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SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
O PÃO DO ÍNDIO DOS NUKINI DA AMAZONIA: ESTUDO DE CASO SOBRE
O USO DE SUPRIMENTOS ESPECÍFICOS NA DIETA ALIMENTAR INDÍGENA.
Claristela Santos1
Fernanda Emanuela Claudino da Silva2
Sergio Francisco S. M. da Silva3
Henry Lavalli Sullasi3
Aldir Santos de Paula4
Cláudia Alves Oliveira3
Neuvânia Curth Ghett3
Viviane Maria Cavalcante de Castro3
Resumo: Este estudo apresenta os resultados das análises preliminares, de natureza biológica e físico‐química, de um alimento de origem indígena conhecido como “pão do índio”, doado como um preparo alimentício feito por mulheres indígenas da etnia Nukini, da família linguística Pano, localizada no estado amazônico do Acre. Esse alimento teria sido produzido à base de milho e macaxeira macerada e revestida com o látex da seringueira (Hevea brasilienses). Os estudos sobre o uso de suprimentos especiais na dieta alimentar, de populações tradicionais da América, têm sido verificados na bibliografia antropológica. Entretanto, são raros os estudos de casos desses ecofatos, antropicamente utilizados, elaborados ou domesticados, sob a denominação de pão do índio. A presente amostra foi examinada quanto a sua estrutura por meio da tomografia computadorizada 3D (TC3D) e da microscopia eletrônica de varredura (MEV) e, quanto a sua composição química, por meio da Espectroscopia na região do infravermelho próximo (IV) e de um teste para a identificação da presença/ausência de amido, para fins de averiguação de sua constituição e natureza. Os resultados das análises indicam que o pão do índio estudado tem características de um fungo comestível de alta resistência, representando um vestígio etnoarqueológico em potencial, diante de condições tafonômicas favoráveis a sua preservação.
1 Núcleo de Estudos Ingigenístas do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
2 Programa de Pós‐Graduação em Ciência de Materiais, CCEN, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
3 Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
4 Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
Abstract: This study presents the results of preliminary biological and physic‐chemical analyzes of a Indian food known as " Indian bread ", donated as a food preparation made by Nukini women, Pano linguistic family, located in the Amazonian state of Acre. That food would have been produced from macerated corn and manioc and coated with latex from the rubber tree (Hevea brasiliensis). Studies on the use of special supplies in the traditional diet of populations of America have been observed in the anthropological literature. However, few studies of such cases ecofacts anthropically used, developed or domesticated under the name of Indian bread. This sample was examined for its structure by means of computed tomography (3D TC3D) and scanning electron microscopy (SEM) and, as its chemical composition by means of spectroscopy in the near infrared (IR) and a assay for identifying the presence/absence of starch for investigative purposes of its incorporation and nature. The results of the analysis indicate that the bread of the Indian has studied the characteristics of a mushroom high strength, representing a archaeological vestige with ethnoarchaeological potential, before taphonomic conditions favorable to their preservation.
Introdução
O pão do índio estudado no presente artigo (figuras 1 e 2) foi cedido para análise por um dos
autores deste trabalho, que o recebeu de um índio Nukini do Acre. Nukini é uma das etnias da
família linguística Pano. Este índio relatou ser comum encontrar esse tipo de alimento na mata
ou em antigos roçados. A memória local remete ao tempo em que os índios guerreavam entre
si e após a chegada dos não índios durante a época do extrativismo da borracha no século XIX.
Tratava‐se de uma forma de lançar mão de um recurso alimentício numa situação de
emergência. Apesar de existir a tradição oral do pão do índio e o conhecimento dos locais
onde o mesmo é encontrado, a sabedoria do preparo é desconhecida dos informantes
contatados.
Os índios da família linguística Pano ocupam atualmente a região sudoeste da Amazônia,
abrangendo áreas do território amazônico do Peru, da Bolívia e do Brasil, concentrando‐se
principalmente no estado do Acre, do Amazonas e de Rondônia (Figura 3).
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material, ou um fungo. Neste sentido, se poderia pensar na domesticação de fungos com
características alimentícias. A partir, portanto, das informações orais dos Nukini procurou‐se
verificar, através da análise bioquímica, a natureza antrópica ou natural dessa amostra.
Dados antropológicos e etnoarqueológicos sobre o pão do índio
Poucos foram os estudos e/ou referências localizadas, que tratam do pão do índio como um
preparo alimentício e/ou reserva alimentar, na região amazônica. Góes (2007, 2009) indica que
o pão do índio era um preparo que era armazenado, enterrado em determinados lugares para
ser consumido por ocasião dos deslocamentos dos grupos durante as “correrias”5. Baseado na
descrição do índio Yawa Yaminawa, Góes (2007) relata que o pão do índio era um preparo
“composto pela mistura de vários tubérculos e grãos cuja característica principal é se
conservar comestível por anos, mesmo em ambientes pouco favoráveis (queimadas, chuvas
intensas, etc.)”, o que garantia o alimento ante o retorno ao mesmo local a que o grupo foi
levado a abandonar.
Outra referência ao pão do índio foi localizada em um relatório do Programa de Educação
Patrimonial: “Caiarí: Revendo o Passado, Cultivando o Futuro”. Em uma das oficinas
patrimoniais, há o relato de um operário cujo pai teve contato com povos indígenas da região
de Jaci‐Paraná (RO), durante seu trabalho como seringueiro. De acordo com este relatório, o
operário “falou sobre o “pão de índio” e de como os índios distribuíam os pães por um
território para seu suprimento”6 .
5 No século XIX a exploração da borracha da seringueira (Havea brasiliensis) na região amazônica trouxe consequências danosas especialmente para as populações indígenas que habitavam áreas onde era abundante essa espécie vegetal. O boom da borracha ocorrido, sobretudo a partir de 1870 impulsionou a importação de mão‐de‐obra para essa região para atender à demanda da produção dessa matéria‐prima. No final do século XIX o alto rio Juruá, habitado por grupos indígenas da família linguística Pano e rico em seringueiras, foi alvo de uma busca acirrada de terras para a exploração das preciosas árvores que forneciam o látex para o fabrico da borracha. Como uma das consequências, muitos grupos indígenas foram extintos ou tiveram uma considerável baixa populacional. Almeida et al. (2002, p. 108) assinalam que “(...) a partir de 1890, capatazes e caçadores profissionais de índios estavam exterminando os Yaminawá, Sharanawá, Amahuaca, Kaxinawá, Poyanawá, Kontanawá, Arara e outros grupos de língua Pano que habitavam as cabeceiras do rio Juruá. Esses episódios ficaram conhecidos como “correrias”, ainda vivamente lembradas, nas quais os homens eram assassinados e algumas mulheres e crianças, raptadas.
6 Relatório vinculado ao projeto de Arqueologia preventiva na área da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, na cidade de Porto Velho, Rondônia (RO). Relatório Trimestral 3/ Nov.‐Jan. 2009/2010, p.7.
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sociedades indígenas brasileiras. O mais provável é que existam e existiam tanto sociedades
micofílicas como micofóbicas.
O estudo das informações etnoecológicas sobre o emprego de fungos, animais e plantas na
alimentação indígena necessariamente inclui a compreensão das relações específicas de cada
etnia com os tabus de pureza (micofilia) e perigo (micofobia) relacionados a essas fontes de
recursos naturais. No contexto das práticas de agricultura, desenvolvidas, por exemplo, entre
os Uitoto, Andoke e Muinane da região amazônica da Colômbia (VASCO‐PALACIOS et al, 2008),
os fungos domesticados e empregados como alimentos desenvolvem‐se em substratos
vegetais específicos, de conhecimento dessas etnias. Fungos lignícolas8 vinculam‐se, desse
modo, ao tipo e demanda das práticas agrícolas. As respostas das populações indígenas ao
processo de compreensão e integração dos recursos do meio natural circundante resultam na
produção de um conhecimento tradicional que pode ser acessado pelos antropólogos pela via
da tradição oral. Esse discurso tradicional, étnico, caracteriza‐se por um pensamento de
integração e síntese, holístico, com conceitos ecológicos sinergeticamente integrados. Dentre
os recursos e fatores naturais disponíveis, os fungos representam, ao lado dos insetos, uma
quantidade de espécies abundantes nas regiões tropicais e representam sim uma parcela da
dieta dos povos indígenas.
O estudo do processamento cultural dos fungos pelos índios ‐ e do conhecimento tradicional
oral sobre essa relação ‐ constitui uma face da produção de conhecimento
antropológico/etnológico que possui outro sentido quando o problema está na arqueologia
indígena. Destituídos de oralidade, os dados arqueológicos sobre dieta e relação homem/meio
natural são sensíveis no sentido da interpretação científica, tornando‐se inevitável a interação
interdisciplinar com as Ciências Biológicas, da Química e Física. As histórias de sobrevivência
das populações indígenas do Brasil relatam inúmeras extinções, o que demanda pesquisas
arqueológicas interagindo com as históricas e antropológicas. Assim, a presença do uso de
fungos na dieta de populações indígenas atualmente extintas é previsível, entretanto não
verificado nos contextos arqueológicos históricos e ou pré‐históricos. Entretanto, os estudos
etnoecológicos e etnobiológicos, bem como a recuperação de classificações etnomicológicas
8 Fungos lignícolas são aqueles que se desenvolvem em madeira.
SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
resultantes de oralidades étnicas de observação e coleta de fungos (VASCO‐PALACIOS et al,
2008; CARDOSO et al, 2010) constituem tendências favoráveis e animadoras para o
desenvolvimento da questão do consumo dietário e processamento cultural de fungos por
populações pré‐históricas brasileiras. Ao lado da etnomicologia, que estuda a relação entre os
fungos, especialmente os macromicetos, com as sociedades tradicionais (CARDOSO et al,
2010), uma arqueomicologia9 faz‐se necessária quando o interesse na dieta pré‐histórica pode
incluir os fungos. As classificações taxonômicas tradicionais extensas dos organismos vivos do
meio natural constituem fontes etnológicas de pesquisa, podendo inferir sobre relações
possíveis entre homens e fungos, quer seja no universo das práticas religiosas e/ou da dieta no
passado.
As informações etnobiológicas possuem uma função de favorecer o surgimento de hipóteses
sobre ocorrências no âmbito de populações extintas, quer nos contextos arqueológicos
históricos, quer nos pré‐históricos. Tais informações puderam ser estudadas para os casos dos
Caiabi, Txicão, Txucarramãe, Tupi‐Guarani e Yanomami (CARDOSO et al., 2010), especialmente
sobre as etnoclassificações (urupê, uonchêlá, amamo, entre outros) e suas correlações no
âmbito do conhecimento científico (taxonomia clássica), considerando‐se a enorme
biodiversidade tropical. Sob a perspectiva arqueológica são inexistentes trabalhos que
considerem a presença da relação homem/fungo, mesmo nos contextos nos quais os
processos de preservação dos vestígios sejam propícios a tais considerações. Mesmo, nesse
sentido, o olhar do arqueólogo não está absolutamente certo da possível existência de
vestígios que não aqueles mumificados de determinadas espécies animais e vegetais que
eventualmente estejam presentes nos contextos funerários e similares: a domesticação ou
coleta esporádica de fungos para uso alimentar ou ritual pode deixar vestígios no contexto
arqueológico. Nesse caso, excetuam‐se exemplos arqueológicos do uso de fungos registrado a
cerca de 13000 no Chile, além de outras informações que remetem à Grécia, à China e à Roma
imperiais.
9 Sugere‐se aqui como arqueomicologia o estudo de fungos em contexto arqueológico.
SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
Materiais e Métodos
O pão do índio, objeto de análise do presente artigo, representa um bloco compacto de
material amorfo, com aspecto e consistência similar a uma rocha, medindo no comprimento
maior 33,8cm, altura máxima de 35cm, largura máxima de 20cm, com peso de 10,9 kg.
Para efetuar as análises, foram realizadas imagens que objetivaram visualizar a estrutura
interna do pão do índio, através de cortes transversais obtidos por meio da Tomografia
Computadorizada 3D (TC3D). Quanto à identificação da morfologia interna recorreu‐se à
preparação de uma parte macerada do material, e, posterior análise pela técnica de
microscopia eletrônica de varredura (MEV), a qual permite a geração de uma imagem
decorrente da observação de diferentes interações eletrônicas que ocorrem entre a superfície
da amostra e o feixe de elétrons aplicado sobre ela. Para as análises aplicadas, foi utilizado
detector para elétrons secundários. A análise foi realizada utilizando o equipamento Shimadzu
SS‐550 Superscan®.
Por sua vez para a determinação da composição química, como parte do processo analítico, a
amostra foi submetida também à técnica de Espectroscopia na região do infravermelho
próximo (IR). Um espectrômetro de infravermelho determina as posições e intensidades
relativas de todas as absorções, ou picos, na região do infravermelho e os registra
graficamente. Podemos entender os espectros de infravermelho como o resultado de
mudanças nos níveis de energia das moléculas em virtude de alterações do momento de
dipolo ocasionado por vibrações (SKOOG et al, 2009). O gráfico de intensidade de absorção
versus número ou comprimento de onda é chamado de espectro de infravermelho (PAVIA et
al, 2010).
A absorbância de uma determinada frequência do infravermelho é uma característica da
ligação química presente no composto analisado. Para extrair informações estruturais do
espectro, devemos nos familiarizar, através de tabelas de correlação, com as frequências, nas
quais os vários grupos funcionais (proteínas, carboidratos, etc) absorvem.
Para a determinação da sua composição algumas amostras da parte interna e externa do pão
do índio também foram analisadas pelo método de espectroscopia DRIFTS. Os espectros de FT‐
IR foram registrados com FTLH 2000‐160 (ABB Bomem®), na faixa entre 14000 cm‐1 e 4000
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cm‐1, com uma média de 32 digitalizações e uma resolução de 8 cm‐1. De igual modo, alguns
espectros foram obtidos entre 4000 cm‐1 e 400 cm‐1. Os dados foram plotados usando os
programas The Unscrambler® e Origin®.
Parte da amostra ainda foi submetida a um teste físico‐químico clássico para detectar a
presença de amido in natura ou hidrolisado10.
Resultados e discussão
A utilização do método de Tomografia Computadorizada possibilitou a visualização interna do
material analisado (Figura 5) em 3D, tendo sido realizados dois cortes longitudinais a partir do
centro do bloco, que permitiram visualizar as características internas do material. Esta análise
foi realizada usando um tomógrafo Toshiba Asteion®, uma tensão de120 kV, uma corrente x
tempo de 150m As/corte, uma espessura de corte de 3 mm, afastamento 1.8 e exposição de
imagem ponto por ponto a 324 mm.
A figura 5.1 mostra uma estrutura irregular do material analisado, enquanto a 5.2 revela a
presença de alguns poros, de uma grande fissura interna e de alguns grãos de areia na vista
interna 3D do pão do índio.
Em relação à microscopia eletrônica de varredura, utilizada para determinar as características
estruturais do pão do índio, as imagens mostraram a presença de poros e de uma grande
quantidade de hifas (figura 6). Essa morfologia também é apresentada nos trabalhos de Araújo
e Sousa (1978, 1981) sobre o Polyporus indigenus.
10 De acordo com Voet e Voet (2006), o amido apresenta‐se como principal tipo de reserva vegetal, sendo composto por amilose e amilopectina e é considerado um importante carboidrato na dieta humana. É encontrado na forma de grânulos nos cloroplastos das folhas, em grãos, tubérculos e nas frutas. Este autor ainda afirma que sua síntese está localizada nas estruturas vegetais denominadas plastídeos e resulta de reações de polimerização da glicose através da fotossíntese. Entre as peculiaridades desse polissacarídeo, está a diferença entre as moléculas que o compõe, a amilose apresenta estrutura linear e é mais hidrossolúvel que a amilopectina, a qual apresenta estrutura altamente ramificada. Deste modo, torna‐se possível a separação destes componentes após aquecimento.
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Figura 8a: Espectros FTIR da amostra externa do Pão do Índio.
Figura 8b: Espectros FTIR da amostra interna do Pão do Índio
Para caracterização do amido que possivelmente ainda pudesse estar presente no material
analisado, foi planejada uma marcha analítica com três ensaios: Positivo, Branco e Amostra. Os
ensaios foram realizados em duplicata. Em cada tubo (positivo, branco e amostra) foram
adicionados 15 ml de água fervente + 2 ml de água fria. A seguir, foram adicionados 2 ml de
solução reagente de Iodo (Solução iodo 1%‐iodetado). Como resultado observou‐se no Tubo
Positivo (controle) que a solução apresentou coloração azul‐violácea; no Tubo Branco e no da
amostra formou‐se uma solução de coloração amarela.
Assim, constata‐se que houve um resultado não positivo para a presença de amido,
considerando‐se que não ocorreu a formação da cor azul, que é característica do complexo
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SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
amido‐iodo. Não há, portanto, indicativo de que a amostra possa se tratar de alimento
processado de origem vegetal e de base amilácea, de acordo com o teste físico‐químico
específico.
Para complementar esses resultados parte da amostra será submetida a uma análise futura
para microvestígios – fitólitos ‐ que são minerais de sílica presentes em diversas partes de uma
planta como folhas, sementes, brácteas, caule, entre outras (FREITAS, 2002).
Não obstante o pão do índio, objeto de estudo deste artigo, ter sido reportado como um
alimento processado, as análises empreendidas indicaram que esse material apresenta
similaridade estrutural com um esclerócio de um fungo de grandes dimensões, de composição
basicamente polissacarídica. Embora não seja possível identificar a espécie do fungo analisado,
pode‐se afirmar que se trata de um fungo saprófito, que, dentre aqueles conhecidos como
stone fungus, se compõe de duas partes: uma que se desenvolve acima do solo e outra de
consistência sólida que se forma dentro do solo, chamada de esclerócio (PEGLER, 2000). O
estudo do material em questão possibilitou verificar que a composição do pão do índio, de
modo análogo ao descrito na literatura etnográfica, indica que este alimento pertence ao
grupo dos macromicetos, embora, conforme aludido, de espécie ainda não definida.
Exemplos de fungos com este perfil são encontrados e cultivados em países de diferentes
continentes, tal é o caso de Polyporus tuberaster (Jacq. ex Pers.) Fr., localizado em países do
oeste da Europa; de Laccocephalum mylittae (Cooke & Massee) Núñez & Ryvarden (=
P.mylittae Cooke & Massee) e de Laccocephalum tumulosum (Cooke & Massee) Núñez &
Ryvarden (= P. tumulosus Cooke & Massee), na Austrália, entre outros (PEGLER, 2000). Entre
os já citados, a literatura micológica traz algumas referências sobre um tipo de fungo muito
utilizado na China, o Poria cocos, cujo esclerócio apresenta características similares ao material
descrito neste artigo (JIN et al., 2003; HUANG et al., 2007; ESTEBAN, 2009; RUIDIAN et al.,
2010).
Alguns estudos etnográficos e antropológicos sobre os índios Pano (SANTOS e BARCLAY,
1994a, 1994b, 1998, 2004, 2005; NAVEIRA, 2012) e sobre os indígenas da região acreana
(ALMEIDA et al., 2002; BISPO, 1994; CASTELO BRANCO, 1950, 1952; TASTEVIN, 1919) foram
consultados para efeitos deste trabalho com o objetivo de investigar as referências sobre o
SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
pão do índio, não tendo, contudo, resultado satisfatório. A coleta e consumo de fungos
comestíveis, no entanto, pode ser constatada como uma prática entre alguns grupos Pano,
especialmente na Amazônia peruana (SANTOS e BARCLAY, 1994a, 2005). Mesmo escassas, há
referências também sobre o consumo de fungos, encontradas entre os Pano do Brasil
(ALMEIDA et al., 2002) .
O levantamento bibliográfico sobre o pão do índio ou pão‐de‐índio, grafado com ou sem hífen,
trouxe à tona dois artigos sobre fungos que recebem a mesma denominação (ARAÚJO e
SOUSA, 1978, 1981). Essas referências apresentam uma nova espécie de fungo nativo da
Amazônia, denominado Polyporus indigenus I.J.A. Aguiar & M.A. de Sousa, conhecido por
habitantes da região como pão do índio. Neste artigo as pesquisadoras citam a importância
econômica do esclerócio desse fungo, usado como alimento ou aperitivo, referindo que o
fungo é apreciado no preparo de sopas, moído e cortado em pequenos pedaços. A alusão é
apenas ao consumo do P. indigenus por populações amazônicas, não havendo referência a
nenhuma etnia indígena. Atingindo 60 kg, “O pão do índio” da Amazônia é amplamente
distribuído na região onde encontra condições favoráveis ao seu desenvolvimento. “É
conhecido e utilizado como alimento pelo caboclo há vários anos.” (ARAÚJO e SOUSA, 1981, p.
449).
Os estudos na área de etnomicologia ainda são escassos no Brasil, o que limita o
conhecimento acerca do consumo de fungos comestíveis destinados à alimentação.
Onze espécies de Polyporus foram registradas na região amazônica brasileira, dentre eles P.
indigenus e P. sapurema Möller, espécies que apresentam esclerócio (GOMES‐SILVA et al,
2012).
Fungos silvestres comestíveis têm um papel de destaque na alimentação de populações nos
mais diferentes países e continentes. No Brasil, no entanto, Prance (1986) refere, com base em
Fidalgo (1968) e outros estudos, que os fungos não se constituíam usualmente como uma
fonte de alimento pelos índios da região amazônica. Ou seja, os povos indígenas amazônicos
não foram considerados micófilos. Nesse quadro, os índios Yanomami, estudados por Prance
(op. cit.), foram considerados uma exceção. As espécies mais utilizadas por esses índios são as
da família das poliporáceas e das agaricáceas, sendo as primeiras as mais consumidas, a saber:
SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
Lentinus crnitus (L.) Fr., além de Favolus brasiliensis (Fr.) Fr. (= F. tenuiculus P. Beauv.), P.
tricholoma Mont., P. aquosus Henn. e P. stipitarius Berk. & M. A. Curtis (= P. tricholoma).
Este autor nos dá uma informação sobre o sabor de alguns fungos consumidos pelos
Yanomami:
O fungo Polypous aquosus, grande e macio, semelhante ao pão em consistência, mas muito sem gosto para nosso paladar, é comido cru. Alguns dos fungos, tais como Lenitus critinus, são duros e rijos, e é difícil compreender porque são apreciados como componentes da alimentação (PRANCE, 1986, p.120).
A utilização de espécies de fungos saprófitos representa para os Yanomami, segundo Prance
(1986), um útil casamento com a prática agrícola da mandioca, uma vez que o preparo do local
do plantio, com a derrubada da mata e permanência da vegetação caída para se decompor no
local, gera um ambiente favorável para a proliferação dos fungos. O período que precede a
colheita da mandioca torna‐se, assim, uma temporada farta para a coleta de fungos,
importando numa prática sustentável e representando um equilíbrio harmônico do que pode
ser extraído da natureza.
No caso do pão do índio fornecido pelos Nukini, estudado neste artigo, cuja análise indicou se
tratar de um fungo, e não de um alimento processado, podemos considerar duas hipóteses: a)
o pão do índio como alimento processado, por ser uma prática já extinta entre os Nukini, não é
mais reconhecida materialmente por esses índios, ou; b) o pão do índio outrora consumido
pelos Nukini na realidade era um fungo, tendo havido, no entanto, uma releitura da tradição
oral por esses índios em razão de uma prática não mais existente. Nesse sentido, talvez a
peculiar associação do “cultivo” de fungos saprófitos com o terreno preparado para o plantio
da mandioca nos dê pistas para explicar o porquê supostamente essa tradição oral tenha
sofrido uma releitura. Um forte elemento para se pensar na plausibilidade desta hipótese é o
fato de ter sido reportado pelos índios na atualidade ser comum encontrar o pão do índio em
“antigos roçados”. As duas práticas, na verdade, são plausíveis. Contudo, apenas a
continuidade das pesquisas sobre a tradição oral dos Nukini e o pão do índio, associada a uma
investigação etnoarqueológica poderão elucidar o contexto do uso do pão do índio. Nesse
SANTOS, C. A.; SILVA, F. E. C.; SILVA, S. F. S. M.; SULLASI, H. S. L.; SILVA, A. C.; OLIVEIRA, C. A.; PAULA, A. S.; GUETTI, N. C; CASTRO, V. M. C.; WEBER, I.T. O Pão do Índio dos Nukini do Amazonas: Estudo de Caso Sobre o Uso de Suprimentos Específicos na Dieta Alimentar Indígena.
sentido essa pesquisa apresenta uma contribuição de fundamental importância para os
estudos da dieta alimentar indígena na região amazônica.
Na perspectiva antropológica o pão do índio demonstra a relação homem/fungo. Ao que tudo
indica similarmente às sociedades micófilas, como os habitantes rurais da China, Japão,
Europa, Índia e México, alguns grupos Pano relacionavam‐se e ainda se relacionam de forma
peculiar com os fungos, integrando‐os a sua dieta.
O uso de fungos na alimentação indígena registrado anteriormente pode ser verificado pelo
estudo da amostra disponibilizada. Através do uso das técnicas de TC3D, MEV, Espectroscopia
IV, foram obtidos dados que possibilitaram identificar a composição do pão do índio originado
dos Nukini. As análises realizadas permitiram, portanto, inferir que o material objeto deste
estudo possui traços de natureza micológica – presença de micélios e hifas e composição
basicamente polissacarídica. Assim, constata‐se a importância da aplicabilidade dessas
técnicas nos estudos de vestígios etnoarqueológicos dessa natureza.
Por fim, a descoberta e estudo desse tipo de ecofato, quando encontrado em sítios e no
entorno de áreas indígenas, representa um novo viés para o estudo dos vestígios
etnoarqueológicos de povos indígenas, como também pode vir a contribuir na interface com a
arqueometria.
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