35
1 O COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA DO CHIFRE AFRICANO: REVISÃO DA CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO DE FRONTEIRAS Guilherme Bohrer Antonelo Artigo Científico apresentado ao Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais. Orientador: Prof. Ms. Igor Castellano da Silva Santa Maria, RS, Brasil 2014

O COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA DO …nucleoprisma.org/wp-content/uploads/2015/03/TCC-Guilherme-Bohrer... · regional power, and the advancement of the Intergovernmental Authority

Embed Size (px)

Citation preview

1

O COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA DO CHIFRE

AFRICANO: REVISÃO DA CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO

DE FRONTEIRAS

Guilherme Bohrer Antonelo

Artigo Científico apresentado ao Curso de Relações Internacionais da

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como requisito parcial para

obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais.

Orientador: Prof. Ms. Igor Castellano da Silva

Santa Maria, RS, Brasil

2014

2

Universidade Federal de Santa Maria

Centro de Ciências Sociais e Humanas

Departamento de Ciências Econômicas

Curso de Relações Internacionais

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova o Trabalho de Conclusão de Curso

O COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA DO CHIFRE

AFRICANO: REVISÃO DA CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO DE

FRONTEIRAS

elaborado por

Guilherme Bohrer Antonelo

como requisito parcial para obtenção do grau de

Bacharel em Relações Internacionais

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________ Prof. Igor Castellano da Silva, Ms.

(Orientador)

____________________________________ Prof. Arthur Coelho Dornelles Júnior, Dr.

(UFSM)

____________________________________ Prof. José Renato Ferraz da Silveira, Dr.

(UFSM)

Santa Maria, 05 de dezembro de 2014.

3

RESUMO

Trabalho de Conclusão de Curso

Curso de Relações Internacionais

Universidade Federal de Santa Maria

O COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA DO CHIFRE

AFRICANO: REVISÃO DA CLASSIFICAÇÃO E DEFINIÇÃO DE

FRONTEIRAS

AUTOR: GUILHERME BOHRER ANTONELO

ORIENTADOR: IGOR CASTELLANO DA SILVA

Santa Maria, 05 de Dezembro de 2014.

O conceito de Complexo Regional de Segurança, consolidado por Barry Buzan e Ole

Waever (2003), é um dos elementos centrais enquadrados no escopo do Novo Regionalismo.

No entanto, sua aplicação empírica apresenta limitações claras, especialmente no que diz

respeito ao caso africano. Este artigo questiona a visão dos autores sobre o Chifre da África,

mais especificamente contestando a classificação dessa região como um pré-complexo

regional de segurança em vez de um complexo regional de segurança. A primeira seção

retoma a análise de Buzan e Waever sobre Complexos Regionais de Segurança e a sua

aplicação ao Chifre africano e identifica os argumentos pelos quais o Chifre é considerado

pelos autores um pré-complexo. Uma segunda seção apresenta os fatos que justificariam a

classificação do Chifre africano como um complexo, sejam eles, o aumento do grau de

interdependência securitária entre os países da região, o papel que a Etiópia desempenha

como potência regional, e o avanço das iniciativas da Autoridade Intergovernamental para o

Desenvolvimento (IGAD, na sigla em inglês) nas áreas de Segurança e Defesa. Ao constatar a

evolução das dinâmicas regionais que sustentam essa reclassificação, parte-se para uma

terceira e última seção, que consiste no esforço de oferecer para a região uma delimitação de

fronteiras alternativa àquela proposta pelos autores, que faça jus aos novos fluxos de interação

regionais e à classificação do Chifre africano como um complexo regional de segurança.

Palavras-Chave: Segurança Internacional. Complexo Regional de Segurança. Chifre da

África.

4

ABSTRACT

Course Conclusion Work

International Relations Course

Universidade Federal de Santa Maria

THE HORN OF AFRICA REGIONAL SECURITY COMPLEX:

CLASSIFICATION REVIEW AND DEFINITION OF BORDERS

AUTHOR: GUILHERME BOHRER ANTONELO

ADVISOR: IGOR CASTELLANO DA SILVA

Santa Maria, December 05, 2014.

The concept of Regional Security Complex, consolidated by Barry Buzan and Ole

Waever (2003), is a central element framed in the scope of the New Regionalism. However,

its empirical application has clear limitations, especially with regard to the African case. This

paper questions the view of the authors on the Horn of Africa, specifically challenging the

classification of that region as a regional pre-complex security rather than a regional security

complex. The first section takes up the Buzan and Waever analysis on Regional Security

Complex and its application in the Horn of Africa and identifies the arguments by which the

Horn is considered by the authors a pre-complex. A second section presents the facts that

would justify the classification of the African Horn as a complex, as the increase in the degree

of a security interdependence among countries in the region, the role that Ethiopia plays as a

regional power, and the advancement of the Intergovernmental Authority on Development

(IGAD) in the areas of Security and Defense. Noting the development of regional dynamics

that support this reclassification, part to a third and final section, which is the effort to provide

for the region alternative demarcated borders to that proposed by the authors, which does

justice to the new regional interaction flows and the classification of the African Horn as a

regional security complex.

Keywords: International Security. Regional Security Complex. Horn of Africa.

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 6

1 A TEORIA DOS COMPLEXOS REGIONAIS DE SEGURANÇA E O

CASO DO PRÉ-COMPLEXO AFRICANO .................................................... 9

2 A REVISÃO DA CASSIFICAÇÃO: O CHIFRE DA ÁFRICA COMO

UM COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA ...................................... 13

2.1 O Papel das Externalidades de Segurança ..................................................................... 14

2.2 O Papel da Etiópia ............................................................................................................ 18

2.3 O Papel do IGAD .............................................................................................................. 22

3 A DELIMITAÇÃO DE FRONTEIRAS ...................................................... 25

CONCLUSÃO ................................................................................................... 30

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 32

6

O Complexo Regional de Segurança do Chifre Africano: Revisão da

Classificação e Definição de Fronteiras1

Guilherme Bohrer Antonelo2

Introdução

Nos últimos vinte e cinco anos a humanidade vivenciou uma série de intensas

transformações que afetaram desde as a relações cotidianas entre os homens e o espaço que

habitam, até as relações políticas, econômicas e securitárias dos Estados dentro de um sistema

internacional que, aos poucos, se revela mais e mais complexo. Embora o Chifre da África

seja uma das regiões mais instáveis do planeta em termos securitários e de desenvolvimento,

permanece sendo um objeto de estudo posto à margem, dentro de um já marginalizado

continente africano, em relação ao avanço da pesquisa científica dentro do campo das

Relações Internacionais. É notável a falta de compreensão existente na área, em especial

evidência no caso dos pesquisadores brasileiros, acerca dos assuntos de política e segurança

relativos ao continente africano, embora haja importantes exceções de estudos e grupos de

pesquisa que se debruçam sobre os estudos africanos. Por um lado, as teorias tradicionais não

têm encontrado sucesso na tentativa de explicar certos fenômenos recorrentes, como causa e

solução de conflitos, fraqueza estatal, intervenção externa. Por outro, os formuladores de

política externa com frequência têm se deparado com interpretações superficiais e distorcidas

a cerca do cenário africano, cometendo erros fundamentais na hora de conduzir sua ação

política, como classicamente ficou conhecida a atuação de Henry Kissinger em uma de suas

primeiras missões a frente do National Security Council Interdepartmental Group for África,

ao tratar a disputa entre África do Sul e Angola na metade da década de 1970 (Chan 1990,

18). Dessa forma, este trabalho se posiciona despretensiosamente junto a uma nova corrente

de estudos que buscam superar parte dessa lacuna e se dedicam a analisar, primeiro, o

continente africano e segundo, o continente africano sob o prisma do Novo Regionalismo.

O Chifre da África vive, com o fim da Guerra Fria, um período de conturbadas

interações políticas e duras crises envolvendo conflitos violentos, períodos de seca e

1 Artigo elaborado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Relações Internacionais,

Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Santa Maria. Este artigo foi redigido com

base nas normas técnicas da MDT. 2 Graduando do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria.

7

problemas sociais acentuados3. Em praticamente todos os indicadores sociais, econômicos e

políticos globais pode-se encontrar algum dos Estados do Chifre entre os piores colocados,

seja em índices desenvolvidos por organismos intergovernamentais como a ONU – por meio

de suas agências, o Banco Mundial e o FMI, seja por Organizações Privadas e Não-

Governamentais como The Fund for Peace (Fragile States Index4), Transparency International

(Corruption Perception Index5) e Global Terrorism Database (Global Terrorism Index6). Por

um lado nenhuma dessas classificações pode definir com clareza e imparcialidade a situação

complexa do cenário internacional no que diz respeito a quais países conseguem melhor

combinar poder, estabilidade e desenvolvimento. Por outro, essas considerações a cerca do

panorama geral do Chifre da África nos ajudam a perceber, embora de maneira simplificada, a

importância que ganha o Novo Regionalismo no campo das Relações Internacionais nos dias

de hoje, em especial nos países do chamado “mundo em desenvolvimento”. Isso ocorre à

medida que (1) os problemas dos Estados se tornam problemas da região com acelerada

fluidez e facilidade, e justamente por isso (2) as soluções para os problemas dos Estados não

podem ser alcançadas sem que sejam solucionados os problemas da região, e vice-versa.

O Novo Regionalismo, cujo debate central é a crescente importância das regiões, serve

então como pano de fundo deste artigo.7 Essa renovada corrente teórica surge com o objetivo

de lançar respostas às complexidades de um novo cenário internacional que se configura após

o vácuo de poder deixado em grande parte do globo com o fim da Guerra Fria. Tanto a

desintegração da URSS, por razões óbvias, quanto o inesperado recuo dos Estados Unidos,

que a despeito de estabelecer-se como o principal polo de poder no sistema, passa a limitar

seu ímpeto de ação a regiões estratégicas, são responsáveis por gerar em suas respectivas

esferas de influência um processo de regionalização acentuado. É evidente a inexistência de

3 Importa dizer que tais problemas não ocorrem apenas no pós-Guerra Fria: crises políticas, conflitos violentos,

períodos de seca e péssimos indicadores socioeconômicos caracterizam a região de maneira alternada ao longo

do tempo, com alguns dos fatores fazendo parte do próprio processo de formação dos Estados. (Halliday and

Molineaux 1981; Clapham, Herbst, and Mills 2001). Trata-se aqui de delimitar um espaço temporal a esta

pesquisa e assinalar tanto a continuidade quanto a acentuação desses dilemas regionais do Chifre africano no

pós-1991. 4 A Somália figurou por seis anos como o país número 1 no índice que mensura 12 fatores, entre eles o aparato

de segurança estatal, a pressão demográfica, o número de refugiados e deslocados internos, e a incidência de

intervenção externa; no índice de 2014 a Somália cai para a segunda posição deixando o primeiro lugar para o

Sudão do Sul, o mais novo Estado do Chifre africano. 5 De 177 países avaliados em 2013, Somália aparece em 175º, Sudão em 174º, Sudão do Sul em 173º e Eritréia

em 160º. O índice define corrupção como o uso indevido de bens públicos para benefício privado. 6 Índice que classifica os países com base em um catálogo de ocorrências de ataques terroristas ao redor do

globo; o terrorismo internacional é mais um fator de instabilidade no Chifre, tendo como centro de propagação a

Somália (6º), o Sudão (11º) e o Quênia (18º). 7 O Novo Regionalismo pode se referir ao novo ímpeto nos processos de integração regional no pós-Guerra Fria

e à nova corrente no estudo das regiões. Este trabalho trata do segundo fenômeno. Mais sobre essa diferenciação

e o segundo caso em específico ver Vayrynen (2003) e Fawn (2009).

8

consenso entre os pesquisadores sobre se o final da Guerra Fria teria gerado efeitos

integradores ou desintegradores nas relações globais8, e mesmo se as regiões passam de fato a

contar com maior autonomia de atuação nessa nova ordem mundial, com as potências

emergentes sendo cada vez mais responsáveis por preencher esse vácuo de poder e ditar a

pauta de segurança e desenvolvimento em suas regiões9, ou se o que vivenciamos é na

verdade um desinteresse da potência hegêmonica, e não autonomia de fato das regiões10

. A

percepção compartilhada é, no entanto, a de que o fim da bipolaridade serviu como gatilho

para um nível cada vez maior de interação entre os atores regionais, e como resultado, o

aumento do interesse dos pesquisadores em compreender essas novas dinâmicas11

. Dessa

maneira, esses autores reconhecem que:

“Primeiro, regiões são agora característica mais saliente da política internacional.

(…) Segundo, o final da Guerra Fria inaugurou novas possibilidades para orden

regionais mais cooperativas. (…) Terceiro, regiões não são apenas sistemas

internacionais menores que se comportam de maneira idêntica àquela de suas

contrapartes „maiores‟. Nem elas são sui generis, passíveis de serem compreendidas

apenas por meio de teorias exclusivas. Precisamos de teorias genéricas que

incorporem as relações regionais. (...) Quarto, (...) a política externa das grandes

potências deve ser ajustada às circunstanciais individuais das distintas regiões.”

(Lake e Morgan 1997, 6-7, tradução nossa)12

O conceito de Complexo Regional de Segurança, desenvolvido no trabalho de Barry

Buzan (1981) e consolidado por Barry Buzan e Ole Waever (2003), é um dos elementos

centrais dos estudos regionalistas vinculados à área de Segurança Internacional. É

amplamente mencionado e adotado em trabalhos que se debruçam sobre a tarefa de definir

8 Debate existente entre autores que assumem uma visão otimista sobre o Fim da Guerra Fria (aumento da

cooperação internacional) e entre os que assumem uma visão pessimista (aumento do conflito e o desejo de

“return to the good old days – or what we mistakenly thought the bad old days”), (Stein and Lobell 1997, 101).

Os autores defendem que na verdade esse debate deve ser superado, já que regiões distintas evidenciam

resultados distintos no que diz respeito aos resultados da Guerra Fria, que derivam do tipo de envolvimento das

superpotências na região durante o período da disputa (supressão ou exacerbação dos conflitos regionais). 9 Sobre mensuração de potências regionais no continente africano ver Castellano (2013, 66-77).

10 Katzenstein (2005) reconstrói a teoria sistêmica neorrealista agregando as novas variáveis propostas pelo Novo

Regionalismo, como “openness of the region” e “weakness of the state”, e defende, por meio do seu modelo de

“hub-and-spoke” que na verdade a situação atual não representa um aumento de autonomia nas regiões, mas sim

demonstra a fraqueza e porosidade em relação ao interesse da potência hegemômica, no caso, os Estados Unidos.

“Top down unipolaity erodes a regional level of analysis. (...) Regions are plataforms for the transmission of US

power and cultural tropes. Katzenstein terms the US world order an „imperium‟. Washington coordinates the

nodes for its own purpose.” (Kelly 2007, 222) 11

“The regional level stands more clearly on its own as the locus of conflict and cooperation for states and as

the level of analysis for scholars seeking to explore contemporary security affairs.” (D. A. Lake and Morgan

1997, 6). Também os trabalhos de (Ayoob 1995, 115; Kelly 2007, 197; Prys 2010, 479) entre outros, relacionam

o fim da Guerra Fria e o crescente interesse por regiões em si e pelos processos de regionalização. 12

“First, regions are now more salient features of international politics. (...) Second, the end of Cold War has

opened new possibilities for more cooperative regional orders. (…) Third, regions are not simply little

international systems that behave in ways identical to their „larger‟ counterparts. Nor are they sui generis,

understandable only through unique theories. We need general theories that incorporate regional relations. (…)

Fourth, (…) the foreign policies of the great powers must be tailored to the individual circumstances of different

regions.” (Lake e Morgan 1997, 6-7)

9

regiões e analisá-las como um nível distinto. No entanto, a sua aplicação empírica no próprio

texto de 2003 apresenta limitações claras, especialmente no que diz respeito ao caso africano.

O objetivo principal deste estudo é apresentar uma visão alternativa à percepção dos autores

sobre o Chifre da África, mais especificamente contestando a classificação dessa região como

um pré-complexo regional de segurança, em vez de um complexo regional de segurança. A

primeira seção retoma a análise de Buzan e Waever sobre Complexos Regionais de Segurança

e a sua aplicação ao Chifre africano e identifica os argumentos pelos quais o Chifre é

considerado pelos autores um pré-complexo. A segunda seção é organizada com o objetivo de

reunir elementos que permitem rebater a classificação de Buzan e Waever e justificar a

classificação do Chifre africano como um complexo, sejam eles, o aumento do grau de

interdependência securitária entre os países da região, o papel que a Etiópia desempenha

como potência regional, e o avanço das iniciativas da Autoridade Intergovernamental para o

Desenvolvimento (IGAD, na sigla em inglês) nas áreas de Segurança e Defesa. Ao constatar a

evolução das dinâmicas regionais que sustentam essa reclassificação, constrói-se uma terceira

e última seção, que consiste no esforço de oferecer para a região uma delimitação de

fronteiras alternativa àquela proposta pelos autores, que faça jus aos novos fluxos de interação

regionais e à classificação do Chifre africano como um complexo regional de segurança.

1 A Teoria dos Complexos Regionais de Segurança e o Caso do Pré-

Complexo do Chifre Africano

O Novo Regionalismo estuda regiões pelas dinâmicas e interações entre as unidades de

uma região estabelecida, e adota os avanços da Teoria de Relações Internacionais sobre

análise do sistema internacional. Como mencionado por Buzan & Waever (2003, 41-42), há

evidências de discussões sobre Complexos Regionais de Segurança desde 1983, e diversas

formas de aplicação desse modelo de análise a determinadas regiões em particular. No

entanto, a versão definitiva da teoria foi elaborada pelo próprio Buzan como um capítulo

específico dentro de um livro mais genérico sobre segurança internacional (Buzan 1991,

186–229). Em síntese, o conceito de Complexo Regional de Segurança Um Complexo

Regional de Segurança (CRS) se caracteriza como sendo “um conjunto de unidades cujos

principais processos de securitização, dessecuritização, ou ambos, são tão interligados que

seus problemas securitários não podem ser analisados ou resolvidos maneira separada entre

10

as unidades” (Buzan and Wæver 2003, 44, tradução nossa) 13

. Importa aqui a definição de que o

rastreamento de processos de independência securitária é o que nos permite definir os limites de um CRS.

Resumidamente, a caracterização de um Complexo Regional de Segurança pelos autores

fundamenta-se em quatro variáveis, como apontado por Machado (2009, 9): (1) o vínculo

com a dimensão territorial, (2) a distribuição de poder entre as unidades (polaridade), (3) os

padrões e processos de securitização e dessecuritização, e (4) os padrões de amizade e

inimizade (polarização). A partir dessa caracterização, as regiões são agrupadas em categorias

distintas14

: a) regiões centralizadas – ou com base no papel de uma potência (caso do

complexo da América do Norte) ou com base em uma forte institucionalização (caso do

complexo da União Européia); ou b) regiões padrão – “com estrutura normalmente

multipolar, lógica de interação westfaliana, e agenda de segurança marcada por questões

políticas e militares” (Machado 2009, 10), na qual se enquadram a maioria dos onze grupos

de regiões identificados, complexos ou subcomplexos.

Pré-complexo e proto-complexo surgem como casos intermediários entre os dois

extremos de um contínuo que vai da ausência de relações de segurança no nível regional,

situação de rara observação em que os atores regionais são tão fracos a ponto de serem

incapazes de gerar interdependência securitária regional, até a existência de forte

interdependência regional que justifique a existência de um complexo estruturado. Assim,

para os autores, a questão é compreender a partir de qual momento as interações securitárias

entre os países de uma região se tornam suficientemente fortes para dar início à formação e

ao amadurecimento de relações regionais até atingirem a fase de um Complexo Regional de

Segurança.

Durante dois momentos distintos, durante e após a Guerra Fria, os autores enquandram

o Chifre africano sob as categorias de “pré-complexo” e “proto-complexo”, respectivamente.

Conforme apresentam Buzan e Waever:

“Nós estaremos tratando de pré-complexos quando um conjunto de relações de

segurança bilaterais aparenta ter potencial para formar um CRS, mas ainda não

atingiu um nível suficiente de interações cruzadas (cross-linkage) entre as unidades

para ser considerado como tal. O Chifre da África é um bom exemplo. E estaremos

tratando de proto-complexos quando existe manifestação de interdependência

securitária suficiente para delinear uma região e diferenciá-la das regiões vizinhas,

no entanto as dinâmicas regionais ainda são muito fracas e insubstanciais para

pensarmos a região como um CRS completamente estabelecido. A África Ocidental

13

“(…) a set of units whose major processes of securitisation, desecuritisation, or both are so interlinked that

their security problems cannot reasonably be analysed or resolved apart from each other.” (Buzan and Wæver

2003, 44) 14

Para uma descrição detalhada das categorias de regiões ver Buzan e Wæver (2003, 62).

11

é o exemplo mais claro desta condição.” (Buzan and Wæver 2003, 64, tradução

nossa)15

Os próprios Buzan e Waever (2003) já percebiam a possibilidade de evolução16

do

Chifre africano para um complexo, especialmente devido ao surgimento de uma possível

rivalidade acentuada entre Egito e Etiópia que trouxesse a órbita de segurança egípcia mais

para perto do Chifre, e ao avanço do IGAD na área de segurança (Buzan and Wæver 2003,

233; 243), em função disto, vale ressaltar que este trabalho, mais que uma correção da

estrutura proposta pelos autores, é uma demonstração de que as evoluções as quais os

mesmos já podiam perceber, não apenas tomaram forma como se desdobraram em outras

ainda mais contundentes para essa nova definição. O Chifre cada vez mais se estrutura e se

conecta como região, embora se reconheça aqui que muitas das limitações apresentadas pelos

autores permaneçam recorrentes. O ponto em questão é que um olhar mais atento e

aprofundado sobre essa região nos permite perceber um maior nível de interação de

segurança que aquele percebido por Buzan e Waever em 2003.

O argumento apresentado nesse artigo busca em primeiro lugar chamar atenção para o

que Machado define como a existência de “vícios de critérios” (Machado 2009, 12) na teoria

de Buzan e Waever. O primeiro deles, a adoção de “um tipo de delimitação outside-in, na

qual complexos regionais devem respeitar rigidamente as fronteiras de seus componentes

estatais” (Machado 2009, 12). Essa visão é rebatida neste trabalho não tanto em relação à

possibilidade de se repartir um Estado e enquadrá-lo parcialmente em dois ou mais CRS

distintos, respeitando suas dinâmicas domésticas, mas de demonstrar que os limites

apontados na interpretação de Buzan e Waever sobre a classificação do Chifre se devem

igualmente a essa percepção estatocêntrica.17

Esta subestima a capacidade de elementos não-

estatais e de elementos internos na produção de interações securitárias a nível regional,

15

“We will talk of pre-complexes when a set of bilateral security relations seems to have the potential to bind

together into an RSC, but has not yet achieved sufficient cross-linkage among the units to do so. The Horn of

Africa is a good example. And we will talk of proto-complexes when there is sufficient manifest security

interdependence to delineate a region and differentiate it from its neighbours, but when the regional dynamics

are still too thin and weak to think of the region as a fully fledged RSC. West Africa is the clearest example of

this condition.” (Buzan and Wæver 2003, 64) 16

Na construção da teoria, os autores mencionam a existência de três possibilidades de evolução dos Complexos

Regionais de Segurança em relação à „fotografia‟ temporal registrada na data de publicação da obra. No futuro,

os complexos poderiam (1) não sofrer mudanças significativas, mantendo assim o status quo do complexo, (2)

sofrer transformações internas – nível de polaridade, de polarização e fim da anarquia estrutural como reflexo de

um movimento de integração, e (3) sofrer transformações externas – as fronteiras do complexo podem expandir

ou encolher. (Buzan and Wæver 2003, 53) 17

Embora seja evidente que os autores reconheçam a particularidade do caso africano em relação à fraqueza

estatal (Buzan & Wæver, 2003, 219-252), adotam o mesmo tipo de metodologia de análise. Ao invés de repensar

a teoria, eximem-se de explicar as distorções do caso africano assumindo que são casos “menos evoluídos”,

como se pode verificar na classificação contestável de quase todo o continente.

12

especialmente em um espaço geográfico onde o fenômeno das guerras por procuração18

, do

terrorismo e da fome produzem um número bastante elevado de dilemas de segurança

regionais, e mais importante, de demanda de soluções regionais para esses dilemas. O

segundo vício é que “o estudo de Buzan e Waever, por definição, visa segmentar todo o

espaço planetário em complexos regionais auto-excludentes (sem áreas de

intersecção19

)”(Machado 2009, 12). Este segundo critério é de fundamental impacto na

análise deste trabalho, tendo em vista que um dos pontos mais importantes que impedem a

classificação do Chifre como um complexo seria a incapacidade de determinar suas fronteiras

meridionais (Buzan and Wæver 2003, 242). Ora, a porosidade de fato representa uma

dificuldade na tentativa de estabelecimento dessas fronteiras, no entanto, como se demonstra

na terceira seção desse artigo, a combinação da existência de interações de segurança com

esforços de ação regionalizados, explicitamente por meio do IGAD, é o que nos permite, por

exemplo, anexar Quênia e Uganda às fronteiras do complexo do Chifre africano, enquanto

Egito e Iêmen são apontados como espécie de Estados-observadores, categoria não existente

no modelo de Buzan e Waever, mas que é empregada aqui como forma de descrever os

Estados que possuem evidências claras de compartilharem dinâmicas de segurança, embora

estejam com seu centro de atuação regional voltados para outro complexo.

Feitas estas considerações, resta-nos detalhar os principais argumentos de Buzan e

Waever que impossibilitam a caracterização do Chifre como um complexo. Segundo os

autores, o fim da bipolaridade acompanha suficiente consolidação das dinâmicas do Chifre, o

que permite avançar sua classificação de um pré- para um proto-complexo, no entanto, como

18

A Guerra por procuração ou “proxy war”, no termo em inglês, é um conflito armado que tem por característica

essencial a intersubjetividade. É um tipo específico de conflito em que não há relação de subjugação entre as

forças que travam a guerra e aquelas que a financiam. (Loveman 2002, 50). Ainda, segundo Castellano (2012a),

a Guerra Proxy parece ter sido a característica da Guerra Fria no continente africano, permanencendo hoje como

forma de guerra dominante na África. Para o autor, “Seria ingênuo pretender um conceito fixo e imutável de

guerra proxy. Analiticamente, importam duas assertivas que, associadas à intersubjetividade referida, parecem

caracterizar o fenômeno. Primeiro, a guerra proxy não é uma mera insurgência, o apoio do exterior permite que

faça frente com relativa facilidade às gendarmerias ou guardas nacionais. Naturalmente, exige a presença do

exército nacional e das armas combinadas para fazer frente aos grupos proxy de forma efetiva. Segundo, é

possível caracterizar a guerra proxy através da presença conjugada de dois ou mais dos indicadores que

seguem: (a) alinhamento político-ideológico (válido sobretudo para a época da Guerra Fria); (b) financiamento

mediante contrapartida ou usufruto de enclave – diamante, cobre, ouro, etc.; (c) presença de assessores; e (d)

fornecimento de material bélico e munições.” (Castellano 2012a, 35 e 36) 19

A inviabilidade desse argumento é atestada pelos próprios autores ao tratar o caso particular de Uganda. Em

função do vício de critério (e em clara tentativa de preservar a aplicabilidade da teoria defendida), são incapazes

de enxergar que certos países atuam de maneira distinta em regiões distintas, e que sua classificação em um ou

outro agrupamento regional depende, acima de tudo, do propósito do pesquisador. “Uganda illustrates the

difficulty, seeming to be a kind of regional hub, yet without providing much connection between the different

security dynamics in which it as engaged. Uganda plays into the Horn because of its interaction with Sudan into

Central Africa because of its interactions with Rwanda and DR Congo, and into Eastern Africa because of its

interactions with Kenya and Tanzania.” (Buzan and Wæver 2003, 233)

13

se pode perceber pelo trecho citado anteriormente, a distinção entre os dois casos é bastante

imprecisa e de difícil mensuração (ambos teriam baixa interdependência securitária, no

entanto o proto-complexo já estaria claramente formado20

). Assim, apesar da evolução,

importa destacar que em maior ou menor quantidade, em ambos os períodos o Chifre é

caracterizado pela: (a) ausência de “crosslinkage” entre as unidades, ou seja, “existem muitos

elementos que atestam forte interdependência securitária bilateral, mas fraqueza na tentativa

de conectar esses elementos de maneira agrupada de forma a constituir um padrão integrado”

(Buzan and Wæver 2003, 232–3;241) 21

, especialmente a falta de ligação significativa entre

as dinâmicas etíopes-somalis de um lado, e etíopes-sudanesas de outro; (b) a dificuldade de

estabelecer as fronteiras ao sul do complexo; (c) a organização regional existente (o IGAD) é

fraca e não se sustenta em uma comparação com a ECOWAS ou a SADC como corpo

regional de segurança; por fim, ainda que não explicitamente redigido pelos autores, se pode

inferir que os mesmos apontem (d) a inexistência de polaridade e polarização claras, capazes

de conectar as dinâmicas regionais.

O objetivo da próxima seção é verificar e atualizar empiricamente estes argumentos.

Ainda, demonstrar que o papel regional da Etiópia (sua posição geoestratégica, capacidades

materiais e percepção de ameaças), as iniciativas desenvolvidas pelo IGAD, e a

interdependência securitária gerada por três dilemas centrais que exigem soluções

regionalizadas (conflito no Sudão, conflito na Somália, e o problema da seca) e seus efeitos

colaterais, permitem a classificação do Chifre como um complexo regional.

2 A Revisão da Classificação: O Chifre da África como um Complexo

Regional de Segurança

Esta seção busca apontar, como o fazem Diallo (2012) e Castellano (2012b) em seus

respectivos estudos sobre a África Ocidental e a África Austral, ainda que aqui de maneira

mais modesta, possíveis equívocos de interpretação de Buzan e Waever sobre a análise de

regiões do continente africano. Enquanto Castellano busca repensar a extensão das fronteiras

e a polaridade do complexo da África Austral, o esforço de Diallo é similar ao que se

desenvolve neste artigo, e busca apresentar as causas que sustentam a evolução da

20

(Buzan and Wæver 2003, 233) 21

“(…) having many elements of strong bilateral security interdependence, but failing to link these together into

an integrated pattern.” (Buzan and Wæver 2003, 232–3;241)

14

classificação do proto-complexo da África Ocidental para a de um complexo. Diallo já aponta

em seu ensaio a possibilidade de que o mesmo erro de classificação tenha sido cometido na

análise do Chifre africano. É na esteira de sua afirmação que a segunda e terceira seções do

presente trabalho visam lançar luz sobre alguns fatos que demonstrem essa falha no Chifre da

África.

Os argumentos que contestam a análise assumida por Buzan e Waever (2003) podem ser

divididos em três pontos que se interconectam: primeiro, a existência de externalidades de

segurança que geram impactos e demandam soluções regionais, segundo, o papel regional que

a Etiópia assume na região, e terceiro, o papel fundamental de conexão regional que o IGAD

desempenha. Cada um deles, e os três em conjunto, servem como contraponto aos argumentos

de Buzan e Waever na medida em que demonstram (a) a existência de crosslinkage entre os

países, (b) a existência de uma polaridade aparentemente centrada na Etiópia (c) o

fortalecimento do IGAD como ator regional na área de segurança, e (d) a possibilidade de

definir uma fronteira clara para o Chifre (esta explicitada na próxima seção). Em relação à

centralidade etíope, assume-se aqui que os demais países da região orbitam por meio de

interações entre si (em menor escala) e, mais intensamente, com a potência central22

. Além

disso, importaria averiguar a posição e o papel recentemente desempenhado por Quênia e

Uganda23

.

Essa divisão do argumento em três categorias é feita aqui com o mero objetivo de

facilitar a compreensão e análise dos fatores, já que para demonstrar a evolução do Chifre

africano para o nível de complexo é fundamental que todas elas sejam percebidas como sendo

interconectadas. Por exemplo, a posição geográfica central da Etiópia e a forma como atua na

região para fornecer uma solução ao conflito no Sudão do Sul formam um cenário que atesta

o fortalecimento das relações de segurança. Ou ainda, o avanço da cooperação no Chifre por

meio do IGAD, se dá, não por coincidência, em um contexto em que a Etiópia experiencia um

momento econômico favorável, ao mesmo tempo em que para manter-se nesse rumo é

fundamental que seja capaz de solucionar os dilemas regionais de segurança e

desenvolvimento que afetam a região como um todo e o país em específico.

2.1 O Papel das Externalidades de Segurança

22

Em se artigo seminal sobre o estudo das regiões William Thompson (1973) compila uma série de hipóteses

desenvolvidas, dentre outros assuntos, sobre a distinção entre a ação de Estados centrais e periféricos dentro de

um sistema regional, deixando evidente que “relations between core and periphery frequently take precedence

over and are more important than relations within the periphery”. (Thompson 1973, 110-11) 23

Essa discussão é mencionada brevemente na próxima seção, e desponta como objeto de pesquisas futuras.

15

Importa aqui a definição de David Lake (1997) de complexo de segurança como sendo

um conjunto de Estados afetados por:

“ao menos uma externalidade de segurança transfronteiriça, ainda que local, e que

emana de uma área geográfica em particular. Se a externalidade local se manifesta

como uma ameaça real ou potencial à segurança física dos indivíduos ou do governo

em outros Estados, ela acaba por produzir um complexo regional de segurança.” (D.

A. Lake 1997, 48, tradução nossa) 24.

Não há aqui espaço para, nem é o objetivo do trabalho analisar como as principais

externalidades de segurança locais têm se tornado regionais no Chifre africano, mas sim

identificar que, em três casos especiais isso tem ficado mais evidente: (a) o conflito em

escalada no Sudão do Sul, (b) o aparentemente insolúvel conflito na Somália, e (c) o problema

da seca/escassez de alimentos que se abate sobre a região periodicamente. Os conflitos na

Somália e no Sudão, são importantes fatores que conectam as dinâmicas de segurança do

Chifre, tanto na forma de atuação direta dos outros Estados unilateralmente, por meio de suas

ações de política externa, quanto por meio do IGAD, em ações regionais conjuntas

(mencionadas na próxima seção), e do auxílio internacional, seja na forma de financiamento

ou contenção de grupos rebeldes e outros atores não-estatais que se infiltram com fluidez

pelas fronteiras nacionais, seja na forma de auxílio militar por meio de treinamento e presença

de tropas estrangeiras.

No caso da Somália, desde a desintegração estatal que dá início a Guerra Civil em 1991,

após a queda do Presidente Siad Barré25

, não há um governo central que seja capaz de

estender seu controle sobre todo as fronteiras marítimas e territoriais, criando assim pressões

regionais e internacionais difíceis de serem solucionadas. Problemas como pirataria, lavagem

de dinheiro, tráfico humano e de drogas, pesca ilegal e radicalismo islâmico (JANES 2009, p.

24), têm feito com que os países da região e potências extrarregionais se envolvam na

tentativa de reconstrução do país. Em dezembro de 2006 a Etiópia realiza uma intervenção

unilateral mal-sucedida, que é amparada por tropas das Nações Unidas e da União Africana,

sendo Uganda responsável pelo envio de grande parte dos soldados da operação. Em 2011, o

Quênia monta uma operação assumidamente anti-terrorista na Somália26

, em parceria com as

24

“(…) at least one transborder but local externality that emanates from a particular geographic area. If the

local externality poses an actual or potential threat to the physical safety of individuals or governments in other

state, it produces a regional security (…) complex.” (Lake 1997, 48) 25

Embora este seja considerado o marco inicial da Guerra Civil na Somália, se aplicarmos a definição do Correlates of War (COW), “(...) namely that military action is involved and that at least 1,000 battle deaths result annually (...)”, a Somália encontra-se em estado de guerra civil desde Maio de 1988. (JANES 2009, 24). 26

Algumas das justificativas para o envolvimento do Quênia no conflito da Somália são apontadas pelo Coronel Cyrus Oguna, em entrevista ao Africa Defense Forum: “Somalia-based militants, al-Shabaab, repeatedly

16

forças de paz do IGAD, repetindo o trio de Estados que também estão na linha de frente para

a promoção da paz e do desenvolvimento estatal no Sudão do Sul.

Em relação a este segundo caso, a cessão entre Sudão e Sudão do Sul sempre foi mais

relevante para a agenda de segurança regional que a porção de Darfur, onde os países do

Chifre não possuem grande envolvimento. No entanto, a criação do novo país após o

referendo de 2011 traz à tona uma série de novos dilemas securitários para o Chifre da África,

dentre eles duas questões fundamentais, a produção de petróleo e a presença norte-americana,

e a apropriação das águas do Nilo Branco, que fluem por entre o Sudão e o Sudão do Sul, e

que aproximação do Egito com a região. Mais importante, a cooperação trilateral, que tem por

sustentação a estratégia do IGAD (discutida no item 2.3), tem levado Etiópia, Quênia e

Uganda a cooperarem para a mitigação dos problemas de instabilidade política e securitária

no novo país que são percebidos como um entrave ao desenvolvimento regional.

Enquanto os dois primeiros envolvem interdependência securitária imediata, o terceiro

elemento é ao mesmo tempo mais evidente e ainda mais complexo de ser solucionado. Uma

relação direta pode ser estabelecida entre o problema da seca, e a securitização regional.

Como apontado pelo relatório da Agência das Nações Unidas para s Refugiados (UNHCR, na

sigla em inglês), sobre a vulnerabilidade climática e a perspectiva dos refugiados no Chifre da

África (AFIFI et al. 2012)27

, demonstra como o problema da migração em larga escala no

Chifre vem sendo falsamente relacionado a uma mera questão de degradação e ambiental. Na

verdade, o deslocamento populacional que é fruto de, e também reproduz, a instabilidade

regional, é resultado de uma série de escolhas políticas domésticas e internacionais,

combinada com uma transformação nas formas tradicionais de gerir o espaço e os recursos

existentes. Nesse sentido, o problema da seca surge como mote para a exacerbação de uma

série de outros males que afligem a região. De um lado, a falta de desenvolvimento

tecnológico e a baixa capacidade estatal dos Estados, faz com que a pressão por recursos

escassos como água e alimentos, coloque a sociedade em uma espiral de instabilidade. De

outro lado, as consequências dessa a proliferação de movimentos rebeldes, terroristas ou não,

violated Kenya’s sovereignty through unprovoked attacks on Kenya’s citizens and other interests. There were several attempted pirate attacks in Kenya’s territorial waters and spirited efforts to recruit young Kenyans to join the terror group. Additionally, the militant group kidnapped individuals who were providing humanitarian services.” (Kihara e Kioko 2013, 39). 27 “The attention to the nexus between displacement and migration induced by environmental factors, including

climate change and conflict or human security, has also increased. A recent report by the United Nations

Secretary-General, „Climate Change and its Possible Security Implications‟, and another prepared by the High

Representative and the European Commission to the European Council, „Climate Change and International

Security”, define migration as one of the channels through which climate change works as a threat multiplier for

existing threats to security, exacerbating economic, political and social problems‟.” (Afifi et al. 2012, 40).

17

o fluxo de refugiados e a presença internacional, por meio de potências, da ONU ou agências

de ação humanitárias se propaga. Como bem apontado por Paul Nugent (2012, 330-375), a

explosão de organizações humanitárias no continente africano, especialmente aquelas

oriundas do norte global, e movidas pela vitimização do continente, deve ser analisada com

cuidado, pois “embora há poucas razões para temer ONGs que organizam as mulheres de

uma comunidade para a produção de sabão há boas razões para suspeitar daquelas

relacionadas aos direitos humanos ou à questões ambientais” (Nugent 2012, 358). Ao

usurparem as funções dos Estados, em alguns casos podem ser vistas como infringindo a

soberania nacional, ou mesmo entrar em uma relação de troca de favores com os governos

locais, na qual estes fornecem concessões e proteção em troca de benefícios28

.

O mapa abaixo ilustra a dimensão da situação humanitária no Chifre da África em 2011,

ano em que ocorreu a última seca prolongada e que acabou por atingir, em meio uma das mais

severas crises de fome dos últimos tempos, o número alarmante de mais de dez milhões de

pessoas em necessidade de assistência humanitária. Nas regiões críticas dos países mais

afetados, Etiópia, Quênia e Somália, a porcentagem de precipitação durante o período de

Junho de 2010 a Maio de 2011 não chega a atingir metade da quantidade de chuva esperada. A

combinação de fatores ambientais, sociais e políticas é um dos maiores dilemas que os países

do Chifre precisam enfrentar para atingir o rumo do desenvolvimento e da estabilidade

política e securitária.

Mapa 1 – Regiões afetadas na Grande Fome de 2011 no Chifre da África

28

“A good example of someone who learned to play the game was the director of Ndugu Society in Kenya, Ezra

Mbogori. When the Kenyan government introduced legislation subject NGOs to tighter controls in 1991, north

NGOs and local NGOs joined forces to resist what they regarded as unwarranted interference. Mbogori was

elected to a new lobby group, the NGO Standing Committee, which successfully challenged the government plan.

However, the Ndugu Society itself stayed well clear of political controversy in its work with street children and

sum dwellers, and was able to carry out resettlement schemes in Nairobi on the basis of its co-operative

relationship with the local administration” (Nugent 2012, 358-59).

18

Fonte: UNOCHA (2011).

2.2 O Papel da Etiópia29

Duas questões parecem ser centrais em relação à análise da importância que a Etiópia

representa no Chifre da África. A primeira consiste na dúvida pertinente salientada por Cepik

e Schneider (2010) sobre a capacidade da Etiópia, como Estado unitário e potência regional,

de impor a paz em sua região. Quais seriam os limites dessa atuação? A segunda questão

envolve o questionamento subjacente de que, caso não seja ela capaz de assumir esse papel

central, algum dos demais atores regionais estaria mais apto a fazê-lo?

A centralidade da Etiópia é defendida neste artigo com base em quatro fatores que,

combinados, a postulam como a potência mais capaz de assumir a linha de frente na

construção da pauta de segurança do Chifre africano.30

Primeiro, o fator material, na medida

em que as capacidades excepcionais etíopes em relação aos seus países vizinhos a colocam

em posição favorável; segundo, o fator econômico, que vislumbra nos últimos tempos um

horizonte mais favorável do que aqueles vivenciado durante o período da Guerra Fria até a

virada do século; terceiro, o fator geoestratégico, defendido aqui como um dos principais 29

Parte do conteúdo desse artigo é desenvolvida tendo como base o trabalho de (Mohammed 2007). 30

Sobre o estudo de potências regionais ver Nolte (2010) e Flemes (2010).

19

pontos de sustentação da centralidade etíope; quarto, e especialmente, o fator política externa

para a região, pelo qual se pode observar, ainda mais claramente que em todos os anteriores,

que a Etiópia se encontra essencialmente conectada a praticamente todos os dilemas de

segurança regionais, sendo a grande responsável por integrar a região.

Primeiro, o fator material, classicamente utilizado pelas teorias realistas no cálculo de

definição de potências: o tamanho do território, o tamanho da população, e o seu aparato

burocrático estatal bastante desenvolvido31

, somados com o fato de ser uma das três maiores

forças militares da África32

são os itens mais frequentemente adotados para posicionar a

Etiópia como um dos “big states” africanos. Segundo, o fator econômico: posta ao lado das

duas outras potências regionais africanas mencionadas por Diallo e Castellano (Nigéria e

África do Sul, respectivamente), a Etiópia é o Estado que tem demonstrado maior crescimento

anual do PIB33

, fortemente impulsionado pelo desenvolvimento da agricultura (as exportações

de café são basilares na economia etíope), além do investimento em infraestrutura (as obras da

“Represa do Grande Renascimento Etíope”, que com seu nome bastante sugestivo busca

solucionar o problema da seca em certas regiões do país como sendo o principal expoente), e

do Investimento Estrangeiro Direto, com destaque para a ação de países emergentes34

.

O terceiro e o quarto fator, a posição geoestratégica etíope (i.e., vide Mapa 2) e sua

política externa para a região são ainda mais determinantes. A primeira é uma condição

paradoxalmente vantajosa. Embora o país tenha perdido seu acesso para o mar nos anos 1990

com a independência da Eritréia, está localizado no centro da região, o que o permite atuar

como „hub‟, ou ponto de conexão, ao fazer fronteira com praticamente todos os outros

países35

. De fato, se levamos em consideração os oito membros do IGAD, percebemos que a

Etiópia faz fronteira com sete deles, enquanto Quênia contabiliza cinco vizinhos de fronteira,

Sudão do Sul quatro, e todos os demais apenas três, a Etiópia e mais dois (exceto pelo caso de

Uganda, que só possui duas fronteiras com os países da região). Isso revela tanto um potencial

31

População em 2012: 91,73 milhões e em franco crescimento. Território: 1,104.30 (1.000km²) (World Bank

2013). Sobre o desenvolvimento e a distinção do aparato burocrático etíope ver (Schneider 2010, 157–158). 32

Juntamente com Marrocos e Egito. “The Ethiopian National Defense Forces (ENDF) numbers about 200,000

personnel, which makes it one of the largest militaries in Africa (…), [the] 29th largest in the world of 132 in

terms of armed forces growth, and 11th out of 166 countries in terms of personnel. Military expenditure for the

year 2005 amounts to $800,000,000.00 and this places her on 56th position of 170. The military expenditure was

3% of its GDP for 2006 and 49th in the world.” (Fentaw 2009, 1) 33

O PIB da Etiópia cresceu em 2010, 12.6%; em 2011, 11.2%, e em 2012 8.7%. No mesmo período o PIB da

África do Sul cresceu, respectivamente, a 3.1%, 3.6% e 2.5% ao ano, e o da Nigéria a 7.8%, 4.7% e 6.7% ao ano.

(World Bank 2013) 34

Sobre as relações de comércio entre Etiópia e BRICS ver o trabalho de Chukwuka Onyekwena, Idris

Ademuyiwa, Olumide Taiwo, e Eberechukwu Uneze (Onyekwena et al. 2014). 35

Com exceção de Uganda, cuja capital, Kampala, encontra-se a 1.180km de Adis Abeba, mas que, no ponto

mais próximo entre os dois países, não dista mais de 300km da Etiópia.

20

positivo (linhas de comércio), quanto negativo (neste ano, por exemplo, a Etiópia ultrapassa o

Quênia como maior receptor de refugiados da África com o aumento do conflito no Sudão do

Sul).

Por fim, em relação à política externa etíope, podemos perceber claramente uma

preocupação com a questão regional, dado que não apenas os países vizinhos são tratados de

maneira particularizada no Livro de Defesa lançado em 2002, como há uma seção curta,

porém específica, abordando o fortalecimento do IGAD e o papel que a Etiópia pode

desempenhar na organização. Um último ponto relacionando esses dois últimos fatores é a

posição simbólica que a Etiópia desempenha no continente e que, a despeito da desconfiança

de vizinhos como a Eritréia e Sudão, a põe em posição de destaque.36

Em síntese, a Etiópia é a potência que detém condições de atuar regionalmente, e

demonstra claras intenções de que é do seu interesse fazê-lo. A iminência de conflitos entre os

Estados vizinhos e entre estes e a Etiópia (ameaça latente dado o histórico de guerras

interestatais que torna o Chifre caso único no continente africano), a preocupação com uma

presença egípcia na região e a própria instabilidade política interna etíope são as principais

ameaças a uma ascensão regional etíope. Isso, considerando-se o fato de que o fator

econômico (tradicionalmente um impeditivo para a ação regional etíope) vem sofrendo

incrementos significativos nos últimos tempos, especialmente pelo desenvolvimento da

cultura do café, da urbanização e do investimento estrangeiro.

Em relação à segunda questão apontada, qual seja, o questionamento acerca de quais

dentre os demais países da região teriam capacidade de assumir um papel de liderança

regional, resta mencionar que aparentemente Quênia e Uganda seriam os dois Estados que

detêm capacidades similares às da Etiópia, ou em alguns aspectos até superiores. Por

exemplo, embora a população absoluta da Etiópia seja expressivamente maior que a de

Quênia e Uganda37

, indicadores relevantes para o cálculo de capacidade estatal como a taxa

de população urbana38

, ou a projeção de crescimento da população em idade ativa (dos 15 aos

59 anos)39

nos permitem colocar os três Estados, em certo grau de comparação, na linha de

36

A Etiópia, envolvida nos assuntos africanos de maneira única, foi e segue sendo palco central de fenômenos

políticos e econômicos internacionais que transformam o continente: membro fundador e sede da União

Africana, símbolo de resistência ao colonialismo na África, aliada soviética durante o regime socialista, e hoje

aliada norte-americana na luta contra o terror, e parceira da China para o crescimento econômico. 37

Populações absolutas em 2012: Etiópia - 96,633,45; Quênia - 45,010,056; Uganda - 35,918,91. (UN 2013). 38

População urbana em 2011: Etiópia – 17%; Quênia – 24%; Uganda – 15.6%. Projeção de população urbana

em 2050: Etiópia – 35.5%; Quênia – 45.7%; Uganda – 36.9%. (UN 2013) 39

Projeção de crescimento da população entre 15-59 anos: (a) Etiópia – 52.1% (2013), 63.7% (2050), 54.7%

(2100); (b) Quênia – 53.5% (2013), 59.3% (2050), 58.4% (2100); Uganda – 47.9% (2013), 58% (2050), 59.%

(2100). (UN 2013)

21

frente dos atores regionais. Ainda, como mostra o gráfico abaixo (Figura 1), a projeção feita

pelo Fundo Monetário Internacional acerca do crescimento econômico até 2018 também nos

revela uma equiparação de forças entre os três países, e alerta para o crescimento significativo

que o Sudão vem atingindo.

Figura 1 - CHIFRE DA ÁFRICA: CRESCIMENTO DO PIB (2010 a 2018)

Fonte: IMF (2013). Adaptado pelo autor.

No entanto, o conjunto de fatores supracitados, em especial a posição geoestratégica

etíope, situam a Etiópia como potência central do complexo regional. Além disso, o

envolvimento etíope com as principais pautas de segurança da região, como já citado,

fortalecem seu papel de principal conector das dinâmicas de segurança do Chifre. Além disso,

pode ser que vejamos ocorrer aqui algo similar ao que existia na primeira metade do século

XX entre Estados Unidos e a Inglaterra, em que ambos eram pólos a nível sistêmico, nem por

isso se opunham. Contudo, a predominância da cooperação, e não do conflito entre os três

atores, aparentemente fortalece uma centralidade etíope. Sudão, Somália, e Eritréia, embora

em momentos anteriores tenham agido como rivais ao poder etíope, cooptando suporte

externo, hoje não se encontram em posição favorável ou não demonstram claras intenções de

assumirem uma postura de potência regional, embora as relações ainda não sejam de toda

forma estáveis. Uma forte evidência da centralidade etíope pode ser ainda apontada a partir do

plano de modernização e reorganização da Ethiopian National Defence Force (ENDF)

-6,00%

-4,00%

-2,00%

0,00%

2,00%

4,00%

6,00%

8,00%

10,00%

2010 2011 2012 2013 2014 2018

Etiópia

Quênia

Sudão

Uganda

22

lançado em 2005, com duração de dez anos. Fica claro neste plano, construído para atingir os

objetivos da própria constituição de 1995 e do Foreign Affairs and National Security Policy

and Strategy, lançado em 2002, que “a intenção é que as forças armadas se tornem flexíveis o

suficiente para de adaptar ao desenvolvimento político e securitário do Chifre da África e de

todo o continente” (IISS 2014, 418). Sendo assim, acordos de defesa estão sendo realizados

com Sudão, Sudão do Sul, Quênia, Somália, Somaliland, Djibouti, Uganda, Burundi e

Ruanda, bem como uma série de outras nações africanas mais distantes. Além disso,

estudantes estrangeiros dos países vizinhos são encontrados na maioria das escolas e

universidades militares etíopes, enquanto apenas alguns poucos estudantes etíopes frequentam

as principais faculdades dos países vizinhos.

2.3 O Papel do IGAD

O IGAD – Intergovernmental Authority on Development, desponta recentemente como

o organismo central, responsável por conectar as dinâmicas do Chifre. O argumento de Buzan

e Waever sobre a inexistência de conexões entre os membros da região deve ser atualizado

para fazer jus ao fortalecimento de organização. Se antes os autores argumentavam que as

estruturas da organização eram frágeis a ponto de não conseguirem responder às dinâmicas de

segurança, hoje a organização se fortalece tanto com base em sua atuação, quanto em seu

reconhecimento pelos atores regionais e internacionais. Para o avanço da classificação do

Chifre como complexo, mais que valorar se a organização tem gerado avanços ou não em

termos de seus resultados em busca da paz e do desenvolvimento, importa levar em conta que

este é hoje o principal fórum de debate e de ação coordenada da região. Seja em conluio com a

União Africana, seja com a Nações Unidas, é por meio do IGAD que os Estados da região têm buscado

atualmente formatar suas políticas regionais, em clara demonstração do que Kelly (2007, 218) se refere

como sendo uma “sovereign-reinforcing International Organization”. Ou seja, a organização

regional é responsável por reforçar, e não erodir a soberania estatal, fortalecendo a capacidade

dos Estados para lutar e fornecendo apoio para lidar com problemas domésticos e assim

melhor moldar a ação externa.

O principal fator que não chega a ser analisado por Buzan e Waever, e que representa

um importante ponto de inflexão, foi o desenvolvimento e a aplicação da Estratégia do IGAD

(IGAD 2010), um documento composto de cinco seções, elaborado em 2003 e adotado no 10º

Encontro entre Chefes de Estado e Governo da região. Embora o documento não coloque

nominalmente a paz e a segurança como aspectos centrais, a intenção de fortalecer a

23

organização por meio do desenvolvimento da agricultura e do ambiente, do trato das relações

políticas e humanitárias na região, e da cooperação econômica, subjaz a noção de que o modo

de resolução dos conflitos pode ser por outro caminho, que não o comumente adotado por

meio da militarização. O fato é que a partir de 2003 uma série de programas envolvendo a

restauração da estabilidade regional tem emergido dentro da organização, especialmente

ativos na capacitação e na ação contra os principais dilemas regionais (citados no próximo

item). Talvez um do mais impactante deles seria a criação em 2006 do IGAD Capacity

Building Programme Against Terrorism (ICPAT), que junto com o Programa de Prevenção,

Gestão e Resolução de Conflitos, da Divisão de Paz e Segurança, constitui a instância mais

essencialmente securitária da organização. É inegável que o IGAD tem se demonstrado mais

atuante no sentido de transformar o cenário de instabilidade e subdesenvolvimento em

regional por meio de uma cooperação institucionalizada, intensificando a interdependência

securitária regional. Em especial, a atuação trilateral de Quênia, Uganda e Etiópia tem

reforçado essa tendência positiva.

A busca pelo fortalecimento das capacidades estatais dos atores regionais tem sido o

mote que guia a atuação da organização. Como demonstra o comentário publicado na página

da organização sobre o “IGAD Strategy”, documento desenvolvido e adotado em 2003 pelos

Chefes de Estado dos países da região, o fortalecimento das capacidades estatais está na base

da estratégia da organização para promover o desenvolvimento e a segurança regionais:

“A Seção [III] identifica a necessidade de destinar certo número de pautas

estratégicas fundamentais pertencentes à natureza complexa e em constante

transformação da cooperação regional. Estas incluem assuntos de política

externa; compartilhamento de informações; construção de capacidades;

estabelecimento de parcerias e alianças; e facilitação do desenvolvimento de

pesquisa e tecnologia. (...) Deve ser destacado nesta articulação que a

capacidade do IGAD abrange tanto a capacidade técnica quanto institucional

dos Estados-Membros, as quais estão à disposição do IGAD.” (IGAD, 2010,

tradução nossa).40

Essa estratégia central se converte em uma série de programas e agências que buscam

atingir a missão e a visão da organização, e aplicar a estratégia de desenvolvimento da

capacidade dos Estados de prever, gerenciar e resolver seus dilemas externos, e em conjunto,

construir uma ordem regional mais próspera. No caso da Somália, é desenvolvido o “Somalia

40

The Section [III] identifies the need to address a number of key strategic issues pertaining to the complex and

ever changing nature of regional cooperation. These include policy matters; development information sharing;

capacity building; establishing partnerships and alliances; and facilitating research and technology development.

(...) It should be underlined in this juncture that the capacity of IGAD encompasses both the technical and

institutional capacity in the Member States that are to the IGAD disposal.” (IGAD, 2010)

24

Peace Facilitation Office”, e no caso do Sudão do Sul, a “Regional Capacity Enhancement

Initiative” (“IGAD Initiative”, doravante). Este último é um caso especial que merece

destaque, pois reúne a contribuição das três principais potências regionais, Etiópia, Quênia e

Uganda, para promover o desenvolvimento das capacidades estatais no recém-

independentizado Sudão do Sul. A IGAD Initiative vem sendo apontada por pesquisadores da

área como um dos modelos de cooperação estatal pós-situação de conflitos mais inovadores

evidenciados ao redor do globo, e consiste n fornecimento de cerca de 200 “civil service

support officers” (CSSOs). Estes são funcionários dos governos de Etiópia, Quênia e Uganda,

cedidos ao governo sul-sudanês, embora continuem sendo remunerados por seus países de

origem, por um período de 2 anos com o objetivo de trabalharem como treinadores e

conselheiros em funções geminadas no país vizinho.

Essa iniciativa promovida pelo IGAD e protagonizada pelas potências regionais é

curiosa por dois motivos: primeiro, como demonstram Costa, Haldrup, Karlsrud, Rosén, &

Tarp (2013, p. 2) ela envolve um alto comprometimento de recursos extremamente escassos,

tanto financeiros41

quanto humanos42

; e segundo, ela tem sido percebida por teóricos e

governantes como um modelo promissor e potencialmente inovador de cooperação para

desenvolvimento de capacidades43

Vale ressaltar aqui que, no entanto, limites à atuação da organização regional continuam

servindo como entrave ao avanço da cooperação. Dentre estes limites, deve-se destacar a

dificuldade de relacionamento entre a membresia, em especial a resistência da Eritréia, e a

escassez de recursos humanos e financeiros, agravada pelo conflito na Somália e no Sudão.

Estas se sustentam como as principais ameaças à evolução do IGAD44

.

41

“The accumulated budget approaches $18 million for the two first years, on top of salaires paid by the

seconding countries, making this Project the largest of its kind to date to be implemented anywhere in the

world.” (COSTA, et al., 2013, p. 2) 42

“(...) the study found that the calibre and integrity of the CSSOs were high – sometimes extraordinarily high.

Because of the regional interconnectedness and the sheer size of the investment, the sending countries had made

significant efforts to recruit the most suitable and capable CSSOS for deployment. There has therefore been

significant attention from the most senior levels of government not to make it a waste of sparse government

resources.” (COSTA, et al., 2013, p. 5) 43

“Firstly, it provides a model of large-scale support to rapid capacity development in core government

functions. Secondly, the use of regional capacity to a certain degree mitigates the potential resentment that

capacity support can generate when external experts are brought into capacity-poor environments. Thirdly, the

programme already shows evidence of impact on core practices such as establishing strategic plans, drafting

policies and supporting their development. Finally, there seems to be a strong ownership of the programme by

the government of South Sudan and many of the twins.” (COSTA, et al., 2013, p. 1) 44

Desafios do IGAD na seção específica do Livro de Defesa da Etiópia (Ethiopia 2002, 105).

25

3 A Delimitação de Fronteiras

Com base no exposto, passa-se aqui à sugestão de uma delimitação de fronteiras para o

Chifre da África. Sabe-se que tal tipo de esforço de pesquisa sempre será fruto de

arbitrariedade e determinado pelo conjunto de variáveis que o pesquisador busca avaliar em

seu objeto de estudo. Assim, impera reafirmar que esta definição é derivada das relações de

interação entre os atores no campo de segurança explicitadas na seção anterior, e por isso,

adequada para o propósito da análise aqui desenvolvida. Isso significa que não se assume

qualquer pretensão de gerar uma definição universalista ou definitiva.

Primeiramente, para a definição das fronteiras desse espaço geográfico, analiticamente

demarcado pelas fronteiras dos Estados-nacionais, é útil a observação feita por Carvalho

(2010) sobre a existência de múltiplas visões sobre quais Estados constituem a região:

“Em sua definição mais abrangente, [o Chifre da África] ocupa uma área que vai

desde o Sudão, a oeste, até a Somália, a leste, e desde o Sudão, ao norte, até a

Tanzânia, ao sul. Por muitas vezes, entretanto, sua definição variou de acordo com o

momento político (...). Algumas definições ainda incluem o Iêmen, que nem na

África está. A Combined Joint Task Force – Horn of Africa (instrumento dos EUA

de combate ao terrorismo na região), por exemplo, tem sua jurisdição nas áreas do

Djibuti, Eritréia, Etiópia, Quênia, Somália, Sudão e Iêmen. A Organização das

Nações Unidas (ONU) fornece um mapa do Chifre da África que contém apenas o

Djibuti, Eritréia, Etiópia, Quênia e Somália, enquanto o International Crisis Group

caracteriza a região como o território que compreende o Djibouti, a Eritréia, a

Etiópia, a Somália e o Sudão. Entre os acadêmicos, a definição de Chifre da África

também está longe de ser consensual. Se para Rotberg (2005), o Chifre da África é

exatamente igual ao da Combined Joint Task Force – Horn of Africa, para Clapham

(2000), o Chifre da África compreende apenas o Djibuti, a Eritreia, a Etiópia e a

Somália.” (Carvalho 2010, 6–7)

Ainda é válido ressaltar que também na configuração de Buzan e Waever acerca da

configuração do Chifre da África (2003, p. 241-3), os países que fazem parte do pré-complexo

não podem ser estabelecidos com facilidade, como já foi mencionado, em função do caráter

insular do extremo sul (fronteiras com o Quênia e Uganda).

Em primeiro lugar, a classificação de Etiópia, Eritréia, Djibuti e Somália como

pertencentes ao Chifre parece ser consensual45

. Uma série de argumentos pode justificar a

adesão do Sudão (e assim, consequentemente, do recém independentizado Sudão do Sul), 45

Apesar de Flora (2010) excluir o Djibuti, a proximidade geográfica e a própria argumentação apresentada pelo

o autor parecem contradizer essa opção. Apesar do baixo grau de interação regional, seria impensável deixar o

país de fora do Chifre da África, pois (1) não há como deixar um espaço vazio na região, como se nada ali

existisse: onde ele, território contíguo do continente africano, estaria incluído se não no Chifre? (2) ainda que

isso possua um caráter mais simbólico, excluir o Djibuti seria excluir o país detentor da sede do IGAD (Djibuti

City), organização cada vez mais atuante nas questões de segurança regionais e (3) não é possível, de toda forma,

prever o que sucederá no futuro: existe uma potencialidade de securitização latente no território se levamos em

conta a presença islâmica, a influência francesa e, principalmente, a norte-americana, bem como a posição

geoestratégica do país (acesso ao Golfo de Aden).

26

entre eles a ocorrência histórica tanto de disputas de fronteiras quanto de guerras civis que

ameaçam a sobrevivência dos regimes e dos Estados, crises econômicas e suas consequências

(problema crônico da fome) que em grande parte se devem à fraqueza das instituições e

políticas domésticas dos países, a mobilização regional por meio do IGAD, em especial no

Sudão do Sul, e a vinculação com o latente dilema das águas do Nilo, e em especial a relação

dos países com a Etiópia nessa e em outras contendas políticas. Na defesa da inevitabilidade

de adesão do Sudão e do Sudão do Sul, faz-se útil mencionar o argumento de Carvalho

(2010):

“Com o passar do tempo e o recrudescimento das relações etíope-sudanesas, o

Sudão também passou a ser considerado como parte da região (...) essa expansão

que ocorre devido à percepção de problemas históricos comuns na região, que ligam

tais Estados uns aos outros, transpassando suas fronteiras, acaba por obrigar seus

governos a securitizar – individualmente – os mais diversos atores regionais, isto é,

Estados, grupos guerrilheiros, insurgentes, terroristas, etc. Tal dinâmica tornou

possível o alargamento da definição de Chifre da África de forma a incluir o Sudão. (Carvalho 2010, 7–8)

Quanto à adição do Quênia e Uganda, cada vez mais uma análise sobre as dinâmicas

de segurança e poder no Chifre da África se fragiliza caso algum desses dois países não seja

considerado como parte integrante da região. Dos estudos encontrados sobre o tema, ainda são

maioria aqueles que defendem a classificação de nenhum ou de apenas um dos dois países

como estando dentro das fronteiras do Chifre africano, apesar da existência de uma série de

indícios que apontem à anexação de ambos, os quais fazem a divisa entre o Chifre e as

dinâmicas da África Central: a definição das Nações Unidas inclui o Quênia no Chifre e a

análise de Buzan e Waever já aponta para fortes laços entre Uganda e o então pré-complexo

regional. Assim, em uma síntese do já apontado na seção anterior, adicioná-los faz-se

essencial devido: (1) à existência de continuidade territorial e dilemas fronteiriços que

conectam Quênia e Uganda às dinâmicas do Chifre; (2) ao papel central que os dois países

têm desempenhado, ao lado da Etiópia, na tentativa de fortalecer as estruturas de segurança do

IGAD; (3) à intensificação das interações entre esses países e o restante da região sendo os

maiores exemplos deste fato a recorrência da fome e o escoamento do conflito da Somália e

do Sudão para Uganda e Quênia (o que aproxima também os Estados da preocupação norte-

americana em relação ao desenvolvimento do terrorismo islâmico na região do Chifre, e no

mundo como um todo).

William Thompson (1973) retoma quatro critérios mais comumente adotados na

literatura regionalista acerca da identificação e formação de regiões. Dentre estes fatores, a

interdependência entre os atores da região, entendida como sendo uma situação na qual o

compartilhamento de externalidades de segurança existe em tal medida que uma mudança

27

fundamental em um ponto do sistema regional afeta os demais pontos (Thompson 1973, 101),

é usada aqui como justificativa para a classificação de Egito e Iêmen como observadores. Ou

seja, existe interdependência securitária entre os país, no entanto, são bastante específicas as

transformações conjunturais que, caso venham a ocorrer nesses países, acabem por gerar de

fato tal efeito sistêmico na região. Assim, ao posicionar o Egito e o Iêmen como Estados-

observadores, busca-se evidenciar o limitado grau de interdependência que ambos os países

compartilham com o restante da região.

Primeiro, o distanciamento do Iêmen se ampara na posição geográfica do país, já que

o mesmo não pertence ao continente africano e apesar de sua posição costeira geoestratégica

(jurisdição parcial sobre as águas do estreito de Bab-el-Mandeb, uma das principais rotas

marítimas do planeta) que o conecta com o Chifre, sua inserção internacional se dá mais pelas

conexões com o mundo árabe que com o mundo africano. Depois, se levamos em

consideração sua presença em instituições regionais, percebemos que o país é membro da

Liga Árabe e da Organização de Cooperação Islâmica, e não da União Africana e do IGAD.

Ainda, em que pese às dinâmicas regionais de segurança, suas relações diplomáticas e

econômicas são essencialmente bilaterais e limitadas aos países mais próximos (Somália,

Eritréia e Djibouti), sem interações expressivas com o restante região. No entanto, a relação

do país com o Chifre está vinculada a uma série de outros fatores, entre estes a preocupação

norte-americana com o avanço do terrorismo na região, e o receio do avanço de um Estado

Islâmico por parte da Etiópia. Em termos mais contundentes, desde 2002, com a formação de

uma aliança entre Sudão, Etiópia e Iêmen, que o último tem se aproximado cada vez mais das

dinâmicas securitárias do Chifre. O objetivo inicial de realizar uma pressão organizada contra

a Eritréia, país com o qual tanto o Iêmen, quanto o Sudão e a Etiópia travavam disputas desde

1995, foi expressamente substituído em 2004, quando a aliança assume um caráter

antiterrorista, buscando tirar proveito do interesse estadunidense na região, conforme

explicitado no trecho a seguir:

“Os três países estão ansiosos para reverter sua imagem de paraíso para militantes

islâmicos, e as operações contra a AIAI46

podem envolver troca de informações ou

46

Al-Itihaad al-Islamiya, organização criada para derrubar o governo somali que se alia com a Al-Qaeda de Bin

Laden em 1993. “AIAI was listed on 6 October 2001 (…) as being associated with Al-Qaida, Usama bin Laden

or the Taliban for „participating in the financing, planning, facilitating, preparing or perpetrating of acts or

activities by, in conjunction with, under the name of, on behalf or in support of”, „supplying, selling or

transferring arms and related materiel to‟ or „otherwise supporting acts or activities of” Al-Qaida and Usama

bin Laden. (…) AIAI was established between 1982 and 1984 and, along with other organizations, sought to

overthrow the government in Somalia. AIAI‟s leadership has included Hassan Abdullah Hersi al-Turki and

Hassan Dahir Aweys. (…) Usama bin Laden (deceased) devoted substantial funds towards the establishment of

an AIAI-administered authority in Somalia, which supported the ultimate aim of setting up an Al-Qaida base of

operations there. AIAI later supported Al-Qaida‟s bombing of the United States Embassies in Kenya and

28

até mesmo cooperação militar entre os três países. Dado o histórico da Etiópia como

um aliado dos EUA, este 'eixo anti-terror‟ não pode ser visto apenas como uma

apropriação cínica da agenda dos EUA para fins domésticos. No entanto, a Eritreia

sente o seu cerco estreitar-se, e tem denunciado essa aliança como um "eixo de

beligerância". (JANES 2009, 18, tradução nossa)47

Segundo, e finalmente, a fragilidade e limitações das relações entre Egito e o Chifre,

pautadas pela sua fronteira com o Sudão e pelo controle das águas do Nilo, fundamental para

sua sobrevivência econômica, atrelando-o a uma rivalidade com a Etiópia, já havia sido

observado pelos próprios Buzan e Waever e segue ainda hoje sendo evidenciada. Embora a

preocupação com o nível das águas do Rio Nilo siga aumentando gradativamente,

especialmente com a prospecção do desenvolvimento de um cenário mais pacífico no Sudão

do Sul e com o início de novas fases das obras para desviar o curso do Nilo Azul por parte da

Etiópia, o país ainda se apresenta como um ator externo à região. Por mais que possua

capacidade de interferência, o Egito se limita hoje a promover uma espécie de guerra

psicológica com a Etiópia, ameaçando a utilização de ataques aéreos e suporte a grupos

rebeldes, embora nada tenha acontecido, e o mesmo permaneça sem um envolvimento para

além de suas próprias questões de interesse nacional:

“Esses movimentos têm conduzido a uma política externa egípcia cada vez mais

ativa na região, aumentando a possibilidade específica de uma rivalidade Egíto-

Etiópia (...). Embora o Egito tenha desde longa data uma história colonial singular

em torno do Nilo Austral, tem sido ali um player periférico (...). Sua posição tem

sido consistentemente contrária à etíope, dando apoio à Somália em 1977 e ao Sudão

em 1976. A despeito de muitos atritos entre Cairo e Cartum (...) os dois governos

[Egito e Sudão] vivem um momento de aproximação. O Egito preocupa-se com o

controle das águas do Nilo, e assim se opõe tanto à secessão do Sudão do Sul (pelo

qual fluem as águas do Nilo Branco), quanto (em uma situação na qual podemos

traçar muitos paralelos com aquela existente entre Turquia e Iraque) se preocupa

sobre os planos etíopes de construir usinas nas nascentes do Nilo Azul.” (Buzan e

Waever 2003, 243, tradução nossa).48

Tanzania on 7 August 1998. AIAI also supported Al-Qaida‟s bomb attack on the Paradise Hotel in Kikambala

and the simultaneous attack against a civilian airliner in Mombasa, Kenya, in 2002.” (UN 2011) 47

“All three countries are eager to shed their image as havens for Islamist militants, and operations against the

likes of AIAI may involve information or even military co-operation between the three countries. Given

Ethiopia's record as a US ally, this 'anti-terror axis' cannot be seen purely as a cynical hijacking of the US

agenda for domestic purposes. Nonetheless, Eritrea feels its encirclement very keenly, and has denounced the

alliance as an 'axis of belligerence'. “ (JANES 2009, 18) 48

“These moves have run into an increasingly activist Egyptian policy in the region, raising the specific

possibility of an Egyptian–Ethiopian rivalry (...). Although Egypt has its own longstanding colonial history along

the Southern Nile, it was a peripheral player (…). Its position was consistently anti-Ethiopian, supporting

Somalia in 1977 and Sudan in 1976. Despite the many frictions between Cairo and Khartoum, (…) the two

governments are now moving closer together. Egypt worries about control of the Nile waters, and thus opposes

both the secession of southern Sudan (through which flows the White Nile), and (in a situation with many

parallels to that between Turkey and Iraq) also worries about Ethiopian plans to build dams on the headwaters of

the Blue Nile.” (Buzan and Wæver 2003, 243)

29

Feitas estas observações, e com base nas percepções extraídas da pesquisa, chega-se à

conclusão de que a fim de procurar abarcar a complexidade das relações de securitização dos países do

Chifre da África, a sua configuração mais adequada (Mapa 1) poderia envolver como

pertencentes os oito Estados (Etiópia, Somália, Eritréia, Djibuti, Sudão, Sudão do Sul, Quênia

e Uganda) que possuem tanto continuidade geográfica (proximidade/ocorrência de

externalidades), como também fazem parte da organização regional, o IGAD

(interdependência securitária acentuada). Outros dois Estados ainda estão fortemente

atrelados às dinâmicas do Chifre em termos de ocorrência de externalidades, Egito e Iêmen,

no entanto, embora vinculados a importantes dilemas de segurança regionais, têm seu centro

de ação política voltado para outra região que não o Chifre (a África do Norte e o Oriente

Médio, no caso egípcio49

, e o Oriente Médio ou Península Arábica, no caso iemenita); por

esse motivo justifica-se sua classificação como Estados-observadores.

MAPA 2 – FRONTEIRAS REGIONAIS DO CHIFRE DA ÁFRICA

49 Sobre o desafio que o caso do Egito representa à Teoria dos Complexos Regionais de Segurança ver (Buzan

and Wæver 2003, 259-260).

30

Fonte: CIA (2010). Adaptado pelo autor.

Delimitação das fronteiras do Chifre da África (correspondência com as fronteiras do IGAD).

Países observadores

CONCLUSÃO

Este trabalho buscou realizar uma revisão da aplicação da Teoria dos Complexos

Regionais de Segurança de Barry Buzan e Ole Waever (2003) para o caso do Chifre africano,

e fornecer uma visão alternativa quanto ao nível de relações de interdependência securitárias

percebidas pelos autores como sendo existentes na região. A primeira seção retomou a Teoria

do Complexo Regional de Segurança, desenvolvida pelos autores em 2003 com base em

trabalhos anteriores, e apresentou a posição de Buzan e Waever quanto à incapacidade de

31

classificar o Chifre da África como um Complexo Regional de Segurança, atestada pelos

mesmos em função da insuficiência tanto de dinâmicas de segurança quanto de níveis de

interdependência entre os atores regionais. A segunda seção buscou atualizar a discussão e

defender que um novo cenário vem se desenhando no Chifre nos últimos anos, em função do

aumento do nível de interdependência securitária representado parte pelos desafios impostos

pelas externalidades de segurança, e parte pelas tentativas de solução comum para os

problemas regionais. Em especial, o papel que a Etiópia assume na região foi posto em

destaque como mais um contra-argumento à classificação do Chifre como um pré-complexo

ou um proto-complexo por Buzan e Waever. Por fim, a terceira seção trouxe uma definição

das fronteiras regionais alternativa àquela apresentada por Buzan e Waever, delimitando a

fronteira sul do Complexo Regional com a inclusão de Uganda, Quênia, e sugerindo a

vinculação de Egito e Yêmen como estados-observadores.

Assume-se que as variáveis escolhidas para justificar uma reclassificação do Chifre para

o status mais elevado de Complexo Regional de Segurança, e redefinir suas fronteiras com

base nas dinâmicas de interação entre os atores, podem ser contestadas. entanto, mais que

estabelecer uma visão definitiva acerca do assunto, o principal objetivo deste artigo é

despertar a discussão sobre esta que, com base em todos os argumentos já mencionados, é

uma das regiões que mais instigadoramente fornecem substrato para o avanço dos estudos

regionalistas, especialmente em termos políticos e securitárioss. A pesquisa contribuiu, enfim,

para problematizar a definição de um dos principais conceitos dentro dos estudos de

Segurança em Relações Internacionais e a sua aplicação em relação ao continente africano.

As constatações oriundas deste trabalho se somam à corrente de estímulo aos estudos

africanos que se aprofunda no Brasil, e fornecem, em especial para aqueles que se dedicam a

compreender os assuntos relativos às dinâmicas de segurança do Chifre da África, mais um

prisma de interpretação. Ainda, estudar questões de segurança regional sob uma nova

perspectiva, qual seja, a de que a cooperação regional pode servir como forma de

consolidação e desenvolvimento dos Estados, de reforço da soberania empírica (e não

meramente jurídica), e de promoção da estabilidade e do desenvolvimento.

Por fim, importa salientar que a conclusão deste trabalho traz consigo possibilidades

para estudos futuros que venham a complementar ou superar limitações do presente estudo.

Ainda é parco, por exemplo, o conhecimento acerca de que forma potências regionais se

comportam tanto no sistema internacional, quanto no sistema regional em que se inserem ao

perseguirem seus interesses. Há lacunas na compreensão de até que ponto as ambições nessas

duas esferas são passíveis de serem conduzidas de maneira coordenada, equilibrando seus

32

esforços e resultados na busca pelo poder. Merece também maior atenção a tentativa de

compreender de que forma as dinâmicas domésticas impactam nos níveis regional e global, e

vice-versa. Também as noções de regiões de intersecção e Estados-observadores, como

mencionadas brevemente neste trabalho devem ser avaliadas e eventualmente aprofundadas.

REFERÊNCIAS

AFIFI, T., Govil, R., Sakdapolrak, P. and Warner, K. (2012). Climate change, vulnerability

and human mobility: Perspectives of refugees from the East and Horn of Africa. Report

No. 1. Partnership between UNU and UNHCR. Bonn: United Nations University

Institute for Environment and Human Security (UNU-EHS).

AYOOB, Mohammed (1995). The Third World Security Predicament: State Making,

Regional Conflict, and the International System. Boulder: Lynne Rienner Publishers.

BANK, World (2013). “World Development Indicators.” http://data.worldbank.org/data-

catalog/world-development-indicators.

BUZAN, Barry. (1991 [1983]): People, States and Fear: An Agenda for International Security

Studies in the Post-Cold War Era, 2nd edn, Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf

BUZAN, Barry, and Ole Wæver (2003). Regions and Powers: The Structure of International

Security. New York: Cambridge University Press.

CARVALHO, Daniel Duarte Flora (2010). “Conflitos No Chifre Da África: Oportunidades E

Constrangimentos Da Difusão Do Poder.” Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-

Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas. Pontifícia Universidade

Católica de Sao Paulo.

CASTELLANO DA SILVA, Igor (2012a). Congo, a guerra mundial africana: conflitos

armados, construção do estado e alternativas para a paz. Porto Alegre : Leitura XXI

/Cebrafrica / UFRGS.

CASTELLANO DA SILVA, Igor (2012b). Southern Africa Regional Security Complex: The

emergence of bipolarity?. Occasional Paper No 15 2012. Pretoria: Africa Institute of

South Africa.

CASTELLANO DA SILVA, Igor (2013). Mitologia e Teoria de Relações Internacionais na

África: Avanços do Novo Regionalismo. Revista Interação, v.5 n.5, UFSM.

CEPIK, Marco, e Luiza Galiazzi Schneider (2010). “O Papel Da Etiópia No Chifre Da África:

Uma Potência Capaz de Impor a Paz?” Conjuntura Austral 1: 8.

CHAN, Stephen (1990). Exporting Apartheid: Foreign Policies in Southern Africa, 1978-

1988. London: Macmillan Publishers.

33

CLAPHAM, Cristopher, Jeffrey Herbst, e Greg Mills (2001). Big African States.

Johannesburg: Wits University Press.

CIA (2014). CIA World Factbook. [https://www.cia.gov/library/publications/the-world-

factbook/geos/et.html]. Último acesso em: 08/11/2014.

COSTA, Diana Felix da, Søren Vester Haldrup, John Karlsrud, Frederik Rosén, and Kristoffer

Nilaus Tarp. 2013. Friends in Need Are Friends Indeed: Triangular Co-Operation and

Twinning for Capacity Development in South Sudan.

DIALLO, Mamadou Alpha (2012). A Dinâmica de Segurança Regional Na África

Subsaariana: África Ocidental Proto-Complexo Ou Sub-Complexo Regional de

Segurança?.

ETHIOPIA (2002). The Deferal Democratic Republic of Ethiopia - Foreign Affairs and

National Security Policy and Strategy.

FAWN, Rick (2009). “„Regions‟ and Their Study: Where From, What for and Where To?”

Review of International Studies (35): 5–34.

FENTAW, Alemayehu (2009). Ethiopia‟s Foreign Affairs and National Security Policy: The

Case for a Paradigm Shift. Adis Abeba. Jimma University.

FLEMES, Daniel (2010). Regional Leadership in the Global System: Ideas, Interestsand

Strategies of Regional Powers. Aldershot: Ashgate.

HALLIDAY, Fred, e Maxine Molineaux. (1981). The Ethiopian Revolution. London: Verso

Editions and NLB.

IGAD (2010). IGAD Strategy. Disponível em:

http://igad.int/index.php?option=com_content&view=article&id=93&Itemid=124&limit

start=2. Último acesso em 15/11/2014.

IISS (2014). International Institute for Strategic Studies. The Military Balance. Chapter Nine:

Sub-Saharan Africa, The Military Balance, 114:1, 411-470, DOI:

10.1080/04597222.2014.871886

IMF (2013). International Monetary Fund. April 2013 World Economic Outlook (WEO) -

Hopes, Realities, Risks. Disponível em:

http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2013/01/.

JANE`S (2009). JANE‟S Country Profile: Ethiopia. Acervo do Núcleo Brasileiro de

Estratégia e Relações Internacionais (NERINT), 2009 collection.

KATZENSTEIN, Peter J. (2005). A World of Regions: Asia and Europe in the American

Imperium. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press.

KELLY, Robert E. (2007). “Security Theory in the „New Regionalism.‟” International

Studies Review 9 (2): 197–229.

34

KIHARA, Catherine e Zipporah Kioko (2013). Assessing Operation Linda Nchi - Col. Cyrus

Oguna of the Kenyan Defence Forces discusses his country's involvement in Somalia.

Africa Defense Forum, v. 6, n. 2.

LAKE, David A. (1997). “Regional Security Complexes: A Systems Approach.” In Regional

Orders: Building Security in a New World, edited by Patrick M. Morgan and David A.

Lake, 317. Pennsylvania State University Press.

LAKE, David A., e Patrick M. Morgan (1997). “The New Regionalism in Security Affairs.”

In Regional Orders: Building Security in a New World, edited by David Lake and Patrick

Morgan, 317. Pennsylvania State University Press.

LOVEMAN, Chris (2002). "Assessing the phenomenon of proxy intervention". Conflict,

Security & Development, v. 2, N. 3: 29-48.

MACHADO, Artur Andrade da Silva (2009). “O Complexo Regional de Segurança Do Sul

Da Ásia.” Monografia. Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

MOHAMMED, Abdul. (2007). Ethiopia‟s Strategic Dilemma in the Horn of Africa. Social

Science Research Council (SSRC). Disponível em:

http://hornofafrica.ssrc.org/Abdul_Mohammed/. Último acesso em: 8 de outubro de

2014.

NOLTE, Detlef (2010). “How to Compare Regional Powers: Analytical Concepts and

Research Topics.” Review of International Studies (36): 881–901.

NUGENT, Paul (2012). Africa Since Independence: A Comparative History. Basingstoke: Palgrave Macmillan.

UNOCHA (2011). United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs.

Disponível em: http://www.unocha.org/somalia/reports-media/ocha-reports.

UN (2011). United Nations. Security Council Committee pursuant to resolutions 1267 (1999)

and 1989 (2011) concerning Al-Qaida and associated individuals and entities. Disponível

em: http://www.un.org/sc/committees/1267/NSQE00201E.shtml.

UN (2013). United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population

Division. World Population Prospects: The 2012 Revision, Key Findings and Advance

Tables. ESA/P/WP.227

ONYEKWENA, Chukwuka, Idris Ademuyiwa, Olumide Taiwo, e Eberechukwu Uneze

(2014). “Ethiopia and BRICS: A Bilateral Trade Analysis.” South African Institute of

International Affairs, 25.

PRYS, Miriam (2010). “Hegemony, Domination, Detachment: Differences in Regional

Powerhood.” International Studies Review 12: 479–504.

SCHNEIDER, Luiza Galiazzi (2010). “O Papel Da Guerra Na Construção Dos Estados

Modernos: O Caso Da Etiópia.” Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio

Grande do Sul.

35

STEIN, Arthur A., e Steven E. Lobell (1997). “Geostructuralism and International Politics:

The End of the Cold War and the Regionalization of International Security.” In Regional

Orders: Building Security in a New World, edited by Patrick M. Morgan and David A.

Lake, 101–22. University Park: Pennsylvania State University Press.

THOMPSON, William R. (1973). “The Regional Subsystem: A Conceptual Explication and a

Propositional Inventory.” International Studies Quarterly 17 (1): 89–117.

VÄYRYNEN, Raimo (2003). “Regionalism: Old and New.” International Studies Review

(5): 25–51.