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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros ALTOÉ, S. Menores em tempo de maioridade: do internato-prisão à vida social [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009, 105 p. ISBN: 978-85-99662-95-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Menores em tempo de maioridade do internato-prisão à vida social Sonia Altoé

Menores Em Tempo de Maioridade

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Menores em tempo de maioridade

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  • SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros ALTO, S. Menores em tempo de maioridade: do internato-priso vida social [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009, 105 p. ISBN: 978-85-99662-95-3. Available from SciELO Books .

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    Todo o contedo deste captulo, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso No Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

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    Menores em tempo de maioridade do internato-priso vida social

    Sonia Alto

  • Menores em tempo de maioridade

    do internato-priso vida social

    Sonia Alto

  • Sonia Alto

    Menores em tempo de maioridade

    do internato-priso vida social

    Rio de Janeiro 2009

    Esta publicao parte da Biblioteca Virtual de Cincias Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais - www.bvce.org

    Copyright 2009, Snia Alto Copyright 2009 desta edio on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicao para uso comercial sem a permisso escrita dos proprietrios dos direitos autorais. A publicao ou partes dela podem ser reproduzidas para propsito no-comercial na medida em que a origem da publicao, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN: 978-85-99662-95-3 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Piraj, 330/1205. Ipanema - Rio de Janeiro - RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: [email protected]

  • I

    SUMRIO

    Apresentao ..................................................................................... 1 Prefcio .............................................................................................. 3 I. Introduo ..................................................................................... 5 II. Procedimentos metodolgicos ..................................................... 8

    1. Reviso bibliogrfica ......................................................... 8 2. Descrio dos procedimentos ............................................. 9

    Entrevistas ............................................................................ 10 Dificuldades na Realizao da Pesquisa .............................. 12 Anlise e Classificao dos Dados ....................................... 13 Algumas Instituies Percorridas ......................................... 13

    III. Representao do ex-interno sobre o internato ..................... 24

    1. Interpretao positiva do internato ................................... 24 2. Interpretao dissonante das normas inculcadas .............. 27

    Transferncia ........................................................................ 30 Violncia Fsica e Disciplina ................................................ 32 Violncia Sexual ................................................................... 35 Ladro, Viado, Estudante ou Trabalhador ...................... 39

    3. Consideraes sobre a homologia das representaes acerca das estruturas das instituies totais ......................... 41

    Homologia das Estruturas das Instituies Totais ............... 42 Homologia dos Procedimentos das Instituies Totais ........ 48

    IV. Desligamento uma transio difcil ...................................... 52 V. Estigma na maioridade, a marca de menor permanece .. 62 VI. Moradia solues temporrias ............................................. 67 VII. Famlia ..................................................................................... 72

    1. Internao e perda dos laos afetivos ............................... 72 2. Negao do abandono ...................................................... 75 3. Apoio familiar .................................................................. 77 4. Famlia imaginria ........................................................... 79

    II

    VIII. Trabalho uma via de insero social valorizada ................ 81 IX. Marginalidade .......................................................................... 87

    1. A contribuio do internato .............................................. 87 2. Influncias recebidas .................................................... 90 3. Perigos da chamada vida do crime ............................... 93

    X. Futuro possvel? ...................................................................... 96 XI. Consideraes finais ................................................................. 99 XII. Bibliografia ............................................................................ 103

  • III

    SIGLAS MENCIONADAS

    ASSEAF Associao dos Ex-Alunos da FUNABEM FUNABEM Fundao Nacional de Bem Estar do Menor Em 1990, com a aprovao dos Estatutos da Criana e do

    Adolescente, a FUNABEM foi extinta e o Governo Federal criou o CBIA Centro Brasileiro para a Infncia e a Adolescncia

    FACR Fundao Abrigo Cristo Redentor USU Universidade Santa rsula CESPI/USU Coordenao de Estudos e Pesquisas Sobre a Infncia FINEP Financiadora de Estudos e Projetos CAP Centro de Apoio Profissional SAC Servio de Apoio Comunitrio DESIPE Departamento do Sistema Penal ESG Escola Superior de Guerra

    IV

    Dedico este trabalho minha me Idalina, aos meus irmos Helena, feda, Elvira, Jos Herminio, Geraldo, Ins, e ao meu pai Hermnio, que nos deixou quando ainda ramos crianas e adolescentes.

    Dedico tambm a todas s crianas e jovens que viveram a experincia de internato-priso.

  • 1

    APRESENTAO

    O interesse em pesquisar a insero social do ex-interno da FUNABEM e de instituies semelhantes surgiu na equipe da CESPI/USU, em 1986, como resultado de vrios debates, trabalhos de interveno e pesquisas em internato para menores. Nesta poca, a autora estava na fase final de um amplo trabalho de pesquisa em sete internatos, procurando analisar no s a dinmica de funcionamento dos mesmos, como tambm a trajetria que as crianas podem percorrer no cotidiano dos internatos, desde o nascimento at a idade de 18 anos. Surgiram, ento, questes sobre qual seria a insero social desses indivduos aps o desligamento do internato.

    Constatei a escassez bibliogrfica sobre o tema e elaborei o primeiro projeto de pesquisa que se intitulou Menor em Tempo de Maioridade. Neste projeto me propus a anlise dos seguintes temas: desligamento, estigma, representao do internato, famlia, trabalho e moradia, Outros temas surgiram espontaneamente no depoimento dos entrevistados, tais como, a homologia das representaes das instituies totais, marginalidade e a representao de futuro. Este trabalho contou sobretudo com a participao valiosa e dedicada de Claire da Cunha Beraldo e Valesca do Rosrio Campista, como assistentes de pesquisa, e a contribuio importante de Alfredo Wagner B. de Almeida, como consultor. Agradeo tambm a colaborao dada por Rosilene Alvim no incio do projeto. Com essas pessoas foi possvel formar uma equipe que, tendo como base uma grande amizade, suportou a tenso e as difceis condies de trabalho. Agradeo a todas as pessoas que trabalham nos estabelecimentos aqui citados pela participao e colaborao que nos deram. Agradeo tambm o apoio da CESPI-USU, da prof. Irene Rizzini, em particular, e do financiamento da FINEP. Este trabalho foi realizado entre janeiro de 1988 e maio de 1989.

    LEcole-Caserne Pour Enfants Pauvres, 1988 (mimeo). Univ. de Paris VIII. Uma

    verso atualizada deste trabalho foi publicada em 1990, pela Xenon Ed. e se intitula Infncias Perdidas.

    2

    Para fins desta publicao o relatrio final de pesquisa foi revisado, sofrendo algumas modificaes, e a bibliografia atualizada. Optei por no mexer no corpo do trabalho, sobretudo porque, continuando a estudar o tema, observo que as reflexes aqui levantadas se confirmam nas pesquisas feitas posteriormente. Espero poder aprofundar algumas dessas questes quando da anlise das entrevistas para a pesquisa que ora realizo.

    A segunda pesquisa, motivada pelo primeiro estudo, se iniciou em 1990 e se intitulou Instituio total uma reproduo na maioridade da vida de menor institucionalizado? Foi na realizao desta segunda, ainda em desenvolvimento, que foi feita uma investigao mais delimitada que diz respeito, em particular, aos jovens de sexo masculino que ao sarem dos internatos so levados a cometer atos de violao de dispositivos legais que resultam por lev-los s prises. Esta investigao se intitulou O Perfil dos Presidirios Egressos de Estabelecimentos de Assistncia Criana e ao Adolescente (Alto, 1992).

    Considero o estudo deste tema relevante porque, apesar da prtica de internao remontar ao sc. XVIII no Brasil, so raros os estudos publicados sobre as repercusses sociais e psicolgicas deste atendimento na criana e no adolescente. Alm disso, com a implantao do Estatuto da Criana e do Adolescente em 1990, novas perspectivas de atendimento se impem e certamente este tipo de estudo poder contribuir para a reflexo de novas alternativas.

    Sonia Alto Rio, 19 de novembro de 1992.

  • 3

    PREFCIO

    O grande castigo, o maior de todos os castigos, o insuportvel, para um homem nascido na Grcia antiga, era ser condenado a ficar insepulto. Ficar insepulto queria dizer que aquele homem estava condenado a ser devorado pelos elementos da natureza, sendo dissolvido no reino da mesmidade, perdendo seu nome. Esta condenao, e o horror a ela, correlato do horror do homem diante da morte, desapario do nome, e, portanto, desapario da condio humana que sempre singular.

    Poderamos dizer que, analogicamente, as instituies que se ocupam da infncia condenam aqueles que so submetidos a seus mtodos a ficar insepultos, pois seu processo formador todo dirigido no sentido de apagar as diferenas individuais reduzindo, se assim podemos dizer, os sujeitos submetidos a seus processos educacionais a seres da natureza, onde no h liberdade mas, somente, obedincia lei escrita na carne. A instituio toma o lugar de um gigantesco cdigo gentico em relao ao qual o sujeito tem que necessariamente obedecer. impressionante notar no depoimento dos internos que, quando algum fazia algo errado, todos pagavam, indicando assim que o sujeito estava abolido, existindo, somente, espcie. No poder errar arrancar o ser humano da dimenso da escolha, ou melhor, no poder ter um erro seu reconhecido uma cruel cassao da possibilidade de se reconhecer humano, singular, errante.

    Uma pergunta que brotou durante a leitura desta pesquisa, que ora introduzo, foi qual seria o sentido deste paradoxo que educar tentando abolir do sujeito sua diferena e, depois de concludo o processo, lanar este mesmo sujeito num mundo que exigir dele o exerccio de uma diferena para a qual est despreparado. Por que tamanha crueldade? Por que tentar extrair do sujeito sua humanidade tentando conden-lo condio de coisa?

    Parece-me que esta crueldade revelada em todo este processo de educao da infncia e adolescncia carentes tem uma dimenso que escapa a todas as categorias com as quais habitualmente

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    tentamos pens-la; preciso problematizar de forma radical o sentido desta crueldade sempre presente na aventura humana.

    Uma outra questo que me parece central no relato da pesquisa a questo do futuro. Quando trabalha-se com a infncia e a adolescncia com o futuro da prpria sociedade que estamos trabalhando. No fundo, .a maneira como a prpria sociedade se relaciona com sua possibilidade de existncia. O futuro fundador do fenmeno humano pois, o tempo do sonho, o tempo daquilo que no est presente mas orienta nossa procura. o tempo do vir-a-ser, o no-ser iluminando a construo do ser, o tempo da criao humana, o tempo da dor pois a estamos condenados a buscar. O futuro o tempo fundador do social e do individual e , ao mesmo tempo, onde a fria humana aparece em todo seu esplendor, como nas instituies.

    A relao que as instituies tm com os internos parece ser uma tentativa que a sociedade faz de destruir seu prprio futuro. Podemos ver, nestas instituies, como a sociedade que vivemos lida com os seus fundamentos. A sociedade parece um louco que est em cima de uma pilastra quebrando com uma marreta a pilastra que o sustenta. Assim me pareceu, um louco quebrando sua sustentao, a tentativa que as instituies fazem para tomar seus internos no mais humanos mas seres condenados a viver a eternidade do aqui-agora, sem futuro, pois sempre, identidade com a lei que os determina.

    Estas instituies que lidam com a infncia e adolescncia so lugares privilegiados onde podemos ver o nvel do respeito que a sociedade tem para com a dignidade do ser humano. Infelizmente, na sociedade que vivemos, h muito pouco respeito por aquilo que funda nossa dignidade, ou seja, o futuro, tempo, por excelncia, da liberdade humana.

    Pedro G. Pellegrino

  • 5

    I. INTRODUO

    Este trabalho fruto de preocupaes iniciadas no desempenho de atividades de psicloga e no decorrer de uma pesquisa que realizei anteriormente sobre a vida das crianas no internato. Neste estudo1l se analisa o cotidiano da vida das crianas em sete diferentes internatos abrangendo a faixa etria de recm-nascido a dezoito anos. A anlise feita levanta vrios problemas e questes sobre a formao do sujeito no caso de indivduos que passam muitos anos de sua vida, inclusive infncia e adolescncia, confinados em internatos, que tm seus mecanismos de funcionamento molde de instituio total (Goffman, 1974, p. 16). Este livro apresenta os resultados de uma pesquisa que na realidade um desdobramento desse estudo anterior. Nela, entretanto, no mais pretendemos a anlise de uma instituio total, mas iniciar um estudo sobre seus impactos e efeitos para um conjunto de indivduos que, na condio de assistidos, so alvos da poltica oficial de Bem-Estar. Optamos por levantar consideraes sobre o quanto a instituio total definitria da representao do indivduo na vida social. Levantamos a hiptese de que seus efeitos so de natureza estrutural e no-contingentes.

    Frente ao carter paternalista e assistencialista adotado nos internatos de menores, a primeira questo que se coloca a seguinte: como e sob que circunstncias o interno passa da condio de assistido para aquela de cidado ao completar a maioridade (18 anos)2. Desligado do internato ele tem que se defrontar com uma sociedade onde os direitos so individuais, ao contrrio da experincia vivida anteriormente. Trata-se de uma experincia marcada pela uniformidade, pela mesmice, pela massificao do atendimento, havendo sempre um esforo institucional para apagar qualquer diferenciao, que porventura pudesse existir entre os internos. No h nos meandros desta engrenagem institucional qualquer incentivo para o indivduo constituir sua identidade. importante ressaltar que igualdade de atendimento nada tem haver com democratizao. O funcionamento institucional contrrio a

    1 cole-Caserne pour Enfants Pauvres ALTO. S, 1988.

    2 Segundo o Cdigo Penal, menor o indivduo que no atingiu a idade de dezoito

    anos e que fica sujeito s normas do Cdigo de Menores. (Russell. L., 1971. p. 114.)

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    toda ideia de liberdade e democracia. Na relao com os adultos e autoridades institucionais o interno vive uma experincia de autoritarismo e infantilizao levados ao seu grau mximo (Alto, ibid 1988). A vida no internato marcada pela ausncia de vnculos afetivos, pela ausncia de objetos particulares, pela ausncia de rituais de passagem (comemorao de aniversrio, festas, etc.), pela ausncia ou inadequada formao profissional. Caracteriza-se por um atendimento marcado pela disciplina rgida, sobretudo para aquietar e treinar o corpo, pelo castigo fsico exagerado e arbitrrio, pela humilhao, pelo treinamento para ser um bom assistido, portanto, ser dependente e infantilizado. Durante o tempo de internao a cidadania no est em jogo e o interno no formado para gozar de seus direitos de cidado. Eis que, ao ser desligado, ele se defronta com uma sociedade cujas regras de funcionamento no conhece exatamente e na qual ele tem que cuidar de sua prpria sobrevivncia e assumir sozinho sua condio de cidado. Tem-se ento um perodo crtico de coliso entre suas expectativas e os processos reais. Os diferentes antagonismos apontam para diferentes trajetrias sociais.

    O que se pode observar que alm disso no oferecido ao interno um razovel tempo de transio. Ele desligado do internato e de imediato defronta-se com os problemas da vida cotidiana fora deste. No tem como elaborar esta mudana no tempo requerido, no dispe de instrumentos adequados e toma-se, muitas vezes, um eterno prisioneiro desta passagem. Sem apoio institucional e familiar, sem uma rede social de relaes de apoio, com moradia provisria e sem emprego efetivo, as chances de insucesso e as dificuldades de construir uma vida estvel na sociedade tomam-se quase uma certeza.

    Fechado dentro dos muros do internato construiu uma viso de mundo sem maiores esperanas e sem aventar projetos concretos. Observa-se na fala memorialstica de um dos entrevistados recm-desligado, como expressa com clareza um sentimento comum a todos os assistidos mediante o abrupto desligamento do internato.

    E Como que voc, quando estava interno, imaginava o mundo aqui fora?

    L dentro eu imaginava que o mundo aqui fora fosse um mundo assim ... Um mundo ... pessoa ... Sou uma pessoa assim ... Sei

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    l, no sei nem o que dizer. A gente pensa tanta coisa quando agente tem momento de falar o que a gente sente, no sabe nem o que falar. Mas, o pessoal acha que o mundo aqui fora um mundo assim trancado, um mundo assim de desprezar qualquer um, um mundo assim ... de pessoa assim ... viesse sem ao menos uma experincia ela no tinha condies de viver o mundo, ia amarr-la, por a, ela ia ficar jogada. Ia ficar assim ... num canto, ningum se interessar por ela, ticar vazia est entendendo? Ia se tomar uma pessoa neutra, ento, eu parei para pensar essas coisas, eu pensava mesmo, pensava, olhava ... (Ricardo, 18 anos).

    O trabalho de pesquisa concentrou-se precisamente nas representaes e prticas correspondentes ao perodo de transio que, sucedendo as formalidades de desligamento, encerra tenses e graves antagonismos entre as normas uniformizadoras inculcadas pela instituio total e as exigncias individuais da vida social.

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    II. PROCEDIMENTOS METODOLGICOS

    1. Reviso bibliogrfica

    A questo do menor carente, abandonado e que sofreu um processo de institucionalizao tem sido focalizada em diversos estudos e pesquisas. Estuda-se, geralmente, o mundo dos assistidos nos meandros da instituio. No se enfoca, entretanto, o que lhes acontece aps vrios anos de confinamento nestes internatos para menores. Ressaltaremos a seguir alguns estudos que consideramos pertinentes a tal enfoque.

    a) ALTO, S. Infncias Perdidas 1990. um estudo de sete internatos de menores na faixa etria de 3

    meses a 18 anos. Esta pesquisa analisa os mecanismos institucionais, as condies de vida do menor interno e as possveis repercusses psicossociais que podem ocorrer ao menor, que vive em instituio total at a maioridade.

    b) VALADARES, A. O Menor Institucionalizado 1984. Este estudo, realizado por uma psicloga, analisa aspectos da

    vida do adolescente interno num estabelecimento da FUNABEM. Trata-se: de um dos primeiros trabalhos que, nos seus dois ltimos captulos, aborda a questo do jovem que sai do internato, fazendo uma anlise de suas representaes, do mundo social e suas dificuldades de insero na sociedade. Os informantes da pesquisa se restringiram aos jovens que so associados da ASSEAF Associao de Ex-alunos da FUNABEM.

    c) ALVIM, R. e ALTO, S. Eternos Menores 1987. Este artigo, escrito por uma antroploga e uma psicloga,

    aborda algumas questes relativas dificuldade do ex-interno se inserir no mundo social, do trabalho e familiar.

    d) BONFIM, M. Egressos da FUNABEM 1988. Trata-se de um estudo especfico sobre ex-alunos da

    FUNABEM. Os informantes desta pesquisa foram 18 pessoas que se encontravam na ASSEAF como associados ou como membros da

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    diretoria. A partir de entrevistas com os ex-internos, Bonfim faz uma anlise sobre as representaes do internato, a vivncia do desligamento, a reintegrao na sociedade, a representao do aluno da FUNABEM e a viso da ASSEAF.

    2. Descrio dos procedimentos

    Ao iniciarmos a presente pesquisa nos defrontamos, alm da escassez de referncias bibliogrficas, com a inexistncia de um trabalho de carter censitrio que revelasse com exatido o universo da populao de jovens, que passaram um perodo significativo de suas vidas, antes de completarem a maioridade, em internatos3 Tendo em vista o desconhecimento quantitativo, mesmo aproximado, do universo a ser pesquisado, optamos em no estimar um nmero de entrevistas para efeito da amostra. Privilegiamos, aps a consulta s fontes de referncia disponveis, o contato direto com informantes que pudessem nos fornecer dados elementares sobre a sada dos internos e seus possveis paradeiros. Privilegiamos inicialmente cinco entidades como fonte de obteno de dados por entendermos que estas poderiam nos fornecer as informaes desejadas com mais facilidade. So elas: FUNABEM, ASSEAF, Associao Irmo Esperana, Pastoral Penal e FACR4. Entretanto, consideramos que h outras instituies, que no foram utilizadas como fontes de informao, mas podero s-lo no desenvolvimento de estudos posteriores.

    Dessas instituies destacamos a FUNABEM, ASSEAF e FACR na medida em que funcionaram tambm como fonte de registro. Estes estabelecimentos continham em seus arquivos dados organizados sobre os ex-internos, embora nem sempre atualizados.

    3 No encontramos nos relatrios anuais da FUNABEM (1985, 1986, 1987) dados

    especficos relativos ao desligamento de alunos que atingem a maioridade. Na ASSEAF, fomos informados de que seu arquivo estava em fase de organizao e por isto no foi possvel nos fornecer a lista de seus associados. Na Associao Beneficente dos ex-alunos da FACR, fomos informados da existncia de 230 associados. 4 Nas pginas seguintes feita uma descrio detalhada sobre os seguintes

    estabelecimentos percorridos: Associao Irmo Esperana, Penitenciria Milton Dias Moreira e a FUNABEM.

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    Iniciamos, ento, um estudo minucioso dos dados encontrados a partir do qual realizamos um mapeamento de empresas que admitem em seu quadro de funcionrios ex-internos, bem como, seus provveis locais de moradia.

    Acreditamos que a realizao de um trabalho censitrio por parte dos rgos competentes ser de grande valor para estudos posteriores, na medida em que possibilitar um maior acesso ao universo de adultos ex-internos e sua situao atual em termos de moradia, trabalho e estado civil.

    Entrevistas A entrevista foi o nosso principal instrumento de obteno e

    coleta de dados; utilizamos como tcnica a histria de vida, tradicionalmente usada pelos antroplogos. (Tiollent, 1980, p. 79).

    As entrevistas foram gravadas e sem tempo pr-determinado de durao.

    S no gravamos aquelas realizadas com intermedirios que se opuseram ao uso do gravador, sendo, ento, utilizadas anotaes mo. As entrevistas foram realizadas, sempre que possvel, nos locais de trabalho e moradia dos ex-internos, o que nos permitiu observar as suas condies de vida. Utilizamos tambm as dependncias da CESPI/USU, e, em alguns casos, a residncia da autora. Encontra-se no final deste captulo o Quadro de Relao dos Entrevistados.

    Algumas das etapas intermedirias que funcionaram como vias de acesso aos informantes para a nossa pesquisa foram alcanadas a partir de uma entrevista realizada com um funcionrio do CAP-FUNABEM, onde fomos informadas da existncia de um convnio com empresas. Estas empresas oferecem aos alunos de internato um estgio at os 18 anos, no sendo necessariamente obrigatria sua contratao por parte da empresa. Contudo, h ex-internos que so aproveitados, passando a ser funcionrios efetivos. O CAP, ento, nos forneceu o nome de quatro empresas bem como o nome do funcionrio responsvel pelo convnio. Desta forma, pudemos entrar em contato para falar sobre nossa pesquisa e solicitarmos a possibilidade de virmos a realizar entrevistas com ex-internos. Mantivemos contato com setores de duas empresas ESG,

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    ELETROBRS onde foram realizadas entrevistas. Na ESG fizemos contato com o tenente responsvel pelo respectivo convnio, e na ELETROBRS, com uma psicloga.

    O trabalho de pesquisa voltado para a questo da criana carente e abandonada que desenvolvido na CESPI/USU tambm nos forneceu informaes, possibilitando o acesso a outros intermedirios. Assim, nos foi possvel a realizao de novos contatos e entrevistas, como relataremos a seguir.

    Atravs de uma pesquisa realizada na CESPI/USU5 detectamos a existncia do Asilo Esprito Joo Evangelista um internato de meninas que atende a faixa etria de 04 a 18 anos. Realizamos entrevistas com a direo e o comparecimento no dia da visita nos possibilitou entrevistar algumas ex-internas deste estabelecimento.

    O curso de graduao de psicologia na USU oferece cadeira eletiva O menor na realidade brasileira o qual era ministrado pela pesquisadora e que tem como meta estudos e pesquisas sobre o tema. Esta cadeira forneceu atravs dos trabalhos realizados por alunos o contato com duas pessoas, ex-internos da Fundao Romo Duarte internato para meninos e meninas na faixa etria de 0 a 14 que faziam da mesma o seu local de trabalho e moradia.

    A realizao de entrevista com um ex-interno foi possvel devido ao fato de uma assistente de pesquisa da CESPI/USU trabalhar na mesma firma de engenharia que o mesmo.

    A ASSEAF foi tambm contatada e, atravs de entrevista feita com o vice-presidente na poca, Jorge Ramos, obtivemos informaes do trabalho por ela desenvolvido bem como o acesso ao seu arquivo. Esta consulta proporcionou o inventariamento de uma fonte de registro de ex-alunos que so associados. De posse da listagem selecionamos aleatoriamente 31 jovens sendo que destes, o contato efetivo foi realizado com 6 pessoas devido a desatualizao dos dados do arquivo. Contudo, duas no se dispuseram a dar entrevistas e um faltou. Realizamos, portanto, trs entrevistas.

    5 Proposta para uma metodologia ou levantamento sobre o Atendimento ao Menor

    no Brasil. CESPI/USU, Rio de Janeiro, 1988. (mimeo)

    12

    O trabalho anteriormente realizado pela pesquisadora na FACR nos possibilitou entrevistar vrios ex-internos deste estabelecimento com os quais a pesquisadora ainda mantm contato. Atravs de um contato realizado com um desses ex-internos soubemos da existncia de uma Associao que congrega ex-internos de tal estabelecimento. Esta associao foi criada e dirigida por ex-internos que a foram mantidos na dcada de 40/50. No pudemos deixar de considerar como importante para a pesquisa o depoimento destes ex-internos, na medida em que eles nos forneceriam dados sobre a associao e sobre sua vivncia em internato. importante ressaltar que apesar de estarem desligados do internato h mais de trinta anos se mantm preocupados com a questo dos menores.

    No decorrer da pesquisa mantivemos contato com a Associao Irmo Esperana local que abriga ex-internos e ex-presidirios. A princpio no nos foi possvel fazer entrevista com ex-internos que l se encontravam devido a alguns mal-entendidos ocorridos entre as assistentes de pesquisa e a assistente social desta associao. Porm, por considerarmos esta associao uma importante fonte de acesso aos informantes, retomamos os entendimentos atravs da intermediao da pesquisadora, procedendo-se ento as entrevistas.

    Dificuldades na Realizao da Pesquisa Quando demos incio ao trabalho de campo coleta de dados e

    busca de fonte de informantes nos defrontamos com algumas dificuldades que muitas vezes se tomaram obstculos maiores que interferiram no prprio andamento da pesquisa.

    Consideramos que a enorme burocracia existente na FUNABEM foi a primeira dificuldade encontrada no desenvolvimento da pesquisa.

    Outro fator que ocasionou o adiamento por diversas vezes da realizao das entrevistas foram as greves e motins que ocorreram nos presdios, exatamente na poca em que iniciamos o contato com o diretor da Penitenciria Milton Dias Moreira.

    Cabe aqui ressaltar, que durante todo o perodo de realizao da pesquisa nos defrontamos tambm com o atraso na liberao das

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    verbas e a desvalorizao do dinheiro devido alta inflao, sobretudo nos primeiros meses quando no tnhamos verba nem para a compra de material (gravadores, fitas) nem para o transporte.

    Anlise e Classificao dos Dados Concomitantemente ao trabalho de campo realizamos as

    transcries das fitas. As entrevistas foram agrupadas de acordo com sua origem. A seguir fizemos uma classificao temtica de cada entrevista. Feita esta classificao iniciamos uma pr-anlise objetivando levantar a diversidade do material coletado. A seguir passamos a realizar uma anlise extensa e criteriosa de todo o material levantado para a elaborao do relatrio final.

    Algumas Instituies Percorridas

    Associao Irmo Esperana

    A Associao Irmo Esperana foi fundada por um francs Jean Jacques Pagnono, no Rio de Janeiro, em 1984. Esta associao existe em vrios pases da Europa. A princpio, a Associao Irmo Esperana tinha como objetivo auxiliar o reingresso na sociedade de egressos da priso, mas devido a intensa procura de ajuda por parte de migrantes e ex-internos, decidiu ampliar seu atendimento. Constatamos atravs de um levantamento realizado no livro de registro desta associao que, desde 1985 at a data em que realizamos as entrevistas (Novembro de 1987), a Associao Irmo Esperana recebeu 85 egressos da FUNABEM.

    Consideramos esta associao como uma instituio de passagem, pois pretende abrigar em um espao de tempo limitado adultos que encontram-se em dificuldade de reinsero social. oferecido aos residentes um prazo de 06 meses, quando lhes garantido moradia, alimentao e documentao. Acreditam ser este o tempo suficiente para que os assistidos consigam um emprego e, desta forma, sua insero social.

    A Associao Irmo Esperana est localizada no bairro de So Cristvo, Zona Norte, e pode atender at 55 residentes.

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    Nesta associao entrevistamos oito ex-internos, alm do assistente social, diretora e de um funcionrio.

    Tanto o assistente social quanto a diretora afirmaram que os ex-internos da FUNABEM so residentes problemticos que dificultam o funcionamento da casa. Para eles, os egressos da FUNABEM so muito infantis, sem iniciativa, pouco cooperativos e esperam ter o mesmo tratamento paternalista que sempre tiveram na FUNABEM.

    Os ex-internos so vistos, por eles, como pr-delinquentes pois saem de uma Fundao onde tm tudo e quando saem no tm ningum e comeam a roubar.

    Ambos fazem crticas a FUNABEM, na medida em que a mesma no faz qualquer tipo de acompanhamento e esperam que a associao resolva o problema dos egressos.

    A Associao Irmo Esperana um estabelecimento de regras rgidas e o no cumprimento dessas regras pode significar a expulso do residente. Os horrios de entrada e sada so controlados pelos funcionrios ocorrendo tambm uma revista nas bolsas dos residentes quando estes retomam a associao, aps alguma atividade na rua.

    Por ser uma moradia provisria no permitido aos residentes modificar a aparncia ou qualquer aspecto do ambiente que ocupam.

    Penitenciria Milton Dias Moreira Ao iniciarmos a pesquisa no final de 1986 tnhamos alguns

    contatos para serem feitos a fim de estabelecer o percurso possvel dos ex-internos. Entre esses contatos, destaque-se o padre Bruno Trombetta, na poca, coordenador da Pastoral Penitenciria, que anteriormente havia participado juntamente com a coordenadora da pesquisa de um debate, no qual mencionou a existncia de uma porcentagem elevada de presos egressos da FUNABEM ou conveniadas.

    Fizemos a primeira entrevista com padre Bruno Trombetta em abril de 1987; esta entrevista foi feita na Pastoral e no foi gravada. Ele relatou que 80 % dos presos estavam na faixa etria entre os 18 e

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    27 anos (o que dava aproximadamente 11 mil detentos); desses 80%, 40% tinham entre 18 e 23 anos. Nessa poca no havia nenhuma estatstica sobre as porcentagens de ex-alunos da FUNABEM, mas era sabido que uma grande maioria vinha dessa instituio. A partir de um segundo contato com padre Trombetta realizado ainda em 1987, este ficou de nos encaminhar a um presdio onde poderamos realizar algumas entrevistas com presos egressos da FUNABEM. Mas neste perodo o clima dentro dos presdios era tenso devido s greves e motins, o que nos levou a adiar a visita algumas vezes.

    Em 1988 procuramos novamente o padre que nos encaminhou ao diretor do DESIPE e este nos informou a existncia de um censo que estava sendo realizado dentro de todo complexo penitencirio do Estado do Rio de Janeiro. Atravs deste censo se poderia chegar com mais preciso aos dados sobre o nmero de presos egressos da FUNABEM.

    Fomos, por ele, encaminhadas Coordenadora Tcnico Social que escolheria a penitenciria e daria a relao de detentos com os quais poderamos fazer as entrevistas. Recebemos da Coordenadoria uma carta de apresentao ao Diretor da Penitenciria escolhida (Milton Dias Moreira) e a relao dos detentos que poderamos entrevistar. Iniciaramos no ms de outubro as entrevistas, porm este prazo foi transferido para novembro devido tenso social nos presdios.

    Aps contatos com o diretor e vice-diretor da Penitenciria Milton Dias Moreira marcamos nossa ida para o dia 02/12/1988 s 14h. Eles nos preveniram que levssemos carteira de identidade e que seramos revistadas.

    O Complexo Penitencirio Frei Caneca6, onde est localizada a Penitenciria Milton Dias Moreira, um estabelecimento que ocupa rea gigantesca no bairro do Catumbi Zona Norte. totalmente cercado por muros altos com vrias torres onde ficam soldados com metralhadoras, vigiando. Existe uma pequena portaria por onde

    6 O Complexo Frei Caneca composto de um presdio, Hlio Gomes; de um

    Hospital Central Penitencirio; duas penitencirias. Lemos de Brito e Milton Dias Moreira; uma Diviso Educacional; Um Manicmio e um Hospital desativado, Nelson Hungria.

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    passam as visitas e um porto de ferro para entrada de automveis. Ao chegarmos portaria do Complexo no havia ningum que nos atendesse. Esperamos por alguns minutos at chegar um funcionrio, comunicamos-lhe a entrevista com o vice-diretor e mostramos a carta de encaminhamento, e aguardamos. Este funcionrio no trazia consigo nada que o distinguisse enquanto tal e tampouco houve meno sobre a sua funo dentro do Complexo. Sua aparncia era mal cuidada (com a barba por fazer) e nos tratou com uma certa displicncia (gritando para outro funcionrio se ele sabia o paradeiro do vice-diretor). O local da portaria parece antigo e mal cuidado com alguns comunicados pregados na parede, que pintada com as cores do Estado do Rio de Janeiro. O branco j estava encardido e o azul desbotado, sobre o aviso: revista obrigatria e identificao. O funcionrio retomou e pediu que deixssemos nossas carteiras de identidade com ele, nos fornecendo, aps, um papel que o vice-diretor deveria assinar, e uma ficha que devolveramos na sada. Ele nos encaminhou para o interior do Complexo. At ali no fomos revistadas. Passamos por um corredor estreito onde deveramos ser revistadas e no havia ningum. Mencionamos ao funcionrio que nos atendeu se no seramos revistadas e o mesmo disse que no. Passamos pela roleta do pequeno corredor e alcanamos um grande ptio gramado de onde se pode ver os vrios estabelecimentos. O Milton Dias Moreira o penltimo esquerda.

    A Penitenciria fica num prdio de dois andares com uma aparncia externa que no chega a impressionar. Para se chegar ao seu interior preciso passar por uma portaria com um grande porto de ferro que controlado por um funcionrio que fica dentro de uma saleta. Ao chegarmos na portaria, um local sujo, havia alguns homens que no saberamos informar se eram ou no funcionrios da penitenciria. Informamos ao senhor que estava dentro da saleta, onde se comanda a abertura do porto de ferro, a nossa entrevista com o vice-diretor. Ele, ento, chamou um outro homem e pediu a este que nos conduzisse at a sala do vice-diretor no segundo andar. Em seguida fez abrir o porto de ferro. A sala do vice-diretor decorada com mveis antigos e bem desgastados. Ele nos recebeu educadamente e pediu que esperssemos um pouco que ele iria chamar os detentos. Nos relatou que da relao dos 16 detentos

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    enviada pelo DESIPE7 muitos j tinham sido transferidos, devido aos motins. Ofereceu o chamado salo nobre para fazermos nosso trabalho, pois este amplo. Acrescentou que seriam colocadas mais duas mesas para que cada entrevista pudesse ser feita separadamente. O salo nobre um local que parecia ser pouco utilizado. Nele existia uma grande mesa velha com uma mquina de escrever e alguns livros. Esperamos um pouco at a chegada de dois presos que trabalhavam na cozinha. Nos apresentamos e fomos para o salo. As entrevistas foram feitas individualmente pelas trs pesquisadoras sem uma vigilncia ostensiva, porm no ficamos de portas fechadas com os detentos. Em todas elas fizemos uso do gravador. E apenas um detento no quis conceder entrevista alegando que no tinha passado por internato; um outro detento que estava sendo entrevistado desmentiu-o, porm.

    Fizemos uma entrevista com um detento que no estava na lista do DESIPE. Este se ofereceu a dar a entrevista ao ouvir a pesquisadora explicar assistente social o objetivo da pesquisa. Esta foi a mais rica entrevista, com longas descries e observaes sobre sua histria de vida.

    Um nico preso vestia uma camisa do DESIPE; os demais estavam sem uniformes, desta maneira no se podia distinguir presos e funcionrios. Poucos funcionrios se vestiam com maior cuidado e somente um apresentava-se de camisa social e gravata.

    Existiu sempre, por parte dos presos, uma preocupao com as possveis consequncias que seu depoimento poderia acarretar como, por exemplo, os benefcios ou no no pedido da liberdade condicional. No houve nenhum preso que se negasse claramente em conceder entrevista, talvez por ter sido o vice-diretor quem tinha pedido a colaborao deles, e recusar um pedido da diretoria da penitenciria certamente seria algo pouco aconselhvel.

    Nessa poca, as penitencirias do Rio de Janeiro viviam em clima de forte tenso devido ao assassinato de vrios detentos, tendo sido apontada como responsveis por esses crimes a Falange Vermelha (um grupo que controla grande parte do crime organizado

    7 Para a realizao das entrevistas pedimos licena s autoridades encarregadas pelo

    DESIPE, que nos apresentaram uma lista de detentos por eles selecionados.

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    e o trfico de drogas). Todos os presos que entrevistamos estavam no chamado seguro, ou melhor, pediram seguro de vida direo. Eles estavam na parte do isolamento ou ocupavam reas destinadas ao ensino, por exemplo, e assim ficavam separados da maioria dos presos. Todos os relatos eram carregados de tenso e preocupao com a sua segurana.

    Dado o clima, ficamos surpresas com a falta de revista e mais ainda quando percebemos que iramos realizar as entrevistas sem a vigilncia ostensiva de um funcionrio. Nos perguntamos se tais detentos manteriam relao de confiabilidade mtua com funcionrios e com a direo do prdio. Consideramos que o fato de termos uma lista com os nomes dos detentos e da escolha desses nomes ter sido feita pelo vice-diretor da penitenciria interferiu na relao que mantivemos com os detentos.

    FUNABEM

    A FUNABEM foi criada em 1964, se constituindo como um rgo normatizador e implementador da Poltica Nacional do Bem-Estar do Menor.

    Emanada da FUNABEM, a nova poltica deveria concretizar-se atravs de entidades assistenciais, no mbito nacional e estadual. Foram criadas as FEBEMS nos diversos estados do Brasil, sendo que no Rio de Janeiro foi designada FEEM.

    A sede da FUNABEM era no Rio de Janeiro e nesta mesma cidade que ela mantinha a maioria dos seus internatos. No bairro de Quintino, numa rea extensa e repleta de rea verde, encontram-se ainda aglomeradas diversas escolas entre grandes reas de lazer. As escolas so: Escola XV de Novembro, Escola Odylo Costa Filho, Centro de Recepo e Triagem, Casa da Criana, Escola Mrio Altenfelder, Escola Eduardo Bartlet James, Escola Jos de Anchieta.

    O conjunto de escolas separado da rua por um enorme muro, com uma portaria para pedestres e outra para veculos controladas por funcionrios uniformizados, que trocam a carteira de identidade dos visitantes por crachs. Toda pessoa que entrar na escola deve estar usando um crach, inclusive os funcionrios. Na portaria de

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    pedestres encontram-se dois funcionrios que apresentam postura rgida e mostram-se rspidos na sua maneira de usar a fala.

    As entrevistas com funcionrios que foram realizadas dentro das reparties da FUNABEM em Quintino tiveram, necessariamente, que passar por um processo burocrtico, que controla com todo rigor a entrada e sada de pessoas. A princpio, qualquer pessoa que desejasse entrar na FUNABEM para qualquer atividade deveria primeiro falar com o Sr. Muri, que o funcionrio encarregado de encaminhar e acompanhar os visitantes ao local desejado.

    Os contatos com o Sr. Muri eram feitos por telefonemas (muitas vezes sendo necessrio trs ou quatro para conseguir uma entrevista) nos quais ele autorizava que marcssemos a data da entrevista com o profissional desejado. Posteriormente, ele deveria ser avisado da data para que no dia estivesse em Quintino para nos receber; caso ele no pudesse nos receber, a entrevista marcada no poderia ser realizada. A FUNABEM estava realizando o desligamento dos seus alunos antes dos 18 anos. Era feito um estudo de caso que determinava se o menino poderia ou no se reintegrar famlia. No caso do abandonado, era incentivado que ele se agrupasse a outros colegas para alugar um quarto, visto que a FUNABEM havia terminado o convnio com as penses que, segundo a entrevistada, acarretavam muitos conflitos.

    Existia na FUNABEM, desde 1973, um setor de encaminhamento e orientao do menor ao trabalho, que funcionava com uma equipe de tcnicos tentando contatar empresas para encaminhar os alunos de sua escola. No houve crescimento desse trabalho porque, segundo uma funcionria, muito difcil encaminhar alunos internados. No atingindo o seu objetivo, este setor foi desativado e as prprias escolas comearam a realizar o encaminhamento dos alunos ao trabalho.

    Em 1985, a FUNABEM iniciou um processo de desinternao atravs da desativao da Escola XV de Novembro enquanto internato. Essa desativao implicava no encaminhamento para o trabalho de muitos alunos. Ento, iniciou-se um trabalho que foi designado SAC Servio de Apoio Comunitrio. Este servio foi

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    ampliando a sua ao at se transformar no CAP Centro de Apoio Profissional8.

    O CAP atendia aos jovens entre 12 e 18 anos, s famlias destes jovens, aos ex-alunos e a todos que o procuravam em situao de carncia. As atividades realizadas pelo CAP eram as seguintes:

    1 Recepo e Triagem Apresentao do trabalho do CAP, relao e encaminhamento dos candidatos;

    2 Cadastramento Realizao de entrevista com o menor e o seu responsvel; estudo de caso;

    3 Encaminhamento Orientao do jovem para: recursos comunitrios, profissionalizao, escolarizao, curso de preparao para o trabalho e emprego, estgio ou para o Programa Bom Menino;

    4 Acompanhamento Realizao de contatos sistemticos com as empresas e com os menores.

    Em 1987, foi criado o Programa Bom Menino, atravs de decreto-lei que regulamentou o menor no trabalho. Esta lei determina que empresas com um determinado nmero de funcionrios so obrigadas a oferecer vagas para estgio profissional de menores.

    importante ressaltar que, atravs dessas mudanas, a FUNABEM passou a valorizar o trabalho como forma de insero social.

    O encaminhamento de alunos feito pelo CAP se dava atravs de contatos com empresas a nvel de bolsa ou estgio. No estgio, o adolescente trabalhava meio expediente, tinha horrio para estudo, ganhando salrio mnimo. A alimentao, uniforme, vale transporte depende de cada empresa conceder ou no. No caso da bolsa, o adolescente recebia um salrio para se profissionalizar, ele no trabalhava, e sim, fazia um curso profissionalizante que desejasse. Em ambos os casos no haveria vnculo empregatcio.

    Segundo a coordenadora do CAP, a idade de 17 anos era a mais delicada, pois, o adolescente encontrava-se numa situao de

    8 CAP Uma proposta onde se integram educao e trabalho, segundo os

    funcionrios da FUNABEM.

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    indefinio quanto a prestar o servio militar e nenhuma empresa aceita contratar, ou at mesmo receber um estagirio nessa situao.

    Aps os 18 anos o encaminhamento dava-se a nvel de experincia; ele era mandado para a empresa na funo de auxiliar e caso tivesse um bom desempenho poderia ser contratado. Na poca o CAP estava se empenhando na tentativa de conseguir que as empresas se comprometessem a contratar o jovem ao trmino do estgio.

    O CAP realizava atendimentos durante a semana na parte da manh, onde era feita a inscrio do adolescente. Era oferecido um curso de preparao para o trabalho com durao de uma semana, tempo considerado pelos dirigentes como suficiente para uma eficaz insero no mercado de trabalho. Neste curso, segundo um funcionrio do CAP, incutido no aluno hbitos, atitudes, posturas, como ele deve se apresentar, falar, gesticular. Era ensinado como preencher uma ficha de cadastro, as disposies da CLT e as quatro operaes.

    A equipe do CAP era formada por assistente social, orientador educacional e psiclogo. Realizava, segundo informaes coletadas junto a funcionrios da FUNABEM, um estudo de cada caso e procurava fazer o melhor encaminhamento para o adolescente. Eram levados em considerao a vocao, bem como a opo pessoal e as diversas possibilidades oferecidas pelas empresas. Aps o encaminhamento, no caso do menor, um tcnico era designado para ir de 15 em 15 dias empresa fazendo um acompanhamento.

    Em uma das entrevistas nos foram fornecidos os nomes de algumas empresas conveniadas, tais como: Funtev, Swisseg-Corretora de Seguros Ltda., ESG Escola Superior de Guerra, Eletrobrs.

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    III. REPRESENTAO DO EX-INTERNO SOBRE O INTERNATO

    1. Interpretao positiva do internato

    Os ex-internos valorizam sua passagem pelo internato, sobretudo, quando consideram que foi importante ter um local que os acolhesse, uma vez que seus pais passavam por dificuldades financeiras, ou por serem rfos. Ter moradia, roupa e alimentao considerado importante para que no ficassem perdidos pela rua e virassem marginal. A enorme gratido e a representao da FUNABEM como sua famlia est especialmente referida a estes aspectos.

    Sempre que os ex-internos falam do internato como tendo lhes oferecido coisas boas se referem particularmente ao estudo, lazer e brincadeiras com colegas. A possibilidade do lazer jogar bola, tomar banho de piscina, ver filme, ir ao Maracan e outros passeios a referncia mais clara que positivisa a passagem pelo internato, uma vez assegurado a alimentao, casa e roupa. As recordaes de brincadeiras entre colegas, traquinagens, e escamar, para viver pequenas aventuras, so sempre referncias positivas que se revelam, sobretudo, quando o entrevistador pergunta a respeito. A oferta de lazer e a brincadeira so situaes consideradas tpicas da experincia de internato em contraposio com a vida dos pais na qual estas situaes so consideradas impossveis.

    O estudo e o ensino profissionalizante so valorizados por todos. So, entretanto, alvos de inmeras crticas, salvo por aqueles que tiveram a experincia de passar por uma escola modelo da FUNABEM. Estas escolas so percebidas como oferecendo uma qualidade de ensino semelhante s de crianas de classe rica. Em consonncia com a fala sobre o estudo, essas pessoas tiveram aparentemente uma maior facilidade de trabalho e se encontram empregadas no momento. Entretanto, o que se observa que entre os entrevistados so raros aqueles que trabalham em profisses aprendidas no ensino profissionalizante. A especializao em artes grficas parece ser a que mais favorece o emprego. Apesar do ensino

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    escolar e profissionalizante serem considerados fracos ou inadequados, podemos considerar que um dos aspectos valorizados da vida no internato, mesmo que seja evidente que, uma vez desligados, a baixa escolaridade e/ou formao profissional precria no lhes favorece a entrada no mercado do trabalho.

    O internato tambm visto como o lugar de vida boa, de mordomias e regalias. Isto se refere, sobretudo, qualidade de vida material que desfrutam. H tambm uma idealizao da escola em particular da escola modelo onde a uniformidade da instituio total percebida como lugar de igualdade todos so iguais perante a lei. Neste sentido a vida aqui fora percebida como uma selva, como o reino da diferena e da desigualdade.

    L dentro do colgio tudo igual, entendeu? (Chora) (...) A gente fica doida para sair, mas quando a gente sai, vai compreendendo mais e a a gente v que aqui fora horrvel. uma selva mesmo! S tem bicho querendo comer a gente e l no nada disso. L todo mundo igual, sabe? bom por causa disso. Todo mundo igual. (Maria, 31 anos).

    O afastamento da famlia desestruturada, alcolatra e que passa por enormes dificuldades financeiras tambm positivisa o internato. Internas no tiveram que conviver com esta realidade e puderam, inclusive, encaminhar suas vidas de forma diferente da de suas mes. Esta representao se refere especialmente s mulheres que tiveram a oportunidade de permanecerem num mesmo internato durante todo o tempo, estudar em escola pblica, se profissionalizarem e logo conseguirem emprego aps o desligamento.

    Um outro aspecto positivo da experincia de internao se refere s orientaes, conselhos, ateno e carinho recebidos de um funcionrio que ficou seu amigo, ou como muita das vezes denominam seu padrinho. Ter um padrinho parece transformar toda a experincia da vida nas Escolas da FUNABEM. Esses, como tambm aqueles que mantinham um apoio familiar, so os que nos parecem poder situar e organizar melhor sua experincia de vida no internato. Eles conseguem ter mais discernimento sobre seus sentimentos contraditrios em relao ao internato.

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    O aprendizado da disciplina tambm valorizado como que facilitando sua vida na sociedade. Esses tendem a fazer esta positivao aps o desligamento, como tendo ajudado-os a passar de criana a adulto.

    Olha. A gente apanhava muito, sabe. A gente tinha um castigo severo. Tinha uma coisa assim chamada ... Eles eram muito severo, muito ... Hoje j no tem mais disciplina. Em vista do que era antigamente. Acordava cinco horas da manh pr sete horas poder estudar. Entendeu? Ento, era a maior dificuldade, a maior barra. Fora de srie. Eu apanhava muito. Eu tambm era muito arteiro, muito bagunceiro. No s eu como os 450 alunos que tinha l dentro dessa unidade. Ah! Se voc fazia muita baguna, se voc fosse suspeito, voc apanhava. No como se apanhasse de um garoto, mas como se apanhasse de um homem. Eu lembro de fatos assim, de inspetores chegar pr mim e bater sabe. s vezes com razo. Mas dentro da razo dele, eu no aceitava, porque eu era garoto no aceitava apanhar. Quem vai aceitar apanhar? Mas hoje, eu tiro aquilo como uma escola-disciplina para mim, sabe. Me ajudou muito tambm. Mas em si, eu olhava, eu, quer dizer, no perodo da adaptao, eu no via aquilo. Sei, era minha casa. Eu bebia, comia, dormia, estudava. Estava fazendo uma profisso. Mas no tinha contato real com a vida daqui de fora, n! (Fernando, 25 anos).

    Apesar das crticas (como veremos mais adiante), que os ex-internos tecem vida no internato, eles tendem a valorizar o tempo passado ali como uma etapa necessria para viver.

    Dou graas a Deus por ter passado pela FUN ABEM. Eu aprendi muito. Se tenho uma cabea boa porque eu vi muita coisa. A minha maior faculdade a vida. Foi ter vivido todas essas coisas. E eu acredito que nas horas mais tristes, nas experincias mais amargas que se tem condio de se tirar as melhores coisas, as melhores avaliaes. Eu por ter passado pela FUNABEM ... eu no tenho nada contra a FUNABEM, s tenho a agradecer. (Joo, 31 anos).

    A experincia vivida parece no gerar uma ambivalncia de sentimentos, mas, na fala dos entrevistados, a contradio acompanha os depoimentos que contm uma interpretao positiva. como se as crticas fossem dicotomizadas da gratido. Parece no haver conflito

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    ao mesmo tempo que tecem crticas duras, se referem experincia de internato como tendo sido boa. A mgoa ou o ressentimento, em geral, se refere a uma situao especfica, aos castigos, violncia fsica.

    Se por um lado consideram a experincia vivida como uma etapa necessria, todos os entrevistados observaram que no permitiriam a internao de seus prprios filhos. Nos parece que esta forma de considerar a questo expressa uma crtica severa vivncia no internato. Neste momento no se considera as coisas boas mas, sim, se reprova a experincia como um todo. uma reprovao que est alm dos motivos, das palavras. uma reprovao global da experincia.

    W Eu gostei. Eu tinha que passar por aquilo. Eu no sabia que eu ia passar por essa vida. Eu acho que tudo que a gente passa nessa vida porque a gente tem que passar. E E se voc tivesse opo, voc passaria novamente? W No. E tambm no deixaria meu filho passar. No, pelo menos pro meu filho, no. Eu acho que foi mais um desespero da minha me. (Walter, 20 anos).

    O que nos parece importante que na representao positiva do internato, os ex-internos, apesar das crticas contundentes que fazem ao funcionamento do internato, eles mantm uma imagem, como que idealizada, da mesma forma como nos parece manterem preservada a imagem da me ou da farm1ia, mesmo quando j perderam todos os laos com ela. Representar a FUNABEM como algo positivo, parece-nos, sobretudo, uma necessidade de preservar uma instituio que lhes permitiu a sobrevivncia frente ao abandono ao qual foram relegados.

    2. Interpretao dissonante das normas inculcadas

    Dentro da representao dos ex-internos encontramos um paradoxo importante. Se eles percebem a instituio como positiva, entretanto, sem exceo, eles afirmam que no colocariam seu filho no internato. Mesmo que no consigam tecer argumentos para tal afirmao, sempre carregada de emoo, silncio ou choro. Outros enfatizam a falta de carinho dos funcionrios e a ausncia dos pais,

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    como fatores que os fizeram sofrer muito. E assim se referem ao tempo do internato como uma fase da vida da qual no querem pensar, preferem esquecer. Nessas horas como que se surpreendessem de estarem falando sobre suas prprias vidas e muitos comentaram que era a primeira vez que assim falavam. Neste sentido, ficamos com a impresso que uma experincia de vida que fica reprimida sem chances de maiores elaboraes por parte de cada indivduo. Ele tem que tocar a vida pr frente, sem olhar para trs, porque no h o que rever. E tocar para frente, significa para muitos algum lugar sem rumo; para outros, pensar o futuro dentro das perspectivas de trabalho que tm no momento, e para alguns poucos existe a possibilidade de estudar, de mudar de trabalho, de ter algum projeto para o futuro.

    Vrias situaes so percebidas pelo ex-interno como experincia negativa. A principal queixa a falta de carinho, a falta de conversa e dilogo com os funcionrios dos estabelecimentos. Em oposio ao carinho e ateno, falam das ordens arbitrrias e absurdas que recebiam e tinham que executar. Reclamam no s da falta de liberdade para conversar com os funcionrios, como com os colegas em momentos de reunio natural, por exemplo, nas horas de refeies. O que chamam de regime caxiado uma forma de resumir todos estes constrangimentos artificiais e desnecessrios ao funcionamento institucional.

    O atendimento massificado, a desconsiderao pela individualidade de cada interno, o uso de uniforme, a impossibilidade de fazer qualquer tipo de escolha, ter que viver a rotina e a igualdade entre os colegas dentro de regras bem definidas e rgidas tudo isto percebido como marcas negativas da vida no internato. A festa de aniversariante do ms tambm era vivida como parte dos rituais de grupo e no como uma comemorao de uma data nica que marca sua existncia.

    Marcou porque (chora) voc tinha que ser o tempo todo igual a todo mundo, n? Porque era muita gente, era aquela massificao s, tinha que ser igual, tinha um monte de regras. Voc no podia dizer que no gostava de um legume. Todo mundo comeu, todo mundo tem que comer! Essas coisinhas pequenas assim. Roupa, todo mundo igualzinho. Voc no

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    podia escolher a roupa que voc queria usar. Todo mundo de roupa igualzinha, uniforme o dia inteiro. (Eliza, 19 anos).

    A falta de dilogo, de serem reconhecidos como pessoa, e no considerados como um nmero ou presidirios, marca a maioria dos indivduos. Este sofrimento enorme, que muitos nem sequer identificam sua origem, massacra os mais sensveis, ou aqueles que encontram menos possibilidade de se situarem nessa experincia, e nos parece marcar o indivduo para sempre.

    O que eu acrescentei a mim de bom, foi eu mesmo, porque no tinha ningum para me orientar. As coisas boas eu aprendi mais foi depois que eu vim para c (no trabalho). Porque l, eu sabia que no podia fazer isso, isso, isso e aquilo, porque ia se dar mal. Porque veja voc, dilogo assim, conversar na escola assim, eu no conversei no. Com ningum, eles no conversam, eles visam o Colgio Interno muito como se fosse um presidirio, sabe, no tem ningum para conversar. Porque o pessoal fica ali preso; vai sair dali quando no tiver nada para fazer, vai fazer besteira. A tendncia piorar (Luis Carlos, 24 anos).

    As poucas referncias que surgiram em relao ao trabalho dos tcnicos assistente social e psiclogo foram referncias de descaso, desateno e de um trabalho voltado para o funcionamento organizacional e no para o benefcio do interno.

    A disciplina, o castigo, a violncia fsica (como veremos com mais detalhes adiante) e o cio tambm so representaes de situaes negativas e de sofrimento. A referncia ao cio mofei muito l nos falado pouco que ganharam com a experincia do internato e do tempo perdido sem estudar, trabalhar ou aprender a ter autonomia.

    O furto de roupas pessoais ou de cama, como tambm de objetos por parte dos colegas, e considerado sem soluo no funcionamento institucional, tambm visto como uma situao geradora de conflitos.

    Eu tinha muitos amigos, tinha tambm um amigo que no gostava da gente e toda hora brigava, queria tomar as nossas coisas e eu no deixava. Porque o colgio interno a lei do co. Se a senhora tiver um negcio desse aqui, e outro pedir

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    para ver, e a senhora deixar, perde, toma e se no tiver disposio para reagir, para tomar aquilo que seu, no deixar eles tomar, perde tudo, fica s de short. Igual eu vi muitos alunos l perder tudo, a visita deles vinha, trazia aquela bolsa de compras pra ele, biscoito, leite, coisa de alimento, ento, os alunos mais pobres tomavam as coisas deles. De mim eles no tomavam porque eu era um sarna invocado, eu era um sarna invocado. (Benedito, 39 anos).

    A seguir vamos falar de algumas referncias que foram muito enfatizadas em vrios depoimentos como uma representao crtica do internato: a transferncia, a disciplina, a violncia fsica, o castigo e a violncia sexual.

    Transferncia A transferncia de internato uma das situaes percebidas

    pelos ex-internos como tendo trazido sofrimento. Como se expe em outro estudo (Alto, 1990), a transferncia realizada sem maiores cuidados e avisos queles que vo ser transferidos. Os internos so chamados e colocados num nibus, sem que inclusive os seus pais sejam avisados. Perdem os laos de amizade com funcionrios amigos e mesmo com irmos. A transferncia s no vista como negativa quando eles podem compreender seu mecanismo e sabem para que escola seguem. Este exemplo singular e se refere a um conjunto de escolas situadas no mesmo terreno. Consideramos que a transferncia vem reforar no interno o sentimento de descaso das autoridades institucionais, desconsiderao e desrespeito pela sua pessoa. So manipulados conforme a necessidade do funcionamento organizacional.

    No perguntavam nada. Eles escolhiam assim, pegava a lista e por exemplo, se meu nome tivesse nessa lista, eu ia de bobo com eles, ia transferido. Eles no separava os alunos, pegava um monto assim e chamava fulano, fulano. [Nessas transferncias voc perdeu o contato com os seus irmos ou ...] Ah, perdi. Eu fiquei 5 anos sem ver os meus irmos. Foi esquisito a pampa! Voc se sentir isolado, s ver aquele monte de garotinho, tudo pequenininho assim ... (Benedito, 39 anos). L no colgio acontecia muito isso de transferir. O papel nosso ia todo pro outro colgio. E quando voc chegava no

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    outro colgio, se voc analisar bem, o colgio interno tipo uma cadeia. A pessoa chega num presdio, todo mundo te olha diferente. Te bota l dentro e diz: isso, isso e isso. O inspetor ao invs de apresentar o aluno, apresentar assim pra conversar, mostrar a instalao do colgio, no! Chegava, jogava o aluno l dentro! (Haroldo, 20 anos).

    Esse funcionamento institucional de muita mudana de internato nos parece no se justificar organizacionalmente. A nica justificativa possvel impedir a criana e adolescente de criar laos de amizade, desenvolver relaes afetivas e se situar no mundo. frequente que sejam transferidos a cada ano ou a cada dois anos.

    O que voc achava dessas transferncias? Eu achava muito assim, um sentimento, uma saudade que tive da escola. Os amigos que tive, os colegas que tive tambm. Eu quando fui transferido, eu chorei, de uma escola que eu gostei mais que era Caxambu, em Minas. Eu chorei porque era uma escola que eu gostei. Eu no vou dizer, eu sou uma pessoa assim, que eu senti uma escola ruim. Eu no gostei no. No, eu no, eu sempre gostei de uma escola e sempre quando fui transferido eu sempre deixei a saudade, eu deixei uma alegria com todo mundo. (Claudionor, 20 anos). E voc sentiu muito essa transferncia? Senti porque a gente t acostumado num colgio. a mesma coisa voc est acostumada a morar num certo lugar voc j conhece o ambiente, j sabe a malcia daquele bairro todinho, n! Ento depois, quando voc se muda dali e vai para outro at voc se firmar, fazer conhecimento com o pessoal, voc sente a distncia do pessoal, voc no conhece ningum, ento voc no pode puxar um assunto com uma pessoa se voc no conhece. Ento eu sentia muito, mas procurava sempre fazer aquela amizade porque a gente reencontrava velhos amigos que j passaram pelos mesmos colgios que j passamos. (Juliano, 18 anos). Eu achei que uma transferncia uma coisa assim que ... Acho que eles fazem assim porque eles vo tentando mostrar aos alunos que no s existe aquela escola que ... porque s vezes, o cara se amarra na escola. Gosta da escola, ele pensa que aquilo nunca vai acabar para ele entendeu? A vo sempre transferindo para o cara conhecer, vai conhecendo outras pela frente, entendeu? A o cara vai desenvolvendo a mente,

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    vai ver que no vai ficar sempre num lugar s, entendeu? isso que eu penso. Assim que voc viveu isso? , vivi, estou vivendo. (Ricardo, 18 anos).

    Este ltimo depoimento sugere que a Poltica de Bem Estar do Menor ao mesmo tempo que pretende oferecer um local onde o menor tem sua sobrevivncia e educao asseguradas, atravs das transferncias, lembraria ao indivduo que aquela mordomia , como dizem os internos, no est assegurada na sociedade. um aprendizado de perdas, de que nada seguro ou constante, como na verdade um grande grupo deles vai viver a vida ao ser desligado. como Ricardo est vivendo: tem 6 meses de casa e comida assegurados na Associao Irmo Esperana e depois nem ele, nem ningum, sabe qual ser seu destino. Este aprendizado se faz desde a primeira infncia nas constantes transferncias de internatos.

    Violncia Fsica e Disciplina A violncia fsica uma questo importante nos depoimentos

    dos ex-internos. No s o espancamento, como tambm o castigo arbitrrio do inspetor. O castigo geral, onde todos so culpados por uma falta cometida, particularmente visto como uma violncia que tem consequncias importantes no sujeito traz mgoa, ressentimento, revolta.

    Mas existia muita covardia por parte dos funcionrios. Covardia, espanca em excesso. Uma coisa que atinge a coletividade sempre me machucou. Eu acho que se Pedro feriu Paulo, porque Joaquim vai pagar? (...) Os castigos eram diversos. Hoje eu acredito que no se v mais. Naquela poca chamavam de agulha ficar com o dedo na parede, ou seja, o corpo a um metro da parede e o dedo na parede muito tempo. Ou ento, em p com o corpo imvel na posio de sentido, como a posio do militar, sem se mexer uma hora, duas horas se necessrio fosse. A turma toda ficou assim. Aquilo incomodava, porque geralmente era uma hora em que todo mundo ia dormir. Por exemplo, ento eles colocavam o pessoal assim de 8 horas at 10 horas da noite. E o pessoal querendo dormir, cansado e aquilo ento incomodava, criava uma certa desordem na cabea das pessoas. Certa desordem porque quando se paga por uma coisa que no se cometeu a

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    gente, difcil de se explicar, no aceita. A gente recebe a punio e automaticamente se pune porque a gente no t aceitando aquilo, mas tem que passar por aquilo. Ento de qualquer maneira, psicologicamente ns estamos tambm nos punindo, s em aceitar aquilo. Ento, porque o normal seria a pessoa dizer: Eu no fiz e no vou ficar. Mas isso acarretaria numa coisa chamada bolacha. O pau comia se fizesse isso. Ento a pessoa ficava l se martirizando pela aquela coisa. (Joo, 31 anos)

    A referncia disciplina sempre surge como sendo rgida e militar. A disciplina vem, invariavelmente, associada s formas de punio, uma vez que as pequenas faltas disciplinares so tratadas com castigos dirios. A punio severa muitas vezes no se relaciona falta cometida, mas ao rigor ou raiva do funcionrio.

    A escola era ruim. Tinha uma coroa l que era ruim. Batia nos outros na boca do estmago. Porque nego xingava na sala de aula, cochilava, dormia, fumava cigarro. Eram seis apitos. Um apito s para a geral. Se mexeu, chama e d ideia. D a segunda ideia. Chegou a terceira ideia, entra para um cubculo e s borrachada ... Bota areia na borracha e d. Eles ficavam todos marcados. Nunca apanhei disso no ... A gente fugia porque l eles batiam muito. Se no trabalhasse eles batiam muito. (Justino, 17 anos).

    Associada ideia de disciplina e castigo, vem a submisso ordem da qual parecem no poder escapar:

    Transgresso era, por exemplo: botava a gente na fila e a gente no ficava na fila, saa, no queria comer, fugia, pulava o muro e quando era pego ficava de p noite toda ali. Se arreasse, se reclamasse, apanhava mais ainda. Quer dizer, tudo isso foi revoltando, revoltando, revoltando a gente, que eu at sa do quartel. At do quartel eu fui expulso, at do quartel. Porque eu no bancava esse negcio de ordem entendeu? Da gente ficar me mandando. Eu nunca gostei disso. (Benedito, 39 anos).

    A entrada na ordem, ou, a cidadania porrete parece ser um dos principais resultados das aes educacionais nos internatos. O pior que, alm do porrete, os indivduos so to despossudos de tudo que os situe no mundo, que este atendimento no internato,

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    sobretudo nos ltimos dez anos, parece servir s para massacrar e torn-los amansados, ineptos, ou jog-los para o mundo do crime, como veremos mais adiante.

    O castigo exagerado, indiscriminado, resulta por levar revolta e ao dio. So situaes que marcam o indivduo durante o tempo de internao e aps o desligamento. A disciplina muito rgida, a submisso ordem sem direito contestao no educa, no forma os indivduos. Pelo contrrio. Toma-se dependentes, infantis, sem possibilidade de desenvolverem um pensamento crtico e, muitas vezes, incapazes mesmo de se adaptarem a uma outra instituio total, como as Foras Armadas.

    O regime de l tipo militarismo, tem que ficar em sentido, no pode se mexer. Se voc se mexer, voc anotado no caderninho preto do inspetor (...) Todo sbado o pessoal que foi para a varanda, ficava em p de uma hora s trs da tarde. Em p de sentido mesmo (...) at a hora que ele achasse que est bom o castigo. Eu achei que eles pensam que assim vai educar. Eu acho pelo contrrio, isso vai fazer com que a gente fique mais revoltado. Como no caso, muita gente tinha vontade de esganar os inspetores. S no esganava porque no tinha como atacar eles. Mas muito pessoal tinha vontade de esganar. (Joo Carlos, 20 anos).

    Um outro aspecto da disciplina existente nas instituies totais que se evidencia no internato o controle da locomoo e do uso do espao que tambm vivido como um constrangimento importante. necessrio pedir licena no s para ir ao baile noite, mas tambm para sair para visitar a me. No voltar da sada no dia marcado pelo internato era considerado falta grave e por isso no eram recebidos mais na escola. Muitos tiveram que passar de novo pelo processo de triagem e se viram jogados por alguns meses na triagem de adolescentes considerados delinquentes, at que pudessem desfazer a confuso, na qual se viam envolvidos.

    Seu espao esse aqui, sabe? Se voc passar dali, daquele porto, voc j estava cometendo um ato de indisciplina, entendeu? Voc j est cometendo. O que voc est fazendo a? Ele perguntava. Eu estou vendo a paisagem. Seu lugar aqui, vem embora. A, se voc respondesse, voc j estava, sabe ... L era um local cercado de morro. Um lugar muito

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    bonito, mas cercado de morro. Se voc estivesse em cima de morro, voc j estava- gente usava muita gria escamado. Escamado era estar longe, distante do local, dentro de sua localidade. Se eu tivesse ali, j estava escamado, era como a gente usava. (Fernando, 25 anos).

    Violncia Sexual Desde a entrada no internato o menor sofre diversos tipos de

    violncia, seja por parte dos rituais institucionais (perda de objetos pessoais, roupas, etc.), seja por parte dos colegas com quem obrigado a compartilhar seu espao e tempo. Vamos considerar aqui, particularmente, a violncia que eles vivem realizada pelos prprios colegas que j esto internados h mais tempo e tm mais idade. Ser roubado nos poucos objetos pessoais que lhe restaram no ritual de entrada algo comum e frequente. A outra violncia a qual so submetidos, e que os ex-internos deram relevncia como expresso de uma vivncia negativa do internato, foi a violncia sexual ou a ameaa de, na ronda cama de quem dorme. Sentem-se desprotegidos pelos esquemas de proteo dos agentes institucionais e, em geral, falam da questo fazendo a ressalva de que eles prprios nunca foram vtimas dessa violncia. Parece-nos, entretanto, que esta negao ocorre com o objetivo de assegurar ao entrevistador que eles so sujeito macho9.

    ... questo de eu ter passado l e ver como tratada uma pessoa, um colega. Entrar de primeira assim, as pessoas gostam de aproveitar, entendeu? Gostam de experimentar, achar que a pessoa vai dar mole e tal. violncia sexual, roubo. Fazer a cabea do cara, fazer o cara virar viado, fazer o que o cara quer. Nunca passei por isto no. Nunca deixei ningum entrar numa comigo, sempre respeitei todo mundo e todo mundo me respeitou. (Ricardo, 18 anos). Eu, quando era pequeno, tinha muito medo de algum fazer alguma coisa comigo. Por nunca, eu nunca fiz o ... sexo com o mesmo sexo. Ento eu ficava com medo de algum fazer em mim. At no ato de dormir, sabe. Ou se voc estivesse no mato, caando passarinho, se voc encontrasse dois rapazes

    9 Todos as entrevistadoras foram do sexo feminino, o que pde trazer alguma

    dificuldade na obteno desses dados.

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    grandes. Se ele no fosse uma pessoa humana, assim humano em termo de sentimento, ele ia fazer uma maldade com voc. Ento, a gente quando menor, tava sempre com medo, entendeu? Era uma barreira que a gente tinha. Voc dormindo, uma pessoa era capaz de fazer uma maldade com voc. Eu at meu perodo de 15 anos, eu tacava faca, pegava pau, tacava num colega que quisesse fazer maldade comigo. Ento, eu brigava assim ... pra me defender por causa de uma maldade, sabe. Porque a gente estava sujeito tudo. Depois que voc vai crescendo, vai tomando um corpo, voc dialogava mais, encarava mais os grandes, voc j tinha um respeito. Mas fora isso, era uma situao muito chata .. Eu apanhava muito na briga. Mas tambm eu no dava o brao a torcer. (Fernando, 25 anos). Eu ainda tenho um pouco de lembrana que eu gostei na minha infncia, e um pouco de desavena, em vista que voc no podia dormir direito. Eu no sei; quando eu era pequeno o pessoal me achava muito bonito. Ento, l o pessoal assim, s criado no meio de homem voc sabe, n! Tem as professoras, mas no a liberdade que a gente tem com a professora, no a liberdade que ns temos com um homem. Ento aquele lance, n! O pessoa me achava ... pelo menos eu penso assim, como muitas pessoas j falaram que eu sou bonito, ento, o pessoal me achava bonito, sabe, quando eu era pequeno. Ento queria fazer assim ... eu no podia dormir de bruos, no podia dormir assim, se um dormisse de bruo de noite algum ia me fazer salincia sabe a gente falava salincia. Ento a noite algum ia querer fazer coisas erradas comigo n? Ento eu tinha que dormir de rosto para cima. Os prprios alunos, os mais fortes, geralmente os que no tm nada na mente pra fazer. Eu acho que achavam que aquilo era o divertimento, sei l. Ento, voc no conseguia dormir, tinha que dormir reto, de vez em quanto dormia legal, porque tinha um inspetor, uma ronda, porque l sempre botam trs rondas pra no haver essas coisas que vinham acontecendo. A pessoa chega ir na cama do outro pra fazer safadeza, no deixar o outro dormir. Ento eu no dormia direito e at o ltimo colgio que eu fui, eu no conseguia dormir direito. Sabe voc tem que dormir de rosto coberto pro pessoal no botar o pnis em teu rosto entendeu? Essas coisas assim, num ficar fazendo essas besteiras com voc. No ltimo colgio que eu passei, o pessoal cortava at a cala do pijama pra poder fazer

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    sacanagem, voc dormindo voc no t nem ligado nisso, voc t com sono, n? Ento muita coisa, isso a, eu guardo assim com dio sabe, mas s vezes eu acho que o culpado no o aluno a prpria disciplina do inspetor, porque podia dar mais liberdade ao aluno, porque l era assim: s podia sair de 15 em 15 dias ... (Joo Carlos, 20 anos).

    A violncia sexual um assunto pouco considerado nos estudos sobre os internatos. Nesses estabelecimentos, as autoridades consideram este tipo de violncia como um desvio do comportamento do interno e a questo tratada somente pelo ngulo de punir o indivduo desviante (Alto, 1990). Raros so os internos ou ex-internos que percebem que a dinmica institucional favorece a existncia da prtica de violncia sexual.

    A experincia homossexual, vivida como uma violncia sexual, certamente marca os indivduos de diversas maneiras. Um relato muito significativo de um dos informantes nos fala, no s das relaes sexuais entre os colegas, entre colegas e funcionrios, como da prostituio masculina. No caso, como podemos ver no seu relato a seguir, a prtica de prostituio se iniciou quando ainda estava internado e continuou aps o desligamento.

    Olha, as lembranas marcantes que eu tenho (do internato) ... nenhum sabe. ... s o ... quer dizer, aqui fora existe o homossexualismo, o txico, estupro, a bandidagem ... A nica coisa que me atingiu foi o homossexualismo, sabe? (...) Eu comecei a frequentar a Quinta da Boa Vista, eu gostava de ir de dia. De noite eu ia para l com outros homens, contatos, s vezes por dinheiro, entendeu? Foi onde eu me fracassei mesmo ... Tava ainda na FUNABEM, mas a FUNABEM at hoje no sabe de nada. Pra FUNABEM, isso foi uma coisa que me marcou pessoalmente. Ex-aluno nenhum tem nada a dizer a meu respeito. (...) L sempre teve isto. (...) Porque l d o termo que eu no sei se posso usar aqui, encubado. O cara homossexual, ou viado, mas ningum fica sabendo. encubado, no sentido de ningum saber, ele , mas no faz ... No, ele faz, mas perante as pessoas ele um macho (...) Muitos no fazem para ganhar dinheiro. Faziam porque gostavam. (...) Ento voc saa para namorar e no pintava uma namorada, voc tinha um lado fraco da vida e a se prostitua. (...) Eu no fazia mais pelo dinheiro, eu fazia mais

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    pelo carinho, afeto, n? Eu conquistava o corao da pessoa, a pessoa se aproveitava de mim, eu tambm me aproveitava e tinha relao. (Csar, 30 anos).

    Apesar de negar inicialmente que se prostitui por necessidade de dinheiro, mais adiante no seu depoimento, ele fornece dados claros que confirmam sua necessidade de ganhar dinheiro, alm do prazer que ele possa tirar deste tipo de relao.

    Ento a eu comecei a trabalhar e continuei com o homossexualismo e por infelicidade minha eu conheci o Mauro, ali na Candelria. Eu trabalhando ali, ele parece at com o Ivon Curi. Com ele eu tinha vontade, eu comecei com o homossexualismo e passei a ser homem bissexual o homem que gosta de homem e gosta de mulher, entende? O Mauro foi uma pessoa que eu tive relao com ele durante 6 anos. Eu acabei com ele agora. Com ele foi por dinheiro. Ele me viciou pelo dinheiro... Mas eu passei a gostar dele s que ele no entendeu ... Pagava... Mas parei com ele porque ele j tem cinquenta e poucos anos. Tem 54 e eu tenho 30. Em vez de ser eu mais macho do que ele, ele que tava ... Porque o lado de txico dele. Ele faz as trs coisas: fuma, bebe e transa. Quer dizer, voc que um cara que s transa, voc no tem condies de pegar um cara desses. Voc manter relao sexual com ele, na hora a sua potncia ... Voc transa com o cara, transa e na hora o cara no ... Eu resolvi parar com 30, parar porque para mim, a famlia que existe, a minha me morreu. (...) O Mauro nunca me ajudava em emprego, sempre que fiquei desempregado, eu continuava transando com ele, mas ele me explorava, ele aproveitava do meu fracasso; eu ligava para ele, queria dinheiro, ele sabia que eu estava duro, a transava da forma dele, me dava grana, sempre aumentando o dinheiro, pagando muito a mais que os outros caras. Porque esses caras pagam mais. No caso, quando voc tem uma pessoa certa, eles pagam mais, eles te oferecem o sexo dele, no o que voc faz (...) Os alunos procura como Refugio, como eu falei, em termos de homossexualismo. Tudo hoje em dia na vida do ser humano um Refugio. Voc procura um Refugio para preencher um vazio. (Cesar, 30 anos).

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    Ladro, Viado, Estudante ou Trabalhador A representao crtica e de sofrimento da experincia de vida

    nos internatos da FUNABEM resumida de forma dramtica por um dos entrevistados. Poucos entrevistados falaram sobre o uso de txico no internato. Aqueles que abordam esta questo, se referiram a ela como sendo uma prtica comum e veiculada pelos colegas. Ele fala, em tom de revolta e sem esperana para o futuro, das presses as quais um interno pode sofrer dentro dos internatos da FUNABEM e frente s quais no encontra qualquer possibilidade de escapatria ou fuga. Frente aos constrangimentos e violncias, tanto dos inspetores como dos colegas, ele nos d um retrato do desespero a que esta situao de inteno pode levar o indivduo.

    FUNABEM, p o cara t l, p o cara tem que ser forte, tem que ser forte mesmo! Porque l, o cara sai de l ladro, ou o cara sai viado. Ou o cara, sai estudante ou trabalhador. Porque l os cara faz fora mesmo, insiste mesmo: a fuma isso a um baseado a e tal. O cara vai, no t afim, diz. O cara tem que ser forte mesmo, segurar mesmo porque se o cara fumar, a vida dele acabou. Fumou a primeira vez, a no tem no. Daquele fumo que voc me deu naquele dia. Chega dar um. Dali comeou a vida do cara. Acabou o trabalho, acabou o estudo, agora s quer saber daquilo, s daquilo. P viado, a mesma coisa. P, se o cara for at l, p os cara vo comear a me circular, ficar olhando aqui assim para ele. P, esse cara tal, esse cara isso. Se ele deu mole pode crer, se ele deu bola, danou. P, agora eu entrei pr l, entrei na minha. Briguei l umas cinco vezes s. Briguei na FUNABEM. Briguei por causa de bola. Briguei s por causa de parada boba l. (...) Castigo era s cubculo. Um quarto escuro aqui assim. Botava o cara l e esquecia do cara (...) Fugir? Pr que? Eu ia pra onde ... O negcio enfrentar a barra do jeito que ela . (...) (A relao com os inspetores) Com alguns era boa. Eu j quase cometi uma morte j. Ento eu fui e pensei duas vezes. No p, nem enfrentei a vida ainda, nem sou pai ainda, nem casei ainda, porra j vou pra cadeia j. Vou deixar passar esta. Eu ia cometer um crime l na FUNABEM. A pensei duas vezes. Se eu no penso, se ajo por instinto, que nem animal, hoje eu tava a preso por assassinato. Porque FUNABEM foda. Se o inspetor bater uma vez, assim, bateu uma vez, o cara deixou, ele servou. Agora ele bateu o cara

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    reagiu, a t ele j tica logo na atividade, logo. Ento p, os coroas l, p, t certo, p, s grande e tal, os cara vieram me bater. P eu falo: O ... acabou j, p, p, eu grando meu corpo apanhando. P, os cara me bater na frente de molequinho aqui assim, passando a maior vergonha, no! Eu no posso deixar os coroas vir assim em dois, n. Vem em dois ou em trs, os caras coroas assim grande, p os coroas l um s no vai dar, ento eles vem em dois e vem em trs. A ento um l me agarrou l. A eu p, o coroa magrinho, eu falei se eu pegar ele, eu vou matar ele. P, ento ele ficou me agarrando pela camisa, l tal. A eu fiquei s assim: licena a ... A veio outro, segura esse cara a, que esse cara t folgado pr caralho, esse cara t metido pra caramba. P, a veio de dois n, ento t, eles me agarraram, me deram um. P, tinha um pedao de ferro assim, eu fui assim e falei se pegar esse ferro aqui, se eu roubar ele aqui assim eu vou matar esse ou aquele ali. Ento eu fui e falei: Se vocs quiser conversar, vocs vo ter que me largar e conversar. No, tu vai pro cubculo agora! P se voc acha que eu devo entrar aqui, fica comendo comida sacaneada, fica branco ali dentro no. E eu no vou entrar ali dentro no. Ento a gente te bota ali. A eu cheguei e disse: tenta a. Eles vieram, fui e peguei aqui assim, p, peguei esse pedao de ferro aqui, assim p, o coroa me deu a maior linha, assim pra mim acertar a cabea dele, quando eu ia acertar, eu pensei: p, no, t muito novo pra cair na cadeia, no casei ainda, no aproveitei a vida e j vou ficar preso. Eu fui e larguei o pau e eles foram e me deram ideia. D ideia conversar, p, na moral, conversar calmo. Eles queriam , no nada disso e tal. A aceitei a ideia dele e fiquei numa boa. (Marcelo, 18 anos).

    Todas essas violncias, narradas acima, vividas no cotidiano do internato, sem que o menor tenha direito a fazer queixa, denncia ou escapar desse ambiente desumano, certamente marcam uns e outros mesmo que de forma diferente. O que podemos dizer na presente fase deste estudo, que alguns, em geral, mas no necessariamente, aqueles que no tm qualquer referncia familiar, so mais massacrados. Certamente os mais sensveis e aqueles que no descobrem uma forma de conviver com esta violncia, se revoltam, se confrontam e se expem ainda mais ao porrete e aos

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    atos arbitrrios dos funcionrios, muitas das vezes, com a cumplicidade das autoridades locais.

    3. Consideraes sobre a homologia das representaes acerca das estruturas das instituies totais

    O conceito de instituio total importante neste trabalho no s porque partilhamos da ideia de que o internato tem o funcionamento de uma instituio total10, e por conseguinte marca fortemente a criana e o adolescente que ali vivem, como tambm por ser uma caracterstica de outras instituies pelas quais os indivduos passam aps serem desligados dos internatos.

    As instituies totais, conforme estudo de Goffman, referem-se, notadamente, aos manicmios, s prises e aos conventos. Outras instituies, apesar de no terem as caractersticas indicadas pelo autor citado, tm, entretanto, uma estrutura de funcionamento semelhante. Neste sentido, fazemos referncia s Foras Armadas, neste estudo, que apesar de no ser uma instituio fechada, seu funcionamento se assemelha ao de uma instituio total. Dessa forma gostaramos de fazer algumas consideraes preliminares, no sentido de como a ideologia subjacente ao funcionamento do internato (nesta dcada) inculca padres de comportamento e/ou induz o indivduo a se encaminhar na vida, de tal forma, que tender a se manter ligado s instituies que tenham caractersticas totalizantes.

    a) Seguir as Foras Armadas o sonho maior inculcado como ideal dentro do internato e considerado a justificativa principal para se disciplinar precocemente as crianas e adolescentes. Isto feito de maneira explcita e veiculado atravs dos funcionrios que lidam diretamente com o aluno (Alto, 1990).

    b) Levantamos ainda a hiptese de que o funcionamento institucional, alm de indicar para o interno que ele um marginal, j o prepara para enfrentar a vida com as punies usuais utilizadas pela sociedade para aquelas pessoas consideradas marginais. Muitos estudos (Alto, 1990, Guirado, 1986) corroboraram para esta

    10 Guirados no seu livro Psicologia Institucional, 1989, p. X, classifica as

    instituies de menores como instituies totais.

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    hiptese ao analisar no s pressupostos institucionais em relao ao menor, como se fossem marginais, mas tambm pelo funcionamento disciplinar, punies e burocracia que buscam mostrar ao indivduo o que uma delegacia, um julgamento ou uma cadeia.

    c) Temos algumas indicaes que, apesar de serem dados ainda pouco organizados, nos mostram como o indivduo tratado como louco quando expressa seu sofrimento pelo confinamento ao qual submetido ainda criana, ou faz reivindicao e se revolta frontalmente com as autoridades institucionais. O livro autobiogrfico de Collen oferece dados ricos neste sentido (Collen, 1987).

    Pela delimitao de nosso estudo atual, no nos cabe aqui fazer maiores consideraes sobre estas graves questes que levantamos, mas faremos consideraes que corroboram para esses indicadores acima citados, analisando a vida das pessoas que saem dos internatos.

    No nosso estudo sobre o encaminhamento na sociedade de jovens que viveram em internatos tivemos a oportunidade de entrevistar aqueles que participam ou participaram das Foras Armadas e aqueles que esto na priso. Tivemos informaes sobre a existncia de outros que esto em hospitais ou colnias psiquitricas, mas que por dificuldades inerentes s condies de pesquisa no chegamos a explorar estas situaes. Assim, falaremos aqui especificamente das homologias das representaes das estruturas das instituies totais considerando o internato, a penitenciria e as Foras Armadas.

    Homologia das Estruturas das Instituies Totais A homologia das estruturas do internato e do quartel to

    marcante que os entrevistados ao falarem dessas instituies, muitas vezes, no minavam uma pela outra, nem sempre percebendo o lapso que haviam cometido. Uma das primeiras caractersticas que se do conta, no que se refere s semelhanas do internato com o quartel e com a priso, diz respeito estrutura hierrquica. A percepo parcial ou global desta estrutura lhes permite considerar que se trata do mesmo tipo de instituio total vivenciada no internato. Desta forma

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    a situao nova que se lhes apresentava era identificada com a anterior, fazendo com que rapidamente pudessem saber como lidar com a situao. Vejamos nos primeiros exemplos o quartel e no ltimo, a priso:

    Fiquei em casa esperando passar o tempo. A veio o quartel, carreira militar; tentei pensando que era uma coisa nova. Mas nada novo. Era a mesma coisa. Pelo que eu pude ver da vida militar para a vida do colgio, onde eu estava, era bastante parecido. Na disciplina, na maneira como eles tratavam a gente, parecidssimo. Tanto que eu conversei com o Heraldo uma vez, ele tambm serviu, a a gente fomos juntando as peas pra ver o que dava. A fizemos uma brincadeirinha: botou cabos no lugar de monitores, sargento no lugar de inspetores, e botava o chefe de disciplina no lugar do comandante da companhia. Fica parecidssimo mesmo! E o coronel no lugar do diretor. No caso,