 200anos atrás, chegando até inclusive a desmoralizar, porquenão querem ter o trabalho de penetrar no assunto, porque issodá trabalho.

Por isso é que eu tenho uma grande admiração pelo ArnaldoEstrela no Brasil, por exemplo, como intérprete. Eu acho umacoisa fantástica um homem na idade do Arnaldo, chegar acompreender, a se interessar, tocar e fazer um esforço, de tero maior interesse em divulgar, tocar e entender a música feitahoje. Eu que conheço o Arnaldo desde a década de 1940,posso dizer que ele é um elemento formado por essa coisa dopassado, mas no entanto é tão inteligente, tão musical que elesoube se atualizar sempre. Esse é um dos poucos camaradas.Na nova geração, não querem nem saber, nem ouvir, estãogravando Mozart, Chopin, Beethoven, porque já conhecem,porque o empresário manda, porque ele tem que ganhar odinheiro dele. Por isso é de se tirar o chapéu para o Arnaldo,porque ele faz alunos dele tocar música contemporânea. Vocêconta nos dedos quem faz um negócio desse.”

Sobre o Serialismo:

“O serialismo dos anos 50 aos 60, aquele que fez o Boulezpor exemplo, Berio e Stockhausen, o qual teve várias fases,aquela fase pontilhista, acho uma fase completamente estéril,

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seca. Ela influenciou por exemplo o início das pesquisaseletroacústicas, assim como também as primeiras pesquisaseletroacústicas influenciaram posteriormente odesenvolvimento da música instrumental, da música pós-serial.

Eu tive aliás uma conversa com Maderna, creio que foi em1957/58 no estado de Milão, e ele me levou na RAI (eletrabalhava na RAI nessa época), para ouvir as primeiraspesquisas que foram feitas em música chamada eletrônica, eele mesmo confirmou isso. Houve na música contemporâneainterinfluências de certos aspectos da música eletrônica, comotambém houve essas pesquisas, principalmente pontilhismo,que influenciaram à música de pesquisa eletroacústica. Depoiselas se dividiram naturalmente cada um tomou um rumodiferente, e passaram a ter uma independência muito grande,porque os meios são diferentes. Naturalmente até hoje elasse influenciam. Certos efeitos que se procuram fazer hoje naorquestra são efeitos que tem uma grande influência da músicaeletroacústica. Esse problema do cluster, a procura timbrísticaque existe hoje é uma influência.”

Opiniões Sobre Algumas Obras Serialistas:

“O pessoal do Boulez é ultraserialista porque fez aquelaserialização nas sonatas e nas outras obras, os quartetos, etc.O Stockhausen também fez uma série de Klavierstüke. Umdos Klavierstüke, não sei se você conhece, consiste em quecada dedo da mão ser uma pauta, em que a serialização étamanha que cada dedo tem uma intensidade diferente. Estenegócio é um absurdo, um negócio irrealizável, um negócioque é puramente para o papel. Se tivesse sido feito na AméricaLatina, todo mundo iria rir, mas como foi feito na Alemanha,

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saiu lindo, todo mundo editou e foi divulgado em toda parte. Opessoal tentou tocar, porque ninguém podia tocar ao mesmotempo um dedo com sforzatto, outro com mezzo piano, outropiano, o outro pianíssimo, isso é impossível. Técnicamente éimpossível você dar um acorde com 10 dedos dessa maneira.Isso foram exageros.

Mas você pode ver que esta música afastou completamente opúblico da música contemporânea. Eles não estavampreocupados em dizer ou transmitir alguma coisa pra alguém.Eles estavam preocupados numa pesquisa, talvez seriamenteou não, não sei. Isso eu não posso afirmar porque eu não mantinhacontato com esse pessoal nessa época, eu estava completamenteafastado deles. Stockhausen nem existia quando estive na Europaestudando. Ele foi estudar com Messiaen depois que eu saí deParis. Era um trabalho muito intelectualizado. Acho que falhou.”

Música Atonal:

“Na minha opinião a obra de arte hoje não é acabada, não podeser acabada, ela não pode ter um principio e um fim. Ela tem queter elementos de dinâmica, daí justamente um dos grandes errose problemas da música atonal: não conseguir ultrapassar umadas coisas muito importantes que a música tonal fez, que é adinâmica das chamadas dissonância e consonância. Essadinâmica, do ponto de vista dialético, esse contraste que dava omovimento na música, que estabelece justamente esse parâmetroda dissonância e consonância, a cadência, enfim. E este elementoque é importantíssimo na música tonal, não conseguiu sersubstituído na música atonal.

Daí um dos grandes problemas dessa música- ser monótono -

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porque um dos elementos que não dá essa monotonia, quequebra essa monotonia, que dá um sentido dinâmico, dedesenvolvimento é o contraste estabelecido pela dissonância-consonância. Tentou-se estabelecer intensidades diferentesou cores diferentes. Mas isso não foi suficiente.

Na música chamada pós-serial foram introduzidos novosconceitos de som, pesquisas do som, não como um elementoisolado, mas como um elemento timbrístico. Então ele não éapenas resultado de uma série harmônica ou de umaconstrução, de um complexo que foi estabelecido até o fim doserialismo, mas de uma complexidade de junção de sons. Nãotem mais sentido a classificação desses sons separadamente,mas a classificação da resultante desses conjuntos de sons.”

Música Aleatória:

“Eu fiz 10 programas na Rádio francesa, que se chama: ‘Daimprovisação ao aleatório’, onde eu mostrava e provava comexemplos musicais que a improvisação e o aleatório sempreexistiram na música, foi uma constante na música. O que é ainterpretação se não é uma parte aleatória do intérprete dentroda música. Então eu provei isso, eu pus três gravações de umPrelúdio de Chopin que um intérprete toca em um minuto, umem três e meio, e outro em dois minutos e meio. O tempo namúsica tem uma importância muito grande. Quer dizer foi umainterpretação que mudou o sentido da coisa.

Por exemplo o que era o Baixo Cifrado antigamente senão apossibilidade do intérprete improvisar sobre um determinadoplano. Existe até uma sonata de um compositor italiano, queeu não me lembro o nome agora, que ele fez pra dois violinos

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e baixo cifrado, em que os dois violinos não estão escritos, sóestá escrito o baixo cifrado, e os dois violinos improvisam otempo todo em cima do baixo cifrado.

Quero dizer então que isso não é novo na música, isso é umacoisa que esteve sempre ligada à música. Por isso que euacho que quando começou a teorização da música, provocadoem grande parte pelos teóricos e musicólogos (quero dizer,osujeito que não pode fazer música), a música perdeu umagrande parte da sua razão, e impediu em o seudesenvolvimento expressivo.

Muita gente está usando o aleatório de uma maneira semobjetivo. Cheguei a conclusão de usar o aleatório porquesempre me preocupei com o problema da interpretação, comoeu fui intérprete também, toquei em Orquestras, fiz muitamúsica de câmara, fui solista, eu sempre tive uma preocupaçãosobre o problema da interpretação também. Eu achava umabsurdo que certas coisas que eu mesmo escreví, dificílimasna execução, com o Aleatório teria praticamente o mesmoresultado, e sem tanta dificuldade técnica pra fazer. Então épor isso que eu uso o Aleatório – como um elemento de facilitar,e que meu pensamento musical tenha melhor resultado nainterpretação, na realização.

Em geral eu faço um aleatório controlado, eu não deixo fazero que quiser. Por exemplo, eu coloco várias notas, e digo:sobre essas notas improvisar ritmos diferentes comintensidades diferentes. Mas os outros instrumentos que estãotambém fazendo isso, terão aquele mesmo número de notas,que eu imagino que aleatoriamente tocando, pelo processoaleatório, vão certamente dar um complexo sonoro x.

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Quando uso por exemplo na percussão, eu deixo o movimento,mas eu digo quais os instrumentos que eu quero que use, eem qual proporção, eu escrevo o espaço em relação ao tempo.Não é um negócio assim completamente caótico. Temcamaradas que escrevem: aqui fazer o que quiser, ou tocar oque está na sua cabeça. Não sei se é válido ou não, é umaexperiência que o Cage em geral fez.

Mas o aleatório existe na natureza. Existem partículaselementares que são aleatórias, só podem ser explicadas pelosprocessos aleatórios, quer dizer o processo de probabilidade,elas podem estar aqui como estar aí. Só são explicadas poresse processo. Na própria natureza existe este processo. Nofundo há uma influência direta ou indireta, consciente ouinconsciente que é o melhor termo dentro do compositor.

E o compositor na minha opinião, só consegue atingir acompreensão, quando consegue transmitir um complexomusical expressivo de que a grande massa sente e gostariade ouvi,r mas que não é capaz de fazer. Então ele atinge eestá no seu tempo. É uma coisa importante. A pessoa nãoprecisa cantarolar a peça, mas ela precisa sentir, sentir umaemoção, um impacto, mesmo que ele não saiba porque eleestá recebendo este impacto. Mas ele está vibrando, recebendoum impacto emocional.”

Sobre a Forma:

“Um dos grandes problemas da música contemporânea é aForma, sempre foi; inclusive já na música dodecafônica. Tantoé assim que os papas da música dodecafônica usaram asformas do passado, como Alban Berg e Schoenberg. Em

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parte o próprio Webern no fundo você pode analisar, sãodeterminados parâmetros das muitas formas do passado. Agorana música pós-serial e na música super serialista, tambémhouve o problema da Forma, embora eles quisessem sair dacoisa, mas no fundo eles estavam presos.”

Recursos Técnicos a Serviço do Compositor:

“Hoje, na minha opinião os mais importantes são os recursoseletroacústicos. E as pesquisas que privadamente em toda aparte estão sendo realizadas por pessoas que as vezes nãoaparecem nos cabeçalhos dos jornais de música nem nasgrandes rádios, televisões, etc, mas muito mais importantesdo que aqueles que andam aparecendo.

Aliás modéstia a parte, um musicólogo americano dauniversidade de Illinóis fez uma análise de várias obras minhasà uns dois anos, em que ele explica, que nós agora estamosna quarta parte do nosso século e que muita coisa vai serrevista. Ele é contra a opinião da maioria dos críticosamericanos que no dia em que morreu Stravinsky, disse que amúsica do século XX tinha morrido com ele, tinha acabado alí.Eu também acho que é uma burrice dizer um negócio desse,porque muita coisa se fez sem o Stravinsky. E ele então dizia:vai ser feito uma revisão grande. Ele acredita nisso. E váriosnomes que até hoje foram consagrados passarão a seresquecidos, e muitos que não tiveram ainda a posição quemerecem, vão passar a ter essa posição. Então ele achava,modéstia a parte, que duas pessoas certamente assumiriamuma dessas posições: eu e o Lutuslovski. Quer dizer, tudoisso ele dizia pela análise da obra, pela coerência eindependência, inclusive, fora da moda, embora certas coisas

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eu tenha empregado, mas não de uma maneira puramenteesquemática.

Alías foi sempre uma norma na minha vida, aproveitar as coisasa minha maneira, e não fazer as coisas a maneira do que estáse fazendo. Não seguir a moda; e naturalmente, nós latinoamericanos principalmente, sofremos. Temos um back grounddesfavorável, pelo fato de sermos compositores latinoamericanos, porque os europeus principalmente não acreditamem nós e na nossa cultura. Eles não acreditam que nós somoscapazes de obras à altura deles, somos capazes de inventarcoisas antes deles, isso é um pouco da pretensão que geralhá no meio cultural europeu e que eu reajo de uma maneiramuito violenta, não somente por mim, mas pelos outroscompositores latino americanos. Eu acho que hoje em dia háuma inquietação grande em matéria de criação, muito maiorna América Latina do que na Europa. A Europa está serepetindo, a gente sente.”

Sobre Suas Obras Dodecafônicas:

“Eu não sabia que já fazia música dodecafônica naquela época,eu comecei a compor música no Brasil em 39/40, música atonale depois em 1940 fazendo música com serialismo,dodecafonismo, com uma certa serialização, à minha maneiratambém, porque não havia nada codificado sobre isso, nãoexistia teoria nem nada. Foi posteriormente que surgiu oprimeiro livro de contraponto e sobre o dodecafonismo.

Quer dizer, nessa época quando apareceu esse livro no Brasil,eu já tinha seis anos de música escrita dodecafônica, serial.Quando ví o livro pela primeira vez, o que eu fazia não tinha a

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ver com o que ele compunha, eu fazia outra coisa. Porque alieu usava a técnica dodecafônica mais como elemento deunidade pra minha obra do que como uma camisa de força.Eu sempre fui a favor da liberdade sobre todos os aspectos e,acho que , uma das funções mais importantes da arte hoje emdia é a de transmitir uma mensagem de liberação do homem.Porque o homem hoje está praticamente submerso pelapropaganda de todas espécies, comercial, política, enfim todosos meios pela massa mídia que existe hoje no mundo inteiro eque está alienando completamente a personalidade humana.

Elaboração de Uma Obra:

“Em geral, eu faço planos interiormente. Eu penso sobre aobra. Então o meu plano é interior e não exterior.Esquematização - eu raramente fiz isso na minha vida. Eupenso sobre a obra, depois vou escrevendo. A obra é elaboradainteriormente e não exteriormente. Raramente eu elaboro umaobra exteriormente, aliás não é nenhuma novidade, porquena história da música você vê compositores, como por exemploMozart que foi um compositor que nunca fez planos, elecompunha de cabo a rabo porque ele elaborava interiormente.Já Beethoven levava meses e meses elaborando, tomandonotas de temas, planejando e escrevendo planos. Diferentes,mas isso não altera em nada, a maneira como se faz não éimportante, é o resultado que é importante, mais que tudo.

Em arte é isso, e os serialistas fizeram o contrário: o importantenão era o resultado mas sim, a maneira como o sujeito fez e amaneira como é explicado. Então tem um rapaz que conhecípor volta de 1950 aqui na Europa que tinha feito uma peça.

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Como peça fora rejeitada, ele pegou a mesma peça e escreveucada grupo instrumental da orquestra em tintas diferentes.Então a obra foi aceita e tocada.

Quer dizer isso mostra o critério dos musicólogos em geral.Não há mais critério, porque antigamente existiam parâmetrospré-estabelecidos. Então quando você olhava e julgava umaobra você dizia: a forma está ruim porque está desequilibrada,tem isso, aquilo, mas hoje que há uma liberdade total, vocêpode apenas criticar a feitura da obra, dizer que ela não estásoando bem, porque está mau feita sob o ponto de vistaacústico. Ela não tem um segmento dinâmico, não tem umcontraste. Eu acho que o importante, o que dá forma à umaobra, o que estrutura uma obra é o contraste. É muitoimportante, seja lá que tipo de contraste se faça. Então ariqueza que o compositor tem hoje em dia pra trabalhar é muitogrande, porque ele tem os elementos de contrastes muitomaiores do que no passado.”

Emoção Versus Construção:

“Eu não posso falar em nome dos outros, posso falar por mimmesmo, do meu trabalho. Eu acho que em todo trabalho meu,seja lá o que for, eletrônicas e instrumentais, da harmonia queeu faço hoje, uma das linhas sempre fundamentais comigo é oproblema de você dizer alguma coisa sobre o ponto de vistaexpressivo, musicalmente. Não sair dos parâmetros da música,mesmo que você quiser ser agressivo. O equilíbrio para mim éa emoção, eu sou um cara principalmente emocional. Eu partoda emoção para a construção e não da construção para aemoção. A construção é para ajudar a arquitetar aqueleselementos que eu me proponho a dar. Se eu atinjo o meu

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objetivo ou não, isto é outro problema, mas eu procuro fazerdentro desse sentido.”

Experiências:

“Eu estou fazendo certos estudos principalmente comeletroacústica, que são mais fáceis de você fazer, mesmo nopiano. Coisas que eu fiz em 1941, o Quarteto n.1 por exemplo,já tem cluster, em que lá era uma coisa mais espontânea doque hoje que tenho a experiência e uso isso com umconhecimento da coisa em si, um métier.

Então eu cheguei a essa conclusão: quando você usa umacorde baseado em terças ou em quartas, você pode ser muitomais dissonante do que quando você usa um acorde ou umconjunto de sons, onde os sons de combinação se alteram ese eliminam entre si. Cheguei a essa conclusão. As ondassonoras, as vibrações sonoras de um conjunto de sons maisperto, como por exemplo as segundas menores, no fundo vãosoar mais consonantemente do que se você fizer um acorde.Eu faço sempre experiências com os alunos: fazemos umcluster e comparamos com um acorde depois. O cluster soamuito mais consonante.

Então eu mando cada um cantar - do, do#, re, re#, mi e fa.Parece um absurdo, mas você pega cada um cantando, ossons de combinação se eliminam e dão um outro timbreharmônico que parece um som só. Ele passa a não ser maisum acorde, mas sim um som novo muito mais consonante doque se você fizer um acorde- do, mi b, sol b, si, re e mi - quenão é um cluster, é um acorde. Soa muito mais dissonante,muito mais agressivo do que se você fizer este cluster.

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Eu cheguei a conclusão de uma eliminação acústica dos sonsde combinação. Eu não pude ainda provar isso acusticamente,por meio eletroacústicos poderia provar isso. Mas eu tenhoquase certeza que isso se dá, porque eu ouço isso. E sabe,a teoria em geral, vem a se confirmar depois de umaexperiência. Você cria um determinado elemento e depois vocêdá uma explicação. O mesmo na física, eu convivo muito comfísicos.

Se deu um fato muito engraçado, conversando sobre esseassunto com meu irmão, eu queria que ele testasse isso pramim através do computador, ou através de aparelhos ou comose pudesse testar isso, se realmente essas ondas erameliminados ou não. E através dessa minha idéia ele descobriuum negócio novo na física: eliminação das ondas. Ele telefonoupra mim e disse sobre as ondas que são eliminadas, dizendoque na física tem um programa que ele tinha a impressão deque também acontecia isso. Então ele fez os cálculos e acabouprovando que o negócio é assim mesmo. Já deve tambémoutras pessoas ter pensado nisso e ter falado sobre esseassunto, eu não sei, eu nunca ví outras pessoas falando sobreesse assunto. Mas então são novas densidades, não timbres,mas densidades sonoras que criam outros critérios nautilização dos sons.

Não sei se você reparou naquela minha peça InteraçõesAssintóticas, aqueles acordes finais, soam dissonantes? Nãosoam, soam quase como tonais, são clusters. Se vocêexaminar as notas que estão escritas parecem umabarbaridade, eles deveriam soar como uma dissonânciaincrível, e não acontece isso. Se tivesse alargado um poucomais os sons, iriam soar muito mais agressivo do que como

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eles estão escritos. Eu a compus 7 anos atrás (1969), e jánaquela época eu achava isso, aliás antes disso. Na minhaCantata também ficou confirmado isso. O coro não soaagressivo, é difícil buscar o que estão cantando mas pra quemestá ouvindo não soa agressivo, soa muito consonante. Maisconsonante do que uma obra minha como por exemplo a OitavaSinfonia.”

O Intérprete Como Recriador da Obra:

“Eu sempre fui assim, eu nunca fui um compositor queescreveu um negócio pra ser tocado exatamente como eleachava que devia ser. Eu sempre deixei o intérprete recriar aobra e dar alguma coisa dele. Eu sempre achei isso. E eu voudizer porque: eu fui as duas coisas, intérprete e compositor.Então eu dou um exemplo: a primeira tournè que eu fiz pelaEuropa, eu levei uma obra minha que se chamava 4ª Sinfoniacom coros e orquestra, chamada Sinfonia da Paz onde saí porvários países tocando. O primeiro país foi na Tchecolosváquia,em Praga, e gravei lá. Pedi que eles depois mandassem agravação para Viena, onde seria o fim da tournée, o qual iriaacabar só depois de 6 meses. Fiz mais ou menos uns 60concertos, toquei em outros lugares uma porção de vezes.Depois de 6 meses, eu cheguei em Viena e fui ouvir a gravaçãode que eu mesmo compus e interpretei, tomei um susto. Comoé que eu tinha interpretado a minha sinfonia daquela maneira,com aqueles tempos. O que prova, que mesmo compositor eintérprete, a obra só se cristaliza depois de várias execuçõesao se assumir um tempo.

Outro exemplo, eu tinha feito essa Interações Assintóticas ecalculei mais ou menos 2 segundos por compasso, deve dar

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mais ou menos 9 minutos. A obra dura quinze, na realidadeeu fiz agora e ví que não podia fazer de outra maneira, podeser que uma outra vez que eu veja, ou outro intérprete faça,seja um pouco menos ou um pouco mais. Bom mas isso éuma obra aleatória, mas a outra, a minha 4ª sinfonia, estátudo escrito, tempo escrito direitinho, tudo como manda ofigurino, como se diz, inclusive formalmente: forma bitemática.Então o problema não está na utilização do aleatório mas naprópria essência da interpretação musical.

Quem nos diz que Bach queria que interpretasse a 1ª invençãoa duas vozes nas diversas maneiras ouvidas pelos intérpretes.Não está marcado o tempo, não havia metrônomo. Então,existe uma certa lógica natural no tempo, a chamada tradição.Mas também é falso.”

Iracele Vera Lívero: É Mestre em Música (2003). Doutoranda (UNICAMP), sob a orientação daProfa. Dra. Maria Lúcia Pascoal, desenvolve pesquisa sobre a música pianística de Eunice Katunda.Integra o corpo docente da Faculdade de Artes de Dracena (SP). Tem trabalhos publicados no ISimposio de Cognição e Artes Musicais (UFPR) e no XV Congresso Nacional da ANPPOM(UFRJ), 2005.

e-mail: [email protected]

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RUMOS DA ANÁLISE MUSICAL NO BRASIL

Coordenadoras:Profa. Dra. Dorotéa Machado Kerr (UNESP)

Profa. Dra. Any Raquel Carvalho (UFRGS)[email protected]

Pesquisadores:Antenor Ferreira Correa,Rael Gimenez, Silvano Bai

Estudantes: Ana Lúcia Kobayashi, Cleyton Tomazela,Flávia da Silva, Luciana Sarmento,

Nathalia Domingos,Viviane Sarmento.

Resumo: Pesquisa do tipo “estado da arte”, de caráter bibliográfico, que objetiva realizar uminventário e uma avaliação crítica do “estado do conhecimento” na disciplina análise musical noBrasil. Seu objeto compreende produção acadêmica (teses, dissertações), livros e artigos. Divide-se em duas partes: um inventário de caráter descritivo, ou mapeamento, baseado em modelos deEngers (2000), Gatti (2001), Ferreira (2002); um estudo crítico e interpretativo que visa a elucidarde que forma e em que condições essa produção tem se dado, que aspectos e dimensões vêmsendo destacados em diferentes épocas e lugares, e compreender as grandes linhas que têmnorteado essa produção bibliográfica (Bardin, 1977). Buscar-se-á esclarecer como os modelosanalíticos surgiram e têm sido empregados, procurando entender seu contexto intelectual eideológico: valorização das grandes obras de arte musical ocidental como entidades autônomas,cuja compreensão esgota-se em si mesmas; valorização da idéia de unidade e organicidade;ênfase na noção de função, entre outros. Alguns estudos similares fornecerão fundamentos paraa presente pesquisa: Palisca, Bent, Whitall, Kerman. Após mais de vinte anos de cursos de pós-graduação em música no Brasil, parece ser oportuno fazer um balanço das pesquisas realizadasno domínio da análise musical para avaliar seu crescimento qualitativo/quantitativo e para mediros resultados dos trabalhos acadêmicos que permanecem, muitas vezes, desconhecidos dacomunidade científica que deveria avaliá-los, e principalmente da sociedade, sua principalbeneficiária.

Palavras-chave: Análise musical. Pesquisa em música. Estado da arte

Abstract: This state-of-the art research aims to present an inventory, as well as a critical evaluationof the “state of research” of musical analysis courses in Brazil through academic output (theses,dissertations, books and articles). The study will be divided into two parts: a descriptive inventorybased on models by Engers (2000), Gatti (2001), Ferreira (2002), and a critical and interpretativeinvestigation which aims to discover how and under what conditions this output is accomplished,

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which aspects and dimensions are important depending on different places and times, and tounderstand the main lines of thought that have affected the bibliographic output. It also intends toclarify how analytical models originated and how they have been employed through the understandingof their intellectual and ideological contexts. Studies such as those by Paslica, Bent, Whitall, andKerman will serve as the foundation. After twenty years of Graduate Programs in Music in Brazil,the time has come to undergo a study of what has been researched to this day in the domain ofmusical analysis, to evaluate its qualitative/quantitative growth, and to measure the results ofacademic investigations that, for much of the time, remain unknown to the scientific community(which should evaluate it), and mainly to society, its primary beneficiary.Musical analysis, research in music, state of art

Keywords: Musical Analysis. Research in music. State-of-the art.

análise musical é um dos domínios da música que maisse desenvolveu no século XX, consolidando-se comodisciplina em cursos de conservatórios e de graduação

e como subárea de pesquisa nos programas de pós-graduação.Entendida como a única via para chegar-se ao conhecimentoda estrutura e funcionamento de uma obra musical, por meioda investigação de seus elementos constitutivos e da funçãoque exercem nessa estrutura, a análise musical parecer ter seconstituído como uma atividade intelectual musical em simesma, sem ligações e contribuições para a avaliação estéticade uma obra e, até mesmo, desvinculada do ensino dacomposição. Seu florescimento, a partir da segunda metadedo século XX, tem sido relacionado à necessidade de mais“cientificidade” na pesquisa musical, exigida nos meiosacadêmicos por pesquisadores de outras áreas. Assim, nosEstados Unidos doutorado em composição (Ph.D.) caracteriza-se, desde a década de 1960, por envolver um trabalho analítico(a dissertação) sobre a composição musical elaborada pelocandidato; na área da performance, com o DM, foi criada aforma dissertação-memorial, na qual se analisa uma peçamusical que será interpretada em concerto, esperando-se queessa análise contribua para a execução musical. Esses

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modelos também foram absorvidos no Brasil e constituem-se,hoje, prática comum nos Programas de Pós-graduação.

Diante dessa situação, parece pertinente, após mais de 20anos de programas de pós-graduação, perguntar-se: quais oscaminhos tomados pela análise musical no Brasil? Qual opanorama da produção científica nessa área? Quais são suastendências e propósitos hoje?

Para respondê-las, propõe-se realizar uma pesquisa do tipo“estado da arte”, de caráter bibliográfico, que tem por objetivosapresentar um inventário da produção acadêmica da subáreaanálise musical e elucidar de que forma e em que condiçõesessa produção tem se dado. Pesquisas dessa natureza têmsido realizadas no Brasil, nos últimos quinze anos, em váriasáreas de conhecimento, principalmente na Educação, da qualalguns modelos balizaram este projeto. Esse inventário será,inicialmente, de caráter descritivo, ou mapeamento; no segundomomento, de caráter analítico e interpretativo, procurar-se-áresponder as questões levantadas a partir daquele trabalhoinicial, buscando destacar que aspectos e dimensões vêmsendo privilegiados em diferentes épocas e lugares, de modoa permitir o levantamento e o estudo das grandes linhas quetêm norteado a produção bibliográfica nessa área (FERREIRA,2002, p. 258).

Passadas duas décadas da implantação de programas de pós-graduação em música no Brasil – surgidos no início dos anos1980 no Conservatório Brasileiro de Música (CBM) e na Escolade Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro - faz-senecessário um balanço dos estudos, textos e pesquisasrealizadas de modo a permitir a avaliação de seu crescimento

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qualitativo e quantitativo e mensuração de seus resultados.Essa necessidade torna-se mais premente quando a produçãooriunda dos programas de pós-graduação mantém-se não sódistante e desconhecida da sociedade que a financia, e quedela deveria beneficiar-se, mas também, muitas vezes, daprópria comunidade acadêmica, que deveria avaliá-la.Pesquisas estado da arte permitem indicar os temas maiscontemplados, evitando assim repetição, e conhecer asdiferentes perspectivas, abordagens e metodologiasempregadas. Em suma, visam à elaboração de uma revisãocrítica da produção de uma determinada área. Soares (1987,p. 3) entende que pesquisas sobre estado do conhecimentosão importantes e necessárias ao processo de evolução doconhecimento, porque ao ordenar-se o conjunto de informaçõese resultados já obtidos pode-se também identificar duplicações,repetições de temas, contradições, indicar possibilidades deintegração de perspectivas diferentes e determinar lacunas evieses.

À primeira vista, essa produção parece caracterizar-se porassumir um enfoque predominantemente descritivo, comumprincipalmente à subárea de práticas interpretativas ouperformance. Assim, muitas dissertações apresentam à guisade análise uma descrição da obra a ser executada, ao lado decapítulos destinados à biografia e ao “contexto”; carecendo,entretanto, de uma ligação mais estreita com a interpretaçãomusical, conforme apontado nas observações críticas a essemodelo feitas, entre outros, por Duprat (1996) e Gerschfeld(1996). A avaliação ora proposta poderá contribuir para verificara pertinência desse modelo aplicado às Práticas Interpretativas.Para além do domínio específico dessa subárea, este estudopoderá, também, contribuir para o entendimento de alguns

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problemas da pesquisa na grande área da música no Brasil.

O modelo para o inventário inicial baseia-se nos estudos deRichardson (1989); Souza (1990); Carvalho (2000) e Ferreira(2002). Esses textos indicam formas para realização domapeamento e, a partir desses modelos, que se inter-relacionam e se completam, o grupo elaborou um plano própriopara atingir aos propósitos deste trabalho. Serão analisadasas condições institucionais em que ocorreram as pesquisas,os métodos analíticos mais empregados, a vinculação comoutras subáreas, as derivações e continuidades dessestrabalhos, o impacto na disciplina análise musical, o espaçodestinado à análise em trabalhos performáticos, os tipos deprojetos privilegiados na concessão de bolsas, as novasabordagens interpretativas propostas em decorrência daanálise realizada (sobretudo em trabalhos de performance), ovínculo entre composição e ferramentas analíticas, aquantidade de trabalhos em cada instituição de ensino, entreoutros.

Os objetos desta pesquisa são: a) dissertações acadêmicasproduzidas em universidades em cursos de pós-graduação,como requisitos para obtenção de títulos de mestre e doutor;b) dissertações ou teses produzidas como requisitos àascensão na carreira docente (concursos de livre-docência,titular); c) livros e artigos resultantes de pesquisas acadêmicas,de caráter investigativo; d) livros didáticos existentes nomercado e utilizados nos cursos de graduação.

A delimitação temporal procede da abertura dos primeirosprogramas de Pós-graduação em Música e de suas primeirasproduções até o presente momento. Para elaboração da

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descrição ou mapeamento inicial, o levantamento do materialserá o mais completo possível; a análise de conteúdo seráfeita por amostragem.

A pesquisa será desenvolvida em duas fases: a) contato dospesquisadores com a produção acadêmica, que irá gerar olevantamento do material, quantificação e identificação dedados bibliográficos e elaboração do mapeamento no períododelimitado. A coleta de dados acontecerá em diferentes fontes:trabalhos integrais; resumos publicados em anais e catálogos;comunicações em congressos. A partir da coleta será elaboradadescrição, levantamento quantitativo e estudo das condiçõesinstitucionais da produção acadêmica, segundo regiões eperíodos de tempo, categorização por tópicos mais abordadose composição temática; b) estudo crítico e interpretativo,baseado em análise de conteúdo (Bardin, 1997), visará paraelucidar de que forma e em que condições essa produçãoocorre, que aspectos e dimensões têm sido privilegiados emdiferentes momentos e lugares e que linhas tem norteado essaprodução bibliográfica. Buscaremos esclarecer como algunsconceitos analíticos surgiram e o contexto intelectual eideológico no qual foram empregados: valorização das grandesobras de arte ocidental como entidades autônomas, cujacompreensão esgota-se em si mesmas; valorização da idéiade unidade e organicidade; ênfase na noção de função, entreoutros. A partir da descrição será possível elaborar umanarrativa histórica dessa produção, narrativa que abordará osmomentos de implantação e de amadurecimento dosprogramas de pós-graduação de forma geral e, em particular,daqueles nos quais as dissertações foram produzidas; apontaros períodos em que as pesquisas cresceram, suaconconmitância ou discrepância com modelos analíticos em

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voga no exterior, locais de produção e agentes nelasenvolvidos. Nesse segundo momento da pesquisaprocuraremos identificar tendências, ênfases, escolhasmetodológicas e teóricas, aproximando ou diferenciandotrabalhos entre si, levantando lacunas e deficiências.

No panorama internacional, alguns estudos similares fornecemfundamentos para a presente pesquisa: Palisca (1982), comsua revisão da musicologia até 1980 e no seu verbete sobreteoria musical no dicionário Grove, fornece um indicativo domomento e razões da fusão ocorrida entre as disciplinas Teoriae Análise Musical, e, a partir da noção de que a primeira é o“estudo das estruturas da música” (1980, p. 741), elabora umavisão diacrônica da teoria baseada nas grandes obras dosgrandes nomes (Whithall, na Inglaterra, realizou uma revisãosimilar); Bent (1980) propõe a noção de análise das estruturasmusicais como estudo do funcionamento dos elementosconstitutivos dessas estruturas (estrutura em um amplo sentido:uma parte ou uma obra musical completa, ou um conjunto deobras da tradição escrita e oral); menciona, ainda, algumasdas correntes que considera mais fortes, como a análise tonalde Schenker, o tematismo de Réti, a estratificação de Cone, oreferencialismo de Meyer, o transformacionismo de GeorgePerle; Kerman (1985) com seu criticismo, cobrou dos analistasum uso da análise musical como ferramenta e recursofundamental para a avaliação crítica e estética.

No plano interno, alguns autores têm chamado a atenção paraa necessidade de integração entre análise e interpretaçãomusical (Laboissière, 1998; Faria, 2001; Aquino, 2003); Duprat(1996) enfatizou o declínio da análise musical, observado nosEstados Unidos, e comparou-o com o tardio prestígio que essa

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subárea tem conquistado no Brasil, ao mesmo tempopreconizou um método integrativo para todos os tipos deanálise. Fora do domínio da música erudita, Ulhoa (2001)procura eleger certas categorias de análise passíveis de seremaplicadas à música popular.

Esperamos com essa pesquisa elaborar uma história daprodução acadêmica em análise musical no Brasil (queidentifique e avalie as escolhas metodológicas e teóricas) eum estudo sobre as tendências atuais nessa subárea.

Referências bibliográficas:

AQUINO, Felipe Avellar de. Práticas Interpretativas e a Pesquisa em Música: dilemas e propostas.Opus, Campinas, nº. 9, 103-112, dezembro 2003.BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.BARRENECHEA, Lucia. Pesquisa no Brasil: balanço e perspectivas. Opus, Campinas, nº. 9,113-118, dezembro 2003.BÉHAGUE, Gerard. Para uma emancipação da pesquisa em música no Brasil. In: IX EncontroAnual da ANPPOM. 1996, Rio de Janeiro, p. 21-26.BENT, Ian D. “Analysis”. In: SADIE, Stanley (org.) The New Grove Dictionary of Music andMusicians. Londres: Macmillan, 1980, p. 340-388.DUNSBY, Jonathan e WHITTALL, Arnold. Music Analysis in Theory and Practice. Londres: FaberMusic, 1988.DUPRAT, Regis. Análise, Musicologia e Positivismo. Revista Música, São Paulo, v. 7, nº. 1/2, p.47-58, maio/novembro 1996.ENGERS, Maria Emilia. A pesquisa no contexto da universidade. Educação Brasileira, Brasília,nº. 44, p. 131-154.FERREIRA, Norma de Almeida. As pesquisas denominadas “estado da arte”. Educação eSociedade, Campinas, nº. 79, 257-272.GATTI, Bernadete. Pós-graduação e pesquisa em educação no Brasil. Cadernos de Pesquisa,São Paulo, n°. 44, p. 3-17, fevereiro1983.GERSCHFELD, Marcelo. Pesquisa em Práticas interpretativas: situação atual. In: IX EncontroAnual da ANPPOM. 1996, Rio de Janeiro, p. 60-66.HOLOMAN, D. Kern e PALISCA, Claude V. Musicology in the 1980s – methods, goals,opportunities. New York: Ca Capa Press, 1982.KERMAN, Joseph. Musicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1987.LABOISSIÈRE, Marília. Interpretação Musical, um olhar além do texto - um estudo das relaçõesentre a obra e o intérprete.In: XI Encontro Nacional da ANPPOM, 1998, Campinas. Anais,Campinas: Instituto de Artes da Unicamp, 1998, p. 310-314.ULHOA, Martha Tupinambá. Pertinência e Música Popular – em busca de categorias para análiseda música brasileira popular. Cadernos do Colóquio. Rio de Janeiro, p. 50-61, dezembro 2001.

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331

ANÁLISE MUSICAL: TEORIA E PRÁTICA

Coordenação: Amilcar [email protected]

Relator: Antenor [email protected]

grupo de trabalho Análise Musical: teoria e prática, embora

organizado por músicos ligados à Universidade de São

Paulo (Amilcar Zani, Rogério Costa e Antenor Ferreira),

foi constituído por profissionais atuantes nas mais variadas

instituições de ensino superior do Brasil, como UFRJ, USP,

UNICAMP, UNIRIO, UFG, UFMG, entre outras, de modo a

permitir uma comparação entre as diversas grades curriculares

aplicadas nessas escolas. Teve como objetivo refletir sobre a

análise musical abordada por suas várias vias de atuação,

quais sejam: ferramenta composicional, auxiliar da

performance, fundamentação de juízo estético e enquanto

disciplina dos cursos de música.

O mote impulsionador e conseqüente justificativa para a

proposição desse grupo foi o entendimento de que a análise

musical é um dos domínios da música que mais se desenvolveu

no século XX, principalmente a partir da segunda metade do

século, época em que se consolidou efetivamente como

subárea de pesquisa nos programas de pós-graduação, em

razão da exigência nos meios acadêmicos de conferir maior

“cientificidade” à pesquisa musical. Entendida como a única

O

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332

via para se chegar ao conhecimento da estrutura e

funcionamento de uma obra musical, por meio da investigação

de seus elementos constitutivos e da função que exercem

nessa estrutura, a análise musical parece ter se constituído

como uma atividade intelectual em si mesma. Em vista disso,

algumas questões podem ser levantadas: de que maneira, hoje,

a disciplina análise musical reflete essa situação descrita e

que caminhos oferece para viabilizar sua aplicabilidade

prática? Tendo a universidade tornado-se reduto dos

compositores de vanguarda, de que maneira a análise musical

é empregada como ferramenta composicional? Qual

porcentagem do conteúdo curricular deve ser destinada ao

estudo da música pós-tonal? Com o intuito de debruçar-se

sobre essas e outras problemáticas intrínsecas à análise

musical, grupo foi formado, optando-se por organizar os

trabalhos em duas partes: realização de pequenas

conferências e subsequente formação de mesa de discussões,

fases essas detalhadas a seguir.

Na primeira parte dos trabalhos, os professores trataram, em

suas conferências, da análise musical segundo suas

especialidades, levantando reflexões de ordem geral e pontual

com o intuito de fornecer material para as discussões

posteriores.

A Profª. Drª. Maria Lúcia Pascoal (UNICAMP) iniciou a seção

traçando um panorama dos procedimentos técnico-

composicionais e dos elementos musicais presentes no

repertório pós-tonal (primeira metade do século vinte),

enfatizando as possibilidades analíticas que cada obra

comporta. Mostrou principalmente as diferenças entre os

termos usados nas análises da música tonal comparados aos

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333

da pós-tonal, nas considerações de Sephan Kostka e Joseph

Straus.

Na abordagem específica da análise da música eletroacústica,

o Prof. Dr. Rodolfo Caesar (UFRJ) tratou dos parâmetros postos

em jogo no discurso musical eletroacústico e a possibilidade

de fornecerem subsídios para embasar a análise. Discorreu,

também, sobre as tendências para criação de analogias verbais

e imagéticas em correspondência aos estímulos sonoros

(principalmente texturais) provenientes da composição.

Analogias estas que remontam à classificação tipo-morfológica

de Pierre Schaeffer e encontram desdobramentos recentes

na noção de trans-sensorialidade de Michael Chion (que

defende a não homogeneidade dos sentidos) e na

espectromorfologia de Dennis Smalley.

Com relação ao trabalho mais imediato do compositor, a Profª.

Drª. Marisa Rezende (UFRJ) abordou a existência da análise

em curso, isto é, aquela ocorrente durante o trabalho de

composição. Assim, concomitante à existência prévia de um

projeto formal para a obra, o compositor atuaria como o analista

de seu próprio método, promovendo uma racionalização em

processo. Essa racionalização mediadora favorece o olhar

crítico retrospectivo sobre o que se compõe.

A Profª. Drª. Denise Garcia (UNICAMP) ateve-se sobre a

importância da teorização no cerne de uma atividade

primordialmente prática que é a música (quer seja da prática

composicional ou da performance) e a atuação da análise no

interior desse processo de teorização. Ao lado da função que

desempenha nos sistemas de ensino, a teoria tem o

significativo papel de atualizar o pensar musical, pois a reflexão

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334

teórica atualiza os materiais usados na consecução do

pensamento musical. Ao permear esse processo, a análise

foca os pontos de embate do compositor e toma parte nas

discussões estéticas agindo (nos dizeres de Dahlhaus) como

balizadora nos julgamentos de valor.

Aspectos ligados à interpretação musical forma tratados pela

Profª. Drª. Sonia Ray (UFG). Ao postular a responsabilidade

do intérprete na execução consciente do repertório, a análise

firma-se como uma ferramenta essencial dentro do percurso

de aprendizado que vai do entendimento da obra até sua

posterior apresentação. De igual importância são os conteúdos

abordados nas publicações científicas na área da performance

musical. A professora salientou que tópicos como ensino

instrumental, escrita idiomática, técnica estendida, associação

com outras áreas do conhecimento (psicologia e

neurolingüística, por exemplo), merecem ser melhor

considerados pelos periódicos dedicados a esse campo de

pesquisa.

Na segunda parte dos trabalhos do grupo, foi formada uma

mesa de debates composta pelos Professores Doutores

Amilcar Zani (USP), Carole Goubernikoff (UNIRIO), Rogério

Costa (USP) e Marcos Lacerda (USP). As discussões foram

como que desdobramentos das reflexões apresentadas

anteriormente nas conferências. De modo geral, centrou-se

foco sobre problemas concernentes ao ensino da análise

musical. Enquanto disciplina nos curso de graduação, a análise

musical possui uma tradição na abordagem do repertório.

Entretanto, face à natureza dinâmica da atividade artística e

às atuais querelas sobre reforma universitária e flexibilização

curricular, torna-se premente indagar sobre o que deve ser

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335

feito com a disciplina “análise musical”. A análise musical é

sem dúvida uma ferramenta de aprendizagem, de aquisição

de conhecimento e de construção de um domínio da linguagem

musical. Entende-se que os métodos analíticos tradicionais

não caíram em desuso e propiciam importantes ilações,

inclusive, sobre a música contemporânea. Todavia, a vasta

gama de procedimentos composicionais pós-tonais implicaria

no repensar do ensino da análise musical e também das

disciplinas correlatas, como harmonia e contraponto. Essa

revisão poderia, por exemplo, centrar-se no tratamento do

conceito implícito nas propostas pedagógicas que cada

disciplina comporta; desse modo, dever-se-ia refletir sobre

aquilo que se entende contemporaneamente por contraponto

e harmonia, bem como, sobre o propósito de cada uma dessas

disciplinas na estrutura curricular atual. A ampla gama de

procedimentos composicionais abarcados pela análise musical

faz considerar também a carga horária destinada a essa

disciplina e, no interior desta, a porcentagem de tempo

destinada ao estudo e análise do repertório da música do

século vinte.

Em vista das reflexões apresentadas, considera-se necessário

que haja maior integração entre a análise musical e as outras

disciplinas teórico-práticas constantes dos cursos de música,

uma certa disposição mais holística do processo de

aprendizagem. Esse intercâmbio certamente trará bons frutos

ao sistema de ensino musical. Seria também bem vinda uma

revisão das abordagens e enfoques destinados aos diversos

tópicos contemplados pela disciplina análise musical, bem

como do tempo destinado à apreciação desses tópicos.

Page 336: OPUS 11 Full

336

D

ETNOMUSICOLOGIA & POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A

ÁREA DA CULTURA

Organizadores: Profª Drª Maria Elizabeth Lucas, (UFRGS)[email protected]

Prof. Dr. Samuel Araújo, (UFRJ) [email protected]

Prof. Dr. Carlos Sandroni, (UFPe)[email protected]

ada a trajetória histórica da Etnomusicologia firmada como

campo de estudos e de reflexão sobre a diversidade

musical e levando-se em consideração o projeto em

trâmite de reforma universitária, bem como o conjunto de

medidas em andamento no âmbito do Ministério da Cultura

(doravante referido como MinC) visando mais ampla e efetiva

participação da sociedade civil em instâncias de elaboração

de políticas públicas para a cultura, esse GT propõe congregar

os pesquisadores dessa subárea para discutir estratégias de

uso comum e ação coletiva.

Em meio a crescentes desafios à cidadania, à memória e à

diversidade, são colocados como eixo de políticas públicas o

reconhecimento e a promoção da cidadania, da

responsabilidade social, da idéia de patrimônio e da

diversidade sócio-cultural, destacando-se em seu bojo o

compromisso com dívidas históricas com as populações

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337

indígena e afro-descendente. Nesse quadro, sugeriu-se ao GT,

como base de uma pauta de discussões, a retomada de

posicionamentos históricos da Etnomusicologia em torno de

tópicos como:

- as políticas relativas à pesquisa e pós-graduação para a

área de música face ao conjunto de ações afirmativas

(dentre elas, cotas raciais e sociais) embutidas na reforma

universitária em gestação;

- o papel e a composição de Câmaras Setoriais (entre elas,

as de Música e de Culturas Populares e Indígenas) no

âmbito do MinC, abertas à participação da sociedade civil,

- políticas de patrimônio material e imaterial;

- financiamento nas áreas de educação e cultura;

- iniciativas de pesquisa aplicada, articulando o

conhecimento universitário com os anseios da sociedade

em geral;

- impacto da produção de conhecimento na área de

etnomusicologia na formação de graduados em música e

em cursos de extensão universitária;

- articulações entre universidade, iniciativas não-

governamentais e movimentos sociais por parte de

etnomusicólogos

A atividade do GT foi iniciada às 14:30, na sala 210 da Faculdade

de Administração, no prédio do Fórum de Ciência e Cultura da

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338

UFRJ, contando com a presença de 22 participantes (ver lista

abaixo), conforme lista anexa. Samuel Araújo (UFRJ) abriu a

sessão em nome dos organizadores, propondo a concessão

inicial da palavra aos participantes pré-inscritos por meio de

envio eletrônico de resumos de suas respectivas intervenções,

assegurando-se a cada um deles um teto de 10 minutos. Após

essa primeira etapa, a palavra foi aberta a todos os presentes,

mediante ordem de inscrição.

Aprovada a sugestão de encaminhamento da sessão, foi

passada a palavra a Manuel Veiga (UFBa), que, após repassar

à mesa documento elaborado pelo Grupo Oito (compositor

Fernando Cerqueira, educador Sérgio Emmanoel,

etnomusicólogo Manuel Veiga e musicóloga Maria da Conceição

Perrone), da Bahia, acerca das linhas mestras da atual política

cultural do MinC, teceu breves considerações iniciais sobre

alguns dos tópicos acima propostos, acrescentando dois outros

que advém de suas próprias iniciativas mais recentes no campo

da pesquisa. Sobre as políticas do Ministério manifestou

preocupação com o espaço amplo ocupado por produtores

culturais (na acepção econômica do termo) e advogados, em

detrimento daquele ocupado por músicos e musicólogos. Sobre

a reforma universitária e o espaço que pode ser ocupado pela

etnomusicologia foi mais otimista, como também o foi em relação

à intensificação de trabalhos na direção da pesquisa aplicada.

Acrescentou ainda o prof. Veiga que vem trabalhando

recentemente em duas direções de pesquisa—implicações

recíprocas entre música e ecologia, e música em processos de

cura ou atenuação da dor—que não aparecem em formulações

de políticas culturais. Por fim, alertou para o perigo de que, sob

o pretexto de superação do laissez-faire como base das ações

de Estado na área da cultura, possa advir o extremo oposto, ou

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339

uma exacerbação do papel de considerações de ordem

econômica, lembrando concepções já ultrapassadas de relação

entre cultura e desenvolvimento econômico.

Colocando em foco o acervo fonográfico do NUPPO/UFPb, Alice

Lumi (UFPB) destacou em seguida a dificuldade de recuperação

e manutenção dos acervos de música de tradição oral

constituídos a partir da perspectiva folclorística, em que pese o

impacto positivo de aportes etnomusicológicos sobre a

formulação de projetos de revitalização de acervos.

Com base em sua experiência de pesquisa e observação de

projetos sociais que utilizam a música como suporte fundamental,

Marianne Zeh (UFRJ/Faperj) notou que a sociedade está

exigindo dos pesquisadores novos modelos de relacionamento,

que explicitem o possível retorno de resultados de pesquisa à

própria sociedade. Citou como exemplos, ajudar a comunidade

a lidar com problemas que podem ser devastadores, como a

falta de dinheiro, a perda repentina de membros de grupos

musicais, disputas internas, a abertura dos grupos a membros

“externos” ao núcleo original de pertencimento, ou ainda a

espetacularização como estratégia de sobrevivência das

manifestações culturais. Ao final, sugeriu a formulação de

políticas públicas que contemplem: a- não apenas o período de

pesquisa com objetivos definidos, mas também o que chamou

de pós-pesquisa, ou relações mais prolongadas entre

pesquisadores e pesquisados; b- o papel do nativo no processo

de pesquisa; c- o papel do nativo na divulgação dos resultados.

Júlia Tygel (UNICAMP) ressaltou a emergência de trabalhos

recentes em etnomusicologia aplicada em Cachoeira, BA, entre

os Timbira do Maranhão, e na comunidade da Maré, no Rio de

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340

Janeiro, como exemplos de promissora integração entre

pesquisa acadêmica e intervenção social, comentando, porém,

a dificuldade ainda existente no meio acadêmico de

reconhecimento desse tipo de empreendimento como atividade

de pesquisa e extensão..

Fernanda Cheferrino (UFRJ) colocou em discussão os

processos de inventário e registro de patrimônio imaterial, no

bojo das políticas de patrimônio em curso no IPHAN/MinC, a

seu ver, ainda excessivamente centralizadas e pouco

discutidas com as próprias comunidades envolvidas, em que

pese os objetivos de inclusão social e salvaguarda de

manifestações culturais professados nos documentos relativos

a tais políticas.

Passada a palavra ao plenário, José Augusto Mannis

(UNICAMP) manifestou seu estarrecimento diante do

orçamento anual do MinC, algo em torno de 507 milhões de

reais, que equivaleria, segundo ele, ao orçamento médio de

uma única universidade. Sua intervenção teve como eixos

norteadores a importância do uso de indicadores como

ferramentas de formulação de políticas e a inexistência de uma

política propriamente dita num setor em que predominam

processos de licitação de formulação vaga, quase sempre

controlados pelo marketing cultural. Ressaltou ainda que o

papel do MinC deveria ser “cuidar das minorias”. Concluindo,

sugeriu que uma política efetiva deveria contemplar programas

permanentes dirigidos: a- ao compartilhamento e

disponibilização de informação; b- ao apoio a registros

culturais; c- às relações entre música e ecologia, estimulando

a cooperação interdisciplinar; d- a estudos da economia da

cultura, incluindo uma equação sólida de qual seria o PIB da

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341

música no Brasil; e- a uma política de revitalização e

manutenção de acervos por vias alternativas aos programas

de fomento que não contemplam tais ações; f- à promoção da

cultura popular em seus aspectos ritualísticos, em

contraposição à ênfase atual em “produtos populares”; g – à

adoção das recomendações da Unesco relativas ao patrimônio;

h- à adoção de sistema de submissão de projetos em fluxo

contínuo avaliados por comissões de pares com base em

indicadores.

Egeu Laus (Rede Social da Música, fórum que congrega cerca

de 50 ONGs que utilizam a música como suporte de ações

pela transformação social) manifestou sua concordância

integral com Mannis, enfatizando que a disseminação de

informação tem sido uma das preocupações centrais da

organização que coordena, ação para a qual solicitou mais

apoio das universidades em geral. Lembrou que está

tramitando no Congresso a PEC 150/03, que vincula 2% dos

impostos arrecadados pela União ao financiamento de projetos

na área de cultura. Desse montante, 1,5% seria proveniente

da arrecadação estadual, e o 1% restante viria dos tributos

municipais. Estima-se que a vinculação desses recursos

destinaria R$ 1,75 bilhão aos projetos culturais do País, cinco

vezes superior a todo o orçamento do Ministério da Cultura

para este ano. A admissibilidade da PEC está sendo examinada

pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, onde

foi designada relatora a deputada Sandra Rosado (PSB-RN).

Se aprovado, o texto será encaminhado ao exame de uma

comissão especial de deputados e, em seguida, à votação em

dois turnos no Plenário.

Manuel Veiga retomou sua advertência para que não se

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342

confunda “planejamento cultural” com concepções de

planejamento econômico, que podem vir a instrumentalizar a

cultura. Alertou também para a prevalência da lógica de

mercado no fomento, estatal ou não, às artes.

Problematizando a visão mais crítica em relação às políticas

de patrimônio do IPHAN/MinC, colocada anteriormente por

Fernanda Cheferrino, Carlos Sandroni (UFPE), apoiado em

sua experiência positiva com o órgão no caso do inventário e

registro do samba-de-roda do Recôncavo Baiano, manifestou

sua convicção de que, em que pese as dificuldades estruturais

do órgão em questão, há boa vontade por parte dos gestores

do mesmo, muitos deles também provenientes da área

acadêmica, em acatar as críticas dos pesquisadores. Estes,

segundo ele, muitas vezes não se encontram preparados para

lidar com discussões no espaço extra-acadêmico, onde o que

está em jogo—aspirações e tensões sociais—vai além dos

objetivos estritos de um trabalho acadêmico convencional.

Citou ainda o caso do registro da arte gráfica Wayãpi como

exemplo inequivocamente bem-sucedido de melhoria das

condições de vida dos grupos implicados.

Flávia Toni (USP) propôs inicialmente a debate a importância

de se repensar hoje o projeto original do Instituto de Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, de autoria de Mário de Andrade,

marcado pelo espírito do tempo de transformação social em

que viveu e direcionado, assim, para o registro de algo que é

volátil, sem preocupação com a preservação em si. Segundo

ela, o referido projeto sofreu considerável distorção sob as

gerações que sucederam o eminente intelectual paulista, que

consagraram a idéia de “congelamento das tradições”. Por fim,

sugeriu que a descentralização de ações, incentivando

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343

iniciativas locais (por exemplo ONGs) parece uma política muito

mais adequada à atualidade.

Edilberto Fonseca (UNIRIO) reviu brevemente, a partir de sua

experiência em órgão de gestão de inventários e registro de

patrimônio imaterial, o que considera inconsistências de

formulação do programa, agência limitada dos grupos

implicados e dificuldades estruturais de implementação das

políticas em curso (por exemplo, falta de pessoal e plano de

carreira). Sugeriu ainda, após rápido intervalo para o café,

que não vê necessidade das políticas de salvaguarda

sucederem cronologicamente a pesquisa, indicando como

alternativa a disseminação de Pontos de Cultura, outro

programa do MinC que, embora não subordinado ao IPHAN,

poderia assegurar a auto-sustentabilidade das manifestações

em paralelo ao desenvolvimento de pesquisa pelos próprios

grupos.

Levando em consideração a necessidade de se levar propostas

concretas à Assembléia Geral da ANPPOM, Elizabeth Lucas

(UFRGS) propôs que o GT submetesse à votação no referido

fórum uma moção de endosso à PEC 150/03, não olvidando a

menção a medidas visando maior transparência na aplicação

dos recursos, como forma de impedir o clientelismo ainda

predominante no fomento à cultura. Indicou ainda a

oportunidade de menção no mesmo documento à inclusão de

tópicos relacionados às políticas culturais na formação de

graduandos e pós-graduandos da área de música.

Carlos Sandroni ressaltou que as políticas públicas devem

se tornar tema prioritário de entidades como a ANPPOM e a

Associação Brasileira de Etnomusicologia – ABET, voltando a

lembrar que não se tome os órgãos de gestão a priori como

Page 344: OPUS 11 Full

344

antagônicos ao pensamento crítico gerado na academia,

voltando a citar sua experiência com o IPHAN/MinC como

exemplo.

Luís Ricardo Queiroz (UFPB) manifestou sua preocupação com

o imobilismo da lista eletrônica sobre políticas públicas da

ABET e sugeriu que houvesse destinação específica de parte

do percentual de 2% pleiteado pela PEC 150/03 ás tradições

orais fora do circuito comercial.

Samuel Araújo endossou a proposta de Carlos Sandroni de

intervenção mais incisiva das entidades da área acadêmica

junto às instâncias de formulação de políticas públicas,

lembrando que a Associação Brasileira de Educação Musical

(ABEM) foi a única entre suas congêneres a participar de forma

organizada da recente construção da Câmara Setorial de

Música, órgão consultivo recém-implantado pelo MinC.

Ressaltou ainda a oportunidade de ter as políticas públicas

como um dos eixos temáticos do encontro nacional da ABET

no próximo ano.

O GT encerrou suas atividades pontualmente às 18 hrs., sendo

responsável por esse relato Samuel Araújo.

Rio de Janeiro, 19 de julho de 2005

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345

EFEMÉRIDES E AÇÃO MUSICOLÓGICA NO BRASIL

Coordenadores: Prof. Dr. André Guerra Cotta (UFMG)[email protected]

Prof. Dr. Pablo Sotuyo Blanco (UFBA)[email protected]

urante o XIV Congresso da ANPPOM, em agosto de 2003,realizou-se um GT em Musicologia Histórica cujo temacentral foi o Centenário de nascimento do musicólogo

teuto-uruguaio Francisco Curt Lange (Eilenburg, 1903 –Montevidéu, 1997) e as perspectivas para a musicologiahistórica brasileira. O GT representou importante oportunidadede intercâmbio de informação e de reflexão coletiva sobre oexercício da musicologia no Brasil e na América Latina noséculo XX, tendo como resultado a criação de uma lista dediscussão – a Lista-Musicologia Histórica Brasileira (L-MHB,em <http://br.groups.yahoo.com/group/l-mhb/>).

A proposta deste GT foi dar continuidade às discussões eestimular uma maior participação na L-MHB, porém, ajustandoo foco para a prática musicológica de hoje, não apenas peloaumento das iniciativas de tratamento de acervos e de ediçãode obras de autores brasileiros dos séculos XVIII a XX, mastambém pela iminente ocorrência de efemérides importantespara a história da música no Brasil: o bicentenário de

D

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346

falecimento do compositor mineiro José Joaquim Emerico Lobode Mesquita – (Serro, 1746? – Rio de Janeiro, 1805) e osesquicentenário de falecimento dos compositores baianosDamião Barbosa de Araújo (Itaparica, 1778 – Salvador, 1856)e Domingos da Rocha Mussurunga (Salvador, 1807-1856), oque torna maior ainda a necessidade de aprofundar a reflexãosobre as metas e diretrizes que devem orientar a açãomusicológica no Brasil do século XXI (entendendo aqui poração musicológica o conjunto das várias iniciativas ligadas aopatrimônio musical brasileiro, tanto no âmbito acadêmico, comono plano da ação cultural ligada a agentes públicos e privados).

Este GT teve, portanto, como objetivo fundamental conduzirreflexão coletiva sobre o papel da musicologia históricabrasileira com relação aos marcos da história da cultura destepaís, procurando discutir as diretrizes e princípios(metodológicos, éticos e profissionais) que devem orientar asações nos planos científico e social, procurando detectar asnecessidades e conteúdos da ação musicológica no Brasil,nas interfaces acadêmicas e sociais envolvidas, a partir dealguns tópicos e sub-tópicos propostos preliminarmente, apartir dos quais a discussão se iniciou, primeiramente ao redordos problemas que toda homenagem apresenta para umamusicologia reflexiva e autocrítica.

Entre os pontos abordados, destacam-se os relativos àdefinição ocupacional do musicólogo histórico, na TabelaBrasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho, aosproblemas associativos de classe, assim como aos limites erelações éticos profissionais dentro da classe e com o restoda comunidade, nos diversos graus de envolvimento possíveis(desde o meramente informacional, até o econômico, financeiro

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347

e político estratégico) tanto no nível nacional quantointernacional.

Essa discussão deu lugar, finalmente, à visualização dasperspectivas institucionais, profissionais e de classe quedeveremos enfrentar e resolver tanto no âmbito acadêmicoquanto social e cultural, no seu mais amplo sentido. Em virtudedisto, algumas reflexões e propostas foram articuladas duranteo GT, que podem ser resumidas nas seguintes linhas básicas,a serem posteriormente desenvolvidas na lista de discussãoem Musicologia Histórica Brasileira:

a) É necessário criar condições para uma relação maisharmoniosa entre os diversos atores relacionados à práticada musicologia histórica no Brasil, com vistas a umaarticulação mais efetiva da classe profissional, a umarevisão crítica da produção musicológica na área, assimcomo para o estabelecimento de parâmetros metodológicose técnicos para o trabalho junto ao patrimônio musicalbrasileiro, nos seus diversos aspectos (materiais,acadêmicos, sociais, éticos e legais).

b) É necessário discutir sobre a conveniência ou não daadoção de sistemas e normativas internacionais. Emparticular, o advento das propostas do consórcio W3Clevanta a questão da adequação dos metadados a padrõesque sejam efetivos em termos da Web semântica. Estespadrões possibilitariam o intercâmbio de dados em formatosconsagrados, tais como o RISM ou o MARC21, além deadmitir as especificidades dos acervos musicais brasileiros.c) É necessário estudar a possibilidade de criação de umaentidade de classe ligada à prática da musicologia histórica

Page 348: OPUS 11 Full

348

no Brasil, reconhecida pela ANPPOM, visando dar suporteaos profissionais da área, seja através de eventos epublicações periódicas, mas também no que diz respeitoaos aspectos éticos e profissionais. Discutiu-se, entretanto,que seria preciso tentar fortalecer e reorientar a já existenteSociedade Brasileira de Musicologia, de maneira que elapossa vir a efetivamente atender às expectativas da classeem todo o território nacional. Todavia, caso isso sejaimpossível, cogita-se a criação de uma AssociaçãoBrasileira de Musicologia.d) É necessário aprofundar a reflexão sobre o fenômenoda segmentação das diferentes musicologias e danecessidade de uma entidade que possa reunificá-las.Discutiu-se a necessidade de estabelecer um código deconduta profissional e uma regulamentação da profissãode musicólogo, assim como de criar um conselho de pares(enquanto instância institucional da classe musicológica naresolução dos eventuais confrontos intra e/ouextrainstitucionais).e) Estabeleceu-se que na próxima ANPPOM, em 2006, esteGT sobre Ação Musicológica reunir-se-á novamente, coma possibilidade de convidar as diretorias da SBM e deentidades congêneres (ABET por exemplo) para aprofundaras discussões e dar um encaminhamento efetivo àsiniciativas correspondentes.f) Estabeleceu-se também que, nesse período, osparticipantes darão continuidade às discussões na L-MHB.

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349

O

“MÚSICA E MÍDIA”

Coordenadora: Profa. Dra. Heloísa de A. Duarte [email protected], [email protected]

www.unisantos.br/musimid

Ementa

s signos musicais, em suas diversas manifestações,

geram mensagens, que são transmitidas no eixo espaço-

temporal. São codificados e decodificados segundo referências

da cultura sobre a quais se assentam.

Este GT tem, como preocupação central, o estudo da

linguagem musical, como elemento constituinte do processo

comunicativo. Adota-se como referência inicial a metodologia

semiótica sem, contudo, deixar de lado contribuições de outras

áreas de conhecimento. Dentre outros aspectos, pretende-se

analisar como os signos musicais se constituem em sistemas

e processos, como atuam no campo social, como são

produzidos, transmitidos, armazenados; que tipo de efeitos

pode produzir nos seus intérpretes e receptores (ouvinte/

espectador). Em suma, o G T “Música e Mídia” tem, como

perspectiva, o estudo das diversas situações possíveis em que

a linguagem musical, em suas variadas modalidades e

manifestações, possa ser estudada como elemento constituinte

do processo comunicativo, na formação de textos artísticos e

culturais.

Page 350: OPUS 11 Full

350

Histórico

O GT “Música e Mídia” constituiu-se no XIII Encontro Nacional

da Anppom, realizado em Belo Horizonte, em 2001, tendo-se

reunido nos Congressos subseqüentes (Porto Alegre, Rio de

Janeiro), com a participação de ouvintes. Desde então, a lista

de novos participantes (eventuais, ativos) tem aumentado

progressivamente. O GT vem estabelecendo diálogo entre seus

membros por e-mail, reunindo-se periodicamente nos diversos

congressos e similares ligados à música, semiótica,

comunicação e áreas afins. Das orientações teórico-

metodológicas deste GT formou-se o Núcleo de Estudos em

Música e Mídia (MusiMid), sediado na Universidade Católica

de Santos, sob a coordenação de Heloísa de A. Duarte Valente

e Herom Vargas Silva.

Temas abordados no XV Congresso

Posto que não havia um tema central estabelecido, optou-se

por expor alguns temas que têm atraído a atenção das

participantes inscritas: relações entre formação musical,

formação de repertório, trilha sonora e mercado dominaram

os debates . Algumas idéias importantes foram traçadas, a

saber:

Silvia de Lucca apresentou uma extensa análise das redações

dos candidatos aprovados para a prova específica de música

tendo, dentre outras preocupações, o senso crítico dos

candidatos face ao repertório que as mídias oferecem,

principalmente o rádio. De sua parte, Teresinha Prada atesta

que há um caminho radial do centro para a periferia, da mídia

para os nichos, que garante a permanência de músicos que

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351

não estão à margem da indústria cultural, mas que, jamais se

encontrariam entre os campeões de vendas. Heloísa de A. D.

Valente, seguindo os pressupostos teóricos de R. M.Schafer

acredita que existe uma trilha sonora que caracteriza os

governos –não os governantes- enfatiza. Embora pouco

percebida, ela não apenas caracteriza, ilustra; de fato, ao

entender da pesquisadora, o repertório que circula pelas mídias

(tanto de médio, como de grande porte) é elemento

composicional dos governos.

Seguem, abaixo, os resumos dos textos apresentados.

Análise qualitativa das redações realizadas pelos

vestibulandos na Prova Específica de Música da FUVEST-2000

Profª Ms. Silvia de Lucca

Análise qualitativa das redações realizadas por 271

vestibulandos na Prova Específica de Música da FUVEST-2000

(Universidade de São Paulo), cujo enunciado solicitado nas

mesmas era o de discorrer sobre o tema “Repertório musical

das estações de rádio brasileiras”.

A respeito do enfoque espontaneamente abordado por eles,

qual seja, o grau de satisfação quanto ao repertório

questionado, constataram-se as seguintes porcentagens:

insatisfeitos: 80,45 %; razoavelmente satisfeitos: 10,33 %;

satisfeitos: 5,90 %; não se posicionaram: 3,32 %.

No que tange à elaboração da pesquisa em si, e do enfoque

obtido nas respostas, observa-se que, se por um lado foram

consultadas pessoas supostamente interessadas pela

linguagem musical e com alguma informação específica,

solicitadas a comentar sobre a área que lhes diz respeito, em

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352

uma situação em que se esperava por um posicionamento

crítico, por outro lado, a dimensão e a maneira emocionada

expressam sobre determinadas técnicas e conteúdos musicais

frente à estética adotada pela indústria cultural/fonográfica,

entende-se como sintomático e de grande relevância.

Al otro lado del río... com Wisnik, Nestrovski e Drexler.

Profª Ms. Teresinha Prada

Música é mercadoria na Indústria Cultural, mas às vezes surge

uma via radial para um público. José Miguel Wisnik e Arthur

Nestrovski deram provas desse acesso nas “palestras-shows”

realizadas ao longo de 2005. Esse ano também propiciou outro

visível exemplo: o Oscar de Melhor Canção ao uruguaio Jorge

Drexler. O confronto entre música de consumo e aquela que

permanece já não é tão inevitável. Hoje há áreas de convívio

desses dois modos de atuação: Tribalistas, Lenine, Chico

César exemplificam isso, na opinião de Wisnik, que também

alude ao circuito que vive sem acesso imediato ao grande

público, como Guinga, Luiz Tatit e Ná Ozzetti – artistas em

realce dentro de um nicho, mas nem por isso à margem. Wisnik

definiu seu nicho produzindo canções que o público se detém

a ouvir a letra. Drexler é outro nome que alcançou seu lugar

desse modo: ouvir a mensagem foi a proposta da nostálgica

Al otro lado del río, do filme Diários de Motocicleta, seguindo

o padrão das canções latino-americanas dos anos 60, pondo

a Utopia no texto, atingindo a memória do ouvinte. O caminho

radial do centro para a periferia, da mídia para os nichos, faz

possível a existência de um público e dos artistas mencionados.

Eles têm como convergência a produção aproximada com o

passado, re-utilizando a estética da canção brasileira e latino-

americana. Querem partilhar códigos já reconhecidos.

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353

Só para contrariar...Deixa a vida me levar! Da trilha

musicalmente incorreta de um Brasil politicamente correto à

trilha musicalmente incompleta de um país de todos.

Profª Drª Heloísa de A. Duarte Valente

O ato de estabelecer paralelos entre modas, modismos e

períodos históricos é bastante comum. Assim, são facilmente

recordadas as canções que marcaram um encontro amoroso,

um fato social relevante, qualquer que seja sua natureza. Já a

associação a governos e gêneros musicais parece um território

ainda pouco explorado

Examinando a paisagem sonora do Brasil do período que

sucedeu as diretas-já, uma série de espécimes curiosos

desponta: as modas da lambada, do axé, dos sertanejos,

iniciadas durante o governo José Sarney, Fernando Collor e

Itamar Franco. A elas, seguirão suas diluições. O repertório

musical da última década dos 1900 será cravado de outras

músicas, algumas delas, sem grande teor de novidade: o

pagode, o forró universitário, o rap e o funk carioca. O solo

sobre o qual se assenta, com firmeza, é o governo Fernando

Henrique Cardoso. Em que pese o estereótipo criado em torno

da figura do presidente, tido como de hábitos aristocratas e de

gosto refinado, ocorre um descompasso entre o high tech, em

contraposição a uma equipe de aliados extremamente

conservadora, pouco letrados. Assim, o pagode com violinos

de plástico revela uma certa coerência, como trilha sonora.

Qual será a trilha sonora que caracterize o governo Lula? Há

um repertório dominante? Considere-se que os gêneros

surgidos anteriormente ainda persistem, mesmo que

enfraquecidos. Se ainda é cedo demais para tirarmos

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354

conclusões, parece certo que do ponto da representatividade

há um arranjador: o cantautor-ministro Gilberto Gil. Posto o

que pôde ser observado até o momento, não parece absurdo

arriscar que a trilha sonora do governo Lula é como uma colcha

de retalhos, feita de vários fragmentos emendados um grande

potpourrit musical, multifacetado, recortado e assimétrico, tal

como a dessemelhança entre seus supostos aliados.

Em suma, em se conhecendo as trilhas sonoras, através da

história que entra pelos ouvidos é possível, conhecer melhor

o país em que se vive – no caso, o Brasil.

Dinâmica do debate

A reunião do GT contou com a participação de João Fortunato

de Quadros Jr., graduando em Artes, da Unimontes (Montes

Claros, MG), e de Mauricio Valencia, músico espanhol e

professor de violão, residente em Tenerife.

João Fortunato vem realizando pesquisa acerca do impacto

das mídias num grupo de adolescentes do nível médio, numa

escola que atende a várias camadas sócio-econômicas (Indyu).

Mesmo particular, o estabelecimento de ensino adota uma

política de bolsas, que permite o acesso de alunos de baixa

renda. Outra razão pela escolha dessa escola se dá pelo fato

de que ela oferece a possibilidade de eleição de disciplina

artística (música, teatro, artes plásticas). Depois dessa etapa

da pesquisa completada, o estudante pretende desenvolvê-la

num futuro mestrado.

Mauricio é músico e leciona violão e matérias teóricas no

conservatório. Também integra um grupo musical que pratica

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355

um repertório diferenciado, buscando versões híbridas (fusion,

ao seu dizer) entre o tradicional e o étnico.

O debate desenvolveu-se em torno dos textos apresentados e

levantou questões como: a dificuldade em implantar cursos

de música no ensino regular; a especial resistência, por parte

do corpo docente e também do alunado (e respectivas famílias):

há uma exigência em que se ensine o que está na moda,

aquilo de que se gosta. Ora, só é possível gostar daquilo que

se conhece... João Fortunato chamou a atenção para um forte

interesse dos jovens pelos Beatles (que não estão na moda) –

provavelmente, pela ação de um grupo musical, na cidade.

Também foi discutida a mudança de padrão de gosto, face às

tecnologias em voga: do sistema analógico ao digital, com suas

possibilidades, limitações e imposições e condições

perceptivas especiais.

A reunião concluiu-se após uma breve exposição, aos ouvintes,

das linhas de pesquisa e projetos em andamento do Núcleo

de Estudos em Música e Mídia (MusiMid), do qual participam

as expositoras dos trabalhos, grupo que originou-se, como dito

acima, do GT Música e Mídia inaugurado em 2001, no Encontro

Nacional da Anppom, em Belo Horizonte.

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356

E

O PB CANTADO - NOVAS QUESTÕES E ESTRATÉGIAS DEINVESTIGAÇÃO

Coordenadora: Mirna Rubim (UNIRIO)

Relator: Wladimir Mattos (mestrando / UNESP)

m fevereiro de 2005, a Associação Brasileira de Canto e

o Programa de Pós-Graduação em Música da UNESP

promoveram, em São Paulo, o 4º ENCONTRO

BRASILEIRO DE CANTO, que teve como tema central “O PB

CANTADO”. Este evento contou com um público de cerca de

200 participantes – entre eles cantores, fonoaudiólogos,

lingüistas, especialistas em acústica vocal, etc – oriundos de

diversas regiões e estados brasileiros, incluindo-se alguns

representantes internacionais.

Além da realização de uma série de mesas temáticas e

palestras, os trabalhos do Encontro enfocaram uma tarefa

principal: o estabelecimento de normas para a pronúncia

cantada do PB, a partir da configuração de uma tabela de

símbolos fonéticos que representasse graficamente as

características gerais do PB padrão, aquele ausente de

sotaque, adotando-se os símbolos determinados pelo IPA

(Alfabeto Fonético Internacional).

Em princípio, a fundamentação teórica para a determinação

dos símbolos fonéticos do PB cantado estaria restrita ao âmbito

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357

fonético, bem como a configuração e aplicação destas normas

estaria relacionada ao universo da canção brasileira erudita.

A necessidade de se questionar estas restrições iniciais e de

se estender o tema a outros aspectos da prática do canto em

PB - além da questão da pronúncia - levou-nos à realização

deste Grupo de Trabalho.

De acordo com a proposta apresentada à XV ANPPOM, os

objetivos do grupo foram:

• Avaliação das normas estabelecidas pelo 4º EBC para a

pronúncia do idioma PB, na prática do repertório vocal

erudito: das bases fonéticas aos demais possíveis

fundamentos na lingüística e na música.

• Levantamento de novas questões e estratégias de

investigação sobre a emissão vocal, performance musical

e o idioma PB, estendendo-se as discussões anteriores

para além dos predominantes aspectos fonético-fonológicos

da pronúncia no canto e abrindo espaço para reflexões em

contextos interdisciplinares.

O trabalho do grupo foi divido em três momentos:

1. Apresentação das propostas individuais dos participantes

do GT;

2. Discussão das propostas apresentadas;

3. Levantamento de questões resultantes da discussão.

Como principal resultado, podemos pontuar o reconhecimentode que os futuros estudos sobre o PB cantado devemconsiderar, em um ambiente interdisciplinar, a coexistência

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358

de questões relacionadas aos campos da técnica e daestética musical, com fundamentos estabelecidos a partirda técnica vocal, da lingüística e da musicologia, entreoutros.

As principais questões observadas pelo grupo foram:

1.Levantamento das modificações às quais deverá ser

submetida a tabela de símbolos fonéticos proposta pelo 4o

EBC, para a sua adoção no ensino, pesquisa e performance

musical.

2.Obtenção de subsídios fonético-acústicos e fonológicos

para fundamentar, na Tabela, as determinações dos

símbolos utilizados para os fonemas controversos.

3.Os Arquifonemas, enquanto fenômenos caracterizantes

das possíveis variações regionais do PB falado e sua

interferência sobre o português cantado.

4.A Elisão, enquanto fenômeno da junção entre dois

fonemas vocálicos, sua definição, caracterização e relação

com outros fenômenos lingüístico-musicais.

5.A Prosódia, enquanto fenômeno lingüístico-musical, nas

relações entre texto literal e musical, desde o gesto

articulatório até níveis mais abrangestes como o da frase.

6.A necessidade de um confronto entre a Tabela e as

recentes reformas ortográficas e gramaticais propostas para

o idioma PB padrão.

7.A inclusão de informações complementares à Tabela, que

possibilitem a sua melhor compreensão por parte do público

estrangeiro.

8.Levantamento do estado do conhecimento nas áreas

relacionadas ao PB cantado, com a finalidade de traçar um

panorama da pesquisa sobre o tema.

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359

9.Estabelecimento dos parâmatros que contribuam para

construção de um conceito que defina o que é a canção

erudita brasileira, como por exemplo, técnicas

composicionais e características literárias, dentre outros a

serem discutidos.

10. Mapeamento e descrição das pronúncias regionais do

PB cantado.

11. Estudo das relações entre Técnica Vocal e Estética

Musical na configuração dos possíveis modelos de canto

em idioma PB.

Com essas questões levantadas pelo GT, seu impacto sobre

os trabalhos individuais dos participantes e a proposta de

manutenção do grupo para a realização de novos trabalhos

coletivos, acreditamos contribuir para o estímulo de futuras

discussões e pesquisas relacionadas ao tema e suas

adjacências.

Quanto aos novos trabalhos coletivos foi sugerida a criação

de dois subgrupos de estudo: um relacionado às questões

de pronúncia e suas extensões; e outro relacionado à

criação de uma antologia, visando uma futura tipologia da

canção erudita brasileira.

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360

E

EM SEMIÓTICA MUSICAL: MÉTODOS DE ANÁLISE DASIGNIFICAÇÃO MUSICAL

Coordenador: Prof. Dr. José Luiz Martinez

[email protected] ou [email protected]

ste grupo de trabalho tem se reunido nos congressos daANPPOM desde 2001. Nosso objetivo é elaborardiscussões, com base na experiência musical e de

pesquisa de cada participante, a respeito das diferentesmetodologias de análise semiótica aplicadas à música. Asquestões em foco são a pertinência, a adequação, osresultados obtidos e sua utilidade para a prática e a teoriamusical que podem ser derivados a partir de diversas linhasde análise semiótica. Tomaremos como base cinco paradigmas:

1. a semiologia tripartite de Nattiez,2. a narratologia greimasiana aplicada à música (Tarasti,Tatit), 3. a semiótica musical de base peirceana (Hatten,Cumming, Martinez),4. semiótica musical e as teorias da cognição (Canno,Brower), 5. o gesto musical (Hatten, Pierce, Lidov).

No XV Congresso da ANPPOM, representantes de três dessaslinhas foram convidados a expor seus pontos de vista edemonstrarem os resultados obtidos. Seguiram discussões ecomentários com a participação de todo o grupo. O grupo sereuniu em 18 de julho e os resultados foram apresentados por

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361

mim em sessão plenária no dia 19 de julho de 2005.

Participantes expositores do grupo de trabalho emsemiótica da música:

1. Semiologia tripartite — Profa. Dra. Sandra Loureiro deFreitas Reis (professora da Pós-Graduação em Música daUFMG)

2. Semiótica Greimasiana — Prof. Dr. Ricardo Nogueira deCastro Monteiro (professor da Universidade Anhembi-Morumbi e da Faculdade Carlos Gomes, São Paulo)

3. Semiótica Peirceana da Música — Prof. Dr. José LuizMartinez (professor da PUC-SP)

A primeira exposição foi da Profa. Dr. Sandra Loureiro deFreitas Reis. Ela apresentou em linhas gerais o método tripartitedesenvolvido por Jean-Jaques Nattiez a partir de teorias deJean Molino. A Profa. Sandra declarou inicialmente que temdesenvolvido seu próprio método e que além das teorias deNattiez, ela também emprega Peirce e teorias dafenomenologia. Ela iniciou sua exposição criticando aafirmação, muito comum, de que “a música não diz nada”. Emsuporte à sua posição, ela discorreu sobre diversos conceitosda semiologia musical, tais como: o nível imanente (ou neutro),a poiética indutiva e a poiética externa, a estésica indutiva e aestésica externa. Reviu ainda a crítica da concepção de Nattiezsobre o nível neutro, o qual segundo vários autores, não existe.Para Sandra, é possível uma objetividade unânime, o quejustificaria a existencia de tal nível. Por fim, a professora expôs

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parte de seu trabalho mais recente, um sistema de análisecomparada das artes. Trata-se de estudos com base noconceito de mímese, abarcando modos, valores, durações,intensidades, direcionaliodades, planos, justaposições, tons,cores, timbres, luz, articulação, estrutura, instrumentação,discurso, significação, leitura e interpretação.

A segunda exposição foi apresentada pelo Prof. Dr. RicardoNogueira de Castro Monteiro. Ele discorreu sobre anarratologia greimasiana, traçada à partir de Eero Tarasti eLuiz Tatit. Sua primeira observação foi a de que a semânticamusical é uma realidade. Seria absurdo imaginar que algumalinguagem não tenha semântica. Para justificar sua posição,Ricardo apresenta os conceitos de nível profundo e níveldiscursivo. Propõe uma análise do “plano da expressão”segundo a concepção de Luiz Tatit, onde o plano do conteúdoestá identificado ao texto de uma canção, e o plano daexpressão à melodia. De acordo com Ricardo, Greimas (aocontrário de Peirce) se interessa pelo sentido, pelastransformações sintagmáticas e paradigmáticas, pelastransformações do signo, e não pelos signos [em si mesmos].Para Greimas, o sentido está no devir, e este se manifesta naforma de oposições. Ricardo exemplifica sua visão da teoriagreimasiana com uma canção interpretada por Ivete Sangalo.Ele analisa os intervalos descendentes de um trecho da cançãoe os identifica com o sentido do texto: “Já não se sabe omomento exato de partir”. A inversão dos intervalos se dá juntocom a inversão do sentido do texto. Fala ainda da divergênciarítmica, o não saber expresso pela hemíola [tercinas, naverdade], que remete à hesitação.

A terceira exposição foi a minha, sobre a semiótica da música

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363

em bases peirceanas. Iniciei falando brevemente de Peirce esua obra, e sua concepção de um sistema lógico geral que eledenominou “semeiótica”. Mencionei a seguir, cronolo-gicamente, os pioneiros na aplicação dos conceitos de Peirceà música, como Wilson Coker, Willy Corrêa de Oliveira, G.R.Fischer, Eero Tarasti e V. Karbusicky em publicações dos anos70 e 80. Desses autores, expliquei com um pouco mais deatenção os conceitos fundamentais de Coker e Tarasti. A seguirfalei dos desenvolvimentos dessa linha, mencionando aspublicações de William Dougherty, Hatten, Tarasti e Turino,além de minhas próprias contribuições, que apareceram nosanos 90. Depois, as teorias atualmente consideradascompletas foram avaliadas: minha teoria semiótica da música,aplicada à música hindustani, Semiosis in Hindustani Music

(2001); e a teoria de Naomi Cumming (2000), The Musical

Self. Expus detalhes de minha teoria, em especial a concepçãodos três campos de análise da semiose musical: 1. semiosemusical intrínseca, 2. referência musica, e 3. interpretantesmusicais. Os desenvolvimentos atuais que unem a semióticada música em bases peirceanas com o gesto musical e a teoriada cognição mais recente, infelizmente tiveram que ser apenasmencionados, por falta de tempo.

Após as três exposições, foram abertas discussões com osparticipantes e expositores. Inicalmente, a Profa. Ilza questionase a teoria peirceana não se limita a uma classificação oucategorização dos signos. A Profa. Mônica rebate com oconceito de que no universo há uma profusão de signos, assim,o signo se impõe. Antes que eu pudesse esclarecer que Peircetrata sobretudo da semiose, o processo de significação (aclassificação é apenas um instrumento), a Profa. Sandraintroduz o conceito lingüístico de valor, afirmado que o signo

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se apresenta com um certo valor, por exemplo, um tema deuma sinfonia tem um “valor maior”. Imediatamente questioneiessa versão do conceito de valor. Apesar do Prof. Ricardocitar que “valor é uma conversão dos níveis profundos”, osexemplos apresentados fizeram claro que ambos (Ricardo eSandra) pensavam o valor dos signos enquanto “julgamentode valor”, e não valor como troca, como inicialmente propostopelos mencionados lingüistas. Seguiu-se uma breve discussãosobre os “valores universais”.

A conversa se encaminhou pelo questionamento da idéiagreimasiana de sentido, segundo a qual, o sentido nasce dasoposições. Questionei fortemente a idéia de que a significaçãonecessariamente viesse de oposições. Essas representamtipicamente o pensamento verbal dicotômico, mas na naturezae na cultura, ao meu ver, a variedade e multiplicidade designificados não pode ser resumida a pares opostos. Tome-secomo exemplo o arco-iris e a escala cromática, dividida emdiferentes números de cores de acordo com diversas culturas,e que nada tem de bipolar. Do mesmo modo nas qualidades eestruturas musicais, por exemplo, as diferentes formas dedivisão da oitava em várias culturas. É claro que o sentido, deacordo com as teorias derivadas da lingüística, é umaconcepção de significado fortemente mediada pelo verbal esua lógica, sendo muito mais restrita do que o conceito desemiose em Peirce. Mas os greimasianos ampliam asaplicações daqueles conceitos por meio de metáforas para-lingüísticas, o que em música, por exemplo, gera interpretaçõesrestritivas e equivocadas como a de que o significado musicaldeva necessariamente estar baseado em algum tipo deoposição.

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A discussão caminha para um impasse e como o tempo seesgotava, decidimos que no próximo encontro cadapesquisador, de acordo com sua linha, apresentará uma análisede uma mesma obra. O objeto comum possibilitarácomparações que esclarecerão mais especificamente osconceitos e os resultados. Entre as sugestões estavam“Carinhoso” de Pixinguinha (Profa. Sandra) e “Chega deSaudade” na interpretação de João Gilberto de 1958 (Prof.Ricardo).

Participantes do grupo de trabalho em semiótica damúsica:

Mônica de Almeida DuarteProfa. Dra. do Departamento de Educação Musical,Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO

Maria B. Parizzi FonsecaMestranda, UFMG

Helena JankProfessor titular - Departamento de música - Instituto de artes- Unicamp

Ilza NogueiraProfa. Dra. da Universidade Federal da ParaíbaPauxy Gentil-NunesMestrando, UFRJ

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Josélia RamalhoMestranda, UFPB

Luiz Paulo SampaioProf. Dr. da UNIRIO

Alexandre TorresMestrando, UNICAMP

2. MESA REDONDA: SEMIÓTICA E MÚSICA

A segunda atividade em que tomei parte foi uma mesa redondasobre semiótica e música, realizada para o dia 21 de julho de2005. Os membros da mesa foram:

Profa. Carole Gubernikoff (UNIRIO, mediadora)Prof. José Luiz Martines (PUC-SP)Prof. Sidney José Molina Jr. (Un. Cantareira)Prof. Edson Zampronha (UNESP)

O Prof. Sidney Molina, representante da corrente narratológicagreimasiana, discorreu sobre a aplicação dessa teoria àinterpretação da música instrumental. Sendo ele próprioviolonista do conceituado Quaternália, sua exposição foi umainteressante combinação de hermeneutica, crítica musical esemiologia. Afirma que não se limita de modo restrito àsemiótica discursiva, incorporando o pensamento de Hanslick,Hegel, teorias da descontrução e semiosfera (Lotman), para aconcepção de uma teoria da performance como leitura.Seguiu-se a fala do Prof. Zampronha, compositor, quedemonstrou como os estudos filosóficos, musicais e mais tardeda semiótica peirceana colaboram nas suas atividades criativas

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e didáticas. Segundo ele, “o significado musical é um conjuntode relações que o ouvinte realiza para transformar aquilo queele escuta numa forma inteligível”. O compositor propõe umconjunto de reflexões para o ouvinte, que são passíveis deserem compreendidas em três classes:

1. similaridade2. contigüidade3. busca de invariantes

Trata-de de uma classificação baseada na tríade ícone, índicee símbolo de Peirce, mas desvestida de seu jargão técnico,que tem o objetivo de facilitar o entendimento por parte deseus ouvinte e alunos.

Minha intervenção foi a terceira, e reservei para essa ocasiãoo artigo apresentado junto a esse processo na ocasião dainscrição para o auxílio da Fapesp. O texto “SemióticaPeirceana da Música: Proposta de uma Teoria Geral daSignificação Musical” foi lido de forma resumida, masmantendo-se o conteúdo essencial. A segunda parte, que tratada utilidade da semiótica musical, foi considerada com muitaatenção pelo público e pelos membros da mesa.

Com essas atividades e a com a minha participação entre opúblico em diversas outras sessões, considero que o congressofoi um sucesso, colaborando para o estabelecimento edivulgação da semiótica da música.

Referências Bibliográficas:

COKER, Wilson (1972). Music and Meaning. New York: Free Press.CUMMING, Naomi (2000). The Sonic Self: Musical Subjectivity and Signification. Bloomington:Indiana University Press.

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368

HATTEN, Robert (1994). Musical Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation andInterpretation. Bloomington: Indiana University Press.MARTINEZ, José Luiz (1996). Icons in Music: a Peircean Rationale. Semiotica 110(1/2), 57-86.— (2001). Semiosis in Hindustani Music (edição indiana revisada). New Delhi: Motilal Banarsidass.— (2003) Ciência, significação e metalinguagem: Le sacre du printemps. Opus 9(9), 87-102.— (2004) Composição e Representação. In Arte e Cultura III, ed. Maria de Lourdes Sekeff eEdson Zampronha, 61-74. São Paulo: Annablume.— (2004). Música e Intersemiose. Galáxia 8, 163-191.NATTIEZ, Jean-Jacques - (1990) Music and Discourse: Towards a Semiology of Music, trad. deC. Abbate. Princeton: Princeton University Press.TARASTI, Eero (1994). A Theory of Musical Semiotics. Bloomington: Indiana University Press.TATIT, Luiz (1994). Semiótica da Canção, melodia e letra. São Paulo: Escrita.

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T

GRUPO DE TRABALHO “SIGISMUND NEUKOMM”

Coordenadora: Luciane Beduschi

[email protected] Jank

[email protected]

Sigismund Neukomm e a Musicologia Brasileira

udo indica que Sigismund Neukomm (Salzburgo, 1778 –

Paris 1858) não é somente o melhor aluno de Haydn,

mas também uma personalidade musical fora do comum.

Músico das cortes russa, francesa et portuguesa (instalada no

Rio de Janeiro), colaborador de Cavaillé-Coll, amigo de José

Maurício, Grétry, Gossec, Mosigny, Cherubini, substituto de

Dussek como músico de Talleyrand, compositor do Te Deum

para a entrada solene de Luis XVIII em Paris e do réquiem para

as comemorações da morte de Luis XVI no Congresso de Viena,

Cavaleiro da Legião de Honra francesa, viajante incansável

do qual os concertos obtiveram os maiores sucessos musicais

e comerciais, compositor publicado pelos grandes editores de

seu tempo, realizador de arranjos sancionados por Haydn. A

importância de Neukomm durante o período de D. João VI no

Brasil também não é das menores: professor de membros da

família real, arranjador de modinhas de Joaquim Manuel da

Câmara, compositor de uma missa para a aclamação de D.

João VI, primeiro a utilizar um tema brasileiro numa obra de

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370

música erudita, autor de relatos importantes sobre a vida

musical do Rio de Janeiro no início do século XIX.

A musicologia brasileira tem se dedicado nos últimos tempos,

muito mais que a européia, ao estudo deste personagem –

principalmente no que diz respeito à sua atuação junto à corte

portuguesa. As pesquisas se estendem desde a retomada de

citações de época (Debret, Martius), passando por textos

antigos ou mais modernos (Azevedo, Neves, Meyer) e por

dissertações de mestrado (Beduschi) até culminar nos três

volumes de obras publicados recentemente pela Funarte na

coleção Música no Brasil. Atualmente, vários pesquisadores

brasileiros desenvolvem individualmente trabalhos

relacionados à biografia e à produção do compositor. As

pesquisas recentes apontam para a inexistência de um

catálogo temático bem como de uma biografia atualizada, e

indicam que constituir o catálogo de obras e produzir uma

revisão biográfica são objetivos que só poderão ser atingidos

através de um trabalho coletivo.

Criação de um grupo de pesquisa Sigismund Neukomm

O XV Congresso da ANPPOM surgiu como a ocasião ideal

para uma primeira reunião dos musicólogos brasileiros que

vêm se dedicando ao estudo de Sigismund Neukomm (em

trabalhos de mestrado, doutorado e pós-doutorado concluídos

ou em andamento). Propus então a criação de um Grupo de

Trabalho Sigismund Neukomm visando a integração entre

pesquisadores que pertencem a universidades e centros de

pesquisa distantes fisicamente (situados, em alguns casos,

em países distintos). O meu objetivo, a médio prazo, é a

publicação de dois trabalhos coletivos centrados na temática

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da estadia de Neukomm no Brasil. Neste sentido, a reunião

durante o Congresso da ANPPOM seria somente a primeira

de muitas outras. Este encontro viria formalizar a constituição

de um grupo de pesquisa Sigismund Neukomm que pudesse

continuar as suas atividades após o término do congresso.

A equipe para os trabalhos realizados no Rio de Janeiro em

julho de 2005 ficou assim constituída:

Luciane Beduschi: coordenação

Universidade de Paris-Sorbonne, CRLM (Centre de Recherche

Langages Musicaux, Paris, França). Desenvolvo atualmente

junto a esta universidade o doutorado Vida e Obra de Sigismund

Neukomm.

Prof. Dra. Helena Jank: supervisão científica

Unicamp (Campinas, Brasil)

Prof. Dr. Marcelo Fagerlande

UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil) e IRPMF (Institut de recherche

sur le patrimoine musical en France, Paris, França). O

pesquisador tem um pós-doutorado em andamento sobre

As Modinhas de Joaquim Manuel da Câmara.

Adriano de Castro Meyer

USP (São Paulo, Brasil). Com o mestrado em andamento As

mudanças de estilo na produção de Sigismund Neukomm

resultantes da sua estadia no Brasil.

Ainda durante o congresso, os seguintes pesquisadores

manifestaram o desejo de se unir ao grupo recém constituído:

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Prof. Dr. Edmundo Hora

Unicamp (Campinas, Brasil). Desenvolve uma pesquisa

provisoriamente intitulada Desceu aos Trópicos, baixou meio

tom: Reflexões sobre os dois Adieux de Sigismund Neukomm

Prof. Dr. Paulo Castagna

USP (São Paulo, Brasil). Responsável pela orientação das

pesquisas de Adriano de Castro Meyer.

Prof. Dr. Manuel Veiga

UFBA (Salvador, Brasil). Através de suas pesquisas sobre as

modinhas, vem estudando as de Joaquim Manuel da Câmara

arranjadas por Neukomm, tendo identificado vários dos textos

utilizados nestas composições.

João Vidal

UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil). Tem uma proposta de pesquisa

sobre Os arranjos para piano elaborados por Neukomm para

obras de Haydn.

O encontro destes pesquisadores no Rio de Janeiro possibilitou

a tomada de diretivas para a elaboração da obra coletiva

Sigismund Neukomm no Brasil. Esta deverá ser contituída por

uma série de artigos divididos em duas partes (1) Estudos

biográficos sobre o período brasileiro e (2) Catálogo e análise

da produção brasileira. Ao lado destes textos, gostaríamos de

publicar uma coletânea de obras compostas por Neukomm no

Brasil (e ainda não editadas) que viesse continuar a coleção

da Funarte. Numa primeira fase, a edição de obras para teclado

se mostrou como a melhor alternativa por várias razões: grande

parte da produção para piano de Neukomm data do período

brasileiro; várias destas obras não fazem parte da coleção da

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Funarte; obras para teclado podem ser publicadas em maior

número e mais facilmente que obras orquestrais ou de câmara;

a imensa maioria dos pesquisadores associados a este projeto

são pianistas ou cravistas.

Nesta ocasião também foi levantada a questão do

financiamento para os pesquisadores e para o material que

será necessário obter. Várias possibilidades de soluções se

apresentaram, entre outras a elaboração de um projeto

integrado de pesquisa junto ao CNPq. Instituições como

Unicamp, USP e Universidade de Brasília, foram apontadas

como possíveis fomentadoras dos projetos de edição. Será

enviada em breve à Fapesp uma primeira proposta de um

projeto temático com base na Unicamp (Universidade à qual

pertence a professora Helena Jank, supervisora científica do

grupo).

Gostaria finalmente de aproveitar este espaço disponibilizado

pela Opus para abrir uma chamada a comunicações. Os

pesquisadores que tiverem interesse em participar deste grupo

de pesquisa, que começa a se constituir, podem entrar em

contato comigo ([email protected]), ou com a

professora Helena Jank ([email protected]).

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Sumários dos números anteriores da OPUS

OPUS 1.

Ano I . n. 1.Editor: Raimundo MartinsPorto Alegre: UFRGS, Dezembro 1989

Apresentação. Ilza NogueiraExecução e Análise Musical. Jonathan Dunsby (tradução: CristinaMagaldi).A contribuição de Schenker para a interpretação musical. CristinaCamparelli GerlingA evolução da historiografia musical brasileira. Regis DupratAnálise comparativa de duas fugas na obra sacra do Pe. JoséMaurício. Denise FredericoEducação Musical: o experienciar antes do compreender. A criatividadee o exercício da imaginação. Leda Osório MársicoMúsica: aprendizagem ou condicionamento? Algumas evidências esuas implicações. Raimundo MartinsA orquestra de câmera como experiência didática. Marcello GuerchfeldA função do ensaio coral: treinamento ou aprendizagem? Sérgio LuizFerreira de FigueiredoSintetizador MS-80: protótipos de hardware e software. Celso Aguiar

OPUS 2.Ano II . n. 2.Editor: Raimundo MartinsPorto Alegre: UFRGS, Junho 1990

Iniciação musical com introdução ao teclado – IMIT. Alda de JesusOliveiraIniciando cordas através do folclore. Anamaria Peixoto O feitiço decente. Carlos SandroniO processo composicional e a notação da música contemporânea - umrelacionamento de informação e criatividade. Celso MojolaFerramentas computacionais para a música. Eduardo Reck MirandaSemiologia musical e pedagogia da análise. Jean-Jacques Nattiez(tradução: Regis Duprat)O compromisso do intérprete com a música contemporânea. MarcelloGuerchfeldRessonâncias - uma abordagem analítica vista comparativamente.Marisa RezendeEstilo versus clichê: o paradigma da informação na construção dosignificado musical. Raimundo Martins

OPUS 3.Ano III . n. 3.ISSN: 0103-7412Editor. Raimundo MartinsPorto Alegre: UFRGS, Setembro 1991

Legitimação da produção musical. Jamary Oliveira

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O conceitual e o aural na construção e na transmissão do significadoem música. Raimundo MartinsTradição / contradição na prática musical de uma escola formadora deprofessores. Rosa FuksEducação musical: uma perspectiva estruturalista. Alda Oliveira Modelos de iniciação musical na Alemanha. Jusamara Vieira SouzaEunice Katunda: Contribuição à pesquisa de fontes primárias. CarlosKater A musicologia histórica brasileira e a preservação da produção musi-cal. José Maria Neves Traços característicos na música para piano de Bruno Kiefer. CristinaCaparelli Gerling Pesquisa e música: motivação e posicionamento. Fred Gerling

OPUS 4.Ano IV . n. 4.

Editor: Martha UlhoaISSN - 0103-7412Rio de Janeiro: Anppom, Agosto 1997

Editorial. Martha UlhoaBoulez: Improvisação I sobre Mallarmé. Carole GubernikoffA música, o corpo e as máquinas. Fernando IazzettaInjetando o tempo na música, despejando a música no tempo. JorgeAntunesA imagem aural e a memória do discurso melódico: processos deconstrução. Maria Cristina Souza CostaSemiótica Peirceana e música: mais uma aproximação. Silvio FerrazDissertações de Mestrado em música até 1996OPUS 5.Ano V . n. 5.

ISSN: 0103-7412Editor. Martha UlhôaRio de Janeiro: Anppom, Agosto 1998

Pelo mundo da música viva: 1939 a 1951. Adriana Miana FariaDebussy versus Schnebel: sobre a emancipação da composição e daanálise no século XX. Didier GuigueLucípherez de Eduardo Bértola: a colaboração compositor-performer ea escrita idiomática para contrabaixo. Fausto BorémCanção do Pastor: encontro entre a tradição culta e a popular. MérciaPintoPor uma sócio-musicologia ancorada na semiologia da enunciação:uma alternativa para o estudo do acontecimento musical urbano napresente modernidade. Regina Márcia Simão Santos

OPUS 6.Ano 6 . n. 6.eletronic@Editor: Martha Ulhoa

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ISSN - 1517-7017Rio de Janeiro: Anppom, Agosto 1999

O silêncio. Jorge AntunesMúsica, Semiótica Musical e a classificação das ciências de CharlesSanders Peirce. José Luiz MartinezPesquisa em Educação Musical: situação do campo nas dissertações eteses dos cursos de pós-graduação stricto sensu em Educação. JoséNunes FernandesBrega,Samba, e Trabalho Acústico: Variações em torno de uma contri-buição teórica à etnomusicologia. Samuel AraújoA produção musical de Eduardo Bértola (1939-96). Sérgio Freire e AvelarRodrigues Jr.A utilização de softwares no processo de ensino e aprendizagem deinstrumentos de teclado. Susana Ester Krüger, Cristina Capparelli Gerlinge Liane HentschkeA Mágica: um gênero musical esquecido. Vanda Lima Bellard FreireOPUS 7.Ano 7 . n. 7.eletronic@Editor: Silvio FerrazISSN - 1517-7017São Paulo: Anppom, Outubro 2000

Editorial. Silvio FerrazEstudo da Variação do Timbre da Clarineta em Performance através deAnálise por Componentes Principais da Distribuição Espectral. MauricioLoureiroSobre a Estética Sonora de Messiaen. Didier GuigueA escuta como objeto de pesquisa. Rodolfo CaesarOs giros (do mundo) do disco voz na voz canção. Heloisa Araujo Valente“música das ruas”: o exercício de uma “escuta nômade”. FátimaCarneiro dos SantosO Semantema. Jorge AntunesAs Sonatas para Violino e Piano de M. Camargo Guarnieri: Análise eClassificação dos Elementos Técnico-Violinísticos. André CavazzotiPossibilidade de Aplicação do Modelo Espiral de DesenvolvimentoMusical como Critério de Avaliação no Vestibular da Escola de Músicada UFMG. Cecíclia CavalieriO Campo Sistêmico da Canção. Gil Nuno Vaz

OPUS 8.Ano 8 . n. 8.eletronic@Editor: Silvio FerrazISSN - 1517-7017São Paulo: Anppom, Fevereiro 2002

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Editorial. Silvio FerrazAs canções dos discos de histórias infantis e a imagem da criança. AnaCristina Fricke MattePráticas pedagógico-musicais escolares: concepções e ações de trêsprofessoras de música do ensino fundamental. Luciana Del BenAnálise da obra eletrônica Mutationen III de Cláudio Santoro.Denise Andrade de Freitas MartinsEscritura Sismográfica: interação entre compositor e suporte digital.Fábio Parra FurlaneteJean-Claude Risset’s Sud : an analysis. Giselle Martins dos SantosFerreiraMúsica no espaço escolar e a construção da identidade de gênero: umestudo de caso. Helena Lopes da SilvaOuvidos para o mundo:aprendizado informal de música em grupos dodistrito federal. Mércia PintoO paradigma do tresillo. Carlos SandroniOs sambas-enredo da Escola de Samba da Capela, da cidadedeAntonina-Pr. Bernadete Zagonel e Guilherme G. Ballande RomanelliKARE e PARU: análise musical/ ritual/ comparativa do canto de pescaBororo na aldeia Córrego Grande – MTl. Roberto VictórioUm resgate da memória musical brasileira:O Projeto RegistroPatrimonial de Manuscritos do Arquivo de Obras Raras da Escola deMúsica da UFRJ. Vanda Lima Bellard Freire OPUS 9.Ano 9 . n. 9.Editor: Maria Lúcia PascoalISSN - 0103-7412Campinas: ANPPOM, Dezembro 2003

Editorial. Maria Lúcia PascoalHomenagem a José Maria Neves – Sessão de Abertura da ANPPOM.Salomea GandelmanPeriódicos brasileiros da área de música: uma breve cronologia (1983-2003). André CavazzotiProdução de conhecimento e políticas para a pesquisa em música.Música & Tecnologia. Rodolfo CaesarDa produção da pesquisa em educação musical à sua apropriação.Cláudia Ribeiro BellochioA produção de conhecimento em Educação Musical no Brasil: balanço eperspectivas. Regina Márcia Simão SantosEsboço de balanço da Etnomusicologia no Brasil. Elizabeth TravassosCiência, significação e metalinguagem: Le Sacre du printemps.José Luiz MartinezPráticas Interpretativas e a Pesquisa em Música: dilemas e propostas.Felipe Avellar de AquinoPesquisa no Brasil: Balanço e Perspectivas. Lucia Barrenechea

OPUS 10.Ano 10 . n. 10.Editor: Maria Lúcia PascoalISSN - 0103-7412Campinas: ANPPOM, Dezembro 2004

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Editorial. Maria Lúcia Pascoal

Artigos

Sistemas de Informações Musicais - disponibilização de acervosmusicais via Web. Rosana S. G. Lanzelotte, Martha Tupinambá de Ulhoa,Adriana Olinto Ballesté.Música Nova do Brasil para Coro a Capela: comentários analíticos einterpretativos sobre a obra Rola Mundo de Fernando Cerqueira.Vladimir SilvaO Idiomático de Camargo Guarnieri nas obras para piano. Alex SandraGrossiO Progresso e a produção musical de Carlos Gomes entre 1879 e 1885.Lenita W. M. NogueiraA Conferência Nacional de Pedagogia do Piano como referência parauma definição da área de estudo.Maria Isabel MontandonPerspectivas musicais de sete compositores brasileiros. Cristina GrossiRitornelo: composição passo a passo. Silvio Ferraz

EntrevistasFlashes de Almeida Prado por ele mesmo. Adriana Lopes da CunhaMoreiraSumário dos números anterioresNormas para publicação

Normas de publicação da Revista OPUS

Os textos para a Revista OPUS poderão apresentados como:

1. Artigos de pesquisa

1.1. - Os trabalhos submetidos para publicação deverão ser inéditos e referen-tes a pesquisas já terminadas ou em andamento; estar em MS Word forWindows (arquivo tipo .doc ou .rtf), fonte Times New Roman tamanho 12;conter de 2.500 a 10.000 palavras, incluídos aí título/resumo/palavras-chave,nome do autor, exemplos, notas de rodapé e referências bibliográficas. Osparágrafos do corpo do texto deverão ser assim configurados: alinhamentojustificado, espaçamento simples. Os textos poderão ser em português, in-glês, francês e espanhol.

1.2. - Exemplos musicais (EX.), Tabelas (TAB.), Figuras (FIG.) devem ser lo-calizados no texto e apresentados em arquivos separados como figura (arqui-vo tipo .tif ou .jpg), numerados e acompanhados de legenda sucinta e clara,de no máximo 3 linhas (tamanho10, espaço simples, inserido sob a ilustra-ção).

1.3. - Utilizar referências simples para citações no texto: Autor em caixa baixa,data, página. Utilizar notas de rodapé (fonte Times tamanho 10, espaço sim-ples) apenas para informações complementares e comentários. As referênci-as bibliográficas completas (Times 10, espaço simples) deverão vir somenteno final do artigo, sob o título Referências bibliográficas e estarem de acordocom as Normas da ABNT: MORGAN, Robert. Twentieth Century Music. New

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York: Norton, 1992.

1.4. – Citações com até três linhas devem ser inseridas no corpo do texto(entre aspas). As citações com mais de três linhas devem vir separadas comoparágrafo e com recuo à esquerda e à direita (tamanho 10, espaço simples).

1.5. - O título (Times 12, negrito), nome do autor (Times 12, itálico), um resu-mo do trabalho com cerca de 100 palavras (Times 10, espaço simples) doqual constem objetivos, metodologia e conclusões. Cerca de três palavras-chave (Times 10) separadas por ponto. Logo em seguida, abstract e keywords.Caso o artigo se subdivida em seções, os títulos das mesmas deverão ser emnegrito, fonte 12.

1.6. - Ao final do artigo, incluir um currículo sucinto do autor, indicando forma-ção, instituição a que pertence, principais trabalhos realizados, endereço ele-trônico e www. se houver.

1.7. - Direitos autorais: Caso haja reprodução de material detentor de direitoautoral, cabe ao próprio autor a obtenção da devida autorização para publica-ção.

2. Resenhas

Informação e divulgação de publicações recentes. Como item 1.1., contendoaté 1.000 palavras. Indicações bibliográficas do trabalho de resenha.

3. Grupos de Pesquisa

Espaço para artigos que relatem atividades desenvolvidas por Grupos de Pes-quisa, constando o nome do coordenador do grupo e os de todos os partici-pantes. Como item 1. completo.

Os artigos enviados à OPUS serão avaliados por uma equipe de pareceristasad-hoc, buscando manter a idoneidade do processo de avaliação e o acom-panhamento dos artigos a serem publicados. Não serão aceitos artigos emdesacordo a estas normas de apresentação.

Endereços: [email protected] ou [email protected]

Projeto Gráfico e EditoraçãoIVIVIVIVIVAN AAN AAN AAN AAN AVELARVELARVELARVELARVELAR

CENTRO DE PESQUISA EM GRACENTRO DE PESQUISA EM GRACENTRO DE PESQUISA EM GRACENTRO DE PESQUISA EM GRACENTRO DE PESQUISA EM GRAVURAVURAVURAVURAVURAwww.iar.unicamp.br/cpgravura

Departamento de Artes PlásticasInstituto de Artes - Unicamp

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Categorias de sócios de documentação exigidapara inscrição na ANPPOM

1 - Associações Científicas:a) Estudo da Associação;b) Número de inscrição noCGC

2 - Programas de Pós-Graduaçãoa) Prova de reconhecimento ou de autorização parafuncionamento.

3 - Pós-Graduados em música:a) Curriculum vitae;b) Diploma de curso de mais alto nível;c) Histórico escolar ou equivalente do curso de mais altonível.

4 - Pesquisadoresa) Curriculum vitae;b) Exemplares de ao menos 2 (dois) trabalhos publicados em periódicos com corpo editorial.

5 - Professores do curso de Pós-Graduação:a) Curriculum vitae;b) Diploma do curso de mais alto nível;c) Atestado de que é professor em curso de Mestrado ouDoutorado em música.

6 - Estudantesa) Curriculum vitae;b) Atestado de que é aluno em curso de Mestrado ouDoutorado em música.

Obs.: Apenas alunos e professores dos cursos associados à ANPPOM poderão seradmitidos como Sócios Estudantes ou Sócios Colaboradores, respectivamente.