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Música e texto: uma metodologia para o estudo da prosódia de línguas mortas (Music and text: a methodology for the study of the prosody of dead languages) Daniel Soares da Costa 1 1 Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCL-UNESP) [email protected] Abstract: This paper aims to show the possibility of an interface between Music and Linguistics in the study of the prosody of dead languages. This methodology is based on the observation of coincidences and no-coincidences of musical prominences of poetic texts with musical notation, and linguistic prominences. There is a great probability of the musical stress (the first beat in the bar) to coincide with the stressed syllable of the words. This fact provides clues for the study of lexical stress of words that belong to languages that do not have speakers anymore, nor oral records. The corpus is composed of ten Cantigas de Santa Maria by Afonso X, which were transcribed for the contemporary musical notation by Anglés (1964). Keywords: Music, Linguistics, Prosody, Cantigas de Santa Maria Resumo: O presente artigo tem por objetivo mostrar a possibilidade de uma conexão entre a música e a lingüística na busca de uma nova metodologia para o estudo da prosódia de línguas mortas. Tal metodologia baseia-se, resumidamente, na observação das proeminências musicais de textos poéticos musicados, na observação das proeminências lingüísticas do texto dos poemas, junto com a observação da estrutura métrica dos mesmos. Parte-se da idéia de que é grande a probabilidade de o tempo forte do compasso musical (o primeiro tempo) coincidir com a sílaba tônica das palavras, o que poderia fornecer pistas para o estudo do acento lexical de palavras que pertencem a línguas que já não possuem falantes, nem registros orais. Para realizar tal intuito, tomamos como corpus dez Cantigas de Santa Maria de Afonso X, nas suas versões transcritas por Anglés (1964) para a notação musical atual. Palavras-chave: Música, Lingüística, Prosódia, Cantigas de Santa Maria. 1. Introdução O presente trabalho tem por objetivo estabelecer uma conexão entre a música e a lingüística na busca de uma nova metodologia para o estudo da prosódia de línguas mortas. Partimos da idéia de que o tempo forte do compasso musical (o primeiro tempo) coincide, na maioria das vezes, com a sílaba tônica das palavras, podendo fornecer pistas para o estudo do acento lexical de palavras que pertencem a línguas que não possuem mais falantes e nem mesmo registros orais. Sendo assim, a metodologia que propomos baseia-se, resumidamente, na observação das proeminências musicais de textos poéticos musicados, na observação das proeminências lingüísticas do texto dos poemas, junto com a observação da estrutura métrica dos mesmos. Para demonstrar a utilização e a relevância de tal metodologia, tomamos como corpus deste trabalho algumas das Cantigas de Santa Maria (CSM, de agora em diante) de Afonso X, mais especificamente as dez primeiras, nas suas versões transcritas por ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 38 (2): 211-221, maio-ago. 2009 211

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Música e texto: uma metodologia para o estudo da prosódia de línguas mortas

(Music and text: a methodology for the study of the prosody of dead languages)

Daniel Soares da Costa1

1Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCL-UNESP)

[email protected]

Abstract: This paper aims to show the possibility of an interface between Music and Linguistics in the study of the prosody of dead languages. This methodology is based on the observation of coincidences and no-coincidences of musical prominences of poetic texts with musical notation, and linguistic prominences. There is a great probability of the musical stress (the first beat in the bar) to coincide with the stressed syllable of the words. This fact provides clues for the study of lexical stress of words that belong to languages that do not have speakers anymore, nor oral records. The corpus is composed of ten Cantigas de Santa Maria by Afonso X, which were transcribed for the contemporary musical notation by Anglés (1964).

Keywords: Music, Linguistics, Prosody, Cantigas de Santa Maria

Resumo: O presente artigo tem por objetivo mostrar a possibilidade de uma conexão entre a música e a lingüística na busca de uma nova metodologia para o estudo da prosódia de línguas mortas. Tal metodologia baseia-se, resumidamente, na observação das proeminências musicais de textos poéticos musicados, na observação das proeminências lingüísticas do texto dos poemas, junto com a observação da estrutura métrica dos mesmos. Parte-se da idéia de que é grande a probabilidade de o tempo forte do compasso musical (o primeiro tempo) coincidir com a sílaba tônica das palavras, o que poderia fornecer pistas para o estudo do acento lexical de palavras que pertencem a línguas que já não possuem falantes, nem registros orais. Para realizar tal intuito, tomamos como corpus dez Cantigas de Santa Maria de Afonso X, nas suas versões transcritas por Anglés (1964) para a notação musical atual.

Palavras-chave: Música, Lingüística, Prosódia, Cantigas de Santa Maria.

1. Introdução O presente trabalho tem por objetivo estabelecer uma conexão entre a música e a

lingüística na busca de uma nova metodologia para o estudo da prosódia de línguas mortas. Partimos da idéia de que o tempo forte do compasso musical (o primeiro tempo) coincide, na maioria das vezes, com a sílaba tônica das palavras, podendo fornecer pistas para o estudo do acento lexical de palavras que pertencem a línguas que não possuem mais falantes e nem mesmo registros orais.

Sendo assim, a metodologia que propomos baseia-se, resumidamente, na observação das proeminências musicais de textos poéticos musicados, na observação das proeminências lingüísticas do texto dos poemas, junto com a observação da estrutura métrica dos mesmos.

Para demonstrar a utilização e a relevância de tal metodologia, tomamos como corpus deste trabalho algumas das Cantigas de Santa Maria (CSM, de agora em diante) de Afonso X, mais especificamente as dez primeiras, nas suas versões transcritas por

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Anglés (1964) para a notação musical atual. O repertório das CSM é composto por 420 cantigas com textos poéticos em galego-português (fins do século XII até meados do século XIV).

2. Metodologia e levantamento de dados Como dissemos antes, este trabalho tem como objetivo principal verificar se o

estudo do ritmo musical das cantigas fornece indícios que podem nos ajudar a caracterizar melhor o ritmo lingüístico do galego-português do texto dessas cantigas.

Massini-Cagliari (1995, 1999) elaborou uma metodologia para o estudo do acento lexical do português arcaico (PA, de agora em diante), utilizando textos poéticos (cantigas trovadorescas, mais especificamente, as cantigas profanas) e localizando as palavras que figuram na posição de rima poética nos versos, já que nessa posição, por meio da observação da estrutura métrica do poema e da contagem das sílabas poéticas, pode-se ter certeza da localização da sílaba em que incide o acento lexical.

Costa (2006), utilizando a mesma metodologia de Massini-Cagliari (1995, 1999), também estudou o acento lexical do português arcaico, porém, utilizou, como corpus para a sua pesquisa, cantigas religiosas, as Cantigas de Santa Maria de Afonso X (1121-1284), o Rei Sábio. A sua intenção era procurar, no corpus de cantigas religiosas, casos de palavras que não puderam ser contemplados pela pesquisa de Massini-Cagliari (1995, 1999) no corpus de cantigas profanas, uma vez que as CSM possuem uma temática mais rica que gera um vocabulário mais extenso.

Com a metodologia proposta neste artigo, pretende-se, também, aumentar o campo de análise para o estudo do acento e do ritmo do PA, pois, levando-se em consideração as proeminências musicais, pode-se localizar os acentos lexicais em outros lugares do verso além da posição de rima poética. Além disso, pode-se buscar pistas para o estabelecimento dos limites de ocorrência do acento secundário em palavras ou delimitar os constituintes prosódicos mais altos.

Essa maior abrangência fornecida pelo ritmo musical também poderá nos ajudar a buscar os parâmetros do ritmo em casos de palavras que não foram encontradas somente com a verificação da estrutura dos poemas e a observação das palavras em posição de rima poética (o caso de proparoxítonos, por exemplo, que não foram encontrados em posição de rima).

A localização dos tempos fortes na pauta musical das cantigas se dá por meio da verificação da posição dos “melismas” (tipo de floreio musical). Essa verificação já foi feita por Anglés (1943 - 1964), que fez uma transcrição das pautas musicais das CSM em notação musical atual, já que a notação musical da época não marcava os compassos e, conseqüentemente, os tempos musicais (veja a figura 1, abaixo, da cantiga de número 10). Dessa forma, o corpus deste artigo é tomado da edição das partituras feita por Anglés (1964) que servirá como base para a nossa investigação sobre o ritmo musical. Além disso, a estrutura do poema e a contagem das sílabas poéticas também serão consideradas na caracterização dos parâmetros rítmicos.

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Figura 1 – Cantiga de Santa Maria nº X – Rosa das rosas... - http://www.pbm.com/~lindahl/cantigas/facsimiles/To/bob010small.gif - acesso em 17/01/2007

A partir da localização dos tempos fortes na pauta musical podemos verificar se eles coincidem com os acentos das palavras ou se exercem alguma influência, fazendo com que o acento mude de posição. Essa constatação pode nos dizer se palavras que

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fogem à regra de atribuição do acento nessas cantigas não o fazem apenas para adaptação ao ritmo melódico, ou se realmente constituem exceções à regra.

O levantamento dos dados é feito por meio de fichas de análise de cada cantiga. A elaboração de cada ficha se dá da seguinte maneira: primeiramente escaneamos a partitura da transcrição feita por Anglés (1964) da cantiga a ser analisada (como na figura 2 abaixo); em seguida, recortamos cada linha dessa partitura1 e distribuímos essas linhas em páginas separadas; depois começamos a distribuir as demais estrofes da cantiga, anexando-as à melodia (ver figura 3 abaixo). Vale lembrar que o refrão é contado apenas uma vez, já que ele se repete ao final de cada estrofe, com a mesma melodia e o mesmo texto. Feito isso, partimos para a marcação e categorização das coincidências entre as proêminências musicais e as sílabas das palavras do texto do poema. O foco é dado às sílabas que aparecem na posição de proeminência musical, isto é, anexadas à primeira nota do compasso, por ser esse o tempo mais forte do compasso.

A categorização das coincidências é feita da seguinte forma: cada sílaba que aparece na posição de proeminência musical recebe uma cor conforme a sua pauta acentual, isto é, quando a prominência no nível musical coincide com uma sílaba tônica no nível lingüístico, a sílaba é marcada com uma determinada cor, quando coincide com uma sílaba pretônica é marcada com uma cor diferente, e assim por diante (ver figura 3 abaixo).

1 Cabe aqui dizer que a pauta musical é colocada apenas no refrão e na primeira estrofe de cada cantiga. Entende-se que essa melodia estabelecida no início servirá para todas as demais estrofes e refrães.

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Figura 2 - Transcrição da CSM 10 (ANGLÉS, 1964, pg. 18)

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nnor de-v'o- me mui- t'a- mar, que de to- do mal o la mui- t'a- mar e ser- vir, ca pu- nna de nos guar- na que te- nno por Se- nnor e de que que- ro se- Vermelho = tônica Azul = monossílabo tônico Verde = monossílabo átono Amarelo = pretônica Rosa = postônica final Marrom = postônica não-final

Figura 3 – Terceira linha da transcrição da CSM 10 (ANGLÉS, 1964, pg. 18)

Depois de mapeadas todas as coincidências entre as proeminências musicais e as sílabas das palavras, partimos para a contagem dessas coincidências, incluindo também as sílabas das palavras que já estão anexadas na própria transcrição da cantiga. Essa contagem nos gera um quadro quantitativo para cada cantiga através do qual podemos observar qual tipo de coincidência é mais recorrente. O ato de colorir as sílabas na posição de proeminência musical ajuda na observação dos acentos dentro do grupo entoacional, permitindo a verificação de fenômenos como o acento secundário, por exemplo.

Os resultados obtidos serão analisados tanto quantitativamente, quanto qualitativamente. Porém, sendo a proposta do presente artigo muito mais o desenvolvimento de uma descrição sincrônica de um momento passado da língua (cf. MATTOS E SILVA, 1989) do que um estudo diacrônico, nem sempre a análise estatística dos dados pode satisfazer completamente. Dentro das perspectivas gerativas, muitas vezes, a presença de um dado que aparece uma única vez no corpus pode ser mais crucial na determinação da estrutura prosódica da língua do que a quantificação dos dados.

Um dos objetivos do nosso trabalho é mostrar que, unindo o texto poético com a estrutura musical das cantigas trovadorescas, podemos criar um instrumento auxiliar para a análise lingüística do acento e do ritmo (lingüísticos) do português arcaico.

Analisamos a transcrição das dez primeiras cantigas. A tabela 1 mostra os dados quantitativos referentes aos tipos de coincidências entre as proeminências musicais e lingüísticas nessas cantigas.

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Tabela 1: Panorama geral da análise das dez primeiras CSM

Total de proeminências 4054 100% Coincidências com tônica 1570 38,72% Coincidências com monossílabo tônico 625 15,41% Coincidências com monossílabo átono 622 15,34% Coincidências com pretônica 502 12,38% Coincidências com postônica final 732 18,05% Coincidências com postônica não-final 3 0,074%

Como pode ser observado na tabela acima, as coincidências com as sílabas tônicas são mais freqüentes do que as demais, apresentando um percentual de quase 40%. Vale destacar também as coincidências com monossílabos tônicos que, se somadas às coincidências com sílabas tônicas, elevam esse percentual a aproximadamente 55%.

3. Análise dos dados Com o mapeamento das coincidências entre as proeminências musicais e lingüísticas que fizemos das dez primeiras CSM, pudemos peceber que a metodologia que propomos pode oferecer muitos benefícios para o estudo a prosódia do PA.

Dentre esses benefícios, ganha destaque a possibilidade de encontrar padrões acentuais de palavras que ainda não foram encontrados no PA por meio das metodologias utilizadas até então, como o padrão proparoxítono, por exemplo.

Encontramos, na análise dessas dez cantigas, a palavra “angeos”, que se repete na forma do singular “angeo”. Essa palavra aparece com a proeminência musical marcando a sílaba “an” sendo que o encontro vocálico em “geos” constitui um hiato. Chegamos a essa conclusão tendo como base a escansão dos versos e a distribuição das palavras na pauta musical, além da constatação de que o encontro vocálico “eo” sempre aparece contituindo hiato, pelo menos nas dez cantigas analisadas. Dessa forma, temos fortes indícios para acreditar que a palavra “angeos”, ou a sua forma no singular “angeo”, é uma palavra proparoxítona do PA (figura 4, abaixo). Além da palavra “angeos”, encontramos também a palavra “Espirito” em que a proeminência musical marca a sílaba “pi”, caracterizando essa palavra como proparoxítona também. Outras palavras encontradas, seguindo o padrão proparoxítono, foram as palavras “Siagrio” (nome próprio), com tônica no “a” e hiato no encontro vocálico em “grio”; outro nome próprio, “Theophilo”, que aparece em várias partes da CSM 3, com o acento em “o” caracterizando o padrão proparoxítono (figura 5, abaixo); e a palavra “ostias” com acento na sílaba “os” e hiato no encontro vocálico de “tias”, também proparoxítona.

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da: do que o mun- d’á de sal- var fi- cas o- ra pre- da Je- su- Cris t',e foy- o dey- tar, co- mo mo- ller men- da a- os tres Reis en Ul- tra mar ou- v'as- tre- la mos- da do an- ge- o, que lle fa- lar foy e dis- se: “Coy- da foi, vi- ron an- ge- os an- dar on- tr'a gen- t'as- sũ- da foy a com- pa- nna que jun- tar fez Deus, e ens- si- da con el no ce- o, par a par, e Re- ỹ- a cha-

Figura 4 – Quarta linha da transcrição da CSM 1 (ANGLÉS, 1964, pg. 18)

fez per- don a- ver a The- o- phi- lo, un o- phi- lo as- si fez a- ques- ta tra- y- do dos o- llos seus mui- to, foy per- don pe- phi- lo des- sa vez cho- rou tan- t'e non fez

Figura 5 – Quarta linha da transcrição da CSM 3 (ANGLÉS, 1964, pg. 18)

Uma outra possiblidade de estudo que a metodologia oferece reside na observação da ocorrência de acentos secundários. Esses casos aparecem quando a palavra abrange mais de um compasso musical tendo, então, duas marcações de proeminência musical. É o que acontece na palavra “aficada”, por exemplo, em que as proeminências musicais marcam as sílabas “a” e “ca”, sendo o “ca” a sílaba tônica e o “a” aparecendo como a segunda sílaba mais forte da palavra, o que pode nos indicar a ocorrência de um acento secundário aí. O mesmo acontece com a palavra “corõada”, “Madalena”, “entornada”, “enlumeada” com tônica no “a” da penúltima sílada e acento secundário na sílaba “lu”, entre outras palavras (figura 6, abaixo).

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sa- u- da- da de Ga- bri- el, u lle cha- mar foy: gou can- ssa- da a Be- le- em e foy pou- sar no os can- ta- da lo- or a Deus fo ron can- tar e pois con- ta- da a Ma- da- le- na: co- m'es- tar vyu ç'a- fi- ca- da que ou- v'e- la, u vyu al- çar a foy che- ga- da a gra- ça que Deus en- vi- ar lle co- rõ- a- da, quan- do seu Fi- llo a le- var quis,

Figura 6 – Segunda linha da transcrição da CSM 1 (ANGLÉS, 1964, pg. 18)

Podemos, também, fazer uma discussão a respeito dos monossílabos. Em geral, os monossílabos travados (isto é, aqueles que possuem consoante depois da vogal) e os monossílabos constituídos de ditongo aparecem marcados com uma proeminência no nível musical, sendo que os monossílabos abertos (aqueles constituídos de apenas uma vogal ou que não possuem consoante após a vogal) oscilam, ora aparecendo em posição de proeminência musical, ora não. No entanto, podemos observar alguns monossílabos constituídos de sílaba aberta que, em todas as vezes que apareceram, apareceram em posição de proeminência musical, o que levanta a hipótese de serem tônicos. Temos, nesses casos, a forma verbal “é”, os advérbios “u” e “y”, entre outros casos. Com a análise de uma quantidade maior de cantigas, com certeza, teremos dados suficientes para abrir uma discussão mais aprofundada a respeito dessas palavras.

Outro caso que também pode ser discutido através da metodologia proposta neste trabalho é a distinção entre ditongos e hiatos. No caso da palavra “outra”, por exemplo, a única possibilidade de silabação, levando em consideração a melodia e a métrica dos versos, é a divisão em duas sílabas, “ou” e “tras”, com o acento em “ou”, indicando um ditongo na primeira sílaba (figura 7, abaixo). O mesmo acontece com a palavra “muito”, cuja silabação daria “mui” e “to”, com acento na primeira sílaba.

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E po- ren que- ro co- me- çar co- mo foy E de- mais que- ro- ll'en- men- tar co- mo che- E non ar que- ro o- bri- dar co- m'an- ge- Ou- tra ra- zon que- ro con- tar que ll'ou- ve E ar que- ro- vos de- mos- trar gran le- di- Nen que- ro de di- zer lei- xar de co- mo E, par Deus, non é de ca- lar co- mo foy

Figura 7 – Primeira linha da transcrição da CSM 1 (ANGLÉS, 1964, pg. 18)

Além das possibilidades de estudo apontadas acima, ainda podemos verificar a tonicidade de palavras que são estranhas ao português atual, além de outros fenômenos prosódicos que ainda podem aparecer conforme o mapeamento das demais cantigas.

4. Conclusão Com a metodologia de Massini-Cagliari (1995, 1999), podíamos ter absoluta

certeza, por meio da escansão dos versos, de onde recorria o acento da última palavra do verso, a palavra que figurava em posição de rima poética.

A metodologia que propomos neste artigo, embora não dê conta de todos os casos (porque não há coincidência de 100% dos casos entre o tempo forte do compasso e o acento lexical), ajuda a tirar dúvidas, em caso de incerteza quanto ao posicionamento do acento de palavra, uma vez que a sílaba sobre a qual incide o acento musical tem mais chance de ser acentuada no nível lingüístico, no nível lexical.

No entanto, podemos afirmar que o estudo das proeminências musicais pode ser um instrumento auxiliar no estudo do ritmo de línguas "mortas" (ou seja, daquelas das quais não restaram registros orais) já que o padrão de coincidência das proeminências nos dois níveis é preponderante. Isso quer dizer que, na dúvida quanto ao caráter proeminente ou não de uma sílaba, se ela estiver em uma posição de proeminência musical, é mais provável que seja acentuada do que átona.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANGLÉS, Higinio. La Música de las Cantigas de Santa María del Rey Alfonso el Sabio. – Facsímil, transcripción y estudio critico por Higinio Anglés. Barcelona: Diputación Provincial de Barcelona; Biblioteca Central; Publicaciones de la Sección de Música, 1943-1964.

COSTA, D.S. Estudo do acento lexical no português arcaico por meio das Cantigas de Santa Maria. 2006. Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Araraquara, 2006.

MASSINI-CAGLIARI, G. Do poético ao lingüístico no ritmo dos trovadores: três

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momentos da história do acento. Araraquara: FCL, Laboratório Editorial, UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 1999.

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MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas Trecentistas - elementos para uma gramática do Português Arcaico. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989.

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