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Memórias do Movimento Indígena do Nordeste

Memórias dos Índios no Nordeste

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Memórias do Movimento Indígena do Nordeste Brasileiro

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  • Memrias do Movimento Indgena do Nordeste

    Percursos Cartogrficos

    movimentos Indgenas no Nordeste

    PANKARARU

    XOK

    KARAPOT PLAKI-KARIRI-XOC

    TUPINAMBPATAX HHHE

    PATAX DE BARRA VELHA

    PATAX DE CUMURUXATIBA

    movi

    ment

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    dest

    e

  • Apresenta

    Memrias do Movimento Indgena do Nordeste

    (orgs) Gabriela Saraiva de Mello e Sebastin Gerlic

    2015

    Prmio Memrias BrasileirasRealizao

  • Deste lado do livro, atravs de uma chamada no vento,

    as vozes indgenas lanam mensagens para refletirmos sobre o

    Movimento Indgena do Nordeste. As MEMRIAS so a esperana do futuro.

    A ONG Thydw agradece especialmente a todos os indgenas que protagonizaram este livro; o 23 ttulo da coleo: ndios na Viso dos ndios.

    Esta publicao resultado da premiao do Instituto Brasileiro de Museus IBRAM - via o edital pblico Memrias Brasileiras, que viabilizou a impresso de 1.000 exemplares.

    A realizao desta obra da ONG Thydw que promoveu a composio deste livro coletivo, atravs de um projeto coordenado por Sebastin Gerlic; e que contou com importante sinergismo como o Programa Mensagens da Terra; e o apoio artstico da OCA ABERTA e de DA TERRA PRODUES.

    O ttulo est divido em dois grandes captulos, que se complementam e se enriquecem mutuamente:

    Memrias do Movimento Indgena do Nordeste; editorado e organizado por Gabriela Saraiva de Mello e Sebastin Gerlic. Percursos Cartogrficos Movimentos Indgenas no Nordeste; editorado e organizado por Laila Thomaz Sandroni, Bruno Tarin e Jaborandy Tupinamb.

    A direo artstica e a finalizao do livro de Helder C. Jr.Na capa do Memrias temos a tinta analgica da Rita - Irny Tupinamb e a tinta digital do Helder.

    Colaboraram tambm nos processos: Potyra T Tupinamb, Nynh Gwarini Tupinamb e Amatiry Tupinamb. Maria Pankararu e Fernanda Martins.

    Uma verso gratuita est disponvel em: www.thydewa.org/downloads

    E brincadeiras da socializao do livro em: www.facebook.com/memoriasindigenas

    Quem quiser usar contedo deste livro, com fins educacionais, atravs de trechos, ou copi-lo na sua ntegra, sinta-se vontade! Aproveite ao mximo sua criatividade e some na valorizao das culturas indgenas.Se fizer uso do contedo deste livro, voc dever manter esta mesma licena. Lembre-se de citar o nome completo do livro e dar os crditos ao/ autor/a. Compartilhe conosco a sua verso! Ficaremos felizes de conhecer o resultado do seu trabalho.Para qualquer atividade com fins comerciais, voc dever fazer uma solicitao prvia atravs do email: [email protected] No permitimos nenhum tipo de uso para empresas que desrespeitam a Me Natureza.

    A palavra indgena sempre existiu Graa Grauna (Potiguara/RN) 4

    Outra viso da histria Luciano Pankararu (PE) 6

    iati-lha (nossa casa) Maike Witx Fulni- (PE) 8Tupinamb: Uma memria de lutas Katu Tupinamb (BA) 12

    Rapadura Vermelha Nhenety Kariri-Xoc (AL) 14

    Na Canoa da Unio Joel Braz Patax (BA) 16

    Tup por ns! Jendson Karapoto (AL) 18

    Memrias que educam Elisa Pankararu (PE) 19

    O direito da terra Marlene Xahey Patax (BA) 22

    Memrias no se queimam! Reginaldo Kanind (CE) 24

    (R)existncias - resistncias Marleide Quixel (CE) 26

    No s migalhas! Sim terra! Joo Pankararu (PE) 28

    Amor sem matria Alexsandro Potiguara (RN) 30

    A conquista da terra da Gia Nilton Kanind (CE) 32

    Ps de Curupira Ademrio Ribeiro (Payay/BA) 34

    Educar com nossos valores May Patax Hhhe (BA) 36ISBN: 978-85-901957-6-4

  • Entre os indgenas de vrias partes do mundo, a palavra um elemento sagrado. Na viso Guarani, por exemplo, a palavra tem alma. Palavra e identidade se confundem; palavra que passa de pai para filho, dos avs para os netos; palavra carregada de gua, palavra vinda da terra, palavra aquecida pelo fogo, palavra to necessria quanto o ar que se respira; palavra que atravessa o tempo,

    Entre os Chiapas, a palavra indgena implica o grande desafio que enfrentar as jornadas com bravura e alegria. [...] No toa que esse modo de pensar fortalece tambm o Movimento Revolucionrio Indgena, no Mxico. Guiados pela fora da palavra que sempre existiu, os Chiapas continuam vigilantes pelo caminho; em busca de democracia, igualdade e justia e determinados em fortalecer os laos com a Me Terra.

    Porque a palavra tem alma, guardo na memria o espanto de um pequeno grupo de alunos universitrios diante de uma carta de autoria indgena. Foi no incio da dcada de 80, na Universidade Federal de Pernambuco onde fiz (consciente dos meus direitos e deveres) praticamente tudo que foi possvel a uma mulher indgena fazer: conquistar, em meio aos preconceitos, alguns diplomas no campo das Letras.

    Recordo-me da dificuldade que foi enxergar as letras borradas e meio apagadas de uma carta indgena mimeografada que conseguamos xerocopiar. Fomos tocados pelo esprito de bravura; pelo menos, foi o que um pequeno grupo de tmidos universitrios conseguiu intuir da carta mimeografada do Chefe Seatle. Sua carta ganhou o mundo e alimentou outros textos; a palavra indgena se multiplicou e se multiplica; assim, como acontece com as boas sementes. Porque as boas palavras vencem o tempo, guardo na memria os ensinamentos desse Chefe; suas palavras muitas vezes alimentaram as minhas conversas com o meu pai, sempre que voltvamos do roado, cada um com um feixe de lenha na cabea, no interior de Pernambuco.

    Na dcada de 80, outros textos de autoria indgena marcaram a minha passagem de estudante universitria; em uma carta de Daniel Cabixi, me reconheci indgena e excluda na cidade grande; na luta para sobreviver entre dois mundos. Busquei tambm nessa escrita o norte para trilhar o caminho da poesia, dos ensaios; alimentar o dilogo com estudantes, falar de esperana com os filhos e seguir a cano da vida. Na mesma poca, tive a oportunidade de ouvir (de bem pertinho mesmo, como se diz no Nordeste) a histria do Movimento Indgena no Brasil, contada em viva voz pelo lder Marcos Terena.

    No incio da dcada de 90, quase no havia notcias de publicaes de autoria indgena. Predominava a voz do outro, no a voz nativa. Nessa poca, dediquei-me ao estudo de lendas e mitos indgenas em obras destinadas ao chamado pblico infantil e juvenil; obras de autores

    brasileiros no indgenas, que revelassem em seus textos uma viso mais condizente com a realidade indgena.

    Preocupada com as frentes de expanso que tendem a mutilar a memria dos povos indgenas, retornei ao meio acadmico no final da dcada de 90 a fim de compartilhar as inquietaes acerca de literatura e direitos humanos; especificamente, refletir o direito literatura indgena. Nesse perodo, encontrei uma publicao que atraiu a minha curiosidade pelo texto provocador, na medida em que o prprio autor se exps ao relembrar alguns casos que ocorreram com ele ao chegar em So Paulo. Refiro-me ao livro Coisas de ndio, do parente Daniel Munduruku, publicado pela Companhia das Letrinhas; essa obra me aproximou das histrias contadas e escritas por Yaguar Yam (Sater Mau), Olivio Jekup (Guarani) e Ren Kithulu (Nambikuara). Da, fui catando outros textos de autoria indgena em livrarias, sebos, feiras, Internet, encontros literrios e indgenas. Nesse percurso, conheci a poesia de Eliane Potiguara; tempos depois, recebi dela o convite para fazer a apresentao da sua obra Metade cara, metade mscara, publicada pela Editora Global.

    Em dezembro de 2002, quando escrevi o livro Contrapontos da literatura indgena contempornea no Brasil, as notcias em torno dos povos indgenas mostram que o Movimento Indgena no Brasil cresceu em vrios aspectos, apesar dos ndices alarmantes de violncia.

    Em 2011, na Universidade Metodista de So Paulo, tive a oportunidade de aprofundar os estudos literrios quanto aos usos da lei 11645/08, do ponto de vista indgena.

    No censo demogrfico do IBGE, em 2010, a populao indgena de 896,9 mil. Existem 305 etnias e 274 idiomas. No Nordeste, 208.691 mil indgenas; no Brasil, 315.180 sobrevivem nos grandes centros urbanos;

    Na educao: centenas de professores indgenas colaram grau. crescente o nmero de especialistas, mestres e doutores em diferentes reas;

    Na literatura: dezenas de encontros literrios de abrangncia nacional e internacional trazem repercusso ao crescente nmero de escritores e escritoras indgenas. A publicao de obras indgenas ultrapassa a casa de milhares de livros destinados em grande parte ao pblico infantil e juvenil brasileiro. Na dcada de 90, a busca por obras de autoria indgena correspondia a procurar por uma agulha no palheiro.

    Os povos indgenas continuam sofrendo uma srie preconceitos. Apesar da intolerncia, a luta continua. A busca deve ser incessante em torno da voz indgena, do ser indgena protagonista de sua prpria histria. Meu intuito com este trabalho foi e ainda mostrar aos no indgenas o que os nossos sbios intuem desde sempre: que a nossa palavra indgena sempre existiu; existir sempre.

    Batik: Braslia Morena (Potiguara)

    Graa Grana (povo Potiguara, RN)[email protected]

    (*) Trecho extrado do meu livro: Contrapontos da literatura indgena contempornea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edies, 2013.

    A palavra indgena sempre existiu*

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  • Em minha formao escolar fui forado a acreditar em uma verso da histria sobre os povos indgenas do Brasil, onde vrios nomes citados nela so vistos como nossos heris. Conhecendo outra verso dessa histria percebi uma realidade completamente diferente; clara a inteno dos historiadores em esconder a realidade; que esses heris foram nossos principais executores, matadores de indgenas. Percebo que a literatura imposta pela educao controladora composta de mentiras idealizadas por no ndios e assim foram uma histria distorcida da realidade. Aprendi a me identificar como ndio na minha infncia, vendo lderes tais como o cacique Joo Binga e a Quitria Binga incentivando a participao dos jovens em rituais e nos movimentos indgenas. Vejo o preconceito que os povos indgenas de Pernambuco sofrem por conta de no terem uma aparncia semelhante a nossos irmos do norte do Brasil pois na sociedade de hoje em dia, a ideia de ndio formada por caracterizao e no por tradio. A histria dos ndios de Pernambuco marcada por preconceito da parte de pessoas mal informadas, que acham que o nordeste apenas territrio de sertanejos, e desconhecem a histria de nossos povos e de nossas lideranas que, por amor causa indgena dedicaram a maior parte de suas vidas a defender seu povo, procurando fazer valer nossos direitos prescritos em nossa Constituio Federal, e com sua sabedoria organizam, sem burocracias, o comportamento pessoal e espiritual de seu povo.

    Outra viso da histria

    Como no lembrar das vrias lutas que os povos indgenas de Pernambuco travaram em toda sua existncia? No seria nem um exagero dizer que foram guerras de geraes. Nada fcil para povos que alm de se preocuparem com seus problemas internos de organizao ainda tm que lutar contra pontos de vista diferentes de no indgenas que a evidente inteno de nos prejudicar e pr fim nossa existncia. Com certeza, ainda vamos ver muitas lutas e resistncia contra um pas que ainda no aprendeu a respeitar o ser humano que eles batizaram de ndio com a inteno de homogeneizar povos de culturas e lnguas diferentes. Os povos resistem com f em um nico Deus e em uma fora iluminada, nossa Fora Encantada. Da tiramos a fora necessria para vencer muitas lutas e obter muitas conquistas. Ainda existe muito o que reconquistar, pois no mudou muito algumas situaes e problemas que aconteceram com a invaso de nossas terras a mais de 500 anos atrs. Os problemas ainda so evidentes e muito presentes na vida dos povos indgenas de todo o Brasil. O caminho para continuar avanando e reconquistando fortalecer o movimento e nunca abaixar a cabea pois a atitude de guerreiros bem intencionados pode e vai mudar a histria desse pais.

    Luciano Henrique Pankararu [email protected]

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  • A oportunidade que nos dada sobre o nosso local de nascimento, deve ser encarada como uma experincia nica e transformadora daquilo que somos. Pensando nisso, me sinto uma pessoa privilegiada ao nascer e crescer entre o meu povo, os Fulni-. Posso parecer um tanto vaidoso ao afirmar isso, mas acredito que no sentido que emprego essa vaidade ela sadia. Alis, deveramos cultivar certas vaidades, quando elas nos afirmam e nos ajudam a ter orgulho da nossa cultura. Sinto-me um privilegiado pela famlia onde nasci e a educao familiar que recebi, pelo povo onde nasci e pelo ambiente cultural que me foi proporcionado, da terra onde cresci e de tudo aquilo que ela me ofereceu como aprendizado, enfim... Por muitas outras coisas que poderia ficar aqui citando como adjetivos que atribuo um grau qualitativo.

    Entre as vrias alegrias que tive na vida, conviver com determinadas pessoas que me

    cercaram desde a minha infncia foi algo muito marcante e uma dessas pessoas era a minha bisav. Lembro que em meados dos anos 90 estudava numa escola da aldeia que ficava perto da sua casa. Compartilho com o olhar e o peito cheio de satisfao com vocs a histria que a minha bisav me contava: como nos instalamos no lugar onde se encontra a atual aldeia sede.

    Antes de comear a contar a histria, gostaria de dizer o nome de algumas pessoas

    as quais so os responsveis diretos pela histria que tanto ouvi e pedia para a minha bisav recontar, tantas e tantas vezes. O pai da minha bisav: Jos Verssimo, certamente o principal responsvel para a nossa aldeia se localizar no atual espao em que se encontra. A sua esposa, Maria das Dores, pela coragem de segui-lo sempre e aceitar as suas decises, no de forma submissa mas, sim, pelo grau de confiana que os envolvia. Confiana, uma palavra pequena, porm, com uma fora de unir e reunir um povo, talvez hoje esteja em desuso, mas isso no vem ao caso. A nossa concentrao deve ser de que a palavra confiana foi um determinante para o povo Fulni-. Rita era a minha bisav, carinhosamente chamada por netos, bisnetos e tataranetos por v Ritota. Mulher secular, morreu com mais de cem anos. Tive a oportunidade de vrias vezes tomarmos caf e almoarmos juntos, at mesmo porque a escola que frequentava ficava perto da sua casa, ento, as minhas visitas sua casa eram quase que dirias. Conservava uma memria admirvel, onde vrias lembranas se faziam presentes na sua cabea de poucos cabelos brancos; a memria da sua infncia e histrias aprendidas, todo esse acervo guardado embaixo daqueles cabelos de fios longos e pretos, ela gostava de compartilhar com todos os seus familiares, principalmente netos e bisnetos.

    Lembro de quando a minha v Ritota contava sobre as perseguies sofridas pelo nosso povo, perseguies praticadas pelos coronis para expulsar o povo Fulni- do seu territrio. Por muito tempo, isso foi uma atividade praticada sem consequncia nenhuma para o praticante, mas com vrias consequncias fsicas e psicolgicas para quem as sofria. Um perodo que, nas prprias palavras da minha bisav, se resumia assim: nessa poca se caava ndio como se caa qualquer outro animal. Isso um relato de perseguio, sofrimento, luta pela vida e resistncia tnica. Pois bem, o ndio Jos Verssimo (pai de v Ritota) era um lder dentro do povo Fulni-, homem trabalhador e de muita honestidade. A aldeia Fulni-, antes, se localizava onde hoje se concentra boa parte da rea comercial de guas Belas. Suas casas todas de palhas eram renovadas constantemente. Quando as palhas das casas comeavam a ficar ralas (precisava ser trocada a sua cobertura), os ndios subiam a serra do Comunaty para buscarem a palha (matria prima necessria para a renovao das casas). Cada ndio responsvel por uma famlia subia a serra e trazia a quantidade necessria para refazer a casa da sua famlia, e assim saam em mutires de homens para a serra. Foi assim que a minha bisav me contou, porm contou mais, disse que na maioria das vezes as casas eram renovadas no por causa do desgaste devido ao tempo, mas sim, porque os caadores de ndios queimavam as suas casas. Quando isso acontecia, as famlias se espalhavam em distritos de cidades vizinhas a guas Belas, distritos da cidade, ou at mesmo para outras cidades, mas sempre voltavam e refaziam a sua aldeia no mesmo lugar, at acontecer das suas casas serem queimadas novamente. Na poca em que isso acontecia, a minha bisav ainda era uma criana, tanto que, o seu pai tinha que sair com ela nos braos nas suas fugas para outras cidades.

    Numa dessas fugas, a famlia de Jos Verssimo foi parar num lugar chamado Tanquinho, distrito de guas Belas, divisa entre os estados de Pernambuco e Alagoas. L se estabeleceu na fazenda de um senhor onde ficou prestando servios de agricultura nessa fazenda. Como ele era um homem bastante trabalhador, logo o dono da fazenda o deixou fazer o seu prprio roado e com isso, ele cultivou: milho, feijo, batata, abbora, fumo, algodo, entre outras culturas. Por ser um lder dentro do povo Fulni-, que durante esse perodo era pouca a sua populao, a sua casa sempre recebia visitas de outros ndios que se encontravam de forma espalhada pela regio. Essas visitas recebidas eram de suma importncia para manter a unidade do povo, mesmo que ainda espalhados. Os seus visitantes, tanto traziam notcias de como se encontravam as demais famlias, como tambm levavam at elas os pedidos feitos pelo seu lder, Jos Verssimo. Uma rede de comunicao se formava atravs das visitas recebidas, at o dia em que se juntavam e levantavam a aldeia novamente e todas as famlias Fulni- tornavam a estar juntas no mesmo espao fsico.

    iati-lha (nossa casa):.

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  • Maria das Dores, a sua esposa, era a responsvel principal pela educao das crianas, tarefa comum entre as mulheres da comunidade. Por isso, quando ele tirava o seu cochilo tarde, ela tirava as crianas de perto para no o acordarem. Assim que acordava, voltava s suas tarefas no roado e quando chegava em casa, ajudava a sua mulher com os afazeres da janta. Numa determinada tarde, como de costume, depois do almoo, Jos Verssimo foi tirar o seu cochilo, Maria das Dores pegou as crianas e as levou para distante da rede do marido para que ele pudesse dormir um pouco. At ento, nada que sasse do costume ou da rotina da famlia. Quando Jos acordou, procurou a sua esposa e os seus filhos nos arredores da sua pequena casa e quando os encontrou, pediu Maria arrumar as coisas (bagagens) e as crianas que eles iriam partir. Foi at o roado e saiu colhendo milho e feijo, mandioca, batata, fumo, algodo, tudo aquilo que ele podia carregar. Foi at o senhor dono da fazenda e comunicou-lhe da sua partida. Este insistiu que ele ficasse mais um pouco, que viajasse depois de dois dias, ou ento no dia seguinte, mas Jos estava decidido a partir naquela mesma tarde. Voltando para casa, encontra Maria com tudo arrumado, mas essa fazendo-lhe um pedido para que partissem no dia seguinte, ele ento disse-lhe que deveriam partir ainda naquele mesmo dia. Pegou dois burros que o dono da fazenda lhe emprestara e os carregou com tudo o que era possvel para a sua viagem. A famlia de Jos Verssimo, jamais voltaria quela fazenda na condio de refugiados expulsos do seu territrio. Enquanto caminhava, contou sua esposa que estavam voltando para a sua casa, estariam indo para um lugar que jamais os brancos iriam expuls-los novamente, lugar onde o seu povo poderia viver com tranquilidade daquele dia em diante: estariam indo para o Alto do Sonhim.

    Contou-lhe que naquela tarde tivera um sonho e no seu sonho ele viu o lugar onde deveria ser levantada a nova aldeia. Chegaram ao Alto do Sonhim j anoitecendo. Ento, Maria das Dores foi fazer um fogo e preparar alguma coisa para comerem, enquanto Jos Verssimo ficou organizando as redes para dormirem. Fixaram-se naquela noite embaixo de um juazeiro, onde comeram e dormiram. No dia seguinte, o ento lder Jos avisou para a sua esposa que iria avisar aos outros onde estavam se fixando e os chamaria para virem se juntar sua famlia. Assim, uns foram avisando aos outros, caminhando desde distritos da cidade de guas Belas, at cidades vizinhas e outros distritos. Em dois dias toda a populao de Fulni-

    se encontrava no Alto do Sonhim. O seu lder, ento, reuniu alguns homens e foram serra buscar as palhas para fazerem as suas casas e, em menos de uma semana, todas as famlias j estavam com as suas casas e o padro de comunidade Fulni- formado novamente. Todo dia era uma festa na aldeia, agradecendo o lugar e a tranquilidade que ali reinava; os roados e as plantaes, as caas e os peixes pescados, tudo era motivo de agradecimento na nova morada, na iati-lh.

    Passados alguns anos desde a instalao da aldeia no Alto Sonhim, eis que Jos Verssimo chama Maria das Dores e a avisa que em breve ele a deixaria, iria se juntar aos seus antepassados. Ela no se conteve e as lgrimas molharam o seu rosto numa demonstrao da dor que aquele aviso lhe causara. Comeou-o a interrog-lo com vrios porqus sem muito xito para as respostas que esperava. No fazia tanto tempo que haviam se fixado no lugar em que ele sonhou onde deveriam se estabelecer. Ele, como sempre muito sereno, usou da sua tranquilidade para acalmar a sua companheira, ao mesmo tempo em que lhe dizia que agora eles teriam um lugar onde branco nenhum jamais os expulsaria. Ele, na sua condio de lder conduziu o seu povo com sabedoria e confiana no seu sonho, confiana retribuda pelo seu povo para segui-lo de volta para casa, para sempre. Maria das Dores, assim que terminou a conversa com o seu marido, saiu nas outras casas da comunidade avisando ao povo sobre a conversa que tinha acabado de ter com o seu esposo e os seus dizeres. As outras famlias ento comearam a visitar Jos Verssimo levando presentes para ele como forma de agradecimento ao grande lder ao mesmo tempo em que choravam a ideia da sua partida e uma forte comoo tomou conta do meu povo. Passaram poucos dias ps o prenncio da partida de Jos Verssimo e este, ento, fez a sua passagem entre o mundo material para o mundo espiritual, foi embora juntar-se aos seus ancestrais, ao seu pai, sua me, e aos seus irmos, amigos que no estavam mais no mundo material, faziam parte de outra ordem universal, ordem esta, que Jos Verssimo agora pertencia. Feliz por ter completado o seu ciclo no mundo material e ter feito a sua passagem entres os mundos. Sabia que o seu povo estaria agora num lugar onde homem branco nenhum se voltaria contra o seu povo tornando a expuls-los da sua aldeia e queimando as suas casas.

    Maike Wtx [email protected]

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  • O ndio Marcelino a nossa grande referncia para continuar nossa luta pela devoluo do nosso territrio. A luta de Marcelino evitou maior ocupao fundiria at ao final da dcada de 1930. Ele para ns um heri, um verdadeiro guerreiro da defesa de nosso povo.

    O abuso do coronelismo e do projeto autoritrio da ditadura de Getlio Vargas marcou, efetivamente, as dcadas de 1930-1940. Nossa Aldeia Me passou a ser controlada pelos coronis da regio, os quais implementaram leis para afastar os ndios da vila. A partir de 1945, houve muita multiplicao de fazendas; s verificar no cartrio de Olivena os documentos existentes por l. O pior que essa invaso no parava de crescer, e a conquista quase toda do territrio realizou-se nas dcadas de 1960-1970. A partir dos meados de 64, a situao ficou ainda mais clara j que o decreto obrigava que existisse uma dimenso de, pelo menos, a metade entre a rea cultivada e a rea baldia na venda de terras devolutas.

    A "conquista do territrio de Olivena pelos brancos" foi complementada pela colonizao fundiria da mata, envolvendo todo o territrio da costa at a regio das serras. Para ns Tupinamb, o territrio foi ficando cada vez menor, o que impediu que segussemos o modo tradicional de ocupao das terras, que era mudar de local a cada duas geraes.

    Ainda recentemente, a luta do povo Tupinamb continua a enfrentar grandes conflitos. Segundo seu Alcio Amaral, um dos ancies e tambm nosso primo, meu av tinha um pedao de terra do outro lado onde ele mora, e essa terra no tinha cerca. Passados alguns anos, meus avs foram morar na comunidade do Santana. Ele conta que aquela terra foi invadida e perdida. Na comunidade do Santana vivia toda a familia dos meus avs e seus irmos. Meu pai tinha a parte de terra dele junto com minha me onde cultivava mandioca, cacau, seringa e verduras. Durante muito tempo, meus pais viveram nessa comunidade e mais tarde, devido a problemas

    UMA MEMRIA DE LUTAS

    Admilson Silva Amaral (Katu Tupinamb)[email protected]

    familiares, meu pai e minha me saram da aldeia e foram morar na cidade. Mesmo morando na cidade, nossa principal base de alimentao era pesca e caa. Por algum tempo no visitamos nossas terras na comunidade e quando procuramos saber, nos disseram que nossa terra j tinha dono e estava cercada. At hoje, essas terras no esto conosco.

    Desde antigamente, a resistncia dos Tupinambs se fazia sentir tambm de formas menos visveis, fato que dificultou a colonizao de algumas reas por no ndios. Nossas lutas visveis e invisveis vm permanecendo at os dias de hoje!

    Essa memria de luta dos nossos antepassados que nos faz cada vez mais lutar por nossos direitos. Nosso direito justo. No demos e nem vendemos nossa terra. Ela foi invadida e tomada. Isso aconteceu no somente com minha familia, mas existem outros casos iguais a esse. Pensando nisso, ns, povo Tupinamb de Olivena, viemos nos organizar para buscar os direitos garantidos na constituio. Resolvemos voltar para a nossa comunidade atravs de retomadas, que so formas de protesto para que o governo demarque nosso territrio. Por enquanto, estamos retomando somente as terras improdutivas, onde os fazendeiros abandonaram as terras por causa da decadncia do cacau. Nossa luta hoje que todo territrio Tupinamb seja demarcado imediatamente pelo governo, pois s assim, todos poderemos viver em paz, tanto os indigenas, quanto os pequenos agricultores.

    Basta de massacre e violncia contra os povos indigenas! Quantos Marcelinos? Quantos Chices? Quantos Galdinos e outras lideranas ainda tm que morrer para que este Brasil possa demarcar as terras indgenas?

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  • Somos ndios evoludos sim. Estamos aqui h muito tempo antes de Colombo chegar na Amrica. E como todos os povos, desde o incio de nossa civilizao, vivemos evoluindo. Com a invaso, fomos forados a um grande processo evolutivo cheio de sofrimentos. No Nordeste temos 500 anos de resistncia e ainda contamos nossa histria.

    Foram feitos aldeamentos para diminuir nossos territrios, foram implantados colgios jesuticos para tirar nossa lngua, para impor uma religio, mudando nossa estrutura sociocultural. Se nossas casas estavam dispostas em crculos, impuseram as linhas retas. Se vivamos em uma grande maloca coletiva, os padres botaram um casal por casa. O ndio cuidava de sua subsistncia e foi forado a trabalhar para a Igreja, para a acumulao de bens. Quando o ndio precisava de algum produto ia na floresta e colhia, depois foi obrigado fora, a ir alm de seu limite fsico e muitos morreram carregando bens para outros, tirando alm do certo. O novo sistema trouxe a devastao da Natureza e a extino de etnias, de animais e de vegetais.

    Uma comunidade indgena expressava sua potencialidade quando tinha mais de 300 pessoas, cada indivduo com sua funo social no coletivo e, quando os invasores exterminavam noventa por cento da populao de uma etnia, os trinta indgenas sobreviventes no podiam mais expressar a sabedoria dessa cultura, ficando desestruturados. Da a estratgia do invasor era juntar em um espao s trinta sobreviventes de uma etnia, com vinte de outra e dez de outra, confinados a um lugar s, criando uma nova confuso, homogeneizados atravs da imposio do uso da lngua portuguesa, suprimindo todas as religies. Os indgenas ou morriam na luta ou morriam lentamente na ditadura do aldeamento, morrendo culturalmente.

    Um amigo Kiriri me ensinou assim: A partir da colonizao, ns indgenas no mais vivemos mas SOBREVIVEMOS. O ndio que vive est em harmonia com a Natureza. Mas hoje, ns s sobrevivemos; temos pouca terra; o sistema nos incomoda; continuam tirando nossas terras, nossa educao tradicional, nossa religio. ndio e Terra so indivisveis. Terra Me, Av, famlia, tudo. Tudo isso est vivo. Temos nossa memria viva. A terra tambm tem sua memria. Na terra est registrado tudo. Se escavar vai encontrar ponta de espadas por cima da ponta da flecha, cacos de barro de nossos antepassados, urnas funerrias de cermica quebradas e as moedas do invasor.

    Ns indgenas passamos todas as fases do Brasil; desde antes dos espelhinhos e da tinta vermelha... Foram muitas as estratgias para ns indgenas deixarmos de ser ns mesmos e funcionarmos como uma pea do capitalismo. A educao foi e usada para isso.

    Nos primeiros tempos da colonizao foram colocados os povos diferentes, de culturas e lnguas diferentes. Cada povo tinha sua educao originria de carter natural. Essa educao era um sistema adaptativo; adaptado Natureza. Os indgenas viviam sempre em harmonia com a Natureza; em sintonia com a Me Terra, at os colonizadores instalarem um novo sistema. Tiraram os caciques e colocaram os capites-mor; tiraram os Pajs e botaram os padres. Fizeram o plano para a retirada dos conhecimentos dos povos e implantar uma nova mentalidade: a da produo capitalista. Primeiro, destruram a mata atlntica para vender a tinta vermelha na Europa; depois, colocaram a cana de acar para produzir acar para Europa. Substituram a mata por cana e botaram ndios como escravos. A essa fase do Brasil eu chamo de Memria da Rapadura; que veio logo depois da Memria das miangas e antes da memria das pedras brilhantes.

    Rapadura vermelha

    Nhenety Kariri-Xoc - Guardio da Tradio [email protected]

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  • O movimento indgena como uma canoa. Uma canoa com muita gente no pode ser dominada s por uma pessoa com uma vara. Ns que somos lideranas precisamos ter muita cautela, muitos cuidados, muita sabedoria. A gente no pode se vender. Temos que respeitar os direitos das crianas e dos velhos que, s vezes, podem no saber discernir o bem do mal. Temos que ter essa compreenso. Eu mesmo preferi sofrer com meu povo do que me vender. Eu no quis receber recompensas que no levam a nada, preferi sempre ficar do lado do povo, no meio do povo.

    Tenho visto coordenadores de alguns movimentos se deixarem levar pelo esquecimento; como foi no ano 2000, que aconteceu aquela estratgia do governo ser contra os indgenas, e com represso policial, com bombas e tambm com prmios, conseguiram que a gente no mostrasse para a sociedade o massacre que h anos estvamos padecendo. Muitos coordenadores de movimentos tm esquecido dos nossos direitos e da opresso que vivemos; e isso precisa ser sempre rememorado, para a gente aprender a lio.

    Naqueles dias de abril de 2000 foi o mesmo jogo de sempre, o mesmo que se arrasta desde a colonizao. O governo deu presentes, ofertou empregos, da mesma forma que fazia o SPI Servio de Proteo ao ndio o governo pegava o cacique e o colocava de capito, dava uma patente, dava um fardamento e algumas vantagens, at salrio, e assim o ndio ficava do lado do governo... Nos 500 anos no foi diferente, o governo manipulou caciques... Tambm botou 60 indgenas como guardas, com walkie talkie, e assim o governo ouviu tudo o que a gente discutiu... e ofertou cargos, carros... E pagando apagou nosso movimento. Tambm com cacetetes na mo, reprimiu o Movimento Indgena, Negro, Sem Terra, Quilombola, as entidades de apoio e autoridades de defesa dos ndios de todo Brasil.

    Um jovem indgena de 14 anos no era nascido naquela poca do massacre do ano 2000 em Porto Seguro, mas ele precisa saber o que aconteceu. Temos que refletir e temos que transmitir a mensagem para os jovens crescerem sabendo a verdade e, assim, escolherem o caminho do que bom pra o povo. Trabalho h muitos anos formando lideranas para que tenham respeito aos direitos do povo. Ns indgenas vivemos em um contexto de guerra e para ter nossos direitos, nossa liberdade, nossa autonomia, somos obrigados a lutar.

    Trabalho desde 1977 no meio do meu povo com o pensamento de conscientizao sobre nossos direitos e na formao poltica do povo Indgena.

    Tenho feito parte do Movimento Indgena (da APOINME, da Frente de Resistncia) e visto que precisamos fortalecer nosso movimento e nos organizar melhor. Para uma batalha a gente precisa estar preparado. Uma batalha no se faz sozinho. Precisamos de muitos companheiros. Precisamos fortalecer nossas ideias, unir nossos pensamentos. Precisamos tambm parceiros.

    Estou feliz porque estou vendo centenas de jovens do meu povo remando bem, conscientes de seus direitos, remando contracorrente do sistema, contra a corrupo... gratificante saber que contribu com o rumo certo de nossa canoa!

    NA CANOA DA UNIO

    Xarruingora - Joel Braz Patax (BA)[email protected]

    No nosso caso da luta Patax, independentemente da tristeza de ter alguns companheiros comprados, com outros demos continuidade luta que nossos antepassados tinham iniciado h vrios sculos, garantindo autonomia do nosso espao territorial Indgena, e com esforo conseguimos muitas vitorias criando aldeias como: P do Monte; Nova do Monte Pascoal; Guaxuma; Corumbauzinho; Craveiro; Ribeiro; Caciana; Bugigo; Cah; Pequ; Alegria Nova; Tb; Tau; Monte Dourado; Gurita; Canto da Mata - Prado

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  • Eu sou Elisa Urbano Ramos, uma Pankararu de origem, professora de profisso, condio que no incio da minha carreira me conduziu a participar do movimento indgena. E, naquele momento, a discusso seria sobre questes de educao escolar indgena.

    Ento, ao contribuir com a construo deste livro sobre memria do movimento indgena do Nordeste, quero trazer as minhas lembranas de participaes em momentos importantes dentro do movimento indgena, especialmente em Pernambuco, mas conjuntamente com lideranas de outros estados.

    Nesse sentido, quero principalmente dizer que nas questes indgenas, uma luta nunca est isolada das outras. Ou seja, a luta principal sempre ser a terra, pois sem terra no h sade, educao, nem to pouco sustentabilidade. Portanto, todas as aes do movimento indgena so articuladas e colaborativas.

    nesse contexto que fecho os olhos e volto no tempo. preciso transportar meus pensamentos para a velha aldeia nos anos 1990. No h como contar parte dessa histria sem fazer esse exerccio de comparao ou trajetria daquele momento at o cenrio atual. Logo que assumi uma sala de aula em 1994, participei de um encontro estadual de professores indgenas e l sempre estavam as lideranas, que naquela poca mesmo sem haver definies legais sobre uma educao escolar especfica e diferenciada, j nos diziam qual a educao que queramos.

    Todo esse sculo XX foi de maiores dificuldades para o povo Karapot. Em 1990 parte desse povo reuniu-se e resolveu fazer a retomada da Fazenda

    Coqueiro.

    Em maro do mesmo ano j com a retomada feita, todas as famlias em suas malocas de

    palha, capins ou lonas, foram surpresas por um incndio que queimou mais da metade das

    malocas. Graas ao nosso Deus Tup no houve vtimas.

    At hoje, no sabemos como aconteceu esse incndio. Sabemos, sim, que em volta de nossas malocas tinha muitos posseiros cheios de maldade, armados at os dentes e queriam acabar com ns.

    No final de abril, com a seca, no tinha mais gua nas barreiras para nada. S um fazendeiro distante tinha uma barragem com gua, mas ele no queria que ningum passasse a cerca dele. Mesmo assim, os ndios iam na madrugada pegar gua sem que ele percebesse.

    Foi quando houve uma grande tempestade com raios, troves e chuva que, mais uma vez, destrua nossas malocas, mas acabou com a nossa sede porque Deus Tup por ns!

    Jendson Karapot Plaki-

    MEMRIAS QUE EDUCAM

    Tup por ns!

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  • Ento, vou falar do princpio da organizao dos professores e professoras indgenas em Pernambuco conjuntamente com suas lideranas at chegar ao contexto de criao e importncia atual da COPIPE (Comisso de Professores/as Indgenas de Pernambuco) hoje, bem como a sua misso juntos aos Povos Indgenas de Pernambuco.

    Ao fazer uma viagem por um contexto histrico, se faz necessrio voltar ao passado das escolas localizadas no interior das aldeias. Vamos fazer referncia desde as escolas que foram FUNAI at sua passagem para os municpios. Ento, o que podemos dizer da poca da FUNAI? Escolas em terras indgenas, mas no escolas indgenas.

    Em relao ao municpio, a coisa era mais complicada, pois alm de termos uma escola chamada de rural, ainda tinha o tratamento desqualificado que tambm historicamente essa categoria de escolas sempre passou.

    Com a administrao das escolas pelo municpio, em especial na dcada de 1990, quando por ocasio havia encontro entre os/as indgenas professores/as, era momento de lamentaes. Pois ramos perseguidos, ameaados, na maioria das vezes por conta da terra, uma vez que esses polticos eram posseiros, fazendeiros, portanto inimigos dos indgenas.

    Em 1999 aconteceu o que podemos chamar de um divisor de guas: a Resoluo CEB n 03 de 10 de novembro de 1999 que Fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indgenas e d outras providncias. Pois no dia 20 do mesmo ms aconteceu o que chamamos do I Encontro da COPIPE, na Aldeia P de Serra do Territrio Xukuru. J, naquela ocasio, os Povos participaram do evento se responsabilizando de suas vindas, algo fantstico que caracteriza os encontres at hoje, que o fato dessas assembleias juntarem mais de 1.000 pessoas e serem bancadas exclusivamente pelos prprios povos.

    Naquele encontro, um dos encaminhamentos foi tirar uma comisso representativa. Ento, no dia 06 de janeiro de 2000 em uma reunio na Aldeia Pedra Dgua, Territrio Xukuru, aconteceu o que chamamos de formatao da COPIPE, pois sua misso e objetivos foram definidos, inclusive, a formao que seria dois/duas professores/as e lideranas de cada povo, algo que permanece at os dias atuais.

    Em meio ao coletivo de problemticas, uma era a mais importante: uma escola que refletisse a educao indgena dos nossos povos. E a Resoluo apontava para esse encaminhamento, uma vez que estava posta a proposta de estadualizao das escolas. E durante trs anos travamos essa luta, sempre a partir de encontros e reunies de professores/as e lideranas. E nesse sentido, a COPIPE era esta representao e coordenadora do debate.

    Podemos dizer que, em parte, conquistamos, pois estamos ligados unicamente a uma instituio governamental e no a vrias prefeituras, situao que tirava a autonomia da organizao social dos nossos povos.

    Na conjuntura da estadualizao houve muitas mudanas, no entanto, diversos elementos precisam ser ajustados, como por exemplo, o concurso pblico e a criao da categoria professor/a indgena.

    A COPIPE uma organizao indgena, que tem uma importncia e responsabilidade de busca de direitos, enquanto instituio representativa e parte do movimento indgena nesse pas. E s h luta por direitos, quando houver direitos negados.

    Para a luta ser digna necessrio o fortalecimento, que requer a todos/as indgenas conhecer a histria e participar da histria. E esse dever de socializao cabe COPIPE.Ao tratarmos da histria do movimento indgena a partir de nossas memrias, podemos focar com muita nitidez a fora e a coragem com que muitas lideranas lutaram. Muitas tombaram durante a luta, mas deixaram seus ensinamentos vivos.

    Nessa minha fala, trago com bastante nfase as questes da educao escolar, mas para ilustrar que as vrias pautas das organizaes indgenas esto entrelaadas. Do grande movimento surgiram vrias organizaes que pautam questes mais especficas, como por exemplo: as organizaes de mulheres indgenas, de jovens, os Conselhos das mais diversas naturezas, como sade, educao, de lideranas etc.

    Ento, se a nossa memria contribui para o futuro, posso dizer que a misso do movimento indgena e suas organizaes zelar pelo grande sonho: o projeto societrio.

    Elisa Urbano Ramos Pankararu de Entre Serras [email protected]

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  • At hoje, estamos esperando que a justia se mova, que o relatrio saia. Descobrimos que o pessoal est planejando criar uma lei para que no existam terras indgenas. Com essa lei, a terra que foi demarcada pode ser diminuda e a que est para ser demarcada no ser. Eles falam que ns ndios somos preguiosos e para que ns queremos terra, se ns no trabalhamos em cima dela? Ns temos nosso direito terra e ns queremos nossa terra para viver de nosso jeito, para criarmos os nossos filhos e netos, tataranetos, de nosso jeito.Como que a gente vive em cima de uma terra sem trabalhar? Se nosso territrio bom est na mo dos fazendeiros e ns estamos s com a mussununga, onde s d aroeira e cansano. Na mussununga no d mandioca, nem feijo, nem milho, nem banana e por isso que ns

    estamos brigando. Ns queremos que o governo libere e entregue o que nosso nas nossas mos porque ns temos preciso do nosso espao para trabalhar.

    Com esse processo muitos ndios esto sendo mortos ou aleijados, por causa da violncia dos fazendeiros que botam pistoleiros para perturbar o ndio. Esses pistoleiros assassinam nossas lideranas. A Polcia Federal e Militar tambm est perturbando ns indgenas porque no est deixando ns indgenas caminhar para conquistar os nossos direitos. Antes, a polcia era para defender ns ndios, hoje no est mais fazendo justia, ela est fazendo

    o bolso do fazendeiro. A polcia federal est do lado do fazendeiro porque ele tem dinheiro. Ns como

    no temos, eles processam a gente, perseguem ns para no fazermos retomadas e quando fazemos, eles vm para nos retirar de baixo de tapa, de bala de borracha

    ou at bala de verdade mesmo. Como tem acontecido aqui dentro conosco em nossa aldeia, foi muita coisa difcil para ns estarmos no movimento indgena, respondendo processos. Hoje, nossas vidas esto derrubadas por conta da luta da terra e no por causa disso que no estaremos dispostos a ir luta, at porque s com a luta teremos a nossas terras de volta em nossas mos. No podemos ficar esperando pela FUNAI ou outros, temos que pedir foras Tup e ir luta, colocar o p na frente para caminhar, colocar a mo na borduna e nos arcos para a gente chegar ao ponto de receber nossa terra.A terra indgena, ns somos indgenas, ns somos donos do Brasil. Pedro Alvares Cabral quando chegou aqui, descobriu os ndios. No somos invasores, somos donos de nossas terras, ns somos natural daqui. Eu mesma, sou natural de Barra Velha, meus pais, minha me, meus avs, somos todos daqui de Barra Velha. Todos os meus parentes moram aqui. Meu tronco daqui de dentro de Barra Velha.

    Xahey - Marlene Patax (BA)

    O direito da terra

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  • Passaram a viver os ndiosEm vilas longe da vida naturalTratados como selvagensComo se fosse animal A carta rgia foi feitaa ficou desgraadoO ndio no tinha culpaMas era sempre culpado.

    Memrias no se queimam!

    Galdino, lembro aqui do seu nome verdadeiro

    Era um ndio nordestino, srio, humilde e guerreiro

    Seu nome pra sempre ser lembrado

    No nosso cho Brasileiro.

    Galdino Jesus dos Santos (Bahia, 1952 Braslia, 20 de abril de 1997) foi um

    lder indgena brasileiro da

    etnia Patax-H-H-He que foi queimado vivo

    enquanto dormia em um abrigo de um ponto

    de nibus em Braslia, aps participar de

    manifestaes do Dia do ndio,

    em um crime que chocou o Brasil. O crime foi praticado por cinco jovens daquela cidade.

    No ano de 1500

    foi que tudo aconte

    ceu

    chamaram de desco

    berta

    a invaso que se d

    eu.

    Aqui s habitavam ndiosPor todo canto que hO nome no era ndioFoi nome a se criar

    O Brasil ganhou esse nomeS por causa de um pauEu prefiro pindoramaUm nome mais natural

    Mesmo na atualidadeEstamos sendo massacradosNos sete estados do nordesteNs somos desrespeitados

    No ano de 97Veja o que aconteceuO nosso parente GaldinoDe forma triste morreu

    O Brasil foi divididoComo uma pizza igualUm pedao pra cada umFazer dela um curral

    Na cidade de BrasliaMataram um PataxBotaram fogo em GaldinoDeixando a famlia s Era um ndio da BahiaQue nunca fez o malPodemos questionarQuem mesmo o animal? Desde a colonizaoO ndio o animalQuem bota fogo em algum chamado racional...

    REGINALDO KANINDAldeia Fernandes (CE)[email protected]

    Essa homenagem a voc e ao seu povo tambm

    Que continuam na luta no importa o que vem

    Somos povos brasileiros e nordestinos tambm

    E no vamos parar por brincadeira de ningum.

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  • Ol meu nome Marleide, sou indgena do povo Quixel da grande nao Cariri. Vivo atualmente no interior do territrio Kaingang onde, hoje, chamam, estado de So Paulo. Leciono sociologia numa escola pblica da regio e gosto de produzir msicas e poesias para no esquecer as nossas ancestralidades mesmo vivendo distante do nosso territrio de origem. Vou descrever resumidamente a histria de meu povo.O povo indgena Quixel originrio do serto centro-sul de onde hoje denominam Cear. Dos 42 povos indgenas dessa regio apenas quatorze tem reconhecimento tnico pelos rgos indigenistas: Anacs, Gavies, Pitaguaris, Jenipapos, Kaninds, Kariris, Potiguaras, Tapebas, Tremembs, Tupinambs, Tabajaras, Tupiba- Tapuia, Tapuia-Kariri e Kalabaas. Os rgos oficiais ignoram a existncia dos demais povos, mas SIM, (R)EXISTIMOS! Junto com o meu povo Quixel, temos os parentes: Jucs, Pacajus, Rerius, Baturits, Ics, Xoks, Inhamuns, Quixars, Quixers, Caris, Araris, Juremas, Cambidas, Apuiars, Chors, Quesitos, Javs, Kixris, Akariss, Tocarijs, Jaguaribaras e outros tantos mais por se conhecer e aprofundar nas pesquisas tnicas dessa regio.O meu povo comeou a sofrer com a retirada das nossas terras ancestrais em 1700 com a distribuio de terras para os povos colonizadores. Resistimos junto com outros povos indgenas na chamada Guerra dos Brbaros como ficou conhecida a maior resistncia dos povos indgenas do nordeste. Dando continuidades aos projetos colonialistas, em 1850 foi decretada a Lei de Terras na qual vrios povos indgenas foram desconsiderados em suas histrias milenares ficando as nossas terras ancestrais como terras devolutas para serem distribudas aos colonos.Alm disso, retiraram (e retiram at hoje) as nossas origens tnicas e espiritualidades dando-nos nomes cristos para apagar mais ainda as nossas origens empurrando-nos codinomes de caboclos, nordestinos, camponeses, sem-terras, etc. As (re)colonizaes prosseguem nos dias atuais com as famlias de colonizadores em nossa regio, que tomam as melhores terras e somos obrigadas(os) a sair para outras regies em busca de oportunidades de subsistncia dentro e fora do nordeste, tendo que esconder as nossas origens em diversas cidades.

    Minha me migrou da nossa terra indgena Quixel para o Sudeste em 1974. Minha me indgena Quixel misturada com povos negros. Meu pai branco (in memorian). Somos indgenas misturados e sem terra. Como ns, existem vrios indgenas nessas condies nas periferias e favelas de muitas cidades brasileiras. Nascemos numa favela na capital de So Paulo e passamos por longos processos de separao, confinamento, desindigenizao e apagamento de nossas origens em internatos.Muitos indgenas passam por esses processos perversos. O que implica em indigenidades tardias, ou seja, as pessoas s vo perceber (e se perceberem) depois de adultas a quais etnias/povos indgenas pertencem. Passam metade de suas vidas negando sua existncia e presena nativa participando e produzindo nas cidades.Ao percebermos a grande mentira com a qual crescemos, ns indgenas nos manifestamos de diferentes formas: lutando, estudando, trabalhando, poetizando, cantando, sonhando...Hoje tambm as artes podem nos liberar da opresso que ainda sofremos, principalmente, por sermos indgenas urbanos e misturados.Recebemos somente apoio assistencialista, pois a cidade nos v como indigentes, usurios de drogas, em situaes de rua, em internatos, etc. Mas todos esses processos tambm so de negao quanto s diversas etnias indgenas presentes nas cidades. Todos os povos indgenas merecem reconhecimento, sejam eles misturados ou no, estejam eles em territrios ancestrais ou em territrios de outros povos indgenas, transfigurados tanto pela ao dos povos colonizadores quanto pela ao de outros povos indgenas colonizados.Nossas mltiplas cidadanias indgenas e planetrias merecem reconhecimento como espaos vitais e no como museus de escanteios. Podemos ver indgenas desindigenizados em todas as profisses mas principalmente nas mais subalternas como domsticas e catadores de lixo. Na classe mdia, como professores, enfermeiras, comerciantes... E em algumas excees, como professores universitrios, microempresrios, etc. s vezes, num mesmo povo indgena encontramos pessoas extremamente ricas e outras extremamente pobres.Escrevemos aqui para lembrar que os povos indgenas tm direitos SIM aos seus territrios ancestrais, suas terras de origens mesmo distantes fisicamente. Tambm temos direitos aos territrios ancestrais transfigurados, as cidades. Somos cidados indgenas e no indigentes periferizados e silenciados como querem nos manter os projetos colonialistas atuais.Todas as nossas indigenidades tambm so roubadas cotidianamente e somente o tempo poder dizer se os povos indgenas adormecidos nas cidades escolhero lutar por seus respectivos povos ou no.

    Faamos das nossas (r)existncias indgenas cotidianas atuais as muitas indgenas ancestrais

    Marleide Quixel [email protected]

    resistncias

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  • O que eu conheo a respeito da luta pelo territrio Pankararu, comecei junto com as lideranas Joo Monteiro da Luz, mais conhecido como Joo Binga, Miguel Monteiro dos Santos, mais conhecido como Miguel Binga, Quitria Maria de Jesus, conhecida como Quitria Binga (os trs j falecidos), Ilda Bezerra Barros, conhecida como Dona Ilda, entre outros como, Ablio Pedro, Herculano, Agenor Julio, Ademar Barbosa, Joo Gouveia, Seu Honrio, Z de Bernarda... Fizemos muitas viagens Recife e Braslia, a fim de regularizar a situao da nossa terra que, em parte, ainda se encontra em posse de no ndios, nas aldeias de Bem Querer, Caldeiro e Caxeado.

    Em toda essa caminhada, a reivindicao de todos sempre foi a desintruso dos posseiros do territrio Pankararu. A questo sade, educao e outras sempre foram lutas secundrias. Nos dias atuais, no vejo o mesmo empenho e preocupao dos representantes do nosso povo como se via h alguns anos. Sinto que essas lideranas mais antigas so pouco lembradas quando se faz uma comemorao na comunidade.

    Em todos esses mais de 30 anos que acompanho o movimento indgena, o que fez a grande diferena na soluo ou no dos problemas relacionados terra foram os gestores responsveis pela questo indgena. Alguns se empenhavam, mas dependiam de apoio dos dirigentes do rgo indigenista, cuja sede em Braslia. Por diversas vezes, prometiam que iam resolver, mas quando as lideranas vinham embora, eram enganadas, pois as promessas no eram cumpridas. Ou, quando estavam encaminhadas as demandas, mudavam o gestor que estava nos apoiando e isso atrasava tudo que j havia sido conquistado atravs de muita luta.

    De alguns anos para c tem surgido muitas pessoas que se dizem indgenas, mas isso s vem ocorrendo depois que o Governo Federal favoreceu direito aos indgenas de ingressar na vida acadmica concedendo bolsas e outros benefcios. A FUNAI, atravs de seus coordenadores, no tem critrios para afirmar se um determinado sujeito ou no indgena. Muitos candidatos chegam com documentos assinados e dados por pessoas que se dizem lideranas, isso em alguns casos, no respeita a deciso das lideranas que, de fato, so tradicionais.

    Existem vrias informaes de pessoas que j esto cursando o ensino superior, que entraram pelas cotas para ndios com apoio de falsas lideranas e a FUNAI fez vista grossa em

    relao a essa situao. Essas pessoas se dizem indgenas, mas no participam das nossas tradies, no conhecem nossos costumes e nem pisam na nossa aldeia. Esto apenas para tomar a vaga de quem, de fato, Pankararu.

    A FUNAI, enquanto rgo federal est muito desorganizada, onde os prestadores de servio no so preparados para lidar com a causa e com as especificidades dos indgenas. preciso que o rgo tenha um olhar mais focado na causa indgena, com Polticas Indigenistas que atendam aos anseios de ns, povos indgenas.

    Com a reestruturao da FUNAI, houve muitas mudanas que prejudicaram as aldeias, onde ns tnhamos uma sede do Posto Indgena da FUNAI e este foi deslocado para as cidades fora da aldeia, com distncia de at 100 km ou mais da comunidade. Isso dificultou o acesso e o atendimento das nossas necessidades. Se j no funcionavam bem dentro da comunidade, voc imagina fora! Isso ainda gerou muitos custos e grande espera para aqueles que no tm condies financeiras de ir e vir na busca de documentos e apoio.

    Sou sabedor que a questo do territrio de Pankararu vem desde a poca dos meus bisavs, avs, pais e tios que j faleceram, e agora continua sendo uma luta da minha gerao e de outras mais novas que tambm esto envolvidas, e at o momento, apesar de alguns avanos, ainda no foi concluda. E isso vai at quando? Eu acho que falta de respeito com o povo indgena! E quando algum quer fazer alguma coisa, sempre existe uma manipulao para as coisas no acontecerem.

    Eu gostaria que os parentes refletissem mais em relao questo indgena, se envolvessem mais, amadurecessem mais. No vamos nos iludir com migalhas que so oferecidas para ns porque isso uma forma de atrasar, de convencer a gente a no ir atrs de nossos direitos. Ento, vamos pensar melhor antes de tomar qualquer atitude em qualquer situao. Vamos correr atrs do que nosso, pensando nos nossos filhos, nossos netos, para deixarmos alguma coisa boa para eles!

    No s migalhas! Sim terra!

    Joo Manoel de OliveiraPankararu (PE)[email protected]

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  • Quando estava com seis anos de idade, meu pai partiu do estado da Paraba para So Paulo. Trs meses depois minha me, meus dois irmos e eu, samos da Paraba para encontr-lo. Meu pai no indgena, mas minha me sim. Como eles se conheceram? Ah, isso hoje eu j sei explicar.

    Tudo est ligado a uma questo de movimento (situao) econmico que era bem comum no norte e nordeste do Brasil, que abrange indgena e no indgena. Esse movimento o chamado: emigrao. Movimento pelo qual os membros de uma determinada sociedade deixam sua regio para viver em outra, em busca de prosperidade e muitas das vezes para fugir da fome. Mas como aqui o foco falar sobre o movimento indgena do nordeste, voltemos explicao que eu iria dar sobre, como meus pais se conheceram.

    Minha me nasceu na aldeia Tracoeira, no dia 07 de janeiro de 1960. A aldeia Tracoeira est prxima cidade de Baa da Traio, regio norte do estado nordestino da Paraba. Na poca em que ela nasceu os indgenas da regio mal sabiam o que era um hospital, ento seu nascimento foi conduzido por uma parteira. Lembro-me de minha me relatando que quando os primeiros agentes da FUNAI apareceram por l, para averiguar os surtos de malria, a maioria dos membros da comunidade se escondiam. Por vergonha? Ou seria medo? Afinal, eram pessoas estranhas. Bem, no sei qual era o motivo, s sei que se escondiam. Esses agentes eram conhecidos como: os Malria.

    A regio onde vivem os Potiguaras prospera em alimentos que vm da Me Terra. Meu av sempre ia cidade de Baa da Traio para levar frutas a alguns pescadores que eram amigos da famlia, e minha me o acompanhava. Em agradecimento pelas frutas os pescadores davam peixes do mar para eles levarem. Muitas famlias indgenas praticavam essa mesma ao, e algumas ainda praticam nos dias de hoje. Conforme os dias, meses e anos foram passando, essa ao foi mudando. A valorizao da troca por meio do dinheiro, ou seja, do sistema de venda e compra, foi ficando cada vez mais forte. Os objetos de consumo como: cosmticos, roupas, mveis e at eletrodomsticos, foram apresentados com todo seu encantamento para os indgenas. Alm disso, o lcool, que trouxe e ainda traz muita desgraa para indgenas e no indgenas, tambm foi introduzido como objeto de consumo. Porm, para comprar esses objetos (ou bens) de consumo, era (e ainda ) necessrio ter dinheiro. E a nica forma dos indgenas conseguirem dinheiro, era saindo de suas aldeias e procurarem trabalho nas cidades vizinhas.

    Dependendo da distncia entre a aldeia e a cidade, os indgenas acabavam optando por morar na cidade e sempre que possvel voltavam para a aldeia e reviam os parentes. Analisando esse contexto, presenciamos o movimento de emigrao da aldeia para a cidade, o qual minha me faz parte. claro que outros fatores como: maior acesso a hospitais, farmcias e escolas tambm fazem parte desse movimento, mas a sada da aldeia para a cidade, em busca dessas facilidades est totalmente ligada ao acesso aos bens de consumo por meio dos servios oferecidos pelo sistema econmico capitalista. Minha me saiu da aldeia Tracoeira e foi trabalhar na cidade de Mamanguape, na Paraba. Numa lanchonete que pertencia ao seu tio Basto. Ela foi junto com sua irm Eliete (minha tia). Para encurtar a histria, nessa cidade ela conheceu primeiro a irm gmea do meu pai, Damiana. Em seguida o meu pai, Cosmo. Os dois comearam a namorar, juntaram os trapos, como diz o ditado, e tiveram trs filhos. Eu sou o segundo.

    Seguindo a lgica do movimento de emigrao, vou resumir aqui como meu pai chegou Mamanguape. Meu pai pernambucano natural de Gameleira, nasceu no dia 15 de dezembro de 1965. Seu pai foi para Mamanguape quando ele ainda era criana e l conseguiu se estabelecer. Depois de casados e j com seus trs filhos, meu pai resolveu ir para a cidade de So Paulo, a convite de um amigo. Dizia que iramos morar l apenas trs anos. Hoje j se passaram mais de 20 e continuamos morando ali. Mas confesso que meus planos so de retornar minha terra natal e viver com meus parentes na aldeia.

    Vamos agora para o momento de reflexo. Essa foi histria do movimento indgena do nordeste a partir da emigrao que eu vivi. Hoje sei que outros indgenas tambm viveram e vivem o movimento de emigrao por falta de opo. s vezes por faltar o alimento produzido pela Me Terra devido suas terras terem sido invadidas, ou por serem ameaados de morte. H inmeros fatores que provocam a emigrao forada ou, aparentemente, voluntria dos indgenas. Digo aparentemente voluntria porque se tivssemos condies de viver na aldeia de forma digna, sem excluso social, com acesso educao de qualidade, aos servios de sade e transporte, no deixaramos o paraso que viver na nossa aldeia. Pertinho de quem nos sustenta, a nossa Me Terra.

    A mdia diz que para ser feliz, basta voc ter o carro do ano, uma manso e ser conhecido pelo mundo inteiro. Se isso fosse verdade, no teramos tantas celebridades se suicidando, se drogando e se prostituindo. A falsa felicidade est nos objetos e bens de consumo. A verdadeira est dentro de voc! Ela natural.

    Alexsandro Cosmo Mesquita [email protected]

    Amor sem matria

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  • A terra da Gia, como conhecida tradicionalmente, uma rea de sobrevivncia do povo Kanind de Aratuba, Cear, local de sobrevivncia atravs da agricultura de subsistncia e da caa. Lugar onde os nossos antepassados trabalhavam j h muitos anos, uma terra frtil e produtiva. Mas existia um problema, os indgenas pagavam renda de sua prpria terra. Diante desta situao, o povo se organizou para retomar a sagrada terra da Gia novamente. Comearam a plantar seus prprios roados e deixaram de pagar renda ao

    branco. No ano 1996 diante desta situao, os Kanind tiveram um srio conflito por posse de sua terra com trabalhadores rurais de uma fazenda vizinha, conhecida como Fazenda Alegre, rea de assentamento.

    O conflito ocorreu porque um antigo dono dessa propriedade pastava seus rebanhos de gado nas terras da aldeia Fernandes e coletava rendas dos indgenas Kanind. O caso tomou propores inesperadas e os indgenas foram at ameaados de mortes pelos moradores do assentamento. O povo se mobilizou e desceram a serra para uma reunio na Fazenda Alegre mas, ao chegar, foram logo barrados e no tiveram a oportunidade de falar nada. Diante disso, o povo comeou a se mobilizar coletivamente, homens, mulheres e crianas, com reunies nos prprios roados e com trabalhos coletivos, uns brocando os roados e outros estrategicamente observando um possvel ataque dos assentados para no serem surpreendidos.

    O povo Kanind realmente fez um bom planejamento e um dos medos dos ndios era falar em microfone, e na mata fizeram um treinamento com pedaos de paus como se fosse um microfone e cada ndio falava seus argumentos para a reunio. A luta resolveu-se com a interveno do INCRA, FUNAI, Igreja Catlica, Associaes Indigenistas (como a Associao Misso Trememb AMIT) e dos sindicatos de trabalhadores rurais de Aratuba e Canind. Na reunio, a situao foi realmente de luta e resistncia dos Kaninds, no abrindo mo da me terra.

    Diante dos acordos, o povo Kanind acabou cedendo 30 hectares de sua terra e dividiram nela uma reserva de 50 hectares para os animais viverem e eles os caarem, para fins alimentcios. Desde ento, o caso vem se desenrolando na Justia pois, mesmo com os limites acordados, no h uma demarcao definitiva que estabelea limites precisos para a Terra Indgena Kanind e a terra do Assentamento Alegre, o que ocasiona tenses recorrentes e a necessidade de vigilncia constante sobre as extremas, hoje cercadas.

    A terra da Gia um smbolo de nossa resistncia, pois tudo que temos hoje, uma educao de qualidade, uma sade que atende os ndios da aldeia e as assistncias sociais foram conquistas a partir da luta pelo nosso territrio, que consideramos como uma me para a nao Kanind.

    Trabalhamos com amorFortes, firmes de p

    Tambm mostraremos um poucoda agricultura Kanind.

    S falta se perderNo meio da plantao

    Plantamos fava, feijo e milhoPra nossa alimentao.

    As crianas animadasCom a colheita do feijo

    Comendo milho e pamonhaNa maior animao

    Todos com a barriga cheiaEncostados no fogo.

    A velha panela de barroJ no fogo a ferver

    O milho em cima da brasaQue d gosto de se ver

    O menino lambendo o beioS esperando comer.

    Antnio Nilton Kanind

    A conquista da terra da Gia

    Antnio Nilton e Thayn Kanind Aratuba (CE)

    Nilton [email protected]

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  • Sempre minhas PensamentAes so redemoinhos e ressurgncias. Forte este sentimento que o associo aos ps de curupira: caminha para frente com os rastros voltados para trs, ou seja, onde engendrou um sempre ir e vir gamela de sua origem.

    Aprendi com meu pai sobre animais e brinquedos feitos com gravetos, frutos, folhas, talos, cabaas e espigas de milho. Com minha me muito ainda aprendo da sua herana indgena e de sertaneja. Por exemplo, entender o que nos alertam os pios da araponga ou do acau ou do voo bandoleiro do gavio ou carcar ou o respeito de como lidar com as cobras. Fazer uma coivara. Cuidar das ramas, dos fios dgua e das histrias compartilhadas em nosso velho rancho ou terreiro.

    Lembro-me que do que ouvia entre os mais velhos histrias sobre debandadas de conterrneos que fugiam da seca ou atocaiados por situaes adversas. Quando o Apolo 11 pousava na Lua em 20 de julho de 1969, como retirantes desembarcvamos em Salvador. Difcil adaptao a outro mundo: o centro urbano da capital baiana. Passei a experimentar as primeiras discriminaes e hostilizaes nas ruas e escolas. As finas divisrias entre realidade e o desnorteio: o ser e estar modos pelas disporas: perda do pai, da terrinha, dos animais, sobrevivncia cavoucada de meia, brinquedos do fundo de quintal, analfabetismo e ou baixa escolaridade dos irmos, falta de recursos materiais, parentes e amigos deixados para trs.

    Minha me meu principal elo inspirador para que no esquea minha origem, terra imemorial do nosso povo Payay. Ela com enxada, foice, faco e saberes da terra soube encoivarar, adubar, plantar e arrancar o po dirio para a penca de oito filhos aps a morte de meu pai em 1964. Hoje ela soma 98 aninhos.

    Das leituras que fao aprendo e apreendo sobre os processos aos quais os povos indgenas foram submetidos e pesquiso temas como: colonialismo, aculturao, afirmao, reconhecimento, desigualdade, etnicidade, preconceito e alteridade - com foco em como ser e se afirmar ndio(a) hoje no Brasil. Tenho me expressado como um proscrito quando me sinto discriminado ao me afirmar um ndio e Payay destribalizado. Contudo, h um movimento de pessoas que vem se afirmando desse povo em alguns municpios baianos, onde, no passado, os Payay eram senhores do lugar. Sob a liderana do cacique Juvenal Teodoro Payay, h uma comunidade em

    Ps de Curupira Cabeceiras do Rio, municpio de Utinga que se autorreconhece como tal. Para l sou convidado como irmo. Outros Payay se mobilizam nos municpios de Pojuca (Riacho das Pedras), Morro do Chapu, Porto Seguro (Arraial da Ajuda) e em Salvador. Dessa forma, sinto que os ps de Curupira esto me trazendo de volta minha origem indgena apesar das discriminaes em ser e afirmar-se ndio(a) no Brasil, prosseguirei.

    Na Bahia como no Nordeste, os povos indgenas esto em suas mais diversas agncias. Uns buscam reconhecimento de sua identidade ou de suas terras. Outros se mobilizam por educao e sade. Ainda outros se posicionam contra a sistemtica criminalizao de suas lideranas. Todos juntos. Agncias iguais e diferentes. Todos se solidarizam. Todos esto mobilizados para ser e estar neste Estado brasileiro em transe quando h uma sucesso de episdios de violao aos direitos humanos, invaso de terras, pistolagem e tentativas de surripiarem direitos consagrados na Constituio Federal de 1988. Havero - mesmo de estarem alertas como tem acontecido na Bahia entre os Tupinamb da Serra do Padeiro, Patax e Patax H-h-he como tambm outras mobilizaes a exemplo dos encontros interculturais ou intertnicos.

    Os preconceitos herdados desde a colonizao do pas esto em todos os mbitos, particularmente na educao cuja lgica precisa ser urgentemente descolonizada para que deixe de ser opressora e passe a ser estimuladora na construo de uma nova histria e uma nova antropologia que reconhecem e valorizam os povos indgenas, suas afirmaes de identidade, garantias de seus territrios, de suas histrias e culturas como sujeitos de direitos lutados e conquistados, enfaticamente, na Constituio Federal de 1988 e em uma srie de outras legislaes como a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN), e a Lei 11.645/08 que obriga o ensino da histria e cultura dos afro-brasileiros e dos povos indgenas.

    Aps 515 anos de extermnios, preconceitos, discriminaes e a generalizao do ndio que permeiam o cotidiano brasileiro e fazemos nossas agncias pelo sentimento de pertena indgena, valores, sabedorias, pela manuteno dos direitos conquistados, por uma educao diferenciada, bilngue e descolonizada, assim, nos manteremos vigilantes como uma fmea parida ante seus filhotes!

    Que a Lei 11.645/08 seja adequadamente implementada a fim de que possa contribuir em progressiva reorientao ideolgica do Estado brasileiro em relao histria e cultura dos povos indgenas para alm da lgica eurocntrica e colonialista. Esta emergncia nossa luta, f e desafio.

    Ademrio Ribeiro (Payay - BA)[email protected]

    Ademrio, sua me Amlia e seu neto Arthur

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  • Quando nos expulsaram de nosso territrio eu fui obrigada a conviver com os no indgenas. Aproveitei esse tempo para me preparar. Em 1984 voltei em minha comunidade, meu sonho era trabalhar uma educao diferenciada junto com a comunidade. Trabalhei por muitos anos sendo a nica professora da comunidade. Dei continuidade a uma luta rdua, mas porm muito prazerosa, por estar junto com meu povo lutando pelos nossos direitos: manter nossa cultura, costumes e tradies; retomar nosso territrio; nossa educao e nossa sade. E fui trabalhando com meu povo, mas por infeliz sorte, no ano de 2000 a escola deixou de ser administrada pela FUNAI e passou para o Estado. E hoje, eu sinto uma tristeza muito grande com muitos dos novos funcionrios da nova escola, muitos foram meus alunos, eu os preparei para trabalhar com nosso povo, mas esto esquecendo um pouco e caminhando da maneira como o Estado quer. Acho que a gente indgena nunca pode deixar de lembrar que temos uma cultura diferente e que nossa educao tem que caminhar diferenciada. Nossos professores tm que se preparar como todo professor, mas lembrando que nossa escola diferenciada, uma escola especial para nossa nao continuar, para todo nosso povo ser feliz. Nossos ancies Patax Hahhe esto preocupados com a educao que est caminhando dentro da nossa prpria comunidade. Vrias vezes, esses ancies me conversaram. A escola no ouve os ancies. Eu mesmo sou a primeira professora dessa comunidade, sou uma anci e no sou ouvida dentro dessa escola. E, mesmo assim, continuo a me oferecer para trabalhar junto. Eu fiz magistrio indgena; temos uma dzia de indgenas com magistrio indgena e, hoje, com esse concurso que fizeram a, professores foram tirados pelo Estado porque no se alcanou a meta que eles queriam. E assim, muito professor bom, professor que zelava pela nossa cultura, foi tirado. E muitos dos novos professores que o Estado emprega no esto bem preparados para a educao diferenciada. O Estado no est respeitando nosso povo e alguns desses professores novos esto seguindo cegamente as diretrizes do Estado prejudicando nosso povo.

    O concurso que houve no avaliou nada do diferenciado, no respeitou nem o tempo de trabalho que esses professores tinham dentro da comunidade com o seu povo. Hoje est atuando at professor no ndio dentro da nossa comunidade. O Estado diz que ns indgenas no somos competentes para sermos diretores dentro de nossa prpria comunidade. O Estado nem sequer tem procurado ir e ter reunio com as lideranas, perguntar para as lideranas o que eles esto achando, o que eles querem. Ns queremos educar com nossos valores.

    Na minha poca de trabalho dentro da minha comunidade, qualquer tipo de brincadeira que eu fazia, todo mundo ganhava. Quando algum dizia - Eu ganhei!, eu dizia - Ns ganhamos!. Hoje, eu vejo que uns querem competir porque fulano de tal vai perder e fulano de tal vai ganhar. Aquele que est ganhando est criticando o que no ganhou. Essa educao traz desunio para nosso povo. Educao diferenciada transmitir os bons valores que ns temos tradicionalmente.

    Nos ltimos quatro meses de 2014 nossas crianas ficaram sem merenda; s por no ter algum disponvel para assinar um documento. Da, o cacique Nailton foi Salvador e disse para eles que no era justo os nossos alunos passarem essa necessidade, essa humilhao, por causa do Estado achar que o ndio no teria competncia; que a falta de dilogo e a burocracia apontavam a incompetncia do Estado. Ns, ancies e lideranas estamos aqui querendo trabalhar junto, esperemos que neste 2015 as coisas melhorem mesmo!

    educar com nossos valores

    May Patax Hhhe (BA) May vem colaborado na produo de material diferenciado. Na foto, ela

    com os exemplares 21 e 22 da coleo NDIOS NA VISO DOS

    NDIOS. Ela leva livros para a escola de sua comunidade e promove rodas de leitura e

    dilogos.

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