14
MOPSOS, O PEQUENO GREGO O PODER ETERNO DAS PALAVRAS MARIA DE FáTIMA SILVA Universidade de Coimbra Abstract: Presenting her text as a story for children, Hélia Correia puts in evidence the spiritual and abstract valours of Greek culture, specially in what concerns logos. It is clear, through her pages, the impression resulting from a direct contact with Greece, she tries to communicate to her reader. What are the motifs of its charm? That kind of indifference memory shows for the marks of centuries: herbs climbing up the walls, stones that never recuperate their places, and curtains that will stay in rags forever. Key-words - children's literature, greek culture, orthoepeia. Com Mopsos, o pequeno grego. O ouro de Delfos, Hélia Correia deu início a uma colecção de aventuras onde o pequeno neto do adivinho Tirésias irá assumir a função de conduzir a curiosidade de um público infantil no desvendar dos tesouros insuspeitados da cultura grega. Mas também para os adultos, o relato de Hélia reserva um fascínio particular. Sob o exterior atraente de um conto para crianças, a Autora procura abordar, de uma forma ágil, motivos que são o sustentáculo de uma cultura. Para dar ao seu objec- tivo uma execução compatível, a associação do pequeno Mopsos, com toda a sua ingenuidade infantil, em viagem em companhia de seu avô Tirésias, o mais conceituado dos adivinhos, a caminho de Delfos, proporciona um par de agentes muito conveniente. Depois de um primeiro quadro da Grécia que se impõe pelas sensações - a da luz, do mar, do canto das cigarras, das amendoeiras, da Humanitas 59 (2007) 317-330

MOPSOS, O PEQUENO GREGO O PODER ETERNO DAS PALAVRAS … · MOPSOS, O PEQUENO GREGO O PODER ETERNO DAS PALAVRAS MARIA DE FáTIMA SILVA Universidade de Coimbra Abstract: Presenting

Embed Size (px)

Citation preview

MOPSOS, O PEQUENO GREGO O PODER ETERNO DAS PALAVRAS

MARIA DE F á T I M A SILVA

Universidade de Coimbra

Abstract: Presenting her text as a story for children, Hélia Correia puts in evidence the spiritual and abstract valours of Greek culture, specially in what concerns logos. It is clear, through her pages, the impression resulting from a direct contact with Greece, she tries to communicate to her reader. What are the motifs of its charm? That kind of indifference memory shows for the marks of centuries: herbs climbing up the walls, stones that never recuperate their places, and curtains that will stay in rags forever.

Key-words - children's literature, greek culture, orthoepeia.

Com Mopsos, o pequeno grego. O ouro de Delfos, Hélia Correia deu início a uma colecção de aventuras onde o pequeno neto do adivinho Tirésias irá assumir a função de conduzir a curiosidade de um público infantil no desvendar dos tesouros insuspeitados da cultura grega. Mas também para os adultos, o relato de Hélia reserva um fascínio particular. Sob o exterior atraente de um conto para crianças, a Autora procura abordar, de uma forma ágil, motivos que são o sustentáculo de uma cultura. Para dar ao seu objec­tivo uma execução compatível, a associação do pequeno Mopsos, com toda a sua ingenuidade infantil, em viagem em companhia de seu avô Tirésias, o mais conceituado dos adivinhos, a caminho de Delfos, proporciona um par de agentes muito conveniente.

Depois de um primeiro quadro da Grécia que se impõe pelas sensações - a da luz, do mar, do canto das cigarras, das amendoeiras, da

Humanitas 59 (2007) 317-330

318 Maria de Fátima Silva

cor vermelha da terra, do calor e d o brilho fulgurante do pôr-do-sol -, Hélia opta pela Grécia do espírito, recriando, dentro desta moldura medi­terrânica, um outro imaginário que se faz do pensamento e do poder da palavra. A Grécia revive nesta aventura não só pela imagem, mas sobre­tudo pela força das palavras; porque, como o velho adivinho sentencia, 'as palavras duram mais do que as coisas e, por vezes, fazem durar as coisas' (ρ. 53)1, A técnica da pergunta e da resposta, tão natural no relacio­namento entre crianças e adultos, é, para o despertar das curiosidades e para a transmissão dos conhecimentos, uma primeira ferramenta essencial.

Muita da universalidade do relato - como das próprias histórias que o inspiram - advém da natureza particular dos seus protagonistas: Tiresias, o paradigma dos adivinhos ('era o maior de todos os que os Gregos conheceram', p. 8) e o seu neto e sucessor numa 'família de adivinhos', a quem desde logo se reconhece também um estatuto particular ('sempre lhe tinham dito que não era um menino vulgar', p. 8). A este pressuposto suce-de-se uma caracterização justificativa daquilo que faz da classe dos adivi­nhos um grupo socialmente marcante: a atemporalidade e o saber. A idade é um traço indissociável da figura do profeta, coberto de cãs como sinal exterior do ascendente que a experiência dá; a ela se associa o saber absoluto e liberto de peias temporais: 'Ele tudo sabia do passado. Ε, o que era mais, também tudo sabia do futuro' (p. 8). Com os visionários, o fluir dos dias parece manter um diálogo de conivência, porque as suas previsões, se incómodas e contestadas por aqueles que por elas se sentem agredidos, acabam sendo confirmadas pelo tempo; por cima da irritação, sempre precária, dos poderosos, o valor do espírito prossegue, incólume. Ε o dom superior do conhecimento que detêm o que os torna dignos de um prestígio máximo, merecedores do respeito e da atenção geral, e por todo esse ascen­dente paradigmas de comportamento os seus ditames e as lendas que os cercam. A tradicional ideia da cegueira que, no corte com a realidade envol­vente que impõe, estimula o espírito a uma visão mais livre e clarividente da realidade subjacente às meras aparências, é um pormenor constante da natureza tradicional do adivinho, que o Tiresias do conto infantil preserva como sua insígnia. Ε para que este pormenor expressivo não escape aos seus leitores desprevenidos, Hélia faz dele, dentro da história, motivo de conge-minação do seu Mopsos, como espelho da curiosidade exterior dos seus

1 Hélia Correia - Henrique Cayatte (2004), Mopsos, o pequeno grego. O ouro • Delfos. Lisboa, Relógio d'Água.

Humanitas 59 (2007) 317-330

Mopsos, O Pequeno Grego 319

leitores (p. 25): 'Por outro lado, perguntava-se a si mesmo, se o avô, sendo adivinho, tudo via, para que insistia na tal história da cegueira?' Que o avô repetisse tanto, quando em conversa, termos de olhar - 'viste', vou ver' (p. 27) - era pormenor que exasperava um pouco a compreensão linear de uma criança. Mas não assim os adultos que cercavam o velho e nele reconheciam aquela assombrosa capacidade de ver com os olhos do espírito e para além da mera superficialidade exterior das coisas; 'tu podes ver o que te apetecer7

(p. 27) é, no paradoxo por que se exprime, o elogio mais merecido pelo adivinho cego. Assim se define o contorno de um motivo tradicional, para que se olha com o respeito que merece um modelo consagrado pela eternidade, que se tem de aceitar sem contestação nem justificações: 'Havia muito tempo que ele cegara. Mopsos já tinha perguntado como, mas ninguém lhe quisera responder' (p. 9).

Na hierarquia social, o adivinho, que é também o aedo ou o arauto de uma cultura, ocupa um lugar cimeiro, apenas batido por reis e senhores poderosos, que, no fausto paradigmático das suas existências, alimentam 'a fama' de que os detentores do espírito e da palavra são o porta-voz. Ao lado das mansões régias que emolduram histórias modelares, os adivinhos habitam casas também imponentes e espaçosas, mas onde a marca do tempo e da memória resiste à caducidade a que a pompa está sujeita: 'Enquanto o rei vivia entre alabastro e mármores, (...) a família dos grandes adivinhos deixava crescer erva pelos muros, jamais repunha um pedregulho no seu sítio, não queria saber se algum dos homens ao seu serviço tinha artes de pedreiro ou se alguma mulher poderia tratar das cortinas rasgadas' (pp. 9-10). Mas é neste reduto marcado pelos anos que vive o espírito: antes de mais do ritual, que une senhores e escravos sob o patrocínio ideal de um Dioniso que conduz a festa, iluminada pelos lampejos estimulantes de um copo de vinho; logo da memória que, nas paredes fumegadas pelos archotes, se desenha em figuras traçadas pelo dedinho ingénuo de um Homem ainda na infância da sua existência. Perante o fascínio destes redutos da memória desfilam os visitantes; frequentes são talvez os que 'fingiam admirar o estilo da casa, porém mostravam pressa de partir7. Mas da mensagem que passavam aos verdadeiros visitantes, os que 'se mostravam curiosos a ponto de projectarem uma viagem a Tebas' - 'não, nem pensem em lá ir. Eles não recebem qualquer um. Ε além do mais, anda-se a tropeçar em porcaria' (p. 10) - se percebia quão distantes estavam da sedução profunda da conquista do passado e da memória, que reside na Grécia.

Humanitas 59 (2007) 317-330

320 Maria de Fátima Silva

Nesta morada do tempo, Hélia retoma a construção da história que se faz, por disposição do fluir incontrolável dos dias, do encontro de culturas, que por uma mescla harmoniosa definem as civilizações. Com Manto, a filha do tebano Tirésias, tinha casado Rhácio, o cretense, e um primeiro núcleo de culturas com eles se consorciara também. O contacto obedecia sobretudo ao efeito da palavra e germinava naquele 'contar' de hábitos e costumes de outras paragens, com que Rhácio não deixava indiferente o auditório: 'Viera de uma ilha muito a sul, de Creta, onde, contava, as pessoas viviam em festa permanente. As mulheres, como os homens, não tapavam o peito e até com­petiam nos jogos acrobáticos' (p. 9). Mas, para além dos quadros com'que retratava a sua terra - e com que Hélia apela à nossa memória para o que são as imagens inevitáveis da cultura cretense, na sua expressão plástica -, Rhácio tinha dela trazido também os sons da cítara que manejava, a pro­núncia que o tornava peculiar, e os costumes, como a saudade do mar e aquele insaciável apetite por polvo. Assim, em casa do Tirésias do conto, se esboça aquilo que se pode chamar Ό mundo helénico' (p. 11), que se situa para além das meras diferenças superficiais, mas assenta numa confor­midade alargada de língua e de cultura. Este núcleo de confluência helénica ganha dimensão através da multidão que acorria a Tebas à procura da profecia ou do conselho sábio do adivinho. Ε alarga-se mais ainda com o projecto que anima avô e neto de uma visita a Delfos, o lugar mais sagrado do mundo, onde ambos iriam repetir uma tradicional peregrinação e finalmente encontrar-se com o universo da Hélade no seu todo.

Da célula restrita, mesmo se carregada de simbolismo, que é a casa de Tirésias, se passa ao núcleo mais alargado de Tebas na hora da despedida dos viajantes. Nela reina ainda Cadmo e a sua memória recorda o mito e a construção em que ele assenta, de fantasias expressas por palavras que soam da distância do tempo2. Hélia não é parca em expressões que possam dar a medida do que seja 'mito': a completa indefinição de autoria - 'ao que se dizia' (p. 18), 'corria em Tebas realmente a história' (p. 19), 'certas línguas disseram' (p. 20) - , associada à repetição que o vai consolidando nos porme­nores - 'ele nunca se fazia rogado em recordá-lo' (ρ. 18)3; depois o espaço temporal que dá aos contos da tradição uma resistência perene: 'os mais

2 Sobre a natureza do mito, indissociável da ideia de 'narrativas tradi­cionais', vide W. Burkert (1986), Mito e Mitologia, trad. port. Coimbra, 4.

3 Esta é a oralidade como forma de transmissão fundamental do mito, também valorizada por Burkert 1986: 9.

Humanitas 59 (2007) 317-330

Mopsos, O Pequeno Grego 321

velhos dos mais velhos lembravam-se' (p, 19); o próprio Cadmo da sua ficção imagina-o a Autora 'muito pequenino. De facto tinha tanta idade que o esqueleto mirrara mais do que o normal para um idoso e o deixara do tamanho de um anão' (p. 19). Não lhe escapa também o carácter paradig­mático da história do senhor de Tebas, que faz dela uma remissão perma­nente para experiências correntes ou a tradução simbólica de uma etapa primordial na vida da humanidade4. Cadmo, muito vaidoso, lembrava que fora ele 'quem dera vida à nova humanidade, a seguir ao dilúvio' (p. 18), como 'se vangloriava de ser avô do belo Dioniso, o deus do vinho, o deus das grandes festas' (p. 19). Ε quando alguém ensaia uma tentativa de desacreditar estas histórias, logo há quem o cale: 'Pois que cidade não desejaria ver a si mesma atribuída lenda assim? Berço do deus Dioniso ... Era um orgulho.' (p. 20). Sobre o carácter colectivo e o efeito mobilizador de uma sociedade que com ele se identifica, o mito concorre também para a nobreza genealógica, cobrindo de lustro os que se arrogam uma ascen­dência gloriosa5. Sob as novas fórmulas repetidas pelo texto português ressoa a velha doxa, na sua acepção de 'história, boato ou tradição', que é a mais hábil e permanente criadora da fama e da glória. Do reconhecimento, por parte dos Gregos, do seu poder não deixa o texto de exprimir o teste­munho: 'mas que os Gregos gostavam de discursos, isso gostavam. Cadmo dizia disparates e eles aplaudiam' (p. 22).

Deixar Tebas significa cruzar o terreno da Esfinge e confrontar-se com um dos mitos eternos da cidade. Afinal da Esfinge todas as crianças tebanas têm a imagem de um papão com que as amas as assustam e lhes dominam a rebeldia. Mopsos pode recordar, nos pormenores, a maneira como também ele, através da imaginação criativa e da expressão convin­cente da sua própria ama, bebeu desde os mais tenros anos uma história

4 Sobre as teorias interpretativas do mito, que valorizam o seu lado simbó­lico ou alegórico, ou o entendem como assente em resíduos de factos históricos distantes, vide Μ. H. Rocha Pereira (2000), 'Enigmas em volta do mito', in A Mitologia Clássica e a sua recepção na Literatura Portuguesa. Braga, 13-26; V. Jabouille, 'Histórias que a memória conta. Os antigos, os modernos e a mitologia clássica', ibidem, 27-47.

5 Já Píndaro {Olímpica 1. 30-32) abona esta mesma noção: Ά arte, que forja aos mortais todas as delícias, dá-lhes honra e faz muita vez que se acredite no incrível' (trad. de M. H. Rocha Pereira). Sobre o poder político do mito como conta-minador de prestígio junto das grandes famílias, cf. ainda W. Burkert 1986: 2.

Humanitas 59 (2007) 317-330

322 Maria de Fátima Silva

que fez dele um verdadeiro tebano, parceiro dentro de uma comunidade cultural (p. 32): 'Concentrou-se na ideia que fazia da Esfinge, igual à de qualquer rapazinho tebano com alguma tendência para ser irrequieto. As amas descreviam aquele monstro-fêmea e pareciam pôr nisso um gosto pessoal, de tal maneira se demoravam nos pormenores e enchiam a boca de saliva, enquanto os olhos, muito perto do rosto das crianças, se entor­tavam de modo assustador'6. Por milagre do relato repetido a cada nova geração, o monstro ganhou forma, como um mixto de mulher e de leão, com o corpo ladeado de asas. Ε falava, o monstro, para desafiar o engenho dos passantes e devorar os incautos, incapazes de encontrarem, para os seus desafios, uma resposta à altura. Assim, com o curso do tempo, a simples palavra esfinge associou a si uma imagem e um comportamento, com toques de fantástico, que, em todas as mentes, despertava uma com­preensão e uma reacção unânimes; 'os que sabiam da sua existência -e eram quase todos os transeuntes gregos - faziam tentativas para passar sem barulho, na sombra' (p. 33). Avisado, o velho Tirésias reconhece, para o mito, a fonte do seu valor prodigioso: 'esse poder não está na Esfinge, mas sim na história que se conta acerca dela. Não existe nada mais pode­roso do que as palavras' (p. 34). Mas para esse elemento que faz parte do imaginário colectivo é chegada a hora do teste, com a passagem pelo sítio da Esfinge dos nossos dois viajantes. O que se via não passava de um rochedo, mas tão negro e tão despido de vegetação, tão estranho na paisa­gem que o rodeava, que a imaginação só podia reagir-lhe pela fantasia. A este desafio de uma natureza que pedia explicação, o engenho humano respondeu com um aition, com uma história que justificasse a estranheza de uma 'falta que intimidava mais do que a mais agressiva das presenças' (p. 35), Perante a realidade despojada do lugar, Mopsos sorriu da sua própria decepção, que lhe esboroava a imagem que se gravara na sua alma de criança. Mas não sem que uma marca, a da tradição, capaz de reagir a todo o racionalismo baseado no sensorial, mesmo assim preservasse no seu íntimo a contaminação da memória (p. 36): 'Mas o facto é que o rapaz deixou sair com um suspiro de alívio o ar dos pulmões quando se viu já longe do rochedo'.

6 Hélia não faz mais do que reconhecer uma verdade também registada por V. Jabouille no seu estudo, já acima citado, a respeito do mito (p. 31): 'Para os antigos, o mito era uma realidade do convívio quotidiano. Meio de preenchimento de ócios e de momentos rituais, era também instrumento de educação e de cultura, de paideia'.

Humanitas 59 (2007) 317-330

Mopsos, O Pequeno Grego 323

Em tempo de viagem o convite às sensações é permanente e as emoções mais fortes inevitáveis. Tal como os grandes heróis viajantes do passado - da épica ou do romance - associam às suas odisseias o terror do perigo e da tempestade, assim também o Tirésias e o pequeno Mopsos do conto infantil revivem experiência equivalente. A sua medida, já se vê, acolhidos à protecção segura de uma gruta. Lá fora, a natureza dá largas à sua habitual irritação nas circunstâncias, ventos em desatino, relâm­pagos potentes, a chuva caindo em drapeados elegantes. Um espectáculo que, para além de fascinar os olhos, se traduz numa legenda de sentido profundo: 'É belo e terrível', condensa Tirésias, numa expressão para que, estranhamente, a língua grega usa uma única palavra (p. 39). O signifi­cativo danos assim recordado, perante o estímulo do oximoro que a natu­reza pode despertar nas almas, misto de prazer e de temor, traz-nos de novo ao convívio do poder semiótico do verbo. Sentidos, espírito e lingua­gem conciliam-se e comungam na captação, na emoção e na expressão do que é grande e extraordinário.

Se os viajantes, por tradição, correm à procura de um tesouro, quanto mais não seja aquele que a sua imaginação alimentou e que os conduz a um objectivo determinado, o par viajante da nossa história faz de Delfos o seu sonho de eleição. Ingénuo e novato nestas andanças, o menino Mopsos constrói o seu projecto de visita sobre uma palavra -Delfos - , que murmura com discrição e respeito no momento de a confrontar com a realidade. Ε que a palavra esconde inevitáveis remis­sões para uma construção virtual que um jogo de referências lhe erigira no espírito: 'De tudo aquilo que ouvira contar a seu respeito, Mopsos preferia a história de Pégaso, o cavalo que lhe habitava os cimos e cujas asas brancas o levavam pelos ares. Seria então possível que ele avistasse Pégaso?' (p. 44). Tal é o poder da palavra que, perante ele, a mais sofis­ticada das realidades fracassa; foi, por isso, com frustração que Mopsos não encontrou, na Delfos real, o cavalo alado da história que ouvira. Em contrapartida, com os olhos fechados pela cegueira, Tirésias acordava-o para a beleza, que se escapava aos seus sentidos bloqueados pela imagi­nação, do que se escondia por trás de uma estranha palavra, as Fedríades. Num esforço bem sucedido, respondendo ao desafio do velho - 'aqueles que querem conhecer, conhecem' (p. 45) -, Mopsos raciocinava sobre o sentido da linguagem e atingia, por si próprio, uma relação até então desconhecida: Ά palavra Fedríade tinha na sua origem a noção de brilhante. De maneira que Mopsos deduziu, pela maneira como cinti-

Humanitas 59 (2007) 317-330

324 Maria de Fátima Silva

lavam, que esse seria o nome das encostas que o obrigavam a pestanejar' (pp. 45-46). Ε se se vira forçado a prescindir de uma miragem de fantás­tico - um belo cavalo alado -, acabava de conquistar, pela generosidade da natureza, o milagre intocado de uma montanha, recoberta de prata e ouro pela arte superior de um deus. Com a mesma alegria interior de qualquer espírito sensível e atento, Mopsos dava voz ao sentir de um iniciando nos mistérios de Delfos (p. 46): 'Ficara boquiaberto, não apenas com o deslumbramento da visão como com o caminho que o levara, pelo raciocínio, a ter uma resposta'.

Mas, dos segredos de Delfos, ainda mal a ponta do véu se levantava e já outros desafios se colocavam a um espírito branco de saber como o da criança; era agora o mistério oculto em duas palavras, Ό tholos de Atena Pronaia', o que de seguida estimulava Mopsos. Se os mistérios da natureza lhe tinham falado aos sentidos e se lhe haviam revelado, com a ajuda dos olhos, a sua realidade profunda, as obscuridades do sagrado, esse elemento insondável que anima um temenos, precisa da colaboração douta de um adivinho para se tornar compreensível. Que através desta nova focagem sobre o concreto se avançava para o distante e profundo patenteia-o o esclarecimento de Tirésias (p. 51): 'Um tholos é um monumento circular cheio de labirintos subterrâneos. O que se passa lá em baixo é conhecido por muito poucos. Tem a ver com a vida e com a morte'. Incapaz de medir por si só as diferenças, o menino pensou que chegaria, pelos seus próprios meios, à revelação. Mas com tal petulância só conseguiu irritar o avô: 'Não sei o que é um tholos, mas o avô não precisa de incomodar-se. Vou acabar por descobrir sozinho' (p. 49). Com este breve momento de fricção entre avô e neto, Hélia põe também à consideração dos seus leitores a questão central para o ser humano do acesso ao conhecimento. Se os sentidos são uma ferramenta natural, que, aliada ao espírito, pode esclarecer o ser humano no plano do exterior e do empírico, a colaboração da experiência ou clarivi­dência maior de um outro ser humano traz à reflexão a inevitável dinâmica do ensino / aprendizagem. Da necessidade que os mestres representam fala o prestígio do velho Tirésias, o detentor de um saber quase perfeito. Mas qual a melhor metodologia de transmissão: a exposição magistral ou a dinâmica da pergunta / resposta? 'Afinal, apesar de reclamar, o avô preci­sava das perguntas que o neto lhe fazia. Sem perguntas, acabava por ter de avançar explicações como se fosse realmente uma tarefa de que alguém o tivesse encarregado. Ε mais parecia um professor daqueles que, não querendo ser acusados de negligência, ensinam tudo aquilo que têm de

Humanitas 59 (2007) 317-330

Mopsos, O Pequeno Grego 325

ensinar, ainda que os alunos os não ouçam. Dizem as frases muito certas, ansiosos por chegarem a um ponto final' (p. 49). Para além de colocar uma questão sem tempo, porque eternamente polémica, Hélia não deixa de sugerir confrontos de que já o mundo grego antigo foi cenário, como os que opuseram, na Atenas clássica, Sócrates e os sofistas. Ε prosseguindo com a imagem do filósofo que publicita, no simples gozo etimológico do 'convívio com o saber', as conquistas do espírito, a Autora rodeia o seu Tirésias, agora possuído da tremenda dignidade de um mestre, de uma assembleia respei­tosa de ouvintes de ocasião que, atraídos pela sua palavra, se sentaram incapazes de resistir ao atractivo da palestra. Como num quadro devolvido por qualquer diálogo de Platão, em que mestre e discípulos partilham a doçura do saber, Ό avô continuava tão comunicativo que as pessoas que tinham parado para o escutar se aproximaram um pouquinho mais. Mopsos pensou que bastaria alguém fazer uma pergunta para ficarem ali até à noite, a ouvir as histórias do adivinho' (pp. 53-54). O momento em que acabavam de participar não se repetiria, era único e pairava no voo irrefreável 'das aladas palavras'. E, no entanto, 'eles levavam a voz do adivinho gravada na memória, como riscos na dura superfície de metal'.

Se, da mesma Delfos, os olhos se erguerem do espaço próximo à procura dos confins do horizonte, acharão, para lá da crista dos montes, o mar. Enquanto o mistério do santuário convida a razão à procura do insondável, a imagem do mar por seu lado sempre tocou os Gregos na sua obsessiva atracção pelo belo. A palavra 'mar', a imaginação libertava-se sob a lembrança estimulante da aventura marítima. Neste terreno de ficção dominam outros mestres, não já os adivinhos ou os filósofos, mas os cantores e os poetas. Depois da cena que acabávamos de repartir com os ouvintes de Tirésias, na sua improvisação perante um auditório colec­tivo e cívico, a ideia de 'poetas-cantores'7 impõe-se pela distância e pela memória e remonta à intimidade arcaica das casas poderosas, onde a regra da hospitalidade reunia, no cenário do banquete, ouvintes fascinados pelas histórias infindáveis de deuses e de heróis: 'Cantavam-nas durante cinco ou mais serões a fio, sem que os donos da casa se atrevessem a negar toda a carne e todo o vinho que o aedo quisesse consumir' (p. 61). Por intervenção de uma lembrança que nos tira do imediato da visita a Delfos para nos transportar ao passado da rotina no solar de Manto e de Rhácio, Hélia

7 Sobre aedos e rapsodos, vide Μ. H. Rocha Pereira (92003), Estudos de História da Cultura Clássica. I Cultura Grega. Lisboa, 147.

Humanitas 59 (2007) 317-330

326 Maria de Fátima Silva

vence a dificuldade do anacronismo e joga, sem peias temporais, com duas realidades na transmissão cultural helénica.

Antes de olhar o mar com os próprios olhos e de o descobrir por si, todo o grego o conhece já pelas palavras inspiradas dos poetas. A simples palavra 'mar7, Mopsos revê a ideia construída, no seu espírito, pelos versos dos aedos. 'Mar' será sempre, para quem ouvir Homero, 'uma extensão roxa e sombria onde os cavalos de Poséidon galopavam. Era muito famosa a descrição das ondas como crinas ...' (p. 62). O mar real era diverso, de um azul divino, ainda mais brilhante do que o brilho do seu concorrente, o céu, agora próximo, como que a acenar com amizade aos que o olham com fascínio. 'Este então é o mar?', perguntou Mopsos. Mas, na sua surpresa que confrontava ficção poética com realidade, persistia um incrível fascínio por uma natureza generosa, que ganhava, mesmo assim, um estranho poder se filtrada pelo génio, divino ele também, de um velho poeta. Verdadeiramente só a palavra, mesmo se infiel e sublimada sobre a coisa que a determina, permite a cada pormenor da vida um sentido pleno.

Para além de ponto de encontro e de encruzilhada do mundo grego, banhado pelo fulgor com que a tradição envolvia Ό umbigo do mundo', a Delfos cosmopolita proporcionou ao nosso pequeno herói uma outra experiência inédita: a do encontro com o outro, o não grego, naqueles barcos egípcios que se viam à distância, no porto de Kirrha. Uma primeira reacção de curiosidade e de alerta moveu a populaça; vindo de fora nada de bom se pode esperar. 'Que querem eles daqui? Só se for guerra' (p. 72). Logo as razões de tal reserva ganhavam consistência (p. 74): 'Não falam grego'. 'Adoram outros deuses'. 'Com certeza não vêm para comerciar'. Ε Hélia que recapitula as divergências ancestrais que fazem a fronteira entre Gregos e Bárbaros8. Só mesmo o adivinho, na sua lucidez superior, ficou imperturbável, ciente do fluxo da história que tende a unir ou a separar, a seu bel prazer, as peças do puzzle que constitui a Humanidade. Com o regresso ao presente imediato de Delfos, o mundo que agora se instala cheira ao momento, vivido em plena época clássica, em que a Hélade se viu, de uma forma como nunca violenta, confrontada com um oriente hostil. Mais do que qualquer outra etapa histórica, o séc. V a. C.

8 Sobre o assunto grego / bárbaro, cf. E. Hall (1989), Inventing the barharian. Greek self-definition through tragedy. Oxford; E. Lévy (1984), 'Naissance du concept de barbare', Ktema 9, 5-14; M. F. Silva (2000), Ό desafio das diferenças étnicas em Heródoto', I, Humanitas 52, 3-26; (2001)11, Humanitas 53, 3-48.

Humanitas 59 (2007) 317-330

Mopsos, O Pequeno Grego 327

imprimiu a este longo processo de relacionamento uma evolução funda­mental. Hélia procura traduzir, numa escala realista de tons, o momento da descoberta do outro. A opinião comum, inspirada pela ignorância, vinga-va-se na especulação contraditória (p. 81): 'Falavam uma língua esquisi­tíssima e pintavam-se muito, ao que diziam'. Por seu lado, 'os responsáveis pelas delegações oficiais', obrigados à prudência e ao bom senso, tranquili­zavam os temores e informavam, atentos a valorizar o que tornava estranhos os filhos de um povo diferente, mas respeitável: 'Elogiavam os Egípcios no que podiam, as suas obras gigantescas, o talento para aprovei­tarem os recursos naturais no meio de um deserto assustador e, sobretudo, os seus saberes de astronomia' (p. 81). Com esta divergência de opinião, Hélia abre espontaneamente espaço para um debate, agora de ordem política. Em torno de uma questão que envolve diplomacia, o povo grego, na sua heterogeneidade, faz uso de uma conquista, que a sociedade humana ainda se não cansou de elogiar, a isegoria, ou igualdade no uso da palavra. Este que é um sustentáculo de um padrão democrático de vida colectiva constitui, para a Grécia, a mera institucionalização de uma tendência intrín­seca à sua natureza (p. 81): 'Cada sessão durava muitas, muitas horas, porque os Gregos não eram gente que se calasse e o maior prazer da sua vida consistia em trocar opiniões. (...) Todos eles exerciam o direito de interpelar, questionar, refutar, duvidar, enfim, de fazer tudo o que pode fazer-se para manter viva e apetitosa a discussão'. Era como se ouvíssemos um eco do testemunho de Aristófanes (Rãs 954-958) lembrando os cidadãos da sua Atenas educados pelos sofistas e por Eurípides, de acordo com os padrões de uma cidade democrática. Nesta réplica, colhida em Delfos pela narrativa infantil que analisamos, é oportuno lembrar a babel que se instalou entre a multidão mobilizada. Os tons da linguagem eram diversos, os gestos e atitudes contrastavam, sem que deixassem de constituir uma massa coesa sob a heterogeneidade à superfície: apenas porque todos se percebiam sem esforço, já que era a língua grega que a todos unia (p. 82). Este ponto de ordem sobre um sentido de pátria comum, que se afirmava desde logo pela língua, é tanto mais oportuno quanto o bárbaro se perfilava ali ao lado, à distância de uns escassos metros. Com a presença de estrangeiros às portas de Delfos, o mundo grego ganha outra identidade pela força do contraste com o outro.

Nesse contacto, vamos ser guiados mais uma vez pela surpresa ingénua de uma criança que afinal simboliza a ignorância natural sujeita ao percurso do conhecimento. Foram, antes de mais, como o são sempre,

Humanitas 59 (2007) 317-330

328 Maria de Fátima Silva

as diferenças exteriores a imporem-se à sua surpresa, aspecto físico e porme­nores de trajo. Mas logo se avantaja o processo que, inevitavelmente, com maior ou menor prontidão reúne homens e sociedades e que Hélia traduz, na sua grandeza, com uma extraordinária simplicidade de palavras (p. 86): 'Naturalmente, receamos o que é estranho. Desta maneira, os músculos e o cérebro ficam alerta para se defenderem. Uns segundos depois, já mais tranquilos, é-nos possível reparar nas semelhanças e, no fim do processo, aceitar as diferenças. Depois disto, começa a história da amizade'.

Ε assim que começa também a história de um afecto infantil, o de Mopsos, o pequeno grego, e de Nor, a menina egípcia, sob o auspício favorável de uma Delfos universalista. Depois do arrepio de um primeiro confronto, ocorre, entre as crianças no esplendor da sua cumplicidade natural, o milagre da língua. Como se, graças a uma força desconhecida, se estivesse assistindo a um processo de tradução simultânea, 'as palavras saíam na sua forma grega pela boca de Mopsos, depois, a meio caminho sobre o ar, os deuses reviravam-nas com as pontas dos dedos, como quem vira um diamante sem defeito só para lhe espreitar o outro lado. Ε elas entravam nos ouvidos do egípcio convertidas na sua própria língua' (p. 88). Estava vencida a distância a separar dois mundos que se olhavam com natural hostilidade, depois de garantida, pelo elo abstracto das palavras, a comunicação como o mais convincente de todos os agentes diplomáticos. Mas esta aproximação, que entre as crianças ocorria por força da natureza, acontecia, entre os adultos, já demasiado radicalizados pela aculturação, de uma forma mais penosa e lenta, limitada ao gesto quando não a uma dolorosa incomunicabilidade. Mas, se vencida essa barreira, o que por trás dela se escondia era uma insuspeitada semelhança e compreensão: se afinal ambos matavam a fome com o mesmo pão e - pasme-se! - ambos provi­nham de uma terra chamada Tebas! Afinal, por detrás da comunicabi­lidade está apenas a physis humana, tão constante e essencialmente inde­pendente da paisagem que a cerca ou dos hábitos que a condicionam. Mas essa célula humana primordial é propriedade exclusiva das crianças, ainda não condicionadas por muralhas com que o nomos separa, em civilizações estanques, a grande aldeia global que é o mundo.

Faltava ainda, a esta marcha pelo controle da arma poderosa da linguagem, um último episódio: aquele em que homens e deuses comunicam e tentam o contacto. Essa é uma experiência de que também Delfos é cenário de eleição. O simples som da voz da Pitonisa, que chama à consulta os peregrinos, na sua agressividade estranha - 'as palavras

Humanitas 59 (2007) 317-330

Mopsos, O Pequeno Grego 329

saíam com dureza, com ritmos e alturas desiguais, arranjadas em grupos que pareciam feitos mais para cuspir que para chamar' (pp. 102-103) -revelou desde logo a incompreensão e a distância a separá-los. A sole­nidade que envolveu a consulta não facilitou uma aproximação maior. Mesmo se ao deus de Delfos era atribuída forma humana e fala, a verdade é que a aproximação da multidão se faz sob um silêncio respei­toso. A resposta soa entretanto do interior recôndito do templo e só pela reacção aflita do consulente se pode adivinhar que não terá sido tranqui­lizante a mensagem do deus. A ambiguidade persiste, neste campo de relações, como sinal de uma incomunicabilidade que retém, cada u m no seu lugar, estes que são os dois agentes detentores do universo, os deuses no ascendente da sua superioridade infinita, mesmo se revestidos de aspecto humano e de voz, e os pobres mortais. Afinal, apesar de mais palpável do que os seus parceiros egípcios, Apolo mantinha, mesmo assim, um distanciamento sob a expressão enigmática dos seus oráculos.

Sob a simplicidade aparente de uma narrativa que se apresenta leve, é todo o universo da cultura grega que se manifesta. Anacrónicos na sua inspiração, os sucessivos quadros da aventura revelam uma sociedade em que a oralidade tem um papel fundamental. A palavra avulta como a ferra­menta essencial no convívio de cada ser humano com tudo o que o cerca; antes de mais com a natureza, que só se torna perceptível quando somada a objectividade das suas formas ao cunho particular que lhe é dado pelas palavras ou pelas histórias que a explicam; mas também com os homens seus iguais, com quem cada criatura humana troca relações de conhe­cimento, de cultura e de socialização. Ε pela estranheza do discurso que o espaço que separa deuses de homens é balizado. Ε este o suporte essencial do mundo de ficção para que Hélia Correia nos convida em companhia do seu pequeno Mopsos e do seu velho avô, Tirésias. O que mais não será do que obrigar-nos a abrir o espírito e imaginação à conquista desse mundo grego, que tem em Delfos um cunho do seu enorme tesouro, eque mantém connosco um interminável diálogo, de descoberta e de saber.

Humanitas 59 (2007) 317-330