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Direito autoral e licenccedila de uso Este artigo estaacute licenciado sob uma Licenccedila Creative Commons
NOTA SOBRE A NATUREZA DA MULHER NA COMUNIDADE NOTA
NOTA SOBRE A NATUREZA DA MULHER NA COMUNIDADE FAMILIAR E
POLIacuteTICA SEGUNDO PLATAtildeO ARISTOacuteTELES E HEGEL1
SOME REMARKS ON WOMANrsquoS NATURE IN THE FAMILY AND POLITICAL
COMMUNITY ACCORDING TO PLATO ARISTOTLE AND HEGEL
MARINA DOS SANTOS2
(Universidade Federal de Santa Catarina Brasil)
RESUMO
Este artigo pretende mapear comparativamente o lugar destinado agrave mulher no interior dos sistemas poliacuteticos de
Platatildeo Aristoacuteteles e Hegel a partir de um breve esboccedilo de suas concepccedilotildees sobre a natureza humana e a natureza
feminina Pretender-se-aacute indicar em que medida haacute uma relaccedilatildeo ora de tensatildeo ora de complementaridade no
modo como elementos descritivos e prescritivos operam para circunscrever o espaccedilo da mulher agrave esfera privada
do lar no caso das perspectivas aristoteacutelica e hegeliana e como a subordinaccedilatildeo de elementos descritivos a
elementos prescritivos permitem que a mulher ascenda agrave esfera puacuteblica sob a perspectiva platocircnica Apoacutes traccedilar
esse esboccedilo buscar-se-aacute sugerir como essa tensatildeo no caso da filosofia poliacutetica de Hegel resultaraacute por um lado
numa expliacutecita negaccedilatildeo dos direitos poliacuteticos da mulher e por outro na possibilidade de vislumbrar a igualdade
civil e poliacutetica entre homens e mulheres a partir de um dispositivo interno e inerente ao sistema hegeliano a
saber a noccedilatildeo de ldquosegunda naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural
Palavras-chave Natureza humana Mulher Famiacutelia Comunidade poliacutetica Eticidade
ABSTRACT
The aim of this paper is to examine comparatively womenrsquos place within the political systems of Plato
Aristotle and Hegel from a brief sketch of their conceptions about human nature and feminine nature It will be
intended to indicate to what extent there is a relation sometimes of tension sometimes of complementarity in
the way descriptive and prescriptive elements function to circumscribe the space of women from the household
private sphere from Aristotelian and Hegelian perspectives and how the subordination of descriptive elements
to prescriptive elements allow woman to ascend in the public sphere under the Platonic perspective After tracing
this sketch it will be suggested how this tension in the political philosophy of Hegel will result in a way in an
explicit denial of womens political rights and in another way in the possibility of envisioning civil and political
equality between men and women from an internal and inherent device of the Hegelian system the notion of
ldquosecond naturerdquo as ethical reposition of the natural
Keywords Human nature Woman Family Political community Ethical life
httpdxdoiorg1050071677-29542018v17n2p159
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Introduccedilatildeo
O objetivo do presente artigo eacute traccedilar um breve esboccedilo sobre o lugar destinado agrave
mulher no interior dos sistemas poliacuteticos de Platatildeo Aristoacuteteles e Hegel e tentar achar espaccedilo
dentro da teoria deste uacuteltimo para vislumbrar a possibilidade da equidade civil e poliacutetica entre
mulheres e homens atraveacutes da noccedilatildeo de vida eacutetica como segunda natureza A marca desses
sistemas filosoacuteficos como pretenderemos mostrar consiste na postulaccedilatildeo que a natureza
humana possui caracteriacutesticas essenciais as quais natildeo podem ser totalmente satisfeitas pelas
mulheres Tal marca funda-se sobre a crenccedila que o ser humano e a mulher possuem
caracteriacutesticas que lhe pertencem de necessidade e que a mulher dada a sua natureza
essencialmente determinada natildeo eacute capaz de satisfazer plenamente os requisitos da natureza
humana
Pretender-se-aacute mostrar primeiramente como para Platatildeo conceder agrave mulher a mesma
educaccedilatildeo concedida ao varatildeo da comunidade dos guardiotildees da poacutelis em vez de mantecirc-la em
condiccedilotildees totalmente aculturais eacute condiccedilatildeo sine qua non para a realizaccedilatildeo da poacutelis ideal Tais
concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo feminino como veremos natildeo tornam Platatildeo
um ldquofeministardquo pois de nenhum modo o filoacutesofo ateniense parece defender a tese que as
mulheres satildeo iguais aos homens em virtudes intelectuais ou morais ou que elas possam
preencher os requisitos necessaacuterios e suficientes para a satisfaccedilatildeo do ideal da natureza
humana
Nessa mesma linha poreacutem extraindo consequecircncias mais cerceadoras e opressivas
que as platocircnicas podemos localizar a visatildeo aristoteacutelica sobre o papel da mulher Segundo o
Estagirita como veremos a mulher eacute inferior ao homem sob o aspecto bioloacutegico aniacutemico (ou
psicoloacutegico) e ontoloacutegico o que ldquolegitimardquo aos olhos do Filoacutesofo a exclusatildeo feminina do
acircmbito poliacutetico jaacute que essa esfera estaacute fundada sobre o governo da racionalidade e das
virtudes intelectuais as quais o sexo feminino eacute naturalmente inapto a comportar e por isso a
mulher natildeo eacute plenamente digna da condiccedilatildeo de cidadatilde da poacutelis
Hegel por sua vez parece sustentar uma posiccedilatildeo sobre a natureza feminina bastante
proacutexima de Aristoacuteteles distanciando-se assim de Platatildeo visto que segundo Hegel a
determinaccedilatildeo substancial da mulher daacute-se no acircmbito da famiacutelia pois eacute proacuteprio da natureza do
caraacuteter feminino natildeo se comportar segundo as exigecircncias da universalidade mas segundo
opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes engendradas pela fragilidade caracteriacutestica do sentimento
a qual deve ser eliminada no processo de desdobramento do conceito de eticidade para que a
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realizaccedilatildeo plena da ideia da liberdade se decirc No entanto mesmo que a letra do proacuteprio texto
de Hegel pareccedila tatildeo contraacuteria agrave igualdade civil e poliacutetica entre homens e mulheres a noccedilatildeo de
vida eacutetica como segunda natureza permite como pretender-se-aacute mostrar vislumbrar a
possibilidade da equidade de direitos e deveres civis e poliacuteticos entre os sexos atraveacutes da
reposiccedilatildeo eacutetica daquilo que eacute meramente sensiacutevel e natural mediante o engendramento de
costumes que superem tais elementos contingentes conduzindo assim agravequilo que eacute universal
e necessaacuterio
A educaccedilatildeo e o papel da mulher na comunidade dos guardiotildees da poacutelis ideal de Platatildeo
Repuacuteblica3 V 449a-457c
A partir de 449a Platatildeo aborda a questatildeo da educaccedilatildeo das mulheres e das crianccedilas
pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees da poacutelis (minoria dominante chamada a defender a
comunidade poliacutetica) delineando assim o papel que tal questatildeo representa na configuraccedilatildeo
do seu Estado ideal Tal discussatildeo centrar-se-aacute em determinar o regime mais adequado a ser
adotado para a formaccedilatildeo das mulheres e da prole dessa comunidade visto que tal formaccedilatildeo
ldquoarrastaraacute consigo alteraccedilotildees grandes e ateacute radicais conforme for bem ou mal realizadardquo
conforme 449d5-6
O fato de chamar mulheres a defender a poacutelis provendo-as assim do tiacutetulo de
guardiatildes jaacute coloca Platatildeo numa situaccedilatildeo embaraccedilosa frente agrave opiniatildeo sustentada pelo senso
comum acerca da mulher visto que a marca da situaccedilatildeo do sexo feminino em Atenas por
exemplo eacute a da marginalidade e da passividade que o submetem agrave incultura fiacutesica e
intelectual Tendo isso em vista a defesa da tese que eacute preciso conceder agraves mulheres a mesma
educaccedilatildeo dispensada aos varotildees da comunidade dos guardiotildees eacute um embaraccedilo ainda maior
para Platatildeo pois tal tese confronta radicalmente os costumes vigentes em Atenas e o modo
como o fenocircmeno do comportamento moral feminino era observado Assim eacute revisando e se
afastando do modo empiricamente dado e constataacutevel do comportamento da mulher que a
teoria platocircnica natildeo pretende tatildeo somente descrever a realidade sensiacutevel mas prescrever uma
nova realidade de acordo com o necessaacuterio desenvolvimento loacutegico da ideia de poacutelis Isso
talvez explique o rodeio que Soacutecrates tece no iniacutecio do livro V antes de expor tese tatildeo
arrojada a qual ele teme ser ridicularizada por aqueles que ldquocolhem imaturo o fruto da
sabedoriardquo (citaccedilatildeo de Piacutendaro que ocorre em 457b34) e que soacute eacute trazida agrave baila depois de
reiteradas exortaccedilotildees dos interlocutores socraacuteticos que prometem consideraacute-la com sabedoria
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e credulidade
O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que
se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam
atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando
tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo
cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a
eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia
incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas
diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido
anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes
funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em
esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir
negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como
por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro
que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas
(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem
uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal
restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela
diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees
e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo
ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes
para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito
Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria
aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que
pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito
Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo
sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite
dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa
classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo
de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir
desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal
aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os
seus governados
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Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando
com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees
gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado
pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da
propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave
dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito
da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida
privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e
filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave
vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se
incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de
possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante
notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica
moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente
entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas
esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como
naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar
(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um
papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave
classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios
agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos
guardiotildees agrave esfera puacuteblica
Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo
feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir
contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia
necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal
Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de
precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no
reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres
virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a
mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo
permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em
inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto
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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo
feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de
suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica
de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma
consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a
igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim
educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do
platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis
Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos
necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender
descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de
trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a
supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e
tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha
nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como
fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as
condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de
sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas
instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do
sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado
pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica
contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou
impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave
natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada
ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de
produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee
severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar
uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a
saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho
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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob
os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico
Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees
mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na
ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da
participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui
sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua
vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico
O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o
Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia
e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e
mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em
todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute
produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que
participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem
tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2
1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como
o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual
tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que
foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee
apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente
escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai
sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles
eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria
Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou
seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma
segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de
administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser
do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc
isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos
escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da
relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da
capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto
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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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160 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Introduccedilatildeo
O objetivo do presente artigo eacute traccedilar um breve esboccedilo sobre o lugar destinado agrave
mulher no interior dos sistemas poliacuteticos de Platatildeo Aristoacuteteles e Hegel e tentar achar espaccedilo
dentro da teoria deste uacuteltimo para vislumbrar a possibilidade da equidade civil e poliacutetica entre
mulheres e homens atraveacutes da noccedilatildeo de vida eacutetica como segunda natureza A marca desses
sistemas filosoacuteficos como pretenderemos mostrar consiste na postulaccedilatildeo que a natureza
humana possui caracteriacutesticas essenciais as quais natildeo podem ser totalmente satisfeitas pelas
mulheres Tal marca funda-se sobre a crenccedila que o ser humano e a mulher possuem
caracteriacutesticas que lhe pertencem de necessidade e que a mulher dada a sua natureza
essencialmente determinada natildeo eacute capaz de satisfazer plenamente os requisitos da natureza
humana
Pretender-se-aacute mostrar primeiramente como para Platatildeo conceder agrave mulher a mesma
educaccedilatildeo concedida ao varatildeo da comunidade dos guardiotildees da poacutelis em vez de mantecirc-la em
condiccedilotildees totalmente aculturais eacute condiccedilatildeo sine qua non para a realizaccedilatildeo da poacutelis ideal Tais
concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo feminino como veremos natildeo tornam Platatildeo
um ldquofeministardquo pois de nenhum modo o filoacutesofo ateniense parece defender a tese que as
mulheres satildeo iguais aos homens em virtudes intelectuais ou morais ou que elas possam
preencher os requisitos necessaacuterios e suficientes para a satisfaccedilatildeo do ideal da natureza
humana
Nessa mesma linha poreacutem extraindo consequecircncias mais cerceadoras e opressivas
que as platocircnicas podemos localizar a visatildeo aristoteacutelica sobre o papel da mulher Segundo o
Estagirita como veremos a mulher eacute inferior ao homem sob o aspecto bioloacutegico aniacutemico (ou
psicoloacutegico) e ontoloacutegico o que ldquolegitimardquo aos olhos do Filoacutesofo a exclusatildeo feminina do
acircmbito poliacutetico jaacute que essa esfera estaacute fundada sobre o governo da racionalidade e das
virtudes intelectuais as quais o sexo feminino eacute naturalmente inapto a comportar e por isso a
mulher natildeo eacute plenamente digna da condiccedilatildeo de cidadatilde da poacutelis
Hegel por sua vez parece sustentar uma posiccedilatildeo sobre a natureza feminina bastante
proacutexima de Aristoacuteteles distanciando-se assim de Platatildeo visto que segundo Hegel a
determinaccedilatildeo substancial da mulher daacute-se no acircmbito da famiacutelia pois eacute proacuteprio da natureza do
caraacuteter feminino natildeo se comportar segundo as exigecircncias da universalidade mas segundo
opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes engendradas pela fragilidade caracteriacutestica do sentimento
a qual deve ser eliminada no processo de desdobramento do conceito de eticidade para que a
161 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
realizaccedilatildeo plena da ideia da liberdade se decirc No entanto mesmo que a letra do proacuteprio texto
de Hegel pareccedila tatildeo contraacuteria agrave igualdade civil e poliacutetica entre homens e mulheres a noccedilatildeo de
vida eacutetica como segunda natureza permite como pretender-se-aacute mostrar vislumbrar a
possibilidade da equidade de direitos e deveres civis e poliacuteticos entre os sexos atraveacutes da
reposiccedilatildeo eacutetica daquilo que eacute meramente sensiacutevel e natural mediante o engendramento de
costumes que superem tais elementos contingentes conduzindo assim agravequilo que eacute universal
e necessaacuterio
A educaccedilatildeo e o papel da mulher na comunidade dos guardiotildees da poacutelis ideal de Platatildeo
Repuacuteblica3 V 449a-457c
A partir de 449a Platatildeo aborda a questatildeo da educaccedilatildeo das mulheres e das crianccedilas
pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees da poacutelis (minoria dominante chamada a defender a
comunidade poliacutetica) delineando assim o papel que tal questatildeo representa na configuraccedilatildeo
do seu Estado ideal Tal discussatildeo centrar-se-aacute em determinar o regime mais adequado a ser
adotado para a formaccedilatildeo das mulheres e da prole dessa comunidade visto que tal formaccedilatildeo
ldquoarrastaraacute consigo alteraccedilotildees grandes e ateacute radicais conforme for bem ou mal realizadardquo
conforme 449d5-6
O fato de chamar mulheres a defender a poacutelis provendo-as assim do tiacutetulo de
guardiatildes jaacute coloca Platatildeo numa situaccedilatildeo embaraccedilosa frente agrave opiniatildeo sustentada pelo senso
comum acerca da mulher visto que a marca da situaccedilatildeo do sexo feminino em Atenas por
exemplo eacute a da marginalidade e da passividade que o submetem agrave incultura fiacutesica e
intelectual Tendo isso em vista a defesa da tese que eacute preciso conceder agraves mulheres a mesma
educaccedilatildeo dispensada aos varotildees da comunidade dos guardiotildees eacute um embaraccedilo ainda maior
para Platatildeo pois tal tese confronta radicalmente os costumes vigentes em Atenas e o modo
como o fenocircmeno do comportamento moral feminino era observado Assim eacute revisando e se
afastando do modo empiricamente dado e constataacutevel do comportamento da mulher que a
teoria platocircnica natildeo pretende tatildeo somente descrever a realidade sensiacutevel mas prescrever uma
nova realidade de acordo com o necessaacuterio desenvolvimento loacutegico da ideia de poacutelis Isso
talvez explique o rodeio que Soacutecrates tece no iniacutecio do livro V antes de expor tese tatildeo
arrojada a qual ele teme ser ridicularizada por aqueles que ldquocolhem imaturo o fruto da
sabedoriardquo (citaccedilatildeo de Piacutendaro que ocorre em 457b34) e que soacute eacute trazida agrave baila depois de
reiteradas exortaccedilotildees dos interlocutores socraacuteticos que prometem consideraacute-la com sabedoria
162 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
e credulidade
O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que
se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam
atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando
tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo
cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a
eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia
incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas
diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido
anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes
funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em
esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir
negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como
por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro
que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas
(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem
uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal
restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela
diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees
e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo
ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes
para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito
Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria
aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que
pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito
Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo
sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite
dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa
classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo
de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir
desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal
aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os
seus governados
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Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando
com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees
gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado
pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da
propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave
dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito
da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida
privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e
filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave
vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se
incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de
possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante
notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica
moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente
entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas
esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como
naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar
(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um
papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave
classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios
agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos
guardiotildees agrave esfera puacuteblica
Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo
feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir
contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia
necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal
Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de
precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no
reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres
virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a
mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo
permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em
inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto
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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo
feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de
suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica
de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma
consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a
igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim
educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do
platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis
Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos
necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender
descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de
trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a
supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e
tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha
nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como
fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as
condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de
sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas
instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do
sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado
pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica
contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou
impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave
natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada
ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de
produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee
severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar
uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a
saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho
165 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob
os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico
Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees
mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na
ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da
participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui
sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua
vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico
O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o
Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia
e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e
mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em
todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute
produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que
participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem
tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2
1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como
o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual
tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que
foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee
apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente
escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai
sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles
eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria
Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou
seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma
segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de
administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser
do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc
isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos
escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da
relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da
capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto
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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
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realizaccedilatildeo plena da ideia da liberdade se decirc No entanto mesmo que a letra do proacuteprio texto
de Hegel pareccedila tatildeo contraacuteria agrave igualdade civil e poliacutetica entre homens e mulheres a noccedilatildeo de
vida eacutetica como segunda natureza permite como pretender-se-aacute mostrar vislumbrar a
possibilidade da equidade de direitos e deveres civis e poliacuteticos entre os sexos atraveacutes da
reposiccedilatildeo eacutetica daquilo que eacute meramente sensiacutevel e natural mediante o engendramento de
costumes que superem tais elementos contingentes conduzindo assim agravequilo que eacute universal
e necessaacuterio
A educaccedilatildeo e o papel da mulher na comunidade dos guardiotildees da poacutelis ideal de Platatildeo
Repuacuteblica3 V 449a-457c
A partir de 449a Platatildeo aborda a questatildeo da educaccedilatildeo das mulheres e das crianccedilas
pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees da poacutelis (minoria dominante chamada a defender a
comunidade poliacutetica) delineando assim o papel que tal questatildeo representa na configuraccedilatildeo
do seu Estado ideal Tal discussatildeo centrar-se-aacute em determinar o regime mais adequado a ser
adotado para a formaccedilatildeo das mulheres e da prole dessa comunidade visto que tal formaccedilatildeo
ldquoarrastaraacute consigo alteraccedilotildees grandes e ateacute radicais conforme for bem ou mal realizadardquo
conforme 449d5-6
O fato de chamar mulheres a defender a poacutelis provendo-as assim do tiacutetulo de
guardiatildes jaacute coloca Platatildeo numa situaccedilatildeo embaraccedilosa frente agrave opiniatildeo sustentada pelo senso
comum acerca da mulher visto que a marca da situaccedilatildeo do sexo feminino em Atenas por
exemplo eacute a da marginalidade e da passividade que o submetem agrave incultura fiacutesica e
intelectual Tendo isso em vista a defesa da tese que eacute preciso conceder agraves mulheres a mesma
educaccedilatildeo dispensada aos varotildees da comunidade dos guardiotildees eacute um embaraccedilo ainda maior
para Platatildeo pois tal tese confronta radicalmente os costumes vigentes em Atenas e o modo
como o fenocircmeno do comportamento moral feminino era observado Assim eacute revisando e se
afastando do modo empiricamente dado e constataacutevel do comportamento da mulher que a
teoria platocircnica natildeo pretende tatildeo somente descrever a realidade sensiacutevel mas prescrever uma
nova realidade de acordo com o necessaacuterio desenvolvimento loacutegico da ideia de poacutelis Isso
talvez explique o rodeio que Soacutecrates tece no iniacutecio do livro V antes de expor tese tatildeo
arrojada a qual ele teme ser ridicularizada por aqueles que ldquocolhem imaturo o fruto da
sabedoriardquo (citaccedilatildeo de Piacutendaro que ocorre em 457b34) e que soacute eacute trazida agrave baila depois de
reiteradas exortaccedilotildees dos interlocutores socraacuteticos que prometem consideraacute-la com sabedoria
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e credulidade
O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que
se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam
atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando
tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo
cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a
eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia
incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas
diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido
anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes
funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em
esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir
negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como
por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro
que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas
(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem
uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal
restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela
diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees
e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo
ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes
para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito
Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria
aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que
pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito
Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo
sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite
dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa
classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo
de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir
desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal
aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os
seus governados
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando
com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees
gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado
pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da
propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave
dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito
da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida
privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e
filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave
vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se
incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de
possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante
notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica
moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente
entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas
esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como
naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar
(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um
papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave
classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios
agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos
guardiotildees agrave esfera puacuteblica
Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo
feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir
contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia
necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal
Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de
precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no
reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres
virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a
mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo
permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em
inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto
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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo
feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de
suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica
de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma
consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a
igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim
educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do
platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis
Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos
necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender
descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de
trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a
supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e
tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha
nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como
fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as
condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de
sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas
instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do
sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado
pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica
contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou
impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave
natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada
ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de
produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee
severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar
uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a
saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho
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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob
os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico
Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees
mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na
ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da
participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui
sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua
vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico
O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o
Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia
e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e
mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em
todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute
produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que
participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem
tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2
1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como
o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual
tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que
foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee
apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente
escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai
sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles
eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria
Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou
seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma
segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de
administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser
do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc
isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos
escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da
relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da
capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto
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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
e credulidade
O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que
se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam
atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando
tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo
cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a
eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia
incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas
diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido
anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes
funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em
esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir
negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como
por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro
que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas
(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem
uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal
restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela
diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees
e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo
ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes
para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito
Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria
aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que
pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito
Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo
sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite
dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa
classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo
de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir
desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal
aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os
seus governados
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando
com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees
gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado
pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da
propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave
dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito
da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida
privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e
filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave
vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se
incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de
possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante
notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica
moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente
entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas
esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como
naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar
(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um
papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave
classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios
agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos
guardiotildees agrave esfera puacuteblica
Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo
feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir
contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia
necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal
Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de
precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no
reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres
virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a
mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo
permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em
inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto
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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo
feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de
suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica
de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma
consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a
igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim
educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do
platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis
Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos
necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender
descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de
trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a
supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e
tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha
nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como
fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as
condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de
sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas
instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do
sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado
pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica
contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou
impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave
natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada
ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de
produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee
severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar
uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a
saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho
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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob
os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico
Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees
mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na
ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da
participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui
sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua
vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico
O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o
Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia
e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e
mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em
todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute
produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que
participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem
tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2
1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como
o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual
tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que
foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee
apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente
escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai
sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles
eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria
Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou
seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma
segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de
administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser
do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc
isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos
escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da
relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da
capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto
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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
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Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando
com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees
gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado
pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da
propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave
dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito
da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida
privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e
filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave
vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se
incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de
possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante
notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica
moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente
entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas
esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como
naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar
(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um
papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave
classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios
agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos
guardiotildees agrave esfera puacuteblica
Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo
feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir
contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia
necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal
Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de
precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no
reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres
virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a
mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo
permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em
inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto
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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo
feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de
suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica
de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma
consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a
igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim
educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do
platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis
Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos
necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender
descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de
trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a
supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e
tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha
nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como
fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as
condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de
sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas
instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do
sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado
pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica
contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou
impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave
natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada
ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de
produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee
severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar
uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a
saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho
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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob
os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico
Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees
mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na
ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da
participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui
sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua
vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico
O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o
Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia
e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e
mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em
todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute
produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que
participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem
tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2
1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como
o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual
tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que
foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee
apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente
escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai
sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles
eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria
Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou
seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma
segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de
administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser
do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc
isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos
escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da
relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da
capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto
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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo
feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de
suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica
de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma
consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a
igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim
educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do
platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis
Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos
necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender
descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de
trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a
supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e
tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha
nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como
fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as
condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de
sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas
instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do
sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado
pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica
contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou
impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave
natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada
ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de
produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee
severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar
uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a
saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho
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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob
os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico
Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees
mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na
ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da
participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui
sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua
vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico
O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o
Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia
e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e
mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em
todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute
produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que
participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem
tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2
1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como
o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual
tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que
foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee
apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente
escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai
sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles
eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria
Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou
seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma
segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de
administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser
do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc
isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos
escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da
relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da
capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto
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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
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Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
165 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob
os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico
Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees
mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na
ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da
participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui
sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua
vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico
O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o
Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia
e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e
mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em
todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute
produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que
participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem
tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2
1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como
o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual
tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que
foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee
apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente
escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai
sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles
eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria
Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou
seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma
segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de
administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser
do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc
isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos
escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da
relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da
capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto
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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui
forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo
Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo
vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda
pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes
morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da
alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a
faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente
inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena
realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por
isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o
escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste
caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional
da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela
ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade
deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a
mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo
sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto
quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir
segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para
cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem
razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a
exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave
felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma
segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o
exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a
mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a
autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto
sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida
confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um
conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia
antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo
tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas
nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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Aprovado em 19092018
167 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute
diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito
homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua
sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada
ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e
conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves
partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita
estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os
gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem
isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na
medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o
discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades
intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a
mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim
tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher
pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo
podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de
satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo
suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees
judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14
Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e
elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal
I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido
menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento
material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando
ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um
varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau
de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade
do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de
indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo
que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da
forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher
portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute
anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme
Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade
ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute
biologicamente e ontologicamente inferior a ele
Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem
fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-
3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute
respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da
naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida
matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia
desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-
se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes
das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida
familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger
2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as
ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a
mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da
inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar
Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia
sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como
outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de
ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos
sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho
bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se
apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do
modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de
Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres
satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a
ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos
aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos
aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo
feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
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buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura
fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida
em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como
fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do
acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse
mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo
sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo
sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais
acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as
condiccedilotildees a que eram submetidos
A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166
da Filosofia do Direito de Hegel
A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do
universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve
restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de
eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento
do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir
da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees
complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual
confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo
exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas
pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a
espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e
por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia
do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a
espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da
individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria
segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e
contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao
exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas
necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e
consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior
170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
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Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do
sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres
possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave
incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais
caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo
aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a
impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de
igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo
expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a
concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos
da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca
espaccedilo para uma forma de opressatildeo
No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade
da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo
indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee
de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre
homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do
espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute
engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza
eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais
universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu
desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade
pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees
comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute
portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos
como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de
mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a
qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que
o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o
natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais
transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o
engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel
aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias
171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
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perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
172 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
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Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002
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1998
ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral
e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998
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DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica
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HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo
para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989
HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989
JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins
Fontes Satildeo Paulo 2001
KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In
MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28
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Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985
WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990
Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
perpassadas por eles
Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com
a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela
(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da
ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee
agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto
supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a
capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo
ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida
social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como
naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural
parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa
hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos
civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de
participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta
pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia
especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito
proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo
com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda
naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem
exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo
do espiacuterito
Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um
antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de
tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave
coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do
princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam
considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o
argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si
a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem
mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute
atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se
reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Referecircncias bibliograacuteficas
ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio
de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001
ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J
Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos
1998
ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral
e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998
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Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218
BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976
DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica
Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica
Linus Porto Alegre 2011
HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo
para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989
HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989
JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins
Fontes Satildeo Paulo 2001
KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In
MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28
177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991
NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM
J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of
Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985
WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990
Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
172 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa
Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana
acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico
desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam
elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas
de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o
problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza
humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de
sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal
Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de
capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave
anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente
marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o
afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres
ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum
(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles
considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da
funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral
justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a
levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees
A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os
elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo
ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de
deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da
classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista
em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente
destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser
confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e
morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como
estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema
173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Referecircncias bibliograacuteficas
ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio
de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001
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1998
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e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998
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Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218
BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976
DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica
Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica
Linus Porto Alegre 2011
HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo
para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989
HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989
JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins
Fontes Satildeo Paulo 2001
KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In
MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28
177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991
NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM
J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of
Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985
WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990
Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
poliacutetico de Platatildeo possa funcionar
Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que
ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma
maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na
era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a
Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila
objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim
sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a
natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por
meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na
qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida
174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Referecircncias bibliograacuteficas
ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio
de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001
ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J
Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos
1998
ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral
e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998
ARISTOTLE De Anima Traduccedilatildeo de R D Hicks Prometheus Books New York 1991
ARISTOTLE ldquoGeneration of animalsrdquo In BARNES J (org) The Complete Works of
Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218
BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976
DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica
Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica
Linus Porto Alegre 2011
HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo
para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989
HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989
JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins
Fontes Satildeo Paulo 2001
KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In
MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28
177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991
NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM
J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of
Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985
WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990
Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Notas
1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me
incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi
originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de
uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da
UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu
coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo
2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis
Brasil E-mail santosmarinaufscbr
3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira (Platatildeo1985)
4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt
5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que
impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas
natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de
acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis
6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos
guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da
questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem
deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da
cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana
devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e
escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas
inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3
ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar
sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν
καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ
καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos
7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres
dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e
gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo
o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas
que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes
atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ
γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ
λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν
βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos
8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave
democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma
democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal
como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a
espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do
colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo
Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον
οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ
παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos
9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a
transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de
liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em
nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e
liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo
vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Referecircncias bibliograacuteficas
ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio
de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001
ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J
Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos
1998
ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral
e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998
ARISTOTLE De Anima Traduccedilatildeo de R D Hicks Prometheus Books New York 1991
ARISTOTLE ldquoGeneration of animalsrdquo In BARNES J (org) The Complete Works of
Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218
BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976
DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica
Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica
Linus Porto Alegre 2011
HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo
para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989
HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989
JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins
Fontes Satildeo Paulo 2001
KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In
MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28
177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991
NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM
J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of
Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985
WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990
Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao
homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar
Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas
acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos
que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo
SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν
δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ
ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν
GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo
SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά
ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ
δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς
ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται
10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e
Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)
11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)
12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)
13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5
senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_
escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma
14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ
ἀρχῆς
15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)
16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
Referecircncias bibliograacuteficas
ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio
de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001
ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J
Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos
1998
ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral
e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998
ARISTOTLE De Anima Traduccedilatildeo de R D Hicks Prometheus Books New York 1991
ARISTOTLE ldquoGeneration of animalsrdquo In BARNES J (org) The Complete Works of
Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218
BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976
DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica
Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica
Linus Porto Alegre 2011
HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo
para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989
HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989
JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins
Fontes Satildeo Paulo 2001
KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In
MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28
177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018
NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991
NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM
J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of
Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131
PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha
Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985
WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990
Recebido em 28122017
Aprovado em 19092018
176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica
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Recebido em 28122017
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