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O imaginário tipográfico pós-moderno Flávio Vinicius Cauduro, Doutor, PUCRS[1] RESUMO: O trabalho tece algumas reflexões e críticas sobre a função do designer e o papel de sua subjetividade na prática tipográfica, segundo as óticas modernas e pós- modernas, tentando traçar um paralelo dessas duas correntes com as posições semióticas de Saussure e Peirce sobre questões similares. É apresentada ainda uma tentativa de classificação das principais fontes de inspiração dos designers pós- modernos, profissionais e amadores, na criação de seus tipos, com exemplos recolhidos de sites da Web. A palavra tipografia , de acordo com o etimologista E. Partdrige (1961: 746-47) vem do francês typographie (1500-1700), que é por sua vez uma palavra derivada do latim medieval typographia , que se originou da combinação de typus — que significa padrão, tipo, protótipo, modelo, símbolo, um padrão recorrente em doenças — e graphia , que significa escrita. Por sua vez, essas duas palavras latinas vem respectivamente das palavras gregas tupos significando tipo, marca ou impressão causada por um forte sopro ou impacto de um modelo numa superfície — e grapheia , significando escrita. O que se observa de imediato é que a palavra tipografia está associada desde sua origem com a noção de uma escrita realizada com marcas ou sinais típicos repetidos. Uma definição genérica para tipografia poderia ser então simplesmente a de “uma escrita com tipos”, isto é, uma escrita realizada através de símbolos padronizados, formados e replicados uniformemente, totalmente despersonalizados, e representando basicamente letras, números, sinais de pontuação e outros auxiliares. Mas como o designer Jan Tschichold já havia advertido a seus leitores, no início de sua carreira de teórico do design tipográfico, “tipografia significa mais do que simplesmente ‘escrita com tipos’.’’ (Tschichold 1935/1967: 54). Para o então jovem Tschichold, tipografia era vista como uma arte gráfica bi- dimensional que deveria ser praticada não apenas por alguns mas por todos os impressores (Tschichold 1935/1967: 26 e 55), os quais deveriam enfatizar a assimetria na diagramação, o contraste acentuado de cores, pesos e tamanhos dos tipos, e a experimentação de soluções não-convencionais. Para Tschichold, o designer-tipógrafo deveria ser um inventor de novas formas, que tiraria partido das novas tecnologias de sua época:

o Imaginario Tipografico Pos Moderno

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  • O imaginrio tipogrfico ps-moderno Flvio Vinicius Cauduro, Doutor, PUCRS[1]

    RESUMO:

    O trabalho tece algumas reflexes e crticas sobre a funo do designer e o papel de sua subjetividade na prtica tipogrfica, segundo as ticas modernas e ps-modernas, tentando traar um paralelo dessas duas correntes com as posies semiticas de Saussure e Peirce sobre questes similares. apresentada ainda uma tentativa de classificao das principais fontes de inspirao dos designers ps-modernos, profissionais e amadores, na criao de seus tipos, com exemplos recolhidos de sites da Web.

    A palavra tipografia, de acordo com o etimologista E. Partdrige (1961: 746-47) vem do francs typographie (1500-1700), que por sua vez uma palavra derivada do latim medieval typographia, que se originou da combinao de typus que significa padro, tipo, prottipo, modelo, smbolo, um padro recorrente em doenas e graphia, que significa escrita. Por sua vez, essas duas palavras latinas vem respectivamente das palavras gregas tupos significando tipo, marca ou impresso causada por um forte sopro ou impacto de um modelo numa superfcie e grapheia, significando escrita. O que se observa de imediato que a palavra tipografia est associada desde sua origem com a noo de uma escrita realizada com marcas ou sinais tpicos repetidos.

    Uma definio genrica para tipografia poderia ser ento simplesmente a de uma escrita com tipos, isto , uma escrita realizada atravs de smbolos padronizados, formados e replicados uniformemente, totalmente despersonalizados, e representando basicamente letras, nmeros, sinais de pontuao e outros auxiliares. Mas como o designer Jan Tschichold j havia advertido a seus leitores, no incio de sua carreira de terico do design tipogrfico, tipografia significa mais do que simplesmente escrita com tipos. (Tschichold 1935/1967: 54).

    Para o ento jovem Tschichold, tipografia era vista como uma arte grfica bi-dimensional que deveria ser praticada no apenas por alguns mas por todos os impressores (Tschichold 1935/1967: 26 e 55), os quais deveriam enfatizar a assimetria na diagramao, o contraste acentuado de cores, pesos e tamanhos dos tipos, e a experimentao de solues no-convencionais.

    Para Tschichold, o designer-tipgrafo deveria ser um inventor de novas formas, que tiraria partido das novas tecnologias de sua poca:

  • Os signos e letras da sala de composio no so os nicos meios disposio da nova tipografia ... . Da mesma forma que a fotografia normal, existem variaes que podem participar na nova tipografia; por exemplo, fotogramas ... fotos em negativo, dupla exposio e outras combinaes ... . Qualquer um ou todos esses recursos podem ser usados, a servio da expresso grfica ... . Embora a fotografia seja o meio mais importante de expresso pictrica na nova tipografia, ela no exclui o uso de desenhos lineares mo-livre ou diagramticos. (Tschichold 1935/1967: 84-86)

    Ele ainda recomendava, para contrastar com a uniformidade dos tipos, o uso ocasional de letterings desenhados mo (p. 54). Como se v, Tschichold estava propondo j naquela poca, no raiar do design grfico modernista, do qual ele seria um dos expoentes maiores, que a tipografia fosse encarada como uma prtica interpretativa, mediadora, da escrita, muito antes dos ps-estruturalistas e desconstrucionistas grficos dos anos 80 e 90.

    O que Tschichold estava a reivindicar, na realidade, era o direito de todo designer de poder expressar sua subjetividade atravs de uma prtica expressiva da tipografia algo que ele prprio, mais tarde, e os designers modernistas do International Style e da Escola Sua, que lhe seguiram, reprimiriam enfaticamente, em nome dos valores supostamente superiores do novo estilo modernista que haviam inventado e que seria, no entender deles, garantidor de uma legibilidade tima. Isto se obtinha, pressupunham, utilizando tipos de fontes grotescas, sem-serifas, como a Futura, a Standard, a Univers e a Helvtica, ajudados pelos contrastes extremos de cores, tamanhos e espessuras de todos os elementos grficos da pgina, e a neutralidade emocional do designer, que deveria resistir a todo custo tentao da auto-expresso (Tschichold 1966), para preservar a pureza e funcionalidade do estilo minimalista da Nova Tipografia, que deveria evitar a todo custo introduo de rudos ornamentais e superficialidades estticas. Em seu livro A Nova Tipografia (1928/1995), ele afirmava que A essncia da Nova Tipografia a clareza. Isto a coloca em deliberada oposio velha tipografia, cujo objetivo era beleza e cuja clareza no atinge o alto nvel que necessitamos hoje em dia (Tschichold 1928/1995: 66). essencial dar pura e direta expresso ao contedo do que for impresso (p. 67). As velhas idias de design devem ser descartadas e novas idias desenvolvidas. bvio que design funcional significa a abolio da ornamentao que tem reinado por sculos... . um ceder a um instinto primitivo de decorar que revela, em ltima anlise, medo aparncia pura. ... O importante arquiteto Adolf Loos, um dos primeiros campees da pura forma, j escrevia em 1898: Quanto mais primitivo um povo, mais extravagantemente eles usam o ornamento e a decorao. ... Insistir na decorao colocar-se no mesmo nvel de um ndio. O ndio em ns deve ser derrotado. ... Vemos hoje na tendncia ornamentao uma tendncia ignorante que nosso sculo deve reprimir. ... Mesmo a combinao de fios

  • paralelos grosso & fino um ornamento e deve ser evitado. (p. 69-70). Os melhores tipos so aqueles que podem ser usados para qualquer fim, e os mus so aqueles que s podem ser usados para cartes de visitas ou livros de hinos religiosos. Uma boa letra aquela que se expressa, ou antes fala com a maior distino e clareza. E um bom tipo no tem propsito algum alm o de ser da maior clareza possvel (p. 78). Nesse ponto, o iderio de Tschichold parece querer implementar na prtica os dogmas estruturalistas do linguista Ferdinand de Saussure, pai da semiologia, a respeito da escrita, conforme seu Curso de Lingustica Geral do incio do sculo, que afirmava, entre outras coisas que A mesma pessoa pode escrever t, por exemplo, de modos diversos [t, t, T]. O nico requisito [para a leitura correta do sentido do signo] que o signo para t no seja confundido na sua escrita com os signos usados para l, d, etc. (Saussure 1916/1974: 119-20). Ele desprezava quaisquer contribuies do estilo da enunciao para o seu sentido. Por isso, acrescentava, uma vez que o signo grfico arbitrrio, sua forma pouco importa, ou ainda, importa apenas dentro das limitaes impostas pelo sistema (Saussure 1916/1974: 120). O que acarretava, portanto, que Os meios pelos quais o signo produzido completamente sem importncia, pois ele no afeta o sistema... . Se fao as letras em branco ou preto, em relvo ou gravadas, com lpis ou buril tudo isso pouco importa com respeito significao (Saussure 1916/1974: 120). Concluso: o design e a produo grfica do texto s seriam significativos enquanto operassem para a sua melhor legibilidade ou diferenciao sistmica; estilos e formas particulares de represent-lo nada tinham a acrescentar de valor ao sentido das expresses. O jogo dicotomizado de contrastes visuais era s o que restava ao designer. Mais tarde, o linguista dinamarqus Louis Hjelmslev esclareceria melhor essa ideologia cientificista: Os elementos da estrutura lingustica trazem a mente as entidades usadas na lgebra... . Enquanto seguirmos as condies expressas, podemos representar as entidades algbricas como quisermos [porque a substncia dos significantes pouco importa para a significao]... . (Hjelmslev 1963/1970: 41). Ou seja, tanto para Saussure como para Hjelmslev, a funo da escrita era puramente notacional, visava somente o registro das falas mentais do autor, e a nica expressividade admitida era a lingustica. Mas esse recalque puritano da subjetividade na tipografia s se manteve enquanto o ideologema da legibilidade reinou absoluto na comunicao. Pode-se reprimir a subjetividade por algum tempo mas no por todo o tempo, no campo da escrita, como viriam a argumentar mais tarde os ps-estruturalistas. Na verdade, Tschichold tentava reprimir a subjetividade do outro, pois a sua prpria ele a exprimia privilegiadamente, como se fosse a Lei do Pai, do Outro Moderno (ainda que puritano). Um leitor de Hong Kong, comentando

  • recentemente uma coleo de antigos ensaios de Tschichold (The Form of the Book: Essays on the Morality of Good Design) no site da Amazon Books, diz isso bem claramente: Ele expe muitas regras para o design de livros, mas muitas delas seguem seu gosto pessoal e so apresentadas num tom autoritrio, ditatorial e condescendente. No existe, na sua tica, espao algum para a criatividade no design de livros, ao contrrio todos os livros devem seguir seu design.

    Felizmente, segundo a semitica Peirceana, a subjetividade sempre levada em conta, est sempre presente no processo de significao (semiose), transparecendo sempre em qualquer ato comunicativo (nem que seja atravs de erros e atos falhos). Ela abrange as trs dimenses bsica do sujeito semitico: a racional, a existencial e a emocional. Essa diviso d origem trs classes ontolgicas bsicas de signos: os legisignos, que so signos do pensamento racional, regulados e compartilhados por convenes, regras e leis comunitrias; os sinsignos, que so signos de coisas e eventos singulares existentes num dado lugar e num dado tempo para sujeitos observadores; e os qualisignos, que so signos de sentimentos e emoes de cada sujeito em relao s qualidades de suas prprias percepes. Os legisignos (ou types) seriam formas, e os sinsignos (ou tokens) e os qualisignos (ou tones) seriam atualizaes das formas, ou substncias, na semiologia de Hjelmslev (Cauduro 1990).

    A partir dessa diviso, que estabelece trs modos possveis de ser do signo (e o sujeito tambm um signo), Peirce deriva mais uma tricotomia, que classifica os signos segundo cada um dos trs tipos de relao que eles podem ter com os objetos que representam: os smbolos, os ndices e os cones. Os smbolos guardam uma relao de equivalncia, codificada cultural ou socialmente, com seus objetos, que reafirmam leis e regras habituais de representao (so os signos arbitrrios a que Saussure se referia em sua teoria semiolgica). Os ndices guardam uma relao de contiguidade ou conexo espacial, temporal ou causal com seus objetos, pressupondo que so vlidas certas ligaes pressupostas entre eles, como verificadas por experincias anteriores ou a serem comprovadas. Os cones, por sua vez, guardam uma relao de semelhana com os objetos que representam, enfatizando uma identidade qualquer de qualidades entre eles (ndices e cones so os signos motivados da semiologia de Saussure; Cauduro 1990).

    O que nos interessa aqu ressaltar que, dependendo do sujeito predicante, da sua situao num dado instante e conforme sua formao sociocultural, a interpretao (ao escrever ou ao ler) que ele dar aos significantes de um texto poder seguir qualquer uma dessas trs classes de signos. Isto , qualquer marca, figura ou grupo de sinais, dependendo do momento, do vis da leitura e da relevncia num dado contexto, poder ser interpretado preferencialmente, como um smbolo, ou como um ndice, ou como um cone - ou como todos

  • esses trs tipos, sucessivamente, e em qualquer ordem. Como escreveu Peirce certa vez, a pegada que Robinson Crusoe encontrou na areia para ele era um ndice de que alguma criatura estava em sua ilha, e ao mesmo tempo, como um Smbolo, evocava a idia de um homem (Peirce 1931: IV, 414). Naturalmente, a noo de pegada j pressupunha uma leitura inicial icnica daquela marca na areia.

    Portanto, nenhum sinal jamais exclusivamente simblico, indicativo ou icnico, nem tampouco necessitar ser arbitrrio (no-motivado) para ser considerado um signo, como queria Saussure, uma vez que qualquer signo, alm de poder pertencer a um cdigo ou classe sociocultural tpico, sempre poder se assemelhar com alguma coisa j percebida anteriormente e sempre poder indicar algo factual, dependendo do seu leitor e independentemente da inteno ou vontade do seu enunciatrio. Qual das trs funes prevalecer numa determinada leitura vai depender da relevncia maior ou menor de cada uma delas naquele momento especfico para um sujeito tambm especfico (embora seja possvel quase sempre prever com razovel confiana o tipo de leitura que poder ser o preferido pela maior parte do pblico leitor considerado, pela lei do menor esforo).

    Aplicando esse raciocnio questo da significao tipogrfica, observamos que o modo icnico de leitura dos tipos vai ser o responsvel pelas reaes emocionais imediatas associadas aos tipos por similaridade, ou seja, por associao com outros signos de qualidades semelhantes; o modo indicial de leitura, por sua vez, vai sugerir traos visuais especficos de possveis objetos ou eventos (espaciais, temporais ou causais) contguos aos tipos; e o modo simblico de leitura vai produzir mensagens lingusticas equivalentes aos arranjos e formas visuais literais exibidos pelos tipos, segundo determinados cdigos ou sistemas de escrita.

    Assim, ao ler um texto estamos enfocando no s suas propriedades lingusticas de ordem simblica (compartilhada), indicativa (dictica) e icnica (onomatopaica), mas, com maior ou menor ateno, dependendo de nossa sensibilidade, experincia e motivaes, tambm as suas propriedades grfico-visuais de ordem simblica (tipos regulados por um cdigo visual quanto s suas formas estruturais bsicas e as formas de articulao entre eles), de ordem indicativa (traos de agentes, instrumentos, processos e meios de produo grficos) e de ordem icnica (atributos visuais qualitativos, como desenho, cor, tamanho, orientao, textura, contraste, nmero, etc. de linhas, superfcies, volumes).

    Freud, por exemplo, estava bem ciente dessa pluralidade de leituras, ao escrever:

    Qualquer um pode descobrir por auto-observao que existem diversas espcies de leitura, em algumas das quais ns no prestamos ateno ao que

  • lido. Quando estou lendo provas [de composio] com o objetivo de prestar especial ateno s imagens visuais das letras e a outros signos tipogrficos, o sentido do que eu leio me escapa to completamente que tenho de ler as provas novamente, se quero corrigir o estilo. Quando, por outro lado, estou lendo um livro que me interessa, por exemplo uma novela, passo por alto de todos os erros de impresso, e pode ser at que o nome dos personagens da mesma me deixam apenas uma lembrana confusa na mente uma vaga idia, talvez, que ou so compridos ou so curtos, ou que contm alguma letra no usual, tal como um x ou um z. (Freud 1986: 181, nfases minhas)

    Atualmente, podemos constatar que o design grfico modernista, institudo por Tschichold, Josef Albers, Herbert Bayer, Paul Renner, Emil Ruder e seguidores, procurou compensar sua extrema simplicidade e economia de meios e tipos, assim como a ausncia de decoraes, pelo emprego constante de fortes contrastes e disposies assimtricas, assim como pela disposio de textos segundo trs direes retilneas bsicas (horizontal, vertical, diagonal) para compor o layout da pgina. A filosofia desse tipo de design era a de restringir (ou polarizar, sempre que possvel) o nmero de variveis grficas disposio do designer, para fins de economia, rapidez e previsibilidade na ordenao das informaes. Em suma, a comunicao seria realizada o mais eficazmente possvel pelo design, supunham eles, quanto mais direta, simples e repetitiva fosse a forma visual das mensagens. Obviamente, na concepo dos modernistas a comunicao se resumia basicamente transmisso de informaes, isto , duplicao pelo receptor dos contedos simblicos (denotados) das mensagens formuladas pelo emissor, atravs dos signos grficos.

    Mas com o tempo as solues tornaram-se repetitivas e montonas e o design grfico passou a ser realizado quase que mecnicamente, baseado em frmulas simplrias e desgastadas, enquanto o designer se tornava cada vez menos criativo e cada vez mais invisvel. Essa situao viria a mudar radicalmente com o aparecimento da fotocomposio e a popularizao do fotolito e da impresso offset nos anos 60, que integraram todos os elementos grficos (tipos, fotos, retculas, desenhos, ilustraes, etc.) num s suporte-matriz, ampliando significativamente as possibilidades da litografia do sculo XIX, que j havia se mostrado um mtodo de produo de grande flexibilidade e recursos expressivos (como para a impresso de partituras de msica e criao de cartazes artsticos, por exemplo).

    Os jovens designers comeam a explorar com rapidez as caractersticas fotogrficas das artes-finais e dos fotolitos de gravao das chapas, obtendo resultados inditos e surpreendentes, destacando-se a os trabalhos de Wolfgang Weingart. Ao mesmo tempo, a produo de novas fontes de tipos foi facilitada, pois passaram a ser desenhados e no mais gravados, mas ainda permanecendo sob o contrle de alguns poucos especialistas. Nessa mesma poca aparecem as letras e retculas de transferir (Letraset, Mecanorma) que

  • tambm estimularam a inventividade tipogrfica dos designers e artistas grficos, pois os arranjos dos tipos se libertam totalmente da malha tipogrfica dos linotipos e das gals de composio.

    Com o surgimento do computador pessoal grfico em 1984 (Apple Macintosh), da linguagem PostScript (Adobe) e das primeiras impressoras digitais a laser (Canon) em 1985, e dos softwares de diagramao PageMaker (Aldus) e de criao de fontes Fontographer (Altsys) em 1986, abrem-se totalmente as portas da experimentao aos jovens designers digitais, que vo derrubar sistematicamente todas as regras, preceitos, dogmas e tabs tipogrficos dos velhos modernistas.

    No momento em que aparecia o Desktop Publishing (DTP), como veio a ser chamada essa nova tecnologia tipogrfica computadorizada, aparecia em Sacramento, na California, a migre Graphics, fundada em 1984 por Zuzana Licko e Rudy VanderLans, e que passava a ser a primeira produtora independente de tipos da era Macintosh. Zuzana inicialmente criou fontes pixelizadas de baixa resoluo, sem importar-se com o crueza dessas criaes, pois para ela o mais importante era experimentar as possibilidades e dominar a nova tecnologia oferecida aos iniciantes da tipografia digital. Alm disso, ela acreditava que os tipos no eram intrinsicamente legveis ou ilegveis, mas sim que era a nossa maior ou menor familiaridade com eles que determinava seu grau de legibilidade. Voc l melhor aquilo que l em maior quantidade, sejam textos em Univers, sejam textos em Fraktur. Da mesma maneira, acrescenta ela, tipos considerados ilegveis hoje podero ser considerados clssicos amanh ou daqu h 100, 200 anos (Zuzana Licko 1993).

    Em poucos anos, a migre Graphics comeou a lanar novas fontes de tipos, agora com alta resoluo. A recepo favorvel recebida da nova gerao, juntamente com o sucesso comercial do empreendimento, inspirou outros designers, como Neville Brody e a dupla Just van Rossum & Erik van Bloakland a lanarem suas prprias produtoras tipogrficas.

    O que se observa nesse aparecimento de pequenas produtoras independentes de tipos digitais, assim como nas primeiras criaes de fontes digitais por curiosos e leigos, que inicialmente a preocupao era de como resolver as formas bsicas das letras em baixa resoluo (ainda poucos tinham acesso a uma laserprinter) - de maneira inteligvel (valor simblico), mas ainda assim exibindo, se possvel, uma certa expressividade e funcionalidade (valores icnico e indicial) que as tornassem inconfundveis . Era um desafio esttico, pois se exigia a manuteno das formas tradicionais das letras analgicas sob a restrio de uma grade bitmap de baixa resoluo.

    Gradualmente, com a superao dos limites da baixa resoluo pela linguagem PostScript e pela popularizao das impressoras a laser, a ateno dos designers se voltou para a inovao das formas dos tipos atravs de recursos

  • inditos e complexos (deformaes, borramentos, fragmentaes, hibridaes, sombreamentos, texturizaes, etc.) que enfatizassem cada vez mais a expressividade dos tipos e dos textos. Com a ajuda do poderoso software processador de imagens chamado Photoshop (lanado pela Adobe em 1988), os novos designers de tipos comearam a explorar referncias estticas cada vez mais subjetivas, assim como efeitos grficos que citavam cada vez mais a vivncia particular de cada um com o desenho de tipos. Torna-se cada vez mais evidente que os designers esto ansiosos por tornarem a tipografia e a diagramao meios de expresso definitivamente artsticos. Em vez de cultivarem, como faziam os modernistas, o valor maior legibilidade e inteligibilidade da ordem simblica, eles/elas procuram ao invs dar vazo s mais diversas fantasias de seus imaginrios pessoais, reintroduzindo, como na poca inicial do modernismo (do art nouveau, do futurismo, do dadasmo e do expressionismo) o sujeito idiosincrtico, com seus desejos, suas preferncias e sua cultura especficos, no campo da criao e da expresso tipogrfica.

    Nesse movimento de recuperao do carter subjetivo/diferenciativo do design tipogrfico, que resultou no aparecimento de vrias correntes ps-modernistas na visualidade grfica contempornea, observa-se que existem 3 principais modalidades de interveno da expressividade e criatividade do designer nos textos tipogrficos:

    a) pela criao de novas fontes, ou alterao de fontes j existentes;

    b) pela inovao na articulao visual do texto e no layout da pgina tipogrfica; e

    c) pela combinao simultnea das duas possibilidades anteriores.

    Como vemos, a ps-modernidade basicamente a reintroduo da subjetividade, do imaginrio idiosincrtico do designer, que havia sido completamente reprimido na alta modernidade nos seus projetos comerciais. Nesse movimento de regresso s razes artsticas do design, de desmistificao do seu carter pseudo-cientfico, de revalorizao da retrica e da emotividade sobre a lgica fria, observamos que a intuio e a imperfeio so muito valorizadas, porque tendem a ser marcas nicas de cada sujeito e de cada contexto social no momento histrico especfico de resoluo de problemas comunicacionais. Ou seja, as solues de design tendem a ser cada vez mais circunstanciais, provisrias, imprevisveis, concretas. Isso parece explicar o fascnio atual dos designers pela aleatoridade, chance, acaso e efemeridade em suas criaes e projetos uma estratgia que torna suas criaes nicas, pessoais e irreplicveis, totalmente diferenciadas daquelas produzidas em computador por curiosos e tcnicos e que tendem a seguir velhas frmulas modernistas sem nenhuma inovao.

  • Os graffitis, as pichaes, os erros, rudos e falhas de impresso, as hibridaes ocasionais, etc., so recursos cada vez mais valorizados pelos novos designers, pois representam tudo aquilo que a racionalidade, a lgica pura e determinstica, e a repetividade incessante dos meios automatizados se opem e restringem em sua inumana, fria e intil busca pela perfeio tcnica e pureza das formas.

    Para finalizar essas breves consideraes sobre o imaginrio tipogrfico contemporneo ps-moderno, poderamos citar ainda algumas tendncias (ou fontes de inspirao) atuais para a criao de novas fontes e formas de tipos, conforme pesquisadas por Valles (2001) e por mim nos sites de fontes da Web, tanto em catlogos de produtoras de tipos de vanguarda como nas listas de download disponibilizadas por designers amadores da tipografia ps-moderna. Essas tendncias classificamos, a grosso modo, de acordo com as seguintes caractersticas:

  • Fontes Bitmap ou Pixelizadas formas tipogrficas inspiradas numa opo que anteriormente era uma limitao; resultam de tipos alfanumricos gerados obedecendo a uma matriz retangular de pixels (bitmap) de baixa resoluo, caracterstica das primeiras fontes digitais produzidas para impressoras de agulha e para uso nas telas de videogames, de monitores de computadores e em relgios digitais com display de cristal lquido.

  • Fontes Techno fontes promovidas principalmente pelas jovens escolas de design grfico inglesa, alem e japonesa; caracterizadas pelas formas baseadas em ngulos retos, de espessura geralmente uniforme, visual simplificado, emulando estilos de letterings vistos em plantas e desenhos tcnicos de engenharia, arquitetura, quadrinhos e filmes de fico cientfica; parecendo ser produzidas por instrumentos de desenho, ou em normgrafos e plotters de canetas, parodiam a neutralidade e cientificidade modernista; so muito utilizadas em flyers de raves.

  • Fontes Revival ou Retro fontes que so releituras de estilos de fontes populares em outras pocas; so geralmente pastiches que no se levam muito a srio nem se preocupam muito com a exatido da citao. Exploram a nostalgia e o saudosismo.

  • Vernaculares fontes que se inspiram em elementos grficos anedticos da literatura e da arte popular, do folklore, assim como em mtodos populares de escrita e em impressos de dispositivos grficos de baixa qualidade tipogrfica (rotuladores, xeroxes, faxes, carimbos, tipos xilogravados, tipos de antigas mquinas de datilografia, tipos pintados, escritos a giz, caligrafados, etc.)

  • Informais e Idiossincrticas fontes baseadas na escrita mo-livre de uma pessoa e geralmente expressando um gosto ou estilo seu muito especfico, pouco ortodoxo.

  • Grunges fontes anrquicas que se caracterizam por um design sujo, imperfeito, desleixado, algumas vezes ilegivel, e que geralmente se inspiram em graffitis, pichaes, deterioraes, colagens e raspagens, etc.

  • Randmicas fontes de tipos cujas outlines ou background so variveis cada impresso em funo de irregularidades aleatrias introduzidas pela linguagem PostScript nas curvas matemticas que descrevem o contorno de cada tipo. Cada impresso nica, sem nunca repetir exatamente uma mesma forma. As primeiras fontes randmicas foram criadas pelos designers holandeses Just van Rossum e Erik van Blokland em 1989. Suas criaes mais conhecidas so as famlias de tipos randmicos Beowolf e BeoSans.

    Por exemplo, 6 impresses sucessivas do ampersand de uma Beowolf poderiam ser:

    Beowolf 21

    BeoSans Soft Regular R11

  • Hbridas fontes que resultam de uma mistura fragmentada de estilos de resultados imprevisveis, no apresentando uma lgica simples de gerao de seus tipos; enfatizam rupturas, falhas, caos, desordem, fragmentao, mistura de estilos diferentes.

  • Fontes de Artifcio so geralmente produzidas atravs de processo de aplicao uniforme de um ou mais efeitos especiais de Photoshop, ou resultantes de outros algortmos analgicos ou matemticos de formao ou transformao regulares de forma; exploram efeitos transformativos coletivos sobre fontes j existentes, sem se preocupar em inventar novas formas individuais.

  • Dingbats fontes que no so, via de regra, de tipos alfanumricos mas sim pictricos ou esquemticos, e que exploram temas derivados de cartoons, smbolos cientficos e comerciais, elementos decorativos, pictogramas de sinalizao, marcas e logos comerciais, sinais, molduras, fios, linhas, etc.

    O que se observa em todas essas tendncias ps-modernas um posicionamento ldico e irnico dos designers na interpretao ativa do cdigo alfanumrico da escrita ocidental, recusando-se a adotar uma postura neutra ou invisvel. Existe uma forte tendncia desses novos designers de marcarem seus textos com traos e rastros da materialidade de sua diffrance, baseados em suas esperincias e preferncias individuais, como que afirmando a singularidade, espontaneidade e efemeridade de suas manifestaes aqu e agora, ao invs de tentarem formular solues dogmticas, em nome de causas ou utopias coletivas redentoras ou transcendentais. O que muito bom para todos e para a renovao do design grfico.

  • Mais que uma simples opo estilstica, essas novas tendncias mostram que no se devem procurar identidades fixas e permanentes, que o sujeito ps-moderno instvel, contraditrio e cambiante, assim como suas criaes, e que julgamentos de valor no tem cabimento quando se trata de expressar a singularidade de eventos ou subjetividades circunstanciais.

    Segundo este novo paradigma, iremos constatar cada vez mais criaes do design tendentes ao mutante, ao instvel, ao cambiante. Assim como a identidade visual da MTV est em constante transformao, por exemplo, assim tambm as novas fontes tipogrficas, daqu para a frente, tendero cada vez mais constante mutabilidade, como antevemos a partir das fontes Beowolf e BeoSans.

    Porque, como dizia Saussure, a diferena produz significao. Sermos diferentes implica em sermos significantes, e isso o que todos ns desejamos.

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    Tschichold, Jan (1928/1995) The New Typography: A Handbook For Modern Designers, translated by Ruari McLean, with an introduction by Robin Kinross, Berkeley: University of California Press (First published in German in 1928 by the Bildungs verband der Deutschen Buchdrucker).

    Tschichold, J (1935/1967) Asymmetric Typography, translated by Ruari McLean, London: Faber & Faber Limited (First published in 1935 as Typographische Gestaltung, Basle)

    Tschichold, Jan (1966) Treasury of Alphabets and Lettering: A Source Book of the Best Letter Forms of Past and Present for Sign Painters, Graphic Artists, Commercial Artists, Typographers, Printers, Sculptors, Architects, and Schools of Art and Design. New York: Reinhold Publishing.

    Valles, Luciane Rosinato (2001) Tipografia Ps-moderna, Monografia de concluso do curso de Publicidade & Propaganda, orientada pelo Prof. Flvio V. Cauduro, Faculdade de Comunicao Social, PUCRS.

    Notas:

    [1]Prof. Programa de Ps-graduao em Comunicao, Faculdade de Comunicao Social / PUCRS