Musica Eletronica e Cibercultura - Claudio Manoel

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    UFBA - UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    Faculdade de Comunicao

    Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas

    Msica eletrnica e Cibercultura

    (Idias em torno da socialidade, comunicao em redes telemticas e cultura dodj)

    Dissertao de Mestrado de Cludio Manoel Duarte de Souza

    Orientador: Prof. Dr. Andr Luiz Martins Lemos

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    Sistema de Bibliotecas - UFBA

    Souza, Cludio Manoel Duarte de.

    Msica eletrnica e cibercultura : idias em torno da socialidade, comunicao em redes telemticas e cultura do dj / Cludio Manoel

    Duarte de Souza. - 2003.

    182 f.

    Inclui anexos e apndice.

    Orientador: Prof. Dr. Andr Luiz Martins Lemos.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicao,

    Salvador, 2009.

    1. Computadores e civilizao. 2. Comunicao. 3. Msica eletrnica. 4. Comunidades virtuais. 5. Ciberespao. I. Lemos,

    Andr Luiz Martins. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicao. III. Ttulo.

    CDD - 302.23

    CDU - 659.3

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    Cludio Manoel Duarte de Souza

    Msica Eletrnica e CiberculturaIdias em torno da socialidade, comunicao em redes telemticas e cultura do dj

    Dissertao apresentada por Cludio Manoel Duarte de Souza

    ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e CulturaContempornea da Universidade Federal da Bahia

    (UFBA), como requisito parcial para concluso de

    Mestrado da Faculdade de Comunicao (FACOM)

    Orientador: Prof. Dr. Andr Luiz Martins Lemos

    Salvador, maio de 2003

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    A minha me, Lindinalva Duarte, a meu amigo Gil Maciel e aos DJs do Coletivo

    Pragatecno, pelo amor, presena constante e apoio.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo aos amigos, sempre no entorno e centro de minha existncia, dando

    suporte, trazendo os timos momentos, ajudando a construir o presente, o futuro; a

    Andr Lemos, mais que um orientador, parceiro, uma referncia fundamental em

    minha vida; arte, musica que costuram meus dias.

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    A eletrnica est alm das naes e das raas. Ela fala uma

    linguagem que qualquer um pode entender e que expressa

    mais do que s histrias, como as canes convencionais.

    Com a eletrnica, tudo possvel. O nico limite o que

    diz respeito ao compositor. (Hutter, Billboard, 1977)

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    RESUMO

    Esta dissertao, alm de fazer um levantamento sobre os elementos que compem a

    cultura do dj, busca refletir sobre a relao entre comunidades da Msica Eletrnica

    e a Cibercultura na construo de formas de comunicao no ciberespao. Busca,

    ainda, analisar a interao entre a cena cultural do dj e suas formas de representao

    no ciberespao, como instrumento de articulao entre a cena urbana, local, e avirtualidade como extenso do urbano. A dissertao traz ainda um estudo

    cronolgico sobre o desenvolvimento da tecnologia para a msica, bem como um

    mapeamento de sites focados na cultura do dj.

    Palavras-chave: Cibercultura, Comunicao, Msica Eletrnica, Comunidades

    Virtuais.

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    ABSTRACT

    This work, besides studying the elements of the djs culture, reflects upon the

    relationship between communities of Electronic Music and Cyberculture in the

    construction of forms of communication in cyberspace. It also aims to analyze theinteraction between the cultural scene of the DJ and their forms of representation in

    cyberspace as a tool for linking the urban scene, place, and the virtual as an extension

    of the urban. This work also brings a chronological study on the development of

    technology for music, as well as a mapping of sites focused on the culture of the dj.

    Keywords: Cyberculture, Communication, Electronic Music, Virtual Communities.

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    SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................11

    CAPTULO I: O plo de emisso em redes e as subculturas..............16

    CAPTULO II: Cena, subcultura, underground e overground............25

    CAPTULO III: Msica e tecnologias.................................................41

    CAPTULO IV: Msica e ciberespao................................................65

    CAPTULO V: A cultura do dj............................................................81

    CAPTULO VI: Concluso................................................................106

    REFERNCIAS.................................................................................109

    GLOSSRIO

    APNDICE

    ANEXOS

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    INTRODUO

    A experimentao musical associada s tecnologias surge ainda em 1860.Desde ento, novas estticas sonoras foram sempre permeadas pela descoberta de

    novos recursos. Esses recursos sofrem transformaes meramente tcnicas ou so

    resignificados, a partir de sua reapropriao.

    Hoje, a msica eletrnica, e todas as manifestaes que dela decorrem, o

    resultado da reapropriao social das tecnologias contemporneas. uma das

    expresses da Cibercultura. A essa msica esto associados no s o uso de

    softwares, de produo simblica, mas a utilizao dos espaos de fluxos

    (CASTELS: 1999) principalmente o ciberespao como instrumentos de

    acelerao da cenas urbanas e locais. Isso foi possvel, essa acelerao, dado

    implantao e liberao comercial da internet. As redes telemticas trazem como

    pr-requisito para sua existncia a interatividade e a liberao do plo emissor da

    informao (LEMOS: 2002), abrindo espao para as alteridades e consolidao

    comunitria ligadas a elas.

    Em torno dessa msica h um fluxo de informao que elege as redes

    mundiais de computador como principal veculo de comunicao e de produo

    cultural. O ciberespao assume uma relevante funo de instrumento comunicacional

    (webzines, sites, ftps, chats e listas de discusso), de instrumento mercadolgico

    (com suas lojas virtuais alternativas), bem como de instrumento de produo

    simblica - onde se produz a arte, a msica ela mesma, inclusive com associaes e

    parcerias distncia. Sites, chats, listas de discusso e outros fruns reforam noesde cena, subcultura, tribalismo, undergrounde Cibercultura fortalecem, enfim, as

    tribos urbanas eletrnicas. Na cultura da msica eletrnica, o ciberespao uma

    ambincia para a construo de sentido. Cibercultura e msica eletrnica, eis o tema

    desta pesquisa. Mais do que aliadas da cena urbana da msica eletrnica, nesta

    pesquisa pretende-se mostrar que as redes telemticas, com a liberao do plo

    emissor, foi capaz de, no Brasil e principalmente no Nordeste brasileiro , acelerar

    e at desenvolver as cenas locais.

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    O ciberespao tem sido o principal canal para o fluxo de informao de cenas

    musicais urbanas undergrounds. esse espao de circulao aberta da informao

    que elegemos para discutir noes de underground antes associado quilo com

    pouca circulao. Porm as redes telemticas tm desmontado a idia de

    undergroundbaseado apenas no item "circulao", j que a ambincia gerada pelas

    redes telemticas abre o acesso livre informao, de forma incontrolvel e

    interativa. Aliados s redes telemticas, os flyers e fanzines suportes de "low

    technology" so usados tambm como instrumentos para o fluxo de idias, de

    informaes dessas cenas.

    A cultura da msica eletrnica cumprindo a trade da produo, circulao e

    consumo uma cultura identitria, forma tribos urbanas a partir de manifestaesprprias na produo de sentido, dentro e fora do ciberespao.

    Se pensada essa cultura na ambincia das redes telemticas, torna-se

    inevitvel a busca de uma conexo terica entre as noes dos Estudos Culturais e da

    Cibercultura, e at de Filosofia da Tcnica.

    A presente pesquisa faz um percurso para identificar quando surgiu o

    interesse dos Estudos Culturais em pensar a msica pop(ular), em detrimentos de

    estilos mais "clssicos", e a partir da definir noes como cena e subcultura. Uma

    das idias transpor para o campo da Cibercultura essas noes, destacando como

    corte a cena da msica eletrnica. Tambm discutimos a relao entre arte e

    tecnologia nos processos criativos, bem como as principais manifestaes do que

    chamado de "cultura do dj", a qual buscamos detalhar em um dos captulos, alm de

    fazer um mapeamento da cena brasileira da msica eletrnica, representada em

    diferentes suportes de comunicao no ciberespao.

    Porm, a idia principal tomada como hiptese no presente trabalho mostrar

    at que ponto as cenas locais da msica eletrnica, particularmente do Brasil, sofrem

    uma acelerao por conta das redes telemticas e da liberao do plo emissor de

    informaes, propiciados pela internet a partir de meados do anos 90, com a sua

    comercializao e com o crescimento da web. Esse o tema do captulo primeiro,

    onde fazemos um rpido documentrio sobre o surgimento da internet, suas 3 fases

    at os dias atuais.

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    No segundo captulo discutimos o que a cena eletrnica, como funciona a

    trade produo/circulao/consumo e o que underground, overground e

    subcultura. Este captulo tambm documenta as origens dessa cena e como ela tem

    acontecido no Brasil.

    No terceiro captulo, fazemos um mapeamento das tecnologias aplicadas

    msica, desde os primeiro experimentos, at os softwares de simulao atuais.

    Discutimos tambm a idia de apropriao e resignificao tecnolgica e, em

    mapeamento histrico, mostramos a conexo inevitvel dos artfices, das invenes,

    do objetos tcnicos com a experimentao sonora e de que forma essas novas

    tcnicas de produo sonora - associadas s redes telemticas - podem se propagar e

    construir formas de produo coletiva distncia.

    No quarto captulo, o tema a msica e ciberespao, onde usamos as 3 bases

    que constroem o movimento social da Cibercultura (interconexo, interatividade e

    inteligncia coletiva) para pensar a cena da msica eletrnica no ciberespao, e fazer

    um mapeamento dessa cena nas redes telemticas, em suas representaes em listas,

    sites e outros fruns.

    O quinto captulo se volta cultura do dj o que , o que a forma, em que se

    baseia. A idia mostrar o carter amplo de uma cultura que centrada num

    personagem, e que termina por promover e consolidar uma srie de outras aes,

    inclusive mercadolgicas.

    O sexto captulo, conclusivo, sistematiza algumas idias sobre liberao do

    plo emissor de informaes atravs da internet e sua repercusso na cena da e-music

    O fato de estar inserido na cena, como produtor e dj, atuante h mais de 5

    anos, nos trouxe subsdios bastantes especficos para pensar em nosso objeto de

    estudo de uma forma no apenas distanciada, reflexiva, mas com base na vivncia

    pessoal, na experienciao. Por vezes, verdade, sentimos a dificuldade

    metodolgica do distanciamento para uma reflexo menos envolvida. Menos afetiva,

    por assim dizer.

    Dentre nossas atividades na cena, destacaramos o fato de ser fundador de umdos primeiros coletivos brasileiros de djs, o Pragatecno, atravs do qual promovemos

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    diversos eventos, desde oficinas, festas, raves, mostras de vdeos etc; produzimos a

    coletnea Sombinrio #1 pela Utter Records (primeiro cd duplo de msica eletrnica

    do Pas e o primeiro cd de msica eletrnica do Norte e Nordeste); organizamos e

    mantemos uma das 3 maiores listas de discusso de msica eletrnica do Pas (Lista

    PragatecnoBrasil1); incentivamos a criao de ncleos de djs em diversss cidades

    (Belm, Fortaleza, Joo Pessoa, Recife, Macei, Salvador, Rio de Janeiro), com o

    apoio do Pragatecno, com o objetivo de trocar informaes e acelerar as cenas

    regionais, a partir do intercmbio entre esses ncleos, que, em recente evento

    pioneiro, o Conex@o, em janeiro de 2003, em Salvador. Ele foi o primeiro evento

    regional de encontro de ncleos do Norte e Nordeste, que estiveram reunidos

    durantes 4 dias para consolidar suas relaes nascidas e desenvolvidas distncia,

    via ciberespao, comprovando a idia de que o ciberespao canal de incrementao

    de cenas locais. A nossa insero na cena da e-music nos possibilitou, enfim, aliar a

    reflexo terica nossa prtica cotidiana de clubber, de dj, de promoter, de produtor

    cultural. Gostaramos de documentar, inclusive, que a presente dissertao fruto

    tambm de nossa paixo pela cultura da msica eletrnica e pela Cibercultura.

    Como msico eletrnico de house music, pudemos experimentar o

    funcionamento de um mercado mais especfico que envolve outras atividadesdiferenciadas da atuao do dj, nos trazendo novos subsdios para reflexo.

    Frente escassa literatura especfica, acreditamos ter sido fundamental a

    essas experincias de participao e observao participativa e o contato direto com

    promoters, djs e produtores musicais da cena brasileira e internacional. Contatos que,

    atravs de entrevistas, reforaram com depoimentos e novos dados as nossas

    argumentaes em torno do tema desta pesquisa.

    Mesmo com a escassa literatura sobre o assunto, elegemos um conjunto de

    autores que esto mais prximos ao tema da Cibercultura, da arte, das tecnologias

    contemporneas e dos Estudos Culturais. Os autores de maior referncia neste

    trabalho so Pierre Lvy, Andr Lemos, Marcos Palcios, Pedro Nunes, Manuel

    Castels, Walter Benjamin, Gilbert Simondon, Mathhew Collin, Jeremy Gilbert e

    Ewan Pearson, Sarah Thorton, Ruth Finnegan, Will Straw, alm de artigos

    1 http://groups.yahoo.com/group/pragatecnobrasil

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    jornalsticos, pesquisas em sites, chats e listas de discusso. Inclumos ainda artigos

    jornalsticos.

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    CAPTULO I: O plo de emisso em redes e as subculturas

    A frmula emissor/meio/receptor nos processos comunicacionais sofre umaruptura com o surgimento das redes telemticas. A centralizao da emisso das

    informaes foge do controle dos detentores dos meios tradicionais de comunicao.

    No ciberespao - ambincia onde o usurio seleciona e consome informao - a

    ambincia onde ele (o receptor/usurio) emite: o novo campo para a reelaborao

    da relao entre quem emite e quem recepciona a informao. O receptor agora

    tambm proprietrio do plo de emisso, conforme atenta Lemos2: "o ciberespao

    permite uma libertao do plo da emisso, onde cada um pode colocar suas idias,opinies e informaes sem passar por um centro editor como no caso dos mass

    medias. a interatividade3 assegurada por essa nova ambincia que qualifica o

    usurio comum antes sem poder de emisso - como ativo em sua relao com a

    produo e a circulao da informao.

    Em que sentido, ento, o poder adquirido pelo usurio comum do ciberespao

    na produo, circulao e consumo de suas informaes contribuiu na construo de

    culturas identitrias? De subculturas? Em que sentido as redes telemticas podem

    implementar e acelerar a troca de informao e propor novos suportes para a

    efervescncia de cenas urbanas?

    Partindo do princpio de que as subculturas4 esto mais bem sedimentadas em

    reas mais urbanas, onde a efervescncia cultural se coloca de forma mais presente.

    O desenvolvimento dessas subculturas, no entanto, pode ocorrer em centros menos

    desenvolvidos o que est colocado como premissa o acesso informao paraalimentar os focos de interesse (artistas, intelectuais, consumidores identificados com

    2 http://linefeed.org/~dri/cibercultura.htm3 Existe uma enorme discusso sobre essa noo, mas nos apoiamos no fato de que a interatividade pressupe,conforme defende Vittadini, uma alterao de contedos e no uma mera manipulao de dados previamentecolocados como opes. Entendemos aqui a interatividade como a ao comum que ocorre entre dois ou maisagentes, onde os agentes envolvidos ter capacidade igualitria nessa ao, podendo alterar processos eresultados, propondo inclusive uma imprevisibilidade desses resultados, diferente do conceito de reatividade, queseria a reao da audincia atravs de um menu de opes (Williams). Para mais dados sobre esses conceitos lerVITTADINI, Nicoletta. Comunicar con los Nuevos Media. In: BETTETINI, Gianfranco; COLOMBO, Fausto. LasNuevas Tecnologas de la Comunicacin. Barcelona: 1995. Ler ainda PRIMO, Alex. Interao Mtua e Interao

    Reativa: uma proposta de estudo. Trabalho apresentado no GT de Teoria da Comunicao, Intercom, Recife, 1998.4 O termo subcultura, o qual discutiremos em captulo a seguir, tem outras terminologias como "estilo de vida" e"cultura jovem", oriundos tambm dos Estudos Culturais.

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    essas culturas). Essa conexo dos focos de interesses em centros urbanos menores se

    d, no necessariamente com os centros maiores (geograficamente estabelecidos),

    mas com o carter rizomtico e universal dessas culturais, usando o ciberespao

    como localidade para sua auto-expresso "glocal"5.

    O desenvolvimento (no o nascimento) da cena brasileira de msica

    eletrnica, muito particularmente da cena no Nordeste do pas, est diretamente

    relacionada com o prprio desenvolvimento da internet e com a apropriao social

    das redes telemticas, ou pelo menos com um determinado uso dessas redes.

    Basicamente a cena nesta regio, como veremos adiante, se acelera em fins dos anos

    90 e, mais particularmente, no incio dos anos 2000, quando as redes telemticas

    passam a ser o principal instrumento de pesquisa e informao dos clubbers,produtores, djs e promoters atuantes na regio, gerando comunidades atravs de

    listas de discusses.

    A frmula de emissor/meio/receptor ao se tornar ultrapassada com o advento

    da internet (massiva e estruturada em suportes de interatividade) e a liberao do

    plo emissor da informao no ciberespao incentivaram, a nosso ver, efervescncia

    de subculturas em centros no to metropolitanos. Tecnologias associadas

    comunicao tm um papel preponderante para a circulao mais gil da informao

    e, quando apropriadas socialmente por agregaes subculturais, consolidam culturas

    identitrias, resultando na efervescncia cultural urbana.

    Se recorremos, historicamente, ao prprio desenvolvimento da internet,

    conseguimos localizar que o que Lemos chama de liberao do plo emissor da

    informao fruto de uma apropriao, ou resignificao, social da tecnologia da

    Cibercultura. De uma rede voltada utilizao militarista, em sua origem, a uma redepara prticas tambm hedonistas, a internet o espelho do desejo social em t-la

    como um instrumento de uso pessoal, inclusive. A prpria trajetria e

    desenvolvimento da internet revela essa apropriao.

    Criada em 1969 pelo DOD, Departamento de Defesa dos Estados Unidos, e

    inicialmente chamada de Arpanet (rede da Arpa - Advanced Research Projects

    5 Hbrido de global e local. O termo questionado por alguns autores como JANOTTI: "armadilhas de termos comoglocal, (...) minimiza as tenses que caracterizam a interdefinio entre os termos e as particularidades presentesem suas diversas articulaes". http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/404nOtF0und/404_25.htm

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    Agency), essa rede tinha como idia inicial um instrumento de transferncia de

    informao que no pudesse ser destrudo em caso de guerras e que fosse capaz de

    interligar pontos estratgicos, incluindo ncleos cientficos e tecnologia, voltados

    principalmente para pesquisas de proteo militarista. A Arpanet, coordenada pelos

    pesquisadores J.C.R. Licklider e Robert Taylor, era resultado das tenses da Guerra

    Fria. Licklider e Taylor propunham uma rede sem centro, sem estrutura piramidal, j

    referenciados nos estudos de 1964, desenvolvidos pelo Rand (ncleo de pesquisas

    anti-soviticas). Participam da instalao da Arpanet a Universidade da Califrnia-

    UCLA, o Instituto de Pesquisas de Stanford e a Universidade de Utah. Entre o

    primeiro teste, em 21 de novembro de 1969, e os anos que se seguiram, a progresso

    de crescimento de novas mquinas conectadas era impressionante6: 1971, 24

    mquinas em rede; 1974, 62 mquinas; 1981 (no surgimento da Internet), 200

    mquinas.

    O carter militarista da Internet (Arpanet), em sua fase primeira, vai, aos

    poucos, e principalmente nos anos 80, com a entrada de vrias instituies de

    pesquisa e universidades na rede, tomando outra feio: passa a ser um instrumento

    de uso acadmico, principalmente. Aqui podemos documentar um primeiro momento

    de apropriao social dessa tecnologia, resignificando o seu carter inicial militaristapara o uso dessa rede como suporte das pesquisas cientfico-acadmicas. Esse novo

    carter da rede coincide com a expanso da microinformtica, tambm nos anos 80,

    fruto do movimento dos cientistas californianos que defendiam computadores para o

    povo, influenciados pelas idias da contracultura dos anos 60. A inveno do

    Mosaic, em 1993, primeiro navegador para a web criado por um grupo de jovens

    estudantes da Universidade de Urbana-Champaign, sob liderana de Marc

    Andreessen

    7

    (de apenas 21 anos), tambm teve uma contribuio marcante para umaproliferao mais massiva da rede. O Mosaic foi efetivamente a forma popular para

    uma interface amigvel de comunicao via internet que colocava eficincia numa

    outra inveno anterior, a www (world wide web), formato encontrado pelo cientista

    Tim Berners-Lee, em 1990, do laboratrio suo CERN (Laboratrio Europeu de

    Estudo de Partculas Fsicas), para facilitar a "navegao" pelas informaes em

    rede, atravs de ligaduras entre texto, imagens e sons.

    6 http://www.estado.estadao.com.br/edicao/especial/internet/internet.html, em novembro de 20027 Em 1995, apenas 2 anos aps ter inventado o Mosaic, Andreessen cria o Netscape Navigator (que chegou adominar 70% do mercado de browsers).

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    Entre o ano de 1971, com apenas 24 mquinas conectadas, e o incio dos anos

    90, com mais de um milho de usurios da rede, passando por suas primeira e

    segunda etapa de desenvolvimento, a internet entra em sua terceira fase, a da

    comercializao.

    Essa nova fase, a comercializao da rede - ou seja o acesso livre e para uso

    comercial e pessoal - promoveu definitivamente as redes telemticas como foco

    autnomo e de florescimento das culturas identitrias, notadamente em regies fora

    dos grandes centros urbanos.

    No Brasil, podemos eleger como o marco inicial da internet o ano de 1988,

    quando a Fapesp (Fundao de Amparo Pesquisa no Estado de So Paulo) fez suaprimeira tentativa de instalao da rede, tendo a frente o professor Oscar Sala, ento

    conselheiro na Fapesp8. O servio, no entanto, s comea a funcionar no ano

    seguinte, em 1989, conectando o Brasil internet, via Bitnet (Because is Time to

    Network), com limitao de troca de arquivos e uso de correio eletrnico. Finalmente

    em 1991, a Fapesp teve uma linha internacional dedicada conexo da internet,

    liberando o acesso para entidades sem carter lucrativo e que trabalhassem com

    pesquisa, incluindo-se desde rgos governamentais no ligados educao at

    instituies de ensino. Em 1992 o Ministrio da Cincia e Tecnologia cria a RNP

    (Rede Nacional de Pesquisa), sob a coordenao de Tadao Takahashi. A RNP teve

    um papel fundamental pois implantou um tronco principal da rede no Brasil e pde

    montar servidores nas capitais e coordenar a rede no Pas. A comercializao

    acontece com uma portaria publicada em 1995 pelo Ministrio das Comunicaes e

    do Ministrio da Cincia e Tecnologia, em maio de 1995. Essa portaria cria o

    "provedor de acesso privado", abrindo a explorao comercial da rede no Brasil.

    Podemos ento eleger o ano de 1995 como o marco zero para a abertura no

    ciberespao para o surgimento de comunidades virtuais ligadas s subculturas. A

    comunidade da msica eletrnica j estava atenta e j no ano seguinte, em 1996,

    surge a lista Br-Raves ponto de encontro de clubbers e ravers brasileiros. Foi a

    partir desse momento que djs, promoters, clubbers, produtores, designers, curiosos,

    puderam compartilhar nacionalmente e pela primeira vez suas experincia e sua

    8 Oscar Sala era ligado ao Fermilab, laboratrio de Fsica de Altas Energias de Chicago (EUA)

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    cultura de identificao. Em 1997, apenas dois anos aps a liberao comercial da

    internet brasileira, surge o mais importante site de eletrnica do Pas, o Rraurl9, que

    dava visibilidade definitiva cena brasileira. No Nordeste, em Macei - e portanto

    longe da cena que comeava a se consolidar em So Paulo, cidade tida como templo

    da msica eletrnica - um pequeno grupo de amigos ouvia msica eletrnica, mas

    sem relao com as cenas que se construam no Sudeste do Pas.

    De Macei a So Paulo, a internet representava para a inicial cena eletrnica

    brasileira a acelerao dos processos de informao sobre essa cultura, que tinha

    como referncia outros suportes de informao como cds e revistas importados. A

    rede mundial de computadores, mais que um aparato tcnico, era no s sinnimo de

    intensificao dessas informaes mas um instrumento formador de uma comunidadebaseada em afinidades alm-geogrficas. Sem o acesso s informaes no site Rraurl

    e na lista Br-raves, certamente as atuaes locais no seriam conhecidas de forma to

    gil. Dois anos aps a instalao do site Rraurl, em janeiro de 1998, o grupo

    Pragatecno (criado em Macei) se prepara para lanar seu site no ciberespao.

    Sem o "descontrole" democrtico da emisso no ciberespao, a informao

    acerca da cena que se instalava no Brasil no ganharia visibilidade. Mas que

    instrumento de informao, a rede mundial se tornaria inclusive um recurso para a

    criao artstica distncia, em projetos de produo coletiva. Esses projetos so

    mantidos por duplas, no caso da msica eletrnica (djs ou produtores que vivem em

    diferentes reas geogrficas), ou grupos inteiros. Uma das experincias mais

    interessantes de criao coletiva o projeto Re:combo, criado em Recife (PE), com

    participao de cerca de 20 integrantes, tendo frente, hoje, o produtor H.D.

    Mabuse. O projeto se define como "mais que uma banda pop: um ensaio terico

    sobre autoria e propriedade intelectual no sculo XXI feito para danar" 10. Um grupo

    formado por msicos, artistas plsticos, engenheiros de software, djs, professores e

    acadmicos, que trabalha em projetos de arte digital e msica de uma forma

    "descentralizada e colaborativa". O grupo desenvolve-se em cidades como Recife,

    Joo Pessoa, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, So Paulo e Caruaru,

    recebendo imagens e sons de lugares to distantes quanto Lima e Bucareste.

    9 www.rraurl.com. Site brasileiro dedicado cena dos djs, O rraurl.com foi criado em 1997 pelos djs Gil Barbara eCamilo Rocha, juntamente com a jornalista Gaa Passarelli. Comeou como um e-zine, "com a inteno de divulgara ento nascente cena rave no Brasil", conforme est afirmado no site.10 Em texto de apresentao no site www.recombo.art.br

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    Sua idia principal produzir "msica criativa, democrtica e livre das

    amarras do conceito criminoso e antiptico de propriedade intelectual"11. O

    funcionamento simples. Em seu site disponibilizado um banco de dados (sons,

    imagens...) para serem baixados pelos integrantes do projeto, os quais devolvem ao

    site dados alterados para novos downloads e novas alteraes. Os arquivos alterados

    (remixados) de som esto disponveis em mp3, com mais duas opes, uma do

    arquivo aberto (para novas edies) e outro em arquivode formato Ogg12. Aliado

    produo coletiva via internet, o projeto elege como um dos seus temas o direito

    autoral. O Re:combo, usando das ferramentas digitais, prope uma inverso, ou uma

    diluio, autoria e a transforma em autoria coletiva. Para seus integrantes, os

    direitos autorais ou copyrights (direitos de cpia) funcionam hoje como uma fora

    restritiva ao processo de criao intelectual: "Somos a favor do copyleft (deixar

    copiar) em prol de uma diversidade de produo que independe das amarras desse

    sistema de 'realizao de direitos' at ento vigente"13. H. d. Mabuse defende a idia

    de "generosidade intelectual" que, alm de propor trabalhos coletivos distncia,

    prope a liberao autoral, entendendo os produtos do Re:combo como dados sem

    propriedade intelectual, disponveis na rede mundial de computadores para quem os

    acesse e manipule:

    "(...)logo quando topei entrar para o projeto

    levantei a possibilidade de trocarmos arquivos de

    forma aberta pela Internet, j que um ponto

    pacfico era repensar o propriedade intelectual.

    Saiu ao mesmo tempo, o site, com os arquivos

    das msicas free e abertas, o primeiro release

    (re:faa/re:combine) e o termo *GenerosidadeIntelectual*. Com menos de trs meses tnhamos

    juntado uma quantidade suficiente de malucos

    espalhados pelo Brasil e pelo mundo para ter um

    lanamento mensal do Re:combo vindo toda vez

    11 www.recombo.art.br12 O projeto Re:combo adota esse formato (Ogg Vorbis ) como "novo padro de arquivo de msica para

    download". O formato tem uma compactao maior, alm de ser "aberto" (reprogramvel) e gratuito. No entanto oseu player no so os tradicionais do windows (winamp, real player etc) , sendo necessrio outros softwares pararodar os arquivos (http://www.vorbis.com/software.psp)13 www.recombo.art.br

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    de um lugar diferente. claro que sem a Internet

    isso seria impossvel. Tem uma citao que

    sempre fazemos, sobre a idia de um Re:combo

    em cada esquina do mundo. (...) a inteno de

    trabalhar coletivamente a produo artstica e a

    identidade do Re:combo"14.

    A discusso sobre propriedade intelectual, trazida pelo projeto Re:combo, e o

    uso de redes telemticas para produo e difuso de projetos culturais, reafirmam que

    a comunicao mediada por computador provoca ou refora a formao de

    comunidades com cultura identitrias, conforme atesta Lemos:

    "A exploso da comunicao contempornea

    deve-se aos novos media que vo potencializar

    essa pulso gregria, agindo como vetores de

    comunho, de compartilhamento de sentimentos e

    de reliance comunitria. Isso mostra que a

    tendncia comunitria (tribal), o presentesmo e

    o paradigma esttico podem potencializar e ser

    potencializados pelo desenvolvimento

    tecnolgico. Podemos ver nas comunidades do

    ciberespao a aplicabilidade do conceito de

    socialidade, definido por ligaes orgnicas,

    efmeras e simblicas. A Cibercultura, em todas

    as suas expresses , precisamente, esta

    reliance social potencializada pela tecnologia

    micro-eletrnica"15.

    Esses novos media destacam o ciberespao - uma rea etrea de circulao de

    informaes, resultante de circuitos de impulsos eletrnicos onde circulam dados

    digitais. Ao elegermos a cultura da msica eletrnica como tema para discutir os

    14 Entrevista por e-mail (ver anexos). A partir desta pgina, citao/depoimento sem referncias tiveram origem ementrevistas por e-mail, disponibilizadas nos Anexos.

    15 LEMOS, Andr. Ciber-Socialidade-Tecnologia e Vida Social na Cultura Contempornea.http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/txt_and3.htm, em outubro, 2002

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    espaos de fluxos, listas temticas e sites funcionariam como os ns centros de

    importantes funes estratgias e centros de comunicao.

    Se espao o suporte material de prticas sociais de tempo compartilhado

    (CASTELLS:1999), o ciberespao estabelece-se tambm como localidade para as

    simultaneidades, para as prticas simultneas. Essas prticas sociais simultneas, na

    sociedade informacional, do o tom para o afloramento de outros processos e formas

    espaciais. De novo, recorrendo histria da internet, lembramos do impulso, do

    desejo como motor (LVY:1999), que antecede criao da world wide web (novo

    processo, nova forma espacial), que era a necessidade de facilitar a "navegao"

    pelas informaes em rede, atravs de textos, imagens e sons. Um exemplo mais

    particular de como as prticas sociais simultneas incentivam o desenvolvimento denovas formas espaciais e processos a criao do Napster16, associado ao MP317

    formato digital capaz de reduzir o tamanho do arquivo, mantendo a qualidade de

    leitura dos dados.

    Programas de compartilhamento de arquivos, como o Napster e o Soulseek

    so fundamentais para a circulao livre de arquivos de udio, como o MP3. Por

    usarem da tecnologia p2p (peer-to-peer, ponto a ponto, mquina-a-mquina), no

    necessitam sofrer qualquer tipo de censura ou controle de servidores, pois os

    computadores abertos transformam o ciberespao num enorme computador coletivo

    e aplicam a idia defendida pelos hackers iniciais de que "a informao quer ser

    livre". Esses programas intensificam processos de produo cooperativa. Para o dj

    Angelis Sanctus, o MP3 associado ao p2p coloca em xeque o poder das grandes

    corporaes que sempre tiveram controle sobre a circulao da informao, inclusive

    de udio.

    "O underground deve querer a informao livre!

    Defendo o MP3 e a tecnologia p2p pois os

    mesmos so instrumentos a ser usados pelo

    underground nas redes telemticas, e isso s

    possvel devido liberao do 'plo de emisso'

    16 Software para o compartilhamento de dados17 Mp3, ou arquivos MPEG1 Layer III so arquivos de udio compactados. 44 kHz, 16-bits, stereo (qualidade deCD) uma msica de 1 minuto, gasta-se em torno de 11Mb; em MP3, o arquivo reduzido em menos 12 vezes.

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    da informao. Nas redes telemticas, podemos

    ser tambm emissores e deixamos de lado o papel

    passivo de consumidores de informao, imposto

    pelas estruturas tradicionais das mdias fora do

    ciberespao"18.

    O que queremos registrar o fato de o ciberespao, como espao de fluxos

    (CASTELLS), viabilizar no s a difuso de subculturas, a partir da liberao do

    plo emissor da comunicao, como tambm abrir vias para o trabalho coletivo

    distncia e incrementar a formao de comunidades temticas, identitrias -

    implicando num aceleramento das prticas sociais urbanas. A msica eletrnica e sua

    cena no fogem a essas regras19

    .

    18 http://www.rraurl.com/cena/especial.php?rr_especial_id=41519 A conexo entre a cultura da msica eletrnica e os objetos tcnicos tem ligao histrica desde os primeirosexperimentos (como veremos em captulo adiante), implicando em resultados estticos, mas igualmente emresultados de conformao sociolgica.

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    CAPTULO II: Cena, subcultura, undergrounde overground

    De que cultura estamos falando? Onde podemos pr a cultura da msicaeletrnica num possvel mapeamento das manifestaes do contemporneo? Qual sua

    conexo com o mercado, com os aspectos da trade produo/circulao/consumo?

    Os Estudos Culturais desenvolvidos nos anos 80 e 90, com a descoberta da

    subjetividade, abriram efetivamente espao para aplicao desses estudos s

    subculturas e cultura jovem, com destaque para os temas da subjetividade,

    alteridade e diferena, as anlises de recepo e as configuraes identitrias.

    Stewart Hall estabeleceu as bases entre o marxismo e a filosofia da

    linguagem: pensar a cultura significa pensar a linguagem. Discutir linguagem

    significa discutir tambm o signo. Por traz do signo h a discusso inerente sobre o

    processo de construo do sentido: o signo ideolgico. Ele s signo quando

    lido, sob alguma tica. Os Estudos Culturais se voltam aos estudos da recepo: de

    que forma o leitor l o signo, que processo ideolgico h no leitor que o levar a

    interpretar o signo (polissmico)?

    H, a nosso ver, um avano fundamental desses estudos no momento, pois

    retiram da prpria linguagem o poder de bastar em si mesma como expresso fsica

    da comunicao e deslocam tambm para o receptor o domnio de fazer essa

    linguagem existir. No so mais os signos apenas; mas se esses signos so

    reconhecidos e de que forma o so. A interpretao fundamental; mais fundamental

    do que a linguagem ela mesma. As alteridades, diferenas e manifestaes

    identitrias passam a assumir um posto de destaque nos Estudos Culturais, pois a

    partir dessas pontuaes que podemos pensar de uma forma mais concreta a

    recepo, a linguagem, a interpretao dos signos.

    Os Estudos Culturais se tornam mais interdisciplinares e pensam a

    comunicao sob vrios aspectos, inclusive o antropolgico, identificando a

    linguagem (e os estudos de recepo dos signos) com o comportamento de grupos

    identitrios.

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    o caso dos estudos da msica popular. Frith20 cita a pesquisadora Sara

    Cohen e suas pesquisas de etnografia sobre os produtores de "young music"21 como

    um marco para os estudos sobre o comportamento desses jovens, que produziam

    msica pop em Liverpool (UK), durante os anos 80. Para Frith, Cohen e a

    antroploga Ruth Finnegan22 criam as bases tericas para os estudos da cultura

    jovem, envolvendo a comunicao, a antropologia, a sociologia urbana.

    Frith, referenciado em Cohen e Finnegan observa que o envolvimento desses

    jovens e sua arte se firma num corpo substancial de conhecimento e num ativo senso

    de escolha por parte dos msicos e pblico - os quais tm um claro entendimento das

    regras do gnero, das histrias, sem hesitao sobre fazer julgamentos do valor e

    significado musical. Ou seja, existe uma cultura presente na "young music" que tembases internas, prprias, auto-referente, onde qualquer discurso "externo", miditico,

    significaria passar por uma "aprovao" ou no, ser submetido a uma leitura da

    recepo, nesse caso especializada. No caso da cultura da msica eletrnica esse

    aspecto bem visvel. O conhecimento e o ativo senso de escolha est presente nos

    consumidores dessa cultura, envolvendo djs, produtores musicais e pblico. Um

    pblico especializado com capacidade de discernir sobre o que autntico e

    underground do que gerado pela indstria cultural. Hoje esse conhecimento seespecializa cada vez mais e a verticalizao e a gerao de culturas musicais

    eletrnicas mais especficas tem se dado pela consolidao dos gneros

    musicais/estilos (como drum and bass e sua cultura, o house e sua cultura , o techno

    e sua cultura, o trance e sua cultura, o rap e sua cultura ...).

    Coloca-se a um alto valor na "originalidade" e auto-expresso: a msica

    significa a identidade de cada um. Essa caracterstica tambm presente na cultura da

    msica eletrnica: a eleio dessa arte como original aciona a formao de tribos, a

    partir do compartilhamento de idias e do afeto.

    Frith recupera a idia de Finnegan de que a "performance" (a apresentao, o

    show) o ponto vital para os que fazem essa cultura, o principal ritual, onde tanto o

    20 Ler FRITH, Simon. The cultural studies of popular culture IN Cultura Studies. Routledge, NY, 1991.21 O rock e as bandas pop22 Citada tambm por Frith no mesmo artigo

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    pblico como os prprios msicos assumem enorme importncia. a circunstncia

    onde acontece a verdadeira experincia da realizao.

    Na cultura da e-music esse um ponto crucial. Djs, msica e danarinos

    celebram essa cultura, experienciam a realizao nas technoparties e raves:

    comprovam sua identidade, seu afeto, sua originalidade.

    Frith23, em seu artigo "The cultural study of popular music", acrescenta que,

    mesmo no nvel mais "local", tocar msica apenas uma parte de um conjunto de

    tarefas mais elaboradas e relacionamentos que envolve o mundo musical. Para ele:

    "...o mais simples grupo escolar ou banda de garagem torna-se uma 'banda' por

    desenvolver uma rede de suporte de promoters, divulgadores, motoristas,carregadores e fs e seguidores dedicados". Em torno das bandas, monta-se uma

    estrutura organizacional onde pessoas assumem tarefas e desenvolvem habilidades

    especficas. Alm da noo de comunidade, comea a se estabelecer a a idia de

    cena, de super-produo de uma comunidade.

    Isso nos permite pensar que fazer msica, para esses jovens, uma expresso

    de sociabilidade e socialidade24. Isso inclui novas formas de comunicao onde os

    signos passam a ser mais comuns (e internos), produzidos e interpretados para uma

    audincia com carter identitrio. Por um lado, os egos individuais e as "diferenas

    musicais" presentes numa banda (ncleo de msica eletrnico) fazem com que os

    msicos (djs e promoters) entendam que o envolvimento pessoal depende da

    habilidade de fazer as coisas juntas. A conexo a msica, enquanto "trabalho" ou

    diverso que exige "trabalho" coletivo. Por outro lado, est implcita nessas prticas

    uma cultura que os coloca como espelho de si mesmos. A msica articula a

    comunidade, juntado pessoas para uma experincia (com)partilhada, estabelecendovnculos efetivos e afetivos. O afeto conecta a tribo. No campo da cultura da msica

    eletrnica no ciberespao, podemos pensar na noo de cibersocialidade, que para

    Lemos uma juno da noo de Maffesoli associada s tecnologias do ciberespao,

    numa relao dialgica.

    23 Ler o artigo "The cultural study of popular music", in Cultura Studies. Routledge. Londres-New York (1991).24 Maffesoli entebnde a socialidade como um conjunto de prticas do cotidiano que ausentes de um controle sociale que se baseiam em idias afins em busca do aqui agora e que forma tribos em torno dessas idias.

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    "(...) a socialidade contempornea vai investir nas

    novas tecnologias. Uma imbricao entre a socialidade

    (a partir da sociologia de M. Maffesoli) e a tcnica

    contempornea (transformada em instrumento

    convivial); a est o que parece caracterizar a ciber-

    socialidade"25.

    Frith, em sua concluso, faz um retorno a Gramisch ao pensar os promoters,

    divulgadores, fs e seguidores como intelectuais "populares" (ou orgnicos), que

    reforam e geram um processo "contra-hegemnico" de cultura, informao,

    linguagem, comunicao, atravs da msica - a "young music", ou melhor, da cena

    da msica.

    "Cena" (scene) o que h em torno de um centro (a msica), exatamente pelo

    carter amplificador da prpria expresso artstica (msica), envolvendo outros

    nveis de trabalho e informao: um "mundo" alm da msica, ela mesma.

    Straw (1991) afirma que o senso articulado dentro de uma comunidade

    musical normalmente depende de um link entre dois termos: a prtica musical

    contempornea, de um lado, e a herana musical. Um projeto esttico, cultural, quase

    sempre sem reivindicao, mas consistente na sua informao especfica, na sua

    subcultura, no seu capital subcultural.

    Se a cena se daria a partir desse linkda prtica musical contempornea e da

    herana musical, isso implica em uma corrente cultural que tem referncias

    anteriores mas que se adequa e assimila novas mudanas. Cena ento definida por

    Straw (1991) como "... aquele espao cultural em que uma escala de prticasmusicais coexistem, interagindo cada uma com outra dentro de uma variedade de

    processo do diferenciao, e de acordo com trajetrias de mudana e auto-

    fertilizao" 26 (traduo nossa)

    Preferimos a noo de cena, para discutir a cultura da msica eletrnica, e no

    de "movimento", pois esse ltimo implicaria num projeto poltico, com hierarquias

    25 Lemos, A Ciber-Socialidade -Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporneahttp://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/txt_and3.htm, em maro de 200326 "..is that cultural space in which a range of musical practises coexist, interacting with each other within a varietyof process of differentiation, and according to widely varying trajectories of change and cross-fertilization"

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    pr-estabelecidas e reivindicaes, estratgias e tticas. Na cultura da e-music,

    produzida por uma prtica hedonista, no h reivindicaes, h manifestaes em

    torno da arte (a msica) sem carter estratgico nem ttico, sem objetivos a serem

    alcanados.

    O punk rock quando surgiu, fazia uma ruptura com o prprio rock - trazia

    uma nova esttica sonora, bem como novas formas de comportamento. O rock,

    anterior ao punk, caminhava sedimentado por uma indstria de entretenimento

    enorme, envolvendo grandes aparatos de luz e som potente para multides:

    espetacularizao. O punk rock retoma o conceito de garage band, com pouca

    tecnologia, poucos acordes e poesia inflamada. Nos anos 70 essa subcultura se torna

    mais visvel, invade espaos pblicos, sai dos guetos, aparece nas mdias. Ao chegar mdia, e sem perder seu carter esttico, sua linguagem inicial, sai do underground

    e se torna "overground" (Thorton). A visibilidade a cena - "a cena reggae", "a cena

    rock", "a cena eletrnica". Cena , enfim, uma comunidade e sua cultura visvel. S

    h cena quando h visibilidade, quando a trade produo/circulao/consumo se

    consolida. A cena caracterizada pela temporalidade e pela localidade. Esses dois

    elementos so fundamentais para a construo da comunidade e para a construo

    do sentimento de pertencimento. A temporalidade a rotina no acionamento datrade produo/circulao/consumo e a localidade o ponto fsico (mesmo virtual,

    em caso de listas) para essa rotina acontecer.

    A cena a existncia de um grupo que elege um local para que suas

    manifestaes aconteam com freqncia. Cena a efervescncia cultural contnua e

    localizada de uma comunidade.

    O tringulo que alimenta a cena - a produo, a circulao e o consumo ofundamento para a profuso de idias e produtos a serem consumidos. A produo se

    refere aos produtos materiais (cd, livros, vinis, roupas/moda) e de bens simblicos

    (idias, arte). Ao pensarmos em circulao, elegemos os caminhos por onde essa

    cultura/arte tenta encontrar seus pblicos: mdias alternativas (sites, listas, fanzines,

    flyers, pager, telefonia mvel), as lojas, os bares, as festas. Para existir o consumo

    (de bens simblicos e materiais) preciso que exista uma comunidade. Produo sem

    circulao, no forma comunidade; comunidade no se consolida sem produo

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    contnua. Produo, Circulao e Consumo andam juntos na formao da cena. A

    cena seria, ento, a superproduo de uma comunidade.

    Apesar do surgimento dos djs acontecer nos anos 50, junto aos fs de jazz

    (abordaremos essa questo em seguida), a cena liga msica eletrnica iniciada

    com as festas em clubes gays e negros, com a house music, em 1985/86, em Chicago,

    nos EUA. E se formos buscar as origens da house, ela se baseia na chamada Era

    disco, nos anos 70 ainda, mas j associava sons balricos (qualquer estilo danante)

    com destaque para o soul, disco, funk e R&B com as batidas eletrnicas de drum

    machine (as atuais groove boxes). Foi o dj Frankie Knuckles quem iniciou as bases

    para essa nova msica, no clube gay e negro Warehouse, que terminou dando nome

    ao estilo (the house's music, a msica da house).

    interessante registrar que, se a origem da cena eletrnica gay e negra e se

    baseava em clubes noturnos e surgiu em Chicago (EUA), foi tambm nesta mesma

    cidade que, na famosa noite de 12 de julho de 1979, num protesto homofbico e

    racista contra a Disco, liderado pelo locutor Steve Dahl, o grupo Disco Demolition

    convoca pessoas a, conjuntamente, destruir vinis, decretando a "morte da Disco"27.

    Passados 6 anos deste episdio, a mesma cidade proclamaria uma nova msica, em

    clubes gays e negros, e que se tornaria referncia universal: a house music. Nesse

    mesmo perodo, em Detroit (EUA) as cabeas pensantes do techno (Juan Atkins,

    Derrick May e Kevin Saunderson) produziam tambm sua msica experimental e

    sinttica. Entre o techno de Detroit e a house de Chicago, a diferena eram os clubes,

    onde os djs, em Chicago, mantinham o clima sado da disco, associando msica e

    comportamento a cena, ela mesma.

    No final dos anos 80, incio dos 90, uma outra cena chama a ateno domundo. E tem como base a Inglaterra. So as festas de "acid house", caracterizada

    pela presena de djs e de house music, mas acontecendo em ambientes abertos em

    campos ou galpes abandonados na periferia de Londres, sendo chamada de "raves"

    (nome dado pela imprensa inglesa). Ao som da msica hipntica, as drogas como o

    Ecstasy (ou MDMA, XTC, E., X, Adam) e o cido (LSD) tambm estavam

    presentes. Como idias principais, os ravers acredita(va)m no dogma Plur (peace,

    27 STERLING, Scott. Can You Fell it?. Revista URB, pgina 103, nov/dec/2002.

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    love, unity and respect- paz, amor, unidade e respeito). A msica, "executada" em

    pick ups (pratos toca-discos de vinil) por dee jays, envolvia ravers em danas por

    horas a fio, numa grande celebrao tribal de alegria e xtase.

    Acontecendo fora das mdias, essa cena sempre usou suportes de divulgao

    independentes das mdias comerciais. Flyers, telefones mveis, sites, chats, listas de

    discusso na internet eram - e so - os principais recursos de divulgao dos eventos

    e idias em torno da msica eletrnica, sempre baseados na alta tecnologia. A cena,

    portanto, marcada pelos conceitos do underground (msica experimental sem

    carter comercial, formas alternativas de informao...) at que foi se tornando - as

    raves, as technoparties - uma possibilidade de lucro, um negcio, um

    empreendimento. Promoters mais comerciais entram na cena e levam-na para omainstream, para o mercado: as raves passam a ser produto de consumo e ganham

    espao em mdias tradicionais.

    Um dos artigos mais interessantes sobre a cena dita rave e a mdia o de

    Sarah Thornton28 (1994). Ela se volta ao surgimento da cena na Inglaterra (em fins

    dos anos 80 e incio dos 90) e retoma essa discusso nos Estudos Culturais,

    discutindo o que ela chama de "pnico moral".

    Thornton abre seu artigo criticando os estudos anteriores que sempre

    procuram recuperar a idia de que "cultura" o que est fora das mdias. Ela acha

    que a prpria academia refora esse equvoco quando utiliza termos que trazem um

    discurso anti-mdia, com chaves "comercialXhegemonia", "produtor

    vendvelXincorporado", "undergroundXsubcultura". Thornton quer, em seu artigo,

    mostrar que sempre houve uma vinculao direta entre a mdia tradicional e as

    culturas, inclusive as populares. E que uma no sobrevive sem a outra; uma necessitada outra para se fortalecer.

    A cena "acid house" (primeiro nome das festas raves na Inglaterra, por tocar

    principalmente acid house music e ter a presena de drogas como o LSD sempre

    sofreu uma cobertura sensacionalista dos tradicionais tablides ingleses, que

    destacavam o uso de drogas. Ao atacar a cena acid house, esses tablides publicizam

    28 Ler o artigo "Moral panic, the media and british rave culture", in Microphone fiends. Routledge. Londres-NewYork (1994).

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    cada vez mais a cena e terminam por fortalec-la. As festas, nessa poca chegam a

    ter um pblico de 8 mil a 15 mil pessoas e aconteciam nos campos da Inglaterra.

    Passaram a ser uma preocupao oficial a tal ponto que o governo britnico criou

    legislao especfica que proibia festas fora da cidade com "msica repetitiva" 29.

    Thornton afirma que, se a mdia fazia discurso sensacionalista e distorcia a

    informao, isso por outro lado criava a necessidade da cena da acid house inventar

    seus instrumentos de comunicao para rebater as informaes, fazendo surgir

    suporte alternativos de mdia, como fanzines, flyers, e fazendo uso de redes de

    computadores. Se a cultura underground tida como ilcita, a mdia (ao invs da

    polcia) quem aprisiona, atravs da interpretao (construo de sentido) para as

    outras camadas sociais. Da a necessidade de instrumentos de respostas. Nesse vai evem de discursos, de construo de sentidos, a prpria cena quem ganha espao,

    quem cresce e o jornalismo sensacionalista vende. Ao desaprovar moralmente as

    acid house parties, os tablides mostram um pnico moral que nada mais que a

    "metfora que descreve uma sociedade moderna cheia de medos sobre suas prprias

    virtudes" (THORTON:1994).

    Para melhor entender essa relao de conflitos entre cultura jovem e mdia, de

    discursos, de construo de sentidos, Thornton pede ao pesquisador que observe: 1.

    de que forma o discurso jovem posiciona a mdia?; 2. como a mdia se

    instrumentaliza diante dessa cultura? Thornton quer alertar que na verdade a

    juventude se ressente mais se os mass media aprovam sua cultura: sua cultura

    rebelde e no deve ser aprovada pela mdia, representante do status quo. Se a

    juventude tiver sua cultura rejeitada, a sim, haveria radicalidade nela. Por outro lado,

    os Estudos Culturais tendem a posicionar, segundo Thornton, a cultura jovem como

    inocente vtima das verses negativas da mdia, quando a mdia trata a cultura jovem

    como qualquer outro produto de mercado, vendvel, enquanto notcia.

    Ela cita o exemplo de como se d o pnico moral. Enquanto a BBC londrina

    afirmava atravs de um dj entrevistado que a cena acid house nada tem a ver com

    29 No Brasil, em maro de 2003, numa medida indita, o governo de Santa Catarina suspendeu a liberao dealvars para a realizao de festas raves em todo o Estado. Segundo informativo do site Terra , "a medida tem porobjetivo frear o grande consumo de drogas sintticas. http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,5580,OI96813-EI306,00.html

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    drogas30, o selo de vinil acid tracks descreve o som como "drug induced",

    "psychedelic". O pnico moral se d sempre na relao entre mdia e cultura jovem,

    mas , significativamente uma estratgia eficaz de marketing. A indstria cultural, ao

    contrrio do que se defendia, gera idias e incita a prpria subcultura. o caso da

    disseminao da droga Ecstasy (MDMA) que terminou amplamente sendo divulgada

    pela prpria mdia, ao ponto da revista Melody Makerproduzir um guia de uso da

    droga.

    Thornton, na discusso sobre cultura jovem e mdia, afirma que os Estudos

    Culturais exageram: vem de forma estereotipada os produtos da indstria cultural e

    exageram a presena da resistncia (subculturas), quando os dois sempre estiveram

    interdependentes historicamente. Os mass media tornam as subculturas politicamenterelevantes.

    A cena no Brasil

    Que marco podemos eleger como o incio da cena brasileira?

    O dj Camilo Rocha acredita que no existe um marco mas vrios momentos

    que foram decisivos para cena brasileira chegar onde est. "Nation (clube de SoPaulo) com Mauro Borges e Renato Lopes; Mau Mau e Renato no Sra. Krawitz, o

    programa de rdio que eu e Renato fazamos na Nova Dance em 1993; a coluna

    Noite Ilustrada, da Erika Palomino, os DJs Julio e Marky na periferia de So Paulo

    etc"31. Para o dj, a principal diferena (entre a cena inicial e a de hoje) o dinheiro e a

    existncia de pessoas que esto nisso por dinheiro. "Isso no existia antes porque

    msica eletrnica no dava dinheiro. Colocado de outra forma, antes havia s o ideal

    30 Drogas so uma longa discusso na cena, ou nas cenas ligadas juventude. Normalmente a mdia faz umaatribuio direta da droga msica. Foi assim com o Rock (cocana, maconha); assim com a e-music (ecstasy,lsd), ser assim com qualquer outra expresso artstica e cultural da juventude no futuro. As drogas estopresentes na cultura jovem e no numa associao direta ao estilo de msica, embora no se possa negar aausncia delas. Um dos pontos altos dessa associao, no Reino Unido, em 1994, leva as autoridades britnicas aaprovarem o famoso "Criminal Justice Act", que proibia festas ao ar livre com msica repetitiva. Uma lei anterior, de1990 (a "1990 Brighton Act) foi instrumento para uma das maiores prises em massa da histria britnica, com oencarceramento de 836 frequentadores de uma rave prximo a Leeds, em um armazm abandonado. 17 foram

    autuados e o dj Rob Tissera permaneceu na priso por 3 meses. Ele oi acusado de incentivar o pblico a continuardanando. Na histria da cultura dance, um outro momento, em Nova York, o dj um fora da lei: o prefeito daquelacidade, Rudolf Giuliani, ordena a aplicao de cartazes com a inscrio "No dancing", em boa parte do bares.31 Entrevista cedida por e-mail (ver anexos)

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    e a vibe; e hoje, embora ainda existam a vibe e o ideal, eles so muitas vezes

    corrompidos pela ganncia"32.

    Gaa Passarelli, jornalista, em matria "As primeiras raves a gente nunca

    lembra", publicada na Dj World (no. 09, pgina 66), informa que, em 1992, a marca

    de cigarros L&M realiza a The Dance Party em So Paulo, Porto Alegre e Curitiba,

    com um pblico de 2 mil pessoas por cidade e apresentao dos estrangeiros Moby e

    Altern 8. O dj Maurcio (hoje Mau Mau) era o nico que acompanhava a turn.

    Segundo ele, essa foi a primeira rave brasileira. Na verdade, s em 1994 aparece a

    primeira festa com caracterstica de rave (festa fora da cidade, ao ar livre, decorao

    psicodlica, malabares) em Atibaia (interior de So Paulo) Naga Naja sob a

    promoo dos ingleses Cullen e Shane Rughes, em visita ao Brasil, que reuniu, cercade 400 pessoas.

    O Brasil entra atrasado na Cena mundial da Cultura da Msica Eletrnica.

    Basicamente em 1994, o Hells Club de So Paulo (na poca com o nome de Velvet

    Underground) marca com maior visibilidade o incio da Cena no Pas (msica

    underground eletrnica, djs, comportamento de tribo, bebidas energticas, drogas,

    etc). Nada impedia que, antes, djs, promoters e jornalistas tivessem acesso msica

    "techno". Camilo Rocha escreve33 que, j em 1988, quando era dj do Club Nation

    junto com o dj Renato Lopes, viu chegar, em meio a alguns vinis importados, a

    coletnea The Sound of Detroit Tecno, provavelmente o primeiro a chegar em So

    Paulo.

    Os djs Mau Mau, Renato Lopes e Julio, de So Paulo, apostam no novo som

    experimental e minimalista e influenciam novas geraes de djs. Mas s em fins de

    95 acontecem as primeiras festas ao ar livre (em praias ou stios) dando incio scaractersticas de uma Cena rave brasileira. Comeam a surgir grupos organizados

    (Avonts, Groove Babylon, Psycodelic Underground) intensificando a produo de

    festas e a conseqente ampliao do pblico.

    Passados alguns anos, o Brasil palco, no s em So Paulo e em outros nos

    grandes centros urbanos, de manifestaes impressionantes em torno da msica

    32 Citaes sem referncias, a partir de agora, foram originadas em entrevistas cedidas por e-mail (ver anexo)33 Ler Como tudo comeou, de Camilo Rocha, no site Rraurl, na urlhttp://www.rraurl.com/html/cena/textos/historia.html, em 21.09.1999.

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    eletrnica. Raves em Cuiab, Macei, sul da Bahia, Salvador, Belo Horizonte,

    Braslia, Rio de Janeiro, Belm, levam milhares de pessoas para pistas e ambientes

    abertos recheados do som minimalista durante horas e horas. Djs nacionais

    percorrem o Pas, djs estrangeiros fazem performance no Brasil. H uma intensa

    produo de flyers, criao de sites, chats e listas de discusso. Webzines e fanzines.

    Formam-se grupos organizados - os coletivos - (Pragatecno e Nois Mess, em

    Macei; SoononmooN, em Salvador; EWMem Belm; BUM, no Rio de Janeiro) para

    responder glocalmente ao chamado dessa cultura rizomtica. O Brasil finalmente

    parece ajustar seu relgio com as horas da Cultura da Msica Eletrnica mundial.

    Em 1998, o Mercado Mundo Mix (MMM) promoveu no Brasil, em So

    Paulo, a primeira parada de rua, com trios eltricos, clubers e ravers, onde djstocavam msica eletrnica: a Parada da Paz, experincia baseada na Love Parade de

    Berlim, voltou a acontecer em 1999, em novembro, e tem outra prevista para o ano

    2000, sempre em So Paulo. Est previsto tambm para o carnaval do ano 2000 em

    Salvador, na Bahia, em plena Praa Castro Alves, uma concentrao tecno com trio

    eltrico, sob a coordenao do Mercado Mundo Mix. O undergroundquer ganhar as

    ruas e massificar seu conceito, arregimentando novos clubbers e ravers para a Cena.

    Um dado que chama a ateno a crescente produo de msica eletrnica

    gerada por djs e msicos brasileiros. Habitants, M4J, Nude, Oil Filter, Ranilson

    Maia, Renato Cohen, Mau Mau, Pink Freud, Friendtronik, Andr Gismonti, Sinister,

    Cyberspace, In Project, Dj Dolores, M-Jop, Jason Bralli, Space Tribal, Currupyo,

    Alpha 5, Dj Dolores, Level 202, Dr, Alm, Bid, Anderson Noise, Loop B , para citar

    alguns. O Habitants, formado apenas por um msico - Renato Malin - vende 8 mil

    cpias de seu cd caseiro Home (quantidade bem razovel se levado em

    considerao o fato deste tipo de produo estar muito mais associada a dj e

    clubbers). H empresas do mainstream que comeam a investir na difuso de

    trabalhos mais experimentais: a Sony Music (que distribuiu o Habitantes e

    Friendtronik) e a Trama Music.

    Empresas do mainstream divulgando a produo independente? Esse cenrio

    tende a crescer e at conviver com a msica de vanguarda, mais experimental. O

    mainstream no vai querer perder esse filo. No foi toa a MTV ampliou a suaprogramao voltada para a msica eletrnica, com o especial AMP, ou revistas de

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    tradio roqueira ou no abrem editorias para a eletrnica. Mas o mercado

    independente tambm garantir os projetos mais undergrounds, tendo em vista a

    autonomia e a centralizao dos processos de produo desta msica.

    Coletneas so lanadas de forma independente e com qualidade profissional,

    tanto em cd quanto em vinil. No Rio de Janeiro a Utter Records j produziu duas

    coletneas (Utter Dance Collection I e II); o BUM34, duas (Underground Beats I e

    II); o Mercado Mundo Mix tambm lanou duas coletneas (uma em cd - Eletronic

    Music Brasil- e uma outra em vinil). O Pragatecno produz a primeira coletnea do

    Norte-Nordeste em cd duplo, editado pela Utter Records. Surgem selos como o

    Bossa Nova Records, Mundo Mix Music, Cri Du Chat, Innnerground, sem contar

    com vrios selos caseiros no registrados - alis, caracterstica muito presente namsica eletrnica.

    O Brasil tambm conta com excelentes djs profissionais, com elevado

    conhecimento tcnico no djing e de excelente background (referncias e

    conhecimento aprofundado da cultura disco e eletrnica). O fato de djs brasileiros

    comearem a sair do Pas como profissionais um elemento ponderador dessa

    qualidade - Marky, produtor e dj de drum and bass, sado da zona leste de So Paulo,

    toca em vrias festas na Europa, sendo residente em clubes de vanguarda de drum

    and bass em Londres.

    Dj ingls Carl Cox (escolhido como o segundo melhor dj do mundo em 1998

    pelos leitores da revista londrina DJ) elege uma faixa do brasileiro Mau Mau (This is

    tropic) para seu set list- mostrando para o mundo que a produo do nosso Pas tem

    qualidade exportao.

    Um outro aspecto interessante a qualidade das festas e noites fixas em So

    Paulo, sem dvida o principal centro de produo da Cultura da Msica Eletrnica

    no Pas. Clubes como A Lca, Manga Rosa, Lov.E apostam na segmentao, no

    amadurecimento da Cena, e trabalham com pblicos mais especficos, onde djs

    fazem residncia (atuam como contratados, fixos) por dia e at por horrios,

    34 O BUM o Brazilian Underground Movement do Rio de Janeiro. Um coletivo com cerca de 20 pessoas entredjs, promoters e monitores que organizam eventos (festas e raves) na Baixada Fluminense. Alm de eventos, elesproduzem cds e vinis e editam o Cena Brasil, um fanzine nacional sobre msica eletrnica e mantm um site na urlhttp://www.iis.com.br/~digital/bum.

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    podendo o clube ter mais de um, dois, trs djs da casa; at mesmo numa nica noite.

    O Clubes paulistanos Lov.E e o A Lca, por exemplo, contam com after-hours, alm

    de sua programao normal noturna e com noites especializadas em estilos.

    A Cena paulistaconta com bares de chill in (bares com msica ambiente, sem

    pista) e tambm de chill out(bares para ps-festas, relaxamento, com msica menos

    acelerada). As raves atuais, alm de uma programao que se extende das 23 horas

    at o meio dia do dia seguinte, conta com vrias atraes, live pas (apresentao ao

    vivo dos msicos) e diferentes pistas para os diferentes pblicos. As programaes

    dos eventos no Pas esto sempre presentes na Internet (listas, chats e sites como o do

    Rraurl, na url www.rraurl.com) que informa, por cidade, a hora e local dos eventos,

    reforando a conexo tribos-msica-ciberespao.

    O ano de 1999 trouxe tona uma face interessante em torno da Cultura da

    Msica Eletrnica, da Cultura Rave, no Brasil. A Facom - Faculdade de

    Comunicao - da Universidade Federal da Bahia, atravs do Grupo de Pesquisa em

    Comunicao e Cultura no Ciberespao promoveu, em abril (20 e 30) o evento Soul

    Cyber sobre msica tecno-eletrnica, com palestras L'Ame Sueur - O Funk e as

    Msicas Populares do Sculo XX, com Olivier Cathus (GREDIN/Paris V, Sorbonne)

    e a mesa redonda A Cultura Tecno-Rave Hoje com as presenas de Hermano Viana

    (antroplogo/RJ), Andr Lemos, (UFBA), Messias Bandeira (UFBA) e Cludio

    Manoel (Pragatecno/AL). O SoulCyber35 culminou com uma technoparty no Teatro

    XVIII, no Pelourinho, em Salvador, reunindo cerca de 300 pessoas.

    Em Macei, no Departamento de Comunicao Social da Universidade

    Federal de Alagoas, o Ncleo de Pesquisas em Comunicao (Nepec) promove, em

    23 de julho, o lanamento do Projeto Multireferencial36 sobre arte, cincia etecnologia e convida os djs Ender, Jesenska e Angelis dos Sanctus que fazem uma

    apresentao no prprio campus com um set de house underground, techno, jungle e

    big beat.

    Em Braslia - onde acontece uma forte Cena de Msica Eletrnica -, no dia 21

    de agosto do mesmo ano, foi realizado o evento Pensoteka, uma festa com

    35 Foram realizadas mais duas edies deste evento, sempre com djs e msica eletrnica.36 O Projeto Multireferencial coordenado pelo professor-doutor Pedro Nunes Filho e est na urlwww.chla.ufal.br/multireferencial

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    importantes djs da cidade (Mazeone, Oblonqui, Linkage, GHopper e Jason, dentre

    outros). O Pensoteka contou com a palestra Techno ou msica como sintoma com o

    filsofo Vladimir Sefatle e a debatedora ngela Lobato (psiquiatra). O evento, que

    contou com computadores conectados na internet e direcionados para sites temticos,

    aconteceu das 16h s 2h da manh em 3 ambientes (Djenios, Vivos e Falantes) e foi

    transmitido pela Internet, atravs de webcam. Msica eletrnica, redes de

    computadores e comportamento chamam a ateno de pesquisadores e so criados

    fruns de reflexo, inclusive envolvendo pessoas diretamente ligadas Cena.

    No ano de 2001, ao cena brasileira referncia fora do Pas. A cena brasileira

    tem pista quente e djs talentosos. Primeiro foi o dj Marky. Surgido da cena leste de

    So Paulo rea perifrica de So Paulo Marky j era consagrado no Brasil por suatcnica, repertrio e forma empolgante de tocar. Na parada da paz, de 2001, o carro

    (trio eltrico) de Marky era o mais concorrido e foi o ltimo a encerrar as suas

    atividades.

    Era quase impossvel que, numa cena globalizada da eletrnica, seu nome no

    fosse reconhecido em outros pases. A Inglaterra sempre foi o foco principal do drum

    and bass, primeiro pelo fato de que o estilo ter surgido l, em meio aos guetos negros

    da cena hip hop hardcore, segundo por manter vrias festas temticas (a Movement

    a principal). E l estava o dj ingls Bryan Gee que viu Marky e fez sua introduo

    em Londres, para o mesmo ter seu espao reconhecido internacionalmente.

    O Bryan Gee o "embaixador dos djs brasileiros de drum and bass" no

    introduzia apenas o dj Marky na cena mundial, mas a prpria cena brasileira de drum

    and bass. O caminho foi aberto e outros djs so reconhecidos, como o dj Patife, com

    seu drum and bass com bastante referncias de nosso samba e bossa nova.

    Uma outra figura ilustre o dj Renato Cohen, de So Paulo, que esse ano teve

    seu nome reconhecido e foi apresentado por nada menos que um cone do techno

    internacional, o dj Carl Cox, respeitado por sua tcnica, estilo, pesquisa e sua longa

    trajetria na cena mundial. Cox no s elogiou a produo de Cohen, em seu projeto

    Level 202, mas incluiu sua msica no top 10, em seu repertrio principal.

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    A festa Zen, que acontece em Vancouver (Canad), de sexta a domingo,

    convidou 3 brasileiros para o evento: os djs Luis Pareto, Marco Morcef e Lcio K37.

    os dois primeiros de house (SP) e o ltimo de drum and bass (RJ). Junto com eles,

    gente como Pure Science e Asad Rizvi. Os brasileiros no conseguiram ir, por

    burocracias de passaporte e visto.

    Se o Brasil j circuito obrigatrio para djs internacionais, djs e produtores

    brasileiros passam a ser mais constantes nos circuitos internacionais. O motivo

    basicamente um: a pista brasileira animada e tem informao. No s em grandes

    eventos como o Skollbeats (que reuniu 47 mil pessoas nu nico dia) ou Parada da Paz

    (que reuniu em sua ltima edio de 2002, em So Paulo, cerca de 17 trios eltricos,

    100 djs e 200 mil pessoas, segundo a Prefeitura de So Paulo). Mas em evento maisconceituais, como o projeto Fucked! de Luis Pareto e Marcos Morcerf, que traz djs e

    produtores do selo (e sound-system) Reverberations, de Londres, que rene - Asad

    Rizvi, Ravi McArthur & Tom Gillieron.

    Em janeiro de 2003, em Salvador, numa comemorao aos 5 anos de

    fundao do Pragatecno, djs e promoters de vrias cidades do Norte e Nordeste se

    renem numa intensa programao de 4 dias, entre mostra de vdeos, palestras,

    debates, shows, festas, lounges e workshops no evento Conex@o que se pretende

    anual. O destaque desse evento o fato de ele ter reunido os integrantes da lista

    PragatecnoBrasil pela primeira vez, comprovando a relao entre ciberespao e cenas

    urbanas.

    Toda essa informao em torno da cena brasileira da msica eletrnica

    circulava atravs do ciberespao a partir da comercializao da internet no Brasil o

    que viabilizou e a criao da lista de discusso Br-raves e do site Rraurl. Tanto alista quanto o site so frutos da liberao do plo emissor da informao propiciado

    nas redes telemticas.

    Se Brasil uma pista emergente no cenrio mundial com uma intensa

    histria desde os anos iniciais da dcada de 90 - esta emergncia a representada no

    ciberespao, referenciando vrias cenas locais, geograficamente distantes dos

    grandes centros urbanos.

    37 Por questes burocrticas de liberao de visto no conseguiram embarcar.

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    Os Estudos Culturais, elegendo temas como cena, subcultura e underground,

    nos ajudam a pensar o desenvolvimento da cena brasileira em sua conexo com a

    cena mundial e nos do subsdios para aplicar essas noes ao ciberespao e sua

    cultura. Cena, subcultura e underground s podem ser pensados em relao s redes

    telemticas a partir da liberao do plo de emisso da informao essa liberao

    que conforma a possibilidade de visibilidade da cena (em sites, listas de discusso

    etc) e refora a idia de msica e tecnologia.

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    CAPITULO III: Msica e tecnologias

    Os primeiros botes

    A referncia comum da deflagrao da msica eletrnica tem sido asexperincias da Eletroacstica nos anos 50, na Alemanha e, na seqncia, os anos 70,

    tambm na Alemanha, com o Kraut Rock do Kraftwerk. Essa msica ganha mais

    visibilidade nos anos 85/86, com a inveno do techno de Detroit e a house de

    Chicago, nos EUA, associando msica e pblico, msica e cena.

    No entanto, se fomos buscar historicamente as primeiras tentativas de gerao

    de novos instrumentos sonoros para produo de sons sintticos, no acsticos,

    encontramos referncia desde 1860. Objetos tcnicos foram criados desde ento para,

    baseados em fontes eletrnicas, sintetizar sons. Interessante notar que, j nesta data,

    o fsico e matemtico alemo Hermann Ludwig Ferdinand von Helmholtz escrevia

    sobre o tema. Era o histrico ensaio "Sensations of Tone: Psychological Basis for

    Theory of Music"38, onde o autor se apoiava em experincias tcnicas para discutir a

    relao entre tecnologia e som. Helmholtz construiu um controlador eletrnico

    musical, chamado Helmholtz Resonator, para analisar combinaes de tons. Sua

    pesquisa, no entanto, tinha carter meramente cientfico, tendo como referncia a

    Fsica e no a Msica, ou seja, sem finalidades estticas. Tambm a essa poca, o

    italiano Ferruccio Busoni, compositor e pianista, produziu o ensaio "Sketch of a New

    Aesthetic of Music"39 esse sim, discutindo questes de carter esttico sobre as

    "novas" tecnologias para a produo musical.

    Em 1876, o inventor americano Elisha Gray cria o seu "The Musical

    Telegraph". Aqui esto presentes dois elementos associados msica eletrnica.Primeiro, a gerao de sons sintetizados no acsticos; e, segundo, a sua

    ordenao, a ordenao desses sons. Gray descobriu que poderia controlar o som a

    partir de um circuito eletromagntico e gerar uma nota musical diferenciada, alm de

    ter construdo um dispositivo de alto-falante para fazer suas notas audveis, podendo

    ser transmitido atravs de linhas telefnicas eletromagnticas. O objeto tambm

    38 http://www.obsolete.com/120_years39 Mais informaes sobre o ensaio podem ser encontrados em http://www-camil.music.uiuc.edu/Projects/EAM/busoni.html, em janeiro de 2003.

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    chamado de "Harmonic telegraph" - uma pequena caixa com circuitos eletrnicos

    e com teclados (piano).

    Uma das grandes invenes aparece em 1917, na Rssia. Lev Sergeivitch

    Termen cria o Theremin (tambm chamado de Aetherophone - som do ter). O

    Theremin um instrumento musical que usa circuitos eletrnicos e produz tons

    audveis. O incomum deste objeto a forma de manipulao. O Theremin (ainda

    usado por bandas contemporneas como o projeto de trip hop Massive Atack)

    controlado virtualmente pelos movimentos da mo. O msico no toca fisicamente

    no objeto. O Theremin uma caixa com duas "antenas" as antenas captam o

    movimento das mos do msico. O movimento de uma das mos controla o pitch

    (rapidez da execuo da nota) e o movimento da outra mo controla o volume. interessante frisar que, nesta inveno, o carter experimental aparece em 3

    momentos. Na inveno ela mesma; na elaborao de sons sintticos baseados na

    eletrnica; e na forma de produo e controle dos sons. Como o movimento das

    mos que produz o som - ou o movimento do corpo o Theremin abriu espao para

    seu prprio desdobramento, sua prpria reinveno. Aparece em seguida o

    Terpistone, um Theremin adaptado por Leon Termen, para ser usado por danarinos.

    Os movimentos do corpo desses danarinos seriam captados pelas antenas damquina e gerariam a msica. Fica subentendido aqui que uma platia, e o seu

    movimento coletivo dos corpos, poderia produzir msica, uma msica coletiva, a

    partir do Terpistone40.

    Nos anos 30, com a assimilao de novos objetos geradores de msica, o que

    chama ateno nesse perodo o fato de compositores escreverem trabalhos

    especificamente para esses instrumentos. O compositor Paul Hindemith escreve a

    pea musical "Concertina for Trautonium and Orchestra". Ainda na dcada de 30

    (1935) inventado o Magnetophone conhecido como o primeiro gravador de fita

    magntica. Eis tambm uma das grandes invenes. Aqui aparece a primeira

    possibilidade de armazenamento e um novo tipo de manipulao do som. Esse

    equipamento foi reapropriado e resignificado. Sua funo principal era gravar

    (arquivar) sons para posterior audio. Mas seu sistema mecnico possibilitava a

    reverso dos sons, alterao da velocidade de reproduo e at a sobreposio de

    40 http://www.obsolete.com/120_years/machines/theremin/index.html

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    diferentes trechos sonoros. Havia, portanto, a possibilidade da utilizao deste objeto

    tcnico como produtor (e no apenas reprodutor) sonoro, como instrumento musical,

    criador de novas experimentaes, de inovaes estticas. O francs Edgar Varse ao

    utilizar esses recursos, discute a relao entre a mquina e processos criativos. Ele

    mostra que novas mquinas e funes tcnicas dessas no s interferem nos

    processos criativos, mas alteram e propem novas estticas. Isso nos remete aos anos

    80, com o surgimento da TB 30341. Esse instrumento serviria como um msico

    virtual, a ser acompanhado por outros instrumentistas. No deu certo. As linhas

    meldicas produzidas pela TB 303 saam distorcidas e esse objeto ser tornou lixo

    industrial. Um erro de mercado. Um erro da indstria. Um erro? Lixo tecnolgico,

    at que foi reapropriado pelos produtores de msica eletrnica no final dos anos 80,

    incio dos 90. At aquele perodo, tinha-se duas principais vertentes (estilos)

    predominantes de msica eletrnica: a house music de Chicago e o techno de Detroit

    (incluindo o gnero Eletro). Com o uso da TB 303, a house music se reinventa em

    um novo estilo chamado acid house, pela incluso de timbres cidos, agudos e

    distorcidos, sados da TB 303. A acid house foi um momento de extrema importncia

    para a cena inicial da msica eletrnica, principalmente na Inglaterra, onde as festas

    de multides fora da cidade (de 5 a 15 mil pessoas) eram chamada de acid house

    parties (antes de a imprensa sensacionalista inglesa denomin-las de raves).

    A presena da TB 303 na produo musical eletrnica confirma dois aspectos

    a serem destacados:

    1 - As novas tecnologias sonoras determinam o avano esttico da msica

    eletrnica. O surgimento de novos suportes digitais e at mesmo analgicos abrem o

    leque da experimentao e descoberta de novos timbres sonoros e colagens.

    2 - Novos suportes so capazes de propor novas estticas. A TB 303 teve uma

    nova funo a ela conferida (no mais servir como base para um msico

    acompanhar), mas o de ser tornar um instrumento de frente, a partir de sua

    reapropriao por parte do msicos eletrnicos. bom lembrar que, em resposta aos

    41 A indstria de instrumentos musicais eletrnicos produziu a famosa TB 303, uma caixa de sequenciamento delinhas de baixo

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    timbres cidos da acid house, surge a vertente deep house42, com timbre amenos e

    meldicos.

    Podemos fazer aqui uma outra conexo dessas idias em torno da TB 303

    com os toca-discos usados pelos djs. Criadas para "rodar" os discos, esses toca-

    discos so resignificados: passam a ser usados como instrumentos musicais, como

    instrumentos produtores de sons - e no apenar reprodutor. As pick ups e as tcnicas

    que elas propiciam (scratch, back spin, back to back, acelerao ou diminuio do

    pitch43) passam a ser instrumentos percussivos e de efeito, na performance do dj.

    Essa correlao tcnica X esttica est sempre presente na histria da msica.

    Desde o ensaio de Helmholtz a reflexo documentada. O surgimento de um novosuporte sempre coloca em discusso as formas de produo da arte envolvida. A

    msica, a fotografia e o cinema, em suas histrias, so marcados por esse debate.

    H, na histria da msica, momentos de sistematizao de idias interessantes

    e sempre associadas a nova forma de usar ou ao surgimento de tecnologias, dando

    base para no s um novo estilo musical, mas um movimento esttico. Em 1948, em

    Paris, o pesquisador Pierre Schaeffer (1910-1995) sistematiza sua pesquisa sonora,

    por exemplo, e a denomina Musique Concrte44, onde efeitos de gravaes e

    manipulao sonora era a base esttica o processo de uso dos recursos tcnicos em

    destaque.

    Mas as experincias de maior expresso do ponto de vista da sistematizao

    de idias sobre tecnologia e msica acontecem logo em seguida, na Alemanha. Em

    1952, em Koln (Colnia), pesquisadores usam e desenvolvem um novo conceito

    esttico. So jovens compositores, entre os quais Karlheinz Stockhausen e PierreBoulez. So os pensadores da Elektronische Musik ou msica eletrnica pura: sons

    so sintetizados ou gerados utilizando-se aparelhos eletrnicos. Posteriormente, aps

    os avanos desses estudos, surgem mais experimentaes e a Eletroacstica

    42 Ver glossrio (Anexos)43 Scratch a tcnica de usar o vinil, em movimentos rpidos de vai-e-vem, como elemento de percusso. Backspin consiste na tcnica de volta abruptamente o vinil para trs. Pitch um dispositivo para aumentar ou diminuir avelocidade do prato toca-discos, facilitando a colocao de duas msicas de tempo diferentes na mesma bpm(batida por minuto, velocidade da msica) para gerar a fuso das mesmas.

    44 Segundo Paulo Motta, " utilizando gravaes gramofnicas de efeitos diversos. Estes sons eram manipuladospela alterao da velocidade, superposio de timbres em vrios canais do gravador, corte e remontagem de fitamagntica (tendo em vista fixar a durao dos sons), dentre outros procedimentos", emhttp://www.artnet.com.br/~pmotta/5muealea.htm#5.1, set. de 2002.

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    conceituada como a conexo entre timbres eletrnicos puros e timbres acsticos. A

    pea Gesang der Jngling (O Canto dos Adolescentes), de Stockhausen, a principal

    e pioneira referncia dessas experimentaes. O compositor alemo usa sonoridades

    acsticas e naturais (a voz de uma criana) com sonoridades eletrnicas puras

    (sadas de equipamentos eletrnicos).

    Interessante documentar que, enquanto em 1944 se construa o primeiro

    computador (o Eniac), j nos anos 50 aparecem as primeiras tentativas de construo

    de softwares para produo musical. O software Music1-V & GROOVE, criado em

    1957 por Max Mathews, do Bell Laboratories, teve sua segunda verso lanada

    imediatamente e rodava em plataforma IBM 704, escrito em linguagem assembler.

    MUSIC V foi desenvolvido por vrios outros programadores e as verses maisavanadas eram as produzidas por Barry Vercoe (do MIT) e John Chowning e James

    Moorer da Stanford University, que criaram o MUSIC 10 software. Destacamos o

    fato de, a exemplo da criao de novos suportes (hardware) para gerao de som, a

    msica tambm motivou o processo de acelerado da criao de software,

    participando e incrementando o avano da prpria informtica.

    Em 1956 surge o primeiro sintetizador, o "The RCA Synthesiser", ou o RCA,

    ou ainda The RCA MKII synthesiser, criado no Colombia-Princeton Electronic

    Music Center. A inveno dos engenheiros Harry Olsen e Hebert Belar do RCA's

    Princeton Laboratories. A inveno tinha o propsito de se tornar popular para a

    produo musical, o que no aconteceu, mas motivou e inspirou um bom nmero de

    jovens compositores eletrnicos nos anos 50. Fala-se que foi o documento "A

    Mathematical Theory Of Music" (1949) que teria inspirado os engenheiros a criarem

    o RCA. O documento propunha uma mquina para gerar msica baseada num

    sistema de probabilidade rondnica (de reproduo aleatria repetitiva de um trecho

    sonoro).

    A teoria de popularizao por trs do RCA era simples: acoplar trechos de

    msicas j criadas em sistemas de alternncia, baseado em sistemas da matemtica,

    para gerar novas msicas, a partir da escolha do usurio mesmo leigo em teoria

    musical - facilitando os processo de criao, da o carter popular do equipamento.

    Identificamos aqui, primariamente, a idia do sample, da amostra sonora (um recorte

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    de som a ser usado em conjunto com outros recortes), um dos elementos criativos da

    msica eletrnica.

    O RCA trazia os dos conceitos da msica eletrnica: o sample (a amostra

    sonora e sua reutilizao) e o loop (a repetio contnua de um trecho musical).

    Destacamos tambm a possibilidade de, j a, pensarmos a msica, essa intermediada

    por mquinas, como um banco universal de dados sonoros. Dados sonoros dispostos

    manipulao pelas tecnologias do digital, incorporando a perda do domnio total

    sobre a autoria, na medida em que esses dados podem ser reelaborados, manipulados

    infinitamente, diluindo o "original" e centrando a originalidade no modo de fazer, no

    processo de confeco. A autoria estaria no processo e no no produto final, que