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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014
O HISTORIADOR E A METÁFORA*
André Luiz Joanilho
UEL
Resumo: Este texto sustenta que escrita da história é uma metáfora do
passado não reconhecida pelos historiadores, os quais, ao contrário,
buscam o literal nas suas narrativas formadas por documentos que
poderiam ser compreendidos também como metáforas, mas que são
abordados como emulação do real. Do documento ao texto, a metáfora
é esconjurada como ruído não real. No entanto, a escrita não é feita de
verdades e literalidade, mas de imaginação e de fatos da linguagem,
estando na origem dos eventos a dispersão e a descontinuidade.
Abstract: This paper argues that the writing of history is a metaphor of
the past unrecognized by historians, who, in contrast, seek the literal in
their narratives made by documents which could also be understood as
metaphors, but which are treated as the emulation of the real. From the
document to the text, metaphor is banished as unreal noise. However,
writing is not made up of truth and literalness, but of imagination and
facts of language, dispersion and discontinuity being at the source of
events.
Para o historiador a metáfora não existe, ou melhor, não deveria
existir. O discurso histórico é literal, busca o sentido exato dos
acontecimentos, fugindo de quaisquer outras possíveis formas
explicativas. Afinal, o historiador deve explicar e a sua clareza não pode
se confundir com fatos de linguagem, mesmo quando se trata de estilo
de escrita.
Sabemos das figuras de linguagem que as narrativas históricas
lançam mão para se fazer compreendidas. A discussão de Hayden
White (1995) não nos é estranha. Porém, não estamos propondo discutir
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as estruturas narrativas em história e, em seguida, fazer um estudo
tropológico, mas apresentar a relação do historiador com a metáfora. E,
de início, o historiador deve fazer a sua narrativa “transparente” com
relação ao seu objeto, ou pelo menos esse é o aprendizado da disciplina.
Da chamada escola metódica às teorias interpretativas do “linguistic
turn” dos anos oitenta, a marca é a exatidão. Enquanto que os metódicos
sonhavam com uma história cientificista, na qual o documento era uma
expressão do real, os intérpretes contemporâneos pretendem desvendar
os significados dos documentos para se chegar à trama dos eventos do
passado. Porém, tanto uns quanto outros buscam descrever o que
aconteceu e tornar a narrativa uma emulação do que realmente
aconteceu.
Portanto, a exatidão, se podemos dizer que há alguma na escrita da
história, deve ser o norte da narrativa e, no limite, a metáfora deve
acrescentar mais clareza e remeter diretamente ao objetivo desejado se
for utilizada como recurso estilístico. Não deve haver nada além do
literal na narrativa histórica ou não deveria.
Esse mundo fechado do historiador se confronta com a metáfora que
está fora da sua objetividade, justamente no seu material mais precioso:
os documentos. Estes sim, repletos de fatos de linguagem. O documento
nunca é a expressão do que aconteceu mas o material que permite ao
historiador compor quadros narrativos. Pode-se até mesmo dizer que o
documento é uma metáfora do evento.
De um, lado o historiador e a objetividade, de outro o documento
enquanto metáfora do real. O trabalho historiográfico consiste em
transitar entre esses polos opostos do fazer história. Evidentemente que
não se compreende o documento como expressão do que aconteceu,
pois, como iremos considerar adiante, ele não traz consigo tudo o que
aconteceu. Mesmo a reunião de todos os documentos sobre um
determinado evento, não é suficiente, pois, para usar uma metáfora, a
narrativa histórica “não é um geometral”, ou citando Paul Veyne (1982,
p.31): “Os acontecimentos não existem com a consistência de um objeto
concreto. É necessário acrescentar, não importa o que se diga, não
existem também como um ‘geometral’; prefere-se afirmar que eles têm
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existência em si mesmos como um cubo ou uma pirâmide: nunca
percebemos todas as faces de um cubo ao mesmo tempo, só temos um
ponto de vista parcial”. Há uma impossibilidade em apreender tudo do
passado.
Mas, além de ser metáfora do real, o documento ele próprio, muitas
vezes é metafórico, ou seja, traz consigo fatos de linguagem. Uma
pintura, por exemplo, remete a algo para além da figuração. Poder-se-
ia dizer que ela é de fato uma representação. Mas o que é uma
representação senão uma metáfora? Uma fotografia é uma
representação, mas também uma metáfora, pois alude a algo que não é
ela própria. Mesmo um documento escrito pode ser compreendido
como postulando metáforas. Podemos tomar como exemplo um artigo
num jornal operário do início do século XX no Brasil:
Anarquia e Revolução
Não devemos abandonar nunca a ideia da revolução. Só ela é
fecunda, só ela produzirá todos os frutos que a anarquia vem
cultivando num imenso labor de mais de meio século. A
revolução é também o único, o exclusivo elemento de conquista
da igualdade e da justiça social (...).
Os nossos esforços devem convergir para a organização do
levante geral das vítimas, pouco nos importando qual seja o ideal
que se batem os revoltados. A anarquia é uma perpétua revolução
e deve sair da revolução; ao passo que a revolução nem sempre
sai e pode mesmo não sair da anarquia.
É pouco provável que os povos só se revoltem definitivamente
quando hajam compreendido a anarquia; eles se revoltarão de
preferência por motivos alheios a tão nobre ideal. A nós,
anarquistas, faltando o impulso e a decisão revolucionária, falta
o senso e a razão de ser na sociedade. Há, entretanto, inúmeros
revolucionários que ignoram completamente a anarquia. Ora, a
sociedade futura deverá sua existência à devastação da atual
esterqueira. Portanto, é preciso que nós nos revoltemos;
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naturalmente com a maior urgência possível. (D.R.F. A Plebe, nº
4 ano II, 15/09/1919, p. 4).
Se o historiador está formando um quadro a respeito da luta de
classes na sociedade brasileira no início do século XX, encontrará farto
material em documentos deste tipo. Haveria clareza e transparência,
afinal o autor do artigo mostra a necessidade de organizar o movimento
revolucionário a partir do ideal anarquista e de que forma a revolução
pode e deve ocorrer. Mas, há uma pletora de metáforas no texto.
“Vítimas”, “frutos”, “nobre ideal”, “a atual esterqueira”, etc., que nos
remete justamente aos fatos de linguagem e ao discurso. Como
dissemos, o documento possui uma duplicidade: composto de
metáforas e ele próprio sendo uma metáfora dos eventos passados.
Assim, de uma história da luta de classes, pode-se passar a uma
história das práticas discursivas. Há discurso e práticas no texto do
militante. Por mais que não se dispusesse a ter posição, ele tem de se
remeter às imagens ou representações sociais correntes, ou melhor, ele
as usa porque tem de usá-las. Não está à sua disposição como numa
prateleira de supermercado na qual faria escolhas. As escolhas, de certo
modo, estão dadas e é a partir disso que podemos compreender as
práticas discursivas.
Comecemos por “nobre ideal”. Se a anarquia luta para exterminar
qualquer diferença social, não deixa de ser sintomático que o termo
“nobre” seja utilizado, palavra que remete à diferenciação, mesmo se
tratando de ideias. A anarquia é nobre, superior, logo os anarquistas
também são superiores e podem conduzir a revolução, portanto o povo.
Ao lado de “nobre” temos o termo “ideal”, também sintomático, pois
sendo a anarquia uma prática, nada teria de idealização, ou melhor, as
suas ideias sairiam da prática revolucionária, como o militante afirma:
“A anarquia é uma perpétua revolução e deve sair da revolução”. É
possível identificar uma prática discursiva a respeito de como os
sujeitos devem proceder ou se conduzir: as ideias anarquistas são
superiores, portanto se impõem “naturalmente”, ou seja, a revolução,
no fim das contas, é uma ação de homens superiores.
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Ora, para a história tradicional, ou ainda, para os historiadores que
acreditam na transparência de suas narrativas e o evento, o primeiro
trabalho é justamente “limpar” o documento das metáforas, isto é,
“traduzi-las” para uma linguagem “científica” (as aspas são para marcar
os termos, afinal é o trabalho do historiador explicar o que aconteceu e,
como foi dito acima, a metáfora não deveria existir). Porém, de modo
contraditório, não é possível ao historiador escapar da metáfora. Logo,
o discurso histórico é metafórico, ou ainda, o discurso científico é
metafórico. Vejamos um exemplo atual: como explicar o Bóson de
Higgins?
O bóson de Higgs é um elemento-chave da estrutura fundamental
da matéria conhecida como a "Partícula de Deus". No "modelo
padrão", a teoria da estrutura fundamental da matéria elaborada
nos anos 60 para descrever todas as partículas e forças do
universo, o bóson de Higgs é considerado a partícula que
proporciona sua massa a todas as demais. Ao tentar isolar os
menores componentes da matéria, os físicos descobriram várias
séries de partículas elementais.
Em 1964, por dedução, o físico britânico Peter Higgs postulou que
existia o bóson que hoje leva seu nome e que devia dar sua massa a
outras partículas. "A ideia é que existem partículas que se chocam
permanentemente com bósons de Higgs. Estes choques freiam seu
movimento, que se torna mais lento, e dão a eles a aparência de uma
massa", explica o físico e filósofo Etienne Klein.
Klein compara este fenômeno com um homem que tenta passar
correndo em meio a uma multidão, que freia sua corrida e faz com
que diminua sua velocidade. Também compara o campo de Higgs
com uma espécie de cola em meio à qual se encontrariam
relativamente aderidas as partículas, o que seria percebido como
uma massa. (AFP, 08/10/2013,
http://br.noticias.yahoo.com/b%C3%B3son-higgs-
part%C3%ADcula-chave-f%C3%ADsica-fundamental-
142036455.html)
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Este simples exemplo nos mostra que nenhum discurso escapa do
metafórico, muito menos a história. Afinal, um homem “correndo no
meio a uma multidão, que freia a sua corrida” é uma boa explicação
para os bósons.
Porém, toda a história da ciência, se podemos dizer que há uma
ciência, é, além do mais, a história da separação entre o metafórico e o
literal. O ponto de inflexão, nas narrativas que buscam a origem do
pensamento científico, teria sido Aristóteles. Nele nasceu a definição
do discurso verdadeiro ou literal e o metafórico, sempre colocado como
inferior em relação ao literal já que este explicaria o real e “junto à
Aristóteles, o julgamento negativo (...) do que ele chama de metáfora
em importantes campos, na sua lógica e na sua filosofia da natureza, é
bem mais marcado. Ele sustenta, por exemplo, que é preciso evitar a
metáfora e as expressões metafóricas numa definição” (LLOYD, 1993,
p.42)1.
Essa separação não cessou de fazer caso no discurso científico. A
metáfora é boa para se fazer poesia, mas negativa para a explicação
científica (ibidem, p.44). E não somente para Aristóteles, mas também
para os historiadores da ciência. Seguindo ainda a análise sobre este
assunto, Geoffrey Lloyd afirma que o seu “argumento é então que a
distinção entre o literal e o metafórico – como a distinção entre mito
(como ficção) e a narrativa racional – não seria somente, na origem, um
elemento neutro e inocente de análise lógica, mas uma arma forjada
para defender um território, expulsar o inimigo, humilhar os rivais”
(ibidem, p.46)2. Aristóteles utiliza a distinção para fazer a sua lógica
superior aquela dos seus rivais. Nenhuma inocência ou superioridade
do científico sobre o mito, apenas um jogo de forças que impõe o literal
como superior, devendo o metafórico se ater ao literário, pois, “na sua
exigência de clareza, ele (Aristóteles) exclui a metáfora porque tudo
que se diz através de metáfora é obscuro” (ibidem, p.42)3.
Porém, sabe-se que o discurso científico recorre às metáforas e aos
seus próprios mitos (o que seria o Big Bang senão uma ótima metáfora)
e o discurso histórico é pleno delas. A sua pretensa objetividade se
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perde ao emaranhado de práticas discursivas, quer dizer, não há uma
segunda natureza nos discursos. Há fatos de linguagem que remetem a
uma espécie de positividade. O que está dito quer dizer exatamente o
que está dito. A metáfora, neste aspecto, não é um fato de linguagem
que remete a um sentido que estaria aquém ou além do próprio discurso,
mas o informa. Porém, na sua maior parte, os historiadores reconhecem
nas metáforas um sentido além do que está dito. Há algo na superfície
que torna opaco o seu verdadeiro sentido. O historiador deve trazer à
luz o que não está aparente e deve encontrar o que realmente se quis
dizer. O pensamento de Aristóteles ainda frequenta as práticas dos
historiadores. Vejamos:
Empédocles tinha dito que o mar é salgado porque ele seria o
suor da terra (...) Mas Aristóteles fez o seguinte comentário:
‘Dizer tal coisa pode ser apropriada por razões poéticas – pois a
metáfora é poética – mas isso não serve para compreender a
natureza [da coisa].
Outras imagens utilizadas por Empédocles e determinados
filósofos pré-socráticos foram condenadas porque elas seriam ou
obscuras, ou grosseiras, ou ainda que elas precisam ser
nuançadas, ou então porque as similitudes sobre as quais são
fundadas eram superficiais, ou até mesmo porque os exemplos
comparados não tem algum ponto em comum (ibidem, p.43)4.
É perceptível o quanto este pensamento ainda persiste no discurso
científico e, sendo a narrativa histórica uma tentativa de emular este
tipo de discurso, nas formas de narrar que se tornaram inerentes à
ciência. A lógica da explicação deve ser feita com base na prova,
estando o documento disponível para que se efetive esse discurso. Não
deve haver obscuridade ou conflito, apenas clareza e comprovação.
Então, podemos compreender que há um espaço entre o documento
e a narrativa histórica, sendo preenchido por explicação e não qualquer
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uma. Deve ser uma explicação “densa” que produza uma narrativa que
não deixe nenhum vão entre o literal e a metáfora.
Mas o que fabrica o historiador com a densidade da sua narrativa?
Efeito de real, para citar a expressão de Roland Barthes (1968), porém
de modo diferente. Enquanto na literatura este efeito produz o
verossímil, o historiador acredita que, pelo fato de utilizar documento,
de qualquer tipo, para a sua narrativa, trata do real. Tanto que a narrativa
é algo que quase não frequenta as preocupações de quem escreve
história, pois é dado como incontornável o fato de se escrever o real. É
notável que nas graduações de história, ou na formação de historiadores
em outros países, não se vê uma disciplina “Narrativa em História”.
Discute-se teoria, às vezes ainda, filosofia da história, historiografia,
mas quase nada sobre documentos e nada sobre argumentação.
Essa naturalização da escrita é herança da história cientificista do
século XIX. O discurso científico é expressão do real, porém, como
estamos apontando, ele deixa escapar metáforas e, no caso do
historiador, a sua duplicação no documento é como um quarto de
espelhos: a imagem refletida pela narrativa não deixa de ser outra
imagem. Logo, não é possível apreender o real por essa duplicação em
escala.
Haveria alguma possibilidade de se apreender o que realmente
aconteceu? Somente se o passado se tornasse fixo, imóvel. Porém, o
que podemos apreender é a polissemia dos acontecimentos da mesma
maneira que a memória individual é polissêmica. Nunca damos a
mesma explicação para o que nos aconteceu e nem o mesmo sentido.
Mudamos e o nosso passado muda. No caso da história há as relações
sociais que se constituem e desfazem ao longo do tempo. Portanto, há
um agravante. Nunca o historiador estará em condições de fixar o que
realmente aconteceu pela mobilidade do presente e pela
impossibilidade temporal, ou melhor, pelo paradoxo geográfico do
conto de Borges: um rei queria o mapa perfeito e os geógrafos se
esforçaram tanto que o mapa ficou do tamanho do próprio reino. Uma
narrativa que apreenda o real levará tanto tempo para ser feita quanto o
próprio acontecimento e se isso for possível, a sua leitura levará o
mesmo tanto.
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Podemos, como outro exemplo, reproduzir parte da narrativa da vida
de Danton:
Danton, como Robespierre e Marat, foi uma criação da
Revolução (Francesa). Emergiu do enorme acontecimento sem
qualquer aviso prévio. Apesar dos esforços de seus biógrafos em
buscar na sua juventude traços que lhe anunciassem a carreira, é
difícil discernir no jovem Danton de seus retratos um
personagem já destinado à futura Revolução (...) Nas vésperas da
Revolução era um advogado modesto, menos desprovido de
recursos do que o disseram os seus adversários (para melhor
salientar o caráter súbito e inconveniente de sua fortuna), menos
próspero do que o garantem seus partidários. Sem dúvida possuía
a Encyclopédie em sua biblioteca, entre os volumes de Plutarco
e Beccaria, mas tratava-se de uma propriedade então quase
obrigatória, o que não faz concluir que ele se alimentava de
Diderot. Como primeira causa, tivera de defender um pastor
contra um senhor, mas a que advogado não coubera naqueles
tempos tratar de tal assunto de eleição? Nada disso basta para
explicar um engajamento revolucionário (FURET e OZOUF,
1989, p.240).
O efeito produzido é a sensação de que se trata da vida de Danton,
porém, os documentos – obras biográficas, biblioteca pessoal, palavras
de detratores, palavras de partidários – que emulariam um real são
metáforas do que foi Danton e neles próprios vamos encontrar as
metáforas que os constituem. Nesta duplicidade, o historiador produz o
efeito de real que não deixa de ser também uma metáfora, pois não é
efetivamente o narrado, mas resultante de um jogo metafórico que deixa
de ser duplo para ser tríplice, ou seja, entre o que está representado no
documento, ele próprio e a escrita do historiador.
Danton revolucionário não está exatamente onde se poderia pensar,
na linearidade temporal da sua vida, mas numa teia de relações que é
impossível de reconstituir inteiramente. Por isso, deve o historiador
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praticar esse jogo tríplice para produzir o efeito de real. Porém, quase
não há consciência do jogo e muitos o tomam como o próprio quadro
retratado na narrativa, não se afastando o suficiente do que seria o
objeto da escrita.
Não encontramos Danton antes de 1789, mas na Revolução. Nela
emerge o personagem. O historiador percorre essa trajetória por elipses
que são preenchidas pela explicação, logo o personagem só se torna
pleno quando eclode a Revolução e não antes. Danton, enquanto
revolucionário, só o pode ser após 1789, portanto há uma
“metaforização” da narrativa, mesmo porque “trata-se de ordenar o
heterogêneo e, mais efetivamente, encontrar o Outro apenas no plano
da imaginação – portanto, sem sair do território do Mesmo” (OHARA,
2013, p.117-212). A imaginação, que podemos substituir por
explicação, é o jogo estabelecido entre acontecimento, documento e
narrativa.
Este jogo dá a sensação de que se trata da verdade, pois abordaria o
que realmente aconteceu, por isso, recorre aos documentos de qualquer
espécie e “a verdade em história deriva, em última instância, das
referências aos discursos das testemunhas” (HULAK, 2012, p.26)5.
Sem este recurso a história não poderia se estabelecer. O documento é
o zero do discurso histórico e nos passa a sensação de que ele é total,
pode dar conta do acontecimento, por isso o historiador chama a
testemunha para estabelecer a veracidade da sua narrativa. No início
temos o documento e todo o resto decorre deste epifenômeno da
memória que, no seu estado bruto, será o campo de atuação do
historiador. Há um claro sentimento que a história está estabelecida nos
próprios acontecimentos e a memória é a testemunha chamada para
comprovar a narrativa do historiador.
Porém, convém lembrar que o primeiro gesto do historiador
“começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em
‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira”
(CERTEAU, 1982, p.81). Por isso mesmo que não se toma o passado
pelo o que ele é. Podemos retomar o artigo escrito pelo militante
anarquista, citado acima. Primeira questão, qual foi o lugar de sua
produção? Segunda, quais as intenções do articulista? Terceira, em que
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série de produção se inseria o artigo? Ao respondê-las é perceptível a
distância que nos separa do artigo, não apenas temporal, também pela
própria produção. Afinal, estamos tomando-o por documento, enquanto
o articulista o tomava por uma peça de conscientização e de
compreensão da prática anarquista.
Apartamos o documento de seu local de produção, de suas intenções
iniciais, de sua série e o inserimos em outra produção, outra intenção e
outra série, aquelas do historiador. Este, pela explicação, torna o
documento pleno de sentido, mas qual? O da explicação histórica,
assim, recortando o documento, o historiador lhe dá um sentido
específico e o torna “pleno” de certezas. Não há dúvida, ambiguidade,
imprecisão na narrativa, somente a certeza de um vetor temporal que
evoca o passado para estabelecer o presente. Afastada a metáfora do
literal, a explicação histórica somente pode se ver como identitária. A
metáfora é a dispersão e movimento, enquanto o literal é a unidade e
imobilidade.
Podemos dizer, utilizando o conceito de heterotopia de Michel
Foucault (1994), que a metáfora é outro espaço no qual o historiador
tradicional não se reconhece, aliás não o deseja. A metáfora é uma
heterotopia, espaço asilar – dos loucos, dos mortos, dos leprosos, dos
velhos, dos marginais –, por isso deve ser afastada, pois é a não
identidade, o lugar dos desvios que os discursos identitários tratam de
normatizar e normalizar.
Daí é possível compreender porque a escrita do historiador é tão
normatizada; porque deve conter determinados padrões explicativos
para se fazer entender, aceita e compreendida. Ela remete à identidade
que escapa todo o tempo por desvãos metafóricos. Assim, para conjurar
o caráter errático da metáfora, o historiador faz apelo para as ideologias
ou para as representações, dependendo da ótica adotada, pois tanto as
primeiras quanto as segundas são dotadas de sentidos únicos se são bem
“trabalhadas” pela escrita.
Mas é interessante perceber que esses padrões tão arraigados são
também dispersos no tempo. A escrita historiográfica com suas certezas
de hoje se tornará erro amanhã, do mesmo modo que as de ontem se
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tornaram obsoletas, pueris, inocentes ou mal intencionadas e erradas. A
conjuração da metáfora só é possível no instante que se produz escrita
literal, mas ela permanece enquanto heterotopia do próprio discurso.
Mas é possível outra escrita da história? Não totalmente. Se
pensarmos junto com Michel de Certeau a produção historiográfica,
deveremos reconhecer, de início, o lugar de produção. Há uma forma
de produzir história e ela está determinada pela “instituição histórica”,
isto é, o fazer deve ser feito de acordo com padrões e normas
“científicos” ou, no melhor dos casos, acadêmicos. Não é qualquer um
que pode escrever história, mas aqueles dotados de determinados
conhecimentos e práticas, pois a escrita será validada pelos pares e “este
discurso – e o grupo que o produz – faz o historiador, mesmo que a
ideologia atomista de uma profissão ‘liberal’ mantenha a ficção do
sujeito autor e deixe de acreditar que a pesquisa individual constrói a
história” (CERTEAU, 1982, p.72). A crença num sujeito independente
e produtor de saber é correlata à noção de que a sua escrita é sempre
literal e os documentos se rementem ao real.
A instituição História é o lugar no qual permite ou interdita a escrita,
afinal a instituição “torna possíveis certas pesquisas em função de
conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis;
exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado;
representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes
na análise” (ibidem, p.77). A possibilidade ou a interdição se
apresentam como “naturais”, pois é assim que tem de ser ou isto é
realmente importante, aquilo nem tanto e aquilo outro nem se deve
falar. Há assuntos completamente tabus na nossa sociedade, mas disso
não queremos saber.
Além do interdito há o normatizado e, seguindo ainda Michel de
Certeau, o historiador:
trabalha sobre um material para transformá-lo em história.
Empreende uma manipulação que, como as outras, obedece a
regras. Manipulação semelhante é aquela feita com o mineral já
refinado. Transformando inicialmente matérias-primas (uma
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informação primária) em produtos standard (informações
secundárias), ele os transporta de uma região da cultura (as
‘curiosidades’, os arquivos, as coleções, etc.) para outra (a
história) (ibidem, p.79).
Não esquecendo de que os próprios arquivos já são “refinados”,
quer dizer, já passaram por uma seleção, uma separação. Portanto, o
historiador, ao obedecer a regras de produção, deve enquadrar a sua
escrita numa espécie de “gosto médio” de seus pares. Este
procedimento permite a aceitação do produto. Separar e reunir: a
operação do historiador implica numa produção num sentido mais
integral, isto é, ele produz história. Para ajudar no raciocínio: “longe de
aceitar os ‘dados’, ele os constitui. O material é criado por ações
combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo
também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego
coerente” (ibidem, p.81).
Isso nos leva a questão, o objeto histórico se encontra à espera do
historiador para ser desvendado? Se o material é criado pelo historiador,
logo ele não está dado, não se encontra disponível para ser garimpado
como ouro de aluvião. Ele deve ser produzido plenamente, logo, o
objeto não é natural. Não é encontrado naturalmente. Mais ceticamente
pode-se dizer que o fato “Segunda Guerra Mundial” está dado. Sim num
sentido, não em outro. O que se escolhe para narrar da Segunda Guerra?
Qual é a abordagem? Qual o material que será observado? Se ficarmos
no nível das estratégias de aliados e eixo, será um recorte, uma criação,
pois a guerra não se desenrola unicamente nos bunkers dos ministérios
da defesa. A possibilidade de criar um objeto cresce exponencialmente
quando multiplicamos o efeito da escrita para “uma visão de baixo”,
aquela dos soldados. Podemos ainda estender para as famílias, para as
economias das pequenas cidades, para o sistema de saúde e assim por
diante. Todos esses “objetos” não estão prontos à espera da narrativa
que os traga a lume. São produções historiográficas.
A escrita é a mise em scène de uma representação histórica, pois
busca a identidade, mas, se compreendermos que o relato histórico
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como metáfora, então nos afastamos da hipótese identitária e passamos
à diversidade, ou ainda, a metáfora é a dispersão do sujeito constituinte.
Porém, a história praticada marca a identidade, pelo menos enquanto
fundamento de sua própria formulação e “não existe relato histórico no
qual não esteja explicitada a relação com o corpo social e com uma
instituição de saber” (ibidem, p.93).
Este pertencimento impede, até certo ponto, encontrar na origem de
uma série de eventos a dispersão, a heterotopia. Por isso, o recurso à
citação é exaustiva nos discursos científicos, pois:
a linguagem citada tem por função comprovar o discurso: como
referencial, introduz nele um efeito de real; e por seu
esgotamento remete, discretamente, a um lugar de autoridade.
Sob este aspecto, a estrutura desdobrada do discurso funciona à
maneira de uma maquinaria que extrai da citação uma
verossimilhança do relato e uma validade do saber. Ela produz
credibilidade (ibidem, p.101).
A escrita ganha validade e atesta “o que aconteceu”, produzindo o
efeito de real desejado e tornando o discurso histórico verdadeiro. Por
isso, a metáfora deve passar ao largo. Ela instaura o quiproquó e a
dispersão. Ela pode ser aceita se domesticada, se o seu uso for para dar
mais estilo ao efeito de real, mas no estado bruto, tomando o discurso
como metáfora do passado, o documento como metáfora do real e as
metáforas no interior do próprio documento, isso produz um intenso
ruído e não instaura a identidade.
Por isso que “citando, o discurso transforma o citado em fonte de
credibilidade e léxico de um saber. Mas, por isso mesmo, coloca o leitor
na posição do que é citado; ele o introduz na relação entre um saber e
um não-saber. Dito de outra maneira, o discurso produz um contrato
enunciativo entre o remetente e o destinatário” (ibidem, p.102).
Incluindo o leitor na relação de saber, o discurso histórico provoca a
sensação de que o que ele produz é a identidade do sujeito apartado dela
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pelo tempo que passa, daí também o exercício da cronologia nos relatos.
A temporalidade passado-presente produz o efeito de que o sujeito
destinatário está no topo de uma cadeia evolutiva, portanto, mais
consciente e mais “sabedor” do que aqueles que viveram em outros
tempos.
O continuum na escrita é o corolário da identidade, a certeza de que
não haverá distância ou corte na constituição do sujeito:
A história contínua é o correlato indispensável à função
fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou
poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará
sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de
que o sujeito poderá um dia – sob a forma da consciência
histórica –, se apropriar, novamente, de todas essas coisas
mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre
elas e encontrar o que se pode chamar sua morada (FOUCAULT,
1986, p.14-15).
Finalmente poderíamos perguntar se é possível uma história da
dispersão. Sim, ela teria de lançar mão de outros procedimentos para se
constituir. Temos um ótimo exemplo com a História da Loucura, de
Michel Foucault. Ele não persegue ao longo da sua escrita a evolução
do conceito de loucura e nem de como, infantilmente, outras eras
tratavam os loucos, mas trata da própria constituição da ideia de
loucura, ou seja, trata dos discursos que conformaram a prática em torno
da loucura em cada época, portanto, não é uma curva evolutiva, mas
quadros que se formaram num determinado momento e depois
desapareceram nos levando a pensar que o nosso próprio quadro sobre
a loucura irá desaparecer para dar lugar a novas práticas sociais.
Nesse tipo de história, não temos a busca pela constituição da
identidade, entendida ela própria como fruto de práticas. Dessa forma,
temos no início a metáfora, a remissão a algo que essencialmente não é
O HISTORIADOR E A METÁFORA
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a verdade, mas formas de dizer que existem práticas que constituem a
verdade e de imaginá-las.
A metáfora, se o historiador adotá-la, o lembrará de que o discurso
é um jogo de remissões e de imaginação. Talvez, assim, poder-se-ia
descobrir o papel do historiador na sociedade: contar história.
Notas
* Este texto foi possível graças à bolsa-produtividade da Fundação Araucária. 1 “Mais chez Aristote, le jugement négatif (...) de ce qu’il appelle metaphora dans des
domaines improtants, à la fois dans sa logique et dans sa philosophie de la nature, est bien plus marqué. Il soutient par exemple qu’il faut éviter la métaphore et les
expressions métaphoriques dans la définition.” 2 “Mon argument est donc que la distinction entre le littéral et me métaphorique – comme la distinction entre me lythe (en tant que fiction) et le récit rationnel – n’était pas seulement, à l’origine, un élément neutre et innocent d’analyse logique, mais une
arme forgée pour défendre un territoire, repousser l’ennemi, humilier les rivaux.” 3 “Dans son exigence de clarté, il exclut la métaphore parce que ‘tout ce qui se dit par
métaphore est obscur.” 4 “Dire cela est peut-être approprié pour des raisons poétiques – car la métaphore est poétique – mais ça ne l’est pas pour compreendre la nature [de la chose]. D’autres images utilisées par Empedocle et certains philosophes présocratiques sont condamnées parce que qu’elles sont soit obscures, soit grossières, ou qu’elles ont besoin d’être nuancées, ou parce que les similitudes sur lesquelles elles sont fondées sont superficielles, ou même parce que les exemples comparées n’ont aucun point
commun”. 5 “La vérité en histoire dérive, en dernière instance, de la visée référentielle des
discours des témoins.”
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Universitária, 1982.
FOUCAULT, M. (1986). A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
André Luiz Joanilho
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Palavras-chave: História; escrita; literalidade
Keywords: History; writing; literalness