O Morro dos Ventos Uivantes - Emily Bronte.pdf

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  • COPYRIGHT BY EDITORA LANDMARK LTDA. O MORRO DOS VENTOS UIVANTES

    CAPTULO I CAPTULO II CAPTULO III CAPTULO IV CAPTULO V CAPTULO VI CAPTULO VII CAPTULO VIII CAPTULO IX CAPTULO X CAPTULO XI CAPTULO XII CAPTULO XIII CAPTULO XIV CAPTULO XV CAPTULO XVI CAPTULO XVII CAPTULO XVIII CAPTULO XIX CAPTULO XX CAPTULO XXI CAPTULO XXII CAPTULO XXIII CAPTULO XXIV CAPTULO XXV CAPTULO XXVI CAPTULO XXVII CAPTULO XXVIII CAPTULO XXIX CAPTULO XXX CAPTULO XXXI CAPTULO XXXII CAPTULO XXXIII CAPTULO XXXIV

    WUTHERING HEIGHTS CHAPTER I CHAPTER II CHAPTER III CHAPTER IV CHAPTER V CHAPTER VI CHAPTER VII CHAPTER VIII CHAPTER IX CHAPTER X CHAPTER XI CHAPTER XII CHAPTER XIII CHAPTER XIV CHAPTER XV

  • CHAPTER XVI CHAPTER XVII CHAPTER XVIII CHAPTER XIX CHAPTER XX CHAPTER XXI CHAPTER XXII CHAPTER XXIII CHAPTER XXIV CHAPTER XXV CHAPTER XXVI CHAPTER XXVII CHAPTER XXVIII CHAPTER XXIX CHAPTER XXX CHAPTER XXXI CHAPTER XXXII CHAPTER XXXIII CHAPTER XXXIV EMILY BRONT

  • EMILY BRONT

    O MORRO DOS VENTOS UIVANTES

    EDIO BILNGUE

    WUTHERING HEIGHTS

    EDITORA LANDMARK

    2012

  • COPYRIGHT BY EDITORA LANDMARK LTDA.TODOS OS DIREITOS RESERVADOS PARA ESTA EDIO EDITORA LANDMARK LTDA.

    DIRETOR EDITORIAL: FABIO CYRINODIAGRAMAO E CAPA: ARQUTIPO DESIGN+COMUNICAO

    TRADUO E NOTAS: DORIS GOETTEMSREVISO: FRANCISCO DE FREITAS

    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)(CMARA BRASILEIRA DO LIVRO, CBL, SO PAULO, BRASIL)

    BRONT, EMILY (1818-1848)O MORRO DOS VENTOS UIVANTES WUTHERING HEIGHTS / EMILY BRONT ; {TRADUO E NOTAS DORIS

    GOETTEMS }- - SO PAULO: EDITORA LANDMARK 2012.

    TTULO ORIGINAL: WUTHERING HEIGHTSISBN 978-85-8070-020-6

    E-ISBN 978-85-8070-004-61. ROMANCE INGLS I. TTULO.

    12-05351 CDD: 823

    NDICES PARA CATLOGO SISTEMTICO:1. ROMANCES: LITERATURA INGLESA 823

    TEXTOS ORIGINAIS EM INGLS DE DOMNIO PBLICO.NENHUMA PARTE DESTA OBRA PODER SER REPRODUZIDA ATRAVS DE QUALQUER MTODO, NEM SERDISTRIBUDA E/OU ARMAZENADA EM SEU TODO, OU EM PARTES, ATRAVS DE MEIOS ELETRNICOS, SEM

    PERMISSO EXPRESSA DA EDITORA LANDMARK, CONFORME LEI N 9610, DE 19/02/1998.

    EDITORA LANDMARKRUA ALFREDO PUJOL, 285 - 12 ANDAR - SANTANA

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    2012

  • O MORRO DOS VENTOS UIVANTES

  • CAPTULO I

    1801

    VOLTEI h pouco de uma visita ao meu senhorio o nico vizinho que poderia me aborrecer.Esta uma bela regio, por certo! No creio que possa encontrar, em toda a Inglaterra, um lugar tointeiramente afastado do burburinho da sociedade. O paraso perfeito de um misantropo; e Mr.Heathcliff e eu somos o par ideal para partilhar desse isolamento. Excelente sujeito! Ele mal podeimaginar como fiquei entusiasmado com ele, quando vi seus olhos negros se retrarem comdesconfiana sob as sobrancelhas, logo que cheguei a cavalo, e quando seus dedos se enterraram,com zelosa determinao, ainda mais fundo no colete assim que anunciei meu nome.

    Mr. Heathcliff? eu disse.Um aceno de cabea foi a resposta. Sou Mr. Lockwood, seu novo inquilino, senhor. Concedi-me a honra de visit-lo assim que

    cheguei, para manifestar a esperana de que eu no o tenha incomodado com minha insistncia emocupar a Granja Thrushcross. Ontem ouvi dizer que o senhor pretendia...

    A Granja Thrushcross propriedade minha, senhor ele interrompeu, recuando. Nopermito que ningum venha a me incomodar, se puder evitar... Entre!

    O entre foi dito com os dentes cerrados e expressava um sentimento de V para oinferno!: e nem o porto sobre o qual ele se apoiava manifestou qualquer movimento em sintoniacom essas palavras. E creio que foi esta circunstncia que me decidiu a aceitar o convite: sentia-meinteressado em um homem que parecia mais exageradamente reservado do que eu.

    Ao ver que meu cavalo avanava para o porto, ele esticou a mo para destrav-lo, e entoseguiu minha frente no caminho, de mau humor. Quando chegamos ao ptio, chamou:

    Joseph, leve o cavalo de Mr. Lockwood e traga um pouco de vinho.Essa toda a criadagem que temos por aqui foi o que conclu da dupla ordem dada ao

    criado. No admira que a grama cresa entre os ladrilhos do ptio, se no h ningum para cort-la,alm do gado.

    Joseph era um homem idoso, ou antes, um ancio: muito velho, talvez, ainda que saudvel erobusto. Que Deus nos ajude! ele resmungou em um tom de enfado mal-humorado, enquanto meliberava do cavalo, e olhou para mim com tanto azedume que eu caridosamente imaginei que eleprecisasse da ajuda divina para digerir seu jantar, e que a sua exclamao piedosa no tinha nenhumarelao com a minha chegada inesperada.

    O Morro dos Ventos Uivantes o nome da residncia de Mr. Heathcliff. Ventos Uivantes um provincianismo significativo, que descreve o tumulto atmosfrico ao qual este lugar fica expostoquando h tempestade. Na verdade, eles devem ter l em cima um ar puro e tonificante o tempo todo:pode-se adivinhar o poder do vento norte soprando sobre a aresta pela inclinao excessiva dealguns abetos raquticos, dispostos ao final da casa; e por uma fileira de frgeis espinheiros, todosalongando seus galhos na mesma direo, como se suplicassem uma esmola do sol. Felizmente, oarquiteto teve o cuidado de construir a casa slida: as janelas estreitas foram fixadas profundamentena parede e os cantos protegidos por grandes pedras salientes.

    Antes de cruzar o limiar, parei para admirar uma sucesso de grotescos entalhes espalhadosem abundncia pela fachada, especialmente perto da porta principal, sobre a qual, entre umaconfuso de grifos esfarelados e meninos despudorados, descobri a data 1500 e o nome HaretonEarnshaw. Eu teria feito alguns comentrios e pedido ao rabugento proprietrio uma curta histriado lugar, mas sua atitude porta parecia exigir que eu entrasse logo ou partisse de uma vez, e eu nodesejava agravar sua impacincia antes de examinar o interior.

    Um degrau nos levou direto sala de estar da famlia, sem qualquer passagem ou vestbulointrodutrio: aqui chamam isso de a casa propriamente dita. De modo geral, inclui cozinha e salo,

  • mas acredito que no Morro dos Ventos Uivantes a cozinha foi forada a retirar-se completamentepara outro cmodo: pelo menos distingui um rumor de conversa e um rudo de utenslios culinrios,mais para dentro; e no vi nenhum sinal de que algum usasse o enorme fogo para cozinhar, ferver,ou assar po; nem qualquer brilho de caarolas de cobre e coadores de lato nas paredes. Em um doscantos da sala, na verdade, a luz o e calor refletiam-se magnificamente em fileiras de enormes pratosde estanho, entremeados por jarros de prata e canecas, as fileiras empilhadas umas sobre as outrasat o teto, em um vasto guarda-loua de carvalho. O teto nunca recebera acabamento: toda a suaanatomia se mostrava a um olhar investigador, exceto onde era escondida por uma estrutura demadeira carregada com bolos de aveia e fileiras de pernis de boi, carneiro e presunto. Sobre alareira havia vrias armas velhas abominveis e um par de pistolas de cavaleiro, e, guisa deornamento, trs caixas pintadas de cores fortes, dispostas ao longo da prateleira. O piso era de pedralisa e branca. As cadeiras, de espaldar alto e estrutura primitiva, eram pintadas de verde; uma ouduas, pretas e pesadas, escondiam-se nas sombras. Em um arco sob o guarda-loua repousava umaenorme cadela perdigueira castanha, cercada por uma ninhada de filhotes que ganiam; e outros cesassombravam outros recessos do cmodo.

    O aposento e a moblia no teriam nada de extraordinrio se pertencessem a um humildefazendeiro do norte, de semblante teimoso e membros robustos ressaltados por calas at o joelho epolainas. Tal espcie de indivduo, sentado em sua poltrona, a caneca de cerveja espumando na mesaredonda sua frente, pode ser visto em qualquer lugar num raio de cinco ou seis milhas em meio aessas colinas, se voc chegar na hora certa, aps o jantar. Mas Mr. Heathcliff contrasta de formasingular com sua casa e seu estilo de vida. Ele tem o aspecto de um cigano de pele morena, e ostrajes e os modos de um cavalheiro; isto , to cavalheiro quanto muitos senhores rurais: um tantodesalinhado, talvez, ainda que no parea inadequado em sua negligncia, pois tem uma figura ereta ebonita, mas um tanto intratvel. possvel que algumas pessoas suspeitem nele certo grau do orgulhodas pessoas rsticas. Algo me diz que no nada disso: eu sei, por instinto, que sua reserva vem daaverso a exibies vistosas de sentimentos, como as manifestaes de gentileza mtuas. Ele amar eodiar igualmente em segredo, e considerar uma espcie de impertinncia ser amado ou odiado porsua vez. No, estou indo depressa demais: estou concedendo a ele, com muita generosidade, todos osmeus atributos. Mr. Heathcliff deve ter razes muito diferentes para manter a reserva quando travaum novo relacionamento, do que aquelas que costumam atuar sobre mim. Permito-me acreditar quemeu temperamento seja quase estranho: minha querida me costumava dizer que eu nunca teria um larconfortvel e s no vero passado provei ser perfeitamente indigno de um.

    Enquanto desfrutava um ms de tempo bom beira-mar, fui lanado companhia da maisfascinante das criaturas: uma verdadeira deusa aos meus olhos, contanto que ela no reparasse emmim. Nunca falei do meu amor em palavras. Mas, se os olhos falam, o idiota mais completo poderiater adivinhado que eu estava apaixonado. Ela entendeu afinal, e me retribuiu o olhar... o mais doce detodos os olhares imaginveis. E o que foi que eu fiz? Confesso, envergonhado... esfriei e encolhi-mecomo um caracol. A cada olhar eu me tornava mais frio e distante, at que finalmente a pobreinocente foi levada a duvidar dos prprios sentidos, e, tomada pela confuso ante o seu supostoengano, persuadiu a me a partir. Por essa curiosa mudana de disposio, ganhei a reputao decrueldade deliberada; o quanto injusta, s eu posso avaliar.

    Sentei-me a um canto da pedra da lareira, oposta direo tomada pelo meu senhorio, epreenchi um intervalo de silncio tentando acariciar a me canina, que deixara suas crias e vieraenfiar-se furtivamente por trs das minhas pernas, com os beios revirados e os dentes brancosprontos para uma mordida. Minha carcia provocou um grunhido longo e gutural.

    melhor deixar a cadela em paz grunhiu Mr. Heathcliff por sua vez, evitandodemonstraes mais ferozes com um pontap. Ela no est acostumada a ser mimada... no mantida como animal de estimao. Ento, avanando at uma porta lateral, gritou outra vez: Joseph!

    Joseph resmungou indistintamente das profundezas da adega, mas no deu nenhum sinal de quesubiria: assim, o patro desceu para encontr-lo, deixando-me frente a frente com a cadela selvagem

  • e um par de ces pastores peludos e raivosos, que compartilhavam com ela uma zelosa vigilnciasobre todos os meus movimentos. Como no ansiava para sentir seus dentes, sentei-me quieto; mas,imaginando que eles no entenderiam insultos tcitos, tive a infeliz ideia de piscar e fazer caretaspara o trio e alguma das minhas mudanas de expresso deixou a senhora to irritada que, derepente, ela se enfureceu e pulou em meus joelhos. Empurrei-a para longe, e me apressei a colocar amesa entre ns. Essa atitude excitou a matilha inteira: meia dzia de demnios de quatro patas, devrios tamanhos e idades, saram dos seus esconderijos para o centro da pea. Senti meus saltos e aslapelas do casaco como alvos especiais de agresso; e afastando os combatentes maiores toeficazmente quanto podia com o atiador de brasas, fui forado a exigir, em voz alta, a ajuda dealgum da casa para restabelecer a paz.

    Mr. Heathcliff e o criado escalaram os degraus do poro com calma irritante: no creio quetivessem se movido um segundo mais rpido do que o habitual, embora a casa estivesse tomada poruma completa tempestade de aflio e ganidos. Felizmente, algum da cozinha foi mais despachado:uma senhora vigorosa, com o vestido arregaado, braos nus e as faces coradas pelo fogo, correupara o meio da confuso brandindo uma frigideira. E usou aquela arma e a sua lngua com tantapropriedade que a tempestade se acalmou num passe de mgica, e s ela permaneceu, arfando como omar aps a ventania, quando seu patro entrou em cena.

    Que diabos est acontecendo? ele perguntou, olhando-me de um modo que eu mal pudesuportar, depois desse tratamento nada hospitaleiro.

    Que diabos, realmente! eu resmunguei. Uma vara de porcos possessos no poderia ter oesprito pior do que os seus animais, senhor. como deixar um estranho com uma ninhada de tigres!

    Eles no se intrometem com pessoas que no tocam em nada ele observou, pondo agarrafa minha frente e recolocando a mesa no lugar. Os ces esto a para vigiar. Aceita uma taade vinho?

    No, obrigado. No foi mordido, no ? Se eu tivesse sido, teria deixado minha marca no agressor.O semblante de Heathcliff abriu-se em um sorriso. Ora, ora ele disse o senhor est nervoso, Mr. Lockwood. Vamos, tome um pouco de

    vinho. As visitas so de tal modo raras nesta casa que eu e meus ces, estou disposto a admitir, quaseno sabemos como receb-los. sua sade, senhor!

    Eu me curvei e devolvi o cumprimento, percebendo que seria tolo ficar de mau humor porcausa do mau comportamento de um bando de vira-latas. Alm disso, eu me negava a permitir que omeu companheiro continuasse a se divertir s minhas custas, j que estava disposto a isso. Ele talvez contido pela prudente considerao da loucura de ofender um bom inquilino abrandou umpouco seu estilo lacnico, sem pronomes nem verbos auxiliares, e introduziu um assunto que elesups ser do meu interesse: um discurso sobre as vantagens e desvantagens do meu atual lugar deretiro. Achei-o muito inteligente nos tpicos que abordamos e, antes de sair, criei coragem parapropor voluntariamente outra visita no dia seguinte. Era evidente que ele no desejava uma novaintruso da minha parte. Eu irei, de qualquer modo. surpreendente como me sinto socivelcomparado a ele.

  • CAPTULO II

    A TARDE de ontem comeou nublada e fria. Eu preferia pass-la junto lareira do meuestdio, em vez de patinhar pela lama e pelo mato at o Morro dos Ventos Uivantes. Aps o jantar,porm (eu janto entre meio-dia e uma hora; a empregada, uma senhora de ares matronais, que me foialugada junto com a casa como um utenslio, no pde ou no quis compreender meu pedido de serservido s cinco), subindo a escadaria com essa preguiosa inteno, ao entrar na pea vi uma jovemcriada de joelhos cercada por escovas e caixas para carvo, e levantando uma poeira infernalenquanto extinguia as chamas com montes de cinzas. Este espetculo me fez recuar imediatamente.Peguei meu chapu e, depois de uma caminhada de quatro milhas, cheguei ao porto do jardim deHeathcliff bem a tempo de escapar dos primeiros flocos macios da neve que comeava a cair.

    No topo daquela colina exposta, a terra endurecera sob uma camada de geada e o vento mefazia estremecer dos ps cabea. Incapaz de remover a corrente, saltei sobre o porto, e, subindodepressa o caminho ladeado por esparsas groselheiras silvestres, bati em vo na porta, at queminhas juntas formigassem e os ces uivassem.

    Moradores miserveis! exclamei, mentalmente. Merecem ficar eternamente isolados dasua espcie por essa rude falta de hospitalidade. Eu, pelo menos, no manteria minhas portastrancadas durante o dia. No me importo... vou entrar! Decidido, agarrei o trinco e sacudi-o comfora. Joseph, com sua cara azeda, projetou a cabea por uma abertura redonda do celeiro.

    O que o senhor quer? ele gritou. O patro desceu para caar aves. D a volta no final dacerca, se quer falar com ele.

    No h ningum a dentro para abrir a porta? gritei, como resposta. No h ningum a no ser a patroa, e ela no vai abrir, nem que o senhor continue com essa

    barulheira at que anoitea. Por qu? Voc no pode lhe dizer quem eu sou, Joseph? No, eu no! No tenho nada com isso murmurou a cabea, desaparecendo.A neve comeou a cair com mais intensidade. Agarrei a aldrava para fazer uma nova tentativa

    quando um rapaz sem casaco, com um forcado nos ombros, surgiu no quintal dos fundos. Ele gritoupara que eu o seguisse, e, depois de passar por uma rea de lavanderia e uma rea pavimentadacontendo um depsito de carvo, uma bomba e um pombal, chegamos enfim ao vasto salo, aquecidoe acolhedor, onde eu fora recebido no dia anterior. A pea brilhava alegremente com um imensofogo, composto de carvo, turfa e madeira; e perto da mesa, posta para uma farta refeio noturna,tive o prazer de observar a patroa, um ser de cuja existncia eu jamais suspeitara antes. Fiz umcumprimento com a cabea e esperei, pensando que ela me convidaria a sentar. Ela me olhou,recostada na cadeira, e permaneceu imvel e silenciosa.

    Que tempo horrvel! observei. Receio que a porta tenha sofrido as consequncias doatendimento indolente dos seus criados, Mrs. Heathcliff. Tive muito trabalho em faz-los me ouvir.

    Ela nem abriu a boca. Eu a encarei... ela me encarou tambm: de qualquer modo, manteve osolhos sobre mim de um modo frio e desdenhoso, extremamente embaraoso e desagradvel.

    Sente-se disse o rapaz, de modo brusco. Ele vai chegar logo.Obedeci. Pigarreei e chamei a desprezvel Juno, que se dignou, neste segundo encontro, a

    abanar a ponta da cauda em sinal de reconhecimento. Um belo animal! recomecei. Pretende doar alguns filhotes, senhora? Eles no so meus disse a amvel anfitri, respondendo de um modo mais repulsivo do

    que o prprio Heathcliff teria respondido. Ah! Os seus favoritos so estes, ento? continuei, virando-me para uma almofada

    indistinta cheia de algo parecido com gatos. Estranha escolha de favoritos! ela observou, com desdm.

  • Infelizmente, era um monte de coelhos mortos. Pigarreei uma vez mais e cheguei mais perto dalareira, repetindo meu comentrio sobre a intemprie do anoitecer.

    O senhor no deveria ter sado ela disse, levantando-se para apanhar da prateleira sobre alareira duas das latas de ch coloridas.

    Na posio em que se encontrava antes, ela estava protegida da luz; agora, eu podia verdistintamente a sua figura e as feies. Ela era esbelta, e aparentava mal ter passado da adolescncia:tinha uma forma admirvel e o rostinho mais primoroso que eu j tivera o prazer de contemplar;traos finos, muito delicados; cachos louros, ou melhor, dourados, pendiam suaves sobre o pescoodelicado; e os olhos, se tivessem uma expresso agradvel, teriam sido irresistveis: felizmente parameu corao suscetvel, o nico sentimento que eles demonstravam pairava entre o desprezo e umaespcie de desespero, bastante surpreendente naquele rosto. As latas estavam quase fora do seualcance; fiz um movimento para ajud-la: ela virou-se para mim como faria um avarento se algumtentasse ajud-lo a contar seu ouro.

    No quero a sua ajuda ela disse, com aspereza. Posso peg-las eu mesma. Peo-lhe perdo! apressei-me a responder. O senhor foi convidado para o ch? ela perguntou, amarrando um avental sobre o elegante

    vestido negro, e aguardando com uma colher cheia de ch suspensa sobre o pote. Eu gostaria de tomar uma xcara respondi. Foi convidado? ela repetiu. No disse eu, sorrindo levemente. Mas a senhora a pessoa indicada para me convidar.Ela arremessou o ch de volta, com colher e tudo, e voltou para sua cadeira; tinha a testa

    franzida e o rosado lbio inferior esticado, como uma criana prestes a chorar.Enquanto isso, o rapaz tinha atirado sobre o corpo um sobretudo extremamente surrado, e,

    pondo-se de p diante do fogo, olhou-me com o canto dos olhos, como se houvesse entre ns umarixa mortal espera de vingana. Comecei a questionar se ele era ou no um criado: tanto as roupasquanto o modo de falar eram rudes, sem nenhum trao da superioridade demonstrada por Mr. e Mrs.Heathcliff. Seus fartos cachos castanhos eram speros e maltratados, as suas avanavam de modotosco sobre as faces, e as mos eram escuras como as de um trabalhador comum: ainda assim suaatitude era independente, quase insolente, e ele no mostrava nenhum sinal do servilismo de umcriado para atender a dona da casa. Na ausncia de provas concretas sobre a sua condio, julgueimelhor no reparar naquela conduta curiosa; e, cinco minutos depois, a entrada de Heathcliff mealiviou, de certo modo, daquela situao incmoda.

    Como pode ver, senhor, eu vim, conforme prometi! exclamei, assumindo uma atitudealegre. Mas receio que ficarei retido pelo mau tempo, pelo menos por meia hora, se o senhor puderme conceder abrigo durante esse tempo.

    Meia hora? ele disse, sacudindo os flocos brancos das roupas. Pergunto-me por queescolheu o pior momento da tempestade de neve para vagar por a. O senhor sabe que corre o riscode ficar perdido nos pntanos? At pessoas que conhecem bem a charneca frequentemente se perdemno caminho em noites como esta; e posso lhe dizer que no momento no h nenhuma chance de que otempo mude.

    Talvez um dos seus criados possa me servir de guia, e ele poder ficar na Granja atamanh. Poderia me ceder um deles?

    No, no posso. Ah, no diga! Bem, ento terei que confiar na minha prpria astcia. Hum! Voc vai fazer o ch? exigiu o indivduo do casaco surrado, desviando de mim o olhar

    feroz e lanando-o sobre a jovem senhora. E ele, vai tomar ch? ela perguntou, consultando Heathcliff.

  • Faa logo, est bem? foi a resposta, proferida de um modo to selvagem que me espantou.O tom no qual as palavras foram ditas revelou uma natureza genuinamente m. Eu j no me sentiainclinado a considerar Heathcliff um excelente sujeito. Quando o ch ficou pronto ele me convidou,dizendo Bem, senhor, aproxime sua cadeira. E todos ns, inclusive o rapaz grosseiro, sentamos emvolta da mesa: reinou um silncio austero enquanto nos ocupvamos com a refeio.

    Pensei que, se eu tinha causado o mal-estar, era meu dever fazer um esforo para desanuviar oambiente. Eles no podiam sentar-se assim todos os dias, to sombrios e taciturnos; e era impossvel,por mais mal-humorados que fossem, que a carranca fosse o seu semblante habitual.

    estranho comecei, enquanto terminava uma xcara de ch e recebia outra estranhocomo o hbito pode moldar nossos gostos e ideias: muitos no conseguem imaginar que possa haverfelicidade em uma vida to afastada do mundo, como a sua, Mr. Heathcliff. No entanto, me arrisco adizer que, cercado pela sua famlia, e com sua amvel esposa como o anjo da guarda da sua casa e doseu corao...

    Minha amvel esposa! ele interrompeu, com uma expresso de desdm quase diablica norosto. Onde est ela... minha amvel esposa?

    Mrs. Heathcliff, sua esposa, quero dizer. Bem, sim... Ah, o senhor quer dizer que o esprito dela ocupou o posto de anjo da guarda, e

    protege a sorte do Morro dos Ventos Uivantes, mesmo que o corpo esteja debaixo da terra. isso?Percebendo que cometia um erro estpido, tentei corrigi-lo. Eu deveria ter visto que havia

    uma enorme diferena de idade entre eles, para que fossem tomados por marido e mulher. Um tinhaaproximadamente quarenta anos: um perodo de vigor mental no qual os homens raramente acalentama iluso de que as meninas se casam com eles por amor: esse sonho est reservado para o consolodos anos de declnio. A moa no aparentava dezessete anos.

    Ento me dei conta... O palerma ao meu lado, que est tomando o ch numa xcara sem pirese comendo sem lavar as mos, deve ser o marido dela: Heathcliff filho, claro. Essa aconsequncia de ser enterrada viva: ela desperdiou sua vida com esse grosseiro, ignorandoabsolutamente que existiam indivduos melhores! Uma pena... devo ter o cuidado de induzi-la alamentar a sua escolha. A ltima ideia poderia parecer convencimento, mas no era. Meu vizinhome espantava por ser quase repulsivo, e eu sabia, por experincia prpria, que eu era razoavelmenteatraente.

    Mrs. Heathcliff minha nora disse Heathcliff, confirmando minha conjetura. Enquantofalava, lanou um olhar estranho na direo da moa: um olhar de dio; a menos que tivessemsculos faciais perversos que no expressassem, como os das outras pessoas, o que se passava emsua alma.

    Ah, claro... Agora entendo: o senhor o feliz proprietrio desta fada benfazeja observei,virando-me para o meu vizinho.

    Foi pior que antes: o rapaz ficou vermelho e cerrou os punhos, dando todos os indcios deuma agresso iminente. Mas ele pareceu se controlar na mesma hora, sufocando a raiva em uma pragabrutal dirigida a mim, a qual, porm, fingi no perceber.

    Foi infeliz em suas conjeturas, senhor observou meu anfitrio nenhum de ns tem oprivilgio de possuir sua fada benfazeja: o marido dela est morto. Disse que ela era minha nora,portanto, deve ter se casado com meu filho.

    E este jovem ... No meu filho, asseguro-lhe.Heathcliff sorriu novamente, como se fosse uma enorme ousadia fazer piada atribuindo a ele a

    paternidade daquele urso. Meu nome Hareton Earnshaw rosnou o outro e eu o aconselho a respeit-lo! No demonstrei nenhum desrespeito foi a minha resposta, enquanto ria por dentro da

  • dignidade com que ele mesmo se anunciou.O rapaz manteve os olhos fixos em mim por mais tempo do que eu me preocupei em encar-

    lo, por medo de que eu pudesse dar-lhe uns tapas ou tornar meu riso audvel. Comecei a me sentir,sem dvida, deslocado naquele agradvel crculo familiar. A atmosfera lgubre superava, eneutralizava inteiramente, os alegres confortos fsicos que me cercavam; e decidi ser cauteloso, casome arriscasse a abrigar-me sob esse teto uma terceira vez.

    Tendo acabado a refeio sem que ningum dissesse uma palavra sequer de conversaosocial, aproximei-me da janela para examinar o tempo. Vi um quadro lamentvel: a noite escurachegando prematuramente, e o cu e as colinas cobertos por um redemoinho de vento e nevesufocante.

    Acho que no poderei chegar em casa agora sem um guia no pude deixar de exclamar. As estradas j devem estar cobertas de neve; e, se elas no forem demarcadas, mal poderei enxergarmeio metro frente.

    Hareton, leve essa dzia de ovelhas para o alpendre do celeiro. Se as deixarmos no redildurante toda a noite, a neve vai cobri-las: e coloque uma prancha frente delas disse Heathcliff.

    O que devo fazer? continuei, com irritao crescente.No houve resposta minha pergunta. Olhando em volta vi apenas Joseph, trazendo um balde

    de mingau de aveia para os cachorros, e Mrs. Heathcliff, inclinada diante do fogo, divertindo-se emqueimar um pacote de fsforos que havia cado da prateleira, quando ela recolocou a lata de ch nolugar. O primeiro, aps descarregar o seu fardo, inspecionou criticamente a sala e, com voz detaquara rachada, grunhiu:

    No sei como voc consegue ficar a parada sem fazer nada, quando todos os outros esto lfora! Mas voc uma intil, e no adianta falar... Nunca vai se corrigir desses maus modos, mas vaidireto para o inferno, como a sua me foi antes de voc!

    Pensei por um momento que essa eloquente declarao fosse dirigida a mim, e, tomado defria, marchei na direo do velho patife com a inteno de chut-lo porta afora. Mrs. Heathcliff,porm, me impediu ao responder:

    Seu velho hipcrita e odioso! ela respondeu. No tem medo de ser carregado em carne eosso, cada vez que menciona o nome do diabo? Estou avisando para parar de me provocar, oupedirei ao diabo que o leve, como um favor especial! Espere! Olhe aqui, Joseph ela continuou,pegando um livro enorme e escuro na estante vou lhe mostrar como progredi na arte da MagiaNegra: logo serei capaz de fazer uma limpeza nesta casa. A vaca vermelha no morreu por acaso; eseu reumatismo dificilmente pode ser considerado como uma graa divina!

    Ah! Sua bruxa perversa! ofegou o ancio. Que Deus nos livre do mal! No, condenado! Voc um pria, afaste-se ou vou feri-lo gravemente! Vou moldar todos

    aqui em cera e argila! E o primeiro que ultrapassar os limites que fixei... no direi o que vaiacontecer com ele mas voc vai ver! V, estou de olho em voc!

    A pequena bruxa ps uma expresso de falsa malignidade nos belos olhos, e Joseph, tremendode verdadeiro horror, correu para fora, rezando e exclamando bruxa enquanto saa. Pensei que aconduta dela fosse motivada por uma espcie de humor negro; e, agora que estvamos sozinhos, tenteiinteress-la no meu infortnio.

    Mrs. Heathcliff eu disse, em tom srio perdoe-me por incomod-la. Estou certo de que,com a sua aparncia, a senhora no pode deixar de ter um bom corao. Mostre-me alguns pontos dereferncia que possam me guiar pelo caminho at minha casa. No tenho a menor ideia de comochegar l, assim como a senhora no saberia como chegar a Londres!

    Pegue a estrada pela qual veio at aqui ela respondeu, afundando-se em uma cadeira, comuma vela e o enorme livro aberto diante de si. um conselho breve, mas o mais certo que possolhe dar.

    Ento, se ouvir falar que fui encontrado morto em algum pntano ou em um buraco cheio de

  • neve, sua conscincia no vai sussurrar que foi em parte culpa sua? O que est dizendo? Eu no posso escolt-lo. Eles no me deixariam ir nem at o fim do

    muro do jardim. A senhora? No, eu no lhe pediria que cruzasse nem sequer a soleira, para minha

    comodidade, em uma noite como esta exclamei. Peo-lhe para me indicar o caminho, no paramostr-lo: ou ento convencer Mr. Heathcliff a me conseguir um guia.

    E quem seria? Aqui s h ele mesmo, Earnshaw, Zillah, Joseph e eu. Qual o senhorescolhe?

    No h rapazes na fazenda? No, s essas pessoas que citei. Ento, presumo que serei obrigado a ficar. O senhor deve resolver esse assunto com o dono da casa. No tenho nada a ver com isso. Espero que isso sirva de lio para o senhor no fazer mais passeios imprudentes por estes

    morros exclamou a voz dura de Heathcliff, da entrada da cozinha. Quanto a ficar aqui, no tenhoacomodaes para hspedes: o senhor ter que dividir uma cama com Hareton ou Joseph, se quiserficar.

    Posso dormir em uma cadeira, nesta sala respondi. No, no! Um estranho um estranho, seja rico ou pobre: no me convm permitir a

    qualquer um que ande pelos limites da casa, quando no estou vigiando! disse o infeliz grosseiro.Com este insulto minha pacincia chegou ao fim. Expressei o meu desagrado e passei por ele,

    em direo ao jardim, colidindo com Earnshaw na minha pressa. Estava to escuro que eu no podiaver nem o caminho para a sada; e, enquanto vagava por ali, escutei outra amostra do comportamentoeducado entre eles. No princpio, o rapaz parecia interessado em me ajudar.

    Vou com ele at o parque disse ele. Voc vai com ele at o inferno! exclamou seu patro, ou seja, l que relao tivessem. E

    quem vai cuidar dos cavalos, hein? A vida de um homem mais importante do que negligenciar os cavalos por uma noite:

    algum deve ir murmurou Mrs. Heathcliff, com mais bondade do que eu esperava. No por ordem sua! replicou Hareton. Se voc se importa com ele, melhor ficar

    calada. Ento espero que o fantasma dele venha assombr-lo; e espero que Mr. Heathcliff nunca

    mais consiga outro inquilino at que a Granja se transforme numa runa ela respondeu, rspida. Escute, escute, ela est praguejando contra eles! murmurou Joseph, em cuja direo eu me

    dirigia.Ele estava sentado ao alcance da minha voz, ordenhando as vacas luz de uma lanterna a

    qual eu agarrei sem cerimnia. Gritando que a devolveria no dia seguinte, corri para o porto maisprximo.

    Patro, patro, ele est roubando a lanterna! gritou o velho, perseguindo-me na retirada. Vai, Gnasher! Vai, Lobo! Corre, cachorro! Agarrem-no, agarrem-no!

    Ao abrir a portinhola, dois monstros peludos voaram na minha garganta, derrubando-me eextinguindo a luz. Enquanto isso, uma gargalhada conjunta de Heathcliff e Hareton deu o toque final minha raiva e humilhao. Felizmente, as feras pareciam mais inclinadas a esticar as patas, bocejar eabanar a cauda, do que em me devorar vivo; mas no se levantavam, e fui forado a ficar estendidoali, at que os seus donos malignos resolvessem me libertar. Ento, sem chapu e tremendo de raiva,ordenei aos malditos que me deixassem partir pois corriam srio risco se me segurassem mais umminuto sequer com vrias ameaas incoerentes de vingana que, nas profundezas da sua virulncia,lembravam Rei Lear.

  • A veemncia da minha agitao causou-me um forte sangramento pelo nariz, e Heathcliffseguia rindo, e eu seguia praguejando. No sei como teria acabado aquela cena, se no houvesse umapessoa por perto, bem mais racional que eu, e bem mais benevolente que o meu anfitrio. Esta eraZillah, a robusta empregada, que nesse meio tempo sara para investigar a natureza daquele alvoroo.Ela pensou que algum deles tivesse posto as mos violentas sobre mim; e, no ousando atacar o seupatro, voltou sua artilharia vocal contra o patife mais jovem.

    Bem, Mr. Earnshaw! ela gritou. Pergunto-me quem o senhor vai atacar na prxima vez!Agora vamos matar pessoas na porta da nossa prpria casa? Estou vendo que esta casa nunca servirpara mim. Olhe o pobre rapaz, est completamente sufocado! Calma, calma, no deve ir emboraassim. Entre, vou curar isso: assim, fique calmo.

    Com estas palavras ela de repente borrifou um pouco de gua fria no meu pescoo, e mepuxou para a cozinha. Mr. Heathcliff seguiu-nos, sua inesperada alegria transformando-se logo namelancolia habitual.

    Eu estava extremamente fatigado, atordoado e fraco, e dessa forma forado a aceitaralojamento debaixo do seu teto. Ele disse para Zillah me dar um copo de conhaque, e ento passoupara uma sala interna. Enquanto isso ela se compadecia da minha situao infeliz, e, tendo obedecidoas ordens dele graas s quais recobrei um pouco as foras acompanhou-me at o quarto.

  • CAPTULO III

    ENQUANTO me guiava escada acima, ela recomendou que eu escondesse a vela e nofizesse barulho, pois o patro tinha estranhas ideias sobre o quarto que eu iria ocupar, e nuncapermitia que qualquer pessoa se hospedasse l. Perguntei-lhe a razo. Ela disse que no sabia: fazias um ano ou dois que estava na casa, e tinham acontecido tantas coisas esquisitas que ela no sedava ao trabalho de ser curiosa.

    Entorpecido demais para ser curioso tambm, tranquei a porta e olhei ao redor em busca dacama. Toda a moblia consistia em uma poltrona, um guarda-roupa e um enorme armrio de carvalho,com recortes quadrados no alto que pareciam janelas de carruagem. Aproximei-me, olhei o interior, epercebi que se tratava de uma espcie de cama antiquada, convenientemente projetada para evitar anecessidade de cada membro da famlia ter seu prprio quarto. Na realidade, formava um pequenocloset e o peitoril de uma das janelas servia como mesa. Abri as portas almofadadas, entrei com avela, fechei-as outra vez, e me senti protegido da vigilncia de Heathcliff e de qualquer outro.

    Coloquei a vela sobre uma prateleira, que tinha alguns livros estragados pelo mofoempilhados no canto, e estava coberta de escritos raspados na pintura. Estes escritos, porm,representavam apenas um nome, repetido em todos os tipos de caracteres, grandes e pequenos:CATHERINE EARNSHAW, variando aqui e ali para CATHERINE HEATHCLIFF, e ento mudandooutra vez para CATHERINE LINTON.

    Com uma apatia insossa, apoiei a cabea na janela e continuei soletrando os nomes: CatherineEarnshaw... Heathcliff... Linton, at que meus olhos se fecharam. Mas eles no haviam descansadonem cinco minutos quando um brilho de letras brancas surgiu na escurido, to vvido quanto umespectro... enchendo o ar de Catherines. Ergui-me para afastar aquele nome perturbador, e descobrique o pavio da vela encostara-se a um dos volumes antigos, perfumando o ar com um cheiro de courode bezerro queimado. Cortei a parte queimada do pavio e, me sentindo muito mal com o frio e anusea, sentei-me e abri o livro queimado sobre o colo. Era um exemplar do Novo Testamento, emletras midas e cheirando terrivelmente a mofo. Uma folha de rosto continha a inscrio Este livropertence a Catherine Earnshaw, e uma data de um quarto de sculo atrs. Fechei-o e peguei outro,depois outro, at que examinei todos. A biblioteca de Catherine era seleta, e o estado dilapidado doslivros provava que tinha sido bem usada, embora no de todo para um propsito legtimo: era raroalgum captulo escapar de um comentrio a tinta ou assim parecia, pelo menos cobrindo todos osespaos em branco da pgina. Alguns eram frases soltas, outros tomavam a forma de um dirioregular, rabiscado por uma mo infantil, hesitante. No alto de uma pgina extra (um verdadeirotesouro, decerto, quando foi descoberta), me diverti muito ao contemplar uma excelente caricatura domeu amigo Joseph, um pouco tosca, mas vigorosa. Isso me despertou um interesse imediato peladesconhecida Catherine, e ento me pus a decifrar seus hierglifos desbotados pelo tempo.

    Que domingo horrvel! comeava o pargrafo seguinte. Queria que meu pai estivesse vivo.Hindley um substituto detestvel... sua conduta para com Heathcliff cruel... H. e eu vamos nosrebelar, esta noite demos os primeiros passos nesse sentido.

    Choveu durante todo o dia; no pudemos ir igreja, ento Joseph teve que juntar a suacongregao no sto. E, enquanto Hindley e a esposa se aqueciam confortavelmente diante dalareira fazendo qualquer coisa menos ler a Bblia, posso garantir eu, Heathcliff e o pobre meninoque cuida dos animais fomos obrigados a pegar nossos livros de oraes e subir. Fomos colocadosem fila, sobre um saco de milho, gemendo e tiritando de frio, esperando que Joseph tambm tremessede frio, assim ele faria um sermo mais curto, para o seu prprio bem. Triste iluso! O servio duroutrs horas exatas; e meu irmo ainda teve o descaramento de exclamar, quando nos viu descendo, Oqu? J acabaram? Nos domingos tardinha costumvamos brincar, se no fizssemos muitobarulho; agora, um simples risinho motivo para nos colocarem de castigo. Vocs esquecem quetem um patro aqui, disse o tirano. Vou acabar com o primeiro que me tirar do srio! Exijocompleta compostura e silncio. Ah, foi voc, menino? Frances, querida, puxe o cabelo dele quando

  • passar: eu o ouvi estalar os dedos. Frances puxou-lhe o cabelo com vontade, e ento foi se sentar nocolo do marido, e os dois ficaram l como dois bebs, beijando-se e dizendo bobagens... umatagarelice tola que era at vergonhosa. Escondemo-nos como podamos, sob o arco do guarda-loua.Eu tinha acabado de juntar os nossos aventais e os estendera como uma cortina, quando Josephentrou, vindo dos estbulos. Ele derrubou a minha cortina, estapeou-me e grasnou:

    O patro mal acabou de ser enterrado, o Sabbath ainda no terminou, as palavras doevangelho ainda esto nos seus ouvidos e vocs j esto se divertindo! Tenham vergonha! Sentem-se,seus malcriados! H muitos livros bons por aqui, se querem ler. Sentem-se, e pensem na salvao dassuas almas!

    Dizendo isso, ele nos obrigou a mudar de posio, de modo que pudssemos receber umpouco de luz do fogo distante para iluminar os volumes que ele nos empurrou. No pude suportarisso. Peguei o volume sujo que ele me dera e atirei-o no canil, jurando que odiava um bom livro.Heathcliff chutou o dele para o mesmo lugar. Foi um pandemnio!

    Patro Hindley!, gritou nosso capelo. Venha at aqui, patro! Miss Cathy despedaou acapa do Armadura da Salvao, e Heathcliff chutou a primeira parte do Longo Caminho para aDestruio! No justo que o senhor os deixe escapar assim. Ah! O velho senhor teria castigado osdois severamente mas ele j se foi desta vida!

    Hindley disparou do seu paraso junto lareira e, pegando um de ns pelo colarinho e ooutro pelo brao, atirou-nos no fundo da cozinha, onde, garantiu Joseph, era certo que o diabo virianos pegar. Assim confortados, cada um de ns buscou um canto para esperar a sua chegada. Conseguiapanhar este livro e um tinteiro em uma das estantes, deixei a porta entreaberta para ter um pouco deluz, e estou ocupada em escrever h vinte minutos. Meu companheiro, porm, est impaciente, eprope que peguemos a capa da leiteira para nos abrigar e fujamos para a charneca. Uma sugestoagradvel pois se o velho ranzinza entrar, vai acreditar que sua profecia se cumpriu; e ns nosentiramos mais o frio e a umidade debaixo da chuva do que sentimos aqui.

    ***

    Suponho que Catherine tenha cumprido seu plano, pois no pargrafo seguinte ela tratava deoutro assunto: tornara-se muito chorosa.

    Nunca imaginei que Hindley me faria chorar assim! ela escreveu. Minha cabea di tanto,que mal consigo mant-la no travesseiro; ainda assim, no posso me entregar. Pobre Heathcliff!Hindley chama-o de vagabundo e no permite mais que se sente conosco, ou que faa as refeiesconosco outra vez. Alm disso, proibiu-nos de brincar juntos, ameaando expuls-lo de casa sedesobedecssemos as suas ordens. Acusou nosso pai (como ele ousa?) de tratar H. com muitaindulgncia. E jura que vai coloc-lo em seu devido lugar...

    ***

    Comecei a cochilar em cima da pgina escura: meus olhos vagavam do manuscrito para o queestava impresso na pgina. Vi um ttulo enfeitado de vermelho... Setenta Vezes Sete e o Primeiro doSeptuagsimo Primeiro Um Sermo Piedoso feito pelo Reverendo Jabez Branderham, na Capela deGimmerden Sough. E enquanto eu estava semiconsciente, forando minha mente para descobrir oque Jabez Branderham fizera com aquele tema, ca deitado na cama e adormeci. Ai de mim, eram osefeitos de um mau ch e de um mau temperamento! O que mais poderia ter me feito passar uma noiteto terrvel? No me lembro de nenhuma outra noite que fosse comparvel a esta, desde que comeceia ser capaz de entender o sofrimento.

    Comecei a sonhar assim que perdi a noo de onde me encontrava. Sonhei que era de manh,e que eu estava a caminho de casa guiado por Joseph. Havia mais de um metro de neve acumulado naestrada e, enquanto atolvamos, meu companheiro me aborrecia com censuras constantes por eu noter trazido um cajado de peregrino. Dizia que eu nunca poderia entrar em casa sem um, e sacudia

  • orgulhoso um pesado basto, que eu entendi tratar-se do tal cajado de peregrino. Por um momento,achei absurdo precisar de tal arma para conseguir entrar em minha prpria casa. Ento me ocorreuuma outra ideia. Eu no estava indo para l: estvamos viajando para ouvir o famoso orador JabezBranderham, sobre o texto Setenta Vezes Sete; e um dos trs, Joseph, o pastor, ou eu mesmo, tinhacometido um pecado, o Primeiro do Septuagsimo Primeiro, e seria publicamente denunciado eexcomungado.

    Chegamos capela. Eu j havia passado por ali nos meus passeios, duas ou trs vezes. Ficavanum vale, entre duas colinas: um vale elevado, perto de um pntano, cuja matria turfosa dizem sertima para embalsamar os poucos corpos depositados l. O telhado estava inteiro at agora; mas,como o salrio do pastor de apenas vinte libras por ano, mais uma casa com dois cmodos ameaando logo transformar-se em um s ningum quer assumir os deveres de pastor daquele lugar,especialmente quando voz corrente que o seu rebanho preferiria deix-lo morrer de fome aaumentar seu salrio do prprio bolso em um centavo que seja. No entanto, no meu sonho, Jabez tinhauma congregao grande e atenta. E ele pregou... Meu bom Deus! E que sermo: dividido emquatrocentas e noventa partes, cada uma do tamanho de um sermo comum, e cada uma tratando deum pecado especfico! Onde ele encontrou tantos pecados, no sei dizer. Tinha sua prpria maneirade interpretar o texto, e parecia que o irmo devia cometer pecados diferentes para cada ocasio. Ospecados eram os mais curiosos: estranhas transgresses, que eu jamais havia imaginado.

    Oh, como me sentia cansado! Como dormitava, e bocejava, e cabeceava e despertava! Comome beliscava, e me picava, e esfregava os olhos, e me levantava, e tornava a sentar, e cutucavaJoseph para me dizer se o pastor algum dia acabaria o sermo. Eu estava condenado a ouvir at ofim; afinal, ele chegou ao Primeiro do Septuagsimo Primeiro. Nessa crise, me veio uma sbitainspirao. Fui levado a me levantar e denunciar Jabez Branderham como pecador do pecado quenenhum cristo precisa perdoar.

    Senhor! exclamei. Sentado aqui entre estas quatro paredes, suportei sem intervalo asquatrocentas e noventa partes do seu sermo. Setenta vezes sete vezes eu peguei o meu chapu eestive a ponto de partir. Setenta vezes sete vezes o senhor me forou a sentar novamente, de modoabsurdo. Quatrocentas e noventa e uma j so demais. Companheiros de martrio, peguem-no!Derrubem-no, despedacem-no em tomos, at que o lugar que um dia o conheceu no o conhea mais!

    Tu s o homem! gritou Jabez, aps uma pausa solene, inclinando-se sobre a almofada doplpito. Setenta vezes sete vezes tu contorceste o teu rosto... Setenta vezes sete vezes consulteiminha alma... Sim, eis aqui a fraqueza humana: isso tambm merece perdo! O Primeiro doSeptuagsimo Primeiro chegou. Irmos, cumpram com ele o julgamento que foi escrito. Todos osSeus santos tero essa honra!

    Ante aquela palavra final, a congregao inteira, brandindo os cajados de peregrino,precipitou-se ao meu redor como uma massa compacta. E eu, sem qualquer arma para me defender,comecei a lutar com Joseph, meu atacante mais prximo e mais feroz, para tomar-lhe o cajado.Naquela confuso muitos bastes se cruzavam: golpes que eram destinados a mim caam sobre outrascabeas. Agora a capela inteira ressoava com os golpes e contra golpes: a mo de cada homemerguia-se contra o seu vizinho. Branderham, no querendo ficar ocioso, descarregava o seu ardorestapeando a madeira do plpito. Tal atitude foi to eficaz que, afinal, para meu inexprimvel alvio,acabou por me despertar. E o que sugerira esse tremendo tumulto? O que desempenhara o papel deJabez na briga? Apenas um ramo de abeto que se encostara veneziana, empurrado pelo vento, ebatia seus cones secos contra as vidraas! Escutei por um momento, em dvida. Tendo descoberto oque me perturbara, virei-me, cochilei e sonhei novamente: um sonho ainda mais perturbador que oprimeiro, se isso fosse possvel.

    Desta vez, lembro-me que estava deitado no closet de carvalho, e ouvia distintamente asrajadas do vento e o cair da neve. Ouvia, tambm, o ramo de abeto repetir seu rudo provocante, massabia sua verdadeira causa. Isso me aborrecia muito, porm, e resolvi silenci-lo, se fosse possvel.Pensei que me levantava e tentava abrir o postigo da janela. O gancho estava preso no ferrolho:

  • circunstncia que eu observara antes de me deitar, mas que me esquecera. Tenho que acabar comisso, de qualquer modo! murmurei, batendo com as juntas dos dedos no vidro, e esticando o braopara agarrar o galho inoportuno. Em vez disso, meus dedos se fecharam sobre uma mo pequena egelada! O intenso horror do pesadelo tomou conta de mim: tentei retirar o brao, mas a mo seagarrou minha e uma voz a mais melanclica que eu j ouvira gemia:

    Deixe-me entrar, deixe-me entrar! Quem voc? perguntei, enquanto lutava para me desvencilhar. Catherine Linton respondeu a voz, estremecendo (por que pensei em Linton? Eu havia lido

    Earnshaw vinte vezes mais repetido do que Linton) Voltei para casa: eu me perdi na charneca!Enquanto a voz falava, distingui no escuro o rosto de uma criana olhando pela janela. O

    terror me tornou cruel, e, acreditando ser intil tentar livrar-me da criatura, puxei seu punho sobre ovidro quebrado e esfreguei-o de um lado para outro, at o sangue escorrer e ensopar as roupas decama. Mas a criatura seguia gemendo Deixe-me entrar! e mantinha seu tenaz aperto, quase meenlouquecendo de medo.

    Como poderia fazer isso? disse eu, por fim. Solte-me, se quer que eu a deixe entrar! Os dedos afrouxaram e puxei meu brao pela fenda; empilhei rapidamente os livros como umapirmide sobre o vidro quebrado, e tapei os ouvidos para no escutar aquele rogo infeliz. Parece-meque fiquei assim por um quarto de hora. Mas, quando parei para escutar outra vez, o grito dolorosovoltou a gemer!

    V embora! gritei. Nunca vou deix-la entrar, nem que me implore durante vinte anos! Faz vinte anos lamentou a voz vinte anos. Estou vagando h vinte anos! Ento algo

    comeou a arranhar de leve pelo lado de fora, e a pilha de livros moveu-se como se tivesse sidoempurrada. Tentei correr, mas no conseguia mover um dedo, e ento gritei alto, num frenesi depavor. Fiquei perturbado ao descobrir que o grito fora real: passos precipitados aproximaram-se daporta do quarto; algum a abriu com mo forte, e uma luz brilhou atravs das aberturas no alto dacama. Sentei-me, ainda tremendo, e enxuguei o suor da testa: o intruso parecia hesitar, e murmuroualgo para si mesmo. Afinal ele disse, em um tom sussurrado, evidentemente sem esperar qualquerresposta:

    Quem est a?Julguei melhor revelar a minha presena, pois reconheci a voz de Heathcliff, e temia que ele

    prosseguisse com a busca se eu ficasse calado. Com essa inteno, virei-me e abri os painis domvel. Nunca esquecerei do efeito que a minha atitude causou.

    Heathcliff estava de p junto porta, de camisa e calas compridas; uma vela pingava cerasobre os seus dedos, e o rosto estava to branco quanto a parede atrs dele. O primeiro rangido domvel de carvalho assustou-o como um choque eltrico. O candelabro saltou-lhe da mo, distnciade um metro; estava to agitado que mal conseguiu apanh-lo do cho.

    Sou eu, o seu hspede, senhor exclamei, desejando poupar-lhe a humilhao de expor asua covardia por mais tempo.

    Tive a infelicidade de gritar enquanto dormia, por causa de um pesadelo terrvel. Sintomuito se o perturbei.

    Oh, maldito seja, Mr. Lockwood! Queria que estivesse no... comeou meu anfitrio,colocando o candelabro sobre uma cadeira, pois no conseguia segur-lo com firmeza. E quem otrouxe para este quarto? continuou, enterrando as unhas nas palmas das mos, e trincando os dentespara dominar as convulses do maxilar. Quem foi? Tenho vontade de expuls-lo de casa agoramesmo!

    Foi sua criada Zillah respondi, saltando para o cho e pegando rapidamente as minhasroupas. Eu no me importaria se a expulsasse, Mr. Heathcliff, ela bem merece. Imagino que queriaoutra prova de que o quarto mal-assombrado, s minhas custas. Bem, de fato ... Est repleto defantasmas e demnios! O senhor tinha razo em tranc-lo, isso eu lhe asseguro. Ningum lhe

  • agradecer por um cochilo neste antro! O que quer dizer? perguntou Heathcliff. O que est fazendo? Deite-se e termine de

    dormir, uma vez que j est aqui. Mas, pelo amor de Deus, no torne a gritar daquele jeito pavoroso:no h desculpa para isso, a menos que algum estivesse lhe cortando a garganta!

    Se aquele pequeno demnio tivesse entrado pela janela, com certeza teria me estrangulado! respondi. No estou disposto a suportar a perseguio dos seus hospitaleiros antepassados outravez. O Reverendo Jabez Branderham por acaso no seria seu parente por parte de me? E aquelainsolente da Catherine Linton, ou Earnshaw, ou como quer que se chame... Ela deve ter sido umacriana enjeitada, alminha malvada! Contou-me que est vagando pela terra h vinte anos: um castigojusto para os seus pecados mortais, no tenho a menor dvida!

    Mal tinha dito estas palavras quando me lembrei da associao do nome de Heathcliff com ode Catherine no livro, um fato que eu havia esquecido completamente, at aquele momento. Fiqueiruborizado com minha falta de considerao, mas, sem demonstrar conscincia da ofensa, apressei-me a acrescentar:

    A verdade, senhor Heathcliff, que passei a primeira parte da noite... parei outra vez,pois estava a ponto de dizer lendo esses volumes antigos, o que teria revelado o meu conhecimentodo seu contedo impresso ou manuscrito. Ento, corrigindo-me, continuei ...soletrando os nomesrabiscados no peitoril da janela. Ocupao maante, s para me ajudar a dormir, como contarnmeros, ou...

    O que est querendo dizer, falando desse modo comigo? trovejou Heathcliff, comselvagem veemncia. Como... como ousa falar assim, debaixo do meu teto? Meu Deus! S podeestar louco! E batia na testa, com raiva.

    Eu no sabia se ficava ofendido ou continuava minha explicao. Mas ele parecia to afetadoque tive pena e prossegui falando dos meus sonhos. Contei que nunca tinha ouvido antes o nome deCatherine Linton, mas de tanto ler e reler o nome acabou por me impressionar, e se personificouassim que adormeci e perdi o controle sobre a minha imaginao. Heathcliff ia se retirando aospoucos para o abrigo da cama, enquanto eu falava. Por fim, sentou-se, quase escondido atrs dela.Adivinhei, porm, pela sua respirao irregular, que ele lutava para dominar um excesso de forteemoo. No querendo demonstrar que percebera o seu conflito, continuei a vestir-me ruidosamente,olhei para o relgio, e monologuei sobre o comprimento da noite:

    No so nem trs horas ainda! Podia jurar que j eram seis. O tempo, aqui, pareceestagnado: devemos ter nos recolhido s oito, seguramente!

    Sempre s nove, no inverno e levantamos s quatro disse Heathcliff, reprimindo umgemido e, como imaginei pelo movimento feito pela sombra do seu brao, enxugando uma lgrima.Ento continuou Mr. Lockwood, o senhor pode ficar no meu quarto, s iria atrapalhar se descesseto cedo, e o seu grito infantil mandou o meu sono para o inferno.

    E o meu tambm respondi. Vou passear no ptio at o dia clarear, ento irei embora. Eno precisa mais temer que a minha intromisso se repita. Agora estou totalmente curado do desejode procurar prazeres sociais, seja no campo ou na cidade. Um homem sensato deve encontrarcompanhia suficiente em si mesmo.

    Encantadora companhia! murmurou Heathcliff. Leve a vela, e v onde lhe agradar. Eu oencontrarei em seguida. Mas fique longe do ptio, pois os ces esto soltos. Quanto sala... bem,Juno est de guarda l e... No, o senhor pode passear apenas pela escada e pelos corredores. Masagora v! Descerei em dois minutos!

    Obedeci, pelo menos quanto a deixar o quarto. Ento, sem saber aonde levavam os estreitoscorredores, fiquei parado, e fui testemunha involuntria de uma demonstrao de superstio porparte do meu senhorio que estranhamente desmentia o seu aparente bom senso. Ele subiu na cama epuxou com violncia as venezianas, enquanto desatava a chorar sem controle.

    Entre! Entre! soluava. Venha, Cathy! Oh, venha... S mais uma vez! Oh! Amor do meu

  • corao! Oua-me desta vez, oua-me afinal, Catherine!O fantasma mostrou o capricho comum aos fantasmas... no deu sinal de vida. Mas a neve e o

    vento entraram em selvagem turbilho, chegando at o lugar em que eu estava, e apagando a luz.Havia tal angstia na exploso de sofrimento que acompanhava aquele delrio, que por

    compaixo parei de perceber a sua loucura. Ento sa dali, furioso por ter chegado a escutar, eirritado por ter contado o meu ridculo pesadelo, j que causara aquela agonia. Apesar disso, omotivo estava alm da minha compreenso. Desci cautelosamente para o andar de baixo e rumei paraos fundos da cozinha, onde encostei minha vela a um claro do fogo para voltar a acend-la. Nada semexia, exceto um gato cinzento malhado que, rastejando das cinzas, saudou-me com um miadoqueixoso.

    Dois bancos de forma circular rodeavam quase inteiramente o fogo. Estiquei-me sobre umdeles e o gato cinzento subiu no outro. Estvamos ambos cochilando, antes que algum invadisse onosso recesso. Ento chegou Joseph, descendo devagar por uma escada de madeira que desapareciano teto atravs de um alapo: era a entrada do seu sto, suponho. Lanou um olhar sinistro pequena chama que eu conseguira atiar entre as brasas, enxotou o gato do banco e, ocupando o lugarvago, comeou a tarefa de encher de fumo um enorme cachimbo. Era evidente que minha presena noseu santurio foi considerada um atrevimento vergonhoso demais para merecer reparo. Ele levou ocachimbo boca em silncio, cruzou os braos e soprou a fumaa. Deixei-o desfrutar seu luxo semincomod-lo. Depois de inalar a ltima baforada e soltar um profundo suspiro, levantou-se e saiu tosolenemente quanto viera.

    Algum de passo mais elstico entrou em seguida. Abri a boca para dizer bom-dia, masfechei-a outra vez, sem concluir o cumprimento: era Hareton Earnshaw, que fazia suas preces sottovoce em voz baixa numa srie de pragas dirigidas contra todos os objetos em que tocava,enquanto examinava um canto em busca de uma p ou picareta para retirar a neve. Olhou para baixodo banco, respirou fundo, e considerou dispensvel trocar civilidades comigo ou com meucompanheiro, o gato. Adivinhei, pelos seus preparativos, que o caminho estava desimpedido; deixeimeu duro leito e fiz um movimento para segui-lo. Ele percebeu e bateu com a ponta da picareta numaporta interna, indicando com um grunhido que este era o lugar para onde eu devia ir, se quisessemudar de pouso.

    A porta abria-se para a casa, onde as mulheres j estavam em atividade. Zillah atiava aslabaredas da lareira com um imenso fole; e Mrs. Heathcliff, ajoelhada no cho, lia um livro luz daschamas. Erguia a mo junto aos olhos para proteger-se do calor do fogo, e parecia absorta na leitura.S se interrompia para repreender a criada que a cobria de fascas, ou para enxotar um co que devez em quando vinha esfregar o focinho no seu rosto. Fiquei surpreso de ver Heathcliff ali tambm.Estava parado junto ao fogo, de costas para mim, acabando de repreender severamente a pobreZillah, que a todo o momento interrompia sua tarefa para erguer a ponta do avental e dar um suspiroindignado.

    E voc, sua intil gritou ele, quando entrei, virando-se para a nora; e empregou umapalavra to inofensiva quanto pata ou ovelha, mas geralmente considerada como uma maldio... A est voc, com seus truques de preguiosa outra vez! Todos os outros ganham o po quecomem... mas voc! Voc vive da minha caridade! Largue essa bobagem intil e encontre algo parafazer! Voc me pagar pela desgraa de t-la sempre sob minhas vistas... ouviu, rapariga condenada?

    Vou largar bobagem porque o senhor pode me obrigar, caso eu recuse respondeu a jovem,fechando o livro e atirando-o numa cadeira. Mas no farei nada, s o que me agradar, mesmo quegaste a sua lngua falando!

    Heathcliff ergueu a mo, porm sua interlocutora escapou para uma distncia mais segura,obviamente familiarizada com o peso daquela mo. Sem vontade de assistir a uma briga de co egato, adiantei-me com rapidez, como se estivesse ansioso para partilhar o calor do fogo, e fingindodesconhecer que interrompera uma disputa. Ambos tiveram decoro suficiente para no prosseguircom as hostilidades. Heathcliff enfiou as mos nos bolsos, para fugir da tentao. Mrs. Heathcliff

  • ficou amuada e dirigiu-se para uma poltrona afastada, onde manteve sua palavra, fazendo o papel deesttua durante o resto da minha permanncia. Que no foi longa, por sinal. Recusei acompanh-losno caf da manh, e, ao primeiro claro do amanhecer, aproveitei a oportunidade para sair ao arlivre, agora j claro, mas silencioso e frio como o gelo impalpvel.

    Meu senhorio gritou-me que esperasse, quando eu alcanava o final do jardim, e se ofereceupara me acompanhar atravs da charneca. Foi bom que o fizesse, pois todo o caminho na descida dacolina era um oceano branco e encapelado. As elevaes e depresses do terreno no correspondiams elevaes e depresses do solo. Muitos buracos, pelo menos, estavam cheios de neve at a borda;e fileiras de montculos de pedra, o refugo das pedreiras, haviam alterado o mapa que eu guardara namente quando fizera a caminhada na vspera. Eu havia notado em um dos lados da estrada, aintervalos de seis ou sete metros, uma linha de pedras verticais que seguia ao longo de todo o ridocume. Foram colocadas ali e cobertas com cal para servir como guias na escurido; e tambm, nocaso de uma nevasca como aquela, para evitar que se confundisse o pntano, de um lado, com a terrafirme. Mas, com exceo de um pequeno ponto escuro aqui e ali, todos os sinais da sua existnciahaviam desaparecido. Meu companheiro precisava advertir-me com frequncia para tomar direitaou esquerda, quando eu acreditava estar seguindo corretamente as curvas da estrada.

    Conversamos pouco durante o caminho, e ele parou entrada do Parque Thrushcross,dizendo-me que agora no haveria mais como errar. Nossos adeuses limitaram-se a rpidos acenosde cabea, e segui adiante, confiando em meus prprios recursos, pois o chal do zelador ainda estdesocupado. A distncia do porto do parque at a granja de duas milhas; creio que conseguitransform-las em quatro, perdendo-me entre as rvores e afundando at o pescoo na neve umasituao complicada que s aqueles que experimentaram podem avaliar. De todo modo, quaisquerque fossem os desvios, o relgio bateu doze horas quando entrei em casa. Isso representavaexatamente uma hora para cada milha do caminho usual para o Morro dos Ventos Uivantes.

    O meu mobilirio humano e seus satlites correram para me receber, exclamando em meio aotumulto que j tinham desistido de me ver outra vez. Todas imaginavam que eu havia morrido na noiteanterior, e s pensavam em como poderiam organizar a busca pelos meus restos mortais. Pedi-lhesque ficassem quietas, agora que eu estava de volta e, exausto at a alma, arrastei-me escada acima.Ali, depois de vestir roupas secas e andar de um lado para outro por trinta ou quarenta minutos, pararestabelecer a circulao, passei para o estdio, fraco como um gatinho quase fraco demais paradesfrutar do fogo acolhedor e do caf fumegante que a criada havia preparado para me reanimar.

  • CAPTULO IV

    QUE FTEIS cata-ventos ns somos! Eu, que tinha decidido manter-me afastado de todo oconvvio social, e agradecia minha boa estrela ter finalmente me estabelecido em um local ondeisso era quase impraticvel eu, um pobre coitado, depois de lutar at noite com a apatia e asolido, fui por fim obrigado a arriar bandeira. Sob o pretexto de obter informaes a respeito dasnecessidades da minha casa, quando Mrs. Dean veio trazer a ceia, convidei-a a sentar-se e meacompanhar enquanto eu comia. Esperava de corao que ela se revelasse uma fofoqueira, e que, oume deixasse animado, ou me levasse a dormir com a sua conversa.

    A senhora morou aqui por bastante tempo, no ? comecei. Acho que me falou emdezesseis anos.

    Dezoito, senhor. Vim quando a minha patroa se casou, para atend-la. Depois que elamorreu, o patro me manteve aqui como encarregada da casa.

    De fato.Seguiu-se uma pausa. Temi que ela no fosse uma tagarela, a menos que se tratasse de seus

    prprios assuntos, e esses dificilmente me interessariam. Contudo, depois de pensar por algumtempo, com os punhos apoiados sobre os joelhos e uma nuvem meditativa sobre o rosto corado, elaexclamou:

    Ah! Os tempos mudaram muito desde ento! Sim observei. A senhora viu muitas mudanas, imagino! Vi, sim. E muitas inquietaes, tambm ela disse.Ah! Vou virar a conversa para a famlia do meu senhorio! pensei. Um bom assunto para

    comear! Gostaria muito de conhecer a histria daquela bela viuvinha: se ela nativa do pas, ou, oque mais provvel, uma estrangeira que os grosseiros indgenas no reconhecem como algum dasua raa. Com essa inteno, perguntei Mrs. Dean por que Heathcliff deixou a Granja Thrushcross,preferindo viver num local to inferior.

    Ele no rico o bastante para manter a propriedade em ordem? indaguei. Rico, senhor? ela replicou. Ele tem tanto dinheiro que ningum sabe quanto, e aumenta a

    cada ano. Sim, senhor, ele bastante rico para morar em uma casa melhor at do que esta. Mas ele muito... mo-fechada! E mesmo se tivesse pensado em se mudar para a Granja Thrushcross, assimque ouvisse falar de um bom inquilino no aguentaria perder a chance de ganhar mais algumas libras. estranho que as pessoas sejam to gananciosas, quando esto ss no mundo!

    Mas ele teve um filho, creio. Sim, teve... mas morreu. E aquela jovem, Mrs. Heathcliff, a viva dele? Sim. E de onde ela veio? Ora, senhor, ela a filha do meu falecido patro. Seu nome de solteira era Catherine Linton.

    Fui eu que a criei, pobrezinha! Queria tanto que Mr. Heathcliff se mudasse para c, assimvoltaramos a ficar juntas.

    Como? Catherine Linton? exclamei, surpreso. Mas uma rpida reflexo convenceu-me deque no se tratava da minha fantasmagrica Catherine. Continuei: Ento o nome do meu antecessorera Linton?

    Era. E quem aquele Earnshaw, Hareton Earnshaw, que mora com Mr. Heathcliff? So

    parentes? No. Ele o sobrinho da falecida Mrs. Linton.

  • Ento primo da moa? Sim. E o marido dela tambm era seu primo: um por parte de me, outro por parte de pai.

    Mr. Heathcliff se casou com a irm de Mr. Linton. Vi que a casa do Morro dos Ventos Uivantes tem o nome Earnshaw esculpido sobre a

    porta. uma famlia antiga? Muito antiga, senhor. E Hareton o ltimo deles, como Miss Cathy a ltima dos nossos...

    quero dizer, dos Linton. O senhor esteve no Morro dos Ventos Uivantes? Perdoe-me a pergunta, masgostaria de saber como vai ela!

    Mrs. Heathcliff? Ela parece muito bem de sade, e muito bonita tambm. Mas acho que noest feliz.

    Oh, Deus! No me admira! E o que achou do patro? Um sujeito bastante spero, Mrs. Dean, no acha? spero como um serrote, e duro como uma pedra! Quanto menos se misturar com ele,

    melhor. Ele deve ter tido alguns altos e baixos na vida, para tornar-se to grosseiro. A senhora sabe

    algo da sua histria? Ele como um cuco, senhor. Sei tudo sobre ele, exceto onde nasceu e quem eram seus pais,

    e tambm como conseguiu fazer fortuna. Hareton foi expulso como um filhote de passarinho! Aquelepobre rapaz o nico em toda a redondeza que no sabe o quanto foi enganado.

    Bem, Mrs. Dean, seria um ato de caridade contar-me algo sobre os meus vizinhos. Sinto queno conseguirei dormir, se for para a cama. Faa-me o favor, sente-se e converse uma hora comigo.

    Oh, certamente, senhor! Vou s buscar minha costura e ficarei o tempo que quiser. Mas vejoque pegou um resfriado, est tremendo. Deve tomar um pouco de mingau, assim melhora logo.

    A boa senhora saiu apressada, e eu me aproximei do fogo. Sentia o rosto arder, enquanto ocorpo tremia. Alm disso, meus nervos e crebro estavam agitados, com uma ponta de febre. No mesentia desconfortvel, mas estava um tanto temeroso (como ainda estou) de sofrer as sriasconsequncias dos incidentes dos ltimos dois dias. Mrs. Dean retornou ento, com uma tigelafumegante e uma cesta de costura. Colocou a tigela na grade junto lareira e puxou a cadeira,evidentemente satisfeita de ver-me to socivel.

    Ento comeou, sem esperar novo convite para contar sua histria:Antes que eu viesse morar aqui, estava quase sempre no Morro dos Ventos Uivantes, pois

    minha me fora ama-de-leite de Mr. Hindley Earnshaw, o pai de Hareton, e eu me acostumei abrincar com as crianas. Levava recados tambm, ajudava a cortar o feno e andava sempre pelafazenda, pronta para fazer qualquer coisa que me mandassem. Numa bela manh de vero era ocomeo da colheita, lembro-me bem Mr. Earnshaw, o antigo patro, desceu as escadas vestido comroupa de viagem. Depois de determinar a Joseph as tarefas do dia, virou-se para Hindley, para Cathye para mim eu estava sentada com eles, tomando mingau e disse, falando com o filho:

    Ento, meu rapazinho, vou para Liverpool hoje, o que quer que eu lhe traga? Pode pedir oque quiser, desde que seja pequeno, pois vou e volto a p. E sessenta milhas de ida e outro tanto devolta, um bom estiro!

    Hindley pediu um violino. Ele ento perguntou a Miss Cathy: ela mal tinha seis anos, maspodia montar qualquer cavalo do estbulo, e pediu um chicote. Ele no esqueceu de mim, pois tinhabom corao, embora s vezes fosse um tanto severo. Prometeu-me um punhado de mas e peras.Ento beijou os filhos, disse adeus e partiu.

    Aqueles trs dias em que ele esteve ausente pareceu-nos um tempo longo demais, e a pequenaCathy perguntava com frequncia quando o pai estaria de volta. Mrs. Earnshaw esperava-o para aceia, na terceira noite, e atrasou a refeio hora aps hora. No havia sinal da sua chegada, porm, eas crianas acabaram se cansando de correr at o porto para olhar. Ento escureceu. Mrs. Earnshaw

  • queria coloc-los na cama, mas eles imploraram que os deixasse ficar acordados. Ento, quase sonze horas, o trinco do porto foi aberto sem rudo e o patro entrou. Atirou-se a uma cadeira, rindoe gemendo, e pediu que todos se afastassem, pois estava morto de cansao... Nunca mais daria umacaminhada dessas, nem pelos trs reinos.[1]

    E, alm disso, quase morri carregando esta carga! disse ele, abrindo o enorme casaco, quesegurava nos braos como um pacote. Nunca me senti to cansado em minha vida. Olhe aqui,mulher! Deve receber isso como uma beno de Deus, embora ele seja quase to escuro como sefosse enviado pelo diabo.

    Amontoamos-nos em volta dele e, por cima da cabea de Miss Cathy, avistei uma crianamorena, suja e esfarrapada, grande o bastante para caminhar e falar. Na verdade, pelo rosto pareciaat mais velho do que Catherine. Mas, quando foi colocado de p, apenas olhou em volta e repetiuvrias vezes uma algaravia que ningum conseguia entender. Eu estava amedrontada, e Mrs.Earnshaw estava pronta para arremess-lo porta afora. Ergueu-se impetuosamente, perguntando comoele podia ter trazido aquele pirralho de cigano para casa, quando eles tinham seus prprios filhospara alimentar e cuidar. O que ele pretendia com isso? Estava louco? O patro tentou explicar, masestava morto de cansao. Tudo que eu pude entender, por entre as censuras dela, era uma histria deque ele o encontrara faminto, abandonado, e parecendo mudo, andando pelas ruas de Liverpool, ondeo recolhera e indagara a quem pertencia. No havia uma s alma que soubesse dizer de quem era omenino, disse o patro, e como o seu tempo e dinheiro estavam acabando, achou melhor traz-lo paracasa de uma vez do que ficar gastando toa na cidade. Estava determinado a no deix-lo l onde oencontrara. Bem, a concluso foi que a patroa acabou por se acalmar, e Mr. Earnshaw me disse paralav-lo, vesti-lo com roupas limpas e coloc-lo para dormir com as outras crianas.

    Hindley e Cathy contentaram-se em olhar e escutar at que a paz fosse restaurada. Entoambos comearam a vasculhar os bolsos do pai, procura dos presentes que ele prometera. Hindleyera um rapaz de quatorze anos, mas quando pegou no bolso do casaco os pedaos do que tinha sidoum violino, desatou a chorar em altos brados. E Cathy, quando descobriu que o patro havia perdidoseu chicote enquanto cuidava do estranho, mostrou seu humor arreganhando os dentes e cuspindonaquela coisinha estpida, e em troca recebeu um tapa do pai, para aprender a ter bons modos. Osdois se recusaram terminantemente a partilhar a cama com aquela coisa, ou at mesmo o quarto. Euno tinha um bom senso melhor que o deles, ento o larguei no patamar da escada, esperando quetivesse sumido pela manh. Por casualidade, ou ento atrado pela voz, ele rastejou at a porta deMr. Earnshaw, e o patro o encontrou ao sair do quarto. Fez um inqurito para saber como ele foraparar ali. Fui obrigada a confessar e, como castigo pela minha covardia e desumanidade, fui mandadaembora da casa.

    E foi assim que Heathcliff entrou para a famlia. Voltando para a casa alguns dias depois(pois no considerei definitiva a minha expulso), descobri que o tinham batizado com o nome deHeathcliff: era o nome de um filho que morrera ainda criana, e tem lhe servido desde ento comonome e sobrenome. Miss Cathy e ele eram agora muito ligados, mas Hindley o odiava. Para dizer averdade, eu tambm o odiava. Ns o atormentvamos e o tratvamos de modo vergonhoso, pois euainda no tinha juzo suficiente para perceber minha injustia, e a patroa nunca disse uma palavra aseu favor, quando via o menino maltratado.

    Ele parecia uma criana taciturna e paciente talvez um tanto endurecida pelos maus tratos.Suportava os tapas de Hindley sem piscar ou derramar uma lgrima; e os meus belisces s o faziamrespirar fundo e abrir os olhos, como se tivesse se ferido por acidente e ningum fosse culpado.Aquela resistncia deixou o velho Earnshaw furioso, quando descobriu o filho perseguindo o pobremenino rfo, como ele o chamava. O patro apegou-se estranhamente a Heathcliff, acreditando emtudo o que ele dizia (o menino falava muito pouco, alis, e de modo geral dizia a verdade), emimando-o muito mais do que a Cathy, que era muito travessa e impertinente para ser a favorita.

    Assim, desde o comeo, ele semeou a discrdia naquela casa. E quando Mrs. Earnshawmorreu, o que aconteceu menos de dois anos depois, Hindley havia aprendido a considerar o pai

  • como um opressor, em vez de um amigo, e a Heathcliff como um usurpador do afeto paterno e dosseus privilgios. E tornava-se cada dia mais amargo, remoendo essas injustias. Eu simpatizei comos seus sentimentos, a princpio. Mas, quando as crianas caram doentes com sarampo, e tive quetrat-las e assumir de repente as responsabilidades de uma mulher, mudei de ideia. Heathcliff ficouseriamente doente; e, quando esteve pior, obrigou-me a ficar o tempo todo sua cabeceira. Suponhoque imaginou que fiz muito por ele, e no teve esperteza para adivinhar que fui obrigada a faz-lo.Devo dizer, porm, que era a criana mais calma que uma ama j cuidou. A diferena entre ele e osoutros me forou a ser menos parcial. Cathy e o irmo davam-me um trabalho terrvel, mas ele erato quieto quanto um cordeirinho, embora fosse a dureza e no a docilidade que o fizesse darpouco trabalho.

    Ele se recuperou, e o mdico disse que em grande parte era devido a mim, elogiando os meuscuidados. Fiquei envaidecida com o elogio, e me tornei mais dcil para com aquele que me fizeramerec-lo. E a partir daquele dia Hindley perdeu seu ltimo aliado. Ainda assim no podia amarHeathcliff sem reservas, e perguntava-me muitas vezes o que meu patro via de to admirvelnaquele menino taciturno, que nunca, pelo que me lembro, retribuiu sua indulgncia com qualquersinal de gratido. No era insolente para com seu benfeitor, era apenas insensvel embora soubessemuito bem o lugar que ocupava em seu corao, e que lhe bastaria falar para que a casa toda securvasse aos seus desejos. Lembro-me, por exemplo, que Mr. Earnshaw comprou, certa vez, um parde potros na feira da parquia, e deu um para cada menino. Heathcliff escolheu o mais bonito, maseste logo ficou manco. Quando descobriu, Heathcliff disse para Hindley:

    Voc tem que trocar de cavalo comigo: no gosto do meu. Se recusar contarei ao seu paidas trs surras que voc me deu esta semana, e mostrarei o meu brao, que ainda est roxo at oombro.

    Hindley mostrou-lhe a lngua e esmurrou-o. melhor trocar logo ele insistiu, escapando para o alpendre (eles estavam no estbulo)

    vai ser obrigado, de qualquer jeito. E se eu falar desses tapas, voc vai receb-los de volta comjuros.

    Fora, seu cachorro! gritou Hindley, ameaando-o com um peso de ferro usado para pesarbatatas e feno.

    Atire! respondeu Heathcliff, ficando parado. Atire, e vai ver se no conto como voc segabou de que me expulsar daqui assim que ele morrer. Vamos ver se no voc que vai ser expulsona mesma hora.

    Hindley jogou o peso, ferindo-o no peito; ele caiu, mas levantou-se logo, cambaleando,plido e ofegante. E se eu no o tivesse impedido, ele teria ido daquele jeito at o patro, vingando-se amplamente; deixaria que o seu estado falasse por ele, denunciando quem tinha lhe causado osferimentos.

    Pegue o meu potro, ento, cigano sujo! disse o jovem Earnshaw. Tomara que ele lhequebre o pescoo. Pegue-o e v para o diabo, seu intruso miservel! Pode adular meu pai para tirar-lhe tudo o que tem: s depois lhe mostre o que voc , diabo de Satans... E tomara que ele lheestoure os miolos!

    Heathcliff tinha ido soltar o animal e lev-lo para a baia do seu cavalo. Estava passando portrs dela, quando Hindley, acabando de falar, atirou-o debaixo dos ps do potro, e, sem esperar paraver se suas esperanas se cumpriam, correu para fora to rpido quanto pde. Fiquei surpresa de vercom quanta frieza o menino se levantou e seguiu com o que estava fazendo. Trocou as selas e tudo omais, depois se sentou em um monte de feno para recobrar-se da fraqueza que a pancada violentaocasionara, antes de entrar na casa. Convenci-o com facilidade a me deixar pr a culpa pelascontuses no cavalo: ele pouco se importava com a histria que fosse contada, desde que conseguisseo que queria. Na verdade, era to raro queixar-se de brigas como estas, que eu de fato pensei que eleno fosse vingativo. Estava totalmente enganada, como o senhor vai ver.[1]Os trs reinos so Inglaterra, Esccia e Irlanda, que constituam o Reino Unido.

  • CAPTULO V

    COM o passar do tempo, Mr. Earnshaw comeou a enfraquecer. Tinha sido ativo e saudvel,mas de repente suas foras o abandonaram e quando ficou confinado ao canto da lareira tornou-seterrivelmente irritadio. Qualquer coisinha o incomodava, e a mera suspeita de desprezo pela suaautoridade deixava-o fora de si. Notava-se isso de modo especial se algum tentasse coagir outiranizar o seu favorito. Vivia desconfiado de que podiam ofend-lo, e parecia acreditar que, sporque ele gostava de Heathcliff, todos o odiavam e desejavam prejudic-lo. Era uma desvantagempara o rapaz; os melhores dentre ns no desejavam afligir o patro, e assim perdoavam a suapreferncia. E aquele perdo era um rico alimento para o orgulho do menino e seu temperamentodifcil. De qualquer modo, parecia mesmo necessrio. Duas ou trs vezes as manifestaes dedesprezo por parte de Hindley, presenciadas pelo pai, enfureceram o velho senhor. Agarrou suabengala para bater no filho e tremia de raiva por no ser capaz de faz-lo.

    Naquela poca tnhamos um pastor, que ganhava a vida ensinando as crianas Linton eEarnshaw, e tambm cultivava ele mesmo seu pedao de terra. Por fim, o pastor aconselhou que ojovem Hindley fosse mandado para um colgio. Mr. Earnshaw concordou, mas com tristeza, dizendo:

    Hindley um fracasso, e nunca ser nada na vida.Eu esperava de todo o corao que agora pudssemos ter um pouco de paz. Doa-me pensar

    que a prpria boa ao do patro viesse a lhe causar alguma aflio. Imaginava que os incmodos daidade e da doena provinham das brigas familiares, como ele dizia ser o caso. Na verdade, o senhorsabe, era a sua constituio fsica que estava debilitada. Apesar disso, poderamos ter seguido emfrente de forma tolervel, se no fossem duas pessoas: Miss Cathy e Joseph, o criado; creio que osenhor o viu l em cima. Ele era, e provavelmente ainda , o mais enfadonho e fantico fariseu que jse aproveitou de uma Bblia, buscando promessas para si e maldies para os seus prximos. Comsua habilidade de pregador e seu discurso piedoso, conseguia impressionar muito Mr. Earnshaw; equanto mais fraco o patro se tornava, mais influncia ele tinha. No se cansava de atormentar ovelho para que cuidasse da sua alma, e corrigisse os filhos com severidade. Encorajou-o aconsiderar Hindley um rprobo. E noite aps noite desfiava um rosrio enorme de queixas contraHeathcliff e Catherine, sempre com a inteno de lisonjear a fraqueza de Earnshaw, pondo todo opeso da culpa na menina.

    Ela com certeza usava de espertezas que eu nunca vira antes numa criana. Esgotava nossapacincia mais de cinquenta vezes por dia. Desde a hora em que descia a escada at a hora de ir paraa cama no tnhamos um minuto de paz, pois ela passava o tempo inteiro fazendo alguma travessura.Tinha o esprito sempre vivo e a lngua sempre ativa cantava, ria e atormentava todos os que nofizessem o mesmo. Era uma moleca selvagem e endiabrada... Mas tinha os olhos mais belos, osorriso mais doce e o p mais ligeiro da parquia. Apesar de tudo, acredito que no tinha minteno; sempre que fazia algum desatar no choro, raramente deixava de fazer-lhe companhia atque se calasse, guisa de consolo. Ela adorava Heathcliff. O maior castigo que algum poderia lhearranjar era afast-la dele, ainda que ela, mais do que qualquer outro, fosse repreendida por causa dorapaz. Quando brincava, adorava agir como uma patroa em miniatura, distribuindo tapas e dandoordens aos companheiros. Agiu assim comigo, mas eu no ia aguentar seus tapas e suas ordens, edeixei isso bem claro.

    Mr. Earnshaw no permitia mais brincadeiras entre os filhos. Sempre fora rgido e severocom eles, e Catherine, por sua vez, no entendia por que o pai deveria ser mais rabugento e menospaciente agora do que fora antes. As duras censuras do pai despertavam nela um desejo perverso deprovoc-lo. Cathy nunca se sentia to contente como quando ns todos a repreendamos, e ela nosdesafiava com o seu olhar insolente e atrevido, e suas respostas prontas. Ridicularizava as maldiesreligiosas de Joseph, importunando-me e fazendo justamente o que o pai mais detestava mostrando-lhe como a sua fingida insolncia, que ele acreditava ser real, tinha mais poder sobre Heathcliff doque a bondade dele. E como o menino fazia a vontade dela em tudo, e a dele apenas quando isso lhe

  • convinha. Depois de se comportar da pior forma possvel durante todo o dia, Cathy s vezes vinhaafagar o pai noite, para fazer as pazes.

    No, Cathy dizia o velho no posso te amar, s pior que o teu irmo. Vai, filha, diz astuas oraes e pede perdo a Deus. Creio que a tua me e eu nos arrependemos por nunca termos tecorrigido!

    Isso a fazia chorar, no princpio. Depois, o fato de ser sempre repelida a endureceu, e eladesatava a rir quando eu a aconselhava a mostrar-se arrependida e pedir perdo.

    Mas chegou a hora, afinal, em que terminaram as provaes de Mr. Earnshaw na terra.Morreu quietamente numa noite de outubro, sentado em sua poltrona junto ao fogo. Um forte ventoenvolvia a casa e rugia pela chamin; dava a impresso de ser selvagem e tempestuoso, embora nofizesse frio e estivssemos todos juntos. Eu, um pouco afastada da lareira, ocupada com meu tric, eJoseph lendo a Bblia junto mesa (na poca os criados costumavam sentar-se na casa, depois queterminavam suas tarefas). Miss Cathy tinha estado doente, por isso estava quieta. Tinha a cabeaapoiada nos joelhos do pai, e Heathcliff estava deitado no cho, com a cabea no colo da menina.Lembro-me de que o patro, antes de cochilar, acariciara os belos cabelos da filha quase nuncatinha o prazer de v-la to dcil dizendo:

    Por que no podes ser sempre uma boa menina, Cathy?Ela levantou o rosto, riu e respondeu: E por que no podes ser sempre bondoso, meu pai?Mas assim que o viu irritado outra vez, beijou-lhe a mo e disse que iria cantar para faz-lo

    dormir. Comeou a cantar baixinho, at que os dedos do pai se desprenderam dos seus, e a cabealhe caiu sobre o peito. Eu lhe disse que fizesse silncio e no se mexesse, por medo de que ela odespertasse. Ficamos todos mudos durante uma boa meia hora, e teramos ficado assim por muitomais tempo se Joseph, tendo terminado a leitura do seu captulo, no se levantasse dizendo que iriaacordar o patro, para que fizesses as oraes e fosse para a cama. Ele adiantou-se, chamou-o pelonome e tocou-lhe no ombro. Como no houvesse movimento algum, Joseph pegou a vela e olhou-obem. Vi que havia algo errado quando ele baixou a vela. Ento, pegando as crianas cada uma por umbrao, sussurrou-lhes que fossem direto para cima e no fizessem barulho... deviam rezar sozinhosnaquela noite... ele tinha algo para fazer.

    Primeiro vou dizer boa-noite ao meu pai disse Catherine, enlaando-lhe o pescoo com osbraos, antes que pudssemos impedi-la. A coitadinha descobriu imediatamente a infelicidade, egritou:

    Oh, ele est morto, Heathcliff! Ele est morto!E ambos romperam num pranto desolador.Juntei meu pranto ao deles, em voz alta e triste, mas Joseph perguntou-nos porque gritvamos

    daquele modo diante de um santo que fora levado ao cu. Mandou que eu vestisse a capa e corresseat Gimmerton, para avisar o mdico e o proco. Eu no conseguia adivinhar qual utilidade teriameles, agora. Fui, porm, enfrentando o vento e a chuva, e voltei trazendo um deles comigo, o mdico.O outro disse que viria pela manh. Deixei Joseph a dar explicaes, e corri para o quarto dascrianas: a porta estava entreaberta, e vi que ainda no haviam se deitado, embora fosse mais demeia-noite. Eles j estavam mais calmos, e no precisavam do meu consolo. Os pobrezinhos estavamconsolando um ao outro, com ideias to boas como eu jamais imaginaria: nenhum proco no mundoseria capaz de pintar um cu to lindo como o deles, na sua conversa inocente. E, enquanto eu ouvia,soluando, no podia deixar de desejar que ficssemos todos juntos e salvos naquele cu.

  • CAPTULO VI

    MR. HINDLEY veio para casa para assistir ao funeral. E o mais espantoso, e que fez avizinhana falar a torto e a direito: trouxe consigo uma esposa. Quem ela era e onde havia nascido,isso ele nunca nos disse: provavelmente no tinha nem dinheiro nem nome de famlia que arecomendasse, ou ele no teria escondido do pai essa unio.

    Ela no era do tipo que perturbaria a casa por sua prpria conta. Desde que cruzou a soleirada porta, cada objeto que via parecia encant-la, assim como tudo o que acontecia ao seu redor exceto os preparativos para o enterro e a presena dos parentes do defunto. Pensei que ela fosse meiotonta, pelo seu comportamento durante a cerimnia: correu para o quarto e me obrigou a ir com ela,embora eu tivesse que vestir as crianas. E ficou l sentada, tremendo e torcendo as mos, enquantoperguntava repetidamente: Eles j se foram? Ento comeou a descrever, com emoo histrica, oefeito que lhe causava a viso da cor preta. Assustava-se, tremia, e por fim desatou a chorar... Equando lhe perguntei qual era o problema, respondeu-me que no sabia, mas tinha tanto medo demorrer! Achei que ela estava to perto da morte quanto eu. Era bastante magra, mas jovem, o rostorosado, e seus olhos brilhavam como diamantes. Percebi, verdade, que quando subia as escadasrespirava com dificuldade; qualquer barulhinho inesperado a fazia tremer, e s vezes tossia de modoperturbador. Mas eu no tinha a menor ideia do que significavam esses sintomas, e no senti qualquersimpatia por ela. No nos aproximamos muito de estranhos por aqui, Mr. Lockwood, a menos que seaproximem de ns primeiro.

    O jovem Earnshaw havia mudado muito naqueles trs anos de ausncia. Emagrecera e perderaa cor, e tambm falava e vestia-se de modo inteiramente diferente. E, no mesmo dia em que chegou,ordenou a mim e a Joseph que dali por diante nos limitssemos a ocupar os fundos da cozinha,deixando a casa s para ele. Na verdade, pensou em reformar um quarto vazio para transform-lo emsala de visitas, atapetando-o e forrando-o com papel de parede. Sua esposa, porm, demonstrougostar tanto do piso branco, da enorme e brilhante lareira, dos pratos de estanho, do jogo deporcelanas, do canil, alm do grande espao que desfrutavam na sala que costumavam usar, que elejulgou a reforma desnecessria para o conforto dela, e deixou de lado a ideia.

    Ela tambm manifestou grande prazer em encontrar uma irm, entre os novos parentes.Tagarelou com Catherine, beijou-a e andou com ela por toda parte, cobrindo-a de presentes, noincio. Mas seu afeto logo esmoreceu, e quando ela comeou a se aborrecer, Hindley tornou-setirnico. Algumas palavras da esposa, manifestando sua antipatia por Heathcliff, foram o bastantepara despertar todo o seu velho dio pelo rapaz. Expulsou-o para junto dos criados, privou-o dasaulas do pastor e determinou que, em vez de estudar, Heathcliff trabalhasse no campo obrigando-oa trabalhar to duro quanto qualquer outro empregado da fazenda.

    A princpio, Heathcliff suportou muito bem essa degradao, porque Cathy ensinava-lhe tudoque aprendia, e trabalhava ou brincava com ele no campo. Os dois prometiam crescer rudes comoselvagens. O jovem patro pouco se importava com o que eles faziam, ou como se comportassem,desde que ficassem longe das suas vistas. Nem mesmo se incomodaria de mand-los igreja aosdomingos, se Joseph e o pastor no o censurassem por esse descuido, j que o prprio Hindley e aesposa faltavam ao culto. Hindley lembrou-se ento de mandar chicotear Heathcliff, e privarCatherine do jantar ou da ceia. Um dos principais divertimentos dos jovens era correr para acharneca de manh e ficar l o dia todo; e o castigo subsequente tornou-se apenas motivo de riso. Opastor podia mandar Catherine decorar quantos captulos quisesse, e Joseph podia espancarHeathcliff at que lhe doesse o brao: eles esqueciam tudo no momento em que se viam juntos outravez, ou no momento em que combinavam algum perverso plano de vingana. Muitas vezes chorei emsilncio, ao v-los crescer assim, mais destemidos a cada dia; no ousava dizer uma palavra, pormedo de perder o pouco poder que ainda tinha sobre aquelas criaturas abandonadas. Certa tarde dedomingo, aconteceu de eles serem expulsos da sala por terem feito barulho, ou qualquer banalidadedesse tipo; quando fui cham-los para a ceia, no os encontrei em parte alguma. Procuramos pelacasa toda, de alto a baixo, no ptio e no estbulo. Tinham desaparecido. Por fim, Hindley, furioso,

  • mandou que trancssemos as portas, e ordenou que ningum os deixasse entrar naquela noite. Todosforam para a cama. E eu, inquieta demais para dormir, abri a veneziana e pus a cabea para fora,escutando, embora chovesse. Estava determinada a deix-los entrar, apesar da proibio, casovoltassem. Nesse momento, escutei passos na estrada, e a luz de uma lanterna brilhou no porto.Cobri-me com um xale e corri para evitar que batessem porta, acordando Mr. Earnshaw. Eraapenas Heathcliff: levei um susto ao v-lo sozinho.

    Onde est Miss Catherine? gritei, apressada. Espero que no tenha havido nenhumacidente!

    Ela est na Granja Thrushcross respondeu ele e eu tambm deveria estar, mas eles notiveram a boa educao de me convidar.

    Bem, voc mereceu! eu disse. No vai sossegar enquanto no lhe mandarem cuidar daprpria vida em outro lugar. O qu, em nome de Deus, levou-os a vagar pelos lados da