40
123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE Myth, thE LAnGUAGE AnD thE sPEECh In thE jUry EL MIto, EL LEnGUAjE y EL DIsCUrso En EL jUrADo Resumo: A construção do Tribunal do Júri é ideológica e se dá em bases mítico-transcendentais, a partir da concepção de que o julga- mento pelos próprios pares é de caráter democrático. Tal afirma- ção se justifica, principalmente, pela não obrigatoriedade de fundamentação jurídica como requisito para o julgamento dos ju- rados. A consciência é o parâmetro para o julgamento proferido pelos jurados e a linguagem se constrói em bases retóricas não sujeitas à testificação. Desmitologizar a instituição do Júri é, acima de tudo, esclarecer a sua incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito em virtude da limitação da ampla fiscali- dade e também da impossibilidade de os interessados participa- rem diretamente da construção do provimento. Tanto o acusado como os próprios jurados são excluídos da construção juridica- mente participada do provimento, tendo em vista ser a consciên- cia dos jurados o fundamento de suas decisões. A constituição do Tribunal do Júri na forma vigente é reflexo de uma construção teórica do Direito Processual Penal com raízes autocráticas e in- quisitoriais. Trata-se de um julgamento que fica centralizado nas mãos dos jurados, sem qualquer possibilidade de participação * Mestre e doutorando em Direito Processual pela PUC-MG. Prof. da Universi- dades Montes Claros e Araxá, Faculdades de Pará de Minas e Pitágoras-MG, da Fundação Pedro Leopoldo, e do Inst. Ed. Continuada PUC-MG. Advogado.

O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

123

Fabrício Veiga Costa*

O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri

thE Myth, thE LAnGUAGE AnD thE sPEECh In thE jUry

EL MIto, EL LEnGUAjE y EL DIsCUrso En EL jUrADo

Resumo:

A construção do Tribunal do Júri é ideológica e se dá em bases

mítico-transcendentais, a partir da concepção de que o julga-

mento pelos próprios pares é de caráter democrático. Tal afirma-

ção se justifica, principalmente, pela não obrigatoriedade de

fundamentação jurídica como requisito para o julgamento dos ju-

rados. A consciência é o parâmetro para o julgamento proferido

pelos jurados e a linguagem se constrói em bases retóricas não

sujeitas à testificação. Desmitologizar a instituição do Júri é,

acima de tudo, esclarecer a sua incompatibilidade com o Estado

Democrático de Direito em virtude da limitação da ampla fiscali-

dade e também da impossibilidade de os interessados participa-

rem diretamente da construção do provimento. Tanto o acusado

como os próprios jurados são excluídos da construção juridica-

mente participada do provimento, tendo em vista ser a consciên-

cia dos jurados o fundamento de suas decisões. A constituição

do Tribunal do Júri na forma vigente é reflexo de uma construção

teórica do Direito Processual Penal com raízes autocráticas e in-

quisitoriais. Trata-se de um julgamento que fica centralizado nas

mãos dos jurados, sem qualquer possibilidade de participação

* Mestre e doutorando em Direito Processual pela PUC-MG. Prof. da Universi-dades Montes Claros e Araxá, Faculdades de Pará de Minas e Pitágoras-MG,da Fundação Pedro Leopoldo, e do Inst. Ed. Continuada PUC-MG. Advogado.

Page 2: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

124

dos interessados na construção do provimento. Caracteriza-se,

assim, verdadeira afronta ao devido processo legal, uma vez que

o decisionismo dos jurados se dá como se num golpe de martelo,

alheio a qualquer discussão no âmbito da legitimidade democrá-

tica dos provimentos estatais.

Abstract:

The Jury Tribunal construct is ideologic, and it stands at trans-

cendental mythical basis, from the conception in which the deci-

sion by its pairs is from democratic aspect. Such statement

justifies itself, specially, by the non obligation of law fundament

as the rule for the jury decision. The consciences is the paradigm

for the decision given by the jury, and its language builts itself on

rethorical foundation non subjected to testification. Demolish the

jury institution is, above all, to clarify its incompability with the De-

mocratic State of Law due to the great fiscalization limitation, and

also of the impossibility for those wanting to be part directly of the

law decision making. Both the acused and jury members them-

selves are excluded from the law decision making, due to the jury

minds being to decision fundaments. The jury tribunal construc-

tion on the actual basis is a reflex of the theorical Penal Process

Law construction on autocratic and inquisitorial foundations. It is

about a decision that is centralized on the jury members’ hands,

with no possibility of interessed people participation in the law de-

cision process. It is characterized, therefore, as a real contradic-

tion to due process of law, since the jury decision stands apart,

away from any discussion in the paradigm of democratic legiti-

macy of state decisions.

Resumen:

La construcción del jurado es ideológica y se lleva a cabo en

bases míticas y trascendentales, desde el diseño de que el jui-

cio por los pares es de carácter democrático. Esta afirmación

Page 3: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

se justifica principalmente por la no obligatoriedad de la funda-

mentación jurídica como requisito para el juzgamiento de los ju-

rados .. La conciencia es el parámetro de la sentencia dictada

por los jurados y el lenguaje se construye sobre bases que no

están sujetas a la testificación. Desmitificar la institución del ju-

rado es, sobre todo, aclarar su incompatibilidad con el Estado de-

mocrático de derecho, en virtud de la limitación de la fiscalidad

general y también la incapacidad de las partes interesadas de

participar directamente en la construcción de la disposición. Tanto

el acusado como los propios miembros del jurado están excluidos

de la construcción jurídicamente participada de la disposición,

considerando ser la conciencia de los miembros del jurado el fun-

damento de sus decisiones. La constitución del jurado en la forma

actual es un reflejo de una construcción teórica de la Ley de Pro-

cedimiento Penal, con raíces autocráticas e inquisitoriales. Este

es un juicio que está centralizado en las manos de los miembros

del jurado, sin ninguna posibilidad de participación de los intere-

sados en la construcción de la disposición. Caracteriza, así, ver-

dadera afrenta al debido proceso, ya que el decisionismo de los

miembros del jurado se presenta como un golpe de martillo, sin

relación con cualquier discusión sobre la legitimidad democrática

de las disposiciones estatales.

Palavras-chaves:

Tribunal do Júri, mito, Estado Democrático de Direito.

Keywords:

Jury Tribunal, myth, Democratic State of Law.

Palabras clave:

Jurado, Mito, Estado Democrático de Derecho.

125

Page 4: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

IntroDUção

A presente pesquisa científica tem como objetivo a cons-trução de reflexões críticas acerca da mitologização do tribunaldo júri a partir da racionalidade crítica. A hipótese científica apre-sentada é o debate referente à compatibilidade da instituição dojúri com o Estado Democrático de Direito. nessa seara será im-prescindível compreender os fundamentos teóricos e históricos dainstituição do júri para, assim, averiguar a existência de um carátermitológico, buscando-se analisar criticamente o discurso retóricoe de caráter axiologizante utilizado como parâmetro à íntima con-vicção dos jurados. Por isso, faz-se necessário utilizar a linguagemargumentativo-democrático-constitucionalizada como pressupostoda análise crítica do discurso proposto pelo tribunal do júri.

A obra de Karl Popper O mito e o contexto, bem comoas proposições teóricas trazidas na obra Processo como teoria

da lei democrática, de autoria do professor rosemiro PereiraLeal, será o marco teórico utilizado para o entendimento e a des-construção do caráter mitológico do júri para, assim, repensar oentendimento solidificado de que o julgamento pelos própriospares viabiliza o caráter democrático da instituição.

hIstorICIDADE E MIto

historicamente, o mito constitui uma realidade religiosae antropológica. É considerado o fundamento utilizado pelohomem para explicar o mundo a partir de crenças, de uma sa-cralidade fundada na religiosidade e a partir do sobrenatural. Amitologia encontra o seu respaldo em construções centradas em

126

Page 5: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

um conceito de verdade, caracterizado pela imutabilidade de con-clusões suficientes para a busca de explicações sobre o existen-cialismo humano e as angústias dos homens, com o fim dealcançar mais esclarecimentos sobre o mundo.

A característica central do pensamento mitológico é a re-produção de verdades absolutas ao longo da história, fazendocom que o homem perpetue algumas conclusões sobre o mundoem que vive, tais como a consciência de sua mortalidade, a exis-tência de um criador e a dicotomização do bem e do mal1. “o mitotrata do desconhecido; fala a respeito de algo para o que inicial-mente não temos palavras. Portanto, o mito contempla o âmagode um imenso silêncio” (ArMstronG, 2005, p. 9).

o pensamento mitológico viabiliza a construção de umarealidade invisível a partir da qual as pessoas sentem intuitiva-mente. A criação do mundo dos deuses pelos homens repre-senta a base da mitologia e tem a finalidade de auxiliá-lo nacompreensão do mundo a partir dos sentidos. É a partir dessasconsiderações iniciais que é possível verificar a inegável impor-tância do mito na história da humanidade, “[...] porém a mitologiaé uma forma de arte que aponta para além da história, apontapara o que é intemporal na existência humana, e nos ajuda asuperar o fluxo caótico de eventos aleatórios, vislumbrando oâmago da realidade” (ArMstronG, 2005, p. 12).

A relação entre o historicismo e o pensamento mitológicoexiste, uma vez que a compreensão que se tem é que a história e omito se produzem e se reproduzem quase que de forma vegetativa.nesse sentido, verifica-se que “[...] os seres humanos se caracteri-zam por literalmente produzirem-se continuamente a si mesmos – o

127

1 “[...] os seres humanos, por sua vez, facilmente se desesperam, e desde aorigem mais remota inventamos histórias que permitem situar nossas vidas numcenário mais amplo e nos dão a sensação de que a vida, apesar de todas asprovas caóticas e arrasadoras em contrário, possui valor e significado. [...]. Aimaginação é a faculdade que produz a religião e a mitologia. hoje o pensa-mento mitológico caiu em desgraça; com freqüência o descartamos por irracio-nal e indulgente” (ArMstronG, 2005, p. 8).

Page 6: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

que indicamos ao chamarmos a organização que os define de orga-nização autopoiética” (MAtUrAnA e VArELA, 1995, p. 84).

A autopoiesi é uma forma de alimentar a crença na evo-lução humana, ou seja, é confirmar o entendimento de que a his-tória, de forma natural, determinará os rumos da humanidadeatravés da perpetuação e da disseminação de verdades prontas,absolutas e imutáveis, construídas a partir da sacralidade e dascrenças que alimentam o pensamento mitológico.

A relação existente entre mitologia e cosmologia2 3 éconstruída a partir do entendimento de que o mito é algo indis-cutível, que deve ser apenas reproduzido e passado de geraçãopara geração. não existe uma preocupação com a demonstraçãodos métodos e dos fundamentos utilizados na construção domito. A desnecessidade dessa fundamentação teórica suficienteao esclarecimento do mito autoriza a utilização da consciência edos sentidos como substratos do pensamento mitológico. Assim,as conclusões advindas do pensamento mitológico nada maissão do que percepções individualizantes do mundo a seremestendidas a todos indistintamente, mediante a perpetuação daverdade sob a égide autoipoética. É nesse contexto que seencontra a base para o exercício do poder e da autoridade: osdeuses são os seres considerados legitimados para a construçãodo pensamento mitológico a ser adotado pela humanidade.

128

2 Cosmologia é a ciência que estuda a estrutura, a evolução e a composição douniverso. Por ciência nos referimos ao uso do método científico para criar e tes-tar modelos; por estrutura entenda-se o problema da forma e da organizaçãoda matéria no universo; por evolução, as diferentes fases pelas quais o universopassou; por composição, queremos saber do que é feito o universo. Disponívelem: http://www.sbfisica.org.br/fne/Vol6/num1/cosmologia.pdf. Acesso em: 07de janeiro de 2010.3 “o mito nos leva até o fundo das reservas psíquicas da humanidade. sejamquais forem nossas raízes culturais e religiosas, ou nossa psicologia pessoal, afamiliaridade com os mitos proporciona um elo vital de ligação com o significado,cuja ausência está, tão amiúde, por trás das neuroses individuais e coletivas denosso tempo. Em resumo, ao estudar mitos estamos em busca daquilo que nosvincula mais profundamente à nossa própria natureza e ao nosso lugar nocosmo” (hoLLIs, 1997, p. 10).

Page 7: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

observa-se que o exercício do poder é uma construçãodo pensamento mitológico por meio do exercício da autoridadedos deuses. o mito nada mais é do que o produto de conjecturassocioculturais e religiosas vigentes em um determinado períododa história da humanidade como parâmetro para o controle e abusca da regularidade social. É por isso que se pode afirmar queo mito legitima o exercício autoritário do poder4, como ficaevidente no Mestre da Verdade:

[...] [os mestres da verdade na Grécia arcaica], a verdade nãoé separável do mestre que a enuncia e das condições clara-mente formalizadas de sua enunciação. o mestre da verdadeé em primeiro lugar o poeta que arranca os homens e os deu-ses do esquecimento e lhes dá assim uma memória. sua pa-lavra eficaz institui por sua virtude própria um mundosimbólico-religioso que é o próprio real. Cabe ao poeta dizer oque verdadeiramente foi: sem sua palavra, os altos feitos doshomens mergulham no não-ser; através dela eles são, tendosempre sido. Ao contrário do que fará o historiador clássico, opoeta arcaico não busca dizer o que foi tal como pôde estabe-lecê-lo consultando e criticando as fontes, mas o estabelecepela escansão repetida e captadora de seu dizer, eco de todosos ditos, cuja beleza sublinha a verdade. o adivinho, outromestre da verdade, diz de maneira uniforme o que foi, é ouserá. Mas, contrariamente ao físico da época clássica, que domesmo modo diz a natureza sob a forma do eterno, ele nãobusca dizer o ser tal como ele é, mas contribui para fazer comque ele seja por meio de seu dizer: sua palavra realiza, e porisso é cercada de desejo e temor e protegida da linguagem or-dinária por seu cerimonial. o rei de justiça da época arcaicaigualmente diz a verdade como um mestre: ao contrário do júrida época clássica, que procura estabelecer o que foi feito e oque deve resultar disso, confrontando argumentações contra-ditórias, o antigo mestre da verdade faz ser o que ele diz,enunciando ritualmente o justo: ao fazer isso, atribui a cadaum sua parte no mundo cósmico e portanto institui a ordemreal da cidade. (WoLFF, 1996, p. 69-70)

o mito como fundamento do exercício do poder explica

129

4 Importante esclarecer que o pensamento mitológico é suficiente para explicaro exercício do poder a partir da fé, do fundamentalismo religioso, da sacraliza-ção do magistrado, da mitificação dos chefes do executivo e da subserviênciados cidadãos alheios do processo de participação na construção de todas asdecisões em que são diretamente interessados.

Page 8: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

a não implementação da Democracia na pós-modernidade. A limitação ou a ausência de fiscalidade das decisões dos

jurados compromete, sobremaneira, o entendimento democráticodo júri. Ao dissertar sobre o tema, norberto Bobbio (2000, p. 97-120) esclarece que o Poder invisível é um dos fatores que com-prometem a construção da democracia, por se tratar de decisõespalacianas tomadas obscuramente pelos detentores do poder,cujos efeitos atingirão diretamente a coletividade, que ficou alheiaao debate das questões relacionadas diretamente aos seus inte-resses. ou seja, a democracia consiste numa espécie de governodo poder visível, e não invisível.

A mitologização do exercício do poder, conforme explicitaBobbio, inviabiliza a fiscalidade e a publicidade5 das decisões to-madas pelos titulares do poder por se colocarem muitas vezesna condição de deuses sem o dever de fundamentar suas deci-sões. A simples condição de detentor do poder o legitima ao exer-cício de sua autoridade, independentemente de fiscalidade e dodever de fundamentar juridicamente suas decisões.

É temerário afirmar que o pensamento mitológico édesprovido de racionalismo, até porque a razão é coextensiva àhumanidade. Assim, “[...] na medida em que a razão é pensadacomo uma determinação que se aplica ao homem ou aos homens,não há nenhuma razão de imputar-lhe um nascimento” (WoLFF,1996, p. 67-68).

130

5 A publicidade é importante para possibilitar o conhecimento dos atos estataispelos cidadãos como forma de controle. os princípios da publicidade, funda-mentação dos provimentos estatais, legalidade, supremacia da constituição,impessoalidade, contraditório, ampla defesa, devido processo legal e isonomiasão corolários e substratos teóricos para a implementação do Estado Demo-crático de Direito. A ausência de fiscalidade consubstanciada pelo Poder Invi-sível, conforme preconiza Bobbio, institucionaliza a autocracia centrada namitologização do poder centrada na autoridade dos julgadores e decisores.Pensar o Estado Democrático de Direito na perspectiva da crítica científica é,acima de tudo, superar o entendimento do Direito centrado na concepção au-toritária para assegurar o exercício da cidadania através do controle e da fisca-lidade dos atos estatais.

Page 9: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Em sendo o pensamento mitológico produto de construçõeshumanas, denota-se claramente suas raízes racionalistas, o quejustifica a superação do entendimento de que não é possível aracionalização do mito.

o advento da razão precede o pensamento mitológico,tendo em vista ser possível verificar o pensamento racionaldesde o momento em que o homem passou a intervir na naturezae a transformá-la. Portanto, não é coerente limitar o entendimentoda razão ao pensamento científico, mesmo sabendo que ométodo científico encontra sua base no pensamento racional. Asistematização do pensamento científico se deu a partir da razão,mas isso não justifica a desconsideração das colocações ante-riormente expostas.

A superação do mito visto sob a égide historicista e au-topoética dar-se-á através da racionalidade crítica, da ampla fis-calidade, do devido processo legal e do processo constitucionalcomo corolários à implementação do Direito em bases democráti-cas. Por isso, é imperioso o estudo do tema na obra de Karl Pop-per, para que seja possível o debate centrado na crítica científica.

o mito do contexto

o conhecimento científico construído em bases episte-mológicas é considerado o fundamento inicial para o esclareci-mento da superação da mitologização e da pressuposição doconhecimento em bases historicistas. É nesse contexto teóricoque Karl Popper propõe a dessacralização e a desmitologizaçãodo conhecimento pela problematização científica. A falibilidade6

131

6 “É evidente que a doutrina da falibilidade humana pode ser usada de formaválida para argumentar contra o tipo de absolutismo filosófico que se afirma de-tentor da verdade absoluta – ou talvez dum critério de verdade absoluta, como,por exemplo, o critério cartesiano da clareza e distinção ou algum outro critériointuitivo” (PoPPEr, 2009, p. 91).

Page 10: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

e a ampla fiscalidade representam a base para o estudo da críticacientífica que, por sua vez, fundamentam a construção do devidoprocesso legal no Estado Democrático de Direito.

o inacabamento e a construção infinita do conhecimentocientífico a partir da refutabilidade e da testificação das teoriascientíficas representam a base da obra de Karl Popper, tendo emvista a superação da dogmatização do conhecimento propostopelo pensamento mitológico.

o método crítico7 proposto por Popper, que estabelecea proibição de vedação de liberdade de tentativas de refutação(base teórica do Devido Processo Legal), inaugura o estudo doDireito Democrático na pós-modernidade8.

o erro é a causa da teorização e o fundamento da falibi-lidade e da testificação do conhecimento científico em Popper. oconhecimento é a forma legítima de compreendermos a nossaignorância e o instrumento teórico de explicação do erro.

A ruptura com as crenças e com o conhecimento cons-truído em bases metafísicas é pressuposto para o entendimentodo Direito Democrático centrado não mais na clarividência e nasapiência inata dos julgadores.

A processualidade democrática do discurso voltadopara a ampla fiscalidade implementa-se pela radicalização do

132

7 “[...] a crítica, parece, é o único modo que temos de identificar nossos erros ede aprender com eles de maneira sistemática” (PoPPEr, 1987, p. 396).8 “A pós modernidade do discurso filosófico-constitucional se faz pela apreensãoda democracia como teoria processual de resolução do impasse da moderni-dade ainda radicalizado na recusa em preencher o vazio da linguagem deixadoao longo de século de dominação legal pelo autoritarismo da razãoprescritiva,embora já acentuadamente laicizada (desencantada) em seus juízosde validação,não é apta a encaminhar o convívio em sociedades pluralisticas etransculturais da atualidade. É preciso destruir o fetiche do Estado de justiçaque está a emperrar a transição para a pós modernidade, que reclama o exer-cício jurídico de bases discursivas ao assentamento de uma comunidade jurí-dica a se instituir por si mesma por uma auto-inclusão processual no sistemademocrático já constitucionalizado como ocupante legitimada desse espaço ju-rídico ainda apropriado por gestores arcaizados que se louvam numa razão ins-trumental de uma jurisdição (dicção de um direito culturalizado) salvadora darealidade hostil à realização dos direitos fundamentais” (LEAL, 2002, p. 30).

Page 11: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Devido Processo Legal. Inicia-se, assim, o período de um direitoemancipatório, através do qual a fiscalidade e o falibilismo9 pas-sam a ser exercidos pelos princípios institutivos do processo10

(contraditório11, ampla defesa, isonomia processual, devido pro-cesso legal e indispensabilidade do advogado).

talvez um dos grandes erros cometidos pelos estudiososem todo o mundo é admitir estaticamente a dicotomizaçãosupostamente existente entre o racionalismo e o irracionalismo.tal questão não parecer ser tão simples assim de ser esclarecidapelos pesquisadores de uma forma genérica, tendo em vista quea doutrina do relativismo esclarece que o conceito de verdade érelativo e, por isso, a verdade mudaria de contexto para contexto.É nessa perspectiva que Karl Popper (2009, p. 67-68) propõe odebate do “Mito do Contexto”.

A discussão, o debate, os erros, a ignorância e a discordânciasão considerados por Popper a base da discussão, do debate,

133

9 “[...] Por falibilismo entende aqui a opinião, ou a aceitação do fato, de que po-demos errar e de que a busca da certeza (ou mesmo a busca de alta probabi-lidade) é uma busca errônea. Mas isto não implica que a busca de verdade sejaerrônea. Ao contrário, a idéia de erro implica a da verdade como padrão quepodemos não atingir. Implica que, embora possamos buscar a verdade e atémesmo encontrar a verdade (como creio que fazemos em muitíssimos casos),nunca podemos estar inteiramente certos de que a encontramos [...] Mas o fa-libilismo não precisa, de modo algum, dar origem a quaisquer conclusões céti-cas ou relativistas. tornar-se-á isto claro se considerarmos que todos osexemplos históricos conhecidos de falibilidade humana – incluindo todos osexemplos conhecidos de erros judiciários – são exemplos do avanço de nossoconhecimento” (PoPPEr, 1987, p. 395-396).10 “[...] como elementos jurídico-existenciais do processo, em sua base institutiva,o contraditório, a isonomia e a ampla defesa são princípios (referentes lógico-juridicos), sem os quais não se definiria o ProCEsso em parâmetros modernosde direito-garantia constitucionalizada ao exercício de direitos fundamentais pelaprocedimentalidade instrumental das leis processuais. Como princípios jurídico-institutivos do ProCEsso, o contraditório, a isonomia e a ampla defesa, mere-cem estudo particularizado” (LEAL, 2000, p. 103).11 o princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se emmanifestação do princípio do Estado de Direito, tem íntima ligação com o daigualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao ga-rantir aos litigantes p contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto odireito de ação quanto o direito de defesa são manifestações do princípio docontraditório” (nEry jUnIor, 2000, p. 130).

Page 12: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

da argumentação e da crítica científica. A superação da técnicae a teorização da crítica somente são possíveis quando há discor-dância. É por isso que é possível afirmar que Popper, em suaobra, não busca o consenso, mas sim o aprimoramento do debatecientífico. A desconstrução do mito é o caminho para o rompimentocom o entendimento estático e absoluto de verdades prontas eacabadas que se perpetuam ao longo da história da humanidade.

o debate científico como pressuposto à construção doconhecimento tem que se desenvolver por meio da participaçãode todos aqueles interessados no objeto da discussão. Dessaforma, pode-se definir o Mito do Contexto como “A existência deuma discussão racional e produtiva é impossível, a menos queos participantes partilhem um contexto comum de pressupostosbásicos ou, pelo menos, tenham acordado em semelhantecontexto em vista da discussão” (PoPPEr, 2009, p. 69).

o mito limita o debate com o propósito de tornar a discussãofácil e moderada, a partir do momento em que condiciona o debateà existência de questões minimamente comuns e indiscutíveis.ou seja, parte-se do pressuposto de que a discussão não seráampla, haja vista elementos não passíveis de debate por seremconsiderados pontos pacíficos entre os sujeitos do debate.

Ao contrário do exposto, o debate democrático tem suabase centrada no erro e na possibilidade de debater todas asquestões possíveis e consideradas relevantes. A radicalizaçãodo princípio do Devido Processo Legal assegura aos participan-tes a liberdade de divergir e discordar amplamente, uma vez queassim teremos o aprimoramento das proposições teóricas sufi-cientes à construção da crítica científica. nesse sentido:

Irei defender uma tese perfeitamente contrária: uma discussãoentre pessoas que compartilham várias opiniões tem poucasprobabilidades de vir a ser proveitosa, ainda que possa seragradável; enquanto uma discussão entre contextos bastantedíspares pode ser extremamente proveitosa, ainda que, porvezes, possa ser muito difícil e, talvez, não tão agradável (pos-samos embora aprender a apreciá-la).

134

Page 13: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Creio que podemos afirmar que uma discussão foi tanto maisproveitosa quanto mais os participantes com ela puderemaprender. significa isto que quanto mais interessantes e difí-ceis tenham sido as questões levantadas tanto mais induzidoseles foram a pensar respostas novas, tanto mais abaladosterão sido nas suas opiniões, pois foram levados a ver essasquestões de forma diferente após a discussão – em resumo,os seus horizontes intelectuais alargaram-se.A fecundidade neste sentido dependerá, quase sempre, dohiato original entre as opiniões dos participantes na discussão.Quanto maior ele for, tanto mais proveitosa a discussão –desde que esta se não torne, naturalmente, inviável como as-sere o mito do contexto. (PoPPEr, 2009, p. 70-71)

Ao contrário do entendimento de muitos estudiosos,Popper defende que quanto mais divergência houver quanto àtese objeto do debate e quanto mais difícil for o consenso, maisproveitosa será a discussão. tal afirmação se justifica a partir daconcepção de que o debate não tem como escopo o consenso,mas sim o aprimoramento da argumentação, o aprendizado dosparticipantes e o amadurecimento das questões suscitadas nodebate. Além disso, quanto mais díspares forem as teses levan-tadas, maior será a reflexão dos sujeitos do debate, para que osmesmos aprendam a lidar mais claramente com as diferenças etambém venham a pensar sobre a tolerância, questão profunda-mente relevante nas sociedades democráticas e pluralistas.

É por isso que os juízos a priori, a dogmática, os mitos ea utilização de questões sedimentadas como parâmetro para aargumentação limitam ou, muitas vezes, suprimem o debate, portorná-lo não proveitoso à reflexão científica. A construção do Es-tado Democrático de Direito pressupõe o enfrentamento, peloDevido Processo Legal, das questões de interesse das socieda-des abertas, especificamente a problemática teórica envolvendoas esferas públicas e privadas.

Para Popper, quanto maior for o debate maior será aprobabilidade de produção crítica do conhecimento científico.nesse sentido:

135

Page 14: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

[...] mesmo sem discussão, é possível um confronto proveitosoentre pessoas profundamente enraizadas em marcos diferentes.Contudo, não devemos esperar demasiado: não devemos es-perar que um confronto, ou até uma discussão prolongada, ter-mine em acordo entre os participantes. (PoPPEr, 2009, p. 73)

talvez um dos maiores desafios enfrentados pelos inter-locutores de Popper é compreender que o consenso não podeser considerado requisito indispensável do debate científico. Épossível que a discussão e a argumentação científica viabilize acrítica mesmo diante da permanência de divergências. Assim,pode-se falar que o debate foi proveitoso na concepção e nasproposições teóricas de Popper, ao defender que o fosso exis-tente entre contextos diferentes ou entre diferentes culturaspoderá ser ultrapassado, o que não representa uma garantia deque sempre será ultrapassado12.

o aprimoramento do convívio de individualidades em umespaço público é produto do choque de diferentes culturas e do con-fronto de diferentes contextos. ou seja, o intenso e constante debateé o fundamento do processo de amadurecimento da vida e do con-vívio em sociedade. Para Popper (2009, p. 76), certamente “[...] ochoque cultural pode levar os homens a pensar de modo crítico [...]”.

Verifica-se que as proposições filosóficas apresentadaspor Popper denotam claramente a superação da retórica e dapersuasão, uma vez que compreende o debate não como instru-mento de convencimento ou de prevalência do melhor argumento,

136

12 “Por conseguinte, a minha tese não diz que o fosso entre contextos diferentes,ou entre diferentes culturas, pode, por razões lógicas, ser sempre ultrapassado.Defende apenas que, geralmente, pode ser ultrapassado. talvez não haja pres-supostos comuns. talvez depare apenas com problemas comuns. Pois diferen-tes grupos de seres humanos, em geral, tem muito em comum, a saber, osproblemas de sobrevivência. Mas até os problemas comuns podem nem sem-pre ser necessários. A minha tese refere que o mito do contexto ou a sua ne-gação não é sustentada pela lógica, e que podemos tentar aprender uns comos outros. se o conseguiremos ou não, dependerá em grande parte de nossaboa vontade e, até certo ponto, também da nossa condição histórica e da nossasituação problemática” (PoPPEr, 2009, p. 74-75).

Page 15: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

mas, acima de tudo, como forma de aprimorar as reflexões cien-tificamente críticas.

Ao teorizar suas proposições, Popper parte do pressu-posto de que o centro do debate e das decisões encontra-se naparticipação direta e efetiva de todos aqueles interessados noobjeto do debate, mediante o reconhecimento da possibilidadede discussão ampla de todas as questões coerentemente rela-cionadas com o foco das discussões e das divergências.

A compreensão do universo talvez seja uma das buscasmais constantes do homem. o mito e a invenção de histórias é aforma mais antiga e até hoje muito utilizada para explicar o uni-verso essencialmente a partir da fé irracional. Em contrapartidatemos a racionalidade como fundamento para o entendimentoobjetivamente científico sobre o universo. o método da discussãocrítica centrado nos erros ou divergências é a teorização apre-sentada por Popper (2009, p. 82-83) para demonstrar a insufi-ciência do mito para a compreensão do universo.

A Epistemologia Quadripartite (técnica – ciência – teoria– crítica) encontra a sua fundamentação teórica na proibição devedação da liberdade de tentativa de refutação. É impossívelconciliar a democracia com a vedação de tentativa de refutação,tendo em vista que em Popper não se pode falar em resoluçãoconclusiva, uma vez que o conhecimento fornece mais teoriaspara o enfrentamento dos erros. Por isso, Popper abomina asconclusões peremptórias fundadas em verdades absolutas.

A liberdade nas tentativas de refutação é o que garantiráa autonomia dos sujeitos na participação da discussão e do de-bate. Popper preconiza, ao longo de todas as suas discussões,que a liberdade dos indivíduos é requisito essencial para asse-gurar efetivamente a sua participação no debate.

o Método Crítico de Popper é a garantia de que a liberdadee a igualdade de participação são corolários das reflexões críticasno Estado Democrático de Direito. nesse ínterim, não se pode ver o

137

Page 16: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Método Crítico como uma disposição de ideias e de raciocínios quepossibilitem o entendimento científico com ordem e coerência, atéporque a coerência máxima é a base da ditadura do conhecimento.

no âmbito do Direito o Método Crítico não pode ser vistocomo uma técnica de interpretação a partir da experiência profis-sional do intérprete, ou seja, não é uma forma de estabilização dosentido do Direito pela conciliação interpretativa do decisor. A in-terpretação do Direito deverá partir de uma argumentação jurídicadecorrente de um debate entre interessados que se encontremem igualdade jurídica, o que inviabiliza o julgador de suprir as la-cunas da lei pelo método sistemático de interpretação pautado nojuízo da autoridade toda a base do método crítico encontra-se nadiscordância, e, por isso, “seja o que for que tenha acontecido, ainvenção do método crítico dificilmente se teria dado sem o im-pacto do choque de culturas” (PoPPEr, 2009, p. 83).

A finalidade das discussões não se encontra centrada navitória de uma das partes envolvidas no debate, mas sim noesclarecimento científico, por mínimo que possa parecer. Pro-cessualmente, a análise de um caso concreto não perpassapela prevalência do melhor argumento jurídico, mas em seu es-tudo conforme o contexto do debate que se propõe. É impor-tante esclarecer a necessidade de prevalência da racionalidadecomo parâmetro do debate jurídico, para não prevalecer as con-cepções pessoais do julgador. nesse sentido, Popper afirma:

As discussões sérias e críticas são sempre difíceis. nelas en-tram sempre elementos não racionais, tais como os problemas so-ciais. Muitos participantes numa discussão racional, ou seja,crítica, consideram particularmente difícil ter de desaprenderaquilo que os instintos lhes impõem (e aquilo que lhes é ensinadopor todas as sociedades que debatem): ou seja, vencer. Pois oque têm de aprender é que uma vitória num debate não significanada, ao passo que a mínima clarificação de um problema quese tenha – mesmo a mais pequena contribuição para uma com-preensão mais clara da sua própria posição ou da de um opo-sitor – constitui um grande sucesso. Uma discussão que sevence, mas que não ajuda na alteração ou clarificação da vossamente, nem que seja só um pouco, deverá ser considerada uma

138

Page 17: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

perda completa. Por isso, nenhuma mudança de posição sedeve fazer sub-repticiamente; pelo contrário, há que realçá-lajuntamente com as sua conseqüências exploradas. A discussão racional, neste sentido, é uma coisa rara. Mas é umideal importante e podemos aprender a dar-lhe valor. não tempor objectivo converter niguém e é modesta nas expectativas: ésuficiente, mais do que suficiente, se sentirmos que consegui-mos ver as coisas sob uma nova luz ou que até nos aproxima-mos um pouco mais da verdade. (PoPPEr, 2009, p. 84-85)

A construção do mito, para Popper, varia conforme o con-texto, pois as verdades são definidas a partir das conclusõescientíficas obtidas pelos estudiosos. Muitas conclusões obtidaspor meio da pesquisa científica se tornam mitos por estes seremvistos como verdades absolutas, e não passíveis de refutabili-dade. Para Popper, qualquer verdade científica, por mais abso-luta que possa parecer, é passível de refutabilidade emdecorrência do falibilismo científico. Assim, propõe a liberdade ea autonomia dos sujeitos no debate científico como forma de apri-moramento das reflexões críticas.

Dessa forma, o tema tribunal do júri é a oportunidadeque se tem de debater que a construção do provimento jurisdi-cional pelo corpo de jurados deverá se dar não através de juízosa priori, nem tampouco de convicções pessoais materializadasna íntima convicção dos julgadores, mas sim mediante a amplaoportunização do debate jurídico em que são ofertadas à discus-são todas as questões fáticas suficientes à construção partici-pada da argumentação jurídica sob a égide do devido processopenal democrático e constitucionalizado.

FUnDAMEntos hIstórICos Do trIBUnAL Do júrI

A análise da historicidade do tema remonta aos judeus

139

Page 18: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

do Egito Antigo. sob a égide das leis de Moisés encontramos oprimeiro registro do tribunal do júri. Ao dispor sobre a existênciado Conselho de Anciãos, que nada mais era do que a materiali-zação do julgamento pelos próprios pares, verifica-se a estreitarelação existente entre o júri e a religião, tendo em vista que osjulgamentos eram de natureza teocrática e se davam em nomede Deus. As regras a serem observadas encontravam-se esta-belecidas no grande livro, o Pentateucho, onde não havia limitepara a fixação da pena do condenado, garantia-se a publicidadedo julgamento, assegurava-se a defesa do acusado, mas, desdeesse período da história, o julgamento se dava de acordo com aconsciência do jurado (roChA, 1919; GoMEs, 1953, p. 11-21).

há registros históricos na Grécia que merecem uma breveanálise, com a finalidade de esclarecer cientificamente a origemdo tribunal do júri através do estudo do Areópago e da heliéia,dois órgãos colegiados com a incumbência de proferir julgamentospautados essencialmente na consciência e no senso de justiça dosseus julgadores. nesse sentido, nádia de Araújo e ricardo r. Al-meida (1996, p. 200-201 apud tUCCI, 1999, p. 13-14) expõem:

na Atenas clássica, duas instituições judiciárias velam pelarestauração da paz social: o Areópago e a heliéia. Ambasapresentam pontos em comum com o júri. o Areópago, encarre-gado de julgar os crimes de sangue, era guiado pela prudênciade um senso comum jurídico. seus integrantes, antigos arcon-tes, seguiam apenas os ditames de sua consciência. A heliéia,por sua vez, era um tribunal Popular, integrado por um númerosignificativo de heliastas (de 201 a 2.501), todos cidadãos optimojure, que também julgavam, após ouvir a defesa do réu, segundosua íntima convicção. Parecem elementos bastantes paraidentificar aqui os contornos mínimos, o princípio ao qual aidéia de justiça popular historicamente se remeteria.

Para Guilherme de souza nucci (2008, p. 41-42), “naGrécia, desde o século IV a.C., tinha-se conhecimento da exis-tência do júri. o denominado tribunal de heliastas era a juris-dição comum, reunindo-se em praça pública e composto decidadãos representantes do povo”.

140

Page 19: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

o advento do tribunal do júri no Direito romano ocorreuno sistema acusatório com o surgimento da quaestiones perpe-

tuae, que através da Lex Calpurnia de 149 aC. viabilizou, inicial-mente, o julgamento colegiado de funcionários do Estado quetivessem cometido qualquer ilicitude contra um provinciano. opretor romano era quem presidia a sessão de julgamento e oórgão colegiado legitimado para julgar era composto por cida-dãos idôneos, com idade mínima de trinta anos e que não tives-sem qualquer punição anterior. toda acusação devia serprecedida de provas e se o acusado fosse absolvido o acusadorera posteriormente processado; assegurava-se o direito de de-fesa do acusado, o julgamento se dava de acordo com a cons-ciência dos julgadores e sem necessidade de qualquer motivação(tUCCI, 1999, p. 13-24).

A Magna Charta da Inglaterra de 1215 é considerada ummarco do constitucionalismo europeu medieval e representa umaverdadeira conquista histórica em termos jurídicos. Foi implantadana Inglaterra quando o Concílio de Latrão aboliu as ordálias e osjuízos de Deus. o júri foi institucionalizado na Inglaterra centradona ideologia de ser um tribunal do Povo em que os acusados se-riam processados e julgados pelos seus próprios pares (nUCCI,2008, p. 41-44). nesse contexto, é oportuna a colocação de jack-son Ferreira de Matos:

surgiu como uma necessidade de julgar os crimes praticadospor bruxarias ou com caráter místico. Para isso, contava coma participação de doze homens da sociedade que teriam uma"consciência pura", e que se julgavam detentores da verdadedivina para a análise do fato tido como ilícito e a aplicação dorespectivo castigo.Infere-se desde a sua origem o caráter religioso imposto ao júri,se não pelo número de jurados – uma suposta referência aosdoze apóstolos de Cristo – pelo poder dado aos homens comunsde serem detentores da verdade julgando uma conduta humana,papel reservado naquela época exclusivamente a Deus.13

141

13 Disponível em: http://www.periodicoedireito.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=215&Itemid=31. Acesso em: 8 de janeiro de 2010.

Page 20: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

A formação histórica do tribunal do júri decorre do inte-resse em democratizar os julgamentos. traz, em seu bojo, umaforte influência religiosa, especificamente cristã, centrada na ideiade justiça decorrente de decisões proferidas pelos jurados deacordo com a sua consciência, ou seja, independente de qualquerfundamentação ou motivação jurídica. Assim, a consciência dosjurados, produto de suas crenças e de suas convicções pessoais,bem como o caráter sacro dos julgamentos ocorridos em um espaçocomposto por pessoas supostamente preparadas para distribuire garantir a justiça entre os homens representa alguns dos traçoscaracterísticos e marcantes do tribunal do júri. nesse contexto,nucci (2008, p. 42) expõe

Após a revolução Francesa, de 1789, tendo por finalidade ocombate à idéias e métodos esposados pelos magistrados doregime monárquico, estabeleceu-se o júri na França. o objetivoera substituir um judiciário formado, predominantemente pormagistrados vinculados à monarquia, por outro, constituídopelo povo, envolto pelos novos ideais republicanos.A partir disso, espalhou-se pelo resto da Europa, como umideal de liberdade e democracia a ser perseguido, como sesomente o povo soubesse proferir julgamentos justos. relem-bremos que o Poder judiciário não era independente, motivopelo qual o julgamento do júri apresentava-se como justo eimparcial, porque produzido por pessoas do povo, sem aparticipação de magistrados considerados corruptos e vincula-dos aos interesses do soberano.

no Brasil, o tribunal do júri foi instituído por Decreto noano de 1822, com a finalidade de julgar os crimes de imprensasob a justificativa de que as leis antigas impunham penas muitoduras. Por isso, o príncipe regente D. Pedro ordenou que os juízesfundamentassem suas decisões com base na ConstituiçãoPortuguesa de 1821, até que a primeira Constituição brasileirafosse promulgada, no ano de 1824 (nUCCI, 1999, p. 36). “o júriera composto por 24 cidadãos bons, honrados, inteligentes e pa-triotas, prontos a julgar os delitos de abuso de liberdade de im-prensa, sendo suas decisões passíveis de revisão somente pelo

142

Page 21: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Príncipe regente” (nUCCI, 2008, p. 43).A primeira previsão legislativa no Brasil sobre o tribunal

do júri se deu no plano infraconstitucional, uma vez que foi so-mente com a Constituição de 182414, em seus artigos 151 e 152que visualizamos o status constitucional do júri no Brasil: “Artigo151 – o Poder judicial é independente, e será composto de juízese jurados, os quais terão lugar assim no Cível, como no Crime,nos casos e pelo modo que os Códigos determinarem. Artigo 152– os jurados pronunciam sobre o fato, e os juízes aplicam a Lei”(BrAsIL, 2001a, p. 99).

Verifica-se que legislador constituinte não definiu consti-tucionalmente, de forma detalhada, a competência do tribunaldo júri, deixando tal encargo ao legislador infraconstitucional.ressalta-se, ainda, que a competência do tribunal do júrienglobava tanto fatos de repercussões penais quanto cíveis,conforme exposto no caput do artigo 151. não houve também,no plano constitucional, qualquer menção aos princípios regentesdo tribunal do júri, tal qual ocorre na Constituição Brasileira de1988, a ser analisada posteriormente.

Antes do advento do primeiro Código Criminal do Impé-rio, no ano de 1832, foi promulgada, em 20 de setembro de 1830,a segunda lei de imprensa:

Mais tarde, em 20 de setembro de 1830, foi promulgada a segundalei de imprensa, que tratava sobre o abuso da liberdade deimprensa, e criou o júri de acusação e o júri de julgamento.o primeiro era responsável por julgar a admissibilidade daacusação. o conselho ouvia a acusação, defesa e testemunhas,se fosse o caso, e se reunia a portas fechadas para decidir,por maioria absoluta, a viabilidade da acusação. Após, reunia-seo júri de julgamento e, ouvindo as alegações das partes eanalisando as provas colhidas, respondiam aos quesitosformulados pelo juiz de direito e decidiam por maioria absolutaa culpa do réu. (GóEs, s/d, grifo nosso)

143

14 A Constituição brasileira de 1824 foi outorgada por D. Pedro I , segundo oqual é constitucional apenas aquilo que diz respeito aos poderes do Estado eaos direitos e garantias individuais.

Page 22: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

no ano de 1832, verifica-se o advento do Código de Pro-cesso Penal, que recebeu fortes influências do direito norte-ame-ricano, do direito francês e do direito inglês. houve, nesse período,o tratamento legislativo detalhado da competência e do procedi-mento do tribunal do júri, o que limitou sobremaneira a atuaçãodos jurados e do juiz presidente. Com a promulgação da Lei 261,de 03 de dezembro de 1841, houve uma limitação da competênciado tribunal do júri ao extinguir o júri de acusação e estabelecerque a instrução criminal passou a ser responsabilidade dos De-legados de Polícia e dos juízes Municipais (GóEs, s/d).

outra derrocada sofreu o júri com o advento da Lei n. 562, de2 de julho de 1850, regulamentada pelo Decreto n. 707, de 9de outubro do mesmo ano, que atribuiu aos magistrados acompetência para o julgamento dos crimes de moeda falsa,roubo, homicídio nos municípios da fronteira do Império, resis-tência e tirada de presos, além da bancarrota.Mas, em 1871, ocorreu nova reforma processual que trouxesignificativas alterações para a instituição do júri. Com efeito,a Lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871, ampliou novamentea competência do júri, cessando as limitações impostas pelaLei n. 562, de 7 de julho de 1850. (GóEs, s/d)

no Governo Provisório de 15 de novembro de 1889, ruiBarbosa exerceu a função de Ministro da Defesa e, por isso,participou ativamente na elaboração do texto da segunda Cons-tituição Brasileira, do ano de 1891. trata-se de uma Constituiçãobastante objetiva, com exatamente 91 artigos, que em seu artigo72, § 31, estabeleceu apenas a manutenção da instituição dojúri, atribuindo-lhe status de garantia ou direito individual (BrA-sIL, 2001b, p. 99). Em virtude da objetividade do legislador cons-tituinte, sabe-se que a Constituição Brasileira de 1891recepcionou o tratamento legislativo infraconstitucional referenteà competência e ao procedimento adotado no tribunal do júri.ressalta-se, nesse período da história, a criação do tribunal dojúri vinculado à justiça Federal, conforme preceitua o Decreto848, de 1890 (GóEs, s/d).

144

Page 23: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

o supremo tribunal Federal, por meio de acórdão de 07de outubro de 1899, fixou as características do tribunal do júri:

a) composição por jurados qualificados periodicamente pelasautoridades designadas por lei; b) conselho de julgamentocomposto de certo número de juízes, escolhidos à sorte; c)incomunicabilidade dos jurados com pessoas estranhas aoConselho; d) alegações e provas da acusação e defesaproduzidas publicamente perante ele; e) julgamento segundoa consciência; f) irresponsabilidade pelo voto. (MArQUEs,1997, p. 49)

Chefe do Governo Provisório, com a revolução de 1930,Getúlio Vargas convocou a Constituinte que, ao fim de seustrabalhos, em julho de 1934, o elegeu, por meio de eleições indi-retas, Presidente, por quatro anos. Em seu artigo 72, a Consti-tuição de 1934 estabeleceu: “É mantida a instituição do júri,com a organização que lhe der a lei” (BrAsIL, 2001c, p. 141).novamente, o legislador constituinte confiou ao legislador infra-constitucional a atribuição de regulamentar a procedimentali-zação e a enumeração das atribuições do tribunal do júri.Confirmaram-se os fundamentos histórico-jurídicos do júri: a de-mocratização dos julgamentos através da participação populardos jurados, legitimados para proferir suas decisões conformesua convicção.

Francisco Campos foi o principal autor da Constituiçãode 1937, que instituiu o Estado novo, período da história brasi-leira marcado por um direito autoritário, utilizado para legitimar apermanência do então Presidente da república Getúlio Vargasno poder. A respectiva Constituição brasileira foi omissa quantoao tribunal do júri, o que desencadeou a promulgação doDecreto-lei 167, em 05 de janeiro de 1938, visando demonstrarexplicitamente a permanência do tribunal do júri no ordena-mento jurídico brasileiro, conforme preceitua o disposto no artigo183: “Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que,explícita ou implicitamente, não contrariem as disposições destaConstituição” (BrAsIL, 2001d, p. 115).

145

Page 24: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Em 1945, a eleição direta para Presidente da repúblicade Marechal Eurico Gaspar Dutra, por maioria absoluta de votos,inaugurou um novo período da história do Brasil, marcado pela re-democratização do país após o término de um período de exceção.Em 1946 adveio uma nova Constituição, fortemente influenciadapela Carta Constitucional de 1891 e 1934, que resgatou, atravésdo Decreto-lei 167, de 1938, o tribunal do júri, omitido pela Cons-tituição de 1937. tal Decreto-lei disciplinou o procedimento, aorganização e a composição do tribunal do júri (BrAsIL, 2001e).

A Constituição de 24 de janeiro de 1967 foi outorgada emum período ditatorial da história do Brasil, marcado pelo autorita-rismo dos militares. Mesmo assim, verifica-se a manutenção dotribunal do júri e a institucionalização de sua competência parao processamento e julgamento de crimes dolosos contra a vida,conforme preceitua o artigo 153, §18 (BrAsIL, 2001f, p. 163). Ve-rifica-se que essa é a primeira Constituição brasileira a definir ex-pressamente, em seu texto, a competência da instituição do júri,deixando para o plano infraconstitucional a regulamentação dasatribuições e das questões procedimentais. Com o advento daEmenda Constitucional 1, de 17 de outubro de 1969, foi mantidaa instituição do júri nos termos ora expostos, embora se verifiquea supressão de inúmeros direitos e garantias fundamentais.

A seguir serão debatidos os reflexos da Constituição bra-sileira de 1988 no que tange ao estudo do tribunal do júri sob aótica democrática e da racionalidade crítica.

A ConstItUCIonALIzAção Do júrI E o sEU trAtAMEntojUríDICo-InFrAConstItUCIonAL no BrAsIL

o Código de Processo Penal brasileiro (Decreto-lei n.

146

Page 25: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

3.689/41) tem natureza inquisitorial15, o que exige umacompreensão sistemático-constitucionalizada com o advento doEstado Democrático de Direito. É necessário compatibilizartodas as discussões e debates referentes à reforma16 do Códigode Processo Penal brasileiro com o modelo constitucional deprocesso penal, de cunho garantista e com o propósito deassegurar a implementação dos Direitos Fundamentais. É nessecontexto teórico que se pretende debater o tribunal do júri, como propósito de esclarecer cientificamente se tal instituiçãopode ou não ser considerada compatível com o Estado Demo-crático de Direito, nos moldes propostos pela ConstituiçãoBrasileira de 1988.

os grandes problemas que se vislumbram no sistema in-quisitorial são os seguintes: a) concentração das funções de julgarnas mãos do juiz; b) a valoração e a interpretação das provas produ-zidas por meio de juízos axiologizantes centrados na autoridade dojulgador; c) a liberdade de o magistrado determinar, ex officio, aprodução de provas suficientes à formação do seu convencimento;

147

15 “o problema é que a inquisitividade que se verifica pela gestão da prova pelo juize pela confusão entre a atuação do órgão julgador e acusador ainda é muito forteno Código de Processo Penal brasileiro. ela pode ser vista não só no inquérito, masna iniciativa probatória do juiz, que pode ex officio determinar diligencias (art. 156),buscas e apreensões (art. 542), seqüestro de bens (art. 127), oitiva de testemunhasreferidas (art. 209), e ainda, na confusão entre os papéis de julgador e acusador, oreconhecimento de agravantes não deduzidas na denúncia (art. 385), a possibilidadede condenação mesmo com o pedido de absolvição da acusação (art. 385) e o re-curso de oficio ou remessa necessária (art. 574)” (BArros, 2009, p. 6).16 “Para se discutir a atual reforma do Código de Processo Penal é de início ne-cessário relembrar que várias comissões antes tentaram mudar total ou par-cialmente o Decreto-lei 3.689/41, nosso Código de Processo Penal, deimplicações fascistas e autoritárias. o Projeto de helio tornaghi, concluído em 1963 nem chegou a ser encaminhadoao Congresso pelo Presidente Geisel, convertendo-se na PL 633/75 (PIErAn-GELLI, 1983), sendo depois retirado de pauta pelo poder executivo. Ainda nogoverno Geisel foi organizada uma nova comissão presidida por Francisco deAssis toledo, que, tomando por base o anteprojeto anterior, encaminhou ao Con-gresso nova proposta identificada com PL 1655/1983. tal projeto foi novamenteretirado pelo Poder Executivo em 1989, em razão da promulgação da Constitui-ção da república de 1988 (PAssos, 2008)” (BArros, 2009, p. 1).

Page 26: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

d) a dispensa da fundamentação das decisões judiciais, especi-ficamente na atuação do jurados, que proferirão seus julgamen-tos de acordo com sua íntima convicção.

o foco dessa análise centra-se na seguinte premissa: aconcentração do exercício da jurisdição na autoridade do magis-trado e dos jurados.

Enquanto a jurisdição continuar sendo vista como umpoder do juiz de dizer o direito no caso concreto, continuaremosconvivendo com um processo penal de raízes inquisitoriais.

Pensar o processo penal no Estado Democrático de Di-reito é revisitar o processo e a jurisdição sob a égide constitucio-nal. ou seja, o processo deixa de ser visto como mero instrumentopara o exercício da jurisdição e passa a ser compreendido siste-maticamente como uma instituição constitucionalizada garanti-dora da implementação efetiva dos Direitos Fundamentais. Ajurisdição não é mais vista como um poder do juiz, mas sim comoum Direito Fundamental assegurado indistintamente a todos oscidadãos e uma função estatal hábil a viabilizar a discussão domérito das pretensões.

Pensar o modelo constitucional de processo penal écompreendê-lo sob a égide principiológica. o contraditório, aampla defesa, o devido processo legal e a obrigatoriedade defundamentação das decisões judiciais representam a garantia departicipação dos sujeitos juridicamente interessados no provi-mento estatal. nesse sentido, Flaviane de Magalhães Barrosafirma (2009, p. 18):

Assim, tomando como base a noção de processo como garantia,o contraditório deve ter o seu conceito ampliado, de modo aser compreendido como o espaço procedimentalizado paragarantia de participação dos afetados na construção do provi-mento. Assim, o contraditório tem como característica o princípioda influência, no sentido de que as partes tem direito de influirargumentativamente nas decisões do processo, ou seja, influirno desenvolvimento e no resultado do processo.

148

Page 27: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

A imparcialidade do juízo tem como corolário a obrigato-riedade de fundamentação das decisões judiciais, a possibilidadede ampla fiscalidade, a construção legítima dos provimentos me-diante a participação dos interessados.

A afirmação de que a concepção vigente do tribunal dojúri não é compatível com o modelo constitucional do processopenal no Estado Democrático de Direito justifica-se no sentidode que a dispensa de motivação nas decisões tomadas pelosjurados viabiliza a substituição da argumentação jurídica porjuízos axiologizantes.

no tribunal do júri o amplo debate jurídico pelos inte-ressados na construção do provimento jurisdicional fica compro-metido com a exclusão dos jurados do espaço de argumentaçãojurídica de construção do provimento. Além disso, o acusado ficaà margem da construção participada do provimento, no momentoem que os jurados são legitimados a tomarem suas decisõesconforme sua consciência e seu senso de justiça.

A previsão do júri na Constituição Brasileira de 1988como Direito Fundamental não é suficiente para considerá-locompatível com o Estado Democrático de Direito.

A procedimentalização do tribunal do júri no Brasil é decunho inquisitorial no momento em que concentra nas mãos dosjurados a legitimidade para julgar, conforme suas convicçõespessoais, impossibilitando a participação dos interessados naconstrução do provimento jurisdicional.

A soberania dos veredictos e o sigilo das votações de-notam o caráter autoritário do tribunal do júri, uma vez que hádispensa da fundamentação jurídica das decisões dos jurados.

As hipóteses ensejadoras da nulidade das decisões pro-feridas pelos jurados concentram-se essencialmente no cercea-mento de defesa, ou seja, na violação dos princípios do contraditório,da ampla defesa e do devido processo legal. o fato de o acusadonão participar da construção do provimento jurisdicional, do qual é

149

Page 28: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

juridicamente interessado, não é hipótese suficiente para ensejara nulidade do julgamento.

Com o advento da Lei 11.689/08 a formação da culpaainda se encontra concentrada nas mãos do Ministério Público edo magistrado. A primeira fase do procedimento, denominadajudicium accusationis e designada pela nova legislação de instruçãopreliminar, se inicia com o oferecimento da denúncia ou queixapelo querelante, que poderá ser recebida ou rejeitada pelo juiz.

Antes do recebimento da denúncia pelo magistrado o acu-sado é intimado para, querendo, manifestar-se sobre a denún-cia. Posteriormente à defesa, a acusação terá mais cinco dias parase manifestar sobre as alegações e as provas produzidas e reque-ridas pela defesa. A intenção do legislador, ao prever tal possibili-dade no procedimento, foi assegurar ao acusado o contraditório.

A seguir o magistrado designará Audiência de Instruçãoe julgamento para a produção das seguintes provas: oitiva doofendido, se possível; inquirição das testemunhas da acusação;inquisição das testemunhas de defesa; oitiva dos peritos; aca-reações; reconhecimento de pessoas ou coisas, e, ao final, o in-terrogatório do acusado.

As alegações finais devem ser orais, pelo prazo sucessivopara a acusação e defesa de vinte minutos, prorrogáveis por maisdez. Em caso de mais de um acusado, o prazo de vinte minutosserá individual. todo o procedimento, desde o oferecimento da de-núncia até a apresentação das alegações finais, deverá ser con-cluído no prazo máximo de noventa dias. se o réu estiver preso eo prazo acima não tiver sido respeitado o acusado deverá ser ime-diatamente colocado em liberdade (tAssE, 2008, p. 45-46).

A primeira critica que pode ser feita a essa primeira fasediz respeito à ausência de previsão legal que estabeleça umrecurso especificamente cabível contra a decisão que recebe adenúncia. Mesmo assim, tem sido admitido o cabimento do Habeas

Corpus como sucedâneo recursal em virtude da pretensão dedu-

150

Page 29: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

zida em juízo referir-se especificamente ao Direito Fundamentalde Liberdade. no que tange ao não recebimento da denúncia,admitir-se-á o cabimento do recurso em sentido estrito (PA-ChECo, 2009, p. 1059). Ante o exposto, verifica-se a violação doprincípio da isonomia processual, tendo em vista o tratamento ju-rídico diferenciado dado à acusação e à defesa no que tange aoDireito Fundamental de recorrer e de Participar Isonomicamenteda Construção do Provimento jurisdicional.

outro ponto relevante para a análise crítica diz respeitoao tratamento jurídico dado ao Ministério Público pelo legisladorinfraconstitucional, ainda como órgão acusador, e não como a atri-buição constitucionalizada de viabilizar o exercício e a implemen-tação dos Direitos Fundamentais no Estado Democrático deDireito.

A primeira fase do procedimento do tribunal do júri seencerra com a decisão de pronúncia, através da qual o acusadodeverá ser pronunciado apenas quando evidente a prova da exis-tência do crime e os indícios suficientes de autoria ou participa-ção, conforme preceitua o §1º do artigo 413 do Código deProcesso Penal brasileiro vigente. Dessa forma, o magistrado,ao pronunciar ou impronunciar o acusado, jamais deverá aden-trar ao mérito da pretensão, restringindo sua análise ao que seencontra estabelecido no dispositivo legal anteriormente mencio-nado17. na decisão de pronúncia o juiz também deve especificaras circunstâncias qualificadoras e causas de aumento da pena,sob pena de não poderem ser arguidas no plenário. Isso sedeve ao fato de a pronúncia estabelecer precisamente os limitesda acusação a ser objeto de debate no plenário do júri.

A impronúncia somente será possível em caso de

151

17 “na fundamentação da pronúncia deve o juiz usar de prudência, evitandomanifestação própria quanto ao mérito da acusação. Cumpre-lhes abster-se derefutar, a qualquer pretexto, as teses da defesa, contra-argumentando comdados do processo, nem mesmo para acolher circunstâncias elementares docrime” (MArrEy; FrAnCo; stoCo, 1997).

Page 30: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

existência de dúvidas acerca da autoria ou da materialidade docrime. Isso não representa o trancamento definitivo da açãopenal. Como a decisão de pronúncia ou impronúncia não versamsobre matéria de mérito, em caso de impronúncia, enquanto nãoocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada novaacusação se houver prova nova.

Em caso de evidentes provas nos autos que demonstremclaramente a inexistência de autoria poderá o magistrado proferira decisão de absolvição sumária. tal situação será possível quandohouver um conjunto probatório incontestável em que não é possívelextrair versões conflitantes, uma vez que a competência para a aná-lise do mérito da pretensão é do tribunal do júri. É cabível o re-curso em sentido estrito quando houver decisão de pronúncia eapelação quando houver impronúncia ou absolvição sumária.

na segunda fase, denominada judicium causae, a defesae a acusação debaterão publicamente suas teses, expondo ainterpretação fático-jurídica do caso concreto, sempre com ointuito de alcançar o convencimento dos jurados.

A problemática científica do presente trabalho encontra-seespecificamente nas seguintes premissas:

a) dispensabilidade de formação jurídica pelos juradosdenota a utilização, pelos mesmos, de critérios metajurídicospara a análise e interpretação do caso concreto;

b) não se pode falar em construção participada do provi-mento jurisdicional enquanto o Ministério Público continuar as-sumindo inquisitorialmente a condição de acusador e tambémenquanto o acusado ficar à margem do debate jurídico, cujo de-cisionismo encontra-se centrado nas mãos dos jurados;

c) a dispensabilidade de fundamentação jurídica dasdecisões judiciais proferidas pelos jurados legitima o exercícioda autoridade no ato de julgar, tendo em vista autorizar que osjurados formem o seu convencimento a partir do seu senso dejustiça e subjetivismo;

152

Page 31: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

d) a violação dos princípios constitucionais do processo,uma vez que a supressão da participação do acusado na cons-trução do provimento, juntamente com a violação da ampla de-fesa e da imparcialidade do juízo decorrente da ausência dedever de fundamentação jurídica das decisões dos jurados sãoargumentos para explicar que o tribunal do júri no Brasil não écompatível com o Estado Democrático de Direito, conformepreceitua o princípio da supremacia da constituição18.

o princípio da íntima convicção dos jurados visto sob a óticada racionalidade crítica: o advento do Modelo Constitucional deProcesso e a ideologização da linguagem retórica no tribunal do júri

Considerado o primeiro pesquisador a teorizar o processoa partir das proposições teóricas trazidas na obra de Karl Popper,o professor rosemiro Pereira Leal demonstra que a testificaçãodas teorias no espaço de argumentação jurídico-processual éconsiderado o fundamento da legitimidade do discurso democrático.nesse sentido, afirma:

no direito democrático, a linguagem teórico-processualapresenta uma relação de inclusão com as idéias humanas devida, liberdade e dignidade, daí não se conceber vida humanasem concomitante abertura ao contraditório, ampla defesae isonomia. humana não seria a vida se vedado ao homemdescrever e argumentar. não pode ser proibido ao homemdebater processualmente o delírio (erros) de sua própria fala,porque perderia sua condição humana. (LEAL, 2010, p. 56)

A crítica científica mais pertinente ao tribunal do júri dizrespeito à linguagem retórico-ideologizante, reproduzida num espaçoalheio à processualidade democrática e centrado na mitologizaçãoaxiologizante do discurso. A problemática jurídica existentequando a análise do princípio da íntima convicção dos jurados

153

18 “Em função dessa nova compreensão acerca do modo de convivência polí-tica, baseada na conformação jurídica da política, a noção de que a Constituiçãodeva ser protegida em face dos abusos contra ela cometidos foi sendo desen-volvida na trilha do constitucionalismo moderno com a consagração do principioda supremacia constitucional” (PErEIrA, 2001, p. 92).

Page 32: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

gira em torna da sua incompatibilidade com o modelo constitu-cional de processo adotado como parâmetro para o estudo críticoda legitimidade dos provimentos jurisdicionais no Estado Demo-crático de Direito. o fundamento da legitimidade democrática éa garantia assegurada a todos os interessados de fiscalizaramplamente a construção participada do provimento. nessesentido, ressalta-se o entendimento de Dhenis Cruz Madeira(2008, p. 24):

Por conseguinte, obstruir a fiscalidade popular sobre a normajurídica é dar margem à vida nua, criando-se um espaço dis-cursivo indemarcado e não-fiscalizável. Com isso, fomenta-seo aparecimento do espaço do soberano (e não o da soberaniapopular), do locutor autorizado da lei, que, à semelhança dosoberano de Kafka, diz o que pode e o que não pode, sem,contudo, ofertar os fundamentos de suas decisões, ou mesmo,permitir que o destinatário da norma aponte as ausências dodiscurso normativo. Esse espaço do soberano, a nosso ver,permite a criação de uma dimensão política acima da jurídica.

A decisão proferida no tribunal do júri não pode ficaradstrita aos jurados, uma vez que deve ser proferida por todosaqueles afetados juridicamente pelo provimento jurisdicional.

o princípio da íntima convicção dos jurados é consideradoum dos fundamentos que justificam o exercício do poder e daautoridade do julgador enquanto decisor legitimado a garantir ajustiça entre os homens.

trata-se de uma construção teórica centrada na concepçãode que o julgador (jurado) tem liberdade no ato de julgar,podendo se utilizar ou não de argumentações jurídicas comopressupostos de seus julgamentos. Essa pode ser definida comoa liberdade que o julgador tem para aplicar e criar o direito maisadequado para o caso concreto.

o exercício dessa liberdade pelo julgador o autoriza a uti-lizar tanto argumentos jurídicos como também metajurídicos paraproferir julgamentos com base em sua sensibilidade jurídica esenso de justiça. historicamente, pode-se ressaltar que um dos

154

Page 33: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

fundamentos para o entendimento da jurisdição enquanto poderdo juiz de criar o direito encontra-se no Movimento do Direito Livre:

os adeptos do direito livre – no sentido de livre da lei 0, deacordo com Kaufmaann, afirmavam que não pregavam a deci-são contra legem, mas apenas indicavam qual o procedimentoa ser adotado pelo juiz nos caso de lacuna da lei. todavia, ti-nham um conceito excessivamente amplo de lacuna, enten-dendo sua existência sempre que a lei não resolvesse o casode forma expressa e inequívoca. Daí sustenta Kantorowicz, ci-tado por Kaufmann, que não existem menos lacunas do queas palavras e que apenas por uma improvável coincidência umcaso jurídico poderia encaixar-se em todos os conceitos da leia ser aplicada. Assim, nestas situações, ou seja, sempre, de-veria o juiz recorrer ao direito livre.Esse direito livre seria descoberto pelo juiz, por meio de suasensibilidade jurídica, no meio social. Caberia ao juiz recorreràs convicções que no seu meio social, e naquele momento, setem como justo [...]. (AGUIAr; CostA; soUzA, 2005, p. 47)

o tribunal do júri denota caráter democrático aotransparecer a participação popular mediante o julgamento doacusado pelos seus próprios pares, porém, tem cunho auto-crático. o decisionismo encontra-se centrado nas mãos dos ju-rados através da exclusão dos interessados na construçãoparticipada do provimento jurisdicional. nesse sentido, explicitaAndré Cordeiro Leal (2008, p. 31):

A jurisdição, assim concebida, é, in integrum, atividade de juízesque revelam, pelo ato sentencial, suas próprias vontades(como em Bulow), ou uma outra vontade pronta na lei, a demens legis ou a de mens legislatoris (num enfoque que, porimprestável, o próprio ronald Dworkin [1999] já se esforçaraem afastar) ou, ainda, intervenções solipsistas e contingenciaisem realidades sociais que estariam a suplicar socorro prestanteem razão da inércia (ou inaptidão) do legislador soberano.

A racionalidade crítica com pressuposto da reflexão cien-tífica do tribunal do júri é o fundamento hábil a demonstrar a suaincompatibilidade com o Estado Democrático de Direito em virtudeda violação do Devido Processo Legal decorrente de uma concep-ção mitológica de um debate jurídico limitado ou praticamente

155

Page 34: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

inexistente. A procedimentalização de um debate jurídicoamplo e a construção isonomicamente participada do provimentojurisdicional são fatores suficientes a uma releitura do júri en-quanto instituição cognominadamente considerada democrática.

ConsIDErAçõEs FInAIs

Desmitologizar o tribunal do júri a partir da racionalidadecrítica consiste, inicialmente, em demonstrar sua incompatibili-dade com o Estado Democrático de Direito pelos motivos a se-guir expostos:

1- a ideia de julgamento pelos próprios pares advém deuma concepção de exercício da autoridade com umafalsa aparência democrática. tal afirmação se justificaporque os jurados fazem parte de um grupo seleto depessoas escolhidas e autorizadas a proferir seus julga-mentos com base na sua consciência e no senso de jus-tiça, sem ter o dever de prestar qualquer esclarecimentoa alguém. observa-se a supressão da ampla fiscalidadedos atos e a restrição de participação apenas para osescolhidos, o que denota claramente a sua incompatibi-lidade com o modelo constitucional e democrático deprocesso vigente;2- além de restringir a construção do provimento à parti-cipação apenas dos jurados, excluindo-se a participaçãode todos aqueles interessados no provimento (inclusiveo acusado), verifica-se que o objeto do debate encontra-se circunscrito aos argumentos e às provas constantesnos autos. trata-se de uma concepção instrumentalista

156

Page 35: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

e autocrática de processo, uma vez que a garantia deamplo debate de todas as questões relacionadas àpretensão deduzida em juízo é o pressuposto para o pro-cesso constitucional no Estado Democrático de Direito;3- a dispensa de obrigatoriedade de fundamentação ju-rídica das decisões dos jurados mediante a aplicabili-dade do princípio da íntima convicção representa outraafronta ao modelo constitucional de processo vigente.Em plena pós-modernidade, continua-se convivendocom uma concepção pretoriana e autoritária de pro-cesso, através do qual a jurisdição encontra-se concen-trada nas mãos do julgador, conforme preconiza Bulow.A soberania dos veredictos e a impossibilidade de decla-ração de nulidade de uma decisão dos jurados sob a ale-gação de ausência de fundamentação jurídica sãomarcas características de predominância da sensibili-dade jurídica do julgador utilizada como parâmetro nosjulgamentos;4- A linguagem que fundamenta o debate no júri é retórico-convincente e se desenvolve à margem da teorização deargumentos jurídicos no espaço da processualidadedemocrática. ou seja, além de estarem dispensados dafundamentação das decisões os jurados atuam comomeros expectadores dotados do poder de decidirconforme sua consciência (e não conforme o processoconstitucional).

A desmitologização do tribunal do júri pela racionalidadecrítica é uma construção científica visando a crítica falibilista domodelo adotado atualmente no Brasil.

A ampla fiscalidade e a participação dos interessados naconstrução do provimento, como corolários do devido processolegal, são considerados os pilares do Estado Democrático de Direito.

157

Page 36: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

É nesse contexto teórico que se pretende construir reflexões cientí-ficas no sentido de demonstrar a incompatibilidade do tribunal dojúri com o Estado Democrático de Direito compreendido na con-temporaneidade.

rEFErênCIAs

AGUIAr, Cynara silde Mesquita Veloso de; CostA, FabrícioVeiga; soUzA, Maria Inês rodrigues de et al. Processo, Ação ejurisdição em oskar von Bülow. In: LEAL, rosemiro Pereira(Coord.). Estudos continuados de Teoria do Processo. v. VI. PortoAlegre: síntese, 2005.

ArAújo, nádia de; ALMEIDA, ricardo r. o tribunal do júri nosEstados Unidos – sua evolução histórica e algumas reflexõessobre o seu estão atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais.são Paulo: revista dos tribunais, 1996. p. 200-201.

ArMstronG, Karen. Breve história do mito. tradução de Celsonogueira. são Paulo: Companhia das Letras, 2005.

BArros, Flaviane de Magalhães. (RE)forma do Processo Penal

– Comentários Críticos dos artigos modificados pelas Leis11690/08 e 11719/08. Belo horizonte: Del rey, 2009.

BoBBIo, norberto. O futuro da Democracia. tradução de MarcoAurélio nogueira. 11. ed. são Paulo: Paz e terra, 2000.

BrAsIL. Constituições Brasileiras. v. 1. Brasília: senado Federal e Mi-nistério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001a.

158

Page 37: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

BrAsIL. Constituições Brasileiras. v. 2. Brasília: senado Federal eMinistério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos,2001b.

BrAsIL. Constituições Brasileiras. v. 3. Brasília: senado Federal eMinistério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos,2001c.

BrAsIL. Constituições Brasileiras. v. 4. Brasília: senado Federal eMinistério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos,2001d.

BrAsIL. Constituições Brasileiras. v. 5. Brasília: senado Federal eMinistério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos,2001e.

BrAsIL. Constituições Brasileiras. v. 6. Brasília: senado Federal eMinistério da Ciência e tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos,2001f.

CIntrA, Antônio Carlos de Araújo; GrInoVEr, Ada Pelegrini;DInAMArCo, Cândido rangel. Teoria Geral do Processo. 21.ed. são Paulo: Malheiros, 2005.

DIAs, ronaldo Bretas de Carvalho. Responsabilidade do Estado

pela Função Jurisdicional. Belo horizonte: Del rey, 2004.

DEL nEGrI, André. Teoria da Constituição e do Direito Consti-

tucional. Belo horizonte: Fórum, 2009.

GóEs, Marisa Lazara de. Tratamento constitucional à instituição

do júri. Disponível em: http://www.lfg.com.br. Acesso em: 09 dejaneiro de 2009.

159

Page 38: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

GoMEs, Abelardo da silva. O Julgamento pelo Júri – em facede sua origem, evolução histórica e da formação jurídico políticada nação brasileira. 1953. 82f. Dissertação para concurso à ca-deira de Direito judiciário Penal - Faculdade de Direito de santaCatarina, Florianópolis.

hÄBErLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a sociedadeaberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpre-tação pluralista e procedimental da constituição. tradução de GilmarFerreira Mendes. Porto Alegre: sergio Antonio Fabris Editor, 1997.

hABErMAs, jürgen. DIREITO E DEMOCRACIA entre faticidade

e validade. 2. ed. v. I. rio de janeiro: tempo Brasileiro, 2003.

hoLLIs, james. Rastreando os deuses – o lugar do mito na vidamoderna. tradução de Maria sílvia Mourão netto; revisão de Ivostorniolo. são Paulo: Paulus, 1997.

LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em crise.Belo horizonte: Mandamentos, 2008.

LEAL, rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo primeiros es-

tudos. 4. ed. Porto Alegre: síntese, 2000.

_____. Teoria Processual da decisão jurídica. são Paulo: Landy,2002.

_____. Processo como teoria da lei democrática. Belo horizonte:Fórum, 2010.

MADEIrA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento e cognição

– uma inserção no Estado Democrático de Direito. Curitiba:juruá, 2008.

160

Page 39: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

MArrEy, Adriano; FrAnCo, Alberto silva; stoCo, rui. Teoria

e prática do Júri. são Paulo: revista dos tribunais, 1997.

MArQUEs, josé Frederico. A instituição do júri. Campinas:Bookseller, 1997.

MAtUrAnA, humberto; VArELA, Francisco. A árvore do co-

nhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995.

nEry jUnIor, nelson. Princípios do Processo Civil na Consti-

tuição Federal. 6. ed. são Paulo: revista dos tribunais, 2000.

nUCCI, Guilherme de souza. Júri: princípios constitucionais. sãoPaulo: juarez de oliveira, 1999.

_____. Tribunal do Júri. são Paulo: Editora revista dos tribunais,2008.

nUnEs, Dierle josé Coelho. Processo Jurisdicional Democrático.Curitiba: juruá, 2008.

PAChECo, Denílson Feitoza. Direito Processual Penal – teoriacrítica e práxis. rio de janeiro: Impetus, 2009.

PErEIrA, rodolfo Viana. Hermenêutica Filosófica e Constitucional.Belo horizonte: Del rey, 2001.

PoPPEr, Karl. O mito do contexto – em defesa da ciência e daracionalidade. rio de janeiro: Edições 70, 2009.

_____. A sociedade aberta e seus inimigos. tradução de MiltonAmado. v. 2. Belo horizonte: Itatiaia – EDUsP, 1987.

roChA, Arthur Pinto da. O Júri e a sua evolução. rio de janeiro:

161

Page 40: O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri mito, a linguagem e o discurso no... · 123 Fabrício Veiga Costa* O MitO, a LinguageM e O DiscursO nO tribunaL DO Júri thE

Leite ribeiro e Maurílio, 1919.

tAssE, Adel El. O novo rito do Tribunal do Júri em conformidade

com a Lei 11.689/08. Curitiba: juruá, 2008.

tUCCI, rogério Lauria. Tribunal do Júri: origem evolução, carac-terísticas e perspectivas. tribunal do júri – Estudo sobre a maisdemocrática instituição jurídica brasileira. são Paulo: revista dostribunais, 1999.

WoLFF, Francis. nascimento da razão, origem da crise. In: no-VAEs, Adauto (org.). A crise da razão. 2. reimpressão. sãoPaulo: Companhia das Letras, 1996.

162