Na Medida Do Tempo

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBAMESTRADO EM FILOSOFIA

    A MEDIDA DO TEMPO: INTUIO E INTELIGNCIA EMBERGSON

    Por Geovana da Paz Monteiro

    Salvador/BA2008

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    GEOVANA DA PAZ MONTEIRO

    A MEDIDA DO TEMPO: INTUIO E INTELIGNCIA EMBERGSON

    Dissertao apresentada ao programa de ps-graduao em filosofia da UFBA, como requisito

    parcial para obteno do ttulo de mestre, sob aorientao do professor Dr. Olival Freire Jnior eco-orientao do professor Dr. Joo Carlos SallesPires da Silva.

    Salvador/BA2008

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    Monteiro, Geovana da PazM775 A medida do tempo: intuio e inteligncia em Bergson / Geovana da PazMonteiro. Salvador, 2008.

    110 f.

    Orientador: Prof. Dr. Olival Freire Jnior

    Co-orientador: Prof. Dr. Joo Carlos Salles Pires da SilvaDissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de

    Filosofia e Cincias Humanas, 2008.

    1. Filosofia Francesa. 2. Intuio. 3. Inteligncia. I. Bergson, Henri, 1859-1941.

    II. Freire Jnior, Olival. III. Silva, Joo Carlos Salles Pires da. IV.Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. IV. Ttulo.

    CDD 194_____________________________________________________________________________

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    TERMO DE APROVAO

    GEOVANA DA PAZ MONTEIRO

    A MEDIDA DO TEMPO: INTUIO E INTELIGNCIA EM BERGSON

    Dissertao defendida em ___/___/2008, como requisito parcial para obteno do grau

    de Mestre em Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Tendo como membros da

    banca examinadora:

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Olival Freire Jnior (Orientador) - UFBA

    ___________________________________________________

    Prof. Dr. Joo Carlos Salles Pires da Silva (Co-orientador) - UFBA

    ___________________________________________________

    Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva - USP

    ___________________________________________________

    Profa. Dra. Elyana Barbosa - UFBA

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    AGRADECIMENTOS

    Ao professor Joo Carlos Salles Pires da Silva, pela confiana e dedicao na

    realizao deste trabalho, pela sensvel orientao, apoio irrestrito e, sobretudo, por ter-

    me mostrado sempre a melhor direo na filosofia.

    Ao professor Olival Freire Jnior, pela orientao rigorosa e amiga, pelo apoio e

    respeito reflexo filosfica.

    professora Elyana Barbosa, pelas crticas e sugestes apontadas em nosso

    exame de qualificao.

    Aos amigos do Grupo de Estudo e Pesquisa Empirismo, Fenomenologia e

    Gramtica, pelo apoio e crticas estimulantes.

    A minha famlia, pela confiana e apoio incondicionais.

    Agradeo por fim FAPESB Fundao de amparo pesquisa do Estado da

    Bahia, pela concesso da bolsa de estudos, sem a qual este trabalho no teria sido

    possvel.

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    A Walter,meu av contador de histrias.

    Saudades.

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    ...E o que mais, vida eterna, meplanejas?

    O que se desatou num smomento

    no cabe no infinito, e fuga evento.

    Carlos Drummond de Andrade

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    RESUMO

    Investigar a natureza do tempo real , de acordo com Henri Bergson, perscrutar um

    objeto fugidio, uma vez que, ao tentarmos apreend-lo, j se escoou em seu fluxo

    contnuo. Caberia conscincia compreend-lo na passagem que lhe prpria.

    Doravante, uma dificuldade se mostra ao filsofo: tempo e espao, sendo

    qualitativamente distintos, aparecem, quer para a filosofia, quer para a cincia, como

    faces de uma mesma moeda. O pensamento bergsoniano percebe, ento, na

    espacializao do tempo a fonte de todos os falsos problemas filosficos. Seu esforo

    ser marcado por uma crtica s tradicionais concepes do tempo, bem como

    expresso mais radical de sua espacializao, a teoria da relatividade. Em linhas gerais,

    nossa investigao se debruou sobre a dicotomia intuio/inteligncia, tendo como

    reflexo imediato a contraposio entre filosofia e cincia, tema diretamente ligado

    incompreenso da natureza do tempo real, de acordo com Bergson. Acreditamos que, ao

    se investigar o tempo nessa filosofia, seja imprescindvel evidenciar a intuio como o

    mtodo adequado apreenso da durao em vias de realizar-se, uma vez que a

    inteligncia, faculdade humana diretamente ligada matria, incapaz de atingir o

    mago da realidade. Com efeito, neste trabalho investigamos a natureza do tempo

    vivido em oposio aos tempos medidos da fsica einsteiniana, conforme visto em

    Durao e simultaneidade (1922). Nesta obra, Bergson almeja mostrar que o tempo

    imediatamente percebido no equivaleria ao das frmulas e equaes da fsica, que esse

    tempo mensurvel no passaria de espao, e que essa compreenso, adequada s

    questes fsicas, no refletiria o tempo enquanto durao pura. Para tanto, foi

    fundamental a apresentao de algumas noes bergsonianas relativas compreenso

    do tempo livre de determinaes espaciais noes tais como as de simultaneidade,

    movimento e multiplicidade qualitativa. Sem a pretenso de realizar um estudo

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    cientfico sobre a teoria da relatividade, procuramos compreender, atravs da exegese de

    Durao e simultaneidade, a interpretao filosfica levada a termo por Bergson acerca

    de tal teoria. Nosso objetivo ento, ao contrrio das crticas equivocadas ao ensaio de

    1922, mostrar que Bergson no pretende invalidar a teoria einsteiniana, no incorre em

    erros de ordem matemtica quanto relatividade restrita. Dessa forma, acreditamos

    poder sugerir que essa obra,Durao e simultaneidade, no deveria estar relegada a um

    papel secundrio na compreenso do percurso filosfico bergsoniano.

    Palavras-chave: Henri Bergson, teoria da relatividade, durao, intuio, inteligncia.

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    RSUM

    Rechercher la nature du temps rel est, daccord avec Henri Bergson, poursuivre un

    objet fuyant, de tel faon que quand on essaye de lui apprendre il a dej coul dans son

    flux continu. Il resterait la conscience de lui comprendre dans sa propre passage.

    Dsormais, une dificulte se dvoile au philosophe : temps et espace, en tant

    qualitativement distincts, ils se prsentent, soit pour la philosophie, soit pour la science,

    comme des faces dune mme pice. La pense bergsonienne verra, donc, dans

    lespatialisation du temps la source de tous les faux problmes philosophiques. cette

    manire, son effort sera marqu par une critique des conceptions traditionnelles du

    temps, ainsi que lexpression la plus radicale de son espatialisation, la thorie de la

    relativit. Notre recherche sest engage sur la dualit intuition/inteligence, en ayant

    comme rflexe immdiat lopposition entre la philosophie et la science, un sujet

    directement li lincomprhension de la nature du temps rel, daccord avec Bergson.

    Nous croyons que pour tudier le temps dans cette philosophie, soit ncessaire mettre en

    vidence que lintuition est la mthode approprie lapprhension de la dure en voie

    de se raliser, alors que linteligence, en tant la facult humaine directement lie la

    matire, est incapable de saisir le coeur de la realit mme. En effet, dans ce travail nous

    avons tudi, chez Dure et simultanit (1922), la nature du temps vcu en oposition

    aux temps mesurs de la physique eisteinienne. Dans cette uvre, Bergson veut montrerque le temps immdiatement peru ne correspond pas au temps des formules et des

    quations physiques, que ce temps mesurable ne serait que despace, et que cette

    comprhension, propre aux questions de la physique, n appartient pas au temps comme

    dure pure. Donc, il a t fondamental la prsentation de quelques notions

    bergsoniennes qui concernent la comprhension du temps libre des determinations de

    lespace comme les notions de simultanait, mouvement et multiplicit qualitative.

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    Sans la prtention de faire une tude scientifique de la thorie de la rlativit, nous

    avons cherch plutt comprendre, par lxegse de Dure et simultanait,

    linterprtation philosophique entreprise par Bergson sur celle thorie. Notre objectif est

    donc, au contraire des critiques quivoques addresses au essai de 1922, montrer que

    Bergson ne veut pas invalider la thorie einsteinienne, quil ne commet pas derreurs

    dordre mathmatique dans ce qui concerne la relativit restrainte. cette manire,

    nous croyons pouvoir suggrer que cette uvre, Dure et simultanait, ne devrait pas

    tre confine un lieu secondaire dans la comprhension de litinraire philosophique

    bergsonien.

    Mots-cls : Henri Bergson, thorie de la relativit, dure, intuition, inteligence.

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    SUMRIO

    Introduo.......................................................................................................................13

    I. FILOSOFIA E CINCIA..........................................................................................22

    3. Tempo psicolgico x Tempo matemtico...........................................................27

    4. Dois tipos de multiplicidade................................................................................31

    5. O movimento e a simultaneidade........................................................................35

    II. DURAO EESPAO-TEMPO...........................................................................43

    1. A Teoria da relatividade restrita..........................................................................43

    2. A interpretao bergsoniana................................................................................49

    3. A Durao e os tempos mltiplos de Einstein.....................................................53

    3.1 Retardamento do tempo e contrao de Lorentz........................................54

    3.2 Quebra da simultaneidade..............................................................................64

    4. O Espao-Tempo: miragem da durao real.......................................................69

    III. INTUIO E INTELIGNCIA...........................................................................74

    3. A experincia imediata e a coao da inteligncia..............................................76

    4. A intuio do movimento e o mecanismo cinematogrfico do pensamento.......81

    5. A intuio da Durao.........................................................................................91

    Consideraes finais........................................................................................................97

    Referncias Bibliogrficas............................................................................................106

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    Introduo

    Repetidas vezes, Henri Bergson (1859-1941) afirma em Durao e simultaneidade

    (1922) que a teoria da relatividade restrita serve confirmao de um tempo nico e ele

    parece estar de fato convicto desta posio. Ora, ponto inconteste entre os estudiosos

    de sua filosofia a originalidade de sua concepo do tempo como contnua criao de

    novidades, a idia segundo a qual a temporalidade constituiria o tecido prprio do real,

    concepo do tempo como multiplicidade, mas somente na medida em que esta

    equivalha a uma heterogeneidade de ordem qualitativa. Porm, quando o momento a

    ser retomado no pensamento bergsoniano o confronto com a fsica de Albert Einstein,

    a sempre com bastantes ressalvas que os comentadores costumam dar algum crdito

    posio do filsofo.1

    Afora o terceiro captulo do livro de 1922, A natureza do tempo real, cuja

    exposio acerca dos temas centrais de doutrina, tais como as noes de durao e de

    conscincia, revela-se mais segura do que nunca,2 bem como a distino entre o real e o

    fictcio tida como uma das mais completas,3 todo o resto do livro poderia ser esquecido,

    engavetado sob a rubrica de histria da cincia, como defendem A. Sokal e J.

    Bricmont4 no exemplo mais agressivo de ataque a Durao e simultaneidade. Estes

    autores ressaltam os equvocos bergsonianos quanto interpretao da teoria da

    relatividade, superestimando-os. Tocam superficialmente em pontos importantes do

    livro, a saber, que ele tenha um interesse histrico e outro filosfico. Mas confessam1 A maioria dos comentrios feitos a Durao e simultaneidade peca por dois motivos, conforme MilicCapek: ou a interpretao de Bergson entusistica e irrefletidamente aceita ou ela passionalmentenegada. (Cf. CAPEK, M. Bergson and Modern Physics, p. 239) Segundo F. Worms, h muitos estudossobre a filosofia de Bergson que enfatizam seus erros no tocante interpretao da teoria da relatividade,entre tais o comentador destaca os de HEIDSIECK, F.Henri Bergson et la notion despace e BARREAU,H. Bergson et Einstein. propos de Dure et simultanit. (Cf. SOULEZ, P. e WORMS, F. Bergson,nota 68, p. 363)2 Cf. SOULEZ, P. e WORMS, F.Bergson, p. 191.

    3 Cf. JANKLVITCH, V.HenriBergson, p. 31.4 SOKAL, A e BRICMONT, J. Reflexes sobre a histria das relaes entre cincia e filosofia: Bergsone seus sucessores, in:Imposturas intelectuais, p. 183.

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    que sua anlise permanece na superfcie, voltando sua pesquisa apenas para os

    equvocos. Quanto ao essencial, a filosofia, nenhuma palavra. 5

    Entretanto, pensamos que o interesse histrico deDurao e simultaneidade no

    deveria restringir-se ao malogro da noo de um tempo nico. Afinal, muitos fsicos

    eram partidrios de tal noo, ainda poca de Einstein.6Durao e simultaneidade

    registra, ao contrrio, uma minuciosa exposio das origens e fundamentos da teoria da

    relatividade restrita. Alm disto, e sobretudo, trata-se de uma interpretao particular

    que demanda certo domnio do pensamento bergsoniano, sem o qual muito do que

    sutilmente tratado no livro poderia escapar ao leitor, assim como a prpria durao que

    se escoa em seu fluxo. A questo que Sokal e Bricmont declaram deixar em suspenso

    como se tratassem de algo irrelevante perante a flagrante ignorncia do filsofo

    acerca da fsica einsteiniana e suas implicaes , simplesmente a questo de toda

    uma filosofia, a saber, a distino imprescindvel entre o tempo quantidade, cuja teoria

    da relatividade e a fsica de um modo geral fazem meno, e o tempo qualidade, a

    durao propriamente dita.

    Como julgamos importante compreender a inquietao do filsofo ao deparar-se

    com uma teoria que faz frente s suas idias, e tambm por percebermos a relevncia da

    cincia em sua obra, resolvemos no nos abster do dilogo com a fsica e investigar

    ento esse dito fracasso que foi Durao e simultaneidade. Mas, ao contrrio de uma

    investigao cientfica, cujo objetivo consistiria em distinguir os aspectos vlidos dos

    no-vlidos na interpretao de Bergson para a teoria da relatividade,7 nosso trabalho

    5 Ns estamos de acordo quanto ao interesse histrico deDurao e simultaneidade, como exemplo, emtodo caso, da maneira como um filsofo clebre pode se equivocar a respeito da fsica, em virtude deseus preconceitos filosficos. Quanto filosofia, Durao e simultaneidade levanta uma questointeressante: em que medida a concepo de tempo que Bergson tinha pode se conciliar com arelatividade? Deixaremos esta questo em suspenso, contentando-nos em sublinhar que a tentativa deBergson malogrou completamente. (SOKAL, A e BRICMONT, J. Reflexes sobre a histria dasrelaes entre cincia e filosofia: Bergson e seus sucessores, in:Imposturas intelectuais, p 183)

    6 H. Lorentz e H. Poincar, por exemplo. (Cf. PATY, M. La physique du XXe sicle, p. 12)7 Tal como a anlise empreendida por Milic Capek, que tenta a todo custo recuperar aspectos da filosofiabergsoniana supostamente compatveis com teorias fsicas posteriores teoria da relatividade e, antes,

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    tem por diretriz as implicaes filosficas condensadas naquele texto, tais que, segundo

    pensamos, encontram-se em conformidade com o conjunto da obra bergsoniana. A

    leitura deste texto nos permitiu perceber a distino, presente j desde o Ensaio sobre

    os dados imediatos da conscincia (1889), entre o tempo qualidade e o tempo

    quantidade. Uma distino de tal ordem, primeira vista, nos conduzia a admitir a

    existncia de duas realidades, uma contnua, ininterrupta e, portanto, sempre seguindo

    contornos imprevisveis, e outra passvel de mensurao, previamente dada e

    discernvel em suas menores partes. Mas Bergson se disps a revelar que tal ciso seria

    decorrente de uma confuso entre duas ordens da experincia; portanto, um corte

    meramente fictcio. Caber mostrar, ento, que o tempo medido corresponderia ao

    espao, este sim passvel de medio. E ao tempo real, a durao, caber restituir-lhe a

    realidade, uma vez que a durao seja a prpria realidade.

    Na nota para a stima edio de Durao e simultaneidade encontramos o

    seguinte comentrio de duard le Roy: eu poderia responder a Einstein que ele mesmo

    no entende bem a posio de Bergson. Mas preciso conhecer esta ltima

    plenamente.8Nosso percurso amparou-se por tal observao: conhecer plenamente as

    idias de Bergson acerca da teoria da relatividade restrita. Optamos por interpretar o

    livro de um ponto de vista filosfico, no como um artigo cientfico. Afinal, trata-se de

    um filsofo versado em cincias, no o contrrio, muito embora no tenhamos

    descartado a posio de seus crticos.

    J no prefcio, Bergson deixa explcita sua inquietao e tambm seu objetivo

    de compreender a teoria einsteiniana. Assim, ele nos confessa: era um projeto

    exclusivamente pessoal. Queramos saber em que medida nossa concepo da durao

    era compatvel com as vises de Einstein sobre o tempo.9 Sua revelao nos soou

    com a prpria teoria de Einstein. (Cf. CAPEK, M.Bergson and Modern Physics, p. 238-256)8 Cf: BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. IX.9 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 01.

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    como uma preocupao. Se no projeto bergsoniano filosofia e cincia no deveriam

    necessariamente se excluir, mas de certa forma se completar, o objetivo do ensaio de

    1922 seria ento conciliar a noo filosfica de um fluxo temporal universal aos novos

    rumos que a fsica tomava.10 A idia da durao como fluxo qualitativamente mltiplo

    embora quantitativamente nico, conformava-se com a noo clssica desse tempo

    universal. Mas era justamente neste ponto que ela tocava a teoria da relatividade.

    Segundo Einstein, o tempo no poderia ser universal, portanto, j no poderamos mais

    falar no tempo, mas em tempos prprios a cada sistema de referncia. Para Bergson

    esta multiplicidade quantitativa era inconcebvel. Sua noo de durao aquiescia mais

    ao senso comum que cincia de Einstein, enquanto esta se constituiria como

    totalmente contrria nossa experincia imediata. Porm, era preciso compreender a

    significao filosfica da reflexo de Einstein; e, ao faz-lo, o filsofo chega

    concluso de que as teses de Einstein poderiam confirmar a noo comum de um tempo

    nico.11 O objetivo ltimo, portanto, deDurao e Simultaneidade era anunciado: [...]

    esclarecer, aos olhos do flsofo, a teoria da relatividade.12Quem seria o filsofo seno

    o prprio Bergson?

    Eis ento que a 06 de abril de 1922, Albert Einstein se encontra frente aos

    intelectuais franceses. Na platia, um admirador confesso de sua obra: Henri Bergson.

    Em interveno feita a Einstein, o filsofo resume os argumentos que apresentaria mais

    10 Isso fica evidente na seguinte passagem: Nossa admirao por esse fsico [Einstein], a convico deque ele nos trazia no s uma nova fsica, mas tambm certas maneiras novas de pensar, a idia de quecincia e filosofia so disciplinas diferentes mas feitas para se completar, tudo isso inspirava nosso desejoe impunha-nos at o dever de proceder a uma confrontao. (BERGSON, H.Durao e simultaneidade,

    p. 01)11 No s as teses de Einstein no pareciam mais contradizer a crena natural dos homens num Temponico e universal, como a confirmavam e a acompanhavam de um comeo de prova. Seu aspecto

    paradoxal devia-se simplesmente a um mal entendido. Parecia ter-se produzido uma confuso, certamenteno no prprio Einstein, nem entre os fsicos que faziam uso fsico de seu mtodo, mas entre algumas

    pessoas que erigiam essa fsica em filosofia, sem nenhuma modificao. (BERGSON, H. Durao esimultaneidade, p. 02)12 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 02.

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    tarde em seu estudo,13defendendo a compatibilidade entre a teoria fsica e a noo de

    um tempo nico e real. Contudo, ao que parece, Bergson no foi bem compreendido por

    Einstein.14 E os obstculos impostos comunicao entre o fsico e o filsofo no

    ficaram restritos ao nvel lingstico, mas sobretudo ao nvel conceitual. Einstein no

    compreendeu o contexto no qual se inseria a interpretao bergsoniana, ou talvez no o

    houvesse aceitado, haja vista tratar-se de um pensamento com fortes pretenses

    metafsicas. Esse entrave comunicativo se estabeleceu tambm com os outros

    interlocutores.15 O dilogo entre as duas comunidades no se deu facilmente,

    obviamente no por conta de incapacidade de compreenso da cincia fsica por parte

    da comunidade filosfica. Afinal, os filsofos da poca, de um modo geral, possuam

    tambm uma razovel formao cientfica. Bergson um exemplo disto.

    necessrio compreender bem a posio do filsofo.16 O fato que sua

    interpretao se apega ao percebido, isto , ao vivido, que seria negligenciado pela

    teoria da relatividade. possvel que o debate com Einstein no tenha revelado um

    simples choque cultural, e muito menos que filosofia e cincia sejam incomunicveis

    entre si. O ambiente daquele encontro talvez tenha sido muito mais propcio rivalidade

    dos sistemas e egos do que a um sincero desejo de intercmbio cientfico. Nenhum

    desses filsofos quer ou pode admitir que uma teoria fsica provoque uma revoluo na

    filosofia.17 Porm, no caso de Bergson isto se torna mais manifesto, pois, ainda que

    aceitasse uma revoluo no conceito de tempo (e ele de fato o faz), no poderia admitir13 O debate teria acontecido alguns meses antes da publicao de Durao e simultaneidade. Cf.SOULEZ, P. e WORMS, F.Bergson, p. 188.14 Ele [Einstein] resume o problema nestes termos: o tempo do filsofo o mesmo do fsico? E concluique no h tempo do filsofo. Segundo Jean Langevin, filho de Paul, ele teria murmurado a P. Langevinque no havia compreendido nada do discurso de Bergson. E, de fato, no foi somente um problemalingstico; a interveno de Bergson foi longa e bastante condensada, supunha ento uma familiaridadecom o sentido bergsoniano de algumas noes. (BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 75)15 Entre os interlocutores de Einstein, estavam Lon Brunschvicg e mile Meyerson, tendo sido este onico a deslanchar no dilogo com o fsico. (Cf. BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 73)16 No mais, exagerou-se muito falando dos erros de Bergson sobre a teoria da relatividade. Bergson

    jamais pretendeu critic-la e, ao que parece, ele havia compreendido as implicaes da relatividaderestrita. (BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 76)17 BENSAUDE-VINCENT. B.Langevin, p. 77.

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    que tal revoluo interferisse no prprio tempo, isto , na durao ela mesma. O

    conceito no modificaria a realidade. Esta, por sua vez, coincidiria com a durao pura,

    ainda que a cincia o negasse. Portanto, se interpretarmos o pensamento de Bergson

    letra, veremos que para ele a revoluo da fsica clssica para a moderna nem to

    grande assim. Bergson enxerga na teoria da relatividade muito mais uma generalizao,

    ou melhor, uma radicalizao daquilo que o tempo sempre foi aos olhos da filosofia,

    bem como da cincia, a saber, espao.18

    Em um texto intitulado Einstein e a crise da razo,19 M. Merleau-Ponty

    ressalta que o gnio de Einstein causara em sua poca uma espcie de furor incontido

    que chegava mesmo a elev-lo ao posto de um deus. Sua obra gerava, paradoxalmente,

    um desenvolvimento da desrazo. Seu encontro com Bergson teria sido indcio dessa

    crise da razo contempornea. Bergson esperava, segundo Merleau-Ponty, reconciliar a

    teoria da relatividade com os homens simplesmente homens; via nos tempos

    mltiplos um paradoxo; afinal, o tempo fsico para ele sempre um s, embora nunca o

    mesmo. Assim, o que estaria em jogo na fala de Bergson seria mais uma proposta de

    distino entre verdade fsica e verdade pura e simples20 que uma negao da

    expresso matemtica que marcaria o tempo, ou os tempos decorridos. Esta nada

    poderia revelar acerca da durao vivida, da durao sentida.21

    Mas a proposta de reconciliao entre os tempos do fsico e o do filsofo no

    fora aceita por Einstein. E, ao invs de interpretar essa recusa como um problema de

    comunicao, Merleau-Ponty afirma que Einstein havia escutado muito bem, como

    provam suas primeiras palavras: A questo coloca-se ento assim: o tempo do filsofo

    18 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 2-3 e O pensamento e o movente, p. 07.19 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, pp. 213-219.20 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 216.

    21 Essa expresso matemtica designaria ainda o tempo se ns lhe atribussemos as propriedades de umoutro tempo [...] do qual temos experincia ou percepo antes de toda a fsica?. (MERLEAU-PONTY,M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 217)

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    o mesmo que o do fsico?22 Acontece que, embora Einstein aceitasse uma

    experincia psicolgica do tempo, no admitia que ela pudesse expandir-se

    simultaneidade entre acontecimentos extremamente distantes (afinal, esta uma posio

    contrria s implicaes do princpio da relatividade do movimento), concluindo assim

    no haver tempo dos filsofos. Para Merleau-Ponty, essa atitude seria reflexo de uma

    confiana desmedida na razo. E a resposta de Einstein poderia, segundo ele, ser

    traduzida da seguinte maneira: apenas cincia que se deve perguntar a verdade

    sobre o tempo, assim como sobre todo o resto. E a experincia do mundo percebido com

    suas evidncias no passa de um balbucio antes da clara palavra da cincia.23

    Conforme Merleau-Ponty, quando o cientista no admite outra possibilidade de juzo

    alm do seu, d indcios de que a cincia foi erguida ao posto de Verdade Absoluta e

    com isto caminha para transformar-se em uma metafsica no pior sentido do termo.

    Enfim, para o filsofo, [...] o vigor da razo est ligado ao renascimento de um sentido

    filosfico, que, certamente, justifica a expresso cientfica do mundo, porm em sua

    ordem, em seu lugar no todo do mundo humano. 24

    Cientes desse sentido filosfico percebido por Bergson na fsica einsteiniana,

    nosso presente estudo visa salientar a qualidade desse texto Durao e simultaneidade

    outrora esquecido. Texto geralmente incompreendido por fsicos25 e, talvez, desprezado

    por filsofos, mas que agora, parece, comea a ressurgir como tema de pesquisas. Nossa

    investigao guia-se pela tentativa de esclarecer a razo dessa incompreenso, que

    acreditamos talvez se refira a interpretaes equivocadas do pensamento bergsoniano22 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 218.23 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 218.24 MERLEAU-PONTY, M. Einstein e a crise da razo, in: Signos, p. 219.25 De acordo com Capek, os fsicos que imputaram a Bergson uma suposta incompreenso da teoria darelatividade restrita Andr Metz e Jean Becquerel, ambos citados em apndice de Durao esimultaneidade tambm poderiam ser acusados de incompreenso desta, uma vez que ao repreenderemBergson por sua interpretao do paradoxo dos gmeos, no teriam explicado corretamente o motivo detal incompreenso. Motivo este que se esclarece pela considerao da teoria da relatividade geral.

    Segundo Capek, aqueles fsicos tambm esto extremamente ligados relatividade restrita. (Cf. CAPEK,M. Bergson and modern physics, p 246-248. Cf. tambm MERLEAU-PONTY, M. A natureza. p 177-181)

    19

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    como um todo. Almejamos que este trabalho possa contribuir para uma releitura

    daquela obra, agora sob um novo olhar, luz da compreenso bergsoniana do que seja

    filosofia por um lado e cincia por outro, isto , dos objetos que lhes caberiam

    distintamente, filosofia o tempo e cincia o espao.

    O primeiro captulo objetiva esclarecer que filosofia e cincia operam em

    domnios distintos da experincia, mas no por isto devam ser incomunicveis. Ao

    segundo captulo reservamos nossa defesa central preparada pelo primeiro, a saber, a

    distino entre a durao e o amlgama espao-temporal levado ao extremo pela teoria

    da relatividade, restando ao terceiro e ltimo captulo a exposio do que est na base

    daquela distino: a contraposio entre a faculdade intelectual, arraigada aos limites da

    linguagem e da atitude conceitual, e a capacidade intuitiva encoberta pelas

    determinaes da inteligncia.

    A disposio dos captulos segue uma coerncia para ns flagrante na obra

    estudada, qual seja, por um lado a oposio entre filosofia e cincia, durao e espao-

    tempo, intuio e inteligncia, e por outro a simetria presente em cada par de tais

    contrrios. Ora, bem sabemos, possvel alinhar a filosofia durao e intuio, na

    medida em que lhe caiba atravs do mtodo intuitivo atingir o real em absoluto. Ao

    passo que esfera cientfica estaria reservada, atravs da inteligncia, a apreenso da

    estabilidade constitutiva do espao, denominado ento pela teoria da relatividade

    espao-tempo. O que pretendemos com essa articulao conceitual , enfim, mostrar

    queDurao e Simultaneidade no um caso excepcional dentro da obra, no sentido de

    esclarecer sua importncia e revelar suas contribuies compreenso da idia de

    durao e do pensamento de Bergson como um todo este que por sinal est

    inteiramente vinculado relao filosofia e cincia. Enfim, tambm pretendemos

    mostrar que Bergson est ciente do papel de sua filosofia e de que precisa defend-la.

    20

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    CAPTULO I FILOSOFIA E CINCIA

    Com suas aplicaes que visam apenas comodidade da existncia, a cincia nos promete obem-estar, no mximo o prazer. Mas a filosofia jnos poderia dar a alegria.

    (Bergson, O pensamento e o movente, p. 148)

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    No pensamento de Bergson, filosofia e cincia significam modos distintos de

    compreenso da realidade. O primeiro deveria consistir em ser esforo de superao da

    condio humana,26fortemente atrelada vida prtica, fabricao repetitiva de objetos

    materiais ou tericos (os conceitos), enfim, um esforo para alm do mero instinto de

    sobrevivncia. A cincia, por sua vez, ao contrrio da filosofia, voltar-se-ia satisfao

    dessas necessidades prticas humanas.27 Todavia, frequentemente observamos a

    filosofia enveredar pelos confins da cincia, utilizando no somente seu vocabulrio,

    mas sobretudo seu mtodo, agindo conforme uma prtica que lhe deveria ser estranha,

    porque de outra natureza.

    A ligao entre a filosofia e a investigao cientfica remonta s origens do

    pensamento ocidental. A filosofia que conhecemos nasce da especulao sobre dados

    empricos, portanto, do mesmo mpeto que leva a cincia moderna a progredir.

    Entretanto, tambm a cincia no raras vezes se utiliza de recursos especulativos

    quando os dados empricos no do conta de explicar seus fundamentos. Mas, mesmo

    quando especula, [a cincia] preocupa-se ainda em agir, o valor das teorias cientficas

    sendo sempre medido pela solidez do poder que nos do sobre a realidade. 28 Neste

    sentido, por denotarem, cada uma em sua singularidade, vises distintas do real,

    filosofia e cincia marcam direes divergentes da atividade do pensamento,29muito

    embora isto no signifique afirmar a superioridade de uma sobre a outra, ou, ainda, que

    no haja entre elas uma espcie de reciprocidade.30 cincia caberia investigar uma

    parte da realidade, a matria, mas que tal parte seja atingida em seu fundo. metafsica

    por sua vez caberia uma outra parcela do real, o esprito, que por si s j

    26 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 225.27 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 36-37.28 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 37.29 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 46.

    30 O restabelecimento da relao autntica e fecunda entre a filosofia e a cincia implica a disjunoentre as duas formas de saber, para evitar o crculo vicioso e a aparncia da confirmao recproca. Mas adisjuno no significa separao absoluta. (PRADO JR, B.Presena e campo transcendental, p. 137)

    22

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    profundidade.31 Deste modo, cada uma atingiria o absoluto do objeto que lhes concerne,

    juntas atingiriam a totalidade do real. Isto feito, metafsica e cincia [...] podem tornar-

    se igualmente precisas e certas,32 guardadas as devidas diferenas metodolgicas e

    mantida a igualdade de valor.

    Mas, ainda que cincia e filosofia devam se diferenciar no tocante a objetos e

    mtodos, identificar-se-iam no que concerne experincia por visarem a obter, a partir

    desta, um conhecimento verdadeiro. Ora, a experincia da qual nos fala Bergson no

    outra seno aquela obtida a partir da relao matria/esprito; pois, para ele no h

    experincia possvel que extrapole tal vnculo. Logo, como o esprito e a matria se

    tocam, metafsica e cincia podero, ao longo de toda a sua superfcie comum, pr-se

    prova uma outra, esperando que o contato se torne fecundao.33 Assim, distingui-las

    seria afirmar por um lado a identificao da cincia a um movimento de exteriorizao

    da conscincia, porque dirige-se observao sensvel,34 e por outro reconhecer na

    filosofia o movimento oposto. A filosofia ser, doravante, um movimento consciente de

    interiorizao. Mas no se pretende com isto uma distncia intransponvel, uma

    incomunicabilidade radical entre ambas.35

    No que concerne cincia, seria razoavelmente aceitvel que a representao

    conceitual viesse a sobrepor-se experincia imediata, haja vista o espao, enquanto

    um seu objeto, seja o modelo segundo o qual a inteligncia se regula e os conceitos,

    produtos desta faculdade.36 Entretanto, se a linguagem conceitual vem se casar quase

    que perfeitamente cincia, ela s se conformaria metafsica arbitrariamente, pois a31 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 46.32 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 46.33 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 4734 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 35.35 A metafsica ir exercer assim, por sua parte perifrica, uma influncia salutar sobre a cincia. Demodo inverso, a cincia ir comunicar metafsica hbitos de preciso que se propagaro, nesta ltima,da periferia para o centro. Quando mais no seja pelo fato de que suas extremidades precisaro superpor-

    se exatamente s da cincia positiva, nossa metafsica ser a metafsica do mundo em que vivemos e node todos os mundos possveis. Ela cingir realidades. (BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 47)36 Cf. GILSON, B.Lindividualit dans la philosophie de Bergson, p. 50.

    23

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    experincia imediata, sendo por natureza inefvel, [...] no encontrar em parte

    alguma linguagem estritamente apropriada.37 Contudo, a filosofia, que por sua vez

    deveria se apartar da atitude mera e estritamente conceitual, aceita-a sem reservas,

    subordinando-se exclusivamente linguagem com vistas resoluo de seus

    problemas. Findaria assim por condenar-se repetio de respostas prontas de modo

    que o antagonismo entre os sistemas, o palavrrio dialtico, as disputas infundadas e

    infindveis a limitariam zona da pura abstrao.38 Obviamente, preciso ressaltar que

    Bergson no desconsidera a importncia do discurso filosfico, isto , a necessidade da

    linguagem em sua tarefa de conceitualizao. A linguagem em si mesma no poderia

    ser considerada algo artificial, ela natural ao homem, mas sim as generalizaes

    estabelecidas por seu intermdio sobre a realidade movente.39

    A proposta bergsoniana que os sistemas filosficos, retornando percepo,

    reconciliem-se na experincia. O que isto quer dizer? Reconciliar-se na experincia

    primeiramente tomar a conscincia por ponto de partida. Tratar-se- em seguida de

    aprofundar a percepo dilatada pela intuio,40 permitindo s demais filosofias

    convergirem em uma s direo, tal como demandaria a preciso cientfica. Neste

    sentido, o dilogo fecundo que Bergson mantm com a cincia de sua poca constitui

    etapa crtica para a fundao da metafsica sobre novas bases, agora estritamente

    filosficas, (recurso prprio ao mtodo).41 O almejado para essa nova filosofia um

    ideal de preciso, visto que tal tenha sido o que mais lhe faltou. 42A inteno, contudo,

    37 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 48. Cf. LEOPOLDO E SILVA, F. Bergson: intuio ediscurso filosfico, p. 9-27. Voltaremos a esse tema no terceiro captulo deste trabalho.38 Esses conceitos esto inclusos nas palavras. Foram, o mais das vezes, elaborados pelo organismosocial com vistas a um alvo que nada tem de metafsico. Para form-los, a sociedade recortou o realsegundo suas necessidades. Por que haveria a filosofia de aceitar uma diviso que tem todas as chances deno corresponder s articulaes do real?. (BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 54)39 Cf. GILSON, B.Lindividualit dans la philosophie de Bergson, p. 47.40 O terceiro captulo deste trabalho destina-se ao esclarecimento da noo de intuio e de seu papelfrente aos ditames da inteligncia fabricadora.

    41 Cf. PINTO, D. M. Crtica da tradio, refundao da metafsica e descrio da experincia Bergsone Merleau-Ponty.42 Cf. BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 03.

    24

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    no reivindicar a rigidez da conceitualizao, cujo uso se v propagado, quer no

    mbito cientifico, quer no filosfico. A comunho entre filosofia e cincia, dando-se na

    experincia, implicar o afastamento daquilo que no passa de um [...] conhecimento

    vago que est armazenado nos conceitos usuais e transmitido pelas palavras.43 Seria

    necessrio ento afastar-se dos conceitos para ater-se s coisas.44

    Bergson acredita que os grandes problemas metafsicos nasceram de uma

    confuso entre a esfera da fabricao e a da criao. A primeira estaria relacionada

    faculdade intelectual que se inscreve na capacidade inerente ao homem de agir sobre a

    matria, modificando-a em seu benefcio faculdade cientfica. De acordo com o

    filsofo, muito antes que tivesse havido uma filosofia e uma cincia, o papel da

    inteligncia j era o de fabricar instrumentos e guiar a ao de nosso corpo sobre os

    corpos circundantes,45 ou seja, se desde os primrdios o homem visa o domnio da

    matria, a cincia s intensificou tal objetivo. Em contrapartida, a esfera da criao

    consistiria em uma experincia aberta imprevisvel novidade que no se atm aos

    conceitos ou s tcnicas de fabricao, experincia alargada do real no que ele

    guardaria de mais profundo, seu devir. Ocorre que quando a filosofia se utiliza da

    inteligncia, destinada a transformar a matria atravs de sua capacidade fabricadora,

    pretendendo pensar o que metafsico, impe a tal faculdade uma tarefa que no lhe

    cabe e na qual certamente no obter xito. a que se iniciam os pseudo-problemas. 46

    43 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 47.44 Veremos adiante que essa recusa do conceito no radical; do contrrio, todo trabalho intelectual desugesto da intuio no seria possvel. Com isto, afirma J-L. Vieillard-Baron: os caracteres dainteligncia levaram Bergson a uma crtica do conceito que no tem nada a ver com uma afirmaoirracionalista, pois o conceito, como a linguagem de que ele produto, permanece necessrio quando ainteligncia vivificada pela intuio. (Compreender Bergson, p. 59)45 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 36.46 Bergson deixa explcito o que acabamos de afirmar na seguinte passagem do ensaio O possvel e oreal de 1930: estimo que os grandes problemas metafsicos so geralmente malpostos, que elesfreqentemente se resolvem por si mesmos quando lhes retificamos o enunciado, ou ainda que so

    problemas formulados em termos de iluso, que se desvanecem assim que olhamos de perto os termos da

    frmula. Nascem, com efeito, do fato de transpormos em fabricao aquilo que criao. (Opensamento e o movente, p. 109)

    25

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    O mau uso da cincia pelos filsofos e da filosofia pelos cientistas seria um reflexo

    dessa confuso. assim que, por exemplo, no Ensaio sobre os dados imediatos da

    conscincia (1889), Bergson denuncia o abuso por parte da psicologia dos conceitos da

    fsica, tal como se reflete, segundo ele, na maneira equivocada de se tratar a

    interioridade, como se lidam com objetos justapostos no espao. Enfim, o equvoco

    consistiria em tratar multiplicidades qualitativas, os estados internos da pessoa, ao

    modo das quantitativas, os objetos passveis de medida. Bergson, antes de qualquer

    coisa, por uma exigncia do seu prprio mtodo, quer dissipar essa nvoa de problemas

    inexistentes ou mal colocados pelos filsofos. Estando, portanto, cientes desse dito uso

    indevido, a investigao sobre a natureza da durao psicolgica nos revelar a

    divergncia no trato de um mesmo problema, o do tempo, a partir de pontos de vista

    aparentemente discordantes, o filosfico de um lado e o cientfico de outro.

    1. Tempo psicolgico x Tempo matemtico

    A experincia temporal o tema de onde deveremos sempre partir e para o qual sempre

    retornaremos ao estudarmos o pensamento bergsoniano. Contudo, o problema do tempo

    poderia soar ultrapassado dada a aceitao da teoria da relatividade de Einstein. Bem,

    para a cincia talvez seja mesmo um ponto resolvido, consolidado. Mas isto no nos

    impede de questionar se teorias cientficas satisfazem indagaes essencialmente

    filosficas. Quando um pensamento repousa inteiramente sobre a experincia de um

    fato originrio, a saber, o da passagem do tempo, no de espantar que as respostas

    cientficas universalmente aceitas apaream-lhe como insuficientes, que tais

    26

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    explicaes no esgotem o sentido primitivo dessa passagem e no expressem o que

    seria por natureza inexprimvel.47

    Se desde o primeiro livro o objetivo de Bergson apareceu claro, qual seja,

    restituir ao tempo sua durao, vemo-nos diante de um conflito entre o que se referiria

    aparentemente apenas esfera psicolgica (a saber, a temporalidade das conscincias) e

    o tempo dos relgios, mensurvel e homogneo, representado pela varivel taplicada

    com intimidade por fsicos em clculos relativsticos. Em Durao e simultaneidade,

    essa importante distino ressaltada atravs da idia de que os tempos fsicos

    engendrados pela teoria da relatividade restrita sejam apenas tempos concebidos,

    embora um somente seja real, o Tempo do senso comum.48 Mas se oEnsaio limitava-

    se a tratar a durao como experincia estritamente psicolgica, Durao e

    simultaneidade no nos confirma essa posio inicial nem mesmo quando afirma no

    haver dvida de que [...] o tempo, para ns, confunde-se inicialmente com a

    continuidade de nossa vida interior.49

    O percurso filosfico bergsoniano de 1889 a 1922 passa necessariamente pela

    compreenso do que seja a durao psicolgica. Ela o ponto de partida de toda

    investigao.50 Entretanto, j emA evoluo criadora (1907) Bergson comea a pensar

    47 toda a sua filosofia, com efeito, que Bergson apresenta como decorrncia, no da questo dotempo, mas da simples constatao da passagem do tempo, do simples fato de que o tempo passa.(WORMS, F. A concepo bergsoniana do tempo, p. 129)48 BERGSON, H. Durao e simultaneidade, p. 150. Bergson faz uma ressalva fundamental acerca daexpresso tempo fsico em nota de rodap. Assim, ele nos diz: Ora, a diferena entre o psicolgico e omatemtico ntida; bem menos ntida entre o psicolgico e o fsico. A expresso Tempo fsico

    poderia por vezes ter duplo sentido; com a de Tempo matemtico no pode haver equvoco. (p. 150)Cabe notar que a noo de um tempo puramente qualitativo, durao pura, para ele o que h de maisreal, ou melhor, a realidade ela mesma. Portanto, se expresso tempo fsico equivaler tempo real,no haver motivos para distinguir o tempo que dura do tempo fsico, visto que aquele seja o da

    percepo imediata, da experincia vivida. Mas, como a cincia fsica costuma fazer equivaler o fsico aoconcebido, isto , representao matemtica do tempo e no percepo imediata dele, o que Bergson

    poderia aqui denominar por fsico talvez causasse certo embarao para ambas as partes.49BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 51. Notemos: apenas inicialmente o tempo se identificaria experincia interna, a partir da investigaremos o seu progresso. A argumentao que se segue o

    atestar.50A durao psicolgica, nas palavras de Vladmir Janklvitch: a instncia suprema e nica jurisdio dofilsofo a experincia interior. (JANKELEVITCH, V.Henri Bergson, p. 29)

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    uma durao do universo que surge neste livro como uma espcie de durao expandida

    da conscincia s coisas.51 Doravante, assim como a percepo ntima da prpria

    durao revelaria ao ser consciente seu escoamento contnuo, uma transformao

    ininterrupta de qualidades distintas que no poderiam ser confundidas com a

    passagem de um estado a outro, porque passagem supe espao percorrido e estado

    imobilidade da mesma forma seria o tempo das coisas, transio que no se

    cristalizaria em pontos percorridos, muito menos em paradas imaginadas.

    Conquanto a confuso entre tempo medido e tempo vivido impere na filosofia

    desde os argumentos de Zeno, Bergson precisa distinguir a durao real da

    representao fsica. Para ele, durao e tempo no sero equivalentes se por este

    ltimo se entender uma grandeza matemtica.52 Conforme Andr Robinet, essa

    constatao de que a fsica se atm a um tempo despojado de durao revelaria, aos

    olhos de Bergson, uma espcie de ignorncia voluntria por parte da cincia do que

    se passa nos intervalos. Mas tal ignorncia aparece-nos tambm como condio de

    realizao da fsica enquanto cincia do concreto, uma vez que isto lhe permite prever,

    por exemplo, eventos astronmicos. Se um astrnomo afirma uma conjuno de

    estrelas a realizar-se no futuro, porque abstrai o intervalo que o separa daquele

    acontecimento previsto. Para Bergson, este tipo de operao perfeitamente adequada

    fsica, visto que esta deve simplesmente levar em conta as relaes entre os eventos.

    Isto fazendo, qualquer que seja o intervalo, a mesma ligao subsistir no

    desencadeamento do evento.53 Assim, na aplicao de uma lei fsica qualquer, o

    cientista agiria legitimamente de modo a abolir de sua operao o intervalo, acelerando

    51 Cf. BERGSON, H.A evoluo criadora, p. 12.52 O ponto de partida real de sua reflexo [de Bergson] reside em uma interrogao acerca da noocientfica do tempo, tal que a histria das matemticas ou os argumentos de Zeno podem dar-lhe a idia.

    esta idia que ele trata de ultrapassar, porque geral, inaplicvel individuao do real. (ROBINET, A.Bergson, p. 15)53 ROBINET, A.Bergson, p. 16.

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    o tempo e negligenciando a durao. Mas isso no vlido apenas para o cientista. Ns

    tambm, enquanto nutrimos o hbito de estabelecer projees, nos valemos

    cotidianamente desse mecanismo de acelerao do tempo. Qualquer planejamento que

    faamos se basear numa espcie de encurtamento do tempo por vir, isto , numa

    aproximao do futuro. Se assim no fosse, nenhum projeto chegaria a termo, dada a

    falta de planejamento qual estariam todos submetidos. Em verdade, ao denunciar a

    negligncia dos intervalos do tempo, Bergson pensa em defender a grande parcela de

    indeterminao que ele percebe como sendo o tecido prprio da temporalidade.54

    No ensaio de 1889,55 Bergson j defendia que toda previso se fundamenta no

    espao de modo a possibilitar ao cientista antecipar eventos fsicos no universo

    material. Contudo, no que diz respeito conscincia, ao tempo psicolgico, as

    previses se tornariam mais confusas, afinal neste caso est em jogo a ao livre.

    Obviamente, o cientista teria o direito de acelerar o tempo ao modo de um gnio

    maligno cartesiano, uma vez que a cincia carea da medida do tempo. Porm, a

    durao propriamente dita, ao contrrio, no chegaria a se colar aos clculos do tempo

    porque percebida somente por uma conscincia que a vive em vez de apenas observ-

    la. A durao vivida estaria nos intervalos negligenciados pelo astrnomo em

    detrimento das extremidades cristalizadas. E o objeto de uma previso no poderia ser

    tido como real porque imaginado, isto , representado.56

    Filosofia e cincia se chocam ento mais uma vez: Como o conhecimento

    usual, a cincia retm das coisas apenas o aspecto repetio. Se o todo original,54 justamente este sentido do tempo bergsoniano que Ilya Prigogine retoma. Ao ser perguntado sobre a

    polmica entre Bergson e Einstein, responder: Devemos considerar o tempo como aquilo que conduzao homem e no o homem como criador do tempo [...] Portanto, necessrio pensar no universo comonuma evoluo irreversvel; a reversibilidade e a simplicidade clssicas tornam-se, ento, casos

    particulares. (PRIGOGINE, I. O nascimento do tempo, p. 21-22)55 Cf. BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, captulo III.56 Bergson dir que, em boa verdade, se este [o astrnomo] prev um fenmeno futuro, na condio defazer dele, at certo ponto, um fenmeno presente ou, pelo menos, de reduzir enormemente o intervalo

    que dele nos separa. Em resumo, o tempo de que se fala em astronomia um nmero, e a natureza dasunidades deste nmero no pode especificar-se nos clculos. (Ensaio sobre os dados imediatos daconscincia, p. 135)

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    arranja-se de modo a analis-lo em elementos ou em aspectos que sejam

    aproximadamente a reproduo do passado.57 A filosofia, ao contrrio, buscando a

    originalidade intuitiva, o real em seu devir, faria violncia ao esprito58 ao recusar um

    testemunho antecipado calcado no uso instrumental da inteligncia. Portanto, tomando-

    se por presente um acontecimento futuro, no se chegaria de fato a uma previso, dado

    o fluxo imprevisvel da durao, e toda previso seria em verdade repetio. Desse

    modo, Durao e simultaneidade parece querer nos mostrar que a suposta oposio

    entre o tempo matemtico e o tempo das conscincias no se sustentaria seno por um

    apelo a abstraes filosficas que no fundo seriam todas vazias de contedo.

    Embora Bergson tenha proferido duras crticas matematizao da realidade (e

    realidade para ele equivale a durao), no sair em defesa de um tempo meramente

    psicolgico. A vida psquica estaria estreitamente ligada ao tempo do mundo,

    multiplicidade sem divisibilidade e sucesso sem separao,59 pois a cada momento

    de nossa vida interior corresponde assim um momento de nosso corpo e de toda a

    matria circundante, que lhe seria simultnea: essa matria parece ento participar de

    nossa durao consciente.60 Assim, a sucesso dos estados de conscincia

    simultaneamente sucesso dos eventos materiais imporia uma forte tendncia

    conscincia de estender a compreenso de sua prpria durao a uma suposta durao

    do universo, o que equivaleria aqui ao tempo fsico. A conscincia estenderia o fluxo

    contnuo de sua durao psicolgica particular at a matria em geral, acreditando

    haver nesta a mesma continuidade conscientemente experimentada. Nasce, desse

    modo a idia de uma durao do universo, isto , de uma conscincia impessoal que

    seria o trao-de-unio [trait dunion] entre todas as conscincias individuais, assim

    57 BERGSON, H.A evoluo criadora, p. 32 [grifos do autor].

    58 BERGSON, H.A evoluo criadora, p. 32.59BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 52.60BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 52.

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    como entre essas conscincias e o resto da natureza.61 Mas a investigao sobre essa

    durao expandida ser mais tarde retomada. Caber-nos- doravante perscrutar o

    estatuto das multiplicidades distintas fundamental compreenso do tempo real.

    1. Dois tipos de multiplicidade

    A anlise das noes de tempo e espao no Ensaio concluiu que ambos formariam

    multiplicidades opostas.62 O tempo real enquanto novidade contnua estaria sempre em

    via de realizar virtualidades; j o espao, por sua vez, sempre atual, sem virtualidade

    alguma a realizar. Visto deste modo, o tempo comportaria uma multiplicidade

    heterognea, qualitativa, ao passo que o espao enceraria a homogeneidade passvel de

    quantificao. Assim, a possibilidade de coexistncia entre ritmos diversos, ou seja,

    tempos ou duraes distintas correspondentes diversidade de conscincias e de coisas

    do mundo, aparece-nos em Durao e simultaneidade como caracterstica disto que

    Bergson entende por multiplicidade qualitativa. Deste modo, ritmos diversos s o

    seriam no que diz respeito ao contedo qualitativo de cada um. Tal contedo se

    confundiria com a durao quando decantada das intervenes de ordem espacial e em

    nada se assemelharia multiplicidade numrica.63

    A multiplicidade qualitativa definida como quantitativamente invarivel,64

    porm o hbito comum de expressar todas as coisas na linguagem nos levaria a

    identific-las ao nmero e, a partir da, exteriorizar em termos quantitativos o que

    somente um ato do esprito estaria apto a captar.65 Mas a multiplicidade quantitativa no

    61 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, pp. 52-53.62 Cf. BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, captulo 2.63 [...] a multiplicidade dos estados de conscincia, considerada na sua pureza original, no apresentaqualquer semelhana com a multiplicidade distinta que forma o nmero. (BERGSON, H. Ensaio sobreos dados imediatos da conscincia, p. 85)

    64 Cf. BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 85.65 Sobre isto, afirma Andr Robinet: Porque a durao uma sucesso de instantes que desaparecem semesperana de retorno, o nmero s pode subsistir sob a forma de espao. (Bergson, p. 20)

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    aos olhos de Bergson um mero arbtrio da inteligncia. Ao contrrio, ela reflete um

    dos aspectos da vida consciente, o que poderamos denominar uma conscincia

    superficial da experincia. Haveria, ento, dois nveis nos quais a interioridade se

    duplicaria. No mais superficial deles, estaria um eu refratado, extremamente apegado

    linguagem e sociabilidade. Este no percepciona a realidade seno atravs do

    smbolo,66 sendo como a sombra de um eu profundo projetada no espao homogneo.

    O retorno a tal profundidade dar-se-ia doravante voltando-se a ateno aos dados

    imediatos, percepo pura, isto , percepo livre do amlgama das convenes

    enraizadas no hbito lingstico de transpor para o espao o que durao to-somente.

    Portanto, [...] nossa experincia diria dever ensinar-nos a distinguir entre a durao-

    qualidade, a que a nossa conscincia atinge imediatamente [...], e o tempo, por assim

    dizer, materializado, o tempo tornado quantidade por um desenvolvimento no

    espao.67 Se for assim, para aquele que indagar sobre a natureza das coisas, tornar-se-

    irrelevante sua medida porque esta lhes ser inteiramente oposta, repousando sobre a

    esfera da quantidade enquanto o real imediatamente percebido a no se encontrar.

    O que est em jogo, portanto, no apenas a defesa de um tempo fsico nico. A

    investigao acerca da natureza do tempo aparece-nos como mais importante do que a

    legitimao de uma durao universal. Bergson enftico ao defender que a qualidade

    diz mais sobre a coisa que a quantidade. Portanto, o problema relativo unidade do

    tempo perderia todo significado se tivssemos em conta a irrelevncia do carter

    quantitativo frente ao qualitativo. Isto , para o filsofo, o tempo, seja ele uno ou

    mltiplo, sempre ser experincia renovada. Sendo assim, somente de maneira

    generalizada poderemos falar em durao nica, pois esta unidade dever conservar em

    si mesma um mundo de qualidades indiscernveis umas das outras, porque interligadas

    66 BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 90.67 BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 89.

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    pelo mesmo fluxo, sempre em alterao. Tarefa difcil aquela que exigir do filsofo

    uma explicao acerca da permanncia da unidade na multiplicidade. Em verdade,

    acreditamos nesta permanncia como a de um continuum, jamais a de um estado.68

    Se o tempo bergsoniano implica continuidade e esta, por sua vez, sucesso de

    um antes em um depois, durao implica conscincia; e pomos conscincia no fundo

    das coisas pelo prprio fato de lhes atribuirmos um tempo que dura. 69 Segundo

    Bergson, convencionou-se um tempo universal e homogneo o que a cincia retm

    dessa continuidade vivida, a saber, seu rastro deixado no espao. Porm, a continuidade

    propriamente dita [...] exclui toda idia de justaposio, de exterioridade recproca e

    de extenso.70 Tal como o movimento de um elstico esticando-se progressivamente, a

    durao no poderia ser medida atravs do espao ocupado pelo elstico em

    movimento, ela ser ao contrrio o prprio ato, a mobilidade se realizando. A linha

    traada no espao pelo elstico seria indefinidamente dividida, mas no a ao de seu

    movimento, esta consistiria somente em durar.71 Portanto, esse tempo mensurvel,

    recorrente nas frmulas fsicas, no passaria de uma miragem da durao retida no

    espao.72 E durao no se confunde com tempo homogneo, isto , tempo

    quantificvel, porque sem qualidade. Mas que se confirmasse a possibilidade de uma

    durao universal, outrora denominada pela fsica newtoniana tempo absoluto, ela

    ainda seria incomensurvel aos olhos do filsofo. Tal qual a psicologia relativamente

    durao psicolgica, a fsica dividiria do tempo somente o passado, isto , operaria

    repetitivamente a partir dos rastros traados no espao e equacionados a qualquer68 Um exemplo dessa continuidade qualitativa, alm do famoso exemplo da continuidade meldica (Cf.BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 75-79), seriam para Bergson as cores.Em suma, enquanto falamos de uma continuidade qualificada e qualitativamente modificada, tal como aextenso colorida e mudando de cor, exprimimos imediatamente, sem conveno humana interposta, oque percebemos: no temos nenhum motivo para supor que no estejamos aqui em presena da prpriarealidade. (BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 43)69 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 57.70 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 190.

    71 Quanto ao exemplo do elstico conferir: BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 191.72 Conforme Bergson, [...] quer o deixssemos em ns ou o pusssemos fora de ns, o tempo que durano mensurvel. (Durao e simultaneidade, p. 57)

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    tempo, visto ter-se excludo da durao real seu componente de diferenciao, a

    multiplicidade qualitativa. Passaria assim da durao em via de fazer-se para o tempo

    desenrolado.

    Entretanto, medir o tempo algo do qual no podemos nos furtar

    cotidianamente.73 Quando Bergson critica as teorias cientficas que, segundo ele, o

    eliminam da experincia vivida, parece no faz-lo ao modo daqueles fsicos que,

    apegados concepo newtoniana de mundo, recusavam-se a aceitar a evidncia da

    relatividade do tempo. Como defende Worms,74 ao contrrio destes, antes de querer

    salvar a universalidade do tempo fsico, Bergson deseja salvar a unidade da experincia

    vivida: no se trata a de opor um tempo fsico a um tempo psicolgico, mas bem

    antes de mostrar que nenhum dos dois jamais se d puro em nossa experincia, ou ainda

    que nossa experincia situa-se sempre na interseco dos dois, atravs dapercepo.75

    Observamos, enfim, que a passagem do tempo psicolgico ao tempo matemtico no se

    realizaria seno por intermdio da noo de movimento. Iniciaremos ento a anlise do

    movimento e da simultaneidade para, no prximo captulo, prosseguirmos essa

    investigao a partir das conseqncias provenientes da teoria da relatividade restrita.

    3. O Movimento e a simultaneidade 76

    No mundo fsico, a mudana essencial. Se pudermos julgar algo constante, ser o fato

    de que as coisas se transformam. Embora estejamos, de um modo geral, de acordo

    quanto a este fato originrio, o de que nada permanece igual, Bergson dir que, em

    73 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, pp 63-64.74 WORMS, F. A concepo Bergsoniana do tempo, p. 146.75 WORMS, F. A concepo Bergsoniana do tempo, p. 145.76 A anlise do movimento e da simultaneidade ser retomada no captulo seguinte ao investigarmos a

    interpretao bergsoniana para a reciprocidade do movimento e a quebra da simultaneidade na teoria darelatividade restrita. Por ora, nos caber introduzir o tema de um ponto de vista mais geral, qual seja, darelao filosofia e cincia, objeto deste captulo.

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    verdade, no percebemos a mudana: Dizemos que a mudana existe, que tudo muda,

    que a mudana a prpria lei das coisas: sim, dizemo-lo e repetimo-lo; mas temos a

    apenas palavras, e raciocinamos e filosofamos como se a mudana no existisse.77 Isto

    ocorreria porque nossa percepo do movente se realizaria, na maioria das vezes, a

    partir do misto espao-temporal, juntando-se a isto que a faculdade intelectual

    encarrega-se sempre de racionalizar o que poderia ser intudo.

    O movimento tem sido representado espacialmente desde os argumentos de

    Zeno de Elia (cerca de 504/1 -? a.C.) em favor da imobilidade.78 Para o pr-socrtico

    um movimento poderia ser indefinidamente dividido. De fato, ao representarmos o

    trajeto de um mvel que saia do ponto A em direo ao ponto B, poderemos sem

    dificuldades imaginar a diviso do espao percorrido em qualquer nmero de partes,

    alm de tambm podermos identificar os pontos percorridos pelo mvel a etapas do seu

    movimento. Haveria nisto algum obstculo verdadeira mudana? Contrariando a

    defesa de Zeno, Bergson nos prope: representar-nos-emos toda mudana, todo

    movimento, como absolutamente indivisvel.79 Sua proposta faz-se perfeitamente

    compreensvel se entendermos que toda associao do movimento ao espao ser

    arbitrria, que o movente jamais coincidir com o imvel. Tampouco o objeto que se

    move poder ser associado ao trajeto por ele percorrido uma vez que o objeto esteja em

    movimento e o trajeto esttico. Um movimento a se fazer permaneceria

    indecomponvel, e se Zeno lanou um problema quanto a sua possibilidade foi porque

    teria esquecido de perguntar a Aquiles se este ultrapassou a tartaruga. Ora,

    demonstramos a possibilidade do movimento movimentando-nos, logo, no poderamos

    representar uma sucesso temporal de posio em posio, teramos assim apenas uma

    77 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 150.78 Zeno reduziu o movimento trajetria, a trajetria a uma linha, a linha a pontos, os pontos a

    indivisveis. Ele nega o intervalo, a transio, e esquiva a mobilidade refugiando-se nas dicotomiasperseguidas ao infinito. (ROBINET, A.Bergson, p. 22)79 BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 164.

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    justaposio espacial, restando o tempo que corre incapaz de ser imobilizado porque

    no espera.

    Bergson no nega a possvel divisibilidade infinita do espao percorrido, o que

    ele no admite a divisibilidade do ato, uma vez que este seja a prpria mudana.80

    Ocorre que, embora no seja insensato admitir a ocupao do espao pelo mvel, o ato

    que o transpe de uma posio outra no ele prprio espacial. Em suma, o ato (isto

    , o movimento percebido independentemente do espao) seria concebido apenas

    qualitativamente; portanto, no poderia se associar ao espao meio homogneo onde

    se desenrola o movimento.81 Contudo, para que a fsica represente matematicamente um

    movimento a fim de medir determinado intervalo de tempo, precisa espacializ-lo. Mas

    assim a cincia s incide no tempo e no movimento com a condio de eliminar, antes

    de mais, o elemento essencial e qualitativo do tempo a durao, e do movimento a

    mobilidade.82Deste modo, a fsica, estaria limitada a medir simultaneidades, sendo o

    movimento por elas permeado.83

    Consoante ao tratamento dado mobilidade pela cincia o tratamento prestado

    simultaneidade. Neste ponto a reflexo bergsoniana apela, como sempre, percepo.

    Embora levando ao extremo a idia de que ser ser percebido,84 Bergson garante s

    coisas uma existncia prpria. Ou seja, se conforme Berkeley os objetos s existiriam

    para uma conscincia capaz de perceb-los, para Bergson eles possuem existncia em

    80 No lidamos aqui com uma coisa, mas com um progresso: o movimento, enquanto passagem de umponto a outro, uma sntese mental, um processo psquico e, por conseguinte, inextenso. No espao emque se considere o mvel, obter-se- somente uma posio. Se a conscincia percepciona outra coisa almde posies porque se lembra das posies sucessivas e as sintetiza. (BERGSON, H. Ensaio sobre osdados imediatos da conscincia, p. 79)81 Quase sempre se diz que um movimento acontece no espao, e quando se classifica o movimentohomogneo e divisvel no espao percorrido que se pensa, como se se pudesse confundir com o prpriomovimento. (BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 79) Cf. O pensamentoe o movente, A percepo da mudana.82 BERGSON, H.Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia, p. 81.83 Mediremos o espao percorrido, a nica coisa que, de fato, mensurvel. Portanto, no se trata aqui

    de durao, mas apenas do espao e de simultaneidades. (BERGSON, H. Ensaio sobre os dadosimediatos da conscincia, p. 82)84 Cf. BERKELEY, G. Tratado sobre os princpios do conhecimento humano. 3.

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    si; todavia, sem uma conscincia, estariam condenados eternidade, isto , as coisas

    no durariam. Tendo em vista essa concepo epistemolgica, a filosofia bergsoniana

    no poder defender uma simultaneidade relativa a objetos em si mesmos, visto que

    eles no comportem qualquer trao de percepo consciente, isto , de temporalidade.

    A percepo ocupa um lugar importante nessa filosofia sendo, pois, a base de todo

    processo cognitivo, condio para o conhecimento do mundo. Conquanto a percepo

    no possua alcance ilimitado, o raciocnio vem preencher as lacunas deixadas por ela,85

    derivandode tal insuficincia o nascimento de uma pretensa especulao filosfica. Ou

    seja, quando os fatos percebidos no bastam para explicar a realidade, a cincia e a

    filosofia recorrem a justificativas que extrapolam a esfera da percepo imediata para

    assentar-se em argumentos rigorosamente abstratos, e muitas vezes fantasmticos.

    Este seria o caso dos paradoxos da teoria da relatividade restrita. Segundo Bergson,

    todos [aqueles paradoxos] apelam, da insuficincia de nossos sentidos e de nossa

    conscincia, a faculdades do esprito que j no so mais perceptivas, quero dizer, s

    funes de abstrao, de generalizao e de raciocnio. 86 Desta forma, a polmica em

    torno da quebra da simultaneidade87 soaria artificial, um mero efeito de perspectiva a

    denunciar as restries da percepo.

    No Ensaio, a simultaneidade aparecia como a relao entre um momento da

    vida consciente e um ponto do espao a determin-la, representada em nmero marcado

    pelo relgio. Tratava-se, ento, de uma interseo entre o tempo real e o espao que o

    cristalizava.88 Assim, as oscilaes do pndulo do relgio estariam sempre limitadas

    85 Se os sentidos e a conscincia tivessem um alcance ilimitado, se na dupla direo da matria e doesprito, a faculdade de perceber fosse indefinida, no precisaramos conceber nem tampouco raciocinar.Conceber um paliativo quando no dado perceber, e o raciocnio feito para colmatar os vazios da

    percepo ou para estender seu alcance. (BERGSON, H. O pensamento e o movente, p. 151)86 BERGSON, H. O pensamento e o movente, pp. 152-153.87 O efeito da quebra da simultaneidade ser devidamente analisado no prximo captulo.

    88 O trao de unio entre os dois termos, espao e durao, a simultaneidade, que se poderia definircomo a interseo do tempo com o espao. (BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos daconscincia, p. 78)

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    contagem de simultaneidades. EmDurao e simultaneidade essa noo adquire novos

    contornos, embora continue a ser pensada como a relao ou o contato entre uma

    durao e uma outra realidade.89 O livro de 1922 traa a gnese do conceito,

    ressaltando que sua origem psicolgica, a simultaneidade entre fluxos, no sequer

    mencionada pelos tericos da relatividade,90cuja ateno estaria voltada inteiramente

    simultaneidade entre instantes, por definio artificial. a partir da noo psicolgica

    dos fluxos simultneos que se construir a idia de uma experincia temporal comum,

    de um tempo fsico nico, embora no homogneo. A imagem bergsoniana dos trs

    fluxos bem ilustra o significado da multiplicidade peculiar constitutiva do tempo real e

    de sua relao com a simultaneidade:

    Quando estamos sentados na margem de um rio, o correr da gua, odeslizar de um barco ou o vo de um pssaro, o murmrio ininterrupto denossa vida profunda so para ns trs coisas diferentes ou uma s, comoquisermos. Podemos interiorizar o todo, lidar com uma percepo nicaque carrega, confundidos, os trs fluxos em seu curso; ou podemos manterexteriores os dois primeiros e repartir ento nossa ateno entre o dentro eo fora; ou, melhor ainda, podemos fazer as duas coisas concomitantemente,

    nossa ateno ligando e no entanto separando os trs escoamentos, graasao singular privilgio que ela possui de ser uma e vrias.91

    Em suma, fica resguardada percepo consciente a determinao de eventos

    simultneos. Como visto na passagem supracitada, apenas a durao psicolgica

    percebe a simultaneidade entre os fluxos do rio e o vo do pssaro, portanto, no haver

    simultaneidade sem conscincia.92 Sendo assim, a verdadeira durao s ser percebida

    por uma conscincia, fora da qual haver simultaneidades no espao, e fluxos

    contemporneos sero aqueles cuja conscincia perceber externos a si mesma. Afinal,

    89 WORMS, F.Le vocabulaire de Bergson, p. 60. De acordo com este autor, a noo de simultaneidadetem uma tarefa tcnica tanto no Ensaio de 1889 quanto em Durao e simultaneidade, de 1922, para

    pensar a passagem da durao sua medida, ou ainda da durao ao tempo homogneo [...] No livro de1922, onde ela completa a noo de durao mesma, a distino de duas simultaneidades permiteresponder a uma certa interpretao filosfica da doutrina de Einstein, e completar a doutrina de Bergsonsobre um ponto essencial, a saber, a relao entre as duraes. (pp. 60-61)90 Os tericos da relatividade jamais falam de outra coisa seno da simultaneidade de dois instantes.Antes desta, contudo, h uma outra, cuja idia mais natural: a simultaneidade de dois fluxos.

    (BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61)91 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61.92 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61.

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    o fluxo do rio e o vo do pssaro compartilhariam aqui o mesmo presente. 93 A

    simultaneidade, por sua vez, sendo definida como a relao percebida entre dois ou

    mais fluxos, ser assim compreendida graas presena da conscincia, isto , da

    temporalidade psicolgica.

    Entendendo-se a simultaneidade como fundamentalmente psicolgica, o que

    equivale a percebida, vivida, no haveria razo em separar-se um tempo do filsofo e

    um tempo do fsico, como o queria Einstein. Mas, ao que parece, essa simultaneidade

    psicolgica no interessa mesmo aos fsicos e cientistas de um modo geral. A cincia

    investigaria apenas a simultaneidade entre instantes. Todavia, para Bergson, o instante

    sempre uma virtualidade,94 ou seja, uma miragem retrospectiva utilizada para medir a

    durao e o tempo real no tem instantes;95 portanto, no passvel de medida. Deste

    modo, se o instante espao e se a simultaneidade entre instantes fictcia na falta de

    um trao de unio, isto , de um ser consciente, findaro os fsicos por medir o espao.

    Embora a simultaneidade de fluxos percebida pela conscincia seja distinta da

    simultaneidade de instantes referente medida do tempo, ambas aparentemente se

    completam quando a durao real e o tempo espacializado parecem tambm equivaler-

    se.96 E quando no se faz distino entre o real e o concebido, a equivalncia faz nascer

    a idia de um tempo impessoal, ou seja, um tempo fsico excedente durao

    psicolgica particular. Assim, a simultaneidade dos instantes permitiria contar o tempo

    fsico de modo a equacionar fenmenos fsicos quaisquer a momentos marcados pelo

    93 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61.94 Cf. BERGSON, H. Durao e simultaneidade, p.62. A idia bergsoniana de que o instante umartifcio da inteligncia veementemente contestada por G. Bachelard em seu ensaio Lintuition delinstant, no qual, ao retomar o pensamento de Roupnel, afirma: o tempo s tem uma realidade, a doinstante. (p. 15) Bachelard defende uma concepo temporal completamente oposta a de Bergson. Parao primeiro, o tempo uma experincia descontnua, de modo que noo de durao como continuidadeele contrape a seguinte: a durao feita de instantes sem durao, como a reta feita de pontos semdimenso. (p. 20) Dando assentimento teoria da relatividade de Einstein, Bachelard completa: noslembramos de termos sido, no nos lembramos de termos durado. O distanciamento no tempo deforma a

    perspectiva do comprimento, pois a durao depende sempre de um ponto de vista. (p. 34)95 BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 62.96 Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 63.

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    relgio, bem como relacion-los aos momentos da vida consciente. Entretanto, sem tal

    demarcao quantitativa o tempo vivido seria percebido como continuidade pura,

    qualidade pura, durao pura.

    Como ficou claro anteriormente, a imagem dos trs fluxos mostrou a

    continuidade da vida profunda rica em alteraes qualitativas indiscernveis, j que

    no se encontrariam justapostos no espao homogneo, mas interpenetrando-se

    perenemente , o fluxo de um rio e o vo de um pssaro formando um s fluxo ou trs

    distintos, caso a ateno o determinasse. Porm, mesmo compreendidos distintamente,

    no deixariam de pertencer mesma durao, porque ligados pela conscincia que

    assim os perceberia.97 Isto foi muito bem expresso por M. Merleau-Ponty quando

    escreveu que [o filsofo] no precisa de sair de si para atingir as prprias coisas:

    solicitado ou perseguido interiormente por elas. Pois um eu que durao no pode

    captar outro ser seno sob a forma de outra durao.98 E ainda que a ateno estivesse

    totalmente absorta pela inteligncia fabricadora, o tempo se imporia conscincia. Para

    Bergson, no havendo conscincia seramos, incapazes de perceber o tempo, embora

    quase nunca de fato o percebamos.

    No entanto, uma dificuldade se apresenta: a cincia no poderia se servir da

    noo intuitiva de simultaneidade, uma vez que esta s seria de fato percebida quando

    relacionada a fluxos prximos, porque no dado conscincia perceber, por exemplo,

    a simultaneidade entre o vo de um pssaro acontecendo diante de si e a corrente de um

    rio localizada a alguns quilmetros dali. por conta de tal dificuldade que o fsico

    parece querer estender sua percepo atravs da imaginao a qualquer distncia,

    97 O vo do pssaro e minha prpria durao so simultneos somente porque minha prpria durao sedesdobra e se reflete em uma outra que a contm, ao mesmo tempo que ela mesma contm o vo do

    pssaro: h, portanto, uma triplicidade fundamental dos fluxos. nesse sentido que minha durao tem

    essencialmente o poder de revelar outras duraes, de englobar as outras e de englobar-se a si mesma aoinfinito. (DELEUZE, G.Bergsonismo, p. 64) Cf. BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 61-62.98 MERLEAU-PONTY, M.Elogio da filosofia, p. 23.

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    bastando para tanto suprimir conceitos como pouco afastado ou muito afastado.99

    Se tal operao for legtima, a simultaneidade percebida diante dos nossos olhos, em

    tese, no ser em nada distinta da que se estabelece artificialmente entre dois relgios

    afastados por uma distncia como a que separa a Terra do Sol. Logo, se as dimenses

    puderem ser intercambiadas, guardadas as devidas propores, ento no haver o que

    alterar no conceito de simultaneidade quando as distncias extrapolarem os limites das

    medidas com as quais estamos acostumados a lidar.100Acontece que a simultaneidade

    distante no imediatamente percebida, ou seja, no intuitiva, trata-se de um artifcio

    cientfico. E, no entanto, o que est em jogo distinguir o real do artificial. Em suma, a

    simultaneidade artificial esquematizada no espao permitiria contar um intervalo de

    tempo, e j que cada extremidade deste intervalo se cristaliza em um ponto, isto , em

    um instante, uma unidade de tempo ser aquilo que medeia um instante e outro, isto , o

    intervalo.101 Porm, deste modo, o que realmente se medir sero as extremidades, no

    os intervalos cuja disposio seja a de durar.102

    Com efeito, ao que parece, o menos relevante para a cincia ser a percepo.

    Mas no s para a cincia. H muito a filosofia teria se afastado da percepo para

    aproximar-se das Idias. Segundo Bergson, os Eleatas abriram caminho a este

    afastamento a partir de suas crticas percepo do devir, ou seja, ao conhecimento

    sensvel de um modo geral como sendo uma experincia enganadora.103 Os Eleatas

    teriam condenado a filosofia procura de um mundo inteligvel capaz de explicar o

    mundo fsico. Admitindo para os fenmenos um carter superficial, teriam posto a

    inteligncia e seus conceitos em primeiro plano, esquecendo-se, portanto, de olhar para

    99 Como garante Bergson, no h fsica, no h astronomia, no h cincia possvel, se no for dado aocientista o direito de afigurar esquematicamente numa folha de papel a totalidade do universo.(BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 65-66)100 Cf: BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 67.101

    BERGSON, H.Durao e simultaneidade, p. 67.102 Cf. BERGSON, H. Durao e simultaneidade, pp. 67-68.103 Cf. BERGSON, H. A evoluo criadora, p. 333.

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    os fenmenos imediata e profundamente percebidos104. A teoria da relatividade restrita

    aparece a Bergson como um caso exemplar dessa extrapolao da experincia, tanto por

    parte da cincia, quanto por parte daqueles que a erigiram em nvel metafsico,

    estabelecendo entre o real e o concebido, o fictcio, uma identidade que, aos olhos do

    filsofo, no se sustenta face ao apelo essencial da intuio. Este ser o tema do nosso

    prximo captulo.

    CAPTULO II DURAO E ESPAO-TEMPO

    O universo dura. Quanto mais aprofundarmosa natureza do tempo, melhor compreenderemosque durao significa inveno, criao deformas, elaborao contnua do absolutamentenovo.

    (Bergson,A evoluo criadora, p. 12)

    1. A teoria da relatividade restrita

    A mecnica clssica amparou-se inteiramente no princpio da relatividade do

    movimento estabelecido por Galileu no sculo XVII, segundo o qual todos os sistemas

    104 Quanto s crticas de Bergson aos filsofos gregos, conferirA evoluo criadora, captulo IV e Apercepo da mudana, in: O pensamento e o movente.

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    inerciais105 so equivalentes no que concerne descrio do movimento; ou seja, as leis

    da mecnica devem ser as mesmas em qualquer sistema de referncia inercial. Havia,

    para Newton (1642-1727), uma clara distino entre tempo, espao e movimento.106 Sua

    fsica descrevia o movimento baseando-se num conceito de tempo absoluto. Portanto,

    em qualquer referencial inercial a medida do tempo deveria ser sempre a mesma. Deste

    modo, na descrio do movimento de determinado sistema relativamente a outro

    suposto em repouso, era utilizado um conjunto de transformaes107 capazes de

    compatibilizar as coordenadas espaciais de um sistema a outro. Porm, para o tempo,

    estas transformaes eram idnticas em ambos os sistemas. O principio da relatividade

    do movimento era sempre constatado para fenmenos mecnicos. Entretanto,

    fenmenos ligados ptica e ao eletromagnetismo pareciam no obedecer quele

    princpio.

    Assim como a mecnica newtoniana no sculo XVII se fundamentava na

    relatividade do movimento, no sculo XIX, a cincia da eletricidade e do magnetismo

    trazia como princpio universal a constncia da velocidade da luz. As duas teorias

    pareciam, ento, incompatveis. Inmeras tentativas foram feitas a fim de reconcili-las.

    O desenvolvimento das pesquisas de Hendryk Lorentz (1853-1928) e Henri Poincar

    (1854-1912)108 sobre o eletromagnetismo109 deu-se paralelamente s pesquisas de

    Einstein.110 So de Lorentz as frmulas de transformao das coordenadas de espao e

    105 Sistemas inerciais ou galileanos so aqueles cujo movimento retilneo uniforme sempre determinadoem relao a outro sistema suposto em repouso com relao ao primeiro. Em tais sistemas, portanto, asleis da mecnica so igualmente aplicadas. Deste modo, a determinao da velocidade de um objetoqualquer em movimento retilneo uniforme s tem sentido se feita relativamente a um sistema dereferncia. (Cf. LANDAU e RUMER, O que a teoria da relatividade, p. 25-37)106 Cf. STACHEL, J. The theory of relativity, p. 443.107 As transformaes galileanas: x = x + vt / y = y / z = z (Cf. BERGSON, H. Durao esimultaneidade, p. 28)108 Hendryk Antoon Lorentz, fsico holands e Henri Poincar, matemtico e fsico francs.109 A teoria eletromagntica foi desenvolvida no sculo XIX por J. C. Maxwell (1831-1879) e condensamagnetismo, eletricidade e ptica. Juntamente com a mecnica e a termodinmica, o eletromagnetismo

    um dos pilares da fsica clssica. (Cf. ROCHA, J. F. M. Origem e evoluo do eletromagnetismo, in:Origens e evoluo das idias da fsica, p. 187)110 Cf. PAIS, A. Sutil o senhor... A cincia e a vida de Albert Einstein, p. 190.

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    de tempo, adequadas dinmica eletromagntica, que culminaram na teoria da

    relatividade restrita uma vez que os experimentos de Albert Michelson (1852-1931)

    e Edward Morley (1838-1923), em 1887, vieram a comprometer as concepes

    clssicas de espao, tempo e luz. Mas, embora Lorentz e Poincar tenham enfrentado os

    mesmos problemas e alcanado resultados importantes para o desenvolvimento daquela

    teoria, ambos foram levados a caminhos diversos de Einstein. Quem, por sua vez, foi

    capaz de extrapolar os conceitos da fsica clssica.

    Tudo comeou com a tragdia da luz.111 Cinco sculos antes de Cristo, os

    pensadores gregos j manifestavam interesse pelo tema. Desde ento, as primeiras

    discordncias tambm j eram verificadas.112 A partir do sculo XVII, a especulao

    filosfica d lugar a experimentos cientficos. Na primeira metade deste sculo, muitos

    tericos e cientistas estavam de acordo quanto natureza corpuscular da luz.113 Porm,

    a descoberta de outros fenmenos pticos (difrao, interferncia e polarizao), alm

    dos j conhecidos e explicados pela teoria corpuscular (reflexo e refrao), pe em

    cheque essa concepo da luz como feixe de partculas. Contudo, a velha teoria no era

    capaz de explicar aqueles novos fenmenos nos quais a luz se comportava segundo

    caractersticas ondulatrias. Em seu livro ptica (1704), Newton comenta os

    fenmenos recm-descobertos, isto , o aspecto ondulatrio apresentado pela luz em

    determinadas circunstncias. Todavia, ali Newton parece defender uma preponderncia

    111 Cf. LANDAU, L. e RUMER, Y. O que a teoria da relatividade, p. 39-54.112 Entre os pr-socrticos, Demcrito (460 - 370 a.C.) acreditava no carter corpuscular da luz, ao passoque Aristteles (384-322 a.C.) atribua-lhe carter vibratrio. Suas idias, ento, estavam mais prximasda concepo ondulatria. (Cf. ROCHA, J. F. M. Origem e evoluo do eletromagnetismo, in: Origens

    e evoluo das idias da fsica, p. 212-213)113 Entre eles podemos citar Descartes, Fermat, Newton e Huygens. (Cf. ROCHA, J. F. M. Origem eevoluo do eletromagnetismo, in: Origens e evoluo das idias da fsica)

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    do carter corpuscular sobre o ondulatrio.114 Em contrapartida, muitos cientistas

    passaram a defender a teoria ondulatria.115

    Dando, ento, um salto brusco na histria da cincia, concedamos, por ora, que

    a hiptese ondulatria, ao ser reformulada por Christiaan Huygens, em 1678, traz de

    volta ao cenrio cientfico a noo de um meio ou substncia velha conhecida entre os

    antigos pensadores gregos. Estes acreditavam na existncia de uma substncia invisvel,

    permeando todo o cosmos, denominada ter palavra que em latim (aether) quer

    dizer ar sutil. Ora, se a luz possui carter ondulatrio, tal como o som, a onda

    luminosa necessitaria de um meio para a sua propagao. Ao menos, era assim que

    pensavam os cientistas do sculo XVII, profundamente influenciados pela mecnica

    newtoniana. Mas, o som no se propaga no vcuo, e a luz sim. Portanto, esse meio no

    poderia ser o ar, deveria se tratar de uma substncia mais sutil, capaz de penetrar todo o

    espao sem interferir no movimento dos planetas. Tal meio fora batizado por C.

    Huygens de ter luminfero.116

    No incio do sculo XIX, o conceito do ter ganha novos contornos.117 Por volta

    de 1861, J. C. Maxwell demonstra que a onda de luz possui carter eletromagntico e

    no mecnico, como se pensava anteriormente. A partir de ento, o conceito de ter

    sofre novas alteraes, j que seria capaz de propagar eletricidade e magnetismo. Em

    suma, a noo do ter como meio propagador da luz foi se reformulando a cada nova

    114 A questo bastante delicada e no pretendemos aqui aprofundar a polmica acerca da dualidadeonda-partcula.115 Entre eles C. Huygens (1629-1695), contemporneo de Newton e, um sculo mais tarde, T. Young(1773-1829) e A. Fresnell (1788-1827). Cf. ROCHA, J. F. M. Origem e evoluo do eletromagnetismo,in: Origens