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O NAVIOARCANO

O Reino dos Antigos por Robin Hobb

Saga d o Assassino

O aprendiz de assassinoO assassino do rei

A fúria do assassino

Os Mercad ores de Navios-VivosO navio arcano

TraduçãoGabriel Oliva Brum

O S M E R C A D O R E S D E N A V I O S - V I V O S

L I V R O I

R O B I N H O B B

O NAVIOARCANO

Este livro vai paraA Pata do Diabo

O TotemO E.J. Bruce

O Almoço GrátisO Labrador (Escamas! Escamas!)

A (adequadamente nomeada) Baía do MassacreA Fiel (Ursinhos Gummi à vista!)

O Ponto de EntradaO Cabo St. John

O Patriota Americano (e o Capitão Wookie)A Lésbica Belicosa

A Anita J. e a Marcy J.O Tarpão

O CapelimO Golfinho

A Baía das (não muito) Boas NotíciasE até mesmo o Galinho

Mas, sobretudo, para a Senhora da Chuva,onde quer que esteja.

O LITORAL

AMALDIÇOADO

VILAMONTE

Água Ruim

BAÍA DO MERCADOR

BAÍA DO MERCADOR

Ilha da Dispersão

VILAMONTE

Ilha da Velha

ILHAS ESTÉREISGalt

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Samambaia

Ilha Gorda Ilha da

Muralha de MAR BRAVIO

Pântano

Ilha das Algas

Ilha Distante

VILAVELAS

CIDADE DE JAMAILLIA

Península do

Tutano

Ilha Última Ilha do

Espinhaço

Ilha dos Outros

Esca

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e Gran

ito

Entradaarrebentação

CoruchéuVILAMONTE Borda do Adeus

Escudos

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PRÓLOGO

Maulkin se ergueu de repente e sacudiu-se vigorosamente, lançando uma nuvem de partículas que encobriu seu corpo de serpente. Lascas de pele des-prendida pairavam ao seu redor, misturadas com a areia e a lama do fundo, como resquícios de sonho no mundo desperto. Ele moveu o corpo longo e sinuoso num nó preguiçoso, esfregando-se em si mesmo para soltar os últimos restos de pele velha. A lama no chão já estava se assentando, e a serpente olhou em volta, para as dezenas de outros indivíduos da sua espécie que repousavam satisfeitas no sedimento confortável e áspero. Maulkin sacudiu a enorme cabeça, balançando a juba farta, e alongou o corpo largo e musculoso.

— Chegou — anunciou, com sua voz grave e gutural. — Chegou a hora.Do fundo do mar, as demais serpentes o encararam sem sequer piscar

os grandes olhos, alguns verdes, alguns dourados e alguns cor de cobre. Foi Shreever quem se pronunciou em nome de todas, perguntando:

— Por quê? A água daqui é quente, a comida é farta. Há cem anos não sofremos com o inverno. Por que é hora de partir?

Maulkin retorceu o corpo outra vez, preguiçosamente. As escamas recém--expostas pela troca de pele reluziam com um brilho intenso à luz azulada do sol filtrado pela água. Tirar a camada de pele morta, mais cedo, havia lustrado os desenhos de olhos falsos que cobriam seu corpo, imagens que o declaravam como um dos possuidores de visão ancestral. Maulkin conseguia se lembrar de coisas, tinha memórias de um tempo anterior a tudo o que estavam vivendo. Sua percepção não era nítida, muito menos consistente. Como muitos dos que viviam entre as eras, sendo um dos portadores da vida passada e da vida presente de seu povo, era comum a grande serpente soar

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desconcentrada e incoerente. Maulkin sacudiu a juba até seu veneno parali-sante formar uma nuvem pálida em torno da face. Engoliu a própria toxina e a expirou pelas guelras, numa demonstração de seu juramento da verdade.

— Porque a hora é agora! — exclamou, com urgência.De repente, Maulkin disparou para longe, em direção à superfície,

subindo a toda, mais rápido do que as bolhas de ar. Rompeu o teto da Abundância marítima, bem acima, e saltou, adentrando brevemente a grande Carência antes de mergulhar de volta. Nadou ao redor das demais serpentes numa ansiedade muda e frenética.

— Outras maranhas já partiram — comentou Shreever, pensativa. — Não todas, nem mesmo a maioria. Mas o suficiente para, sempre que saímos para cantar na Carência, notarmos que não estão aqui. Talvez seja mesmo a hora.

Sessurea aninhou-se ainda mais na lama e retrucou, com preguiça:— Ou talvez não seja. Acho que o melhor é esperar até a maranha de

Aubren partir. Aubren é... mais estável que Maulkin.A seu lado, Shreever ergueu-se da lama num ímpeto. O brilho escarlate

da nova pele era espantoso. Lascas de sua pele castanha ainda pendiam do corpo. Ela arrancou um pedaço grande com a boca e o engoliu antes de falar.

— Talvez devesse se juntar à maranha de Aubren, já que não confia nas palavras de Maulkin. Já eu seguirei nosso líder para o norte. Antes cedo do que tarde. Melhor partir logo do que ir junto com dezenas de outras maranhas e ter de disputar alimento. — Shreever moveu-se com destreza, desfazendo um nó que dera com o próprio corpo, arrancando os últimos fragmentos de pele velha. Sacudiu a juba e jogou a cabeça para trás. Soltou um guincho agudo que agitou a água. — Eu vou, Maulkin! Eu o sigo! — E subiu para se juntar à dança sinuosa do líder, que ainda nadava em círculos acima de todos.

As outras grandes serpentes ergueram os longos corpos, uma de cada vez, e começaram a se retorcer para soltar a lama pegajosa e a pele velha. Todas, inclusive Sessurea, subiram das profundezas e nadaram em círcu-los logo abaixo do teto da Abundância, juntando-se à dança da maranha. Iriam para o norte, de volta às águas de sua origem, uma origem perdida num tempo tão longínquo que pouquíssimos se lembravam.

PLENO VERÃO

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DE SACERDOTES E PIRATAS

Kennit caminhava ao longo da costa sem dar muita atenção às ondas salgadas que molhavam suas botas e apagavam o rastro de suas pegadas na praia. Ele mantinha o olhar na faixa de algas marinhas, conchas e pedaços de madeira espalhados no ponto onde as ondas chegavam mais longe na areia. A maré estava começando a virar, e as ondas quebravam com cada vez mais antecedência, fazendo carícias sôfregas na terra. Logo a água salgada recuaria o suficiente pela areia negra para deixar à mostra os grandes blocos de pedra que lembravam dentes desgastados e os ema-ranhados de algas depositados no fundo da maré.

Marietta, seu navio de dois mastros, estava ancorado na Angra do Engodo, do outro lado da Ilha dos Outros. Kennit conduzira o navio até lá depois que os ventos matutinos dispersaram o que restou da tempestade e limparam o céu. A maré ainda estava subindo quando ele chegou, e as rochas pontiagudas daquele lugar lendário tinham sido cobertas — mui-to a contragosto — pela espuma esverdeada. O escaler, pequeno barco a remo que servia de comunicação com a terra firme, tinha passado raspando por entre as rochas cobertas de cracas, deixando Kennit e Gankis numa minúscula praia de areia negra. E mesmo aquela estreita faixa de terra tinha desaparecido quando os ventos da tempestade empurraram ainda mais as ondas, fazendo-as cobrir uma área maior do que a típica maré cheia do local. Desfiladeiros de ardósia assomavam acima da praia, ostentando pinheiros quase negros de tão escuros, todos inclinados precariamente em desafio aos ventos constantes. Mesmo para os nervos de aço de Kennit, a sensação de estar ali era como adentrar a boca entreaberta de uma criatura gigante.

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Tinham deixado Opala, o grumete, junto ao escaler. O jovem recebera a missão de proteger o pequeno barco dos infortúnios bizarros que com frequência acometiam embarcações desprotegidas na Angra do Engodo. Para a preocupação do garoto, Kennit ordenara que Gankis o acompa-nhasse na caminhada, deixando sozinhos o grumete e o escaler. Da última vez que Kennit o avistou, o garoto estava empoleirado no barco ancora-do, alternando entre olhar assustado por cima do ombro na direção dos penhascos arborizados e olhar de esguelha, ansioso, para o Marietta, que puxava as âncoras a fim de seguir a correnteza veloz que passava pela entrada da angra.

Era lendário o perigo de visitar aquela ilha. Não bastava o desafio de levar o barco até mesmo ao “melhor” ancoradouro local, nem os estra-nhos acidentes que todos sabiam que acometiam a tripulação e os navios visitantes. Além de tudo de perigoso que a natureza tinha a oferecer, a ilha inteira estava envolta pela magia peculiar dos Outros. Kennit sentira aquela influência pesando sobre si conforme ele e Gankis avançavam pelo trajeto de onde o escaler os deixara até a Praia do Tesouro. Para uma tri-lha tão raramente usada, era um milagre que não houvesse folhas caídas sobre o cascalho escuro ou alguma vegetação crescendo, intrusa, no meio do caminho. As árvores ao redor pingavam os restos da tempestade da noite anterior, gotejando sobre as frondosas samambaias já encharcadas e carregadas de gotas cristalinas. O ar era fresco e fragrante. Flores de tons intensos, sempre a uma altura de pelo menos um homem da trilha princi-pal, desafiavam a escuridão do terreno sombrio da floresta. Seus perfumes pairavam tentadores no ar matutino, como se pedissem aos transeuntes que abandonassem a busca e explorassem aquele mundo vegetal. Os fun-gos laranja que subiam pelos troncos de muitas das árvores tinham uma aparência menos convidativa, e o brilho alarmante de suas cores era um indicativo de sua condição parasitária. Entre as samambaias repousava a teia de uma aranha, toda pontilhada de inúmeras gotículas de água, e seus finos fios atravessavam a trilha de um lado a outro, forçando os que desejassem prosseguir a se agacharem para passar por baixo. A aranha na borda da teia era tão alaranjada quanto os fungos das árvores, e quase tão grande quanto a mão de um bebê. Uma perereca verde jazia embolada

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entre os fios, debatendo-se contra aquela matéria grudenta que a prendia, mas a aranha parecia desinteressada. Gankis suspirou com desalento ao se agachar para evitar os fios daquela seda pegajosa.

A trilha cruzava bem pelo meio do reino dos Outros. Era por ali que se poderia transpor as fronteiras indistintas para o território não humano — isso se a pessoa tivesse coragem de abandonar a trilha bem demarcada destinada aos homens e se embrenhar na floresta à procura daquele povo. As histórias contavam que, nos tempos antigos, os heróis não iam até ali para seguir o caminho já estabelecido: seu objetivo era deixar a trilha, sair em busca dos covis dos Outros e desafiá-los. Ou então ansiavam pela sabedoria da deusa daquele povo estranho, aprisionada numa caverna. Ou ainda exigiam presentes, como mantos de invisibilidade e espadas flame-jantes capazes de atravessar qualquer escudo. Bardos que ousaram seguir por aquele caminho retornaram à terra natal com vozes tão poderosas que poderiam perfurar os ouvidos de qualquer homem, tão arrebatadores e habilidosos que poderiam derreter o coração de qualquer ouvinte. E todos conheciam a antiquíssima história de Kaven Cachopreto, que vivera entre os Outros durante cinquenta anos e retornara achando que apenas um dia havia se passado — ressurgindo com o cabelo (que já fora negro) dourado como ouro e os olhos parecendo brasas vermelhas. Kaven voltara trazendo canções que falavam do futuro em versos obscuros.

Kennit bufou baixinho. Todos conheciam as histórias antigas, mas nenhum outro homem tinha se arriscado a deixar aquele caminho desde que ele se entendia por gente — ou, se tivesse corrido o risco, não revelara a ninguém. Talvez quem quer que tenha tentado não conseguiu voltar para contar história. O pirata tratou de afastar aqueles pensamentos. Não viera à ilha para deixar a trilha: sua intenção era segui-la até o fim. E todos sabiam o que havia no fim.

Kennit seguiu o caminho de cascalho que serpenteava por entre as colinas cobertas de árvores até que o declive sinuoso deu num planalto verdejante, margeando uma praia larga e encurvada. Era a costa oposta daquela ilha diminuta. Rezava a lenda que os navios que ali ancorassem teriam apenas o além como porto seguinte. Kennit não encontrara regis-tros de qualquer navio que tivesse ousado desafiar esse rumor. Se algum

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demonstrou tamanha audácia, a ousadia foi para o inferno junto com a embarcação.

O céu límpido era de um azul intenso; as nuvens foram varridas pela tempestade da noite anterior. A longa curva da praia rochosa era interrom-pida apenas por um córrego de água doce que cortava a ribanceira alta e relvada ao fundo. O córrego avançava pela areia até ser engolido pelo mar. Ao longe, penhascos de ardósia ainda mais altos que os do outro lado da ilha assomavam perante a paisagem, cercando a extremidade oposta da praia em arco. Uma coluna pontiaguda de ardósia se elevava para além da ilha, brotando tortuosa da massa principal de rochas, com uma pequena extensão de areia entre ela e o penhasco de onde se originara. A fenda no penhasco emoldurava um pedaço azul do céu e do mar agitado.

— Noite passada deu muito vento e ressaca, senhor. Dizem que o melhor para explorar a Praia do Tesouro é andar pelas dunas lá de cima... Dizem que, quando tem tempestade, as ondas jogam coisas lá no alto. Coisas frágeis, que quebrariam ao bater nas rochas, mas acabam pousando bem de leve no mato. — Gankis ofegava, seguindo no encalço de Kennit. Tinha de aumentar o passo para acompanhar seu capitão, um homem tão alto. — Um tio meu... quer dizer, ele na verdade era casado com a minha tia... Mas então: ele me disse que ouviu falar de um cara que encontrou uma caixinha de madeira lá em cima. Era preta e brilhan-te e toda cheia de flores pintadas. E dentro tinha uma estatuazinha de vidro bem pequena, era uma mulher com asas de borboleta. Mas o vidro não era transparente, senhor. Ah, não. As cores das asas rodopiavam... É, isso mesmo: rodopiavam. — Gankis interrompeu o relato e inclinou um pouco a cabeça, examinando o capitão. — Quer saber o que o Outro disse que significava?

Kennit parou e cutucou uma ondulação na areia com a ponta da bota. O gesto foi recompensado com um brilho dourado. Ele se abaixou des-preocupadamente e fisgou uma bela corrente de ouro. Quando a puxou, um medalhão foi desenterrado do túmulo de areia. Kennit limpou o objeto na calça de linho fino e mexeu na lingueta com os dedos ágeis. As metades douradas se abriram. Água salgada penetrara pelos cantos, mas o retrato de uma jovem ainda sorria para ele, os olhos ao mesmo tempo repletos de

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alegria e de uma censura tímida. O capitão se limitou a grunhir e enfiou o achado no bolso do colete brocado.

— Capitão, o senhor sabe que não vão deixar que fique com isso, não é? Ninguém leva nada da Praia do Tesouro — observou Gankis, receoso.

— Não vão? — retorquiu Kennit. Imprimiu um ar de divertimento na voz, para Gankis se perguntar se tinha sido um tom de zombaria ou de ameaça.

O subordinado se remexeu discretamente, deixando o rosto fora do alcance do punho do capitão.

— É o que dizem, senhor — respondeu o marujo, hesitante. — Que ninguém leva embora o que encontra aqui na Praia do Tesouro. Com cer-teza o amigo do meu tio não levou. Depois que o Outro viu o que era que ele tinha encontrado e previu o destino dele, guiou o sujeito pela praia até um penhasco rochoso. Deve ter sido aquele ali. — O marinheiro ergueu o braço e apontou para os penhascos de ardósia ao longe. — E nesse penhasco tinha um monte de buraquinhos... aquelas coisas que chamam de...

— Alcovas — informou Kennit, num tom quase sonhador. — Cha-mam de alcovas, Gankis. E você também chamaria, se soubesse falar sua própria língua.

— Sim, senhor. Alcovas. E tinha umas ocupadas, cada uma com um tesouro, mas também tinha umas vazias. E o Outro deixou o homem andar pelo penhasco e olhar todos os tesouros, e lá tinha coisas que ele nunca nem imaginou que pudessem existir de verdade. Xícaras de por-celana muito chiques, parecendo botões de rosa; taças de vinho de ouro com joias nas bordas; brinquedinhos de madeira pintados com umas cores fortes e... ah, capitão, centenas de coisas que nem dá para imaginar, cada uma numa dessas... alcovas. E então ele encontrou uma alcova com a forma e o tamanho certos e colocou a mulher-borboleta lá dentro. E o sujeito contou para o meu tio que nunca sentiu nada tão certo quanto a necessidade de colocar o tesourinho naquele buraco. E deixou a coisa lá, foi embora da ilha e voltou para casa.

Kennit pigarreou. Só com aquele som transmitia mais desprezo e des-dém do que a maioria dos homens conseguia verbalizar numa torrente de impropérios. Gankis baixou os olhos.

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— Olha, senhor, foi ele quem disse, não fui eu, não. — O marinheiro mexeu no cós da calça gasta. Então acrescentou, quase relutante: — O sujeito vive um pouco no mundo dos sonhos. Dá um sétimo de tudo o que ganha para o templo de Sá, e os dois filhos mais velhos fazem igualzinho. Esses caras não pensam como a gente, senhor.

— Isso quando você consegue pensar, Gankis — concluiu o capitão. Ergueu os olhos claros para a distante linha da maré, estreitando-os quan-do o sol da manhã reluziu nas ondas. — Vá até esse seu penhasco cheio de mato, Gankis. Ande um pouco por lá. E me traga o que encontrar.

— Sim, senhor.O pirata mais velho se arrastou para longe, lançando olhares ressenti-

dos por cima do ombro ao jovem capitão. Subiu com agilidade a pequena ribanceira até o planalto tomado de mato que dava para a praia. Tomou uma rota paralela, esquadrinhando o barranco à frente. Avistou algo quase que de imediato. Correu até lá e ergueu um objeto, que cintilou à luz do sol matutino. Segurava-o contra a luz, examinando-o, o rosto marcado tomado de assombro.

— Senhor, senhor, precisa ver o que eu achei!— Posso até ver, se você trouxer aqui como ordenei — retrucou Ken-

nit, irritado.Como um cão repreendido, Gankis voltou para onde estava o capitão.

Havia um brilho jovial em seus olhos castanhos, e ele segurou o tesouro com ambas as mãos quando saltou com destreza do topo daquela ribanceira tão alta quanto um homem. Seus sapatos levantaram areia ao avançarem até o capitão. Kennit franziu a testa por um breve momento, vendo Gankis se apro-ximar. Embora fosse normal receber a bajulação daquele velho marinheiro, o sujeito tinha tão pouca inclinação a dividir saques quanto qualquer outro pirata. Kennit não esperara que Gankis trouxesse de bom grado qualquer coisa que encontrasse na ribanceira. Na verdade, aguardara com certa expec-tativa o momento de despojar o homem de seu achado, ao fim da caminhada. Era um tanto desconcertante ver Gankis correndo em sua direção, o rosto radiante como o de um caipira levando flores para a amada ordenhadora.

Ainda assim, Kennit manteve o costumeiro sorriso sardônico, sem permitir que o semblante revelasse seus pensamentos. Era uma postura

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ensaiada meticulosamente, para insinuar a graciosidade lânguida de um gato em plena caçada. Não bastava que sua altura elevada o possibilitasse olhar os marinheiros de cima. Com a expressão de divertimento no rosto, sugeria a seus subordinados que eles não eram capazes de surpreendê-lo. Queria que a tripulação acreditasse que seu capitão era capaz de lhes antecipar cada movimento, e também os pensamentos. Uma tripulação que acreditava que o capitão era capaz de uma tal façanha tinha menos chances de se amotinar. E, caso isso acontecesse, ninguém ia querer ser o primeiro a agir.

Então Kennit manteve a pose enquanto Gankis veio correndo. Tam-pouco arrancou o tesouro das mãos do marujo assim que ele chegou; primeiro permitiu que o homem estendesse o objeto em sua direção enquanto observava com um sorriso no rosto.

Kennit precisou de todo o seu autocontrole para não agarrar o tesouro no instante em que lhe pôs os olhos. Nunca vira uma bugiganga tão ricamente trabalhada. Era uma bolha de vidro, uma esfera absolutamente perfeita. Na superfície, não havia um risco sequer. O vidro em si era de um azul muito claro, mas o tom não obscurecia a maravilha em seu interior. Três estatuetas diminutas, vestidas de bobos da corte e com os rostos pintados, estavam afixadas a um palco minúsculo e — não entendia bem como — eram conectadas umas às outras. Quando Gankis moveu a bola entre as mãos, as estatuetas executaram uma série de movimentos. Uma deu uma pirueta na ponta dos pés, enquanto a outra rodopiou por cima de uma barra. A terceira balançou a cabeça no ritmo dos movimentos das outras, como se as três estivessem ouvindo uma alegre melodia ressoando dentro da bola.

Kennit permitiu que Gankis fizesse a demonstração duas vezes. Então, com muita graça, mas sem dizer uma palavra, estendeu os dedos longos na direção do marinheiro, que colocou o tesouro na palma de sua mão. O capitão sustentou o sorriso gaiato ao erguer a bola contra a luz do sol e fazer os acrobatas no interior dançarem para ele. A bola não era grande o suficiente para lhe encher a mão.

— Um brinquedo de criança — deduziu, altivo.— Isso se a criança for o príncipe mais rico do mundo — ousou

comentar Gankis. — É frágil demais para dar a uma criança, senhor. Bastaria deixar cair uma vez...

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— Ainda assim, parece que isto aqui resistiu ao ser atirado de uma onda para a outra e depois jogado numa praia coberta de mato e pedras — observou Kennit, com afabilidade calculada.

— É verdade, senhor, mas esta é a Praia do Tesouro. Pelo que ouvi, quase tudo que vem para cá chega inteiro. Faz parte da magia do lugar.

— Magia. — Kennit se permitiu alargar um pouco o sorriso ao enfiar o orbe no bolso enorme de seu casaco índigo. — Então acredita que é a magia que traz bugigangas como esta até a praia?

— Que mais seria, capitão? Se a gente parar para pensar, essa bola devia estar em pedaços, ou no mínimo arranhada. Mas está como se tivesse acabado de sair de uma joalheria.

Kennit balançou a cabeça, triste.— Magia? Não, Gankis, isto é tão mágico quanto as vazantes dos

Baixios Orte ou a Correnteza das Especiarias, que empurra os veleiros em suas viagens para as ilhas e os provoca no caminho de volta. É só um truque do vento, das correntezas e das marés. Nada mais. O mesmo truque que dizem fazer com que qualquer navio que tente ancorar neste lado da ilha acabe encalhado e quebrado antes da próxima maré.

— Sim, senhor — concordou Gankis, obediente, mas sem convicção.Seus olhos traiçoeiros se desviaram para o bolso onde o capitão

guardara a bola de vidro. O sorriso de Kennit aumentou de forma quase imperceptível.

— Muito bem, não perca tempo. Volte lá para cima, ande pela riban-ceira e veja o que mais consegue encontrar.

— Sim, senhor — cedeu Gankis, e, com um último olhar arrependido para o bolso do capitão, deu meia-volta e se dirigiu para a ribanceira.

Kennit enfiou a mão no bolso e acariciou o vidro liso e frio. Retomou a caminhada pela praia. No alto, as gaivotas seguiram seu exemplo, planando lentamente ao vento enquanto vasculhavam as ondas da maré vazante em busca de petiscos. Ele não se apressou, mas não esqueceu que, do outro lado da ilha, seu navio o aguardava em águas traiçoeiras. Caminharia por toda a extensão da praia, como ditava a tradição, mas não pretendia se demorar após ouvir a predição de um dos Outros. Tampouco tinha a

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intenção de deixar para trás qualquer tesouro que encontrasse. Um sorriso genuíno surgiu no canto de sua boca.

Enquanto andava, tirou a mão do bolso e tocou o outro punho, distraí-do. Uma fina tira dupla de couro preto lhe fazia a volta, oculta pelo punho rendado da manga da camisa de seda branca. A tira prendia firmemente um pequeno objeto de madeira. O ornamento era um rosto entalhado, perfurado na fronte e no maxilar inferior para deixar passar a tira de couro, de modo que ficava acomodado contra o punho, exatamente sobre o ponto onde alguém encostaria para sentir sua pulsação. O rosto já fora pintado de preto, mas boa parte da tinta descascara. As feições ainda se destacavam: um minúsculo rosto zombeteiro, entalhado com primor. O semblante era idêntico ao do capitão. A encomenda custara uma fortuna fabulosa. Nem todos que sabiam entalhar madeira-arcana o faziam, mes-mo que tivessem coragem para roubar um pouco do material.

Kennit lembrava-se bem do artesão que fizera o rosto minúsculo. Ficara sentado durante longas horas na oficina do homem, banhado pela suave luz matutina enquanto o artista trabalhava com afinco na madeira dura como ferro para que refletisse suas feições. Não conversaram muito. O artista não podia falar, e tampouco o capitão pirata desejava fazê-lo. O entalhador precisava de silêncio absoluto para se concentrar, pois não trabalhava só na madeira, também se ocupava de um feitiço que selaria o amuleto para proteger quem o usasse de encantamentos. E, de todo o modo, Kennit não tinha nada a dizer. Pagara um adiantamento exorbitante meses antes e aguardara até o artista enviar um mensageiro anunciando que tinha conseguido um pouco da madeira preciosa, protegida com tanto zelo. Kennit ficara ultrajado quando o artista exigira ainda mais dinheiro antes de começar a entalhar e aplicar o feitiço, mas se limitara a abrir um sorrisinho sardônico e colocara moedas, joias e argolas de ouro e prata na balança do artesão, até o homem indicar com a cabeça que chegara ao preço exigido. Tal como tantos procediam nos negócios ilícitos de Vila-monte, o artesão sacrificara a própria língua havia muito, garantindo assim a privacidade da clientela. Embora não estivesse convencido da eficácia da mutilação, Kennit apreciava a intenção do gesto. Tinha sido por isso que, quando terminou o trabalho e amarrou pessoalmente o ornamento

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no punho de Kennit, o artesão só conseguira balançar a cabeça com vigor, muito satisfeito com a própria habilidade, tocando a madeira com a ponta dos dedos ávidos.

Kennit o matou logo em seguida. Era a única coisa sensata a fazer, e ele era famoso por sua sensatez. Pegara de volta o pagamento extra exigido. Não tolerava homens que não honravam o acordo original. Mas nem fora por isso que o matara, e sim para manter a peça em segredo. Se soubessem que o capitão Kennit usava um amuleto para afastar encantamentos... ora, então acreditariam que ele os temia. Não podia deixar que a tripulação acreditasse que ele temia o que quer que fosse. Sua sorte era lendária. Todos os homens que o seguiam acreditavam nela, a maioria mais piamente do que o próprio Kennit. Era por isso que o seguiam. Não podiam sequer suspeitar que ele temesse que algo pudesse ameaçar essa sorte.

Durante o ano que se passou após ter matado o artesão, Kennit se perguntara se o assassinato não afetara o amuleto de alguma forma, já que o feitiço não havia despertado. Quando perguntado sobre o tempo que levaria para o pequeno rosto ganhar vida, o artesão dera de ombros com eloquência, indicando, com muitos floreios de mão, que nem ele, nem ninguém era capaz de prever tal coisa. Kennit aguardara o despertar do amuleto por um ano, buscando a certeza de que o feitiço tinha sido ativa-do. Contudo, chegara um momento em que cansou de esperar. Soubera instintivamente que era hora de visitar a Praia do Tesouro e ver o que o oceano lhe traria. Não ia mais esperar pelo despertar do amuleto; decidiu correr o risco. Mais uma vez teria de confiar na sorte para protegê-lo, como sempre fizera. Afinal de contas, a sorte o protegera no dia mesmo em que matara o artista. O homem se virara inesperadamente, a tempo de vê-lo desembainhar a lâmina. Kennit se convencera de que, se o sujeito tivesse língua, o grito teria sido muito mais alto.

Tirou o artista da cabeça. Não era hora de ficar pensando nele. Não tinha ido até a Praia do Tesouro para recordar o passado, e sim para encontrar tesouros que garantissem o futuro. Fixou o olhar na linha da maré, seguindo-a ao longo da praia. Ignorou as conchas cintilantes, as garras de caranguejos, os emaranhados de algas marinhas e os pedaços de madeira de todos os tamanhos que o mar trazia. Os olhos azul-claros

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procuravam apenas escombros e destroços. Não precisou ir longe para ser recompensado. Encontrou um conjunto de xícaras num pequeno baú danificado. Não achou que fossem obra dos homens, e muito menos algo usado por eles. Eram doze xícaras, todas feitas das extremidades ocas de ossos de aves. Minúsculas imagens azuis haviam sido pintadas nas late-rais, com linhas tão finas que pareciam ter sido traçadas por um único fio de cabelo. As xícaras estavam bastante gastas. As imagens azuis tinham desbotado a ponto de suas formas originais ficarem irreconhecíveis, e as alças entalhadas de ossos tinham se afinado com o uso. Enfiou o pequeno estojo debaixo do braço e seguiu adiante.

Caminhou sob o sol e contra o vento, as belas botas deixando rastros regulares na areia molhada. De vez em quando erguia casualmente o olhar para esquadrinhar a praia. Não deixou as expectativas transparecerem no rosto. Quando baixou os olhos para a areia, descobriu uma diminuta caixa de cedro. A água salgada tinha empenado a madeira, então teve de batê-la com força contra uma rocha próxima para abri-la. Dentro, havia unhas. Eram feitas de madrepérola preciosa. Grampos miúdos serviam para prendê-las em unhas normais, e, na ponta de cada uma, havia uma cavidade minúscula, talvez para armazenar veneno. Eram doze. Kennit as guardou no outro bolso, onde ficaram chacoalhando durante a caminhada.

Não o preocupava o óbvio fato de que o que encontrou não tinha sido feito por (ou para) humanos. Apesar de, mais cedo, ter zombado da crença de Gankis na magia daquela praia, todos sabiam que o litoral rochoso era açoitado por ondas de mais de um oceano. Navios insensatos o suficiente para ancorar ao largo daquela ilha durante uma tempestade tinham grande probabilidade de desaparecer sem deixar uma lasca sequer de destroços. Velhos marinheiros diziam ter sido arrancados daquele mundo e lan-çados nos mares de outro. Kennit não duvidava. Olhou para o céu, que permanecia límpido e azul. O vento estava forte, mas ele acreditava que o tempo não mudaria, de modo que poderia caminhar pela Praia do Tesouro e atravessar a ilha de volta até onde seu navio o aguardava, ancorado na Angra do Engodo. Confiava na própria sorte.

A descoberta seguinte foi a mais perturbadora. Era um saco de couro vermelho e azul, meio enterrado na areia molhada. O couro era resistente,

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pois o saco fora feito para durar. Estava encharcado e manchado pela água salgada, e as cores se misturavam um pouco. Entrara sal nas fivelas de latão que o fechavam, endurecendo as tiras de couro que as atravessavam. Kennit usou a faca para rasgar o saco bem na costura. Dentro havia uma ninhada de gatinhos, todos perfeitamente formados, com garras longas e pelos irides-centes atrás das orelhas. Estavam mortos, todos os seis. Kennit reprimiu o asco e apanhou o menor deles. Revirou o corpo inerte entre as mãos. Tinha pelo azulado, daquele tom azul meio escuro das pervincas, com olhos de pálpebras rosadas. Pequeno. Devia ser o último, a raspa do tacho. Estava frio e ensopado, uma visão de dar nojo. Um brinco de rubi que mais parecia um carrapato gordo adornava uma das orelhinhas molhadas. Kennit queria largá-lo ali mesmo. Ridículo. Tirou o brinco do filhote e o guardou no bolso. Então, movido por um impulso que não compreendia, devolveu os corpinhos azuis para o saco e os deixou junto à costa. Então seguiu em frente.