237
.** > rt*f> i 3 >- H •V "*'JV -«í* '

o Jesuita Alencar

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Alencar.

Citation preview

  • . * * >

    rt*f>

    i

    3 >-H

    V

    "*'JV

    -* '

  • Ie ne fay rien sans

    Gayet (Montaigne, Des livres)

    Ex Libris Jos Mindl in

  • o JESUTA.

  • OBRAS DO MESMO A U T O R

    EOMANCE t

    OSERTANEJO.2vols. in-8; ene. 68,' broch. 4fi000.

    UBLRAJARA, lenda tupy. 1 vol. in-8; ene. 3/f, broch. 28000.

    ALFARRBIOS, chronica dos tempos coloniaes. contendo:

    1 0 GARATUJA. 1 vol.; i n-8 ene. 38, broch. 28000.

    11 O ERMITO DA GLORIAe ALMA DE LZARO.1 vol. in-8; ene. 38, broch. 2)3000.

    CINCO MINUTOSeA Vf-VINHA.1 vol. in-8; ene. 38, broch. 2(3000.

    O GUARANY, 4 edio nitida-mente impressa.2 vols. in-8; ene. 8(3000. Edio de luxo, 2 vols. in-4o-10(3000.

    IRACEMA , lenda do Cear.1 vol. in-8; ene. 38, broch. 2/000.

    As MINAS DE PRATA, romance histrico. 6 vols. in-8; ene. 6g, broch. 128000.

    TIL. 4 vols. in-12; ene. 68, broch. 48000.

    ' FOLHETINS

    Ao CORRER DA PENNA, 1 vol. in-8; broch, 3S000

    M. G.

    SENHORA, perfil de mulher, romance.1 vol. in-8; ene. 38, broch. 2S000.

    LUCIOLA, perfil de mulher, ro-mance. 1 vol. in-8; ene. 38, broch. 28000.

    DrvA, perfil de mulher, ro-mance. 1 vol. in-8; ene. 38, broch. 2S000.

    THEATKO

    As AZAS DE UM ANJO, come-dia em 1 prlogo e 4 actos. 1 vol.in-8; ene. 38,broch.2(5000.

    O DEMNIO FAMILIAR, come-dia em 4 actos. 1 vol. in-8; ene. 38.000, broch. 2S000.

    Mae, drama em 4 actos. 1 vol. in-8'; broch. 2S000.

    VERSO E REVERSO, comedia em 2 actos; nova edio. 1 vol. in-8; broch. 18000.

    A NOITE DE S. JOO, come-dia l y r i e a . 1 vol. in-8; broch. 18000.

    POLTICA

    DISCURSOS, proferidos na C-mara dos Deputados e no Se-nado, na sesso de 1869.1 vol. irr-4", broch. 28000. -

    DISCURSOS, proferidos na C-mara dos Deputados em 1871. 1 vol. in-8; broch. 18000.

    O SYSTEMA REPRESENTATIVO. 1 vol. in-4; broch. 4S000.

    A VIAGEM IMPERIAL. 1 vol. in-8 8400.

    SENIO

    GUERRA DOS MASCATES, chro-nica dos tempos coloniaes. 2 vols. in-81; ene. 68,broch.480O0.

    SONHOS D'OIRO, romance. 2 vols. in-8; ene. 68, broch. 4S000.

    A PATA DA GAZELLA, roman-c e . 1 vol. in -8 ' ; ene. 38, broch. 28000.

    O GACHO. 2 vols. in-8; ene. 38,broch. 28000.

    O TRONCO" DO IP . 2 vols. in-8; ene. 68, broch." 4(3000.

    1 lTufPPTNSjk TNTUISTRTAT Tf.TT4 S T T K Tnn S f T r u n D n 1 O

  • ST. E)E A!Le4o

    v RIO D JANEIRO B. L. GABNIER

    L i v r e i r o - e d i t r d o I n s t i t u t o I-Iistoivico

    / - ' 6 5 R U A DO O U V I D O R 6 5

    187 5"'

  • ADVERTNCIA

    Na primeira representao da Hecyra, o publico roma-no, distraindo por um espectaculo de funambulos, no concorreu ao theatro.

    Pondo novamente em scena a sua comedia, Terencio re-feriu a circumstancia em um prlogo e com esta severi-dade :

    Ita populus studio stupidus in funambulo. Animum occwparat. O autor do Jesuta no tomar estas palavras por epigra-

    phe ; recorda-as porm como uma lico para aquelles que taxaram de inaudito o seu procedimento.

    A esses talvez applicasse Terencio o epitheto que dirigiu ao p,ovo-reu O escriptor brasileiro no se julga com tal di-reito.

    Da mesma sorte que a comedia do illustre poeta romano, o : Jesuta, no foi ouvido, nem julgado: neque spectari, neque conosci. O publico fluminense teve para distrahil-o, no um, porm diversos funambulos.

    Dando estampa o drama julgou o autor indispensvel acompanhal-o dos artigos que suscitou-lhe o eclypsQ do pu-blico. Antes desses artigos porm transcreveu o juizo cri-tico de um jovem, escriptor de grande talento, o sr. Luiz Leito, que desenvolveu cabalmente o pensamento do Je-

    Assim fica o leitor habilitado para sentenciar este pleito

  • dramtico; G julgar imparcialmente entre o autor, o pu-blico e os crticos.

    Odesignio dos artigos escriptos pelo autor, foi mostrar o atraso da nossa plata e o abandono em que as classes mais illustradas vo deixando o theatro, dominado exclusi-vamente pela chusma.

    No se propoz o autor a exaltar sua obra e apresental-a como digna de applausos e ovaes. Quando elle consentjo que o Jesuta fosse levado a scena, bem sabia que o entre-gava indifferena publica.

    Si o drama j de si era imprprio para nossa plata ha-bitual, a maneira porque foi representado, a precipitao em exhibil-o sem a"pprovao do autor que no vio um s en-saio ; a m distribuio dos papeis; tudo isto justificaria um revez; mas no explica a desero.

    Esta s tem uma razo. E que o publico fluminense ainda no sabe ser publico, e

    deixa que um grupo de ardelios usurpe-lhe o nome e os foros.

    Si algum dia p historiador de nossa ainda nascente littera-tura, assignalando a decadncia do theatro brasileiro, lem-brar-se de attribuil-a aos autores dramticos, este livro protestar contra a accusao.

    A representao-do Jesuta a nossa plena justificao. Ella veio provar que o afastamento dos autores dramticos, no um egoismo, mas um banimento.

    O charlatanismo expulsou a arte do templo.

    Dezembro de 1875.

  • A G T O R E S

    DR. SAMUEL.

    CONDE DE BOBADELL .

    ESTEVO DE MENDONA . FR. PEDRO DA Luz. . *. . JOZ BAZILIO DA GAMA. D . JAN DE L C L . MIGUEL CORREIA GARCIA . . . DANIEL . D . CONSTANA DE CASTRO GNEZ . . -s. .

    Medico italiano. (Governador, do Bio de Ja-( neiro. Pupillo de Samuel. Beitor dos Jesuitas. Novio da Companhia. Aventureiro hespanhol. Alferes. ndio. Cigano. Filha natural do Conde Caseira de Samuel.

    A scena no Rio de Janeiro no anno'de 1759. O acto Junto ao convento d Ajuda, o 2o em casa de Samuel, o 3o e 4 no Collegio dos Jesuitas sito no morro do Cdstelltf.

  • O JESUTA

    A C T O P R I M E I R O

    Um pequeno campo coberto de arvoredo nas faldas do morro do Castello, e "defronte do convento da Ajuda, ainda no acabado.

    SCENA PRIMEIRA

    CONDE DE BOBADELLA E MIGUEL CORREIA

    Ento ?

    Sahio.^

    Com quem

    CONDE.

    CORREIA

    ,fc>

    CONDE.

    fallastes?

  • 8 O JESUTA

    CORREIA.

    Com a sua caseira.

    CONDE.

    Quando volta? Perguntastes ?

    CORREIA.

    Nao sabe.

    CONDE.

    Impossvel...

    CORREIA.

    Insisti, porem nada pude colher.

    CONDE.

    Desconfiou talvez.

    CORREIA.

    No creio. Disse-lhe, como me ordenou v. ex., que se tratava de um doente.

    CONDE.

    Nao importa: elle ha de tornar. preciso que hoje mesmo o tenha em meu poder.

    CORREIA.

    Como ! inteno de v. ex. prendel-o?

    CONDE.

    Nao interroga sinao quem tem o direito de sa-ber, Miguel Correia. Conhecereis, minhas inten-es, quando vos der as minhas ordens.

  • o JESUTA 9

    CORREIA.

    Perdio, sr. Conde ; sei o que devo a meu supe-rior e o que me devo a mim mesmo; nao tive pro-psito de inferrogar a v. ex.; foi simples admi-rao rt

    CONDE. v

    E em que vos. admira ,a priso desse homem? Dizei-o!..

    CORREIA.

    Permitte o sr. .Governador que eu seja franco?

    CONDE.,

    Ordeno, si preciso.

    CORREIA.

    f No ignora v. ex. que o doutor* Samuel esti-

    mado de todos; no ha misria ou infortnio nesta cidade que elle nao leve

  • 10 O JESUTA

    CONDE.

    E eu o accusarei contra o povo, contra os jesui-tas, contra todos. No se dirtque um aventureiro zombou do conde de Bobadella e lutou impune-mente cOntra a coroa de Portugal.

    CORREIA.

    Que diz, sr. Governador?

    CONDE.

    Dig-o que este velho no o que pensais; mas um perigoso conspirador. Ha muito que o suspei-tava ; mas s hoje tenho a arma, que o deve ferir. (Mostra-lhe um pergaminho.) R e c o n h e c e i s ?

    CORREIA.

    O sello do marquez de Pombal ?!.

    CONDE.

    Sim, daquelle que devia ser rei, si nao fosse ministro de" D. Jos Io

    (Estevo entra.)

    CORREIA.

    Ah 1. . . o pupillo do doutor Samuel.

    CONDE.

    Nao quero que nos veja. Voltemos ao pao; tomai uma guarda de vinte, homens e occultai-vos nas vizinhanas. Ao meio dia estarei aqui; tenho despachos que escrever para as capitanias do sul.

  • 0 JESUTA 1JL

    SENA II

    IGNEZ, OS^ B A Z I L I U E ESTEVO

    GNEZ, 'o descer encontra-se ctrh Jos Bzilio.

    Ai I . . . Nao gosto destas graas, sr. estudante!

    JOS BAZILIO.

    Nao graa, no*Ignezj, . negocio muita serio. Tu me deste um abrao, devo pgal-o.

    IGNEZ.

    F ui eu que o de i ! . . Forte desaforo 1 -

    JOS BAZILIO.

    Bem sei que as mulheres no costumam con-fessar estas coisas; por isso podes desculpar-te co-migo. * ,

    IGNEZ,.

    Nao tem vergonha! Um rapaz que traz este anto habito I

    JOS BAZILIO.-I

    Poise.mesmo por isso. Este santo habito uma capa de nossas mazellas.

    (Deso.em esquerda.)

    IGNEZ.

    .' E d e todas as travessuras que o senhor faz ahi surrelfa. Ah ! si o Reitor o ouvisse.!

  • 12 o JESUTA

    JOS BAZILIO.

    Que tinha isso ? . . . A nossa regra prohibe com penas muito severas amar uma mulher, uma, en-tendes, Ignez? Isto quer dizer que devemos amar a todas.

    IGNEZ.

    Que herezia, santo Deus! E um tonsurado quem diz semelhante coisa I

    JOSE BAZILIO.

    No sou eu quem o diz, filha; o mandamento: Amar ao nosso prximo" como a ns mesmos. Tu s meu prximo, Ignez; e eu estou tao prximo de t i q u e . . (Ameaa beijal-a.)

    IGNEZ.

    Sr. estudante! No se engrace; olhe que eu conto a frei Pedro 1

    JOSE BAZILIO.

    Est bem; no vai a zangar, filha. Fallems de cousas urgentes. Onde encontrarei o doutor Sa-muel?

    IGNEZ.

    Pergunta a quem no lhe sabe responderr Ain-da ha pouco procuraram por elle para ver um do-ente, e no lhe pude valer.

  • JESUTA 13

    JOSE BAZILIO.

    Como ha de ser? Precisava fallar-lhe sem de-mora.

    IGNEZ.

    Ha alguma coisa l pelo convento ? O que acon-teceu f

    JOS BAZILIO.

    Est tudo em uma balburdia, que ningum se entende. Chegou-nos um capito hspanhol, uma espcie de ferrabraz que pz toda a casa em alvo-rto: e o padre Reitor mandou-me a toda a pressa entregar esta carta ao doutor Samuel.

    I.GNEZ.

    Que ser, bom Deus ? Talvez alguma das do sr. Governador contra os santos padres de Jesus,

    N JOS BAZILIO.

    Decididamente no me dizes onde o acharei ? IGNEZ.

    O r a ! . . . Aquillo homem que nunca se sabe ondetmda. > "" ***"-

    JOS BAZILIO.

    O yerddeiro esperar. r Chega-te, filha. IGNEZ.

    J comea com as suas brincadeiras 1 JOS BAZILIO.

    . Nao; agora trata-se de um objecto muito grave.

  • 14 o JESUTA

    IGNEZ.

    O que ? Vamos a ver.

    JOS BAZILIO.

    Com o barulho que havia l pelo convento frei Bandurra, sabes, o nosso dispenseiro, esqueceu-se do refeitrio.

    IGNEZ.

    E que tem isso ? JOS BAZILIO.

    Tem, que sinto uma fome de sexta-feira; ainda estou com a bocca com que dormi.

    IGNEZ.

    Entendo! Quer que v apromptar-lhe o almo-o ?

    JOS BAZILIO.

    Benta palavra! Vae, filha, vae. No te esquea um daquelles franguinhos recheados como sabes preparar.

    IGNEZ.

    S pensa em comer e vadiar.

    JOS BAZILIO.

    Nao gastes o tempo com palavras. Si queres, vou ajudar-te.

    IGNEZ.

    Muito obrigada 1 Dispenso.

  • O JESUTA 15

    JOSE BAZILIO.

    Pois ento emquanto espero,-vou fazer-te um so-neto, para pagar o almoo.

    IGNEZ.

    Como aquella cantiga? JOS BAZILIO.

    Sim, mas avia-te I IGNEZ.

    Are l com tanta pressa! JOS BAZILIO.

    Ah ! onde anda Estevo ? IGNEZ.

    Hade estar l no seu canto costumado, s vol-tas com os livros.

    --', SGENA III JOS BAZILIO E - E S T E V A O

    JOS BAZILIO.

    Em que pensas, Estevo ? ESTEVO.

    Jos Bazilio!... Oh! estimei que viesses. I JOS BAZILIO.

    Tens alguma coisa que dizer-me ? ESTEVO. > <

    Sim, e uma coisa bem importante para ns ambos.

  • 16 o JESUTA

    JOSE BAZILIO, a r i r .

    Vamos a isso, apezar de que ainda no almocei, e as emoOes em jejum causam certo desarranjo.

    ESTEVO.

    No gracejes, Jos Bazilio. O momento nao para isto. Quando souberes...

    JOS BAZILIO.

    Desculpa!... Este meu gnio ! . . Sou incorri-givel! Mas no faas caso; sabes que sob esta ap-parencia frivola, bate o corao de um amigo.

    ESTEVO.

    E de um bom e sincero amigo, a quem posso confiar-me.

    JOS BAZILIO.

    Falia! O que tens para dizer-me ?

    ESTEVO.

    Uma palavra, uma s; mas uma triste palavra. Vou dizer-te adeus!

    JOS BAZILIO.

    Tu partes ?

    ESTEVO.

    Estou decidido. JOS BAZILIO.

    Quando ?

  • O JESUTA 17

    ESTEVO.

    Amanha.

    JOS BAZILIO.

    Par onde? "s-

    ESTEVO.

    Nao sei.

    JOS BAZILIO.

    Mas um projecto louco !

    ESTVO.

    E uma resoluo inabalvel.

    JOS BAZILIO.

    Pensaste bem no passo que vais dar ?

    ESTEVO.

    Pensei em tudo ; e decidi quebrar de uma vez esta cadeia que me prende. Amanh deixarei esta terra.

    JOS BAZILIO.

    E que destino levas ? ESTEVO.

    Vou para onde me lanar a sorte. O lugar pouco importa, com tanto que seja livre !

    JOS 'BAZILIO.

    Mas, Estevo, reflecte no futuro que te espera.^ S e sem recursos, sem parentes.

  • 18 o JESUTA

    ESTEVO.

    D.3US deitou-:ne orpho e engeitado neste mundo.

    JOS BAZILIO. Porm deu-te um protector e amigo que velou

    sobre a tua infncia. A habitao do doutor Samuel para ti a casa paterna ; tu no podes, no deves fugir delia.

    ESTEVO. F u g i r ! . . . Ests enganado, Jos Bazilio, si

    pensas que pretendo partir s occultas como um criminoso.

    JOS BAZILIO.

    O doutor Samuel consentir ? ESTEVO.

    Sou um homem ; tenho o direito de dirigir-me pela minha vontade. Ainda nao fiz voto de obe-dincia.

    JOS BAZILIO.

    Assim, no ha razo que te faa mudar de pro-psito ; neoa a dor daquelle que te serve de pai ; nem o pedido de um amigo ?

    ESTEVO. Devo partir.

    JOS BAZILIO Neste caso, nao me resta seno dizer-te que a

    todo o tempo achars sob esta grosseira estamenha o mesmo amigo que hoje abandonas.

  • o JESUTA 19

    ESTEVO.

    Jos Bazilio ! . . . No me acuses ! No me jul-gues ingrato 1

    JOS BAZILIO.

    Lamento-te ; nao tenho p direito de accusar, Estevo.

    ESTEVO.

    Vou abrir-te minha alma. Ouve e julga-me. Sabes o respeito e a admirao que voto ao homem que me recolheu como-um filho, quando meus pais me atiraram rua como um fardo intil. Ell tem sido para mim, mais do que um amig0 ou prote^ ctor, mais do que uma familia: Tambm o que eu sentia nao .era amor, era um culto. Sua vontade era a minha lei; quando ha dois annos communi-cou-mesu desejo de que eu entrasse na'companhia de Jesus logo que terminassem os meus estudos ; recebi essa nova com a mesma satisfao que ti-nha sempre que podia cumprir uma ordem sua.

    JOS BAZILIO.

    E eu alegrei-me com a esperana de que a minha < cella ia receber a outra metade de minha alma que andava erradia pelo mundo.

    "ESTEVO.

    A mim tambm sorrio esta esperana. Mas ento. . . -Perdoa-me, Jos Bazilio! Ento o co-rao no havia despertado ; o horizonte da vida

  • 20 o JESUTA

    no se abrira : ignorava ainda que acima da reli-gio, do respeito filial, da amizade, ha um outro sentimento mais forte e mais profundo que domi-na o homem e o possue todo e tanto que a existn-cia se resume nelle.

    JOS BAZILIO

    O amor ? ESTEVO.

    Sim, o amor. Como eu o senti no sei dizer-te: Vi ma menina, vi-a um instante, porm esse instante foi uma revoluo em minha vida ; a alma elevou-se da terra; e eu engrandeci-me com este sentimento novo. Sonhei glorias, poder.. .

    JOS BAZILIO.

    Oh ! comprehendo tudo ag-ora ! E este amor que te obriga uma resoluo desesperada.

    ESTEVO.

    E este amor que me faz ambicioso, e que me d sede de liberdade ! . . . Quero merecel-a ! (D, Juan apparece.)

    JOS BAZILIO.

    Algum nos escuta ! ESTEVO.

    Um soldado ! . . . Por estes lugares ! JOS BAZILIO.

    Parece-me que j vi e^ia figura de matamouro.

  • o JESUTA ' 21

    ESTEVO.

    V se consegues affastal-o; preciso estar s-aqui. Depois fallar-te-hei...

    JOS BAZILIO.

    Onde nos encontraremos ? ESTEVO.

    f

    Na-portria d.a Ajuda. JOS BAZILIO.

    No te demores. SGENA IV

    JOS BAZILIO E D. JUAN.

    D. -JUAN

    Bom dia, senhor roupeta ! JOS B A Z I L I O .

    Deus o salve, senhor gibo rafado 1 -D. JUAN.

    Hein ! . . . Que isso l ? JOS BAZILIO.

    Perdo! Pelo tratamento de v. m. julguei que era uso agora appelidar-se a gente pelo vesturio.

    D. JUAN.

    Pois para que no sa adiante, saiba que tem a honra de fallar ao insigne capito D. Juan Fuert de Alcal, fidalgo hespanhol, actualmente ao ser-vio d'El-rei D. Jos I, no*sso senhor, que Deus g u a r d e . (Tira o chapo..)

  • 2 2 O JESUTA

    JOS BAZILIO

    Servo de v. m. Jos Bazilio da Gama, novio estudante na companhia dos Padres de Jesus que tem a sua collegiada no morro do Castello desta cidade de S. Sebastio. (Tira o chapo.)

    D. JUAN.

    Conheo. Conheo a tal collegiada 1 De l venho agora.

    JOS BAZILIO.

    Assim me parecia; lembrava-me tel-o deixado quando sahi.

    D. JUAN.

    E si no tomasse a boa resoluo de pr-me ao fresco, ainda l estaria esta hora olhando para as paredes espera qUe os malditos frades se deci-dissem a dar uma palavra. Com a breca ! uma casa de mudos !

    JOS BAZILIO

    Que lhe succedeu ento ?

    D. JUAN

    Ora ! . . Chego, pergunto pelo Reitor, levam-me a um velho carola; exponho-lhe o caso em termos claros ; o reverendo escreve uma carta, le-vanta-se e at agora o espero. Dirijo-me a uns barbaas que andavam como baratas de um lado para outro, e por toda a resposta levam o dedo

  • o JESUTA 23

    bocca. Pelas chagas de Christo 1 Era de mais. Pucho da espada; a fradaria barafusta por um corredor, e eu ganho a ladeira.

    JOS BAZILIO, rindo.

    Ora,, deixe estar, senhor capito, que para outra vez no lhe hade acontecer o mesmo. L estarei, e conversaremos larga.

    D. JUAN.

    Para outra vez 1 Pois no 1 Tinha que ver si eu voltasse semelhante, casa.

    JOS BAZILIO.

    Mas o negocio de que ia tratar ?

    D. JUAN.

    Que se arranjem ! Si quizerem/ procurem-me; o negocio delles.

    JOS BAZILIO.

    Entretanto, segundo ouvi, foi isso que o trouxe . ao' Rio de Janeiro ?

    D. JUAN.

    Historias !. Uma hella manh passeiava pelo ces do Sudr quando deram-mo tentaes de via-jar. Eu casou da eschlade Gezar ; um navio levantava a ancora: decidi, embarquei, e cheguei.

    JOS 3AZILIO.

    Hntem noite no galeo"S. Martinho?

  • 24 o JESUTA

    D. JUAN.

    Justamente. JOS BAZILIO.

    Mas para dicidir-se assim uma viagem to precipitada devia ter uma razo forte.

    D. JUAN.

    Eu lhe digo. Estava em Lisboa muito a meu commodo ; porm a minha, bolsa, que entrara na capital da Lusitnia bem recheada, ficara reduzida a cinco patacas em prata. Ora, eu sigo um syste-ma ; quando nao tenho dinheiro viajo.

    JOS BAZILIO.

    inteiramente o contrario do que os outros cos-tumam.

    D. JUAN.

    No duvido ; dou-me perfeitamente com o meu systema; tenho percorrido as quatro partes do mundo; na Europa passei por um principe viajan-do incgnito.; na sia por um pach de trs cau-das ; na frica pelo novo propbeta.

    JOS BAZILIO.

    Na America, passar pelo que ! . . . D. JUAN.

    Aqui pretendo casar-me com uma caboclinha, filha de algum cacique que traga-me em dote uma mina de ouro e um alqueire de diamantes. E quem me hade arranjar isto, l o seu Reitor.

  • o JESUTA 25

    JOS BAZILIO.

    Ah ! J pretende voltar ao convento ?

    D. JUAN.

    Pois no ! . . . Elle vir ter comigo. _

    JOS BAZILIO.

    Esta mais curiosa !

    D. JUAN.

    Veremos ! O que eu lhe disse hoje lhe dar a curiosidade de saber o resto.

    JOS BAZILIO.

    Pelo que parece, cousa muito importante !

    D. JUAN.

    Nao ;s duas palavras, mas aposto que s. ex. o senhor conde de Bobadella, daria por ellas de olhos fechados a somma de mil cruzados.

    JOS BAZILIO.

    Sim ! . . . E porque no lh'os pedio ainda ?

    D. JUAN.

    Porque ? . . . Porque os frades podem. dar o do-bro ; si no. quizerem, ento vou ao Governador. Quando se arrependerem ser tarde. At vista. (Affe,sta-se.) '

    JOS BAZILIO.

    Senhor capito ?

  • 26 o JESUTA

    D . JUAN.

    Que temos? JOS BAZILIO.

    Escute por merc.

    D. JUAN.

    V l, mas depressa; que eu estou demorado por estes sitios.

    JOS BAZILIO.

    O senhor ignora de certo que vim do convento trazer uma carta.

    D. JUAN.

    A tal carta do Reitor ?

    JOS BAZILIO.

    Essa mesma ; elle escreveu ao doutor Samuel.

    D . JUAN.

    Quem esse doutor Samuel ?

    JOS BAZILIO.

    E um medico italiano, homem de muito saber e virtudes a quem o padre Reitor costuma con-sultar.

    D . JUAN.

    Ah ! E onde se encontra esse homem precioso ? JOS BAZILIO.

    Olhe ; ali est a casa.

  • O JESUTA 2 7

    D. JUAN.

    Bom ; vou j fallar-lhe. JOS BAZILIO.

    Com licena ! Sahio, mas no pde tardar; tambm estou sua espera.

    D. JUAN.

    Hein ! . . Tudo isto. me parece uma zombaria.-.. Mas eu acabo a historia, indo daqui direito ao Go-vernador. Adeus, senhor roupeta. Diga ao Padr-mestre que breve, lhe darei noticias minhas. (Es-tevo entra pela direita e approxima-se de Jos Bzili, que no o v. D . Juan vai sahir pela esquerda.)

    SCENA V

    JOSE BAZILIO, D. JUAN E ESTEVO.

    JOS BAZILIO.

    Oua, capito, no se v !

    ESTEVO, a Jos Bazilio.

    Como !. Em vez de affastal-o, queres demo-ral-o !

    JOS BAZILIO.

    verdade; tinha-me esquecido do que me pe-diste.

    D. JUAN, a Estevo.

    l, senhor moo ! . . . Nesta terra uso no saudar os outros ?

  • 28 * o JESUTA

    ESTEVO.

    Nesta terra cada qual segue o seu caminho sem dizer impertinencias a quem no conhece.

    D. JUAN.

    Pelas chagas de Christo ! . . . Tens a lingua muito longa, meu rapaz, mas no tanto quanto a folha desta espada. (Desembainha,)

    JOS BAZILIO.

    Que isto, capito ? Quer brigar a esta hora ?

    ESTEVO.

    Guarde a sua espada para melhor occasio, quando estivermos ss ; e ento prometto-lhe que no a tirar de balde.

    D. JUAN.

    Quando e onde quizer. s suas ordens. (Vai. sahir,)

    JOS BAZILIO.

    Escute ! Escute ! Tenho um negocio a commu-n i c a r - l h e ! (D. Juan pra.)

    ESTEVO, baixo a Jos Bazilio,

    Nao sei que interesse tens em demorar este ho-mem, apezar do que te pedi! Preciso estar s aqui.

    JOS BAZILIO, a Estevo.

    Nao te amofines; vou arranjar isto. Nao sabes em que arriosca estou mettido.

  • O JESUTA 2 9

    ESTEVO.

    Como assim ?

    JOS BAZILIO.

    Este homem tem um segredo importante para a Ordem.

    D. JUAN.

    Ento, senhor, novio ; acha que tambm." deve fazer me esperar?

    JOS BAZILIO.

    um instante!

    ._ ESTEVO.

    Dix-o ir.

    JOS BAZILIO.

    . ''No possivel. Vai ao Governador.

    ESTEVO.

    Ento, queres retel-o ? V

    JOS BAZILIO.

    Ha um meio de conciliar tudo.

    D. JUAN, desce.

    Que negocio esse que tem a communicar-, m e ? . . .

    JOS BAZILIO.

    . Uma cousa importante ! , . . (a Estevo.) L se vai o almoo l

  • 30 o JESUTA

    D. JUAN.

    Pois desembuxe de uma vez I

    JOS BAZILIO, a Estevo.

    No ha remdio 1

    D. JUAN.

    Ento, falia ou no ? . . .

    JOS BAZILIO.

    Agora.. . Capito, sem prembulos, convido-o a almoar comigo.

    D. JUAN, rindo.

    Serio ?

    JOS BAZILIO.

    Infelizmente, muito serio.

    D. JUAN.

    Toque, e vamos a isso ! (Affasta-se.)

    JOS BAZILIO, a Estevo.

    Vs a enormidade do sacrifcio que te fao ? Na, historia de Castor e Pollux no ha exemplo de ou-tro to sublime.

    V

    ESTEVO, sorrindo.

    que tu no imitas; aperfeioas os modellos. (Sanem Jos Bazilio e D. Juan.)

  • o JESUTA 31

    SCENA VI

    ESTEVO E CONSTANA.

    ESTEVO.

    Emfiin, ella nao pde tardar 1

    CONSTANA.

    A h ! . . . No sabe quanto custou-me chegar at aqui ! . . . A todo o momento-cuidava que me viam, que me seguiam.. Foi uma imprudncia vir a este s i t io! . . . .Ainda estou toda tremula.. . No v ? . . .

    ESTEVO.

    Este sitio deserto a esta hora, e alem disto, no est quasi em sua casa, Constana ?

    CONSTANA.

    Por isso mesmo; era melhor que o esperasse.

    ESTEVO.

    No; precisava fallar-lhe sem testemunhas; te-nho tanto que dizer-lhe, e vou passar tanto tempo semvl-a!

    CONSTANA,

    Sem ver-me!.. . E porque?... J no lhe cau-sam prazer nossos alegres seres, a conversar com minha ba mai, que todas as noites nos aben-oa?

  • 3 2 0 JEZUITA

    ESTEVO.

    No me lembre essas doces reminiscencias, Constana, que me tira a coragem de confessar-lhe tudo ! para vivermos juntos, sempre ; para nun-ca mais nos separarmos, que vou deixal-a.

    CONSTANA.

    Meu Deus. Quer deixar-me, Estevo?. Oh ! comprehendo ! . . . . J no me ama, e como sabe que para mim perde-lo seria morrer, consola-me com essa tnue esperana de um futuro que no se deve realisar!

    ESTEVO.

    Offende-me cruelmente com essa suspeita injus-t a ! . . . Si fosse possivel que um dia deixasse de amal-a, tenho bastante lealdade para confessa-lo e pedir meu perdo. Mas creio que isto no pos-sivel, e que mil vidas que tivesse no saciariam esse prazer de adoral-a, de rever a minha alma, em seus olhos.. .

    CONSTANA.

    E vai deixar-me!... E vai part i r! . . . ESTEVO.

    Sim !. Porque a amo, porque sua innocencia para mim to sagrada, tao pura, que eu temo of-fendl-a com uma affeio criminosa.

    CONSTANA.

    No sei o que quer dizer, Estevo ! Para mim a

  • o-JESUTA 33

    felicidade v-lo e ama-lo ; a seu ado' nada re-ceio, e sinto-me to tranquflla como aos ps do altar.

    ESTEVO,

    E tem razo 1 Meu amor a respeita, mas elle me domina, e Deus sabe as lutas silenciosas de meu corao, a. fora de vontade que preciso para resistir aos impulsos d'este sentimento pode-roso !

    CONSTANA.

    Porque nao me ama como eu lhe amo, sem te-mor e inquietao ?

    ESTEVO. -'

    Sua candidez no comprehende. isto. Poque minha noiva face de-Deus, Constana ; mas^o ainda minha esposa para o mundo-.,

    CONSTANA.

    No lhe dei eu a minha alma?

    ESTEVO.

    Deu-me sua alma, Constana, e por isso que eu respeito em sua virtude a nanha felicidade fu-tura. Parto ; Voltarei para pedir-lhe um bem que ne pertence.

    CONSTANA.

    E ha necessidade de partir, quando a- ventura est to perto de ns ? Hoje o. amigo de meu co-lao ; no pde 'amanh ser meu. . .

  • 34 o JESUTA

    ESTEVO.

    Diga, diga esse nome t. Quero ouvil-o de sua boccal.. Diga., seu . . .

    CONSTANA.

    Meu marido ! ESTEVO.

    Seu marido !. Ah 1 si os seus lbios, pronun-ciando esta palavra a sanctificassem como a voz do ministro do Senhor ! . . . Mas bem sabe, Cons-tana, que nao possivel!

    CONSTANA.

    Porque diz isto ? ESTEVO.

    Sua vontade nao livre como seu corao. Esse protector desconhecido e poderoso que a v s oc-cultas consentir que seja minha esposa?!

    CONSTANA.

    Elle bom! Faz todas as minhas vontades.

    ESTEVO.

    uma esperana que a illude. Interessa-se por seu futuro ; talvez seu parente e a destina a al-gum fidalgo.

    CONSTANA.

    No I Eu lhe confessarei que o amo; que esse amor a minha felicidade!

  • 0 JESUTA 3 5

    ESTEVO.

    Lembre-se, Constana, que sou engeitado; no recebi de meus pais nem a herana que o mendigo deixa a seu filho, um nome.

    CONSTANA.

    E que me importa isto?... No mundo no existe outro homem para mim ; no conheo a ningum mais. Nobreza^ cabedaes, no valem para mim o seu corao.

    ESTEVO.

    Obrigado, Constana, obrigado ! Eu a encontro como a sonhei! Mas preciso que me eleve altura de seu amor, e o conseguirei. A sociedade desherdou-me; minha familia renegou-me;. mas Deus me deu coragem para lutar com o meu desti-no e, venc-lo. Tranquilise-se, nao me esperar muito tempo.

    CONSTANA.

    Como! Ainda est resolvido a partir ? ESTEVO.

    foroso 1

    CONSTANA.

    O h ! . . . eu lh'o peo!. . . Vae matar-me'f

    ESTEVO.

    Ento no me estima!

  • 3 6 0 JESUTA

    CONSTANA.

    No diga isto, Estevo. ESTEVO.

    Si me estima, deve ter a coragem do sacrifcio. Cuida que tambm a mim no tmsta esta separa-o?

    CONSTANA.

    Sim, sim 1.. Eu terei coragem, j que pre-

    ciso. ESTEVO.

    Agora, antes de nos separarmos, uma ultima graa.

    CONSTANA.

    O que, meu amigo?.

    ESTEVO, ajoelhando-s&,

    Abene-me ; Deus fallar por seus lbios; e sua palavra cahir sobre mim como a unco divina.

    CONSTANA, beijando-o na fronte.

    Adeus! (Samuel appareceno fundo.)

    ESTEVO, erguendo-se.

    Ah! Tu me santificaste, Constana. Sou outro homem; sinto-me* com foras de fazer impossveis. Levo tua alma neste beijo; eu arestituirei depon-do a teus ps minha vida inteira. (Abraa-a.)

  • o JESUTA 37

    SGENA VII

    CONSTANA, ESTEVO E SAMUEL

    SAMUEL.

    Tua vida, meu filho,: j no te pertence.

    CONSTANA.

    A h ! . . .

    ESTEVO.

    Senhor!.. .

    SAMUEL.

    Porque vos assustais, Constna ? Minha* pre-sena no deve inquietar-vos. Um pai sempre bemvindo quando se trata da felicidade de seu filho. A affeiao que tenho a Estevo envolve todos que lhe so caros, como vs, Cnstana.

    CONSTANA. ' *

    Ah! si fosse verdade o que dizeis ! . . . Mas vos-sas palavras ha pouco eram to severas 1 Parec-ram-me uma reprehensol

    SAMUEL.

    Eram apenas um conselho de amigo. Minha voz lembrava a Estevo que elle no jpde dar-vos,, e que vs nao podeis acceitar, a sua vida.

    CONSTANA.

    Porque, meu Deus ? No mereo eu o seu amor ?

  • 38 o JESUTA

    ESTEVO.

    Calai-vos, senhor! Ides despedaar-lbe a alma. Puni-me, porem respeitai-a.

    SAMUEL.

    Si uma mulher n'este mundo podesse ligar sua vida existncia de Estevo, essa devieis- ser vs, Constana; vs que sois bella como sua alma, pura como o seu corao. Mas isto impossvel! Elle j quebrou os laos que o prendiam sociedade; um abysmo vos separa; um abysmo profundo, que ne-nhum poder da terra pde supprimir.

    ESTEVO.

    Que que reis dizer, senhor?. Explicai-vos !

    CONSTANA.

    Sim ! . . . Fallai ! . . . Por piedade! Meu espirito se perde 1. . . Quero comprehender... no pos-so !. Quero duvidar

    SAMUEL.

    Nao duvideis ! Emquanto 'tempo salvai-vos ; salvai a elle que se perde, salvai-me a mim, que vivo delle e por elle.

    CONSTANA.

    Salvar-me. Salvar-vos. e de que?

    SAMUEL.

    A vs, de um sacrilgio ; a elle, de um perj-rio ; e a mim de uma perda irreparvel.

  • o JESUTA 39

    ESTEVO.

    Senhor ! . . . Senhor ! . . . Vs me enlouque-ceis !

    CONSTANA.

    E me torturais nesta incerteza horrvel ! No sabeis como.eu o amo !

    SAMUEL.

    Amstes a Estevo, minha filha ; mas na po-deis amar um frade.

    CONSTANA.

    Ah ! . . .

    Mentis, senhor

    Meu filho!

    ESTEVO.

    SAMUEL

    ESTEVO.

    Perdo, perdo ! . . . Foi um desvario, uma allu-cinao 1 Vossos lbios so o altar da verdade e da sciencia! Mas a razo me abandona 1 Eu frade ! . . . Quando, meu Deus ? . . . quando pro-fessei V.f. Fiz votos algum d ia? . . . dizeis que eu sou. . . No ! . . . no ! . . . Vosso espirito se llude.. ou perdi a memria'do passado.... a recordao do que fui e do que sou.

    SAMUEL.

    Ergue-te, Estevo, e abraa-me. Sou eu que

  • 40 o JESUTA

    preciso do teu perdo ; s tu que me deves absol-ver da grande falta que commetti; talvez de um crime 1

    ESTEVO.

    De um crime! SAMUEL.

    Ignoras que muitas vezes os homens chamam crime as grandes abnegaes que elles no com-prehendem !

    ESTEVO.

    Vejo em tudo isto um mysterio que me con-funde.

    SAMUEL.

    E que vou revelar-te. Mas esta menina- nao deve ouvir-nos ; basta.o fl que j lhe verti no corao. (Approximando-se de Oonstana). SoffreiS' muito, minha filha ?

    CONSTANA.

    Oh ! horrivelmente !

    SAMUEL.

    H um consolo supremo para as grande dores.

    CONSTANA.

    As lagrimas.

    SAMUEL.

    O co!

  • o JESUTA. 41

    v CONSTANA'.

    O eo !. verdade !..-. 'Chegar-me para Deus ainda approximar-me delle.

    SAMUEL.

    Senti-vos com fora de ir at vossa casa ? CONSTANA.

    A igreja est aberta. Far-me-ha bm rezar agora.

    SAMUEL.

    Ide, minha filha, e perdoai o mal que vos acabo de fazer. - .'

    CONSTANA.

    Antes de partir . . . a ultima vez . . . Elle ainda meu irmo.

    SAMUEL.

    Entendo. Desejais dizer-lhe adeus ? Tendes razo.

    CONSTANA.

    Consentis ?

    SAMUEL.

    Porque o negaria?.. . (remonta.)

  • 42 o JESUTA

    SCENA VIII ESTEVO E CONSTANA. *

    CONSTANA.

    Nao me quer dizer, adeus ; Estevo ? ESTEVO.

    Constana ! . . Depois, do que^se acaba de passar?.. No me despreza ento ? . . . No me olha como um ente vil e infame ?

    CONSTANA.

    Somos irmos pela desgraa e pelo corao.

    ESTEVO.

    Que bem me fazem suas palavras ! Sinto que no estou louco, porque ainda a amo ! Sinto que vivo porque sua voz ainda faz estremecer as fibras do meu corpo. Adeus, adeus, Constana.

    CONSTANA.

    Para sempre ?

    ESTEVO.

    No ! . . . Qualquer que seja esse cruel destino que peza sobre mim, qualquer que seja o mysterio que me envolve; s tenho conscincia de uma cousa : sou livre, dei-lhe minha existncia : feliz ou desgraada, ella pertence-lhe. Espere-me, pois, espere-me sempre ! . . . Si eu no puder viver em seus braos, juro que virei morrer a seus ps !

  • o JESUTA 43

    CONSTANA.

    Morreremos juntos I . . A morte o nico bem que no se pde roubar ao desgraado !

    ESTEVO.

    Adeus!. . . Ame-me 1

    CONSTANA.

    Vou espral-o, Estevo !

    'SCENA IX SAMUEL E ESTEVO.

    SAMUEL, s.

    Meu Deus.' Si o que eu acabo de fazer, . uma desgraa, perdoai-me I. Si um crime, puni-me !

    - ESTEVO.^

    Estamos ss. No me occulteis nada, senhor;-tenho coragem para encarar com a minha sorte, qualquer que ellasejaj,

    SAMUEL.

    Chegou o momento de revelar-te um facto que lecidio de tua vida,' meu filho ; elle era necess-rio ; tenho conscincia de que praticando-o cum-pri o dever que a Providencia me impoz quando te confiou minha affeio. Procedi como pai e como amigo ; tu me julgars.

    ESTEVO.

    Eu vos escuto.

  • 44 o JESUTA

    SAMUEL.

    Lembras-te do dia em que me prometteste abra-ar a Vida religiosa e entrar no convento dos je-suitas ?

    ESTEVO.

    verdade que vos fiz ento essa promessa; porm . no previ que me seria impossivel cum-pril-a. Amo, senhor ! Este sentimento espont-neo, irresistvel, que Deus creou em minha alma, essa lei fatal da natureza que faz pulsar o corao do homem, tem mais fora do que uma simples promessa.

    SAMUEL.

    Mas essa promessa, feita nas minhas mos, um juramento ; mais do que um juramento : um voto ! . . . Naquelle momento tu professaste, Es-tevo !

    ESTEVO.

    Eu

    **> SAMUEL.

    esta a falta de que me accuso e qe me deves perdoar." Era preciso que vivesses exclusivamente para. a religio, e eu sacrifiquei ella tua vida. Nas palavras que pronunciei ento, e que no comprehendeste, acceitei os teus votos, e te sagrei em nome do Senhor. Tu s jesuita ! . . .

  • o JESUTA 45'

    ESTEVO.

    Jesuta ! . , . ^Escarneceis de Deus, senhor ! Quem sois vs? E que poder tendes para assim decidir com uma simples palavra, do destino dos homens?

    SAMUEL.

    .Quem sou e u ? . . . No sei, Estevo; talvez um fantico, um insensato, que corre atraz de uma sombra; talvez o autor de uma grande revoluo e o^architecto-obscuro de uma obra gloriosa. O fu-turo responder. Christo, o enviado de Deus, foi crucificadq; Galilo, o mrtyr da sciencia, quei-mado por herege; Colombo, o inventor do novo -mundo, escarnecido por charlato. Como elles a posteridade dir o que sou: si .um apstolo, si Um louco.

    ESTEVO.

    Emfim, senhor, j ouvi o que desejava saber. Dispozestes da minha vida; ra o vosso direito, porque at hoje me alimentastes com o vosso po.

    SAMUEL.

    Estevo !,... No sabes quanto duro o que me acabas de dizer!

    ESTVO.

    Confesso a verdade; era o vosso direito. Chegou o tempo, .porm, de reassumir a minha liberdade.

  • 4 6 O JESUTA

    Renego os votos que fiz sem conscincia; hojemes-'mo deixarei para sempre vossa casa.

    SAMUEL.

    No !. impossvel 1. Tu s meu filho ! . . . Sim ! Que importa que a tua carne no seja a mi-nha carne ? Que o meu sangue nao gire em tuas veias ? Que eu no tenha creado o teu corpo ? Tu s o filho*do meu espirito !... A tua razo, fui eu que a bafejei, que a embalei no bero da sciencia, que a illuminei com os raios de minha intelligencia. Durante vinte annos verti no teu seio, parcella por parcella, scentelha por scentelha, toda a mi-nha alma. E agora, que nada me resta, queres abandonar-me ?.

    ESTEVO.

    Sei qu'e tenho para comvosco uma divida sa-grada ! Mas no me dissestes um dia que todo o homem pertence ao seu futuro? Meu futuro o amor; elle nos separa.

    SAMUEL.

    No, Estevo, Deus nos unio; nem o mundo, nem as suas paixes, podem separar-nos. Meu filho, escuta-me. Quando uma noite, ha vinte annos, a mo desconhecida de um mercenrio te depz na minha porta, e luz da alampada que tinha allu-miado a minha vigilia vi-te estendendo-me os bra-os a sorrir, senti-me renascer! Recebi-te como um anjo do Senhor, que vinha proferir a palavra do-

  • o JESUTA 47

    propheta e bradar-me : Avante I . . . Sim, nessa noite, pela primeira vez, a duvida entrara em meu espirito e entorpecra-me a coragem. Obreiro in-fatigavel de um monumento gigantesco qUe de-manda ..sculos para a sua realisao, eu tinha

    .feito o.que era possvel ao homem. Mas que mo-mento no a-vida da creatrana rotao do mun-do ? Que valem annos para as grandes revoluGes que marcam uma pocha ? Sentia-me velho,, vi o tmulo abrir-se diante de mim.. No temia a mor-te ! Daria com prazer terra um despojo intil. Mas a alma?... Aida ?... A s lembrana de'que ella ia de novo voltar ao nada, donde eu a havia arran-cado, era uma tortura immens, horrvel! Foi n'esse momento que te recebi em meus braos. Reanimei-me... Pareceu-me que Deus-dava-me o teu corpo infantil para que eu innoculasse n'elle a minha alma, quando o meu de velho e cansado j no pudesse carregal-a. Cumpri a vontade de Deus. No te eduquei, no; revivi, resuscitei-me em ti. Eu sou o passado, tu s o futuro ; mas am-bos formamos uma s vida, um s pensamento..

    ESTEVO.

    Mas no o meu corao 1.. Oh ! . . . porque m'o nao arrancastes?.. Ento este amor no-se apoderaria d'elle, e no usurparia os vossos direi-tos de pai: eu poderia ser a imagem do que fostes, a sombra da vossa grande intelligncia ! . . . Ago-

  • 48 o JESUTA

    r a ! . . . tarde ! . . . Exigi de mim todos os sacri-fcios. . . Meu amor, nao; esse no posso dar-vos... delia !....

    SAMUEL, pausa.

    Pois bem ! J que assim preciso.. (Com es-foro.) faa-se a tua vontade, meu filho : ama essa mulher!

    ESTEVO, pasmo,

    Como ! . . . Vs mesmo... Quereis!...

    SAMUEL.

    Quero tudo, comtanto que no me abandones nunca.

    ESTEVO.

    Oh!. reunir em uma s adorao as duas grandes affeies de minha vida, a ventura supre-ma ! . . Parece-me um sonho!

    SAMUEL.

    E o que a existncia?

    ESTEVO.

    Mas. . . Essa promessa feita em vossas mos ?

    SAMUEL.

    Tranquillisa-te. O poder que cra no seria po-der si no destrusse.

    ESTEVO.

    - Assim ?

  • o JESUTA : 49

    SAMUEL-.

    s livre ! i

    ESTEVO.

    .Ah! Permittis que d esta ba noticia a Cons-tana ?

    SAMUEL.

    Podes ir v-la. No me opponho.

    ESTEVO.

    Obrigado 1 SAMUEL.

    Depois vem ter comigo; quero hoje mesmo con-fiar-te o segredo de minha vida.

    ESTEVO.

    Sim, meu pai !

    SCENA X SAMUEL, s

    Rude combate!. . . . Senti que minha coragem vacillava! Nao; ainda que devesse profanar a pu-reza d'essa menina!. . . -Ainda que fosse necessrio sacrificar a sua vida. Sim a sua vida I. O que a .creatura n'este mundo sino o instrumento de uma ida ?... Elle amar!... Mas comprehender, emfim qual amor digno do filho d'esta terra vir-gem! (Absorto.) Brazil!.. Minha ptria!.. Quantos

  • 50 " * o JESUTA

    annos ainda sero precisos para inscrever teu nome, hoje obscuro, no quadro das grandes naes?.. Quanto tempo ainda sers uma colnia entregue cobia de aventureiros, e destinada a alimentar com as tuas riquezas o fausto' e o luxo de thronos vacil lantes ?. (Pausa ; arrebatado pela inspirao.) Antigas e decrpitas monarchias da velha Euro-pa ! . . . Um dia comprehendereis que Deus quando semeou com profuso nas entranhas desta terra o ouro e o diamante, foi porque reservou este solo para ser calcado por um povo livre e intelli-gente ! . . .

  • A C T O S E G U N D O

    Sala em casa do Dr. Samuel; paredes brancas a cal com flores de pintura a fresco; no fundo alpendre sobre o qual abrem duas janellas.e uma porta; direita e es-

    - querda portas. Moblia de jacarand torneado : cadeiras, papeleiras e dois bufetes no proscnio.

    SGENA PRIMEIRA

    IGNEZ, DANIEL MENDIGOS

    A scen-a est beia de mendigos. Ignez com uma vas-soura querendo varrer a casa.

    IGNEZ.

    D r j viram uma cousa a s s im? . . . Mette-se esta scia de esfarrapados em Casa, que nao ha meio de livrar-se a gente de uma semelhante pra-ga ! . . .Vamos l, dsentulhem o'beco, s ino . . . A

  • 52 o JESUTA

    vassoura fez-se mesmo para varrer o cisco. (Em-purra-os debalde.)

    UM MENDIGO.

    O doutor?

    TODOS OS M E N D I G O S .

    O doutor ?

    IGNEZ, arremedando-os.

    Doutor! doutor!... Elle mesmo que tem a culpa de atural-os. (A Daniel que entra) Nao me li-vrars desta corja de malandros, tu que s outro que tal ?

    DANIEL.

    Vae l dentro, que voltando no os achars.

    IGNEZ.

    Ora que partes. (Sahe.)

    DANIEL, aos mendigos.

    Irmos, cheguem-se todos e ouam, que estes segredos no se dizem em voz alta. O governador trama contra o doutor Samuel; esta manha seu ajudante aqui veio talvez para prendl-o: a escolta ficou occulta na cerca do convento. Trouxe cada um seu punhal ?

    MENDIGOS, 4,uma,

    Ei-lo I

  • JESUTA ' 53

    DANIEL.

    Emquanto a mo puder brandir este punhal, o inimigo no se approximar do doutor Samuel.

    MENDIGOS.

    No!

    DANIEL.

    Nosso corpo ser a muralha de sua casa.

    MENDIGOS.

    Sim!

    DANIEL.

    Vo; deitem-se pelo terreiro. Foi para isto que OS chamei aqui . (Sahem os mendigos.)

    SGENA II

    DANIEL E IGNEZ

    Daniel encosta-se porta da varanda. Ignez entra com a vassoura. V*-.

    J&i IGNEZ.

    J*'smiram-se ? Ora graas !

    .*, k DANIEL.

    Onde est o doutor ?

    IGNEZ.

    N o gabine te , (tantando e varrendo.) (

  • 54 0 JEZUITA

    Varre, varre, rapariga, Que o dia j vem raiando ; Olha que teu amo briga, Si te pilha vadiando.

    Tem andado esta casa hoje n'uma desordem ! . . . Ainda no tive tempo para nada, e j meio s o l . . . A i ! . A i ! . . ,

    Traz a casa aceiadinha, Tudo limpo em seu lugar; Fogo acceso na cosinha Meza posta p'ra almoar.

    Aquelle rapaz Jos Bazilio tem idas ! Havia de inventar esta cantiga. Mas que o sr. Estevo diz que elle d para a t r o v a . . . Ha de ser galante, um padre trovista !

    Varre, varre, rapariga, Que o dia j vem raiando ...

    DANIEL.

    O doutor ainda estar no gabinete ?

    IGNEZ.

    Si elle fechou-se com o capito hespanhol! Mas que tens tu ? Ests com cara de judeu !

    DANIEL.

    Ningum sabe o que nos trar o dia de hoje, Ignez.

    IGNEZ.

    Arrda com os maus agouros ! (Vendo Garcia no alpendre) Quem ser?

  • JESUTA . 55

    SCENAIII

    IGNEZ, DANIEL E GARCIA

    GARCIA, para fora.

    l amigo ! J) gua ao tordilho, e ponha-o iga!... Onde o v est com dez lguas no cos-;ado. Caramba !

    y IGNEZ.

    Jesus ! . . . Que figura !

    GARCIA.

    O Senhor esteja nesta casa. Adeus muchacha ! Deus salve, amigo !

    , IGNEZ.

    Sua serva. (A Daniel.) Que querer elle?

    DANIEL..

    Pergunta-lhe.

    GARCIA.

    aqui a pousada do doutor Samuel ?

    IGNEZ.

    Pousada! E aqui que elle mora,, mas agora no sst em casa. .

    GARCIA, deitando os arreios a um canto,

    Esperarei por elle 1

  • 56 o JESUTA

    IGNEZ.

    Nao volta to cedo.

    GARCIA-

    No faz mal.

    IGNEZ, a Daniel.

    caboclo e basta. Birrento como esta casta de gente. (A Garcia.) Mas o amo no vem hoje.

    GARCIA.

    Vir amanha. IGNEZ.

    Nem amanha, nem depois, nem toda esta se-mana !

    GARCIA.

    o mesmo ; esperarei at que venha.

    IGNEZ.

    E si no vier nunca ?

    GARCIA.

    Caramba! Espero sempre !

    IGNEZ.

    Po i s e s p e r e I (Garcia tira a faca para preparar a pa- -

    lha de um cigarro.) Ai!. Virgem Santssima !

    GARCIA.

    Que dengues so esses, muchacha ?

  • o JESUTA 57

    IGNEZ, com medo.

    Meu Deus ! . . . Que vai elle fazer ?

    GARCIA.

    Nunca viu um homem preparar o cigarro ? (Passa a palha bocca, t ira o fumo do bolo e q desfaz na palma

    'da mo.)

    IGNEZ.

    Ah 1. . . J se i ! . . . essa herva fedorenta que " se Jfuma 1

    GARCIA.

    Hrva fedorenta 1... O tabaco ?... No sabe o que diz, muchacha. Uma fumaa de cigarro, uma cuia de mate, um beijo de moa, e o meu tordilho por junto, tudo que ha de melhor neste mundo.

    IGNEZ, a Daniel.

    Que gentio asselvajado, senhor Deus ! . . Tu sabes donde vem, Daniel ?

    ., DANIEL.

    Deixa-me!

    IGNEZ.

    Iche! Que cousa aborrecida!

    GARCIA.

    Bom; o tordilho tem pasto para muitos*dias.

  • 58 o JESUTA

    T r a t e m o s c do p a t r c i o . (Arranja no fundo direita uma

    cama com a xerga e o cochonilho.) N o v a i a m a t a r .

    IGNEZ.

    Que faz ahi?

    GARCIA.

    O que v ; estou me preparando para esperar o homem. Caramba 1 Uma semana no se passa como um dia.

    IGNEZ.

    Vio-se j cousa semelhante?... Parece que est nas suas quintas.. Mas olhe. . . o amo no tarda

    - a chegar.

    GARCIA..

    Melhor ! . . .

    IGNEZ.

    Portanto no precisa espalhar pela casa toda essa trapalhada!

    GARCIA, deitando-se.

    Preciso descanar, muchacha; ha trs noites que d u r m o a c a v a l l o . (Fazendo um gesto.) A t l o g o .

    IGNEZ.

    Est direito!.. .Di-se umasem cerimonia como esta?. O amo que se entenda com este herege. (Batem na grade.) Ha de ser o padre Reitor.

  • o JESUTA 59

    SCENA IV

    IGNEZ, DANEL, GARCIA, FREI PEDRO E JOS BAZILIO

    Quando Ignez abre a porta entram Fr. \Pedro, e Jos Bazilio com uma pequena bolsa de dinheiro.

    FR. PEDRO, descendo.

    Chegaremos, a tempo ?

    JOS BAZILIO, idem.

    Ainda no meio-dia.

    FR. PEDRO;

    Estes bem certo que o doutor Samuel fixou esta hora?

    JOS BAZILIO.

    Repetiu duas vezes.

    FR. PEDRO.

    Deitai esta bolsa sobre aquelle bufete; e avsai-o i minha chegada.

    IGNEZ, beijando a manga do habito.

    Com licena de vossa reverendissima. O sr. dou-tor me recommndou que quando chegasse o reveV rendo padre Reitor, lhe pedisse para ter a bondade de, esperar.

    FR. PEDRO.

    Bem, filha: (Passeia rio alpendre.)"

    file:///Pedro

  • 60 o JESUTA

    JOS BAZILIO, baixo a Ignez.

    Donde sahiu aquelle bugre ?

    IGNEZ, idem.

    Sei l ! Appareceu aqui de repente, e foi logo tomando conta da casa.

    JOS B A Z I L I O , idem.

    E o doutor j o viu ?

    IGNEZ, idem.

    N a o . (Sahe.)

    SGENA V

    FR. PEDRO, JOS BAZILIO, GARCIA, DANIEL E ESTEVO.

    JOS BAZILIO.

    Ainda ests decidido a partir ?

    ESTEVO

    No, impossvel agora.

    JOS B A Z I L I O .

    Porque ?

    ESTEVO.

    Depois que te deixei houve uma revoluo na minha vida.

  • o J E S U T A 6 1

    JOSE BAZILIO

    O que se passou ento ?

    ESTEVO.

    E um segredo que no me pertence, Jos Ba-zilio .

    JOS B A Z I L I O .

    Ento, guarda-o meu amigo.

    FR. PEDRO, no alpendre.

    Jos Bazilio 1

    JOS BAZILIO.

    Padre Reitor.

    FR. PEDRO.

    Tornai ao convento, e previni que no se in-quietem com a minha ausncia.

    JOS BAZILIO, a Estevo.

    Est dito! Hoje no fao outra cousa sino ir e vir. Ah! Quando Deus me dar uma vida tran-qula e a liberdade para escrever o que tenho a q u i 1 . . . (levanclo a mo fronte.)

    ESTEVO.

    Tu tambm sonhas com a liberdade ?

    JOS BAZILIO.

    E quem pde viver sem ella ? Adeus.

  • 62 o JESUTA

    SCENA. VI

    SAMUEL, FR. PEDRO, DANIEL E GARCIA dormindo.

    SAMUEL.

    J viste Constana, meu filho ?

    ESTEVO.

    Agora mesmo a deixei; ellavos ama como eu.

    SAMUEL.

    Bem!

    ESTEVO.

    Nao disseses que desejveis fallar-me ?

    SAMUEL.

    Sim ; quero confiar-te a misso que Deus te destinou ; porm antes, deixa-me ouvir estes ho-mens que me esperam. Sabes o que elles repre-sentam, Estevo ?

    ESTEVO.

    Como posso eu sabel-o, senhor ?

    SAMUEL.

    verdade, ainda ignoras ! Estes homens so os trs instrumentos poderosos que Deus collocou em minha mo para a realisaao de um grande pensa-mento. Eil-os.. . Um velho frade, um pobre ci-gano, um indio adormecido. Quem diria, vendo

  • o JESUTA " 63

    estas trs creaturas aqui, reunidas neste momen-to pelo acasb, que ellas so as pedras angulares de um magestoso edifcio, novo capitlio do alto .do

    .qual uma nao poderosa dar leis ao mundo ! . . . Eil-os !.'.. A religio, a misria, a raa 1... E tu, Estevo, tu sers a intelligencia que ha de diri-gi-las, o espirito que as deve animar, a vontade que as governar at que chegue o momento ! . . .

    ESTEVO.

    Entendo as vossas palavras, senhor ; mas o -seu alcance escapa minha intelligencia.

    SAMUEL.

    AqueUe habito, meu filho, quer dizer vinte mil jesuitas espalhados pela terra e dominando a con-scincia do universo; aquelle cigano significa um povo numeroso, proscripto, sem ptria, dis-posto a morrer por aquelle que lhe prometter um abrigo neste mundo onde estrangeiro; aquelle indio simbolisa a raa indomita selvagem da America, prompta a-reconquistar a liberdade per-dida. Comprehendes agora ?

    ESTEVO.

    Oh ! . . . Comprehendo ! Mas como esse poder immenso acha-se em vossas mos, senhor ?

    SAMUEL.

    Volta em meia hora ; eu tVdirei.

  • 64 o JESUTA

    SGENA VI

    SAMUEL, FR. PEDRO, DANIEL, GARCIA s IGNEZ.

    Ignez entra, acorda Garcia, e fecha as janellas, Da-niel chega-se apressadamente a Samuel.

    DANIEL.

    Vossa vida corre perigo neste momento !

    SAMUEL.

    Porque ? DANIEL.

    Vi soldados escondidos na cerca do convento da Aiuda.

    SAMUEL.

    Que tem isso ?

    DANIEL.

    O governador esta manh rondou as vizinhan-as de vossa casa. *

    SAMUEL.

    Ah ! J tardava!. . . Espreita o que se passa fora, e previne-me a tempo.

    DANIEL.

    Podeis ficar tranquillo. Alguns de meus irmos velam em torno, disfarados em mendigos ; e em-quanto o ultimo de ns conservar um pulso para

  • o JESUTA l 65

    brandir o punhal, ningum se approximar de vossa pessoa. jij

    SAMUEL.

    Bemj -confio em tua dedicao. (Dirigindo* , va-randa.) Vinde padre Reitor. (A Garcia.) E vs amigo, ide continuar o somno interrompido.

    GARCIA, puridade.

    Venho das Misses.

    SAMUEL, idem.

    Sei. Ha quanto tempo deixastes- o Paraguay ?

    GARCIA.

    Ha um mez; andei dia e noite.

    SAMUEL. * h

    Ide; careceis de repouso ; , depois fallaremos. (Fecha a porta.)

    SCENA VIII SAMUEL E FR. PEDRO

    SAMUEL.

    Recebi vossa carta, padre Reitor, e agrade-o-vos a prova de confiana que me dais consul-tando^-me em objecto to grave.

    FR. PEDRO.

    No tendes que agradecer-me, doutor Samuel.

  • 66 o JESUTA

    Nisto cumpro uma ordem do Geral da companhia de Jesus ao Reitor da casa do Rio de Janeiro que manda-me ouvir-vos nas coisas importantes da communidade.

    SAMUEL.

    J me fallastes desta ordem ; rnas, em todo o caso, sempre uma deferencia de vossa parte.

    FR. PEDRO.

    No ; um dever; e cumpro-o com satisfao pela amizade que vos consagro.

    SAMUEL.

    Tratemos do que importa. Esse aventureiro tem realmente um segredo, mas faz delle uma mer--cancia. Pareceo-me conveniente compral-o ; e por isso vos mandei aviso.

    FR. PEDRO.

    E vir elle?. . . Disse-me Jos Bazilio que esta manh, antes de chegardes, ameaou de ir ao Governador.

    SAMUEL.

    Soube disto ; mas no era preciso. O homem que traz um segredo de importncia, uma carta que deve ser entregue em mo prpria; e que", depois de lida, inutilisa-se, quando convm. (Le-vanta-se.) O aventureiro est neste gabinete vossa disposio; podeis interrogal-o quando quizerdes.

  • o" JESUTA 67

    F R . PEDRO.

    Conseguistes retl-o aqui trnquillo durante todo este tempo ? . . . . Exerceis uma influencia ir-resistvel . sobre quantos vos cercam, doutor Sa-muel !

    SAMUEL.

    No ha homem que no tenha o seu calcanhar de Achilles. O hespanhol gosta do vinho ; e sabeis, frei Pedro, quanto fcil que esse. com-panheiro de prazer nos faa seu escravo.

    FR. PEDRO.

    Ah ! usastes deste meio ?

    SAMUEL.

    to vulgar I. . /.(na* porta.) Capito ! . .

    SCENA., XI SAMUEL, FR. PEDRO x D. JUAN

    D. JUAN.

    Ora, finalmente!. . Vamos acabar- com isto ?

    SAMUEL. t

    Frei Pedro da Luz, reitor do collegio da Com-panhia, est prompto a ouvir-vos.

    D. JUAN!

    Maldito vinho!. . . Ainda sinto a cabea an-dar-me s voltas ! '(Samuel' senta-se mesa,)

  • 6 8 ' O JESUTA

    B"R. PEDRO.

    Sr. Capito, impozestes como condio da r e -velao do segredo de que sois sabedor, a somma de mil cruzados; aqui esto sobre esta mesa, elles vos pertencem, si, como dizeis, o1 que tendes-a communicar-me fr em verdade importante.

    D. JUAN.

    Julgareis por vs mesmo. Vou contar-vos o que se. passou at o momento em que vi aquillo que eu tenho por um segredo de grande alcance para vossa Ordem. Si entenderdes que vale a pena, muito bem, digo-vos a ultima palavra, j se sabe, com a mo sobre a bolsa; si no, meia volta direita : cada um seu rumo.

    F R . PEDRO.

    Aceito ; podeis comear. (Sentam-se. Samuel finge escrever.)

    D. JUAN.

    Sabeis que o galeo em que vim sahio de Lisboa repentinamente e com um prego do prprio punho do ministro?

    F R . PEDRO.

    No ; ignorava esta circumstaneia. (Samuel es-creve.)

    D. JUAN.

    Pois ella deo-se. Ao mesmo tempo sahiram

  • o JESUTA 69

    dois outros navios que nos deixaram no terceiro dia. Foi ento que soubemos que o nosso des-tino, era o Rio de Janeiro. A bordo do S. Martinho s havia dois passageiros ; este seu criado, que, embarcou sem saber onde o levavam ; e um ra-pazito, official mecnico na-apparencia.

    SAMUEL.

    Porqu dizeis na apparencia ?

    D. JUAN.

    Porque realmente era um novio da companhia de Jesus disfarado em aprendiz.

    FR. .PEDRO,' vivamente.

    . E 0 descobriram?

    D. JUAN, sorrindo.

    'No fim da viagem apenas. O Sargento-mr teve denuncia de um marujo que o vio s occultas agarrado com a sagrada escriptura.

    SAMUEL, a meia voz.

    I m p r u d e n t e ! (D. Juan volta-se.)

    FR. PEDRO.

    Como ! S por isso?

    D. JUAN.

    Achais que ., pouco ?.... Um aprendiz de -vinte annos letrado ?. . .

  • 70 o JESUTA

    FR. TEDRO.

    E o que succedeo depois d'aquella denuncia? Deveis sabl-o.

    D. JUAN.

    Succedeo que o Sargento-mr em pessoa sahiu s onze horas da noite de sua cmara e veio bater porta do beliche do rapaz, que era vizinho ao meu. Curioso de saber o que ia passar, abri com o punhal uma fresta no tabique, e olhei.

    FR. PEDRO.

    Ento ?

    i D. JUAN.

    O rapaz mal ouviu a voz do Sargento-mor, que batia porta, ergueu-se de um salto ! Tirou do seio um relicario, rasgou-o com os dentes, e sacou uma tira de pergaminho, que approximou da canda. luz que o reduzia a cinzas, vi es-cripto em letras de fogo.. .

    FR. PEDRO.

    Acabai!

    D. JUAN.

    V i . . . vi... Nada; com jesuita no ha que fiar.

    FR. PEDRO.

    O que vistes ? Dizei!

  • o JESUTA 71

    D. JUAN.

    Cuidei que o padre Reitor tinha entendidq. Che-gamos ao ponto capital. O que eu vi naquelle momento o segredo. Quereis ou no dar-o preo convencionado ?

    FR. PEDRO.

    Tomai! . . . tomai! . . . E conclui de uma vez !

    D. JUAN.

    Isto agora outro cantar. Attendei. Vi no per-gaminho, como vos estou vendo, o seguinte : na primeira linha trs letras inicia es um M, um : T , um P . Depois esta data: Qua-torze de. Novembro e assignado : G. M.

    SAMUEL.

    Gabriel Malagrida !

    D. JUAN.

    Justo 1

    FR. PEDRO.

    Quatorze de Novembro !... Que pde ser isto?... E no vistes nada mais ?

    J

    D. JUAN'.

    -Nada. . . Ah!. .Vi ainda o Sargento-mr dei-" -tar a porta dentro e apoderar-se do rapaz.

  • 72 o JESUTA

    FR. PEDRO.

    Que feito d'elle? Est" aqui no Rio de Janeiro?

    D. JUAN.

    No sei. O mar e a noite guardam um segredo que no me pertence.

    FR. PEDRO.

    incomprehensivel !

    D. JUAN.

    A fallar a verdade no est muito claro, mas que o negocio importante no resta duvida 1 B.is-ta ver que traas no empregaram os padres em Lisboa para arranjarem a ordem de passagem do novio, rubricada pelo prprio ministro. Ou me engano, ou alguma noticia de empenho que elles vos mandavam.

    FR. PEDRO.

    De que serve essa noticia, si nao posso enten-del-a ?. si no sei o que ella significa ?

    D. JUAN.

    Isso l no me pertence. Disse o que vi, advi-nhai o resto.

    FR. PEDRO.

    Como, meu Deus, como decifrar semelhante enigma?. Mas. Quem sabe?..- Talvez es-

  • JESUTA 73

    quecesseis alguma cousah ... Talvez houvesse no papel alguma palavra ! . . . . ;

    ft D. JUAN.

    No ..tenho a honra .de pertencer companhia de Jesus, porm, possuo excellente vista e nao SOU dos maiS*pecos. (Tirando a espada com a bainha.) Quanto vi aqui est ha bainha da minha espada, onde o risquei Com a ponta do punhal naqule mesmo ins tante . (Samuel ergue-se e olha por cima do hombro do hespanhol, emquanto Fr.. Pedro examina a bainha da espada.)

    FR. PEDRO.

    No ha duvida : M. T. P. ,"

    D . JUAN.

    Tive o cuidado... Podia esquecer-me; e eu adivinhei logo que isto bem apurado, deixaria ai- ' g u m a coisa. (Batendo na cinta.) C est, e por s i -g n a l que a inda no as contei . (Tira a bolsa e conta as moedas.) >

    FR. PEDRO.

    Podeis verificar ; chareis a somma convencio-nada.

    D. JUAN.

    Est exacto. E agora creio que j no sou pre-ciso aqui ?

  • 74 o JESUTA

    FR. PEDRO.

    Quereis retirar-vos ?

    D. JUAN..

    Si me dais licena.

    F R . PEDRO.

    Onde poderei mandar pelo senhor capito ?

    D. JUAN.

    Em toda a parte; o que quer dizer que em parte alguma.

    FR. PEDRO.

    Si carecer fallar-vos ?

    D . JUAN.

    Com a mesma condio ? (Batendo na bolsa.)

    FR. PEDRO.

    Certamente.

    D. JUAN.

    Ah 1 neste caso me encontrareis sempre s vos-sas ordens no jogo da bola de Bento Es tevs, rua do Alecrim. l que me aboletei.

    FR. PEDRO.

    Bem.

    D; JUAN, co r t e j ando .

    Seu venerador, padre mestre !. Senhor dou-

  • o JESUTA 75

    tor . . . (Dirige-se porta que depois de sua sahid fechada por Fr. Pedro.)

    SAMUEL, reflectindo.

    Sim !..-. Gabriel Malagrida depositou n'aquelle pergaminho o seu pensamento. Ah ! si eu tivesse diante de meus olhos, em vez deste papel,.as le-tras mysteriosas que elle traou, talvez uma scen-telha de seu espirito me illuminasse !

    SCENA X

    SAMUEL e FR. PEDRO.

    FR. PEDRO, .

    Ovis tes? (Samuel faz um signalafrirmativo.) Com-

    rprehendeis o que significa isto ?

    SAMUEL.

    No! . . . Interrogo este papel, e nada me res-ponde. Ser possivel, meu Deus ? ! . . . Ser pos-svel que a vontade do homem, a quem deste a fora de governar o mundo, no possa arrancar destes caracteres mudos a verdade que elles oc-, ultam ? Ser possivel que o pensamento, esse raio de tua luz divina, que esclarece o universo, no possa descobrir a ida envolta nestas trs letras ?. (Beflecte.)

  • 76 o JESUTA

    FR. PEDRO.

    Oh ! . . . escusado I Isto excede os limites da sabedoria humana.

    SAMUEL.

    Nao, frei Pedro ! Deus fez a intelligencia om-nipotente como elle, porque a intelligencia no sino o reflexo da sua razo suprema !.... E este reflexo eu o sinto aqui!. Oh ! eu o quero.. Eu o saberei!

    FR. PEDRO.

    Nao vos fatigueis, meu amigo; depois, quando estivermos mais calmos, reflectiremos.

    SAMUEL.

    Acaso me enganaria ? A luz que me abria os vastos horizontes do pensamento extinguio-se de repente, deixando meu espirito em trevas ! . . Perdestes as azas com que devassavas o mundo, minha intelligencia?... (Com desanimo.) Deus pu-nio-te em teu orgulho !.

    F R . PEDRO. t

    Repito-vos, Samuel, intil. t

    SAMUEL.

    M a s . . . o meu crebro ainda trabalha ! . . Sim.... Eu ainda penso ! . . . O cahos fermenta.... lembro-me.... (eom os olhos no papel.) Uma ida....

  • o -JESUTA 77

    a Biblia Daniel. . . Babylonia ! . . . (Le-vanta-se com expresso, de jbilo.) Ah.l-

    FR. PEDRO.

    O que tendes?... O 'que ? . . .

    SAMUEL.

    , Quatorze de Novembro! Eu leio agora neste papel como si a mo do anjo do Senhor gravasse ahi em letras de fogo a palavra do propheta; como si a voz possante do Apocalypse me bradasse ao ouvido a sentena do juizo final!.. Qua-torze de Novembro 1 Comprehendeis, frei Pedro ?

    FR. PEDRO.

    No! No posso comprehender-vos, meu amigo !

    SAMUEL.

    Pois no vedes alli o dia da ruina, o dies iroz da destruio, o dia da proscripo dos jesuitas no reino do Brazil? Nestas trs letras, no ledes o Mane, Tecei, Phars, que a mo de Deus gravou, sobre os muros de Babylonia, e que a vingana de um homem vai escrever nas paredes de vosso convento?

    FR. PEDRO.

    f Que dizeis, Samuel! Os jesuitas expulsos do Brazi l? . . . . No o creio1! um delrio da vossa imaginao.

  • 78 'o JESUTA

    SAMUEL.

    a verdade ! Oh I um momento o meu espirito debateo-se nas trevas ; duvidei de mim! Mas Deus illuminou^me, rompeu-se o vo, e tudo me apparece agora claro. Fecho os olhos e vejo. . . . (como enxergando uma viso.) Eil-0 ! O busto severo

    do ministro omnipotente que medita a sua obra de destruio. Uma aureola de triumpho resplan-dece em sua larga fronte. Elle sorri e estende a mo 1 A mo poderosa que ergueu a nova Lisboa das ruinas do terremoto, que lutou contra a In-glaterra e curvou Portugal a seus ps ! Traa algumas linhas: a sentena da proscripo; a condemnao dos jesuitas. O rei assignou, s falta executal-a ! . . .

    FR. PEDRO.

    Meu Deus ! SAMUEL.

    Cuidais que o marquez de Pombal vae entregar essa misso a ag-entes subalternos, como si fosse, uma lei vulgar? No! No orgulho de seu poder esse homem tem a preteno de imprimir a seus actos a fora irresistvel, rpida e fatal que Deus deu aos elementos: quer ferir como o raio, como a peste ; quer que no mesmo instante, a mil l-guas de distancia, a sua vontade se relise como um decreto da Providencia.

  • o JESUTA 79

    FR. PEDRO, abatido.

    Julgaes ento que no mesmo d i a . . . .

    SAIUEL.

    No mesmo dia e mesma hora 1 A quatorze de Novembro os jesuitas sero presos em todo o o Brazil.

    FR. PEDRO.

    Mas, doutor Samuel, xplieai-me como tivestes semelhante ida ?

    SAMUEL.

    No. posso agora descrever a elaborao do meu espirito para chegar certeza moral. No se des-creve o cahos, no se descrevem as lutas da natur reza em convulses : assim tambm no se descreve a gestao do pensamento quando suscita do nada o tomo que depois se torna uma ida-. Porm, si quereis saber o que leio nestas palavras tran-adas, vou explicar-vos.

    FR. PEDRO.

    Sim, esclarecei-me, porque o meu espirito se perde. s .

    :- SAMUEL.

    Gabriel Malagridasoubeo segredo da extinco dos jesuitas, e quiz prevenir-vos para que alvas-seis da corisfiscao o vosso thezour.

  • 80 o JESUTA

    F R . PEDRO.

    Que thezour ?

    SAMUEL.

    O que possue a Ordem na sua casa do Cas-tello.

    F R . PEDRO.

    Mas eu ignoro onde se acha.

    SAMUEL.

    E um segredo que algum deve saber. No conheceis o governo do Instituto?

    F R . PEDRO.

    verdade.

    SAMUEL.

    Antes de promulgar a lei, o ministro manda ao Brazil ordem para que a execuo,tenha lugar no mesmo di. Ento Gabriel obtm uma passagem e faz partir o novio que trazia um relicario com as letras que s vs podieis comprehender. Para esclarecer o vosso espirito, mostrou a esse menino o versete de Daniel que elle devia indicar-vos quando chegasse. Finalmente, por jexcesso de pru-dncia, recommendou-lhe que, no caso de perigo, rompesse o relicario, decorasse as palavras do per-gaminho, e destrusse as provas materiaes que o podiam comprometter. Eis a razo porque esse

  • o JESUTA * 81

    menino lja a Bblia; eis a razo porque elle ds-appareceo ; eis a razo porque partem de Lisboa ao mesmo tempo trs navios cujos destinos se ignora. Duvidais ainda?

    FR. PEDRO.

    , No! Nao duvido ! Admiro-vos, doutor Samuel!-Porm, que devo fazer? Aconselhai-nos ; mais do" que nunca precisamos'de vossa "experincia.

    SAMUEL.

    Tranquillisai-vos; estamos a 29 de Outubro, te-mos ainda quinze, dias. D'aqui at l muitos acon-tecimentos podem sobrevir, que mudem a face das coisas. Voltai ao convento. Sobre tudo, nem uma palavra, nem um gesto que revele o segredo.

    FR. PEDRO.

    No era preciso recommendar-me. Entrego' m vossas mos nossa causa; s "vs nos podeis sal-var. Quando nos veremos ?

    SAMUEL.

    B,reVe. (Sane frei Pedro.)

    SCENAXI

    SAMUEL E DANIEL.

    SAMUEL, S.

    Tu ousaste, Sebastio de Carvalho ? . . . E tives-.

  • 82 o JESUTA

    te razo ! Trocadas as posies, eu ministro de Portugal, faria o mesmo, e abateria de um golpe o poder collossal que te ameaava! Mas ainda no venceste, no I Podes rasgar o habito e matar o frade, mas o homem do futuro viver 1 Oh ! ainda no venceste, no !. (Daniel, apparece no fundo.) Que ha ?

    DANIEL.

    Por ora, nada ; mas bom acautelar-vos.

    SAMUEL.

    No te inquietes. Que tens feito ? Como vai o teu plano ?

    DANIEL.

    Bem; n'este momento existem no paiz, pelo menos, vinte mil dos nossos irmos ; outros tantos j deixaram a Bohemia e se encaminham Hes-panha, donde contam passar ao Brazil.

    SAMUEL.

    E nesta cidade, quantos ?

    DANIEL.

    Cinco mil espalhados pelos arredores, mas promptos ao menor signal.

    SAMUEL.

    Assim, si eu quizesse...

  • o JESUTA , 83

    DANIEL.

    Podieis. contar com vinte mil homens dispostos a conquistar uma ptria. Basta'um anno para reunil-os no lugar que determinardes. Dizei uma palavra !

    SAMUEL.

    No; ainda nao tempo ; ainda nao chegou o momento em que esta terra deve abrir o seio de me, onde vossos irmos vagabundos descanaro da longa peregrinao que tmfeito pelo mundo. Eu vos prometti uma ptria. Juro que aKtereis, uma bella e nobre ptria. Filhos" da sia, acha--reis n'ella o sol do Oriente com todo o seu esplen-dor, a natureza em sua pompa,. a vida cheia de fora, de poesia e de liberdade 1 Mas esperai I '

    DANIEL.

    Esperaremos. Quem tem esperado sculos, no conta alguns'annos que faltam ainda..

    SAMUEL."-

    Sois actualmente vinte mil. pouco para este immenso territrio, em que a Providencia vos con-cede um asylo; continuai a imigrao, reuni aqui todas as tribus que vivem esparsas pela Europa, chamai todos os vossos irmos ; e quando fordes cem mil* duzentos mil, ento.. .

  • 84 o JESUTA

    DANIEL.

    No tardar muito esse dia. Em menos de cinco annos no haver em toda a Europa um s filho da Bohemia. Nossa raa proscripta, dispersa, se refugiar n'este canto do mundo, que ser para ella a terra da redempo. S pedimos um solo onde plantar nossa tenda. (Entra apressadamente um mendigo que falia ao ouvido de Daniel.)

    SAMUEL.

    Contai comigo.

    DANIEL.

    O governador dirige-se para aqui. Este irmo o viu.

    SAMUEL.

    Deixai-o vir. Ainda no chegou o momento de nos encontrarmos face face ; elle, o poder da ve-lha Europa; eu, a alma da joven America, (sabem.)

    SCENA XII

    IGNEZ E CONSTANA.

    IGNEZ, para fora.

    Entrai, entrai ; no ha ningum.

    CONSTANA .

    Fao mal!. O doutor pde ver-me !

  • o JESUTA 85

    IGNEZ.

    Elle est recolhido ; no sahe agora.

    CONSTANA.

    Quem este homem que me viu entrar ?

    IGNEZ. ;

    E um pobre cigano, Daniel. No vos conhece.

    ' CONSTANA.

    E aquelles soldados que passavam no me tero visto J?

    IGNEZ. i

    Ainda estavam to longe !

    SCENA XIII

    ESTEVO E CONSTANA.

    ESTEVO.

    Constana," aqui ?

    CONSTANA.

    Sim, meu amigo; corri sem saber o que fazia!,.. Queria dar-lhe uma alegre nova e sahi na espe-rana de ve-lo; Ignez obrigou-me a entrar. Fiz mal ?

    ESTEVO.

    N ; aqui junto de mim pde estar tranquilla ;

  • 86 JESUTA

    ser respeitada. Que nova essa que vinha an-nunciar-me ? (Ignez sabe.)

    CONSTANA.

    No v como sou feliz ? !.

    ESTEVO.

    Porque? A no ser a felicidade de poder ama-la, e que para mim immensa, qual outra nos pde vir?

    CONSTANA.

    A de no nos separarmos mais nunca, Estevo ! Elle consente.

    ESTEVO, sorprezo.

    Elle quem ? Seu protector !

    CONSTANA.

    Sim ! Eu bem lhe disse que elle era bom, que me queria. Depois que me deixou, Estevo, fiquei to contente por saber que fora apenas um mo sonho quanto se tinha passado ! . . . Fiquei tao contente que chegando elle, cobrei animo e contei-lhe tudo. . .

    ESTEVO .

    Tudo ? Disse-lhe que nos amvamos ? Fez mal, Constana.

    Daniel entra precipitado, pra no meio da scena e passa

    direita sem que o percebam.

  • o JESUTA : 87

    -CONSTANA, com arrfo.

    Fiz muito bem ! , . . (Sorrindo.),Elle me escutou; depois sorriu. Tu o amas muito ? , pergun-tou-jne. Como ao senhor , respondi-rlhe. Ento sentou-me em seus joelhos e disse-me : Estou-certo que o teu corao no escolheria um homem que o nao merecesse. Si esse homem fr digno de ti, como supponho, confiarei delle a: tua ventura.

    ESTEVO. *

    A h ! . . . E chama a isso felicidade, minha Cons-tana. Como seu amor se illude! Julga-me digno de si, mas seu protector, que v com os olhos da ra-zo, lhe fallar outra linguagem, quando souber quem sou.

    (Daniel volta e sahe.)

    CONSTANA.

    Porque no me deixa acabar ? Disse-lhe que Estevo pobre; e sabe o que elle respondeu-me?

    ESTVO.

    Adivinho.

    CONSTANA.

    "No o que pensa, no! Respondeu que a ri-queza nao vale uma alma nobre; que, esta s Ds a d e pde tirar; emquanto que a outra o homem

  • 8 8 O JESUTA

    a adquire com seu trabalho e pde perdl-a a todo instante.

    ESTEVO.

    Respondeu-lhe isto, Constana ?

    CONSTANA.

    Respondeu-me, sim. Elle quer v-lo e conhe-c-lo.

    ESTEVO. #

    A mim?. Para que?..

    CONSTANA.

    Oh ! no recuse 1. . . Eu lh'o peo. Elle pro-metteu-me que o protegeria, e lhe faria seguir uma bella carreira.

    (O Conde de Bobadella apparece no fundo.)

    ESTEVO.

    Qual essa carreira ? No o disse ?

    CONSTANA'.

    Espere 1 No me interrompa. Prometteu-me tambm... so suas palavras: Quando esseman-cebo for um cavalheiro brioso e valente, eu mesmo lhe darei tua mo . . . Olhe que no sou eu quem falia. lhe darei tua mo como primeira recom-pensa de seu valor.

  • o JESUTA 89

    ESTEVO. ; " .

    Constana!.. No fa-me orer na Ventura, para soffrer depois um cruel desengano. Sua me-mria a illude 1

    O alpendre enche-se de soldados com Miguel Correia, que entra direita sem fazer rumor.

    CONSTANA.

    Ainda ouo suas palavras, ainda escuto a sua voz grave e doce.

    (O Conde de Bobadella adianta-se.)

    ' ESTEVO:

    ' Quem sabe ? . . . talvez uma promessa vaga, feita unicamente para no contraria-la.

    SGENA XIV

    CONDE DE BOBADELLA, ESTEVQ E CONSTANA

    CONDE.

    A promessa que fiz a esta menina, eu a renovo e Confirmo.

    CONSTANA.

    Ouve?!. elle, Estevo".

    .ESTEVO.

    Elle! . . O sr. governador !. . . ' ,

  • 9 0 o J E S U T A

    CONDE.

    Acaso este titulo me roubar o de vosso amigo, que desejo ?

    ESTEVO.

    Perdo, senhor; mas . . . a admirao.. o respeito...

    CONDE.

    Interesso-me por seu futuro, Estevo. A razo j d e v e s a b e r . (Aponta para Constana.) Os o l h o s q u e

    faliam sua alma tem grande poder sobre o meu corao. Ama esta menina?

    ESTEVO.

    Como amaria minha me si a conhecesse. Mas receio no ser digno d'ella 1

    CONSTANA, baixo ao Conde.

    No lh'o disse? Elle nobre e modesto.

    CONDE, a Estevo.

    Este sentimento o honra, mas no deve desani-mar ; preciso que merea aquella que ama.

    ESTEVO.

    E o meu mais ardente desejo, senhor!

    CONDE.

    E moo ; leio em sua physionomia intelligencia e coragem. Si lhe falta um passado, tem diante

  • JESUTA 91

    de si um longo futuro. Faa-o to bello que elle possa reparar os erros de seus pais e encher de orgulho a mulher que Deus lhe der' por compa-nheira.

    ESTEVO.

    O que preciso fazer para isto? Estou prompto! Apontae-me o caminho!

    CONDE.

    O caminho ! . . . No o v diante de seus olhos ? Nos sonhos da sua imaginao juvenil mo brilha uma estrella que o attrahe e o fascina ?

    ESTEVO, electrisado.

    Sim! . . . sim ! . . . A gloria!. . .

    CONSTANA, a meia voz.

    - Eu pensava que era o amor 1 (O Conde que tem remontado para observar o interior,

    Volta.)

    CONDE, a Estevo..

    E mais que a gloria, Estevo; .o dever*. O ho-mem pertence sua ptria e ao-rei: uma sua mai o outro,seu senhor na terra. Quem tem estes dois bens supremos no -deve lamentar uma vil e mesquinha abastanga. Siga os exemplos que lhe do,tantos cavalheiros portuguezes. Conquiste por seu valor e herosmo aquillo que a fortuna lhe ne-

  • 92 o JESUTA

    gou. Crie um passado nobre e illustre; encha sua existncia de feitos brilhantes. Falta-lhe ur nome!. . . Pois bem; j que seus pais se esquece ram de escrevl-o sobre um assento de baptismo grave-o com a ponta de sua espada nos muros d uma praa tomada de assalto, ou n'um campo d batalha.

    ESTEVO.

    Oh I . . . Juro que o farei, senhor ! Mas a espa da! . . (Com desanimo.) No a tenho?

    CONDE.

    Tome esta; uma espada leal, que nunca sah.ii da bainha sino para a defesa d'uma causa justa Quero deposita-la em suas mos; restituir-me-hi quando seu valor conquistar uma mais illustre

    ESTEVO, com effuso.

    Ah! (Beija a-espada.) No sei o que se passa en mim 1.. Tocando a guarda desta valente espada o meu brao se anima com um vigor invenc-vel.

    CONSTANA, docemente e puridade.

    No v agora amal-a mais do que a mim, sua espada!

    ESTEVO.

    No tenha cimes, Constana! Eu no a quer<

    http://sah.ii

  • o JESUTA 93

    sino para um dia offerecer4h'a como o tributo do meu amor.

    CONDE.

    Muito bem, mancebo. - Procure-me amanh em palcio; dir-lhe-hei ento para que o destino.

    ESTEVO.

    E eu desde j affiano que saberei corresponder confiana de v. ex. suas palavras fizeram de mim um homem; seu exemplo far o resto.

    (O governador remonta)

    CONSTANA.

    " Veja que eu tinha mais confiana em nosso amor ?

    ESTEVO.

    Porque um anjo, minha Constana; um anjo -a quem Deus deu o poder de inspirar nobres pen-'

    " samentos.

    (Entra Miguel Correia)

    CONDE.

    Ento?

    CORREIA.

    Nada, snr. General. 0

    CONDE.

    JPorcurastes tudo ?

  • 9 4 O JESUTA

    CORREIA.

    Corri toda a casa e s encontrei a caseira, um indio que evadio-se, e estes mendigos.

    CONDE.

    Interrogai-os; elles devem saber. (A scena enche-se de soldados.)

    CONSTANA, voltando-se assustada.

    O que se passa aqui ?.. Que querem estes homens ?

    ESTEVO, sorprezo.

    verdade! Cometteo-se por ventura algum crime aqui ?

    CONDE

    Nao, Estevo, mas a causa de nosso rei exige um grande servio neste momento; chegada a occasio de estrear a carreira que lhe destino.

    ESTEVO,

    Fallai, senhor!

    CONDE.

    Sabeis onde est o doutor Samuel ?

    ESTEVO

    a elle que procuram ?

    CONDE

    Responda-me, Estevo; responda-me a verdade.

  • 0 JESUTA 9 5

    ESTEVO

    Nunca menti, senhor.

    CONDE.

    Fao-lhe esta justia; mas a necessidade, a af-feio....

    ESTEVO

    No ha razo que me obrigue a cometter seme-lhante vileza.

    CONDE

    Sabe onde se acha neste momento o doutor Sa-muel ?

    ESTEVO

    Sim, senhor Conde !

    CONDE

    Com toda a certeza ?

    ESTEVO

    Creio que sim.

    CONDE

    Bem! Diga-me o lugar! Guie-me. Esse homem o maior inimigo da vossa ptria e do vosso rei!

    ESTEVO

    Senhor, Conde! deste-me uma espada para que eu defendesse uma causa justa e no para que a trou-

  • 96 o JESUTA

    xesse como o preo de uma infmia. Esse home"m meu pai ; Deus m'o deo em troca do outro que a natureza negou-me; eu o amo, respeito e ad-miro. Bem vedes que impossivel o que exigis

    CONDE, irado.

    Rebelde !

    CONSTANA, ao Conde.

    No se zangue com elle, eu lh'o supplico !

    CONDE, a Constana.

    Tranquillisa-te ! (a Estevo) A sua aco impru-dente de um mancebo de brio ; e eu no posso condemnal-a. Somente advirto-o que a companhia d'esse homem torna-se perigosa n'este momento.

    ESTEVO.

    justamente por isso que devo acompanhal-o e partilhar a sua sorte, qualquer que ella seja.-. No me approva, Constana ?

    CONSTANA.

    Eu?... Eu quero a sua felicidade.

    CONDE, a Correia.

    uma natureza altiva e um nobre corao ! Farei deste menino alguma coisa! (a Estevo) Vamos, .senhor, acompanhe sua noiva.

  • 'O JESUTA- 9 7

    ESTEVO.

    Ah! ser possivel?.... Julgava ter perdido a estima de v. ex.

    CONDE.

    Ao contrario; ganhou a minha amizade.

    CONSTANA.

    Vem, Estevo I (Sahem Estevo e Constana)

    SCENA XV' CONDE, CORREIA, E SOLDADOS

    CONDE.

    Tenho* mfim, o meio de apoderar-me d'elle !

    CORREIA

    Como ! Este mancebo ? . . .

    CONDE.

    Sim l o nico de quem elle confia o segredo de sua vida criminosa ! (entram os soldados)

    OFFICIAL.

    Procuramos tudo o de balde !

    CORREIA.

    Teve aviso, naturalmente. . s

    C05SfDE'.

    Oh!... ainda me escapar d'estavez ! Ha dous 7

  • 98 o JESUTA

    annos que procuro este homem, e quando julg*o tel-o em minha mo, se desvanece como uma sombra I (Pausa)

    CORREIA.

    Que ordenais, senhor General?... Quereis que se arrase esta casa ?

    CONDE.

    No ; sei o que me resta fazer 1 Vinde 1 (Sahem todos)

    SGENA XVI

    SAMUEL, DANIEL, E CIGANOS

    A scena fica um momento deserta ; depois abre-se uma

    porta falsa e apparece Samuel: entram Daniel ciganos.

    DANIEL.

    Estais salvo!

    SAMUEL.

    Sim; o corpo salvou-se ; mas levaram-me a alma ! Sem elle, sem essa resurreicao de minha vida, o que sou eu ? Uma sombra!... Meu Deus ! Porque dando ao homem a intelligencia e for-mando-o tua imagem, lhe deixaste um co-rao ?..

  • ACTO T E R C E I R O

    i-i. Consistorio do collegio, dos jesuitas. No fundo porta lar-ga ; direita uma porta com grade de ferjo ; esquer-da portas de commuoicao . Vai escurecendo gra-dualmente.

    SGENA I

    JOS BAZILIO E ESTEVO

    JOS BAZILIO, escrevendo.

    E excusado; nunca serei poeta 1 (amarrota o papel.) i

    ESTEVO, entrando.

    Jos Bazilio !

    JOS BAZILIO

    Ah I pensei que j me tinhas esquecido. Quinze dias !... Que fizeste todo este tempo ?

  • 1 0 0 O JESUTA

    ESTEVO.

    No vs em mim alguma mudana ?

    JOS BAZILIO.

    verdade ! Trazes farda e espada ! Ests mi-litar ?

    ESTEVO.

    Desde hontem.

    JOS BAZILIO.

    Assim, os teus sonhos de gloria realizaram-se !

    ESTEVO.

    Os meus sonhos de gloria e tambm os meus so-nhos de amor:

    JOS BAZILIO.

    Como foi isto ? Conta-me ; sabes que eu tenho direito, como teu amigo, metade dessa ven-tura.

    ESTEVO.

    Lembras-te do dia em que tentaram prender o doutor Samuel? Pouco depois que me deixaste, Constana veio dar-me uma alegre esperana, e e, ainda incrdulo, recusava abandonar-me lla, quando de repente ouo a voz do conde de Bobadella, "que vinha confirmar a minha felici-dade.

  • O JESUTA 101

    JOSE BAZILIO.

    Mas que tinha o Conde com o teu amor ?

    ESTEVO.

    No sabes ? Constana orpha e protegida pelo governador; elle consentio que eu a amasse e deu7me esta espada para que ennobrecesse o nome, que hade pertencer minha esposa !

    JOS BAZILIO.

    Como deves ser feliz !

    ESTEVO.

    Feliz! No o sou completamente, Jos Ba- > zilio.

    Porque razo ?

    JOS BAZILIO.

    ESTEVO;

    Cuidas que posso ser indifferente perseguio que se faz ao homem quem devo tudo neste

    mundo ? No meio de minha felicidade sinto um re--morso por tel-o abandonado,~a elle, que me quer como um pai ! Oh"! s o amor e a gloria podiam disputar-me to santa amizade.

    JOS BAZILIO

    Mas tu no.o abandonaste, E$tevo. Algum dia tinhas de seguir uma carreira; aquella para que

  • 102 O JESUTA

    elle te destinou nao te agradava; escolheste outra tao nobre e mais bella talvez !

    ESTEVO.

    No avalias a divida de affeio que contrahi com esse homem, Jos Bazilio ; sinao havias de coniprehender o que sinto. Elle nao me alimentou o corpo unicamente; deu-me alguma cousa do seu' espirito ; e agora que talvez precisa dessa alma por elle creada para acompanhal-o na desgraa, quando ella foge-lhe e o deixa s ! Nao devo ter remorsos ?

    JOS BAZILIO.

    Porque no lhe fallas ?... Obters delle o. con-sentimento ?

    ESTEVO.

    A isto vim hoje aqui ; esperava encontral-o. Quero pedir-lhe perdo, e levar a sua beno para sanctificar as minhas esperanas. No o tens visto ?

    JOS BAZILIO.

    Apenas uma vez depois daquelle dia.

    ESTEVO.

    No sabes si elle costuma vir ao Collegio.

  • - JESUTA 103

    JQSE BAZILIO.

    Todas as noites, si no me engano ; mas um segredo que sorprendi.

    ESTEVO..

    A que horas ?

    JOS-BAZILIO.

    Logo que escurece. Acho bom que te dirijas o Reitor.

    ESTEVO.

    Sim ;. Frei Pedro conhece-me ; sabe como amo o doutor Samuel e no me hade recusar ! Ainda cdo ; tenho tempo de ir Ajuda ; hoje no vi Constana. Mas falla-me .de ti, nada me dis^ seste !

    JOS BAZILIO.

    Que te hei de eu dizer ?... Que sou feliz da tua felicidade !

    ESTEVO.

    E no tens tambm alguma esperana que se possa realizar ?

    JOS BAZILIO.

    Contento-me com a minha sorte, Estevo, e dei-xo correr o mundo como Deus quer.

  • 104 o JESUTA

    ESTEVO.

    Que excellente gnio, o teu ! Ests sempre ale-gre ! Nada desejas, nada ambicionas.

    JOSE B A Z I L I O .

    Que queres, meu amigo ? Quando perdi minha pobre mi aos oito annos, fiquei ao desamparo ; e estaria hoje feito tropeiro, ou tocador de porcos em Minas, si os padres de Marianna no me recolhes-sem. Vim depois para esta casa onde ensinaram-me o pouco que sei; aqui alimentam-me, agaza-^ lham-me e destinam-me para alguma cousa, se-gundo elles dizem ! Que posso desejar mais l

    ESTEVO.

    Porm dize-me : s vezes no te sentes oppri-mido entre estas paredes nuas ; no tens necessida-de de respirar o ar livre, e gozar do mundo que vs de longe atravs das grades de tua cella ?

    JOSE B A Z I L I O .

    Oh ! sim! Ha momentos em que este habito queima-me o corpo; em que eu daria tudo que sei pela ignorncia e liberdade do menino que brinca nas chcaras da Ajuda,embaixo do morro.

    ESTEVO.

    E que fazes ento que no abandonas esta casa e no segues a tua aspirao ?...

  • o JESUTA 105

    JOSE BAZILIO.

    Que fao ?... Nesses momentos peo a Deus que me d a fora de supportar este duro captveiro,. e para esquecer o que soffro, tomo uma penna e es-crevo.

    ESTEVO.

    1 Fazes versos?

    JOS BAZILIO.

    Aprendo a fazel-os. No sei o que me diz.. Mas. . . Olha, Estevo; creio que algum dia escre-verei alguma cousa.

    ESTEVO, sorrindo.

    Um poema ?

    JOS BAZILIO.

    No sei.

    (Entra Garcia furtivamente.)

    ESTEVO.

    quasi noite; at logo.

    JOS BAZILIO.

    J vais ?

    ESTEVO.

    Pouco me demoro ; s vl-a 1

  • 106 O JESUTA

    SCENA II

    GARCIA E DANIEL.

    (Escurece. Garcia, apenas sahe Jos Bazilio, Vae

    fechar as portas.)

    DANIEL, com uma lanterna.

    J est escuro.

    GARCIA.

    Oh ! Donde sahio esta figura ?

    DANIEL.

    Que faz nesta sala ?

    GARCIA.

    Caramba ! Sou eu que lhe pergunto o que vem fazer.

    DANIEL.

    No da sua conta.

    GARCIA.

    Pois v sahindo por onde entrou ; nao gosto de companhia.

    DANIEL.

    Menos eu ! Dou-lhe cinco minutos para esvasiar o becco.

    GARCIA.

    Cinco minutos ! Passo aqui a noite !

  • o JESUTA 107

    DANIEL.

    Tambem-eu ! Durmo nesta sala.

    GARCIA.

    Sabe que mais, hombre ? . . . Estou quasi ati-rando-o pela janella.

    DANIEL.

    E eu tenho minhas tentaes de coser-lhe a pelle com esta agulha.

    GARCIA.

    Pois caia, amigo.

    DANIEL.

    Nada ; far barulho, e vir gente. * :

    GARCIA.

    Hombre t DANIEL, ao mesmo tempo.

    Escute. GARCIA.

    Que temos ? DANIEL.

    Pde fallar. GARCIA.

    Nada ; comece.

  • 108 o JESUTA

    DANIEL.

    Queria propr-lhe um negocio.

    GARCIA.

    Vamos a isso. (D. Juan apparece.)

    DANIEL.

    Ambos ns temos necessidade de estar s neste lugar ; si ficarmos, claro que seremos dois! . . .

    GARCIA.

    Sem duvida !

    DANIEL.

    E preciso pois que um saia !

    GARCIA.

    No serei eu ! DANIEL.

    Menos eu ! No ha remdio sino recorrermos sorte.

    GARCIA.

    Como? DANIEL.

    Tire a sua faca ; eu tenho a minha ; o que fe-rir primeiro fica, o outro sahe.

    GARCIA.

    Est dito.

  • o JESUTA 109

    * SCENA IV

    DANIEL, GARCIA E D. JUAN. *

    D. JUAN.

    Com licena ; ha um terceiro. GARCIA.

    . O que quer ?

    DANIEL.

    T)onde vem? D. JUAN.

    Venho de alguma parte, e quero o que os se-nhores querem.

    DANIEL.

    Ficar s nesta sala ?

    D. JUAN