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Revista de Economia Política 32 (1), 2012 87 Karl Popper versus Theodor Adorno: lições de um confronto histórico ANGELA GANEM* Karl Popper versus Theodor Adorno: Lessons from a historical confrontation. In 1961, during the Congress of the German Society of Sociology, two great theoreti- cal references of the XX century faced in a historical debate about the logic of the social sciences. In addition to methodological issues strict sense, the confrontation became known as a debate between positivism and dialectic. The article first deals with the theoretical trajectories of Popper and Adorno and the relation of their theo- ries with their political and ideological certainties. On one hand, the trajectory of the Popperian epistemology is examined, its contributions and vigorous attacks on Marx in what he called ‘poverty of historicism” and false predictive Marxist world, and, on the other hand, the role of Adorno in the Frankfurt School, his criticism of totalitarianism and the defense of a critical emancipatory reason. The article also deals with the confrontation itself, the exposure of Popper’s twenty-seven theses that culminate with the situation logic and the method of the economy as exemplary for the social sciences and Adorno’s critical perspective of sociology and society as non-separable objects. In conclusion we show how the articulation of theory with the weltanschauung of each author helps to clarify the terms of the debate and how the confrontation contributed unequivocally to the dynamics of scientific progress and for the critical history of the ideas. Keywords: Popper and Adorno’s debate; dialects; positivism; popperian’s method. JEL Classification: B40. INTRODUçãO Em 1961, no Congresso da Sociedade de Sociologia Alemã, duas grandes re- ferências teóricas do século XX enfrentaram-se num debate histórico em torno da lógica das ciências sociais. Além de questões metodológicas stricto sensu, o con- Revista de Economia Política, vol 32, nº 1 (126), pp 87-108, janeiro-março/2012 * Professora visitante do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. Submetido: 8/outubro/2009; Aprovado: 18/junho/2010.

O Debate Popper - Adorno

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Livro de Simone GANEM.Retrata o debate travado entre Karl Popper e Theodor Adorno acerca do positivismo nas ciências do espírito.A

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  • Revista de Economia Poltica 32 (1), 2012 87

    karl Popper versus theodor Adorno: lies de um confronto histrico

    ANgeLA gANeM*

    Karl Popper versus Theodor Adorno: Lessons from a historical confrontation. In 1961, during the Congress of the German Society of Sociology, two great theoreti-cal references of the XX century faced in a historical debate about the logic of the social sciences. In addition to methodological issues strict sense, the confrontation became known as a debate between positivism and dialectic. The article first deals with the theoretical trajectories of Popper and Adorno and the relation of their theo-ries with their political and ideological certainties. On one hand, the trajectory of the Popperian epistemology is examined, its contributions and vigorous attacks on Marx in what he called poverty of historicism and false predictive Marxist world, and, on the other hand, the role of Adorno in the Frankfurt School, his criticism of totalitarianism and the defense of a critical emancipatory reason. The article also deals with the confrontation itself, the exposure of Poppers twenty-seven theses that culminate with the situation logic and the method of the economy as exemplary for the social sciences and Adornos critical perspective of sociology and society as non-separable objects. In conclusion we show how the articulation of theory with the weltanschauung of each author helps to clarify the terms of the debate and how the confrontation contributed unequivocally to the dynamics of scientific progress and for the critical history of the ideas.

    Keywords: Popper and Adornos debate; dialects; positivism; popperians method. JEL Classification: B40.

    INTRODUO

    Em 1961, no Congresso da Sociedade de Sociologia Alem, duas grandes re-ferncias tericas do sculo XX enfrentaram-se num debate histrico em torno da lgica das cincias sociais. Alm de questes metodolgicas stricto sensu, o con-

    Revista de Economia Poltica, vol 32, n 1 (126), pp 87-108, janeiro-maro/2012

    * Professora visitante do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. Submetido: 8/outubro/2009; Aprovado: 18/junho/2010.

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    fronto ficou conhecido como o debate entre o positivismo e a dialtica. O enfren-tamento entre Popper e Adorno, o autor consagrado como o maior epistemlogo do sculo XX e um dos mais influentes autores da Escola de Frankfurt, guarda uma grande distncia da possibilidade da boa conversao de MacCloskey. Entretanto, exatamente na reafirmao da absoluta impossibilidade de convergncia, de con-senso, que reside o grande interesse desse debate.

    O sculo XX foi rico em debates polarizados, em confrontos tericos, polticos e ideolgicos, reflexo, entre muitas outras ocorrncias, da instigante e problemti-ca experincia do socialismo real e do horror irracional do holocausto. Do ponto de vista filosfico, severas crticas s limitaes e aos descaminhos do projeto eman-cipador iluminista partiam das mais variadas vertentes. nesse contexto que o artigo se move. Na primeira seo, pretende-se revelar quem so os dois autores/atores desse debate, suas trajetrias tericas e a relao que suas teorias guardam com suas convices poltico-ideolgicas. Para tanto, examinaremos a trajetria epistemolgica popperiana, suas contribuies, bem como as crticas contundentes que fez a Marx, identificadas na misria do historicismo e no que denominou de falso mundo proftico marxista. Em seguida, examinaremos o papel de Adorno na Escola de Frankfurt, suas crticas ao totalitarismo e sua defesa de uma razo crti-ca emancipatria. A segunda seo trata do debate em si. De um lado, situam-se as 27 teses de Popper, que culminam com a lgica situacional e o mtodo da economia como exemplar para as cincias sociais. De outro, a perspectiva crtica da sociolo-gia e da sociedade como objetos indissociveis para Adorno. Finalmente, nas con-cluses, mostramos como a articulao da teoria com a viso de mundo de cada autor um importante elemento esclarecedor dos termos do debate. A maior lio que retiramos desse episdio que o confronto, o debate corajoso das ideias, para alm de deixar um lastro de interesse pelas obras e pela histria dos autores, con-tribuiu de forma inequvoca para a dinmica do progresso cientfico e para a his-tria crtica das ideias.

    OS DOIS ATORES E SUAS TRAJETRIAS NO CONTURBADO SCULO XX

    O sculo em que viveram nossos dois atores, Karl Popper e Theodor Adorno, foi marcado pelo desencantamento das possibilidades da razo humana na cons-truo de um mundo novo, cujas causas mais contundentes foram o holocausto e o totalitarismo stalinista. Vozes democrticas dissonantes marcaram sua posio contra uma razo totalitria, entre elas a de Hannah Arendt, uma filsofa sensvel s agruras do sculo XX e que no passou ao largo do desastre poltico produzido pelo totalitarismo, fosse ele fascista ou stalinista, retirando dele lies e consequn-cias que marcaram profundamente a sua teoria. De nada valeram as nuanas e defesas de Marx contidas em suas obras, tampouco a sua crtica degradao cultural das sociedades capitalistas ou a posio clara que assumiu com relao a

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    uma ao poltica emancipatria. Arendt pagou um preo alto por ter criticado o stalinismo e a ideia de uma ordem socialista fruto de uma razo fabricada.

    Dentro da filiao marxista, a Escola de Frankfurt conseguiu construir uma viso crtica da crise terica e poltica do sculo XX consolidando a Teoria Crtica, termo que acabou designando a maior contribuio terica da Escola. Adorno, um dos seus baluartes, situa-se entre os grandes autores que sustentaram o revigora-mento do marxismo na Alemanha, munido de novas perspectivas tericas e afina-do com a discusso imposta pelos rumos do capitalismo no sculo XX. Construiu uma arguta crtica s expresses contemporneas do totalitarismo, alm de ter percebido as novas formas de dominao e de resistncia. Constatou a existncia de uma conscincia manipulada por uma indstria cultural nociva e observou que a arte e a filosofia poderiam ser antdotos diante de uma experincia humana des-tituda de sentido.

    Numa posio diametralmente oposta, dois autores de peso definiram-se como intelectuais discordantes do socialismo como projeto de sociedade Friedrich A. Hayek, um dos mais importantes tericos e idelogos do neoliberalismo, e Karl Popper, a maior referncia entre os epistemlogos do sculo XX. Ambos foram duros com a ideia de um fim da histria associada ao proftico mundo socialista marxista. Guardadas as diferenas de mtodo, a Misria do historicismo de 1944 e A sociedade aberta e seus inimigos de 1945, ambos de Popper, e o Caminho da servido, de Hayek, publicado originalmente em 1946, tm o mesmo alvo: desmon-tar cientificamente o argumento da possibilidade de uma leitura da histria e der-rubar a viso proftica do socialismo decorrente de supostas leis imanentes. No lugar do socialismo, temos a apologia do mercado para Hayek e, em Popper, a crena na eficincia de reformas institucionais. A repaginao dessa perspectiva expressou-se na viso extremada de Hayek, uma forma caricaturada da ideia de inexorabilidade, desta feita do mercado. Este, com suas leis imanentes (as regras necessrias da concorrncia), determinaria um processo sem sujeito que culminaria na democracia liberal, a face poltica da vitria da lgica do mercado e da globa-lizao.

    Na dcada de 1960, trinta anos antes da ascenso do discurso do mercado assentado na inexorabilidade, debatiam-se nos crculos acadmicos teorias e mto-dos que dessem conta da lgica das cincias sociais. Com perspectivas diferentes, os dois autores aqui tratados confrontaram-se num debate histrico. Para entender as nuanas tericas de ambos e os termos do debate, voltaremos no tempo da his-tria de nossos personagens centrais e analisaremos suas trajetrias no conturbado sculo XX.

    karl Popper: trajetria terica e viso de mundo

    interessante a trajetria terica de Popper entre a primeira publicao da Lgica da descoberta cientfica, em 1934, publicada em ingls em 1959 (quando adquire notoriedade), e a Lgica das cincias sociais de 1961, no qual esto as suas 27 teses e a apresentao do mtodo das cincias sociais ou mtodo da anlise

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    situacional. possvel identificar quatro questes que percorrem aquela trajetria e que fornecem boas pistas para o entendimento do autor: a) a novidade do mto-do falibilista aplicado s chamadas cincias experimentais (sem distino); b) as diversas tentativas em toda a sua obra de marcar uma posio antipositivista; c) uma perspectiva terico-ideolgica crtica ao historicismo (leia-se marxismo) e ao psicologismo e, finalmente, d) o mtodo da lgica situacional que revela o esforo terico de levar em conta a especificidade das cincias sociais e que pode ser lido como o resultado desse longo percurso terico e crtico.

    Popper se considera um racionalista crtico. Mas a que racionalismo ele dirige a sua crtica? Antes de tudo, Popper identifica-se com Heidegger na crtica ao ho-mem moderno que supostamente v a verdade. O homem da revoluo cientfica moderna pretende descobrir a verdade e projet-la para a eternidade, tal qual o demnio do matemtico Laplace. Para ele preciso superar pela crtica o induti-vismo baconiano ingnuo (a ideia de uma cincia ditada pelo imprio das observa-es) e o desvario de uma razo onipotente que descobre a verdade por meio do raciocnio de dedutivo. Popper considera que, atravs de sua razo crtica, estaria superando Descartes, Bacon e ainda a tentativa de sntese kantiana nos juzos sin-tticos a priori Consoante com o seu tempo, em que a razo moderna sofre abalos ssmicos, Popper, mediante seu mtodo dedutivo, acena com a provisoriedade do conhecimento, posto que limitado por nossa ignorncia latente. Seu compromisso com proposies constantemente renovadas por novas conjecturas, frutos da correo constante de erros. Tateando entre erros e acertos, o critrio que d subs-tncia ao seu mtodo o da falseabilidade, ou o confronto rigoroso e impiedoso das teorias com a observao e a experincia. Em ltima instncia, trata-se da eli-minao das teorias incapazes de resistir aos testes e da sua substituio por outras conjecturas especulativas mais promissoras. O critrio de falseabilidade, termme-tro do mtodo, define o que objeto significativo para as cincias experimentais e que nos permite deduzir, com o auxlio de condies iniciais, os efeitos que se pretende explicar. Mas esse critrio demarcatrio, pois separa as cincias empri-cas, a matemtica e a lgica dos sistemas metafsicos (Popper, 1989 [1959]).

    Entretanto, Popper alerta que seu objetivo no o de provocar a derrocada da Metafsica, como pretendem os positivistas, desqualificando-a e jogando-a no cam-po da no significao, da conversa vazia. Ao contrrio, ele considera que esse movimento assptico dos positivistas, cientificamente neutro e expurgado de todos os valores, fez com que se aprisionasse a prpria cincia no reino da metafsica. Nas suas palavras: Os positivistas, ao tentarem aniquilar com a metafsica, aniquilam com a cincia natural e, em vez de afastar a metafsica das cincias empricas, levam invaso do reino cientfico da metafsica (Popper, 1989 [1959]).

    marcante a preocupao de Popper em se distanciar do positivismo. Se con-seguiu ou no o seu intento algo absolutamente controverso, sobretudo, se ana-lisarmos luz da perspectiva dialtica, como Adorno o fez. Entretanto mesmo Adorno sugere que a teoria de Popper se diferencia dos positivistas tradicionais. Ele afirma: A teoria de Popper mais gil do que o positivismo usual Ela no insiste to irrefletidamente na neutralidade dos valores (Adorno,1975 [1974]). Ainda que

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    se identifique Popper com o positivismo, no podemos desconsiderar as nuanas de sua teoria, sob pena de empobrecer o debate e dificultar a compreenso do autor. Voltaremos a esse ponto quando do embate entre ele e Adorno.

    Popper, alm disso, se posiciona contra o pensamento dogmtico. Este pode ser entendido pela perseguio de uma verdade absoluta ditada pela observao ou pela lgica (positivismo), mas tambm pela preocupao da descoberta de leis imanentes e inexorveis da histria (historicismo). O antdoto de que Popper se utiliza contra a onipotncia da razo o relativismo, ou a ideia de que uma teoria jamais atinge a verdade, mesmo que ela tenha superado vitoriosamente os testes rigorosos. Para ele, o mximo que se pode afirmar que a teoria atual superior s que a precederam, ou a melhor disponvel. Ela jamais ser a verdadeira. O pen-samento dogmtico ele o identifica, sobretudo, no marxismo, alvo de suas mais severas crticas, mas tambm de contundentes elogios. Uma relao de distancia-mento e de admirao terica. disso que trataremos a seguir.

    Dez anos aps a Lgica da descoberta cientfica, de 1934, Popper publica duas obras que fizeram sucesso e o alaram ao palco dos debates mais importantes do sculo XX. Esses debates tratavam das agruras do socialismo real e das dificuldades tericas do socialismo cientfico, bem como da abertura de possibilidades de refor-mas pelo prprio capitalismo. A Misria do historicismo, de 1944, (Popper 1956, [1944]) e A sociedade aberta e seus inimigos, de 1945 (Popper, 1979), tinham como objetivo, como j adiantamos, desmontar a possibilidade de encontrar leis gerais unvocas para a histria, desacreditar a profecia socialista e substituir a utopia socialista por um reformismo, ideal que ele considerara mais modesto e mais vivel numa sociedade democrtica liberal.

    Na Misria do historicismo (1956 [1944]), Popper define o objeto de sua an-lise como uma crtica ao historicismo, identificado na misso de estabelecer leis, modelos, ritmos ou tendncias gerais dos desenvolvimentos da histria com obje-tivo de prever o seu fim. O principal historicista para Popper Marx e o fim esca-tolgico que ele propala o de uma sociedade sem classes, socialista. Contra essa tese, Popper advoga trs posies explicitadas de antemo e que desenvolve em argumentos ao longo do livro: 1) impossvel predizer o curso futuro da histria e as cincias sociais no tm a misso de estabelecer leis do desenvolvimento da histria; 2) o mtodo das cincias sociais no to distante das cincias naturais, ao contrrio, existe uma unidade metodolgica; 3) importante substituir o ideal utpico do plano da reconstruo socialista por um ideal mais modesto expresso num reformismo fragmentrio.1

    Nesse texto, Popper discorre sobre os pontos controversos e crticos, tanto das teses naturalistas como das chamadas teses antinaturalistas do historicismo. Ele

    1 Popper foi socialista quando jovem e, em 1919, se juntou aos comunistas nas contestaes da esquerda austraca no conturbado ps-guerra. Entretanto, diante da morte de alguns companheiros, tornou-se crtico do comunismo, sobretudo da ideia de que necessrio usar meios violentos para alcanar os fins (Hacohen, 2000).

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    ataca a crena central do historicismo de que a funo das cincias sociais seria desvendar a lei da evoluo da sociedade e predizer seu futuro. Contra uma ordem invarivel na evoluo biolgica ou sociolgica, Popper afirma a ideia de um pro-cesso que se efetua de acordo com leis causais em que elas mesmas e/ou as suas consequncias devem ser testadas. O mtodo hipottico da prova, seu mtodo aplicvel a todas as cincias experimentais, oferece explicaes causais dedutivas e ainda a possibilidade de test-las. Nisso residiria a sua novidade terica, seu racio-nalismo crtico e a diferena entre o seu mtodo e o de Marx uma abertura para mltiplas possibilidades, e no algo predeterminado e previsvel (Popper, 1956 [1944]).

    Embora ele tenha explorado a crtica ao materialismo histrico na Misria ser na Sociedade aberta e seus inimigos publicada originalmente em 1945 (Popper, 1979) que seus estudos se aprofundam, tomam fora e consistncia, dando lugar no apenas a crticas, como a elogios contribuio de Marx. Em primeiro lugar ele reconhece a importncia e a grandeza da teoria humanista de Marx e afirma textualmente que a contribuio do marxismo foi de tal ordem que retornar s teorias sociais anteriores seria um grande atraso. Ele afirma que Marx foi um dos melhores adversrios da hipocrisia e do farisasmo e que consagrou todas as suas foras a forjar armas que ele considerava cientficas destinadas a melhorar a sorte dos oprimidos. Em outro trecho afirma que contrariamente aos hegelianos de di-reita, Marx se esforou para resolver pelos mtodos racionais os problemas mais agudos de seu tempo Que ele no tenha conseguido no lhe tira o mrito A cin-cia s progride graas `a experincia [...] Apesar de todas essas qualidades ele foi um falso profeta E finaliza, afirmando que no somente as profecias relacionadas ao curso da histria no foram realizadas como ele induziu ao erro aqueles que acreditaram que a profecia histrica era um mtodo cientfico que permitia resolver os problemas sociais (Traduo livre da edio francesa, Popper, 1979).

    Analisando o mtodo de Marx, Popper desenvolve seu argumento crtico cen-tral que atacar o determinismo sociolgico e defender a ideia de uma sociedade aberta s reformas. Quando a sociedade pensa que descobriu a pista da lei natural que preside o seu movimento, ela no pode superar de um salto nem abolir as fases do seu desenvolvimento natural, nos diz Popper. Neste quadro de previsibilidade no h engenharia social que possa reformar ou corrigir ou, dito em outros termos, melhorar a sociedade pela razo ou pelas instituies. interessante como esta perspectiva se diferencia da de Hayek, seu conterrneo, que considera Marx um racional-construtivista que concebia a ordem socialista como fruto do plano ou do desgnio de uma classe operria consciente.2 So dignas de nota as diferenas te-rico-polticas entre Hayek e Popper, ambos severos crticos do que chamaram de

    2 Hayek constri sua crtica a Marx concentrando naquilo que seria o pecado capital da razo: uma razo onipotente oriunda da classe operria que transformaria a sociedade numa mquina racional, uma razo que capaz de digerir a sua prpria complexidade e que constri pela deliberao de seus sujeitos sociais um devir socialista (Hayek, 1985).

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    profecia marxista. Popper, ao contrrio de Hayek, acredita na engenharia social, na capacidade de reformar as instituies e com isso aperfeioar a democracia liberal. J Hayek, um fundamentalista do mercado, avesso a toda e qualquer interveno, a qualquer engenharia social.

    Para Popper, um dos problemas do socialismo cientfico o de no ser uma tecnologia social. Sua tarefa seria, nos seus termos, a de anunciar messianicamente a chegada do socialismo e de aceler-lo, advertindo aos homens o papel que tero de jogar no desenvolvimento da histria Os personagens seriam para Popper ma-rionetes movidos pelos fios da economia, por foras histricas. Um dia, ele afirma de forma irnica, essas marionetes destruiro o sistema e ns viveremos no reino da liberdade. Consoante, portanto, com o materialismo histrico, as classes sociais desempenhariam um papel central, pois a histria de toda sociedade a histria de luta de classes. No materialismo histrico o sistema que nos obriga a agir de acordo com os interesses de classe, crendo que so nossos interesses. Nesse quadro, afirma Popper, levantando o ponto que ele considera crtico, toda engenharia social impossvel, toda tecnologia social, intil. Uma outra crtica que a chave da histria e da histria das ideias se encontra na relao do homem com o mundo material que o cerca (fundamento da teoria de classes). Isto faria toda a diferena, pois seria na evoluo da realidade econmica e na sua capacidade de produzir uma modificao real que residiriam as potencialidades da revoluo. Esta comearia quando as foras produtivas materiais da sociedade entrassem em coliso com as relaes de produo. Ora, isso definiria para Popper um vis economicista da teoria de Marx, que absolutiza a economia e no confere s ideias um papel deter-minante, uma crtica que apenas engrossa o que, no interior do prprio marxismo, j tinha sido apontado como uma leitura empobrecedora e adulterada da teoria de Marx. Nada de novo.

    Na Sociedade aberta, de 1945, observamos em Popper o primeiro esforo para romper com a ideia de um mtodo unvoco para as cincias experimentais e os indcios de querer trabalhar a especificidade das cincias sociais, o que s vai adquirir seus contornos definitivos na Lgica das cincias sociais, em 1961 (Popper, 1978). interessante observar como a crtica ao psicologismo e a perspectiva de uma autonomia para a sociologia, partes integrantes de sua teoria, tm pontos de confluncia com a crtica marxista, seu alvo preferido.

    Popper revela simpatia pelo antipsicologismo de Marx, definido pela mxima no a conscincia dos homens que determina a sua existncia, mas a sua exis-tncia social que determina a sua conscincia A autonomia da sociologia, confor-me ele a define, se d porque os atos humanos no podem ser explicados por motivos e desejos psquicos e dependem, para a sua real compreenso, da conside-rao das condies gerais, do entorno social, das instituies. Popper concorda com Marx na crtica que ele faz aos psicologistas, de que a instituio mercado seria determinada pela psicologia do homem econmico e seu interesse pessoal na perseguio da riqueza. Alm de equivocada, a teoria alimentaria a tese do compl. Mas embora Popper sublinhe que os aspectos psicolgicos tm um papel secund-

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    rio em relao lgica da situao3 e que a sociologia tem a sua autonomia e im-portncia para a compreenso de uma lgica dos fenmenos sociais, ele fez questo de marcar uma diferena importante com relao ao mtodo marxista. Seu mtodo no holista, mas individualista e baseado no princpio da racionalidade.4 Exami-naremos oportunamente esse delicado e importante ponto no confronto entre ele e Adorno.

    Em vrias outras passagens elogiosas a Marx, Popper afirma que ele faz uma boa leitura da lgica da situao de classe para o capitalismo sem entraves do s-culo XIX.5 Popper vai utilizar a mesma expresso lgica da situao (sem a palavra classe) para desenvolver mais adiante suas teses sobre o mtodo das cincias sociais e da economia, em particular, rompendo com o ideal de uma cincia unificada. Popper reconhece o mrito de Marx ao ter explicado o fenmeno da explorao e ter demonstrado a importncia social dos ciclos econmicos, complexos e mal conhecidos at ento. Entretanto, o erro da tese marxista apontado por Popper na Misria, como j assinalamos, o determinismo ditado pela lei do antagonismo da luta de classes sociais e a profecia da revoluo (agora mais qualificada pelas refe-rncias a O capital), de que a situao se agravaria atravs da lei do empobreci-mento. A tendncia queda na taxa de lucro ameaa de runa os empresrios que se defendem aumentando a jornada de trabalho. Essa constatao de Marx soa correta para Popper, mas ele ressalta que na histria do capitalismo a situao dos operrios, ao invs de piorar, melhorou graas s negociaes. Popper rebate teo-ricamente as teses marxistas e advoga que para o campo poltico-normativo o melhor a negociao para a obteno de melhoras progressivas do capitalismo, o que significa uma diminuio do antagonismo entre as classes sociais.

    No plano epistemolgico, Popper construir o mtodo da anlise situacional para as cincias sociais, elegendo a economia como modelo exemplar. Veremos que esse mtodo pode ser lido como uma correo crtica ao mtodo dedutivo, em l-tima anlise, um reformismo epistemolgico. O mtodo, suas potencialidades e limitaes, e ainda a natureza do racionalismo crtico popperiano sero examinados na apresentao e nos comentrios ao debate. A seguir, passemos trajetria terica do nosso segundo autor-ator, Theodor Adorno.

    3 Num artigo de 1945, intitulado A autonomia da sociologia, Popper esboa o princpio da racionalidade no quadro de uma lgica da situao, afirmando que o mtodo da anlise econmica no est baseado em nenhum suposto psicolgico que se refira racionalidade ou outro fator da natureza humana Ao contrrio, quando nos referimos conduta racional ou irracional, nos referimos a uma lgica que est conforme com uma lgica de uma situao particular Weber j dizia que o racional existe depois das normas do que considerado racional (Popper, 1995).4 Sobre o princpio da racionalidade em Popper, consultar El Principio de Racionalidad, em Miller, D. (org.) Popper Escritos Selectos Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1995 5 Popper afirma textualmente que [...] a maneira com que Marx procurou explicar o funcionamento das instituies do sistema industrial pela lgica da situao de classe me parece admirvel pelo menos no que concerne ao capitalismo sem entrave do sculo passado (Popper, 1979).

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    theodor Adorno e a escola de Frankfurt

    A trajetria terica e biogrfica do filsofo Theodor Wiesengrund-Adorno est intimamente ligada ao grupo mais importante de pensadores do Instituto de Pesqui-sa Sociais de Frankfurt, fundado em 1924 e conhecido como Escola de Frankfurt, de tradio marxista. Entre eles, alm de Adorno, cabe mencionar Walter Benjamin, Max Horkheimer e mais tarde o herdeiro da tradio, Jrgen Habermas. Embora outros nomes tenham se destacado, como o de Herbert Marcuse, por exemplo, possvel identificar uma unidade terica entre aqueles quatro autores. Essa unidade se d pela chamada Teoria Crtica, em que a razo s pode ser defendida pela via de uma crtica a ela mesma. Podemos afirmar que os trabalhos desse grupo tratam de uma reflexo crtica sobre os principais aspectos do capitalismo, da sociedade e da cultura do sculo XX, no quadro de experincias do nazismo e do stalinismo. Por suas posies, com a ascenso do nacional-socialismo na Alemanha, a Escola foi obrigada a transferir-se para Genebra em 1933, em seguida para Paris e, finalmen-te, para Nova York. Somente em 1950, j no ps-guerra, que os principais inte-grantes puderam regressar Alemanha e reorganiz-la.

    Adorno nasceu em 1903 e morreu em 1969, em Frankfurt. Na dcada de 1930, refugiado na Inglaterra, lecionou na Universidade de Oxford. Por essa poca, es-creveu vrios ensaios crticos sobre o carter social e potencialmente transformador da msica, da qual era um estudioso e profundo conhecedor. No fim da dcada, mudou-se para os Estados Unidos, onde escreveu com Horkheimer a obra seminal Dialtica do esclarecimento, publicada em 1947. Em 1950 regressou Alemanha para reorganizar a Escola em companhia de Horkheimer. Escreveu inmeros tra-balhos sobre os mais variados assuntos culturais e filosficos. Dentre eles um im-portante trabalho em que apresenta a sua compreenso sobre o mtodo dialtico: a Dialtica negativa, em 1966.

    Tanto na Dialtica do esclarecimento como na Dialtica negativa, Adorno dedicou-se dialtica, entendendo-a como um mtodo crtico capaz de enfrentar os inmeros desafios tericos ditados pela hegemonia do pensamento positivista e pelo idealismo hegeliano. Somaram-se a essas questes, outras, concernentes re-produo ideolgica do capitalismo contemporneo e aquelas ligadas s formas totalitrias stalinistas e nazistas. A dialtica, para Adorno, teria a incumbncia de ser uma reflexo filosfica sobre aquilo de que os conceitos e anlises no do conta. Ela deveria se constituir num pensar ousado sobre exatamente o que lhe escapa, alis a nica sada para se pensar filosoficamente.

    Na Dialtica do esclarecimento (1985 [1944]), os autores Adorno e Horkhei-mer avisam que o positivismo assumiu a magistratura de uma razo esclarecida em que nada supostamente lhe escaparia. Os fenmenos so traduzidos em um sistema de vrios signos interligados e o pensamento se transforma em instrumento mate-mtico. A lgica formal na sua expresso mxima, atravs da matemtica, fornece o esquema de calculabilidade do mundo; o procedimento matemtico torna-se o ritual do pensamento, instaurando-se como necessrio e objetivo. Nesse quadro, o desconhecido, o opaco, ou ainda, o inexplicvel, tornam-se incgnitas de equaes

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    no quadro de teoremas matemticos. Entretanto, o que aparece como triunfo de uma racionalidade objetiva e a submisso de todo ente ao formalismo lgico tem por preo a subordinao obediente da razo ao imediatamente dado. No quadro do positivismo e da razo esclarecida, o factual tem a ltima palavra, o conheci-mento se restringe repetio e o pensamento transforma-se em tautologia (Ador-no e Horkheimer, 1985 [1944]).

    Ao identificar o mundo matematizado com a verdade, o pensamento positivis-ta acredita estar a salvo do retorno do mtico ou do destitudo de significado. Mas o esclarecimento na sua obsesso matematizante a prpria radicalizao da an-gstia mtica. Aprisionadas pelo mito, tanto a cincia como a tcnica refletem o desencanto das esperanas de que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre elas, libertando-o do medo, da magia e do mito. Caminhando por essa rea de tcnicas reificadas, Adorno cunha o nome de indstria cultural produo, comercializao e explorao de bens culturais prprias das tcnicas de reproduo (a produo em srie e a homogeneizao). Essas tcnicas tm sua racionalidade ditada pela racionalidade instrumental dominante. Tendo-se em vista o papel de-terminante da indstria cultural como veculo da ideologia dominante, as possibi-lidades de libertao atravs da arte e do lazer esto condenadas ao fracasso. Para Adorno, a msica, tal como a arte em geral e as grandes filosofias, faz falar o que a dominao e a ideologia escondem sob a couraa da identidade ou suprimem como irrelevante e nocivo. Sua teoria crtica poderia ser considerada uma teoria esttica, tal o papel da arte e da filosofia como antdotos para o racionalismo po-sitivista e pseudocientfico que violentam o objeto, consumindo-o dentro de um esquema conceitual reificado (Adorno e Horkheimer, 1985 [1944]).

    Na obra Dialtica negativa (2009 [1969]), Adorno elege como seu maior alvo crtico o idealismo da filosofia dialtica hegeliana na sua peculiaridade de uma lgica da identidade e na subordinao do indivduo totalidade social, s custas do sacrifcio de sua singularidade. Trata-se de uma crtica dialtica conciliatria de herana lucaksiana e um aviso para uma releitura da perspectiva de totalidade, pois esta pode dar lugar ao totalitarismo de um sistema em que vige a lei da uni-dade e, portanto, da eliminao do diverso. A dialtica negativa significa para Adorno o respeito negao, s contradies, ao diferente, ao dissonante, ao no idntico, enfim, o respeito s contradies do objeto. Isso significa considerar o que permanece fora do conceito, o que lhe escapa, o que aponta a sua insuficincia. Adorno diz no ao idealismo em que o sujeito o portador da verdade do objeto e em que a desmesura da razo faz imaginar que os conceitos podem esgotar o real e ainda apresentar solues para os seus problemas. Para ele, a experincia o encontro com a alteridade e no uma projeo do sujeito no outro.

    Para Adorno deve-se pensar o objeto mesmo quando ele no segue as regras do pensamento, mesmo quando no se sabe se possvel compreend-lo por inteiro. Nesse sentido, a dialtica negativa pensa onde seus opositores se detm. Fortalecen-do seu argumento, Adorno afirma que as catstrofes revelam a inadequao dos conceitos. A impossibilidade de representar a dor mostra que a sada no uma dialtica conciliatria ou idealista, mas uma dialtica que eleve a dor ao conceito. Ela

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    (a dor) seria o limite em que explode o conceito, a prpria essncia da dialtica ne-gativa. Ela estaria personificada na dor dos fracos, dos impotentes, dos perseguidos, desses que a histria marginalizou e aniquilou. Auschwitz seria o melhor signo para a dialtica negativa. Segundo Adorno, deve-se trazer luz da conscincia as mutila-es, as divises e as degradaes, bem como tudo que hoje oprimido, impotente e no funcional, num mundo regido pelo princpio da equivalncia na troca e na identidade. S nesse acmulo de dor que nos projeta para um tempo que no o nosso que poderemos entrever o desaparecimento da totalidade antagnica. Ento ter fim a pr-histria da humanidade (Adorno, 2009 [1969]; Bodei, 2000).

    Entretanto, esse fim no significa que seria ditado por leis inexorveis condu-zidas pelo sujeito consciente da classe operria. Iconoclasta, Adorno considera que a classe operria est limitada, de um lado, por um socialismo burocrtico e, de outro, por um capitalismo que reproduz a sua dominao cultural e ideolgica de forma eficiente e devastadora. Para o autor, as minorias excludas (aquelas que carregam a fora e a dor) so a dinmica viva da sociedade e de suas possibilidades emancipatrias.

    No texto intitulado Introduo controvrsia sobre o positivismo na sociolo-gia alem, publicado em 1974, cinco anos aps a morte de Adorno, em 1969 (Adorno, 1975 [1974]), ele revela de forma clara a distncia terica que separa epistmica e ontologicamente a dialtica do mtodo positivista e esclarece questes de fundo que nortearam suas posies no confronto de 1961. Nesse texto, Adorno apresenta-nos a dialtica como um mtodo intrinsecamente dependente de seu objeto, o que impede a sua apresentao como um para-si tal qual no sistema de-dutivo. A dialtica, nos diz o autor, no obedece ao critrio de definio, critica-o. Ela no possui um cnone que a regula e, ainda assim, ela tem a sua razo de ser. J o positivismo tem como prioridade a lgica formal, uma concepo cientificista, em que o pensamento persegue a mais extrema objetividade, purificada de todas as projees subjetivas. Uma de suas flagrantes contradies o seu enredamento na particularidade de uma razo instrumental subjetiva. Para Adorno, a ideia de filosofia de Wittgenstein, por exemplo, para a qual os pensamentos vagos e obscu-ros devem tornar-se claros e delimitados, remete a Comte.

    Com relao objetividade cientfica e expulso de valores, Adorno nos ad-verte que um conhecimento que to livre de preconceitos como pretende ser o positivismo teria que contar com coisas que so tudo, menos claras. O mundo em si to ambguo que no suficiente como critrio de sentido. Quem no percebe isso no pode ascender a um autntico conceito de sociedade. A sociedade, este objeto complexo, inteligvel porque comporta atos subjetivos em que o sujeito reconhece a si mesmo e , ao mesmo tempo, ininteligvel, porque a racionalidade objetiva da troca afasta-se cada vez mais do modelo da razo lgica (Adorno, 1975 [1974]).

    Foi o formalismo, a instrumentalizao e a virtual matematizao como critrios nicos de cientificidade que completaram a liquidao da diferena qualitativa da sociologia em relao a outras cincias. O ideal de um sistema dedutivo que no deixa nada de fora a lgica que fornece o ideal de cincia unificada. Nesse ponto, ele concorda com Habermas, quando afirma que no so as teses do formalismo

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    sociolgico de Simmel que so falsas em si, mas sim os atos do pensamento que as arrancam da empiria e, posteriormente, lhes conferem contedo ilustrativo. No in-terior da sociedade coisificada nada tem chance de sobreviver que no seja coisifica-do. A objetividade da estrutura que para os positivistas uma relquia mitolgica, para a dialtica o a priori da razo subjetiva cognoscente (Adorno, 1975 [1974]).

    Entretanto, a elegncia do refinamento matemtico no dissipa a suspeita de que ocorre uma converso da cincia em tcnica, minando o seu prprio conceito. Entre perplexo e provocativo, Adorno pergunta como pode Carnap, um dos posi-tivistas mais radicais, denominar de afortunado acaso a constatao de que as leis da lgica e da matemtica pura se aplicam realidade? Acaso, lembra ele, no deixa de ser um conceito mtico.

    Outro ponto incontornvel que marca a diferena substantiva entre os dois mtodos o conceito de totalidade. Para Adorno esta no deve ser entendida como uma categoria afirmativa, mas crtica, pois ela no ftica como so os fenmenos singulares. O carter abstrato do valor de troca est vinculado a priori denomi-nao de universal sobre o particular. Ele no socialmente neutro, como simula a logicidade do processo de reduo a singularidades, tal como o tempo de trabalho social mdio. Atravs da reduo dos homens a portadores de mercadorias realiza-

    -se a dominao dos homens pelos homens. Todos so obrigados a se submeter lei abstrata da troca. O cerne da crtica ao positivismo que ele fecha a experincia de totalidade, se satisfaz com os destroos desprovidos de sentido, sem interpretar e descobrir a verdade. Adorno afirma que falsa a ideia de que a dialtica se ocupa de um global generalizado e que os positivistas se ocupam dos detalhes slidos. A sociedade sistema como sntese de um diverso atomizado, sinopse real, mas abs-trata de algo no reunido organicamente. O tlos do modo dialtico de encarar a sociedade o contrrio do global. A dialtica, nesse sentido, mais realista do que o cientificismo com todos os seus critrios de sentido. Apesar da reflexo sobre a totalidade, a dialtica no procede a partir do alto, mas trata de dominar teorica-mente pelo seu procedimento a relao antinmica do universal e do particular. Toda dialtica dialtica da totalidade, um conceito que pretende ser objetivo, aplicvel a qualquer constatao singular. J a teoria positivista a escolha de ca-tegorias gerais no intento de reunir constataes sem contradies num conjunto lgico. O problema que no h conceitos estruturais superiores. Ao denegrir o conceito de totalidade como retrocesso mitolgico e pr-cientfico o positivismo, em infatigvel luta contra a mitologia, mitologiza a prpria cincia. Esse ponto permite uma aproximao com a crtica que Popper faz ao positivismo. As nuanas tericas e as diferentes perspectivas ficaro claras no confronto, assunto ao qual passaremos a seguir.

    O CONFRONTO ENTRE POPPER E ADORNO

    O debate realizado no Congresso da Sociedade Alem de Sociologia (1961) iniciou-se com o confronto entre Popper e Adorno. No livro publicado do Con-

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    gresso6 outros autores participaram, como Hans Albert e Jrgen Habermas. Pela magnitude do tema e pela importncia de seus atores no cenrio intelectual, a discusso passou a ser conhecida como um debate entre o positivismo e a dialtica da teoria crtica. Para a teoria crtica, da Escola de Frankfurt, a racionalidade ins-trumental presente no positivismo significou a submisso ao formalismo lgico e obedincia ao imediatamente dado. A identificao da postura positivista de Popper estaria, entre outros pontos, na sua observncia aos princpios bsicos da lgica formal cartesiana para assegurar a cientificidade e a objetividade do pensa-mento terico. J para os positivistas, a teoria crtica permanecia como uma meta-fsica vazia, destituda de sentido.

    As teses de Popper

    As 27 teses de Popper so uma condensao dos principais conceitos e posies tericas que sustentam o edifcio do seu racionalismo crtico (Popper, 1978). As primeiras teses apresentam o foco de tenso essencial da sua perspectiva terica, localizado no aumento do conhecimento e no discernimento de uma ignorncia ilimitada uma tenso entre saber e no saber, como Popper define (1, 2 e 3 teses). Esse foco tem a sua expresso maior nos problemas, ponto de partida da cincia popperiana que, alm de se distanciar do indutivismo ingnuo, imprime dinmica ao desenvolvimento cientfico marcado por solues encontradas e novos problemas que surgem (4 tese). Mas qual a natureza desses problemas? De toda ordem (prtica e terica) desde que tenham audcia e originalidade (5 tese). Reto-mando o mtodo dedutivo da prova dos seus primeiros escritos, Popper afirma que o mtodo para as cincias (indiscriminadamente cincias sociais e cincias naturais) consiste em experimentar possveis solues para os problemas. As hipteses, uma vez submetidas crtica do critrio de falseabilidade, podero ser descartadas ou aceitas (6 tese). Nesse ponto, Popper sublinha que na crtica que reside a objeti-vidade do mtodo cientfico de ensaios e erros. O erro, ponto sensvel do teste, prenuncia um caso de ignorncia e confirma a natureza provisria do nosso conhe-cimento (7 tese).

    Para Popper existem dois mitos a serem combatidos: o indutivismo e o mito da neutralidade cientfica. Contra o mtodo observacional, Popper fornece como exemplo a antropologia cincia-chave que aplica esse mtodo pseudocientfico, supostamente descritivo e objetivo (8, 9 e 10 teses). Contra a falsa objetividade cientfica, ele afirma que um erro achar que esta depende dos cientistas isolada-mente. Ela o resultado social de uma crtica recproca, da diviso de trabalho entre cientistas, da sua cooperao e da sua competio (12 e 13 teses). Embora considere que seja impossvel eliminar os interesses do cientista com relao a problemas extracientficos, sob pena de roubar-lhes a humanidade, e que a cincia

    6 As teses do Congresso foram compiladas por Ralph Dahendorf (1973), obra intitulada La disputa del positivismo a la sociologia alemana.

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    pura um ideal inalcanvel, devemos lutar por esse ideal. O caminho da crtica aquele que separa os problemas dos valores cientficos como verdade, relevncia e simplicidade, dos problemas extracientficos (14 tese). Para marcar a diferena entre seu mtodo cientfico e o mtodo lgico de tradio cartesiana ele expe esta como a teoria das dedues lgicas ou das relaes de consequncia lgica A l-gica dedutiva a teoria da transmisso da verdade das premissas concluso (16 e 17 teses). Do seu ponto de vista, o que diferencia seu mtodo dedutivo (o racio-nalismo crtico) da lgica dedutiva da tradio cartesiana seria seu sistema de cr-tica (15 tese). Se existem concluses inaceitveis, ento a afirmao digna de ser recusada. Uma tentativa de explicao uma tentativa de soluo de um problema cientfico, mas uma teoria pode ser criticada racionalmente atravs de suas conse-quncias (18 e 19 teses). Definido o mtodo dedutivo e o papel da crtica dentro dele, o qual chama de mtodo dedutivo da prova, Popper refora seu ponto de partida inegocivel: a verdade como uma aproximao, como a melhor possvel. E afirma mais uma vez o quanto equivocada a pretenso de uma teoria verdadeira. Um enunciado pode ser verdadeiro ou falso, o que ele representa uma aproxima-o da verdade (20 tese).

    Popper, nessa altura de sua apresentao, retoma a crtica ao indutivismo in-gnuo, afirmando que no existe nenhuma cincia puramente observacional, agora por uma outra preocupao, a de apresentar sua lgica situacional, o que far nas ltimas teses. Introduz a questo mostrando que a psicologia (imitao, linguagem, famlia) pressupe ideias sociais, o que demonstra ser impossvel explicar a socie-dade exclusivamente em termos psicolgicos. A psicologia no a base das cincias sociais, o ambiente social um pressuposto da psicologia. A sociologia autnoma, isto , independente da psicologia e no pode ser reduzida psicologia (23 e 24 teses). Tudo isso para mostrar que o melhor exemplo dentre as cincias sociais a economia. na economia que reside o mtodo objetivo nas cincias sociais, ou o mtodo da compreenso objetiva ou, ainda, o mtodo da lgica situacional que pode ser aplicado em todas as cincias sociais Esse mtodo da anlise situacional, alerta Popper, individualista (um individualismo que leva em conta o ambiente social), mas no psicologista. O homem motivado autonomamente por seus de-sejos d lugar ao homem que persegue alvos condicionados a determinada situao (25 tese). Sendo as explicaes da lgica situacional reconstrues racionais e tericas, elas so simplificadas, esquematizadas e geralmente falsas Entretanto, podem ser boas aproximaes da verdade e melhores do que outras explicaes testveis O conceito de aproximao da verdade indispensvel para uma cincia social que usa o mtodo da anlise situacional (26 tese). A lgica situacional ad-mite o mundo fsico, o mundo social, outros povos e as instituies sociais, mas as instituies no agem. Ao descartar a ao das instituies reafirma que o que h de concreto so os indivduos que agem.

    Finalmente, Popper afirma que a intranquilidade filosfica e religiosa adviria da ideia socrtica de que nada sabemos. Mas isso apenas uma meia verdade. Po-demos superar o niilismo, pois embora no possamos justificar as nossas teorias

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    racionalmente, nem mesmo provar que so provveis, podemos critic-las racio-nalmente e com isso distingui-las das piores (Popper, 1978).

    A rplica de Adorno

    A apresentao de Adorno caracterizou-se por um conjunto de argumentos crticos exposio de Popper, ao mesmo tempo em que deixou claras suas prprias posies tericas (Adorno, 1986). Organizamos, para efeito didtico, suas crticas em quinze pontos:

    1) a ideia do conhecimento crescente e de uma ignorncia ilimitada est insufi-cientemente explorada em Popper. Alm disso, o no conhecimento passageiro no supervel por aquilo que se denomina sntese. O no saber apenas atesta a diver-gncia entre a sociedade como objeto e o mtodo tradicional utilizado por Popper; 2) no pode existir uma explicao unvoca, simplificada ao mximo, matematica-mente elegante, porque o objeto sociedade no unvoco, nem simples; 3) o positi-vismo vtima inconsciente de uma contradio interna, porque a sociedade con-traditria (ela racional e irracional, sistemtica e catica, de natureza cega e mediada pela conscincia); 4) Popper contraditrio no desejo de objetividade cientfica, pois o positivismo deseja uma objetividade extrema, ou seja, purgada de toda projeo subjetiva. Entretanto, Popper no hesita em recorrer a uma razo instrumental subjetiva; 5) a sociedade um problema e a contradio no deixar de existir pelo simples fato de conhecermos mais, ou porque formulamos o proble-ma de maneira mais clara, ou ainda porque a soluo proposta foi verificada ou refutada. A contradio est no objeto; 6) o que existe uma situao problemtica do mundo e no um problema de carter meramente epistemolgico; 7) a preocupa-o de Popper formal ao invs de material e emancipatria, como a dialtica. Nessa perspectiva, a sociologia tem que se preocupar com o todo mesmo quando estuda as particularidades; 8) Popper afirma que a qualidade do profissional est na identificao de problemas significativos. Nem sempre possvel um julgamento a priori acerca da relevncia dos assuntos; 9) as teorias do conhecimento, tanto de Bacon quanto de Descartes, os chamados mtodos indutivo e dedutivo, foram con-cebidas de cima para baixo. O importante no uma descrio segundo um mtodo lgico. Nem o mtodo da lgica formal nem o da lgica situacional tm um papel preponderante para o conhecimento. No o mtodo que garante a objetividade e a neutralidade da empreitada cientfica em busca da verdade; 10) para aceitar o conhecimento sociolgico como crtico e separar a sociologia das cincias naturais, o conceito de experimento tem que se estender ao pensamento crtico que, saturado pela fora da experincia, ultrapassa essa mesma experincia para compreend-la. O momento especulativo imprescindvel; 11) a sociologia crtica do objeto. Se a sociologia pretende que seus conceitos sejam verdadeiros, ento ela deve ser crtica com relao sociedade. A crtica ao objeto, a sociedade capitalista liberal. A sociologia crtica no se reduz apenas a uma autocrtica da disciplina, mas estende a crtica ao prprio objeto da anlise e s hipteses, conceitos e teorias desenvolvi-dos para analis-la; 12) a crtica permeia todo o processo de conhecimento e no

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    somente um elemento que pe em questo uma hiptese explicativa. A crtica deve suscitar uma atitude de desconfiana em face do conhecimento como tal; 13) falsa a separao entre valores cientficos e extracientficos porque os valores so reificados. Os valores tambm sofrem a cota de reificao ou de coisificao. Nesse caso, os valores no so mais produtos do agir humano, mas sim objetos cristaliza-dos sem ligao com o horizonte humano. A sociologia deve incorporar a conscin-cia de sua antinomia, seu paradoxo e sua contradio; 14) um comportamento isento de valores impossvel psicolgica e objetivamente. No existe independncia radical entre a psicologia e a sociologia, sendo a fronteira entre as duas tnue em demasia; 15) a experincia do carter contraditrio da realidade social no um ponto de partida arbitrrio, mas a base da possibilidade da existncia da sociologia. Somente os que podem conceber a sociedade de modo diverso do que ela podem transform-la em um problema. A desistncia da sociologia de uma teoria crtica da sociedade resignada, no se atreve mais a pensar o todo porque no v como al-ter-lo (Adorno, 1986).

    As crticas de Adorno podem ser agrupadas em torno de trs grandes temas: quanto ao mtodo e natureza do objeto, quanto objetividade cientfica e quan-to natureza da crtica e da sociologia.

    1 quanto ao mtodo de Popper e natureza do objeto:

    O mtodo popperiano uma explicao unvoca, simplificada, diante do ob-jeto sociedade, que complexo e no unvoco. nesse ponto que reside a tenso essencial, e no entre conhecimento/ignorncia como Popper afirma. A contradio est no objeto sociedade, o que significa para Adorno tratar-se de um problema de carter prtico, e no de um problema de carter epistemolgico.

    2 quanto objetividade cientfica:

    Uma possvel neutralidade cientfica em busca da verdade no residiria nem no mtodo nem no cientista. A pretensa objetividade do positivismo purgada de toda projeo subjetiva e o cientista como identificador de problemas significativos no do conta dessa pretenso equivocada. Ou seja, no existe a possibilidade de julgamentos a priori acerca da relevncia dos assuntos nem a separao entre va-lores cientficos e extracientficos.

    3 quanto natureza da crtica e da sociologia:

    A crtica permeia todo o processo de conhecimento e no se traduz num ele-mento que pe em questo uma hiptese explicativa. O mtodo da anlise situa-cional no escapa a esta crtica. A sociologia crtica do objeto. Se a sociologia pretende que seus conceitos sejam verdadeiros, ento ela deve ser crtica com rela-o sociedade.

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    CONSIDERAES FINAIS: LIES DO CONFRONTO

    O objetivo do texto obedeceu inteno de mostrar como os dois autores estudados, ao longo de suas ricas trajetrias intelectuais, acumularam reflexes e amadureceram argumentos sobre a lgica ou o mtodo mais apropriado para as cincias sociais, tema central do enfrentamento. O texto no traz uma concluso no sentido estrito do termo, mas uma ideia alusiva de que, para alm das posies terico-analticas e das perspectivas metodolgicas, a viso de mundo presente na obra de Popper e de Adorno contribuiu decisivamente para o esclarecimento dos termos do debate e para o entendimento das razes filosficas que estavam em jogo no confronto.

    A questo central que orientou o confronto foi a natureza do mtodo, seus limites e potencialidades diante do objeto. Como temas corolrios lgica das cincias sociais foram tratados: a natureza da crtica e questes concernentes objetividade cientfica e totalidade. O ponto de partida da construo terica de Popper a sua crtica razo do homem moderno, cuja matriz est na razo car-tesiana que, na sua arrogncia, v a verdade. Popper se identifica com uma razo limitada por uma relativa ignorncia ante um mundo complexo incapaz de ser desvelado na sua totalidade. Para Popper a totalidade algo inacessvel, mitolgi-co e a postura humilde do reconhecimento da ignorncia somada a uma sagaz crtica ao indutivismo ingnuo constituram-se no porto seguro para que ele pudes-se instituir o critrio de falseabilidade, sua marca metodolgica.

    Contra uma razo totalizadora perante uma realidade complexa inalcanvel na sua totalidade, Popper sugere uma razo fragmentada com verdades provisrias, as nicas possveis. Num momento em que verdades absolutas caem por terra, e que o consagrado est sob suspeita, uma dose de ceticismo e de relativismo tem o apelo de algo afinado com o seu tempo. E nesse quadro que a proposta de uma razo limitada surge como bom-senso metodolgico. Entretanto, guardada a sua contribuio de colocar as verdades absolutas em xeque, h que apontar as limita-es de sua razo crtica posto que circunscrita ao plano da lgica formal. O que Popper advoga, em ltima anlise, com o seu mtodo dedutivo da prova, uma correo da razo cartesiana: ao mtodo hipottico dedutivo acrescentou uma prova, como o prprio nome indica. A essa prova, que tanto pode ser lgica como contrastada com a empiria, chama-se capacidade crtica.

    Independentemente da soluo metodolgica apresentada por qualquer cor-rente do pensamento, h algo de complexo e estrutural na tarefa dos cientistas sociais, localizado na tenso entre o objeto social a ser compreendido e as limita-es de carter metodolgico. A esse ponto central Adorno responde com eloqun-cia. Como traduzir para o plano lgico formal antagonismos reais que no ficam visveis no interior do sistema lgico-cientificista do pensamento? Como lhe dar uma explicao unvoca, simplificada ao mximo, matematicamente elegante, se o objeto sociedade no unvoco, nem simples? Para Adorno a tenso em Popper est localizada na complexidade do objeto a ser compreendido ante a um mtodo inapropriado. Alm disso, a crtica popperiana est circunscrita crtica interna

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    das proposies, constataes sem contradies submetidas s regras da lgica dedutiva. Constructos sem contradies lgicas, nos diz Adorno, no resistem reflexo de contedo porque o que existe, e que incontornvel e contundente, uma situao problemtica do mundo e no um problema de carter meramente epistemolgico. Para Adorno, a perspectiva popperiana se atrofia ao tornar os problemas falsificveis. Isso significa, em ltima instncia, abstrair-se do objeto e no conseguir interpretar o que afinal de contas, para o campo da dialtica, signi-fica perceber a totalidade nos traos dos dados sociais.

    Ser dentro dessa ideia de algo possvel, aproximado ao real, que residir a tentativa popperiana de dar conta do ambiente social atravs do seu mtodo da anlise situacional. Nessa tentativa reside tambm um dos seus argumentos centrais para se desvencilhar da pecha positivista, na sua defesa (nos seus primeiros escritos) de um mtodo nico para as cincias.7 Popper nos apresenta um princpio de ra-cionalidade e uma posio em que o homem age de acordo com a situao dada. Independentemente da crtica que Caldwell far posteriormente em relao blin-dagem do princpio da racionalidade, um princpio que para ele metafsico, pos-to que no falsificvel nem verificvel (Caldwell, 1998), Adorno trata de outra questo. Para Adorno, o mtodo da anlise situacional no diverge em essncia do mtodo hipottico-dedutivo da prova, cujo critrio central o princpio falsifica-cionista. De nada vale o argumento popperiano de que no ser o princpio da racionalidade que ser testado, mas o modelo de anlise situacional. O que para Adorno interessa combater a ideia de que essa lgica das cincias sociais (e da economia como exemplar) oferece a melhor aproximao possvel do real. No, essa lgica no a melhor possvel para as cincias sociais nem o critrio de apro-ximao o melhor critrio para a inteligibilidade dos fenmenos coletivos. Ador-no questiona esse artifcio de aproximao ao real, alis, uma ideia central da metodologia neoclssica que, partindo do simples, do ideal, e por aproximaes sucessivas, pretende restaurar a complexidade ou se aproximar do real. Essa pers-pectiva, para Adorno, alm de desconsiderar a sociedade como um objeto comple-xo, inteligvel, abstrato, supe que o princpio da racionalidade dos agentes tem um carter mais concreto do que as coletividades, as instituies ou a totalidade. Isso significa uma negao da realidade dos fenmenos coletivos e a expresso da de-sistncia de uma teoria crtica da sociedade que no se atreve mais a pensar o todo porque no v como alter-lo, satisfazendo-se com fragmentos. Adorno acentua as diferenas de perspectiva e de mtodos em que ambos constroem suas teorias e avisa que enquanto a preocupao de Popper formal, a da dialtica material e emancipatria. Caminhar por essa diferena nos remete a um dos objetivos do

    7 Popper afirma que no um positivista e que isto um rtulo grosseiro. Positivista , segundo Popper, aquele para o qual o mtodo das vrias cincias tomado de forma absoluta como o nico mtodo do conhecimento. Afirma que sempre lutou a favor das teorias especulativas, contra o cientificismo e contra o empirismo sensualista, considerando a anlise positivista inadequada at para as cincias naturais (Popper, 1978).

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    trabalho, que chamar para o jogo dessas ideias em confronto a viso de mundo de cada um dos autores.

    Embora as vises de mundo dos autores no tenham ficado explcitas no de-bate, fato que decepcionou alguns comentadores do congresso,8 elas esto subja-centes s questes mais contundentes e aos impasses tericos incontornveis pre-sentes no corao do debate. Alis, o medo de se infectar com os argumentos considerados pr-cientficos parece ter tomado conta dos economistas, sem dis-tino de filiao terica, e tem se traduzido numa viso positivista e assptica das cincias sociais e da economia em particular. Alguns porque se consideram acima de qualquer perspectiva e viso de mundo que os condicione, outros porque pensam que ela s existe nos seus opositores e, a maioria, porque encarnou das mais diver-sas formas a ideia de que a cincia econmica neutra e de que unicamente o analtico vlido como cincia, ou passvel de ser isolado. Um exemplo consta-tado na literatura e nos debates so as prelees ad nauseam sobre a importncia da pureza e da validade cientfica das controvrsias analticas, a viso shumpete-riana da histria da anlise econmica. Outro exemplo so as leituras fragmentadas dos pensadores, retirando-lhes de suas histrias e abstraindo-se propositadamente de suas vises de mundo e/ou de suas propostas poltico-normativas. Esses exem-plos comprovam que o positivismo fez e ainda faz muitos adeptos entre ns.

    Numa perspectiva oposta, nosso texto foi escrito com o sentido de mostrar que a viso de mundo no s faz parte integrante das humanidades desses autores, como guarda uma imbricada relao com suas teorias e ainda se traduz no centro vivo e interessante do jogo de suas ideias, sobretudo quando postas em confronto. Sem essa viso de mundo no apenas a insipidez subjaz, como dificuldades se apresentam para a exata compreenso dos argumentos em disputa. A viso de mundo veculo discreto, porm presente na arte de convencer o auditrio universal. Para ns, a viso de mundo de Popper est intimamente ligada natureza do seu racionalismo crtico, do mesmo modo que a defesa de uma razo crtica emancipa-tria faz parte integrante do mtodo dialtico de Adorno e da sua participao na construo da teoria crtica e da construo da Escola de Frankfurt. As vises de mundo desses autores pertencem a matrizes filosficas e ideolgicas presentes nas suas teorias e so partes integrantes de suas vidas. Popper no escondeu suas posi-es poltico-ideolgicas no conturbado sculo em que viveu, dedicando parte de sua obra e energia a criticar a misria do historicismo e o falso mundo profti-co marxista. Alm disso, o grande erro que ele constatou em Marx serviu-lhe para construir seu argumento terico e poltico. Ao apontar o erro de Marx na sua tentativa de descobrir leis intrnsecas do capitalismo e delas inferir a profecia so-cialista, seu objetivo ficava cada vez mais claro e isso se constata na leitura de suas

    8 Ralf Dahendorf, organizador do debate e do livro sobre o debate, afirma que os assuntos foram tratados como uma certa ironia de concordncias, mas que no fundo existiam diferenas profundas entre os dois. Alis, as diferenas de argumentao so to profundas que preciso duvidar de que Popper e Adorno so capazes de concordar quanto a um nico procedimento (Dahendorf, 1973).

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    obras. Primeiro, tentando desmontar a possibilidade de encontrar leis gerais un-vocas para a histria, desacreditando o socialismo e, segundo, substituindo o so-cialismo cientfico de Marx por um reformismo, ideal que ele considerava mais modesto e mais vivel de se atingir numa sociedade democrtica liberal. A crtica capacidade da razo em desvelar a totalidade e dela inferir leis inexorveis prpria onipotncia da razo moderna, cuja matriz Descartes, mas que para Popper se apresenta metamorfoseada com argumentos da materialidade na pers-pectiva da leitura da histria de Marx. Tambm para o autor, a perspectiva mar-xista no campo poltico-normativo em que a histria se moveria de forma confliti-va, mas inexorvel, retira as possibilidades de se alterar a realidade atravs de reformismos sucessivos. O marxismo inviabilizaria toda a engenharia social, afirma Popper, ou seja, as possibilidades de se reformar o capitalismo e de se chegar atra-vs de reformas (fragmentadas), e de maneira aproximada, a uma sociedade mais justa. No, dir ele, utopia de um mundo inalcanvel e, sim, ao que ele conside-ra o vivel no reino das possibilidades. nesse quadro de reformas e concertos do capitalismo que a analogia com a crtica ao mtodo dedutivo ou uma correo epistemolgica se faz vivel e se expressa como a melhor forma de lidar com uma aproximao verdade.

    Do outro lado temos Adorno, prestigiado representante da Escola de Frankfurt, e sua defesa de uma razo crtica emancipatria. Adorno sustentou junto com seus companheiros da Escola o revigoramento do marxismo na Alemanha e no exlio, munido de uma arguta crtica s expresses contemporneas do totalitarismo sob todas as suas formas. Aliado a isso, apresentou uma percepo original sobre as novas expresses de dominao e de resistncia das conscincias manipuladas pela ideologia da indstria cultural. Construiu uma crtica ao positivismo com base na perspectiva da teoria crtica e na dialtica negativa. Em que pese sua postura crtica com relao ao mecanicismo da perspectiva da lgica da luta de classes e a descrena quanto ao papel da classe operria como parteira da histria, seu cami-nho foi o do marxismo. Na esteira da dialtica negativa construiu um mtodo crtico capaz de enfrentar os inmeros desafios tericos ditados pela hegemonia do pensamento positivista, pelo idealismo hegeliano e pelas dificuldades do marxismo ortodoxo em dar conta dos problemas tericos e polticos do sculo XX. A dial-tica, na sua perspectiva, teria a incumbncia de ser uma reflexo filosfica sobre aquilo que os conceitos e as anlises no do conta, isto , um pensar ousado sobre exatamente o que lhe escapa, a nica sada para se pensar filosoficamente. Mas esse seu pensar crtico com relao ao objeto e respeita as suas contradies. Considera o que permaneceu fora do conceito, o que lhe escapa, mostrando sem vergonha a sua insuficincia. E nessa insuficincia, nas dificuldades de compreen-so dos novos desafios que a realidade impe, que Adorno constri a sua crtica ligada a um processo de emancipao. Ele toma como exemplo as minorias exclu-das (aquelas que carregam a dor e a fora) e que se traduzem num desafio terico e poltico, posto que se constituem no elo dinmico que articula a teoria com as possibilidades emancipatrias. Nada mais coerente e articulado, teoria, poltica e

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    ideologia. E nada tambm to diferente da teoria, da viso e das propostas polticas de Popper.

    O debate tinha como ponto focal tratar a lgica das cincias sociais atravs de uma disputa pelo melhor mtodo para a explicao de fenmenos coletivos. Par-tindo de pressupostos e filiaes filosficas distintas, o confronto tornou-se conhe-cido como a oposio entre o positivismo e a dialtica. A ideia de oposio ou de confronto que marcou desde o incio o tom do debate mostrava que o caminho para um consenso na soluo das controvrsias estava fora de cogitao. No se tratava de divergncias tericas que poderiam ser solucionadas atravs de uma conversao civilizada na busca de uma verdade plausvel. Isso sempre soou qui-mrico ou acaciano, sobretudo para os organizadores do debate. Tratava-se de um confronto em que matrizes do pensamento disputavam, diante do auditrio uni-versal, o melhor entendimento para os fenmenos sociais. O fato de as questes apresentadas despertarem ainda hoje um permanente interesse na academia parece nos mostrar que as ideias avanam no dissenso e sobretudo quando as divergncias so enfrentadas em disputas corajosas.

    As ideias apresentadas no confronto continuam alimentando estudos de adep-tos e crticos acerca da proposta do mtodo da anlise situacional apresentada por Popper no debate. Ainda sobrevive a questo, embora em pequenos crculos, se afinal ele ou no um positivista. A perspectiva adorniana da teoria crtica perma-nece como uma releitura viva e provocadora do marxismo, no assimilada pelo marxismo ortodoxo. A teoria crtica da Escola de Frankfurt deixou suas marcas em inmeros programas de pesquisa filosficos abertos no sculo XX. Legou ques-tes para o pensamento crtico acerca das limitaes do mtodo hipottico-dedu-tivo e sublinhou mais uma vez a tenso existente entre o objeto complexo da so-ciedade a ser compreendido e o mtodo (ou os mtodos) mais adequado(s) e profcuo(s) para lidar com ele. Um assunto permanente e, certamente, o maior desafio para as cincias sociais. Uma questo candente que ainda vai suscitar pos-sveis consensos e inevitveis confrontos.

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