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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros NASCIMENTO, AD., and HETKOWSKI, TM., orgs. Memória e formação de professores [online]. Salvador: EDUFBA, 2007. 310 p. ISBN 978-85-232-0918-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Memória e formação de professores Antônio Dias Nascimento Tânia Maria Hetkowski (orgs.)

Memória e formação de professores

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros NASCIMENTO, AD., and HETKOWSKI, TM., orgs. Memória e formação de professores [online]. Salvador: EDUFBA, 2007. 310 p. ISBN 978-85-232-0918-6. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

Memória e formação de professores

Antônio Dias Nascimento Tânia Maria Hetkowski

(orgs.)

Page 2: Memória e formação de professores

MEMÓRIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

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Page 3: Memória e formação de professores

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

REITOR

Naomar Monteiro de Almeida Filho

VICE-REITOR

Francisco Mesquita

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

DIRETORA

Flávia Goullart Mota Garcia Rosa

CONSELHO EDITORIAL

TitularesAngelo Szaniecki Perret SerpaCaiuby Álves da CostaCharbel Niño El HaniDante Eustachio Lucchesi RamacciottiJosé Teixeira Cavalcante FilhoMaria do Carmo Soares Freitas

SuplentesAlberto Brum NovaesAntônio Fernando Guerreiro de FreitasArmindo Jorge de Carvalho BiãoEvelina de Carvalho Sá HoiselCleise Furtado MendesMaria Vidal de Negreiros Camargo

UNIVERSIDADE D O ESTADO DA BAHIA

REITOR

Lourisvaldo Valentim da Silva

DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

(DEDC) CAMPUS IÂngela Maria Camargo Rodrigues

COORDENADORA DO PROGRAMA DE

PÓS-GRADUAÇÃO EDUCAÇÃO ECONTEMPORANEIDADE (PPGEDUC)Nádia Hage Filho

VICE- COORDENADOR DO PROGRAMA DE

PÓS-GRADUAÇÃO EDUCAÇÃO ECONTEMPORANEIDADE (PPGEDUC)Arnaud Soares de Lima Junior

COORDENADORES DAS LINHAS DE PESQUISA

DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE (PPGEDUC)Kátia Maria Santos MotaMaria de Lourdes Soares Ornellas FariasIvan Luiz Novaes

REVISORA DE TEXTO (PPGEDUC)Maria Nilza de Oliveira Fernandes

CONSELHO EDITORIAL

Cezar Nonato Bezerra Candeias (UFAL)Edileise Mendes (UFBA)Elizeu Clementino de Souza (UNEB)Leda Scheide (UFSC)Lucila Pesce (PUC/SP)Marcos Botelho (UEFS)Zenilde Durli (UNOESC)

APOIO

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OR G A N I Z A D O R E S

Antônio Dias Nasc imentoTânia Maria Hetkowski

SalvadorEdufba, 2007

MEMÓRIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

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Page 5: Memória e formação de professores

© 2007 by autores

Direitos para esta edição cedidos à Edufba. Feito o depósito legal.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados,a não ser com a permissão escrita do autor e das editoras, conforme a Lei nº 9.610,

de 19 de fevereiro de 1998.

CAPA

Gabriela Nascimento

PROJETO GRÁFICO

Gabriela Nascimento

REVISÃO

Susane BarrosFlávia Rosa

Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa - UFBA

Editora da UFBARua Barão de Jeremoabo,s/n – Campus de Ondina

40170-290 – Salvador – BATel: +55 71 3283-6164Fax: +55 71 3283-6160

[email protected]

Memória e formação de professores / organizadores : Antônio DiasNascimento, Tânia Maria Hetkowski. - Salvador : EDUFBA, 2007.310 p.

Coletânea realizada em parceria entre os pesquisadores daUniversidade do Estado da Bahia, Universidade Estadual do Rio deJaneiro, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal daBahia e Universidade do Oeste de Santa Catarina.

ISBN 978-85-232-0484-6

1. Educação - Brasil - História. 2. Professores - Formação.3. Educação - Aspectos sociais. I. Nascimento, Antônio Dias.II. Hetkowski, Tânia Maria. III. Universidade do Estado da Bahia.IV. Universidade Federal da Bahia.

CDD - 370.981

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Agradecimentos

Os textos apresentados neste livro são resultantes de pesquisas realizadastanto no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação eContemporaneidade, do Departamento de Educação do Campus I, daUniversidade do Estado da Bahia, como em outros Programas de Pós-Graduação em Educação de outras universidades do Brasil.

A publicação desses trabalhos para torná-los acessíveis a um públicomais amplo, no entanto, é um esforço de um conjunto de pessoas einstituições aos quais os organizadores desta obra gostariam de externar oseu profundo reconhecimento pelo apoio e encorajamento recebidos.

A primeira menção é devida aos autores que além da dedicação àinvestigação acadêmica, já por si meritória, aceitaram de bom grado onosso convite para somarem-se conosco para a realização dessa jornadaem prol do conhecimento, partilhando os nossos achados, tanto com opúblico acadêmico, como com o público em geral.

À Professora e Mestra Ângela Maria Camargo Rodrigues, que na suamissão de Diretora do Departamento de Educação (DEDC) Campus I daUNEB, compreendendo e valorizando este nosso intento, não mediu esforçosna sua atuação com os interlocutores da Petrobras para a obtenção doindispensável apoio cultural.

À Professora Doutora Nádia Hage Fialho, Coordenadora do nossoPrograma de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, peloestímulo e pela confiança em nós depositada para produção e organizaçãodeste trabalho.

Ao Professor Dr. Cezar Nonato Bezerra Candeias, da UniversidadeFederal de Alagoas, pela gentileza da leitura e cuidadosa apreciação críticade todos os textos assegurando ainda mais a pretendida qualidade e clarezadas exposições.

À nossa colega Maria Nilza de Oliveira Fernandes, do PPGEduC, peloseu empenho nas primeiras revisões dos textos, antes de submetê-los aoprocesso de editoração.

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A Flávia Goulart Garcia Rosa e Gabriela Nascimento, pelo trabalhominucioso de edição dos textos, no âmbito da Editora da UniversidadeFederal da Bahia, e pela encorajadora acolhida à nossa proposta editorial.

À Companhia de Petróleo do Brasil S. A., pela inclusão do nosso livroentre os inúmeros beneficiários do apoio cultural prestado por ela adiferentes instituições voltadas para o desenvolvimento científico, culturale artístico.

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Sumário

9 | APRESENTAÇÃO

17 | O PÓS-ABOLIÇÃO NA BAHIA: MEMÓRIA À CONSTRUÇÃO DA VIDA

LIVRE

Jaci Maria Ferraz de Menezes, Juvino Alves dos Santos Filho

43 | SAGA NORDESTINA: IDENTIDADE(S) CULTURAL(IS) E

EXCLUSÃO SOCIAL

Yara Dulce Bandeira de Ataíde

59 | (AUTO)BIOGRAFIA, HISTÓRIAS DE VIDA E PRÁTICAS DE

FORMAÇÃO

Elizeu Clementino de Souza

75 | CONTRIBUIÇÃO HISTORIOGRÁFICA AO DEBATE SOBRE AÇÕES

AFIRMATIVAS: EXCLUSÃO RACIAL NA BAHIA DO SÉCULO XIX

Wilson Roberto de Mattos

87 | BRANQUEAMENTO E BRANQUITUDE: CONCEITOS BÁSICOS NA

FORMAÇÃO PARA A ALTERIDADE

Ana Célia da Silva

103 | MOVIMENTOS SOCIAIS RURAIS, QUARENTA ANOS DEPOIS

Antônio Dias Nascimento

119 | O PROJETO PEDAGÓGICO DO MST: A EXPERIÊNCIA EM ESCOLAS

DE VITÓRIA DA CONQUISTA

Rosana Mara Chaves Rodrigues

133 | ASPECTOS CONSTITUTIVOS PARA UMA ANÁLISE DA ESCOLA

EXCLUSIVA

Luciene Maria da Silva

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151 | A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA TRANSFERÊNCIA DO

PROFESSOR E DO ALUNO NA SALA DE AULA

Maria de Lourdes S. Ornellas

163 | CONSCIENTIZAÇÃO: UMA DAS ESTRATÉGIAS NA FORMAÇÃO

CONTINUADA

Vânia Finholdt Ângelo Leite

179 | CIDADANIA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR: DESVELANDO

SENTIDOS E FINALIDADES DA PRÁTICA EDUCATIVA

Sandra Regina Soares

199 | O MOVIMENTO NACIONAL PELA REFORMULAÇÃO DOS CURSOS

DE FORMAÇÃO DO EDUCADOR: EMBATES NA CONSTRUÇÃO DE

UM PROJETO COLETIVO DE FORMAÇÃO

Zenilde Durli

219 | UNIVERSIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: QUAL O PESO

DA FORMAÇÃO INICIAL SOBRE A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

PROFISSIONAL DOCENTE?Cristina Maria D’ávila

241 | POLÍTICAS PÚBLICAS E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Maria Olívia de Matos Oliveira

257 | A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES NO BRASIL E EM SANTA

CATARINA: DO NORMALISTA AO DIPLOMADO NA EDUCAÇÃO

SUPERIOR

Leda Scheiba e Ione Ribeiro Valle

273 | SABERES DOCENTES NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE

PROFESSORES DAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL:UM ESTUDO COM GRANDEZAS E MEDIDAS

Suzeli Mauro

291 | EDUCAÇÃO MUSICAL: UM ESTUDO A PARTIR DE EXPERIÊNCIAS

PEDAGÓGICAS NA ESCOLA DE MÚSICA DA UNIVERSIDADE

FEDERAL DA BAHIA

Leila Miralva Martins Dias

305 | SOBRE OS AUTORES

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ME M Ó R I A E F O R M A Ç Ã O D E P R O F E S S O R E S 9

Apresentação

Os estudos aqui reunidos têm como destaque as temáticas Memória eFormação de Professores. Ampliando os esforços no sentido de aproximar,por um lado, a idéia de Contemporaneidade, entendida como o esforçocomum em busca da construção de relações sociais harmoniosas, baseadasnos idéias de solidariedade, respeito às identidades, convivência com adiversidade e, sobretudo, de respeito e preservação da vida, e, por outro, aidéia de Educação vista como um processo de formação de sujeitosautônomos, solidários e participativos.

A primeira temática diz respeito à Memória da Educação, um dos eixosde interesse de investigação do nosso Programa de Pós-Graduação emEducação e Contemporaneidade (PPGEduC), considerando a importânciade se identificar o modo como se entrecruzaram aqui os vários processoscivilizatórios e como se articularam com os processos educativos no que serefere a história da educação, pluralidade cultural, movimentos sociais,representação social e inclusão.

A segunda temática contempla, mais especificamente, a Formação deProfessores. Em verdade, de pouco adianta adotar-se uma visão de futurobaseada na busca de novas utopias, se não tomarmos também comoprioridade os estudos e pesquisas que contribuam para a formação denovos agentes destinados ao papel de formadores para um mundo maishumano e justo. Por acreditarmos que este esforço de investigação e depráticas sociais, participativo e dialógico, é que buscamos a parceria deoutros pesquisadores que, como nós, mesmo estando em outros recantosdo País, convergem para as mesmas preocupações.

Assim é que a presente coletânea é resultado de uma parceria realizadaentre os pesquisadores do PPGEduC da Universidade do Estado da Bahia(UNEB) e pesquisadores de mais quatro universidades brasileiras, tais comoUniversidade Estadual do Janeiro (UERJ), Universidade Federal de SantaCatarina (UFSC), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidadedo Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Somos profundamente agradecidos

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a todos eles por estarmos juntos partilhando os resultados de nossasinvestigações no campo da educação.

O primeiro capítulo, intitulado Pós-abolição na Bahia: memória àconstrução da vida livre tem a co-autoria de Jaci Maria Ferraz de Menezese Juvino Alves dos Santos Filho. Discute as relações da população negra naBahia com a educação formal e as formas e processos educativos queutilizaram e organizaram para aprender, na medida da sua exclusão dosistema educacional formal. Pretende demonstrar que, apesar de todas asdificuldades para até a sobrevivência física, os negros desenvolveram suahistória e formas próprias de inclusão e de aprendizagem, através, inclusive,da organização de escolas ou através de outras instituições pedagógicas.

Em seguida, o estudo nomeado Saga nordestina: identidade(s) cultural(is)e exclusão social de autoria de Yara Dulce Athayde aborda a questão da(s)identidade(s) cultural(ais) nordestina(s) a partir da proposta teóricaapresentada por Michel Zaidan Filho sobre a construção da concepção deNordeste. Apresentamos duas histórias de vida de mulheres nordestinasque serão utilizadas como referências e nos permitirão transitar entrealgumas questões atuais como identidade(s) e exclusão social. Concluímoscom a relação entre as histórias de vida e as explicações teóricas.

O terceiro capítulo (Auto)Biografia, histórias de vida e práticas deformação de autoria de Elizeu Clementino de Souza estabelece a discussãosobre as aproximações e possíveis distanciamentos entre as (auto)biografias,a história da educação e as práticas de formação, por entender que “asescritas das obras autobiográficas que testemunham as relações pessoaiscom a escola podem ser úteis como fonte para a elaboração da história daeducação” (CATANI, 2005, p. 32), ao traduzir sentimentos, representaçõese significados individuais das memórias, histórias e relações sociais com aescola.

O texto Exclusão racial na Bahia do século XIX: contribuiçãohistoriográfica ao debate sobre ações afirmativas, de autoria de WilsonRoberto de Mattos, faz uma abordagem sobre as ações afirmativas,destacando, na história do Brasil, processos concretos que reforçamargumentos relativos à necessidade e justiça na adoção de tais medidas,bem como este texto, contextualiza as ações afirmativas como medidasconstrutoras da igualdade racial e, sobretudo, como medidas de reparação

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de discriminações e exclusões das populações negras, têm sua necessidadeconfirmada pela História.

O capítulo Branqueamento e branquitude: conceitos básicos naformação para a alteridade, de autoria de Ana Célia da Silva, apresenta umrelato de pesquisa que investiga, através de análise de conteúdo, como olivro didático de Língua Portuguesa de Ensino Fundamental de 1º e 2ºciclos representa os personagens brancos e como essa representação podecontribuir para a construção de um sentimento de superioridade dessegrupo étnico-racial. O desejo de aproximar-se cultural e fenotipicamentedesse grupo por outros grupos étnico-raciais e os mecanismos construídospelo branco e assemelhados, para permanecer enquanto modelo dehumanidade e cidadania, tem-se constituído em ideologias hegemônicasde branqueamento e branquitude, respectivamente. A investigação estabelecesuas bases teóricas em autores como Hasenbalg, Munanga, Silva, Carone,Piza e Bento.

Também em torno da Memória da Educação, inclui-se o capítulointitulado Movimentos sociais rurais, quarenta anos depois, de autoria deAntônio Dias Nascimento, analisando as condições sócio-históricas nasquais emerge a educação popular no Nordeste do Brasil, como produto danecessidade de integrar os trabalhadores rurais ao processo dedesenvolvimento encetado entre meados dos anos de 1950 até os primeirosanos da década de 1960. O autor conclui que o processo de educaçãopopular que se estabeleceu, sobretudo a partir da influência de Paulo Freire,resultou no surgimento de uma nova consciência entre os trabalhadoresrurais, tendo como evidência maior a sua organização social e política.

A temática sobre memória vem apresentar o artigo O Projeto pedagógicodo MST: a experiência em escolas de Vitória da Conquista, de autoria deRosana Mara Chaves Rodrigues, o qual tem como objetivo identificar oselementos importantes de resistência e de mudança que emergem doconfronto entre uma proposta educativa que se pretende transformadora,libertadora e inclusiva, e a realidade local, estruturada segundo os padrõessociais e culturais que tendem a reproduzir a condição de dependência e desubmissão e exclusão. Conclui-se que as escolas sobre a coordenação doMovimento dos Sem Terra (MST) têm se diferenciado das demais escolasdo município por estabelecer canais de negociação com o poder local; porpartir das práticas concretas da escolarização e das demandas das lutas

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pela terra na formulação dos seus conteúdos e metodologia de trabalho;por garantir o acesso e permanência de todas as crianças nas séries iniciaisdo ensino fundamental, entre outros.

A questão da inclusão social no campo da educação é aqui abordadaatravés do capítulo intitulado Aspectos constitutivos para uma análise daescola inclusiva, de autoria de Luciene Maria da Silva, que discute a propostainclusivista, entendendo-a como uma abordagem crítica à educação especial,mas não só a ela, posto que pretende ser uma orientação que atenda àsnecessidades de todos os alunos. A autora considera que a discussão sobreinclusão e exclusão torna-se simplista se não considera a sociedade na suatotalidade e, sobretudo, se não considera como se manifestam os fatos queevidenciam tais fenômenos. A partir dessa perspectiva, o texto apresentareflexões sobre a Educação Especial e seus processos de disciplinamentopostos pelas práticas assistencialistas e filantrópicas e, posteriormente, analisaos fundamentos da Educação Inclusiva e as dificuldades práticas que se temposto para dar acesso aos alunos com deficiência à escola regular.

Em seguida, trazendo contribuições da psicanálise para o campo daeducação, o capítulo intitulado A representação social da transferência doprofessor e do aluno na sala de aula, de autoria de Maria de Lourdes Ornellasrevela que os construtos educação, representação social e afetividade, se bemtrabalhados, possibilitam o enlace com vistas a escutar o que se passa nocotidiano da escola, na transferência entre professor aluno e no processoensino/aprendizagem. Expressa o conceito de representação social no campodo conhecimento do senso comum, isto é, constituída pelas relações que osujeito articula no seu cotidiano. Tenta fazer uma interface dessa teoria coma psicanálise pela via da comunicação e da cultura, traz o conceito de afetoenquanto uma dimensão fundante e se constitui na interface do prazer e dodesprazer, o que ajuda a escutar o bem-me-quer e o mal-me-quer vividos naeducação e, de forma singular, na escola.

O capítulo Conscientização: uma das estratégias na formação continuada,de autoria de Vânia Finholdt Ângelo Leite, recolhendo os seus referenciaisem Alarcão, Scarpa, Tardif, Nóvoa e Freire, desenvolve um estudo ligado àformação continuada de professores. A autora busca analisar a influênciadas estratégias propostas na formação baseada na reflexão, resolução deproblemas e na conscientização das práticas pedagógicas ligadas a númerose operações e as conseqüentes mudanças de atuação dos professores. Assim,

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tratou-se de buscar os elementos de uma formação continuada quepropiciassem a transposição de conhecimentos e pesquisas nas diversasáreas para a prática cotidiana.

O texto Cidadania na formação do professor: desvelando sentidos efinalidades da prática educativa, de autoria de Sandra Regina Soares, parteda constatação da existência, na sociedade brasileira, de uma tendência àaceitação resignada, em outros termos, da falta de consciência de cidadania,e apresenta o desafio com respeito à formação de professores de contribuirpara o enfrentamento dessa tendência, mediante, principalmente, ocompromisso político-pedagógico dos seus profissionais de trabalhar emfavor do desenvolvimento integral do ser humano e de sua autonomia.Essa discussão sobre o conceito moderno de cidadania, inclui as principaisvisões existentes na literatura brasileira, denominadas neste estudo:cidadania de direitos restritos e cidadania como construção social. A reflexãosobre a formação da consciência de cidadania, no contexto da práticaeducativa na universidade, desenvolve-se mediante a discussão sobre oconceito de relação com o saber, que se desdobra na relação do estudanteconsigo mesmo, com os outros, com as regras e com o poder.

O capítulo O movimento nacional pela reformulação dos cursos deformação do educador: embates na construção de um projeto coletivo deformação, de autoria de Zenilde Durli, busca analisar e compreender asproposições construídas no âmbito do Movimento Nacional pelaReformulação dos Cursos de Formação do Educador, iniciado no contextode redemocratização vivenciado pela sociedade brasileira, a partir do finalda década de 1970. Nas proposições desse Movimento buscamos evidênciasdas divergências teóricas e dos consensos alcançados bem como a repercussãodestes no processo de elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais parao Curso de Graduação em Pedagogia.

O capítulo intitulado Universidade e formação de professores: qual opeso da formação inicial sobre a construção da identidade profissionaldocente?, de autoria de Cristina d’Ávila Maheu, apresenta preliminarmente,relato de pesquisa exploratória que tem como objetivo analisar, para melhorcompreender o processo de construção da identidade profissional, junto aestudantes de um curso de formação inicial de professores (licenciatura),numa universidade pública na Bahia. O estudo combina duas etapas depesquisa, uma primeira de natureza quantitativa (sondagem por

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questionário) e uma segunda, qualitativa, de análise das representaçõessociais presentes nas narrativas autobiográficas dos estudantes, sujeitos doestudo. Segundo os resultados provisórios da pesquisa, concebemos comoprincipais hipóteses: a) o curso de formação inicial possui um peso relativosobre a construção da identidade profissional docente; b) as disciplinas docurso de licenciatura não parecem corresponder às representações dedocência dos estudantes.

O texto Políticas públicas e educação de jovens e adultos, de autoria deMaria Olívia de Matos Oliveira, apoiado em pesquisa realizada junto àUniversidade Antônoma de Barcelona, desenvolve uma análise crítica daspolíticas públicas de educação de jovens e adultos, implantadas pelo governodo Estado da Bahia, no período de 2002-2006, materializadas no ProgramaOficial Educar Para Vencer. Foi nossa intenção durante a investigação,quebrar paradigmas tradicionais de avaliação de programas, buscandoconceber a avaliação como processo e não como produto, dar visibilidadeao cotidiano dos sujeitos, tentando entender suas resistências e medos,revelados através de suas falas. Os resultados indicaram que o programaEducar Para Vencer está longe de satisfazer as exigências propostas, poisnão atende às necessidades das cidades onde está implantado e não temuma estrutura de recursos humanos e materiais que dê suporte e respondasatisfatoriamente às necessidades dos alunos, condição imprescindível paralegitimar a sua eficácia.

O estudo intitulado A formação dos professores no Brasil e em SantaCatarina: do normalista ao diplomado na educação superior, da co-autoriade Leda Scheibe e Ione Ribeiro Valle. As autoras levantam a hipótese de quea profissionalização e a formação dos professores sempre estiveram no centrodos projetos e investimentos do Estado brasileiro, visando ao mesmo tempoorganizar as massas, ampliar o controle sobre a escolarização da populaçãoe ampliar as oportunidades de acesso aos sistemas públicos de ensino. Destaca-se, como referência, a análise dos principais dispositivos legais que estabelecemas políticas de educação para o país, bem como as diferentes etapas daformação docente, partindo-se do pressuposto que elas correspondem àsmutações das prioridades e diretrizes do Estado brasileiro em termos deeducação escolar, introduzidas ao longo do século XX.

O texto Saberes docentes na formação continuada de professores dasséries iniciais do ensino fundamental: um estudo com grandezas e medidas,

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de autoria de Suzeli Mauro, apresenta a trajetória da pesquisa realizadacom um grupo de estudos composto por duas formadoras, que trabalhamcom a disciplina Didática da Matemática no nível superior e dez professorasque atuam nos níveis iniciais da Educação Básica, em instituiçõesparticulares de ensino. Relata a autora que a investigação, um estudo decaso, originou-se das inquietações de uma das professoras do grupo comrelação ao ensino de área e perímetro, que desencadeou na elaboração eexecução de uma seqüência de atividades para a 4ª série do 2º ciclo doensino fundamental, com um grupo de vinte e seis alunos. Assim, a seqüênciaintitulada Medindo, comparando e produzindo teve origem e foirealimentada no grupo de estudos, que contava com encontros semanais, paraa discussão de propostas nas diversas etapas: elaboração, desenvolvimento,fechamento e avaliação do trabalho.

Fechando o elenco dos estudos que compõem essa obra, e retomando ocaminho para o diálogo entre a música e outras disciplinas do sistemaoficial de ensino, o capítulo intitulado Educação musical: um estudo apartir de experiências pedagógicas na Escola de Música da UniversidadeFederal da Bahia, de autoria de Leila Miralva Martins Dias, apresenta umbreve panorama da situação da educação musical no Brasil e, em seguida,discute, a partir do conhecimento produzido pelas pesquisas na área daeducação musical, a idéia de educação musical como sendo processo quevisa tanto o desenvolvimento artístico e cultural, como a formação integraldos educandos como sujeitos. O estudo se baseia nas experiênciaspedagógicas desenvolvidas no Projeto Coral da Escola de Música daUniversidade Federal da Bahia.

Cumpre-nos destacar que essa obra tornou-se possível graças ao decisivoapoio da Petrobras, que ampliando o seu papel no desenvolvimento nacional,vê, como parte dessa tarefa, o apoio ao desenvolvimento científico e cultural.

Dr. Antônio Dias Nascimento

Dra. Tânia Maria Hetkowski

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O pós-abolição na Bahia: memóriaà construção da vida livreJaci Maria Ferraz de MenezesJuvino Alves dos Santos Filho

Este texto tem como finalidade apresentar e discutir as relaçõesda população negra na Bahia com a educação formal e asformas e processos educativos que utilizaram e organizarampara aprender, na medida da sua exclusão do sistemaeducacional formal. Pretende demonstrar que, apesar de todasas dificuldades até mesmo a sobrevivência física, os negrosdesenvolveram formas próprias de inclusão e de aprendizagem,através inclusive de organização de escolas ou através de outrasinstituições pedagógicas.

Os estudos que realizamos (MENEZES, 1994; MENEZES, 1997a),sobre a exclusão dos negros da escolarização mostraram que, no Brasil ena Bahia, os não brancos foram adquirindo o direito à escola muitolentamente, no pós-abolição. Formalmente excluídos os escravos, os libertostinham acesso à escola na medida de suas possibilidades – inexistiu, durantea escravidão ou depois dela, uma política de massas voltada explicitamentepara garantir aos ex-escravos o acesso à escola. As discussões travadas noperíodo final do Império, também período em que recrudescem os debatessobre o final da escravidão e a melhor forma de preparar a inclusão dosex-escravos à cidadania brasileira, desembocam na apresentação, limitada,de projeto de organização de um sistema de ensino que promovesse oacesso das crianças livres à escolarização.

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Este debate é retomado no início da República. Um sistema de educaçãoé organizado segundo a definição que cada Estado membro federado dáao direito à educação e sua capacidade de manutenção das mesmas escolas,incorporando, lentamente, gerações futuras – não os escravos recémlibertados, adultos, – à cidadania. Contraditoriamente, o acesso ao votoera condicionado, para os adultos, ao saber ler e escrever, entendendo-se aalfabetização como condição necessária para a aquisição de uma“capacidade de discernimento”. Numa sociedade constituídamajoritariamente de negros e analfabetos, isto significava a exclusão damaioria da cidadania ativa; de tal modo que a abolição garante, aos ex-escravos, a liberdade, mas não a igualdade (MENEZES, 1997b). Daí aluta pelo acesso à escola e as iniciativas, entre os segmentos excluídos, decriar classes escolares em suas organizações, como veremos adiante, aindano aspecto do desenvolvimento das artes e da musicalidade como fruto doaprendizado não formal e depois mesmo formal. Destacamos aqui a lutatambém de vanguarda de abolicionistas, engajados no processo de ampliaçãodos direitos à cidadania.

A EDUCAÇÃO DOS ESCRAVOS, LIBERTOS, INGÊNUOS

Neste estudo do processo de inclusão/exclusão, queremos começardiscutindo o próprio limite da exclusão. No nosso entendimento, os negros,no Brasil, passam por um processo de “inclusão excludente”. Trazidos parao Brasil, sua socialização/educação se dá no espaço do colonizador, mascomo desigual, como subordinado; o indígena, também subordinado, tinhaum espaço próprio de vida e socialização/educação, os aldeamentos e asmissões. O aldeamento tinha como suposto a “civilização” do indígena eprevia, ao lado da catequese, a instalação de escolas de ler e escrever. Onegro estava na fazenda ou na cidade; sua aprendizagem, enquanto escravo,se dava no aprendizado do trabalho na execução do trabalho; mesmo asua catequese, de forma simplificada, se dava nas fazendas, nas igrejas, nasirmandades. Mesmo durante a escravidão, a exclusão da escolarização sefazia tendo como critério a condição civil – a condição de escravo ou livre.Não era vedado formalmente o acesso à escola dos negros livres, embora

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1 Lembrar, no final do século XVII, a questão da exclusão dos moços pardos dos colégios jesuítas, resolvida em 1685favoravelmente a eles pela Cédula Real que garantia a sua matrícula.

não existisse, para eles como para o conjunto da população, um direito àeducação, apenas estabelecido na década de 1930 do século XX1 .

Os escravos eram formalmente excluídos da escolarização durante aColônia e o Império. Algo como se o Estado não devesse valorizar apropriedade privada, porque mesmo se o próprio senhor quisesse matriculá-lo nas escolas públicas não o podia fazer. Esta segue a prática até o momentoda Abolição (BAHIA, 1989). Se aos escravos era vedado o acesso a instituiçõespúblicas de ensino, aos negros nascidos livres se lhes providenciava, quandofora da tutela do senhor da sua mãe, educação em espaços compulsórios deformação para o trabalho, fossem orfanatos, fossem Companhias deAprendizes do Exército ou Armada.

Aos libertos ou livres descendentes de escravos que tivessem como proversua subsistência, era possível a matrícula na escola pública. Falam sobre aexistência de professores negros, dentre outros, Gilberto Freire, em CasaGrande e Senzala. Por outro lado, a própria história do processoabolicionista nos mostra a existência de um grande número de negroseducados, ocupando papel de destaque na sociedade brasileira no séculoXIX e organizando as formas de resistência e luta contra a escravidão. Osabolicionistas famosos eram exemplo da escolarização dos negros: AndréRebouças, José do Patrocínio, Luis Gama, entre outros. Na Bahia, TeodoroSampaio, Juliano Moreira, Manoel Querino e, até, o Barão de Cotegipe,ministro conservador do Império, escravista, eram negros.

Desde a chegada da corte portuguesa, em 1808, ao lado da ênfase evidenteno Ensino Superior, até porque até então este não existia, se dá início àorganização de uma educação para a formação de artífices. Naquelemomento, conseguir mão de obra livre bem preparada era difícil, por contada plena vigência da escravidão e por ter sido vedada, até então, o própriodesenvolvimento da manufatura (a não ser de bens simples), no Brasil. Aprópria instalação do Exército português, então em guerra com a França(lembrar que Brasil ocupa Caiena, até o tratado de Viena; e o Uruguai, até1828), demandava uma produção em metalurgia que, até então, era bastanteprecária no Brasil. Em 1810, é criada na Corte uma companhia militar desoldados artífices, anexa ao Regimento de Artilharia da Corte, que deveriaformar 60 ferreiros e serralheiros. Antes, fora contratado um mestre fundidor

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alemão para formar 66 operários, que, no entanto, teriam sido atraídospor pequenas fundições.

Assim, a primeira vertente da formação para o trabalho de iniciativado Estado foi a via militar. A segunda, a reforma e desenvolvimento dosestaleiros, em 1811, inclusive visando formar projetistas e desenhistasvoltados para a arquitetura naval. A terceira vertente, foi o reordenamentode orfanatos existentes, como o Colégio dos Órfãos de São Joaquim, naBahia. Este orfanato, que existia desde 1798, foi estatizado em 1919, aosmoldes da Real Casa Pia de Lisboa, sendo-lhe doado o antigo prédio doNoviciado dos Jesuítas. Estava destinado a recolher órfãos e desvalidos edar-lhes ensino profissional e se torna o primeiro de uma longa série deinstituições voltadas para tal (MATTA, 2006).

A quarta via para a formação de artífices se dá pela via dodesenvolvimento das artes. Após o final da guerra com a França, em 1816,uma missão artística francesa composta por 10 artistas, vem ao Brasil,coordenada por Lebreton, presidente perpétuo da Seção de Belas Artes doInstituto de França. A partir de sua presença, se pensa a Academia de BelasArtes, criada afinal em 1820 (CUNHA, 1979), que inicialmente deveriater um duplo papel: a formação para as “belas artes” e para as artesmecânicas, na formação de artífices.

EDUCAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA: A SITUAÇÃO NO FINAL DO IMPÉRIO

Em 1872, quase no final do Império, quando da realização do primeiroCenso Demográfico, 79,44% da população livre era analfabeta, na Bahia.Se deste total retirarmos os menores de 5 anos, temos um grau deanalfabetismo da ordem de 75,88%. A situação do Brasil era pior, entãocom 81,43% da sua população livre analfabeta, o que correspondia a78,11% da população de 5 anos e mais. Com índices de analfabetismomaiores que o da Bahia estavam 13 das províncias então existentes, estandoem melhor situação São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Rio Grande do Sul eParaná, e o Município Neutro, cidade do Rio de Janeiro, administradapelo Governo Central.

Se à população livre se acrescentar a população escrava – atingindo, aísim, a população total – a situação da Bahia se apresenta melhor do que

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a de São Paulo, por exemplo, ou mesmo que a média nacional.Respectivamente, Bahia teria 18,06% de alfabetizados, São Paulo 16,86%e Brasil 15,47%. A condição de escravo praticamente excluía da condiçãode alfabetizado: em todo o Brasil, apenas 1403 escravos sabiam ler e escrever,sendo 104 em São Paulo, 64 na Bahia e 107 no Rio de Janeiro. Na Corte,a presença de um grupo maior: 329. Em termos percentuais, sempre abaixodo 1%.

Os dados referentes à condição de alfabetizados ou não, apresentadospelo Censo de 1872, no entanto, não estão cruzados com os dados referentesà cor da pele. Ou seja, apesar de que o Censo estuda cada uma das duascaracterísticas, não apresenta tabela que permitisse saber quantos brancosalfabetizados, ou quantos negros alfabetizados. Na busca de precisar onúmero de negros alfabetizados em 1872, com vistas a tomá-los comoponto de partida para o esforço, porventura existente, de inclusão dosnegros à escolarização, nos demos conta de que, no Estado da Bahia, onúmero total de alfabetizados era às vezes maior ou aproximado do totalde brancos existentes, o que, de por si denotava a presença de umcontingente negro alfabetizado considerável.

O caso mais evidente era o de Salvador, em que havia 40.915alfabetizados para uma população total branca de 38.374 pessoas. Abatendodo total da população branca e da população negra livre (Outra = pretose pardos) o contingente de 0 a 5 anos, apresentado no documento queforneceu os dados do Censo (IBGE, 1949). Estes eram, para os brancos,12,51% e, para os não-brancos, 13,6%. Com as novas populações-alvoda alfabetização, tomamos como hipótese um índice de alfabetização dapopulação branca da ordem de 65%, bastante acima dos totais apresentadospelo Censo para o total da população livre.

Com isso, obtivemos um saldo numérico de alfabetizados não brancos,o que nos permitiu calcular um percentual de alfabetizados não brancospara o total do Estado, para Salvador, para o Recôncavo e para osmunicípios com mais de 20.000, entre 20 e 10.000 habitantes e commenos de 10.000 habitantes. Os resultados deste exercício podem servistos na Tabela 1.

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Salvador Recôncavo + 20.000 10/ 20.000 10.000 BAHIA

Pop. total 129.109 363.623 835.559 255.513 159.435 1.379.616

Escravos 16.468 58.448 96.931 31.253 23.172 167.824

Total Livre 112.641 305.175 738.628 224.260 136.273 1.211.792

Branca 38.374 79.007 197.221 59.208 29.948 324.751

Outra 74.267 226.168 541.407 165.052 106.315 887.041

Alfabetiza. 40.915 66.711 134.237 50.139 22.881 248.172

%A. Total 36,00 20,84 18,25 22,33 16,30 18,0

%A. Livre 41,27 24,84 20,65 25,4 19,08 20,48

%Ñbranca 29,7 10,8 4,6 17,44 6,14 8,28

2 Na hipótese de que 65% da população branca de mais de 5 anos estivesse alfabetizada.

Tabela 1 - Bahia - 1872Percentuais de alfabetização da população livre nos municípios, segundo númerode habitantes2.

Fonte: IBGE (1949). Cálculos da autora.

Entendemos, é claro, que este percentual hipotético de 65% dealfabetização da população branca não se aplicaria uniformemente a todosos municípios do estado. No entanto, em favor de nosso raciocínio,verificamos que se tomássemos, por absurdo, um percentual de 80% dealfabetização da população branca de 5 anos e mais, ainda assim haveriaum saldo de alfabetizados não brancos em diversos municípios, comoSalvador, Santo Amaro, Jeremoabo, Lençois, Purificação, Macaúbas,Alagoinhas, Nazaré, Maragogipe, Tapera (Amargosa), Vila Nova da Rainha(Senhor do Bonfim), Camisão, Feira de Santana, Abrantes, Mata de SãoJoão e Itaparica; no universo dos municípios com mais de 20.000 habitantese dos municípios do Recôncavo.

O número de alfabetizados é menor nos municípios que concentramgrande população escrava, ou seja, onde ainda a atividade econômicaprincipal é a lavoura açucareira, como em São Francisco do Conde. Ofenômeno se repete em diversos distritos de Salvador. Assim, no momentodo Censo de 1872, ainda sob a escravidão, existia um contingenteconsiderável de não brancos alfabetizados. Não se estaria, portanto,partindo de um zero, neste esforço de incorporar à chamada civilizaçãoletrada a população liberta.

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3 Para uma leitura mais aprofundada a respeito, ver MENEZES, 1997a, 1997b, além de BARBOSA, 1982, 1985, 1989.4 Exemplo de bolsa de trabalho foi organizada na Bahia por Manoel Querino e outros artistas para a contratação e

execução de obras, inclusive públicas. Denominava-se Liga Operária.

A presença destes negros alfabetizados, entretanto, não afasta a evidênciade que a grande maioria da população não sabia ler e escrever. No entanto,o escasso índice de alfabetização da população brasileira e baiana, nãoprovoca, na República que se inicia, políticas massivas de oferta deescolarização da população em idade escolar nem, sobretudo, dos adultos.E, apesar disto, o saber ler e escrever é utilizado como filtro para a cidadaniaplena, mantendo-se a proibição do voto dos analfabetos. Em nossoentendimento, esta lacuna significa uma forma de exclusão da cidadaniade enormes parcelas da população, majoritariamente dos negros3. Na análiseque se segue, veremos como os negros, agora artífices, artistas“trabalhadores”, operários, vão lutar por sua educação e pela de seus filhos,conscientes de que estavam lutando por cidadania.

PÓS-ABOLIÇÃO E A “EDUCAÇÃO DOS TRABALHADORES”

Na República, desaparecem as organizações voltadas para a Aboliçãoda Escravidão, proclamada um ano antes. A discussão sobre liberdade seesgota, e as reivindicações organizadas em torno ao ser escravo, negro,desaparecem. As chamadas “classes trabalhadoras” buscam organizar-se,de diversas formas, que muitas vezes coexistem harmonicamente: criamCorporações, Caixas Beneficientes, Sociedades de Socorros Mútuos,Sociedades de Resistências, Sindicatos e Bolsas de Trabalho, bem comoligas operárias. A Câmara ou bolsa de trabalho se encarregava, inclusive,de realizar pesquisa de mercado de trabalho4. Outras organizações tomamforma reivindicatória e política. Em 1890, no Rio de Janeiro o CentroArtístico se transforma em Partido Operário; seu presidente será o TenenteJosé Augusto Vinhaes, líder dos operários a Estrada de Ferro Central doBrasil. O Partido Operário de Fortaleza foi também de 1890. Seu programade reivindicações era: 8 horas de trabalho, redução das horas de trabalhode mulheres e crianças, democratização do capital e habitação higiênica,alfabetização. Reivindicavam, também, que fossem ministradas aulasnoturnas aos operários.

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5 Este era o lema também do Jornal do Centro Operário, na Bahia – Arquivo Municipal de Salvador, Caixa sobre CentroOperário.

Em 1892 se dá a realização do I Congresso Socialista do Rio de Janeiro,do qual participam 400 pessoas ocasião em que foi fundado o PartidoSocialista Brasileiro. Em São Paulo, criado o Jornal A questão Social. OutroJornal, O socialista, tem como lema “Operários de todo o mundo – Uní-vos! Um por todos, todos por um”5. Na mesma ocasião, foi lançado oManifesto do Partido Socialista do Rio Grande do Sul em que se propõe ofim da desigualdade. A República, naquele momento, era a expressão dadesigualdade, um povo que trabalha, paga e sofre, o povo pobre, oproletariado; outro que usufrui o trabalho, o capitalismo e o militarismo.Propunha também instrução gratuita, em todos os graus acompanhada deproibição do trabalho de modo geral para menores de 14 anos. Para menoresentre 14 e 18 anos, somente 5 horas de trabalho.

Outro Partido Socialista foi criado em 1902. Entendia que contra aexploração dos patrões, se devia contrapor a exigência dos assalariados.Para eles, a felicidade do indivíduo estaria na proporção direta do bem-estar econômico de todos os membros da sociedade. Seu programa mínimopropunha: eleições aos domingos e permanente qualificação eleitoral, 6horas de trabalho para menores entre 14 e 16 anos e proibição do trabalhodo menor de 14 anos. Além disto, instrução baixa à custa do Estado ecriação de escolas noturnas. Organizado o primeiro Congresso OperárioBrasileiro, este propôs a manutenção, pelos sindicatos, de uma escola laica.Funda-se um Partido Operário Socialista em 1908 – e outro em 1909.Repetem-se as diretrizes gerais – promover conferências socialistas e criarescolas.

Em 1912, realiza-se um Congresso Operário do qual participamdelegações de vários Estados. Seria o quarto: 1892 o primeiro, 1902 osegundo e 1906 o terceiro. Dele participam 66 associações, da Bahiainclusive. Em 1913, organiza-se a Confederação Operária Brasileira. Atacamteses reformistas de 1912 e propõem a realização de um Congresso pelaPaz contra a Guerra. Paz real, baseada na efetiva solidariedade internacional.As greves operárias se multiplicam em todo o período da República Velha– Rio, São Paulo e outros Estados (CARONE, 1972).

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SALVADOR: O PÓS-ABOLIÇÃO E A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA

Na Bahia, não houve um crescimento da urbanização como resultadoimediato da Abolição e sim o fortalecimento da atividade rural, com adispersão da população, uma queda na atividade econômica, em crisepermanente desde 1860, crise esta que se acentua após a Abolição e quevem se caracterizar como estagnação a partir de 1920. Os ex-escravos passama ocupar-se, prioritariamente com a agricultura de subsistência, associadaao cultivo de produtos como o fumo como produto de fundo de quintal.Teria havido, assim, a emergência generalizada de um campesinato, nummovimento foi chamado de “pressão dos dominados, livres ou escravos,na direção de um campesinato ou assalariamento”, quando todosdesconfiavam de qualquer tipo de subordinação. Livres, os homenspreferiam “mariscar” que trabalhar em atividade assemelhada a escravidão(BAHIA, 1978).

Ao lado deste processo, tem início um período de pobreza acentuada,com conseqüências sobre o nível de qualidade de vida das classes popularesem geral, mas de forma mais direta dos ex-escravos. A demanda imediatapela sobrevivência passa a ser o centro da vida, a luta principal, nestemomento de reorganização total da vida dos negros, guiando-lhe inclusivea sua inserção na cidadania. Assim, a luta pela liberdade se transforma emluta pela igualdade, a partir da busca do direito básico, mínimo: asobrevivência.

Após a Abolição e em seguimento a Proclamação da República, opera-se uma mudança significativa nas lutas da população baiana. A luta doconjunto da população pobre (onde estavam representados, majorita-riamente os negros ex-escravos e seus descendentes) passa a se desenvolverem duas vertentes: 1- as lutas por melhores condições de trabalho, de salário,etc., através da organização de mutuais, sindicatos, associações, etc., e,2- lutas visando melhorar as condições de vida.

Tomando Salvador como locus de análise, o professor Mário AugustoSantos estuda o período da República Velha e do pós Abolição. Para ele,neste período, predominou em Salvador a segunda forma de luta, comoforma de organização de um “movimento pelo trabalho”. O autor organizaseu trabalho analisando, de um lado as organizações voltadas para o“trabalho” e, de outro, os movimentos voltados para a qualidade de vida(SANTOS, 2001). As organizações mais importantes que surgem, no período

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são: o Centro Operário da Bahia, criado em 1894 depois da extinção doPartido Operário, de cuja criação participara o abolicionista e republicanoManuel Querino, sempre presente; e a Associação dos Empregados doComércio. O Centro Operário, que vamos analisar em seguida como umadas instituições que os negros utilizaram para instruir-se, tinha na instruçãoa sua bandeira máxima, como maneira de atingir a cidadania. Se o seupapel de representação dos trabalhadores é, na opinião do autor, imperfeita,ele tem, além do aspecto da ênfase na instrução, a preocupação com aparticipação político-eleitoral mesmo sem partidarização, a tentativa derepresentação dos trabalhadores e a participação no movimento pelaqualidade de vida da população.

Segundo os estudiosos da República na Bahia, o movimento dostrabalhadores, como conjunto, foi fraco em toda a Primeira República, emdecorrência da insignificância numérica da mão-de-obra fabril, o grandecontingente de pequenas unidades mais artesanais que industriais, etc, e,até, pela não influência do movimento anarquista, forte no Rio de Janeiroe São Paulo dado a presença forte de imigrantes italianos. Já os movimentoscontra a carestia tiveram maior vulto, tendo em vista o alto custo daalimentação e, como conseqüência, as ameaças a sobrevivência física dostrabalhadores. Sua principal organização é o Comitê Popular contra aCarestia de Vida, criado em 1913 e presidido por Cosme de Farias, tambémpresidente da Liga contra o Analfabetismo, que vamos analisar depois. OComitê se reunia ordinariamente no Centro Operário e no Montepio dosArtistas. Os momentos mais fortes deste movimento parecem ter sido, em1913, (embora o autor registre o seu crescimento desde o início daRepública). Em 1913 o movimento dura de 1º. de março a 25 de abril, eincluiu comícios, abaixo-assinados, e passeatas onde se conduziam cartazescom dizeres como “O povo tem fome” e “Abaixo a exploração”.

Os movimentos se sucedem em 1914, 1917, etc. e o autor os classificaentre espontâneos e organizados. Entre os primeiros, inclui quebra debondes, em 1901, o “fecha-fecha” e o “quebra-lampeões”, em 1904, ataqueà Light (companhia de luz e transportes) e depredações da cidade em 1909,o assalto a casas comerciais, em 1914; incêndio de carne e bonde efechamento de padarias em 1927 e depredações contra a Linha Circular(também de transportes) em 1930. Protestava-se, portanto, contra aumentode impostos, do preço dos transportes, da carne, do pão, da luz.

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Já os movimentos que são considerados organizados tomaram a formade comícios, passeatas e reuniões, entendidos como “forma republicana deprotesto” por excelência. Estão ligados também às eleições diretas e aampliação do colégio eleitoral (como também todas as reivindicações deeducação para todos, de escola noturna, de escolas sindicais). Sãomovimentos de massa, que reúnem grande número de pessoas – chegam aacontecer movimentos de 4 mil participantes e mais – sendo que asinformações quanto a seus participantes indicam serem eles “pessoas dopovo”, oriundos das classes populares, trabalhadores, filhos do povo, etc.Entre os mortos e feridos do conflito de 1917, quando aconteceram tiroteioscom a polícia, dos 21 atingidos estavam estudantes, operários, carregadores,carapinas, pedreiros, marceneiros, etc.

Refletindo sobre o crescimento destes movimentos na Salvador doperíodo Pós-abolição, Primeira República, o Prof. Mário Augusto diz queseria difícil encontrar as razões para este crescimento. Pergunta-se se teriampiorado as condições de vida dos setores majoritários da população ou seas remunerações haveriam entrado em maior descompasso com os preços,comparativamente aos anos anteriores. Sobretudo, pergunta-se se a presençados ex-escravos recentes, aumentando o número dos que deveriam proverseu próprio sustento, não teria ocasionado um agravamento, em conjunto,das condições de subsistência da cidade. E responde que, provavelmente,os movimentos poderiam ser explicados por uma possível baixa geral donível de vida das classes populares no Pós-abolição em decorrência de umcontingente de mão-de-obra livre desqualificada, chegando a um mercadode trabalho com pequena capacidade de absorvê-la. Em conseqüência,teriam aumentado os contingentes do sub-proletariado, num momentoem que a conjuntura de preços estava em alta. Articula, assim, osmovimentos, à população negra baiana (SANTOS, 2001).

AS INICIATIVAS POR EDUCAR-SE

Os membros das classes populares na Bahia não só acreditavam no“papel redentor” da escola, como lutaram por ela, tomando a iniciativa decriar classes escolares em suas organizações, para si e seus filhos. A tal pontoera valorizada a instrução que não se encontra, nestas lutas ou pelo menosnos registros que se fez delas, nenhuma posição contra a exigência da

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6 Em artigo publicado no D.O. do Centenário da Independência do prof. Alberto Assis, encontramos o registro deque o Liceu de Artes e Ofícios, em 1923, seguia mantendo as classes de educação primária, com 178 alunos, foraas classes noturnas e profissionalizantes. Como instituição de ensino profissionalizante, teve sua importânciaressaltada durante o Estado Novo. Mantinha também classes noturnas de educação supletiva.

alfabetização para a cidadania ativa, da exclusão do analfabeto do direitoao voto, pelo menos nesse período Republicano “lembrar que, durante adiscussão da Reforma Eleitoral, no Império, parcela do partido liberal, emespecial os abolicionistas radicais, protestou contra a mesma exclusão”, aponto de que nos ocorre pensar de que este é um ponto em que os excluídosestiveram sob a hegemonia de quem os excluía ou, simplesmente, doinstrumento de sua exclusão.

No período imediatamente após a República, dentro desse entusiasmopela educação, diversas organizações que pretendiam representar ostrabalhadores organizaram escolas primárias e cursos noturnos. A primeiradelas, que vem do Império, do período da extinção da escravidão, foi oLiceu de Artes e Ofícios. O Liceu da Bahia era uma associação da sociedadecivil da qual participavam “artistas” e artífices, estava voltado para aformação de mão-de-obra livre para tarefas manuais ou manufatureiras;pretendia ainda funcionar como sociedade de ajuda mútua, além de dareducação aos filhos daqueles artífices. Sua criação estava também vinculadaà formação dos filhos livres dos escravos, e seus estatutos teriam sidoorganizados por advogado ligado às causas dos escravos e criador desociedades libertadoras na Bahia.

Suas aulas foram abertas a partir de maio de 1873 para 166 alunos etinha como objetivo dar, além da educação profissional, “instruçãoliterária”, ou seja, formação geral, para seus associados e os filhos deles. Osalunos que não fossem filhos dos sócios recebiam instrução gratuita, emtroca do subsídio governamental. Em 1891, contava com 1704 sócios.Além da formação para o trabalho, mantinha duas classes diurnas deprimeiras letras “uma para cada sexo” e outra noturna, para adultos.Segundo consta, o Liceu teve também grande importância na vida culturalda cidade, pela formação de pintores, escultores, etc. Relatórios de Atividadedo mesmo liceu mostram um crescimento da instituição no início do século:em 1900, a matrícula chegava a 860 alunos e introduzia-se o ensino decontabilidade e técnica mercantil6.

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Uma segunda instituição, com características semelhantes às do Liceu,surgida de uma dissidência dele, foi a Escola de Belas Artes, incorporada,em 1945, à Universidade Federal da Bahia, quando da sua criação, segundoAcácio França, A Pintura na Bahia, D.O. do Centenário. Mantinha, alémdos cursos de pintor, escultor, arquiteto, empreiteiro e desenhista, duas escolasprimárias. Segundo a Memória Histórica de 1892 a que nos referimos,tinha de 150 a 200 alunos anuais. Em 1923 tinha 68 alunos matriculadosem escola primária.

Outra instituição mantida pelos trabalhadores que também ofereciaeducação escolar, fundada já no período inicial da República, foi o CentroOperário. Criada em substituição ao Partido Operário, pretendia representaros trabalhadores sem ter, contudo, caráter partidário. Tem natureza diferentedo Liceu, este na sua origem uma entidade educacional (embora tambémbeneficiente). No entanto, o Centro Operário que vai participar e às vezesliderar os “movimentos contra a carestia”, face ao alto custo de vida naBahia da Primeira República. De outro lado, nos seus estatutos, pretendeassumir uma face francamente educacional, abrindo espaço para aescolarização dos trabalhadores, seus filhos e também outras crianças,inclusive menores abandonados.

Analisamos a Constituição do Centro Operário (seus estatutos), doisrequerimentos à Intendência de Salvador e ao Conselho Municipal e umexemplar de seu Jornal A Voz do Operário, contendo relatório do ano de1896. O jornal adota como dísticos, de um lado “Proletários do mundo –uní-vos” e, de outro, “Todos por um, um por todos”, como outros vinculadosaos socialistas no início do século XX. Em editorial, dirige-se “Às classesoperárias” como “Artistas, filhos do trabalho, alheios da fortuna, excluídosdas altas posições, e perseguidos da pobreza e da falta de instrução, vítimasdas extorsões, do despotismo, do preconceito e da prepotência – origem daescravidão” (A VOZ..., 1897). No relatório da gestão anterior, ressalta acriação do curso primário diurno, com freqüência de 50 alunos. Já entãoexistia o curso noturno. O requerimento de 1900 tem como objetivosolicitar subsídio governamental para as escolas primárias que mantém,diurnas e noturnas, com a finalidade de dar educação geral e moral e cívicaàs crianças e adultos – “desde quando a instrução primária é um elementoindispensável da grandeza dos povos e é tão necessária à Civilização quanto

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o ar é necessário à vida do homem”. Apresenta, para fundamentar o pedido,estatística das matrículas oferecidas, de 1895 a 1899:

Tabela 2 - Bahia - Matrícula em escolas do Centro Operário (1895 – 1899)

Fonte: Adaptado do requerimento manuscrito do Centro Operário ao Conselho Municipal deSalvador (1900).

Com base nesses dados, apresenta o total das despesas, solicitandosubsídio governamental para parte delas pagamento de professor, porteiro,despesas com iluminação noturna – querozene e espermacete, naquela época,o curso noturno se fazia à luz de velas e de candeeiros.

Entretanto, essa prioridade dada à educação pelo Centro Operárioaparece mais claramente nos seus estatutos. No capítulo referente a suafinalidade, fala, de saída, na aquisição de um prédio que tivesse proporçõespara abrigar as reuniões do Centro “e a construção das oficinas e aulas queo mesmo tem por fim fundar” (CENTRO..., 1896)7. Estava prevista nomesmo estatuto a criação dos cursos primário, secundário, acessório etécnico. A Constituição faz, inclusive, um esboço de currículo para osmesmos:

Primário - conhecimento rudimentar da língua portuguesa. Secundário - dividido em tres seções:1ª - Portugues, Frances, Matemática, Desenho de perspectiva, Geografiado Brasil, História das artes e economia política.2ª - Latim, ingles, alemão, filosofia, história universal, geografia emgeral e mecânica.

ANOS NOTURNA DIURNA TOTAL

1895 48 - 48

1896 50 - 50

1897 59 48 107

1998 83 120 203

1899 90 123 213

7 Arquivo Municipal de Salvador, Caixa do Centro Operário.

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3ª - Curso accessório - Química e física aplicada às artes, Zoologia,botânica e mineralogia.O curso técnico deveria constar de “noções genéricas das Artes e Ofícios.(CENTRO..., 1896).

Estava prevista a criação de uma Biblioteca, de um recolhimento demenores, a construção de oficinas e até o envio, para o exterior, dos alunos“mais inteligentes e habilitados”. Observava, entretanto, o artigo 5° queapenas teriam direito ao ensino secundário aqueles que se destinassem aocurso técnico; os demais teriam direito apenas ao curso primário. Propunha-se, por fim, a criar cursos primários e noturnos nos diversos distritosparoquiais em que se organizava. Um longo programa educacional(CENTRO..., 1896).

O Centro Operário, portanto, mantinha, em 1900, cerca de 120 alunosdo curso primário, mais os do noturno. Segundo Assis (1923), seu cursoprimário tinha 180 alunos matriculados.

Em suma, na cidade de Salvador que tinha, em 1896, no ensino primáriopúblico, pouco mais de 4.000 alunos matriculados, as três instituições:Centro Operário, Liceu de Artes e Ofícios e Escola de Belas Artesmatriculavam cerca de 450 alunos mais, o que tinha algum significado.No entanto, em 1923, a matrícula primária mantida pelas três instituiçõespouco tinha crescido, perdendo significado no conjunto da oferta pública.

Outro rumo tomado pelo movimento popular com relação à questão daoferta de escolas, foi a fundação da Liga Baiana contra o Analfabetismo,coordenada, por muito tempo, pelo Major Cosme de Farias, líder domovimento contra a Carestia e dos movimentos de protesto antes de 1920.A Liga, que era formada inclusive por educadores como Isaías Alves, depoiscriador de escola privada, Secretário de Educação no Estado Novo e fundadorda Faculdade de Filosofia da Bahia, tinha um papel muito mais de agitaçãoe propaganda em torno do problema da alfabetização dos adultos. Foi criadaem 1916, época em que se criaram outras ligas semelhantes no Brasil, ededicava-se a distribuir “cartas de ABC”, tabuadas e o “livro do Bom HomemRicardo”. Em 1925, encontrei correspondência de Cosme de Farias, entãopresidente do Liceu de Artes e Ofícios, ao Governador Góes Calmon,solicitando o apoio deste à Liga, que estaria em decadência. No entanto, elacontinua existindo até 1971, quando do seu falecimento.

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O outro líder popular que circulou em torno da questão foi ManoelQuerino, professor de desenho do Liceu de Artes e Ofícios e do Colégiodos Órfãos de S. Joaquim. Pintor e arquiteto, estudou arquitetura na Escolade Belas Artes, Manoel Querino foi fundador do Partido Operário, anteriorao Centro Operário. Querino, negro, abolicionista e republicano, foivereador da capital e representante (delegado) da Bahia no CongressoOperário Brasileiro de 1892. Querino era liderança, desde a década de1970, da “classe operária” baiana, articulada com a ala radical doabolicionismo. Fundou, com outros militantes, o Jornal O Trabalho, em1892. Criador da Liga Operária, em 1875, a qual, a exemplo do queacontecia em outras cidades, funcionava como “cooperativa de trabalho”na área da construção civil, entrando em concorrências e empreitando obraspúblicas. Criou também um jornal da Liga Operária, que durou de janeirode 1877 a fevereiro de 1878. Em 1887, criou outro jornal, A província,que durou um ano. Escreveu também na Gazeta da Tarde, jornal doabolicionista Pamphilo de Santa Cruz. Na década de 1890, ter-se-iadesencantado das atividades político-partidárias da República na Bahia. Apartir daí, se volta para atuação na Sociedade Protetora dos Desvalidos,criada em 1835 como Junta de Alforria, ou seja, espécie de organização deauxílio mútuo de escravos para sua libertação, segue existindo até hojecom a peculiaridade de que só admite negros em seu quadro social; e parao estudo da história das artes na Bahia, publicando livro sobre o assuntoem 1909. Passa a escrever sobre “usos e costumes” da Bahia, publicandolivro sobre “A Bahia de Outrora”.

Por fim, em 1915 e 1916 realiza uma série de trabalhos sobre a presençaafricana na Bahia, sendo o primeiro a retomar o assunto, após a morte deNina Rodrigues (veja-se que o principal livro de Nina, Os africanos noBrasil só vem a ser publicado em 1937). Nos 5º e 6º Congressos de Geografia,organizados pelo Instituto Geográfico e Histórico, apresenta trabalhosintitulados A raça africana e seus costumes na Bahia e O Colono pretocomo fator de civilização nacional. Em nossa opinião, a importância deManoel Querino vem de seu papel de elo de ligação entre os movimentosabolicionista, o republicano popular, o movimento operário e, por fim, deum movimento de resgate das raízes negras. Querino é o primeiro autorque, desde estudos etnográficos, começa a afirmar o valor positivo dapresença do negro no Brasil, protestando expressamente contra “a presunção

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8 Ver SANTOS FILHO, 2005 e 2006.

(racista) da inferioridade da raça negra, que atribuía a boçalidade aqualidade congênita” (QUERINO, 1955). Argumenta que o estágio deconhecimento em que se encontrava o negro era resultado da opressão doforte contra o fraco, efeito da ação do “português, que fez do africano amáquina inconsciente do trabalho” (QUERINO, 1955).

MÚSICA, BANDAS; ABOLICIONISMO E MUTUALISMO

Os estudos desenvolvidos sobre a presença e a atuação de um mestre debandas da Bahia – mais especificamente de Cachoeira, no Recôncavo,irradiando-se por outras cidades próximas, Mestre Manuel TranquillinoBastos, maestro fundador de vários cursos de instrução de música em Paris,nos trouxeram dados novos sobre a participação de negros, artistas, nomovimento abolicionista e, no Pós-abolição na organização do trabalho.No material existente em seu acervo, no setor de obras raras da BibliotecaCentral do Estado da Bahia, por Juvino Alves8, dentre os manuais de ensinode música que escreveu, coletou e traduziu, encontra-se material sobre aorganização de bandas enquanto Sociedades Musicais Civis, nos moldespraticados em Paris. O Manual completo do Diretor de Música ou Tratadode Organização das Sociedades Musicais Civis por ele traduzido e adotadocomo guia de ação, fala, além do papel do ensino da música e das letras, dafunção de apoio mútuo, caridade e filantropia, inclusive pela mobilizaçãoem socorro a pessoas e situações de calamidade (CLODOMIR, [18–]).

Bastos atuava como compositor, educador musical, arranjador,instrumentista, escritor, teórico musical, político, pensador e abolicionista.Nascido da união de um português com uma negra alforriada, aindamenino aprendeu a tocar clarineta e se incorporou ao Coro de Santa Cecília,a padroeira dos músicos e, mais tarde, à Banda Marcial São Benedito,formada basicamente por músicos negros (RAMOS, 2000).

De acordo com sua autobiografia, escrita em seu Caderno de Anotações,entre 1910 e 1924, Tranquillino foi o responsável pelo surgimento de seisa oito filarmônicas, criando ou organizando-as. Dentre elas estão a BandaMusical da Sociedade Euterpe Ceciliana e sua orchestra religiosa, que maistarde tornou-se a Sociedade Cultural Orpheica Lyra Ceciliana (1870), a

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9 Hymno Abolicionista (1884) (Música de Manuel Tranquillino Bastos e Poesia de Furtunato Tinoco, Bingre e Thomé)Brasileiros cantai liberdade./Nossa pátria não quer mais escravos./Os grilhões vão quebrar-se num povo/Deorigem somente de bravos./Em tudo inspira a santa voz da liberdade /No mar, nas selvas, Na immensidade/E jáno céu se vê escripto em letras d’ouro/Redempção ao captivo É seu thesouro. /O jugo do servilismo/Róle empedaços no chão/Pise altiva a liberdade sobre o pó da escravidão/Abaixo a crença do velho atrazo/ Que doscaptivos venceu-se o prazo/ Quebrem-se os ferros da tyrania, sejamos todos livres um dia. Nosso throno ha delivre, altaneiro, Alvorar o liberto pendão /E Dom Pedro sentado no throno/ Bradará liberdade à nação. /Rompa-seo verso infamante/ A custa de esforços mil. /Deus não quer, nós não queremos q’haja escravos no Brazil./ De RioBranco surgio a idéia,/De Souza Dantas a epopéia. /Pedro Segundo Tua equidade/ Seja a coroa da Liberdade.

Filarmônica Comercial e a Harpa Sanfelixta, da cidade de São Félix, aBanda da Sociedade Filarmônica Victoria, de Feira de Santana e a SociedadeMusical Lyra São Gonçalense, de São Gonçalo dos Campos, hoje todascentenárias e algumas delas extintas, como a Sociedade Filarmônica Victoria,a Harpa Sanfelixta e a Filarmônica Comercial. A primeira Banda regidapor Tranquillino pertencia à Sociedade Recreio Cachoeirano.

Esteve sempre à frente dos movimentos sociais e políticos de sua cidadenatal, Cachoeira-Bahia e de seu país. Isso pode ser verificado através dealgumas de suas obras como o Hymno Abolicionista (1884)9, Hymno 13de Maio (1888), Hymno da Cachoeira (1922), ou o Dobrado NavioNegreiro, homônimo do poema de Castro Alves, seu contemporâneo. Essasobras eram compostas como forma de protesto e repúdio à escravidãoexpressado através de seus escritos em forma de crônicas, que versavamainda sobre assuntos diversos como arte, religião, cultura, vida, morte,comportamento social, música, e vários outros temas humanísticos. Essascrônicas eram publicadas numa coluna dominical denominada de CartasMusicaes no semanário O Pequeno Jornal, entre 1924 até sua morte, em1935, e que circulava em Cachoeira. Tais crônicas foram arroladas porTranquillino em um livro, não publicado e intitulado Minhas Percepções.No dia 13 de maio, anos seguidos, escreveu sobre a importância da aboliçãoda escravatura. Um trecho de uma destas crônicas diz o seguinte:

O 13 de Maio.

O 13 de Maio, é a abolição do crime e alforria dos martyres. Entre os usurpadoresda liberdade, que se constituíram senhores, e os usurpados que se curvaramcomo escravo, ha n’elles duas altitudes em contrasto. Os primeiros, foraminfelizes pela perversidade diabólica do seu commercio; os segundos, os felizespor tormentados! Effectivamente, não ha razão para se occultarem áshomenagens festivaes, dessa dacta gloriosa;os martyres da pervorsidade humana,cedendo á elles (os infelizes) a vanguarda das festas da redempção moral ephisica, como se o piccado fosse virtude e a virtude peccado. Avante pois ao “13

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de Maio”, festejemos a inhumação do crime, do erro e da perversidade, e aexhumação e a resurreição do Direito e da Justiça (BASTOS, [193-?]).

Segundo um seu biógrafo, Ramos, Tranquilino foi no Recôncavo “OMaestro da Abolição”.

Abolicionista ferrenho, saiu às ruas de Cachoeira na noite de 13 de maio de1888 à frente da Lyra Ceciliana – filarmônica fundada por ele 18 anos antescom o nome de Euterpe Ceciliana –, arrastando mais de duas mil pessoas, amaioria negros recém-libertos, comemorando a assinatura da Lei Áurea. Aquelemomento histórico seria retratado por ele na composição Airosa Passeata, umadas mais conhecidas e de maior presença no repertório das filarmônicas dointerior baiano, principalmente no Recôncavo (RAMOS, 2000 apud SANTOSFILHO, 2003a, p. 21).

Ainda sobre o repúdio à escravidão ele escreveu:

Alleluia pelo 13 de Maio.

Cantemos o seu Hymno, pela abolição do crime, e da resurreição do Direito eda Justiça. Hosana pela Victoria da civilisação contra a ignorância selvagica.Não mais se compram nem se vendem mais; viva, viva a segunda felicidade danossa Pátria; maior que a primeira e muito mais a terceira. Foi a mão daLiberdade abrindo o Palácio da Independencia. Hosanas por tudo isso!(BASTOS, [193-?]).

Tranquillino Bastos conviveu com nomes da política e da arte da Bahia,dentre eles: José dos Santos Barreto, Eduardo Mendes Franco, FranciscoJosé da Costa, João Manoel Dantas, José de Souza Aragão, Ernesto SimõesFilho, Monsenhor Elpídio Ferreira Tapiranga, Carlito Onofre, e o distintopoeta Sabino de Campos que escreveu a letra do Hymno da Cachoeira,com música composto por Tranquillino em 1922, e que foi apresentadono dia 25 de junho por ocasião das comemorações do Centenário daIndependência do Brasil, e em homenagem à participação de Cachoeira naguerra contra as tropas portuguesas (1823). As crônicas escritas porTranquillino e publicadas em “O Pequeno Jornal” são testemunhos de suaépoca. Muitos dos seus questionamentos perduram até os nossos dias.Coloca-se numa postura crítica contra o militarismo, a corrupção política,o capital que explora o trabalho, a censura à imprensa, o hábito de comercarne, a destruição da natureza e os maus tratos contra os animais, ocoronelismo, a desigual distribuição de renda na sociedade e o voto de

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cabresto. Manifestou sua desilusão com a implantação da República noBrasil. Critica com veemência a violência policial contra os praticantes docandomblé, considerando tais perseguições um descumprimento dos direitoshumanos regidos pela Constituição Brasileira. Falou ainda sobre a medicinanatural, a homeopatia, o estudo do espiritualismo, da filosofia,conhecimento de línguas, o domínio das letras, tendo um amplo e variadoconhecimento musical e uma elaborada apreciação crítica do mundo,documentada em seu livro não publicado Minhas Percepções, o distinguedos demais Mestres.

Tranquillino Bastos legou à posteridade um acervo com cerca de 1.500(hum mil e quinhentos) documentos musicais entre manuscritos e impressosconstando partituras, livros de crônicas e de teoria da música de sua autoriae de outros autores brasileiros e estrangeiros. Formou muitas gerações demúsicos em várias cidades da Bahia durante sua longa atividade, que duroumais de sessenta anos, como professor de música, regente, compositor,arranjador, instrumentista, formando músicos de renome, como IrineuSacramento, que o sucedeu à frente da banda da Sociedade Orpheica LyraCeciliana e que conquistou notoriedade como Mestre de Banda na Bahia.

COMUNALISMO, MUTUALISMO, LUTAS POR EDUCAÇÃO. AS DIVERSAS

FORMAS DE EDUCAR-SE

Nossos estudos sobre o período que se segue, entre 1940 e 1980, quandose reintroduz o quesito de cor da pele nos Censos Demográficos brasileiros,mostram que o crescimento do sistema escolar no Brasil acontece de mododesigual no território brasileiro; esta desigualdade se mostra tanto em termosregionais – assimetria entre as diversas regiões brasileiras – como entre orural e o urbano e entre cidades de maior e menor porte. Estas desigualdadesnão são explicáveis por elementos tais como maior interesse por escolarizaçãonos estados industrializados, vinculando a vida rural ao desinteresse porescola; ou por diferenças advindas do ambiente mais ou menos inóspito,que vinculam as condições de existência à maior ou menor quantidade dechuva existente. Nossos dados mostram que, no conjunto, são mais pobresos que têm menor acesso à escola. Mostram também que a incorporaçãodos negros à escolarização é mais lenta e segue reduzida em face aoscontingentes dos chamados brancos.

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Os dados são verdadeiros tanto para o Brasil como para a Bahia e,tomado como elemento de comparação por ser o Estado mais rico daFederação, para S. Paulo. Isto nos remete à discussão sobre relações raciaisou sobre desigualdades cuja explicação ultrapassam as causas mensuráveisobjetivamente – tipo riqueza, local de moradia, nem por isso pouco injustas– para chegar no campo das causas subjetivas, como a possibilidade daexistência de preconceitos e formas de discriminação.

Desenvolvemos ainda um estudo com relatos de vida de negros dacomunidade baiana, realizado na década de noventa do século XX,discutindo as suas relações com a educação e a escolarização e as suasformas de aprender e de melhor utilizar o seu aprendizado. Encontramosque na sua resistência à exclusão, desenvolvem formas próprias de luta pormelhores condições de vida, que passam por construir solidariedades, formasde organização próprias que no bairro, no trabalho, nas práticas religiosasou nas formas culturais, os mantêm coesões, travando as lutas do dia adia, e guardando saberes que lhe vieram de seus antepassados. Na nossaopinião, não são cumpridas as expectativas de autores do início do séculoXX, como Nina Rodrigues de que estes costumes ou saberes tendiam adesaparecer no prazo máximo de cem anos (NINA RODRIGUES, 1988).

As informações que apresentamos neste texto, referentes ao períodoanterior ou ao que se segue imediatamente à Abolição da escravidão abrem,para mim, uma nova vertente para estudo, qual seja a presença e liderançade negros baianos em movimentos sociais e organizações vinculados aotrabalho livre, pela via dos artífices, que vão desde a organização desociedades de ajuda mútua como a criação de jornais, de partidos operários,de escolas e de cursos noturnos vinculados a fábricas. Criam-se instituiçõescomo a Sociedade Protetora dos Desvalidos, o Montepio dos Artistas, oLiceu de Artes e Ofícios, a Escola de Belas Artes, o Centro Operário daBahia; alguns deles organizações apenas de negros, como a Protetora dosDesvalidos, existente desde 1832.

Nos ajudam nesta nova leitura desse momento, além de Mário AugustoSilva, por nós já conhecido, os trabalhos de Foot Hardman e de Maria dasGraças Leal sobre Manoel Querino. Os dois encontram, via ManoelQuerino, relações desses movimentos e organizações com movimentos ediscussões de idéias internacionais. Para Foot Hardman, haveria pontos deintersecção entre Querino e as primeiras gerações do movimento operário

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internacional, encontrando em sua obra “elementos socialistas, libertários,positivistas e jacobinistas” (1988, p. 76) . Aponta, nos seus trabalhos sobreas artes na Bahia, “uma certa concepção utópica do papel regenerador daarte/artesanato na sociedade industrial muito próxima, em vários prismas,do movimento de ‘artes e ofícios’ [Arts & Crafts] criado pelo socialistalibertário inglês William Morris” – que seria uma das fontes básicas dodesenho moderno (HARDMAN, 1988, p. 75).

Maria das Graças Leal, em sua tese de doutoramento, afirma que oscírculos trabalhistas, dos quais era exemplo a Liga Operária, criada porQuerino em 1876, divulgaram no Brasil, durante o século XIX, novaconcepção de sociedade, com presença de elementos cooperativo-socialistas.Ela registra a presença no Brasil de influência do socialismo utópico deProudhon desde a Revolução Praieira de 1848, especialmente pela vertentedas sociedades de ajuda mútua, do mutualismo como movimento (LEAL,2004). Isto, sim, estaria claramente presente nas formas de resistência negra,desde as juntas de alforria e das irmandades, passando pela criação daSociedade Protetora dos Desvalidos e pela criação de uma série deassociações de ajuda mútua desde as sociedades abolicionistas.

Em favor das colocações de Leal, encontramos no exemplar do jornalA Voz do Operário, – órgão oficial do Centro Operário –, de 15 de junhode 1897, além das notícias referentes à estruturação e implantação da escolado Centro Operário e das diversas regionais do Centro, entre as notas dasua seção Noticiário, o registro das comemorações do 1º de maio de SãoPaulo e o recebimento de exemplar do Jornal O Socialista, referindo-se aoCongresso Socialista de Paris de 1889. Registra também o recebimento deoutro jornal operário – O Eccho Operário, com as notícias sobre ascomemorações do 1º de maio de 1897. Falando do número especial dojornal referido, comenta tratar-se de “trabalho que muito elevou o valorintellectual dos trabalhadores do futuro partido universal – o Socialismomoderado” (A VOZ..., 1897, p. 4).

A leitura atenta do próprio material de Leal nos mostra a presença deduas vertentes nesse primeiro movimento do trabalho no final do séculoXIX e início do século XX; um, comandado pelo Centro Operário,comandado por Domingos Silva, mais fortemente ligada “à Ordem e aoProgresso”; outro, liderado por Manoel Querino. Aliás, a militância deManoel Querino, ao longo de sua trajetória, mostra a sua filiação a uma

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10 Cargo na hierarquia do Candomblé.

corrente de pensamento que, dentro da Bahia, procura uma maior autonomiadas classes “artísticas” face aos partidos então existentes. É assim que atuandodentro do Partido Liberal, assina o manifesto pela criação do ClubRepublicano na Bahia, em 1877; na criação da Liga Operária em 1876, emdefesa de um mercado de trabalho para os trabalhadores urbanos; acompanhaCañyzares na saída do Lyceu de Artes e Ofícios para a criação da Escola deBelas Artes, em 1877, a partir de divergência no interior do Lyceu; nomomento de criação do Partido Operário, em 1890, quando passa a atuarno grupo do Conselho Diretório da União Operária. Procura canalizar suamilitância do ponto de vista político partidário; chega a propor a criação deum Partido Socialista, não efetivada; candidata-se para o ConselhoMunicipal e é eleito, uma vez como suplente e outra vez como membro. Noentanto, logo deixa de entrar nas listas para eleição.

A partir de 1903, muda sua trajetória como intelectual: passa aincorporar na defesa do trabalho, a militância em favor do “trabalhadornacional”, negro, descendente de africanos. Transforma-se assim, deliderança de trabalhadores urbanos livres, em intelectual em favor de umasociedade mais livre e igualitária. Passa a atuar em um conjunto deassociações da sociedade civil: Irmandades, Sociedades de Ajuda Mútua,Escolas de formação profissional como: Lyceu de Artes e Ofícios e CasaPia e Colégio dos Órfãos de São Joaquim, Instituto Geográfico e Histórico,Sociedade Protetora dos Desvalidos, Sociedade Montepio dos Artistas, dentreoutros, além de participar e ajudar na defesa de centros de religião Afro-brasileira, inclusive como Ogãn10.

Também Antonio Sérgio Guimarães, em texto denominado ManoelQuerino e a construção do pensamento negro no Brasil entre 1890 e 1920,(GUIMARÃES, 2004) procura fazer uma análise do pensamento de ManoelQuerino enquanto intelectual negro, a partir da sua produção. Para ele,Querino colocava-se como brasileiro, descendente de africanos e integradoao pensamento da mestiçagem como valor positivo.

O que nos parece interessante reforçar no nosso trabalho é que osmovimentos ditos de trabalhadores ou de luta por melhores condições devida na Bahia (aqui incluídas as iniciativas por educar-se) atingiam, noPós-abolição e nos anos da Primeira República, a vida dos negros –

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denominados como “trabalhadores nacionais”. E que são homens negroslivres que participam e/ou disputam a sua direção. Embora não se tenhaencontrado texto que explicitamente mostre um “pensamento negro”, nosmoldes do que acontece nos Estados Unidos, na Bahia da PrimeiraRepública, é ainda a partir de Manoel Querino que aparecem os primeirosescritos, datados dos anos 1915, 1916 que afirmam a presença africana/negra entre nós como um fator positivo e, como ele assim diz, a suaimportância na colonização do Brasil – colidindo frontalmente com aidéia da inferioridade da raça negra e da mestiçagem como fator dedegenerescência. Seu debate é com o processo de exclusão, pela via dopreconceito, do negro – ex-escravo – do mercado de trabalho e da cidadania.A afirmação da presença de elementos culturais africanos no Brasil, comodemonstrativos do papel civilizador dos negros, coloca em pauta paradiscussão a possibilidade de mais de um padrão de civilização, num mundoem que se pretendia uma única via da civilização e em que os povos e suasvisões de mundo estavam ordenados e hierarquizados a partir dela.

REFERÊNCIAS

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Saga nordestina: identidade(s)cultural(is) e exclusão social1

Yara Dulce Bandeira de Ataide

Neste artigo, apresentaremos um olhar sobre a temática quedenominamos de saga nordestina: identidade(s) cultural(ais)e exclusão social. Adotamos como explicação operacional paraentendimento do conceito de identidade(s) cultural(is) estaafirmação de Hall (2005, p. 8): “São aspectos de nossasidentidades que surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturasétnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acima de tudo,nacionais”

O artigo consta de três partes: na primeira, serão apresentados algunsaspectos da história oral de vida de duas colaboradoras de um projeto denossa autoria, intitulado Clamor do Presente: história de famílias em buscada cidadania. A partir destes relatos, enfocaremos as questões relacionadasàs suas origens, às autodefinições e, principalmente, aos assuntos ligadosà nordestinidade.

Na segunda parte, pontuaremos alguns aspectos da questão dasidentidades no mundo atual. Na terceira, relacionaremos história de vida,identidade, unidade e diversidade cultural em referência à realidadenordestina. Tomamos como base da discussão explicações teóricas utilizadaspor Michel Zaidan Filho nos seus estudos sobre O fim do Nordeste eoutros mitos (2001). Finalmente, levantaremos algumas conclusões.

1 Este artigo é uma adaptação da palestra proferida na sessão de encerramento do VI Encontro de História Oral doNordeste: Temática, Memória(s) Cultura(s) e Nordeste (s), realizado em 05/05/2007, em Ilhéus – Bahia.

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HISTÓRIAS ORAIS DE VIDA

As entrevistas que se seguem são parte de uma colônia da citada pesquisa.Foram transcritas, textualizadas e passaram por algumas correçõeslingüísticas para facilitar a leitura, tendo sido, porém, mantida a integridadedas falas.

“Se a colheita é boa, a gente vende tudo só pra pagar o bancoe tá sempre na miséria...”Tenho seis filhos... Marido, eu não tenho mais... Nós chegamos aqui

tem uns dez meses. Viemos de Pernambuco, fugindo da seca... procurandoemprego. Naquele tempo, ele tava com a gente. Quando chegou aqui ele seajuntou com uma turma de desempregados que saia prá procurar emprego.

Esse pessoal que se ajuntou com ele era gente muito ruim, braba... Depoisque ele se ajuntou com esse povo de satanás, ele começou a xingar osmeninos... A bater na gente... A fazer coisas ruins que ele não fazia antes...Uma noite, ele deixou a gente... Sumiu... Nunca mais tive notícia dele!...

Lá em Pernambuco, nós tínhamos uma casinha e um terreno, no interior,numa zona muito seca... A gente veio prá cá por causa da seca. Aqui, nemarranjamos canto pra morar, nem emprego... Agora, nem voltar mais agente pode.

Lá na roça tinha uma escola... Nós andava muito prá chegar lá... Maisaprendeu pouco... Só sei assinar o nome... Era tudo difícil, naquele tempo....

Eu fico o dia todo aqui na rua, pedindo... Pedindo num canto, pedindono outro... os meninos vão prá sinaleira... Eles limpa vidro... pede dinheiro...Eu fico por aqui, sentada, pedindo... Quando dá umas 4 horas os meninosvoltam... Aí, a gente junta os dinheiros do dia, as coisas de comida quecada um conseguiu juntar... a gente vê o dinheiro que tem, o que podecomprar com ele... E vai cuidar de comprar o que comer...

Nós não temo nada.... Só uma duas camisas velhas, dois cobertores,uma panela e umas cinco colheres... Estas coisas a gente deixa guardada,perto da barraca de Sônia, aquela mulher morena daí... Quando fica denoite, a gente se junta e cata papelão e jornal, vai num canto desses, ounuma marquise, aqui perto. Todo dia é a mesma coisa... Uma luta prácomer e dormir....

Meus meninos, até agora, graças a Deus, não tem problemas com apolícia. Eu tô dominando eles direitinho e eles não fazem mal a ninguém,

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nem brigam com os outros... Na rua, o dia não é muito ruim, não... Maisde noite é um horror. Aparece muito maloqueiro querendo tomar nossocobertor... Se a gente tiver alguma sacola de roupa ou comida, eles pegam...Eles vem e rouba a gente... A gente toma aquele susto, e ele sai correndo...Às vezes leva... Às vezes não leva nossas coisas...

Nossa vida é ruim demais... A gente fica todo dia pedindo... Não achauma pessoa que dê uma ajuda... Queria tanto que alguém me ajudasse afazer um barraco e arranjar uma creche prá os meninos .

Só aparece gente dizendo que vai levar os meninos pro juizado.Se não fosse Deus, não sei o que seria da gente... Acho que é Ele que dá

força à gente... se não fosse Ele, acho que todo mundo tava revoltado...Tem vez que a gente quer fazer uma besteira, mas se lembra de Deus epede força a Ele prá vencer satanás e Deus dá esta força prá gente...

Você veja... Passa dias e dias... Não aparece coisa boa, nenhuma soluçãoprá aflição da gente... Tem horas que fico pensando em acabar com tudo...Até com a vida...

O culpado da gente tá nessa situação é o prefeito... É o governador, quenão ajuda o pessoal que carece de tudo... Eles só quer tudo prá eles... Mesmorico, quer mais riqueza... Não dão uma força prá os pobres. A agente moravano sertão... Morria de trabalhar, se quisesse plantar um legume, ia pedir ajudana prefeitura e eles não davam. A gente ia pró Banco, pedia um empréstimo...Quando tirava os legumes, o dinheiro ficava todinho na mão deles.

Às vezes não tem safra, não chove... Se a gente tiver uma coisa, umacriação, um boi, uma vaquinha, o banco toma, como tomaram da gente.Como a gente não pode pagar o empréstimo prá plantar, porque não teveinverno, a agente perdeu tudo... távamos devendo tanto, que tomaramtudo nosso e a gente ainda ficou devendo...

No interior, nunca ninguém vai prá frente... A gente morre de trabalhar...Quando produz o legume, vende tudo mais barato. Vem os carros da cidadecomprar os legumes da gente por uma mincharia, e a gente tem que vender,porque, senão perde tudo. Nós temos que vender prá se alimentar porquetem vez que a gente tem feijão e arroz, mas precisa de café, de açúcar que agente não tem, né?... E a roupa prá vestir, o remédio... Tudo que a gentetem, vende barato, e tudo que precisa comprar, compra muito caro...

Por que ninguém ajuda a gente, lá na roça?... É tudo na miséria, eles sóquerem explorar a gente... O povo peleja prá ir prá frente, mas só vai prá

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traz... A culpa é dos governadores... Dos presidentes, que não olham prápobreza, por isso a pobreza tem que sofrer mesmo.

Eles não ajudam ninguém, não dão oportunidade prós pobres, só queremtudo prá eles... Por isso o pobre não vai prá frente... Não tem nada... Osricos é que aumentam a miséria do mundo... O pessoal tá aí, se acabandode fome, precisando de ajuda, e ninguém olha a vida deles...

Muitos pobres tem que sair do lugar deles prá catar recursos, vai prácidade comer lixo, pedir esmola, porque aqui aparece alguma coisa, e nointerior tem que plantar e esperar que dê... e se não der, como é que o pobrefica?...

Lá no sertão, a gente trabalha no verão, vai aprontando a roça, e quandochega a chuva, a gente planta... Se não tiver semente, vai na prefeiturapedir... Aí, eles dizem que vão dar... Venha tal dia... Quando a pessoa volta,parece que tem um buraco no chão, porque a gente não vê o prefeito... Sóvê aquela moça entrando e saindo...

Ela diz: ele chega já... Espere mais um pouco... Quando chega meio-dia, a gente tá se acabando de fome, lá na porta da prefeitura... Mas nãoaparece ninguém... Aí, as moças dizem:

– Ah!... O prefeito já veio e já foi embora... Ah!... Ele não veio hoje,não...

Parece que tem um buraco no chão... que ele entra e sai, e ninguém vê...Tem vez que ele manda a gente ir ao Banco... Lá as pessoas tomam

dinheiro emprestado... Aí, quando tem terra, eles faz o abate, mede as tarefas,vê quanto a gente vai receber. Eles arrumam o dinheiro prá comprar asemente prá gente plantar.... A gente planta... Quando não tem chuva, aplantação morre... Não tem colheita... A gente fica na miséria e devendoao banco... Também, se a colheita é boa, a gente vende tudo só prá pagaro Banco, e tá sempre na miséria!... Não tem jeito, não, moça!...

Não confio nos políticos... Depois que eles ganharem, que tiverem maisricos, aí é que vão pisar no pobre.

Vai ser sempre assim... No país, todo mundo tá se acabando... Daquiprá diante, ninguém vai esperar tempo bom, não... Nós já tamos no fim daera e já não tem mais bondade no mundo não... agora, só vai ter fome,peste, desgraça... mesmo prá quem tem riqueza... Eles não vão dá... Quemnão tem, vai ter que morrer de fome, vendo tanta riqueza no mundo... Temtanta coisa... A gente tem mesmo é que pedir, mesmo sabendo que ninguém

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dá... É por isso que tem muito roubo ai... Quem vê a riqueza dos outros,pede um pouquinho prá matar a fome, e não recebe nada, fica com raiva evai roubar....

Como meu menino tava dizendo – tem dia que ele chega aqui chorando– vê uma pessoa comendo, vai pedir... Ta com fome, e o pessoal não dá...Enxota e humilha ele, dizendo:

– Vai trabalhar vagabundo, quem não trabalha, não come!...– Trabalhar em quê ?...– Cadê o trabalho?...Trabalho prá menino não tem, não, senhora.Nós não acha nada prá fazer. Sai nas casas pedindo trabalho, pedindo

prá trabalhar, mas as pessoas têm medo da gente... Pensa que a gente éladrão... Que vai roubar, porque muita gente ruim faz isso... Pensa quetodo pobre é ladrão... Pensa que a gente vai fazer isso, também... Aí, comonão acha trabalho, a gente tem que mendigar... Tem que pedir, mendigar opão, até o dia que der... Esperar uma melhora...

A vida é tão dura que às vezes a gente tem vontade de fazer uma besteira...Assim... Dá vontade de pegar e roubar... Pegar os filhos da gente e dartodos e ficar sozinha no mundo.... Mas, depois eu penso que ainda temDeus no mundo, tomando conta dos pobres, de nós todos, de todos aquelesque acreditam Nele e, aí, fico pedindo forças a Ele... O pobre, que tá namiséria, fica desesperado quando imagina que seu caso não tem solução...Quando pensa que não tem ajuda de ninguém, e não sabe o que podefazer prá melhorar a vida...

Meus filhos são bons... Se não fossem eles, eu já tinha morrido, ou feitouma besteira... Mas, eu não posso fazer nada errado, por causa deles, né?...Tem vez que eu digo prá eles:

– Vou dá vocês!... Tem gente rica que passa aqui, e pede vocês prá criar...Eles olham prá mim, com medo, aí, eu digo prá eles:– Vou dá vocês, sim!... Mas,eles choram e dizem:– Ó, maínha, não quero morar com gente rica, quero ficar com a

senhora... Prefiro ficar na rua sofrendo... Nós todos quer ficar juntos, narua sofrendo, mais junto da senhora!.......

Falo assim, na hora do desespero, mas nunca vou ter coragem de largarmeus filhos... Nem eles têm coragem de ir embora e me largar...

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Eu tenho uma menina, a Ana Paula... Uma mulher pelejou prá levarela... Até deixei, mas ela disse que não ia... A mulher prometeu uma Barbieprá ela, disse que dava uma porção de coisas, e ela disse:

– Se quiser me ajudar, me leve junto com meus irmãos e minha mãe...Só quero ir se todo mundo for junto...

Essa mulher tinha uma casa muito bonita, com piscina, muitobrinquedo, muita comida... Mas, ela preferiu ficar aqui, na miséria, semnada, mais perto de mim.

Era bom se a gente tivesse tudo junto, e eu tivesse com meu marido... Jánem me lembro mais dele... Faz muito tempo que ele foi embora... Lá naroça, ele era bom... Trabalhava... Cuidava da gente... Quando chegouaqui, quando ficou sem emprego e se juntou com a turma de maloqueiros,começou a beber... A cachaça acabou com ele... Ele batia nos meninos e emmim, e não trazia nada prá nós... Passava um bocado de dias sumido evoltava sem nada... Tava sempre bêbado e brigando com a gente.

Eu tenho esperança em Deus, um dia eu saio da rua... Alguém vai meajudar... Vai me dar um barraquinho... Aí, a gente sai da rua, de vez...Vamos vender ficha, vender qualquer coisa prá arrumar uns trocados...Ficamos na rua direto, trabalhando, pedindo... Mas, de noite vou ter meuranchinho prá morar, uma escola prá botar os meninos prá estudar... E,assim a gente vai levar a vida.... Quando os meninos for prá escola eles vãoficar sabidos e depois vão achar trabalho... Só estudei um pouco na escolada roça, mas acho que a escola ajuda as pessoas a ficar sabida... Se eutivesse estudado não tava aqui...

Tenho fé que eu vou conseguir, nem que seja uns pedaços de madeira euma lona... Se eu tiver uma lona, finco quatro paus no chão, boto minhalona em cima e fico lá... Me prometeram que, no Natal, vão me dar alona... A madeira a gente arranja... Com ajuda de Deus a gente consegue...

– Deus é bom, né, moça?.. Ele já ajudou a senhora alguma vez?...

Neide, 32 anos, parda.

“A criança nasceu morta e eu fiquei arrebentada...”Ah! minha filha!... A gente morava em Mata de São João. Lá, José

trabalhava e eu também... Mais veio a doença... Eu era doméstica,

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trabalhava muito e já tinha quatro filhos grandes... O José trabalhavapros outros... Um dia, caiu de um andaime...

Naquele tempo os meninos mais grandes se espalharam... Foramtrabalhar nas casas e José, meu marido, Zinho e eu ficamos numa casinhaque nós alugava... Todos dois doentes!...

Um dia, o Zinho pediu ao prefeito umas passagens pra trazer nós aquiprá Salvador... Queria botar nois no hospital e arranjar emprego...

Chegamos na rodoviária e o Zinho levou nós pró Hospital de IrmãDulce... passamos o dia todo na porta, dormimos lá... Depois de uns doisdias conseguimos ir pro médico. Ele me internou uns dias e foi muito bomcom nós... Mais não quis internar o José. Disse que não precisava e passouremédio pra ele...

O José e o Zinho não tinham lugar pra ficar... Se arranjaram numcantinho perto do hospital e ficaram penando na rua... Quando o doutorme deu alta tive que ir pra rua também... Era carregada nos braços... Nãome mexia sozinha...

Foi um horror viver na rua!... Até sede nós passamos e o Zinho nãopodia trabalhar, só pedia comida e água e cuidava de nós... Passamos umbocado de tempo no Bonfim, mais depois prometeram ajudar a gente...Um homem da prefeitura... Mas ele não voltou mais...

Paramos uns tempos lá e fomos indo de um lugar pra outro até chegaraqui na Piedade...

Nesta rua, o povo não tem nem dó de nós... Vai pra lá e pra cá... E numquer saber se a gente tá vivo ou morto... Só um pingo de gente olha pra nóse dá uns trocados... E tem pena de nós e dá umas roupinhas, um cobertor...

Minha filha, nem sei mais como era minha família em Mata... Quandoos meninos eram pequenos e nós trabalhava, tudo era bom... A gente tinhafamília e tinha casa, comida e parentes... Nós agora somos só uns esmolés,umas porcarias, sofrendo na rua...

Eu só quero que Deus me ajude a morrer em paz antes de José e do Zinho...Meus outros filhos não existem mais, se não fosse o Zinho... Tava tudo

acabado...Quando nós tem o que comer, nós faz um fogo e pega uma lata pra

cozinhar a comida... Eu ainda sei fazer umas gororobas2...

2 Gororobas gíria que significa comida popular, misturada, um arranjo.

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Nós só tem Deus por nós... Se Ele não ajudasse os pobres tudo tavaacabado.

O trem mais ruim daqui é o frio de noite e a fome... Quase todo dia...Não sei ler, não sei escrever e penso que votar não adianta nada... Os

ricos tão lá e os pobres aqui se acabando... Nunca fui pra escola... Meu painão queria... Dizia que pobre não precisa de escola...

Não espero mais nada da vida (chorou muito neste momento daentrevista...)

Só queria ter um cantinho pra ficar em paz até morrer e queria muito,muito, que meu filho arranjasse um emprego...

Maria de Lourdes, 56 anos, negra.

AUTO-IDENTIDADES E IDENTIDADES ATRIBUÍDAS

Estes dois depoimentos apresentam narrativas sobre aspectos da cultura,das vivências e valores de duas mulheres nordestinas e serão utilizadospara o estabelecimento de relação com as questões teóricas que pretendemosapresentar.

Faremos uma indagação inicial. Há, de fato, uma identidade nordestina?Quem se considera nordestino/a ou se auto-define como tal nos nossos

dias? Como sabemos, as auto-identificações são, em muitos casos,racionalizações, posicionamentos pessoais e explicitações a partir daconstrução de sua biografia e do reconhecimento de seus valores, sua rede derelações e seu lugar social. Em muitas outras situações, relacionadas,principalmente às classes populares e aos grupos excluídos; essas identidadessão externamente atribuídas e ganham conotação pejorativa, transformando-se em verdadeiros estigmas que o outro impõe a determinados gruposminoritários. E entre estes estereótipos está a identidade nordestina.

Alguns historiadores atribuem a Gilberto Freire uma das mais duradourasproduções discursivas da cultura brasileira do século XX: a chamadabrasilidade nordestina. Como afirma Zaidan Filho (2001, p. 11):

[...] a engenhosa combinação feita pelo mestre entre modernismo e regionalismo,mitigando os efeitos choquiformes (urbano-industriais) da estética modernistae dando lugar ao ciclo da cultura regionalista da década de 1930 (José Américo,Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e outros) e a fetichização dos traços

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culturais nordestinos (a cocada, o bolo de Sousa Leão, o açúcar, a arquitetura,os costumes sexuais, as crendices religiosas etc) apresentados como “vantagenscomparativas” civilizatórias de nossa raça no concerto das outras nações... [...]... esta operação festejada nacional e internacionalmente como marca daoriginalidade brasileira: é ao mesmo tempo o reforço, a justificativa (para nãodizer a racionalização) de aspectos conservadores, oligárquicos e tradicionalistade nossa sociedade. A conseqüência disso é a estetização do nosso atraso (videa dialética do picaresco e da malandragem na obra de Antonio Cândido eRoberto Schawarz) permite mil e uma utilidades da obra freyriana: da suautilização pelos grupos de direita para produção de consenso e unidade nacionalaté sua adaptação como entretenimento de massa pela industria cultural moderna(ZAIDAN FILHO, p. 12-13).

O projeto ideológico que animou esse historicismo idílico foi omovimento regionalista do inicio do século XX (1920) este fez frente àluta pela redefinição do Estado Nacional que contribuiu para reduzir opoder político das oligarquias. Essa proposta, alimentada por intelectuaise romancistas, teve o mérito de “conferir uma sobrevida simbólica, estéticae cultural a essa oligarquia decadente” (ZAIDAN FILHO, 2001, p. 22).

Compõe a citada política cultural, um tipo humano com traçospsicológicos como solidão, solidariedade, fatalismo, tradicionalismo e,também, ligação com a terra de origem, pouca escolaridade e cultura rural.Complementando este “passado idílico”, romanceiam-se as relações sociais,a cordialidade senhor-escravo e destaca-se o paternalismo oligárquico comoprotetor e provedor: é como se fora vocação do nordeste ser um celeiro depobres e serem mantidos pelos ricos e pelo Estado.

Ainda Zaidan, no seu pequeno grande livro O fim do Nordeste e outrosmitos, discute uma segunda tendência de explicação que difere desseculturalismo e constitui-se como uma posição estética realista ou neo-realista que busca retratar a identidade nordestina como nominativo deuma humanidade ferida e extremamente empobrecida pela seca,analfabetismo, condições econômicas e vítima das oligarquias e dolatifúndio.

Este segundo movimento explicativo da questão mostra, com realismo eespírito analítico, um discurso critico e reflexivo que procura desnaturalizara questão através da denúncia dos problemas sociais e humanos e enunciarsua superação através de políticas públicas e transformação social. Sãoapontados como representantes dessa discussão Graciliano Ramos, JoãoCabral de Melo Neto e vários outros(as) intelectuais e letrados(as).

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Dentro dessa grande discussão da(s) identidade(s) nordestina(s) – e suafonte, a cultura popular do Nordeste – há, ainda a considerar uma terceiravertente, que toma como marco fundante a cultura da exclusão social,naqual o nordeste seria o celeiro da neomiséria e dos excluídos sociais doBrasil pós-moderno. Constituído por grupos humanos pobres, poucoescolarizados e migrantes de diversas áreas em busca de melhores condiçõesde vida que terminam por aumentar a população e os problemas dasperiferias das grandes cidades ou tornam-se moradores de rua. Muitas vezes,o ciclo da pobreza e do desamparo permanente transforma esses migrantese seus descendentes em frutos da cultura urbana, agressiva e violenta. Assim,eles são levados a perder o perfil romântico e rural e a se tornarem refratáriosà sociabilidade.

Estes homens e mulheres estão imersos nas periferias urbanas e numacultura da violência, caótica e heterogênea advindas de diversas matrizesetno-culturais e que representam os processos de exclusão e discriminaçãoexistentes nos nossos dias. A naturalização dessas construções identitárias,com seus traços e princípios conservadores, predispõem os(as) nordestinos(as)a aceitarem o substrato social descrito por Gilberto Freire e seus ideólogos.

Colocando esta discussão no contexto da questão contemporânea eglobalizada, observamos que a temática da identidade é uma das maisimportantes e que ocupa o centro de todas as atenções.

Para Hall as sociedades pós-modernas estão sofrendo um processo demudanças estruturais que tem gerado instabilidade e fragmentado paisagensculturais de classe, gênero, raça e nacionalidade e outras referências quetenham gerado um padrão estável para nossas identidades pessoais e desujeitos integrados. Estes inúmeros processos de mudanças geraminstabilidades para as identidades dos sujeitos nas esferas social e cultural,provocando a perda de sentido de si.

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representaçãocultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidadedesconcertante e cambiante de identidades possíveis [...] (HALL, 2005, p.13).

Quando da proposta freiriana da construção do conceito de região eidentidade nordestinas houve toda uma produção cultural impulsionadapelo “mandarinato literário” que, no dizer de Zaidan (2001, p. 50), vão

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dar-lhe força estética, simbólica e cultural. É uma primeira fase onde poetase escritores, como Manoel Bandeira, Cícero Dias e Vicente do RegoMonteiro, deram grande contribuição.

Entretanto, à proporção que se consolida na segunda metade do séculoXX, a chamada globalização – com o seu séqüito de grandes mudançassociais e econômicas – reduz-se a importância das macro-identidadesregionais. Isto porque as tradicionais identidades nacionais e regionaisperdem sua força para as múltiplas, descentradas e fluidas identidades pós-modernas. Identidades estas que, como afirma Bhabha (2005, p. 20) noslevam a:

uma existência marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de vivernas fronteiras do presente, para as quais não parece haver nome próprio alémdo atual e controvertido deslizamento do prefixo pós: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo[...].

Há, de um lado, muitas possibilidades de identificação do sujeito agrupos múltiplos que, embora, fluidos ou fechados e exigentes lhe permiteafinizar-se e sentir-se em sintonia com as comunidades de identidadeprofissional, religiosa, étnica, de gênero entre outras. Para Bauman,

[...] devemos levar em consideração ‘as comunidades virtuais’ [...] ‘onde’ é fácilentrar e ser abandonado [...] quando a identidade perde as âncoras sociais quea faziam parecer ‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se tornacada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamenteum ‘nós’ a que possam pedir acesso (2005a, p. 30).

Nessa conjuntura atual, podemos falar da relação existente entreestratificação social, educação, poder político e econômico e possibilidadesde identificação. Na modernidade líquida definida por Bauman (2005b,p. 44), há uma hierarquia que se inicia com os sujeitos sociais emergentes,participantes de vários grupos culturais, com poder econômico e políticoque podem escolher e identificar-se com inúmeros grupos ou comunidades.Estes assumem ou descartam identidades rapidamente e, de forma planetária,tendo livre acesso aos benefícios enquanto perdura seu poder de troca.

Este universo complexo e exigente com todo um conjunto de opçõesfinaliza sua oferta num outro extremo onde se encontram os desventurados.Aquele grande contingente humano que não tem direito a escolha de sua(s) identidade(s). Estes excluídos sociais – econômicos e/ou políticos – não

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possuem a possibilidade de assumirem identidades à sua própria escolha,por isso, recebem de outros grupos identidades que os estigmatizam edesumanizam. O mais dramático é que, nessa posição, não há vontadeindividual que consiga superar seu estereotipo. “Você é excluído do espaçosocial em que as identidades são buscadas, escolhidas construídas [...]”(BAUMAN, 2005b, p. 46).

Estamos, portanto, numa encruzilhada sócio-político-econômica naqual ou nos tornamos cidadãos do mundo, com toda uma grande bagagemeducacional, profissional, econômica e cultural ou somos excluídos domercado e teremos cerceadas nossas oportunidades sociais, nossaautonomia, nossa cidadania e nossa(s) própria(s) identidade(s).

IDENTIDADE X NORDESTINIDADE

Integrando algumas dessas considerações de estudiosos dacontemporaneidade com as histórias de vida das nossas colaboradoras e,com nossas próprias trajetórias de nordestina(s) e nordestino(s) podemosrealizar algumas reflexões.

A identidade regional concebida como nordestina surge de umaideologia conservadora a partir de interesses das classes dominantes queprocuram envolver o povo transformando alguns dos seus costumes e valoresem fatores de unidade e identificação. Há uma mitificação de patrimôniosculturais materiais e imateriais que romantizam e camuflam relações sociaisassimétricas e preconceituosas.

Inicialmente a identidade nordestina – como a nacional – era uma macro-identidade que homogeneizava as identidades étnico-culturais de grupos ecomunidades rurais e urbanas diferentes. Entre as formas de uso inadequadoda mesma está a manipulação política eleitoreira para gerar consensos elealdades. Há, também, a transformação da seca num mito em torno doqual a elite cria e recria explicações e soluções esotéricas e enganosas.

O tipo humano que representa o nordestino e a nordestina no imagináriosocial e na cultura de massa são o homem e a mulher sertaneja, pobres depouca ou nenhuma instrução, ingênuos, migrantes, moradores na periferia,operários ou desempregados e moradores de rua que integram a falangedos “neo-miseráveis”.

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Se considerarmos o primeiro período de disseminação da ideologia danordestinidade, em muitos momentos encontramos as classes maisaquinhoadas e os intelectuais da região se auto-afirmando nordestinos.

Mas, considerando-se esta fase atual – talvez os últimos trinta anos –esta identidade tornou-se um estigma, atribuído aos excluídos, quandonordestinos e nordestinas tornaram-se denominações para designarmigrantes da região geopolítica do mesmo nome, que em São Paulo eoutros estados, mesmo do nordeste, dedicam-se a tarefas mais simples emenos valorizadas ou definham e se desesperam na cova rasa do desemprego.

Já as classes nordestinas socialmente mais privilegiadas, constituídaspor universitários, profissionais qualificados, políticos, entre outras,manipulam esta e outras identidades, usando-as segundo as conveniênciase encobrindo-as ou mesmo negando-as segundo seus próprios interesses.

A expressão “modernidade líquida”, de Baumam, explica bem, naatualidade do início de século XXI, que é crucial analisar e mesmo debruçar-se sobre esta questão com um novo olhar, partindo-se do princípio que atransitoriedade da sociedade atual impõe. É preciso que se consideremmuito mais as infinitas faces do movimento e do transitório que atingedesde a esfera econômica à afetiva, sobrepondo-se à permanência que asantigas noções de perenidade e identidades fixas e inegociáveis oferecem.

Esta voragem incessante e angustiante, que atinge todos e até osrelacionamentos amorosos, continua produzindo excluídos em númerocada vez maior, que vão integrar o contingente dos despossuídos, constituídopor quase um bilhão (985 milhões) de “vidas desperdiçadas”, que vivemna periferia do mundo globalizado.

Bauman, explicando essa conjuntura, dramaticamente vaticina:

Feridos pela experiência do abandono, homens e mulheres desta nossa épocasuspeitam ser peões no jogo de alguém, desprotegidos dos movimentos feitospelos grandes jogadores e facilmente renegados e destinados à pilha de lixo quandoeles acharem que eles (os peões) não dão mais lucro (BAUMAN, 2005b, p. 53).

(IN)CONCLUSÕES

Que relações podemos estabelecer entre a(s) história(s) de vida queapresentamos de nordestinas das classes populares e essas questõesabordadas inerentes à contemporaneidade envolvendo um grande e diverso

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conjunto de pessoas habitando localidades diferentes, com trajetóriasdiferenciadas de vida, culturas e aspirações diferentes? Elas, por seremexcluídas não são beneficiadas por mudanças sociais, educacionais,econômicas e políticas, capazes de lhe conferirem possibilidades de superaras limitações atuais para se inserirem na torrente global, ainda que tambémperigosa e excludente.

É o caso da nossa entrevistada Neide, que na sua comunidade do interiorpernambucano fazia parte de uma família de pequenos proprietários eacabou por perder sua propriedade, seu marido e tornar-se moradora derua em Salvador.

“Lá em Pernambuco, nós temos uma casinha e um terreno, no interior,numa zona muito seca... [...] Aqui, nem arranjamos canto pra morar, nememprego [...](Neide)”. Ela representa um grupo familiar desenraizado,absolutamente excluído de sua rede de relações locais e do contexto urbanoatual onde se sente expropriada em todas as instâncias pessoais e sociais.

Revendo um trecho da outra história de vida de nossa entrevistada,Maria de Lourdes, onde ela nos fala sobre sua família e mostra sofrimentoe impotência diante da inexorável realidade:

[...] Em Mata de São João. quando os meninos eram pequenos e nós trabalhava,tudo era bom... tinha família, tinha casa, comida e parentes... nós agora somos sóuns “esmolés”... umas porcarias, sofrendo na rua...

Não sei se podemos ou não falar do fim da identidade nordestina oudas múltiplas nordestinidades, mas, certamente, ela vai de encontro àstendências do mercado competitivo e da globalização excludente.

Existe uma exacerbada competição entre estados da região estes,priorizando as atividades econômicas, tais como turismo, agriculturairrigada para exportação e outras atividades para as quais existem políticasde atração de investimentos diretos estes estimulam aguerrida concorrênciaque gera o “fenômeno de hobbesianismo estadual”, em detrimento dacolaboração e solidariedade tão necessárias e desejáveis porque o que se vêé a fragmentação econômico-social da região.

Mas, se pensarmos e lutarmos com otimismo por uma nova sociedadee uma outra globalização, como propõe nosso grande geógrafo e pensadorMilton Santos, certamente que será possível resgatar esta identidade commais espírito critico, depurando-a de seus erros de origem. É fundamental

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valorizar a diversidade cultural regional como esfera agregadora e espaçode discussão e ação, fortalecendo autonomias e incluindo as culturas ecidadanias locais no mundo global. E, nesse contexto, as outras instânciasdas identidades regionais, entre outras, serão apenas outros espaços.

Para Zaidan Filho, grande estudioso da região:

O desafio que o terceiro milênio reserva para o nordeste é convencer as eliteseconômicas e dirigentes do país de que é possível se integrar na economiamundial sem abandonar seus pobres e miseráveis. E que o principal ativo deuma nação é seu povo e suas tradições culturais.

Paises sem política de desenvolvimento regional e social e sem identidade estãodestinados a ser meras plataformas de exportação para o mundo, sem cidadãos,direitos e identidade cultural (2001, p. 52-53).

Educação, empregos e políticas públicas competentes e responsáveis,poderão contribuir decisivamente para que a população nordestina revisesua identidade e assuma as rédeas de seu próprio destino, superando adependência e exclusão social.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Manuel Correia de. A seca: realidade e mito. Pernambuco:Ed. Asa, 1985.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução: Carlos AlbertoMedeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005a.

______. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução: Carlos AlbertoMedeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005b.

HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Tradução:Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira L. Louro. Rio de Janeiro: DP & A,2005.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único àconsciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

ZAIDAN FILHO, Michel. O fim do nordeste e outros mitos. São Paulo:Cortez, 2001.

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(Auto)biografia, histórias de vida epráticas de formação1

Elizeu Clementino de Souza

A discussão sobre Pesquisa Autobiografia, Histórias de vida eHistória da Educação tem possibilitado ampliar as questõesteórico-metodológicas e, especialmente as relacionadas aprodução, visibilidade de outras fontes e perspectivas depesquisas, por entender que, conforme afirmam Souza e Menezes,

No âmbito da História da Educação e de outros campos doconhecimento educacional, as pesquisas com fontes menostradicionais e mais recorrentes começam a ter e adquirir novo estatutometodológico e apresentam novos esforços para uma compreensãodas práticas educativas e escolares (2006, p. 146).

Isto me leva a refletir sobre como o trabalho com certas fontes apareceacompanhado pelo debate sobre a própria produção da fonte. A emergênciade outras fontes menos recorrentes se inscreve, numa perspectiva da históriacultural e da história social, marcando a crescente utilização de diferentesfontes em pesquisas acerca da imprensa pedagógica; dos manuais escolares,dos programas de ensino, dos currículos e conteúdos de exames, etc. Tais fontessão as autobiografias, as memórias, as histórias de vida, as narrativas escritas,a literatura, as fontes iconográficas, midiáticas e os programas televisivos.

1 O presente artigo foi apresentado na Mesa Autobiografia na História da Educação, no âmbito do II Encontro Norte– Nordeste de História da Educação e I Encontro Maranhense de História da Educação, realizado entre os dias 20a 23 de agosto de 2007. Compuseram a referida mesa Elizeu Clementino de Souza – UNEB, José GerardoVasconcelos – UFC e Marlucia Paiva – UFRN. Ao tomar As questões de método na Pesquisa em História daEducação’ como temática central, o II Encontro Norte-Nordeste de História da Educação e I Encontro Maranhensede História da Educação buscam aprofundar discussões sobre questões vinculadas às fontes, procedimentos derecolha, análise e interpretação na pesquisa histórica, ao confirmar a relevância e o significado da temática parao campo das pesquisas em história da educação nessas regiões do Brasil.

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A intenção neste trabalho é discutir sobre as aproximações e possíveisdistanciamentos entre as (auto)biografias, a história da educação e aspráticas de formação, por entender como afirma Catani (2005, p. 32) que,“as escritas das obras autobiográficas que testemunham as relações pessoaiscom a escola pode ser útil como fonte para a elaboração da história daeducação”, ao traduzir sentimentos, representações e significados individuaisdas memórias, histórias e relações sociais com a escola.

Conforme Souza, Sousa e Catani (2007), o movimento biográfico noBrasil tem sua vinculação com as pesquisas na área educacional, seja noâmbito da História da Educação, da Didática e Formação de Professores,bem como em outras áreas que tomam as narrativas como perspectiva depesquisa e de formação.

A criação e atuação do Grupo de Estudos Docência, Memória e Gênero(GEDOMGE-FEUSP) marcam as primeiras experiências com pesquisas(auto) biografias como práticas de formação, através das aproximaçõesdas memórias e trajetórias de professoras com seus percursos e aprendizagensda docência, entrecruzando com questões de gênero. O trabalho de Bueno,Sousa, Catani e Chamlian (2006) sistematiza o percurso do grupo,destacando pesquisas realizadas, experiências desenvolvidas com projetosde formação de professores em serviço com base nas histórias de vida comoperspectiva de formação e auto-formação. Cabe destaque a realização do1º Seminário Memória, Docência e Gênero, cuja intenção foi de reunirpesquisadores e conhecer investigações desenvolvidas no âmbito dashistórias de vida e suas relações com a formação, trabalho docente eidentidade profissional, o que se configura como uma das primeiraspossibilidades de aglutinação e mapeamento de pesquisas com as históriasde vida na educação brasileira, no campo da formação de professores.

As duas primeiras edições do Congresso Internacional sobre Pesquisa(Auto)Biográfica, em Porto Alegre (I CIPA, 2004) e em Salvador (II CIPA,2006), configuram-se como momentos significativos para o campo dosestudos biográficos no Brasil, tendo em vista a sistematização daspeculiaridades das produções, modalidades de trabalho, configuração dosespaços acadêmicos de onde emergem e se consolidam tais estudos ,diversidade de pesquisas que se apropriam das autobiografias como práticade formação no território da formação continuada de professores, estudosno âmbito da história da educação e das práticas de formação e, por fim,

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a re-invenção de modos de trabalho ancorados em uma base teórica, cujosautores apresentam diferentes práticas de pesquisa com histórias de vida.

As pesquisas desenvolvidas na pós-graduação em educação no Brasil ea criação de diferentes grupos de pesquisas (SOUZA, 2006) contribuírampara a ampliação das pesquisas com as histórias de vida e (auto)biografiasna área educacional, seja como prática de formação, seja como investigaçãoou investigação-formação. Essas questões nos remetem a entender que adiversidade de produção característica no Brasil sofre influência teórica emetodológica de diferentes disciplinas e áreas do conhecimento.

Ao examinar a diversificação das entradas e terminologia das pesquisasPineau (2006, p. 41), afirma que “a flutuação terminológica em torno dashistórias e relatos de vida, biografias e autobiografias é indicativa daflutuação do sentido atribuído a essas tentativas de expressão datemporalidade vivida pessoalmente”. Destaca também as possibilidadesde experiências na educação e na formação de adultos, ao buscar ampliara discussão epistemológica e um panorama histórico, numa dialéticaascendente/descendente entre os discursos e os percursos de vida, articulandoo bio-questionamento à expansão das artes de existência.

As questões inicialmente apresentadas possibilitam ampliar e discutir arelação memória, narrativa, (auto)biografia e história da educação, aotomar como referência para organização do presente texto os trabalhos deSouza (2006, 2004 e 2003), Souza e Abrahão (2006), Souza e Fornari(2005), que sistematizam reflexões teórico-metodológicas sobre as históriasde vida em formação e a fertilidade da utilização do trabalho centrado namemória e na abordagem biográfica na formação de professores e no campodo estágio supervisionado.

MEMÓRIA, NARRATIVA E (AUTO)BIOGRAFIA: PRODUÇÃO DE SENTIDOS EA CONSTITUIÇÃO DO CAMPO2

Quais foram as circunstâncias que possibilitaram a utilização da memóriae da narrativa como fontes críveis de produção de conhecimento, inclusive,de um conhecimento com potencialidade formativa? A valorização dessas

2 As discussões aqui apresentadas foram sistematizadas por Souza e Fornari (2005), no âmbito da Pesquisa Memóriasdo Colégio Nossa Senhora do Carmo: imagens e representações de ex-normalistas na/sobre a formação docente(1950-1960).

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fontes ocorreu no bojo da alteração paradigmática produzida a partir dasdúvidas levantadas sobre a capacidade, do conjunto de referências teóricase metodológicas das ciências naturais, de dar conta da compreensão dosfenômemos sociais. Problematizou-se, então, a noção de cientificidade apartir da contestação do positivismo que, até então, constituía-se comoidéia reguladora hegemônica na produção do conhecimento válido.Concordamos com Najmanovich (2001, p. 35), quando afirma que:

O que a epistemologia clássica chamava de ‘conhecimento objetivo’ nada mais éque o produto de um processo histórico de padronização perceptual e cognitivaque culmina com a naturalização. As categorias se naturalizam graças àestabilização dos modos de representação.

É, portanto, da contestação do positivismo que emergem aspossibilidades de um novo paradigma compreensivo. Temos que percebera alteração do real produzida pelas ações concretas dos atores sociais, quereivindicam métodos próprios para tratar o conhecimento no âmbito dasciências do humano. Josso (2004, p. 20) lembra-nos que a reabilitaçãoepistemológica do sujeito e do ator “pode ser interpretada como um retornodo pêndulo depois da hegemonia do modelo de causalidade deterministadas concepções funcionalistas, marxistas e estruturalistas do indivíduo,que dominaram até o final dos anos setenta”.

No campo da produção historiográfica, a Nova História surgida naFrança, disposta a defender uma mudança metodológica na pesquisa etendo por base três bandeiras – “novos problemas”, “novas abordagens”e “novos objetos” – , amplia a noção de documento histórico reconhecendoa importância das fontes orais. No âmbito desse movimento mais amploestá a Escola dos Annales, movimento que reúne historiadores em tornoda edição da revista dos Annales, intitulada originalmente Annales:économies, societés, civilisations. Segundo Rocha (2003), é na historiografiafrancesa que se encontra o marco teórico decisivo para a contestação dahistoriografia tradicional. No processo de valorização das fontes oraisestava a crença de que a maior homenagem que os historiadores e, emespecial, os historiadores da educação, poderiam prestar aos excluídos erao de transformar suas memórias em história, buscando memórias sociaisque recuperassem os sentidos das vozes ausentes.

Um dado importante deste contexto é compreender como odesenvolvimento tecnológico contribuiu para certa objetivação do relato

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oral, a partir da descoberta da tecnologia do gravador e das fitas magnéticas,por volta da década de 40 do século XX. O gravador possibilitou que asmemórias fossem registradas em suportes materiais, o que permitiu o acessopara além do momento de sua coleta. Hoje, a preocupação é com asistematização de arquivos sonoros, o que pode ser atestado nos currículode faculdades de Biblioteconomia e Arquivística, nos quais há disciplinasque abordam questões relativas à documentação audiovisual. Após essebreve registro do papel da técnica para o desenvolvimento da história oral,é importante reconhecer que a força dessa História está em sua pretensãode dar a voz àqueles que não a tem, questionando as narrativas dominantesda historiografia tradicional. O reconhecimento da legitimidade dessasfontes para a pesquisa em História permitiu que vozes, até então silenciadaspela História tradicional, reivindicassem o direito de falar, o que expôs ofato de que a História é, também, um campo de tensão e disputa. Assim osnegros, as mulheres, os índios, os homossexuais vão buscar na indagaçãodo passado, a partir de suas memórias individuais e coletivas, ascircunstâncias sociais e culturais que os conformaram no tempo presentee que permitem pensar em projetos para o futuro.

Quando invocamos a memória, sabemos que ela é algo que não se fixaapenas no campo subjetivo, já que toda vivência, ainda que singular eauto-referente, situa-se também num contexto histórico e cultural. Amemória é uma experiência histórica indissociável das experiênciaspeculiares de cada indivíduo e de cada cultura. Conforme lembra-nos Bosi(2003), existe um substrato social da memória articulada com a cultura,tomada em toda sua diversidade estética, política, econômica e social.

O paradigma hermenêutico, no qual a abordagem compreensiva se insere,destaca a importância do sujeito no seu papel de intérprete, onde a memóriatem uma importância fundamental. A lembrança remete o sujeito a observar-se numa dimensão genealógica, como um processo de recuperação do eu,e, a memória narrativa, como virada significante, marca um olhar sobre siem diferentes tempos e espaços, os quais se articulam com as lembranças eas possibilidades de narrar experiências. Do ponto de vista gnosiológico, ahermenêutica fenomenológica busca compreender os sentidos dedeterminados fenômenos elaborados pelo sujeito, sendo que, nesses termos,a rememoração é sempre reflexão e auto-reflexão. Trabalhar com a memória,seja a memória institucional ou a do sujeito, faz emergir a necessidade de

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se construir um olhar retrospectivo e prospectivo no tempo e sobre o temporeconstituído como possibilidade de investigação e de formação deprofessores. A memória é escrita num tempo, um tempo que permitedeslocamento sobre as experiências. Tempo e memória que possibilitamconexões com as lembranças e os esquecimentos de si, dos lugares, daspessoas, da família, da escola e das dimensões existenciais do sujeito narrador.

No que se refere à relação memória e esquecimento, Augé (1998) indicapistas para entender que as mesmas são solidárias e vinculadas ao tempopresente. O esquecimento nos remete ao presente, mesmo que seja para viverem outra dimensão as experiências circunscritas de nossa vida. Afirma oautor que: “É preciso esquecer para continuar presente, esquecer para nãomorrer, esquecer para permanecer fiel” (1998, p. 106). Corroboramos com aidéia do referido autor, quando entendemos que o conceito de esquecimentocomo ausência de recordação ganha outro significado, quando o vê comoum componente indissociável da memória, visto que “O esquecimento, emsuma, é a força viva da memória e a recordação o seu produto” (AUGÉ,1998, p. 27). Essa compreensão da memória e do esquecimento somentepôde surgir na órbita de uma epistemologia que construiu novassensibilidades. Somos herdeiros/as de uma epistemologia moderna que buscouna distinção clara entre sujeito-objeto, no calar da subjetividade, o caminhopara construir o conhecimento objetivo. Evidentemente que nossa propostaepistemológica e metodológica situa-se numa perspectiva crítica àepistemologia moderna. Nossa crença não é a de que a descorporificação doconhecimento garanta rigor e imparcialidade, já que os corpos, as memóriase as intencionalidades estão, dialeticamente, situados em determinado espaço/tempo. Portanto, do ponto de vista epistemológico, acreditamos que todacosmo visão está relacionada com uma moldura teórica que a condiciona eenfoca, ou seja, “vemos unicamente na zona do espectro a que somos sensíveise vemos de maneira diferente segundo a iluminação e a nossa sensibilidade”(NAJMANOVICH, 2001, p. 25). Complementando a fala da autorapodemos afirmar que vemos e rememoramos a partir de nossas referências ede nossas sensibilidades.

A principal implicação do paradigma hermenêutico/compreensivopara a produção de conhecimento é a emergência de uma concepçãocientífica mais acessível à pluralidade do saber humano, ao mesmo tempoem que reconhece a perspectiva da complexidade como estruturante da

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existência do ser no mundo. Nestes termos, a memória aparece comoelemento fundamental na articulação de sentidos entre o individual e ocoletivo.

HISTÓRIAS DE VIDA: PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

É no bojo do paradigma compreensivo, que a história de vida se legitimacomo método/técnica de investigação/formação, situando-se no campo davirada hermenêutica, em que se compreendem os fenômenos sociais comotextos e a interpretação como atribuição de sentidos e significados dasexperiências individuais e coletivas. “Ao produzir saber, ao dizer como ascoisas são, o homem produz a racionalidade, evidenciando uma estreitarelação entre os dois termos – saber e racionalidade” (HERMANN, 2003,p. 13).

A história de vida e a história oral tiveram seu reconhecimento epistemo-lógico no âmbito do movimento etnometodológico. Segundo Minayo(2004) a etnometodologia teve como berço a Universidade de Chicago, ecomo seu principal arquiteto Robert Park que, desde ás décadas de 1920 e1930 defende a importância da experiência direta com os atores sociaispara a compreensão de sua realidade.

Recorro a Schemeil (1999 apud Macedo, 2006, p. 62) que nos aponta,para além das diferenças teóricas, a unidade paradigmática entre asformulações dos maiores expoentes da Escola de Chicago – Park, Thomas,Burgess e Mckenzie –, que rompem com a metafísica da modernidadeabandonando a noção iluminista de objetividade e apontando a necessidadeda compreensão das realidades antropossociais. Nesse movimento é quesurge a metodologia autobiográfica, que segundo Josso (2004), dálegitimidade à mobilização da subjetividade como modo de produção dosaber e à intersubjetividade como suporte do trabalho interpretativo e deconstrução de sentido para os auto-relatos.

Do ponto de vista metodológico, a abordagem biográfico-narrativaassume a complexidade e a dificuldade em atribuir primazia ao sujeito ouà cultura no processo de construção de sentido. Ao longo de seu percursopessoal, consciente de suas idiossincrasias, o indivíduo constrói suaidentidade pessoal mobilizando referentes que estão no coletivo. Mas, aomanipular esses referentes de forma pessoal e única, constrói subjetividades,

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também únicas. Nesse sentido, a abordagem biográfico-narrativa podeauxiliar na compreensão do singular/universal das histórias, memóriasinstitucionais e formadoras dos sujeitos em seus contextos, pois revelampráticas individuais que estão inscritas na densidade da História.

A pesquisa deve, como toda prática social, assumir ideologicamente seusvalores e seus vínculos de toda ordem: classe, gênero, raça, religião, etc. Assubjetividades, na dialética jogo-jogante/jogo-jogado, têm sido trazidas àcena teórica por autores como Nóvoa e Finger (1988), Ferrarotti (1988),Catani (2005, 2003) e Catani e outros (1997, 1998), além de Queiroz (1988)e Demartini (1988). Todos esses autores têm contribuído para pensarmos,no campo da educação, a articulação entre as pressões reais da vida, aconsciência e as intencionalidades em um novo paradigma interpretativo,no qual as narrativas se legitimam como fontes imprescindíveis, ainda quenão as únicas, de compreensão dos fenômenos humanos.

É inevitável, portanto, pensarmos em algumas questões de opção teórica,enquanto pesquisadores, quando nos vemos imbricados no processo deouvintes sensíveis das experiências de quem olha, retrospectivamente, parasua vida procurando os sentidos de suas opções. Por isso é pertinente aproblematização metodológica, que se inicia pela reflexão sobre as formasde ouvir, registrar e interpretar as narrativas. Primeiro, é importanteapresentar a concepção de narrativa com a qual estamos trabalhando.Narrar é enunciar uma experiência particular refletida sobre a qualconstruímos um sentido e damos um significado. Garimpamos em nossamemória, consciente ou inconscientemente, aquilo que deve ser dito e oque deve ser calado. Queiroz (1981, p. 19) define narração como “o relatodo narrador sobre a sua existência através do tempo, tentando reconstruiros acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu”.A referida autora apresenta uma distinção entre as narrativas comodepoimento e como história de vida, levando-se em consideração o papeldo pesquisador e a forma que utiliza para recolha dos dados.

No trabalho de coleta de depoimentos o investigador dirige oinformante diante do objeto e das questões que pesquisa, ou seja, é opesquisador quem dirige e conduz a entrevista frente aos acontecimentosda vida do informante que possam ser incluídos no trabalho. Na históriade vida, diferente do depoimento, quem decide o que deve ou não sercontado é o ator, a partir da narrativa da sua vida, não exercendo papel

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importante à cronologia dos acontecimentos e sim o percurso vivido pelosujeito. Ainda que o pesquisador dirija a conversa, de forma sutil, é oinformante que determina o “dizível” da sua história, da sua subjetividadee dos percursos da sua vida.

Percebo que as pesquisas com história de vida têm utilizado terminologiasdiferentes com o objetivo de demarcar a menor ou maior autonomiadiscursiva do entrevistado, interesse na totalidade das experiências dos sujeitosou nos recortes temáticos, os relatos em grupos ou individualizados, etc.,mantendo, para além dessa diversidade de enfoque dos aspectosmetodológicos, a unidade que lhes dá a valorização das fontes orais.

Autobiografia, biografia, relato oral, depoimento oral, história de vida,história oral de vida, história oral temática, relato oral de vida e as narrativasde formação são modalidades tipificadas da expressão polissêmica da históriaoral. Nas pesquisas na área de educação adota-se a história de vida, maisespecificamente o método autobiográfico e as narrativas de formação, comomovimento de investigação-formação, seja na formação inicial ou continuadade professores/professoras. Classificada como método, como técnica e oracomo método e técnica, a abordagem biográfica, também denominadahistória de vida, apresenta diferentes variações face ao contexto e campo deutilização. Evidenciamos, com base em Queiroz (1988), que a abordagembiográfica tanto é método, uma vez que adquiriu, em seu processo deconsolidação, vasta fundamentação teórica, quanto é técnica, na formulaçãode várias propostas de maneiras diferenciadas para sua utilização. As variadastipificações ou classificações no uso do método biográfico inscrevem-se noâmbito de pesquisas sócio-educacionais como uma possibilidade de, a partirda voz dos atores/atrizes sociais, recuperar a singularidade das históriasnarradas por sujeitos históricos, socioculturalmente situados, garantindo àsmesmas o seu papel de construtores da história individual/coletivaintermediada por suas vozes. Assim, para Nóvoa e Finger (1988, p. 116),

as histórias de vida e o método (auto)biográfico integram-se no movimentoactual que procura repensar as questões da formação, acentuando a idéia que‘ninguém forma ninguém’ e que ‘a formação é inevitavelmente um trabalho dereflexão sobre os percursos de vida’.

Outra questão importante é indicar como concebemos o papel dopesquisador no processo de recolha das fontes e elaboração do conhecimento.Não concordamos com as posições que reduzem o papel do pesquisador à

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mera descrição, argumentando que toda interpretação implica traição àessência do discurso do outro. O papel do pesquisador não pode limitar-se atomar notas, pois sua tarefa é a escuta sensível na qual perceba oscomponentes e dimensões relevantes na vida dos sujeitos que lancem luzsobre as problemáticas construídas. Os relatos somente são relevantes porquerespondem à historicidade e subjetividade dos sujeitos em suas itinerâncias eformação. Desta forma, pretendemos aprofundar a compreensão e reafirmara utilização da pesquisa histórica e da narrativa (auto)biográfica, como opçãometodológica para a presente pesquisa, visto que possibilita inicialmenteum movimento de investigação sobre o processo de formação e por outrolado permite, a partir das narrativas (auto)biográficas, entender os sentimentose representações dos atores sociais no seu processo de formação.

NARRATIVAS E ESCRITAS DE SI: ABORDAGEM EXPERIENCIAL E PRÁTICAS

DE FORMAÇÃO

Tomar a escrita de si como um caminho para o conhecimento, numaperspectiva hermenêutica, não se reduz a uma tarefa técnica ou mecânica.O pensar em si, falar de si e escrever sobre si emergem em um contextointelectual de valorização da subjetividade e das experiências privadas.Neste sentido, o conceito de “si mesmo” é, como todo conceito, umaproposta organizadora de determinado princípio de racionalidade. O falarde si hermenêutico, que defendemos como meio formativo neste artigo, émuito diferente do falar de si movido por metafísica teológica oupragmatista. A epistemologia da modernidade criticou a metafísica medievale teológica deslocando a verdade de uma dogmática religiosa para adogmática racionalista. O pressuposto principal da racionalidade modernaé a separação sujeito /objeto e a crença de que é passível de conhecimentoapenas o que for possível ser medido, ordenado, comparado, etc. Logo asubjetividade deveria ser exorcizada da ciência. Os cientistas deveriamescrever sobre o que eles pesquisam e não sobre o que eles são, deveriamescrever sobre suas descobertas e não sobre suas crenças e valores.

No campo da educação, conforme aponta Josso (2004) estamosvivenciando, a partir dos últimos vinte anos do século vinte, o desenvolvimentode uma sensibilidade à história dos aprendentes. Como pensar, a partir doreconhecimento da importância da subjetividade, a formação docente? No

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que e de que forma ela pode contribuir para uma profissionalidade docentemais conseqüente?

Os estudos das histórias de vida no campo educacional centram-se napessoa do professor, com ênfase nas subjetividades e identidades que ashistórias comportam. Com a centralização dos estudos e práticas deformação na pessoa do professor, busca-se abordar a constituição dotrabalho docente levando-se em conta os diferentes aspectos de sua história:pessoal, profissional e organizacional, percebendo-se uma tomada deconsciência que nos leva a reconhecer os saberes construídos pelosprofessores, no seu fazer pedagógico diário, o que não aconteciaanteriormente nos modelos de formação de professores. Novos conceitospara a compreensão do trabalho docente surgiram com os estudoseducacionais, cujas abordagens de pesquisa passaram a reconhecer oprofessor como sujeito, trazendo à tona a necessidade de se investigaremos saberes de referência dos professores sobre suas próprias ações epensamentos caracterizando-os, inclusive, como sujeitos de um saber e deum fazer inerentes à profissão.

Através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimentosobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através da subjetividade,da singularidade, das experiências e dos saberes. A centralidade do sujeitono processo de pesquisa e formação sublinha a importância da abordagemcompreensiva e das apropriações da experiência vivida, das relações entresubjetividade e narrativa como princípios, que concede ao sujeito o papelde ator e autor de sua própria história.

A pesquisa com histórias de vida inscreve-se neste espaço onde o atorparte da experiência de si, questiona os sentidos de suas vivências eaprendizagens. A escrita da narrativa abre espaços e oportuniza, àsprofessoras e professores em processo de formação, falar-ouvir e ler-escreversobre suas experiências formadoras, descortinar possibilidades sobre aformação através do vivido. A construção da narração inscreve-se nasubjetividade e estrutura-se num tempo, que não é linear, mas num tempoda consciência de si, das representações que o sujeito constrói de si mesmo.

No âmbito da história da educação as pesquisas (auto)biográficas temapresentado contribuições férteis para a compreensão da cultura e docotidiano escolar, da memória material da escola e se apropriado das escritas(auto)biográficas, das narrativas de formação, como testemunhos,

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indicativos, das relações com a escola, visto que no “[...] campo especificoda história da educação, a inclusão dessas fontes participa de um movimentode renovação de opções teórico-metodológicas e temáticas, característicodas duas últimas décadas [...]” (CATANI, 2005, p. 32).

As pesquisas desenvolvidas no Grupo de Pesquisa AutobiografiaFormação e História Oral (GRAFHO), no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC) vinculam-sea abordagem experiencial e as histórias de vida, as quais organizam-se apartir de projetos do grupo e de suas respectivas linhas de pesquisa. Cabedestaque os trabalhos de Liane Figueiredo Soares e de Selma Assis. Oprimeiro intitula-se Olga Mettig: história de vida e pensamento pedagógico,objetivando destacar a importância dessa professora para a educação naBahia, ao analisar sua história de vida, resgatando os saberes, seu pensamentopedagógico e a realidade educacional da Bahia durante os anos de 1950 a1970, época de maior produção intelectual da educadora. O segundo estudotem como foco, Imagens e Representações das Ex-Normalistas da EscolaNossa Senhora do Carmo: um estudo sobre identidade de gênero e formaçãodocente (1948 – 1982), e pretende contribuir para a análise da formaçãodocente e ampliação da constituição da história educacional na Bahia,visando analisar as imagens e representações de gênero de ex-normalistas apartir de seus processos formativos. O termo identidade, aqui evidenciado,expressa a forma dos indivíduos se reconhecerem e serem reconhecidos, apartir do viés de gênero.

Ao estudar as Histórias de mestras, memória e identidade: o significadode ser professora do Instituto de Educação Gastão Guimarães (IEGG),Rita Carneiro propõe investigar os processos de construção/reconstruçãoidentitárias de um grupo de professoras aposentadas do Instituto e a relaçãodesses processos com as memórias de suas vivências/experiências nainstituição. O Instituto de Educação Gastão Guimarães (IEGG), antigaEscola Normal de Feira de Santana, foi a principal instituição de formaçãode professores de Feira de Santana e região. Milhares de professores tiveramsua formação inicial nesta instituição e muitos professores e professorasviveram ali a sua profissionalidade. Durante muitas décadas trabalhar noIEGG representou prestígio e visibilidade social para os docentes. Mas, emrazão das mudanças na legislação para a formação docente nos últimosanos da década de1990, a oferta de matrícula foi sendo reduzida, até o

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curso ser fechado em 2001. Para o grupo estudado, a instituição permaneceuviva nas suas memórias, ao mesmo tempo que suas identidades foramreconstruídas.

Outro significativo estudo desenvolvido no interior da linha de pesquisas– (Auto)biografia formação de professores e de leitores é o trabalho deGeisa Arlete, intitulado A história de vida e o ciclo profissional: uma reflexãosobre o abandono da docência, ao que busca compreender as possíveisrelações entre o abandono da profissão docente, a história de vida e o ciclode vida profissional de professores da cidade de Salvador – BA, com baseem fontes do Departamento de Saúde do Sindicato de Professores doEstado da Bahia (SINPRO/BA), no período entre 1995-1998.

Os estudos que se apropriam da abordagem experiencial e que tomam ashistórias de vida como prática de formação, no âmbito do grupo têm seconfigurado como uma vertente de pesquisa-formação e vem se debruçandosobre histórias de leitura, estágio supervisionado e narrativas de autoformaçãode professores de educação infantil. Ao discutir sobre as Histórias de vida eformação de leitores: a biblioteca móvel Anísio Teixeira, Zélia MalheiroMarques, busca através das histórias de vida, compreender práticas de leitura,especialmente na zona rural da cidade de Caetité, sudoeste baiano, na qual abiblioteca da Casa Anísio Teixeira, desenvolve programas de leitura para asescolas rurais multisseriadas do município, que têm como idéia-chave o atode ler como propiciador de novos leitores e de produtores de textos. Numaperspectiva semelhante, Neurilene Martins Ribeiro pretende discutir em seuestudo, Tornar-se professor na profissão: narrativas de professoras de LínguaPortuguesa nos anos iniciais de carreira, de que modo os docentes de LínguaPortuguesa da Chapada Diamantina tornam-se professores no exercício daprofissão, investigando as teias de relações constitutivas dos processos queforjam a construção das identidades e subjetividades dos(as) professores(as),com ênfase nas biografias profissionais; nos contextos formativos nos quaisestão inseridos(as); nas práticas de formação oferecidas pelas instituições emque trabalham, ao dialogar com as práticas de formação continuada queassumem a história de vida como processo de formação e autorformação.Ampliando o campo de pesquisa com as histórias de vida no grupo, emseu trabalho sobre, Tornar-se professor de Educação Infantil: histórias devida e (auto) formação, Leomárcia Uzeda procura analisar como osprofessores entendem, percebem os dilemas, desafios, dificuldades em suas

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trajetórias profissionais, ao refletir sobre a construção da identidade daprofessora de educação infantil no exercício da profissão. Por fim, otrabalho Estágio supervisionado e narrativas de formação, de Ana JovinaCarvalho, tem como foco o estágio no curso de Pedagogia desenvolvidono Campus IX (Barreiras – Bahia) e seu papel no curso do de formação,recorrendo às (auto)biografias. A partir da análise interpretativa dos diáriosde estágio e da escrita narrativa da trajetória escolar, pretende compreenderas itinerâncias no processo formativo, identificar conceitos de estágio quepermeiam o curso, as formas como vem sendo desenvolvido ao contribuirpara a superação do reducionismo teoria-prática enfrentado pelo estágiosupervisionado, como também oportunizar a estes profissionaisconhecimentos teórico-metodológicos da abordagem (auto)biográfica, naperspectiva de ressiginificar o papel do estágio no processo de formaçãoinicial.

Essas são também questões que me inquietam e que tenho refletido nocampo da pesquisa formação, seja no âmbito da história da educação ouda formação inicial ou continuada de professores, a partir de uma outraepistemologia da formação e das aproximações e apropriações entre as(auto)biografias, história da educação e as práticas de formação.

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Contribuição historiográfica aodebate sobre ações afirmativas:exclusão racial na Bahia do séculoXIXWilson Roberto de Mattos

As influências nacionais da Conferência Mundial contra oRacismo, Discriminação Racial, a Xenofobia e FormasConexas de Intolerância, realizada em 2001, na cidade deDurban – África do Sul; a implantação do sistema de reservade vagas para candidatos negros em mais de 40 universidadespúblicas brasileiras e a edição da Lei Federal nº 10.639/2003,provocaram uma profunda reorientação nos temas quecomumente têm freqüentado as discussões sobre o Brasilcontemporâneo e as relações com o seu passado histórico.

De um espectro que vai das elites econômicas aos setores populares,passando, como sempre, pelas mãos severas e determinantes das elitesacadêmicas, é notório um certo mal-estar diante do fato de que aspopulações negras, seguramente, pela primeira vez na história do Brasil,passam a se constituir como as principais beneficiárias de um conjunto depolíticas públicas nacionais reparadoras de desigualdades que se arrastam,desde a escravidão – como veremos logo adiante –, transformando o Brasilem um dos países mais racialmente excludentes do mundo.

Mal-estar ainda maior tem sido notado, dessa vez somente entre as elitesacadêmicas, quando, também pela primeira vez, impulsionado pelo mesmoconjunto de acontecimentos e seus desdobramentos, um número expressivode intelectuais negros e negras, sobretudo, mas não exclusivamente, no interior

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das universidades, ameaçam a hegemonia e supremacia racial branca.Hegemonia essa que, desde tempos remotos, reserva aos brancos aprerrogativa quase que exclusiva de saber e dizer o que é o Brasil, suahistória, sua identidade, suas perspectivas, sua memória e, principalmente,determinar como deve organizar-se e por quem devem ser freqüentados, osseus centros autorizados de produção desses saberes e dizeres.

Sentindo-me provocado a entrar nesse debate de uma maneira maisapropriada ao meu próprio campo de formação e da posição que ocupocomo militante negro no interior do universo acadêmico, no presente textotrago à reflexão um pequeno aspecto da histórica exclusão racial daspopulações negras do universo da cidadania, dos direitos e dasoportunidades, como forma de ampliar o entendimento da justiça enecessidade de adoção, nos tempos atuais, de ações afirmativas comomedidas reparatórias.

Ao mesmo tempo realço a necessidade de nós, historiadores e outroscientistas sociais negros, através da pesquisa e de uma deliberada posiçãoteórico-metodológica afinada com as nossas reais necessidades de críticados aspectos mais profundos, retoricamente obscurecidos e menos debatidosdo racismo brasileiro, buscarmos a reconfiguração dos quadros da nossamemória, narrando a nossa própria história à nossa maneira.

Por razões óbvias retorno ao século XIX e, em especial, à sua segundametade. Com os anúncios do inevitável fim da escravidão, os nossos destinose as formas do nosso ingresso no âmbito da nacionalidade livre, estavamsendo cuidadosamente arquitetado pelas elites brancas da época. A questãoera: como garantir a posição de elite econômica, política e cultural, diantede uma imensa “negrada” que ia se libertando a passos largos. Em outraspalavras, como dar continuidade à subordinação de classe e de raçamantendo sob domínio a imensa maioria da população, não podendomais valer-se do estatuo da escravidão.

Evidentemente, com as características históricas das elites brasileiras, aalternativa não poderia ser outra se não a opção deliberada pela exclusãosocial e racial. Do mercado de trabalho à educação, não houve setor socialem que as populações negras não tivessem que enfrentar as açõesdiscriminatórias, sabotadoras e proibidoras de qualquer tentativa deascensão social, coletiva ou individual.

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Qualquer semelhança entre a segunda metade do século XIX e o iníciodo século XXI; qualquer semelhança entre as tentativas de sabotar aspossibilidades de ascensão social das populações negras, naquele período eno período presente; bem como qualquer coisa parecida entre ocomportamento excludente das elites de lá e das elites de cá, não são merascoincidências. Ao menos em termos raciais, os excluídos são os mesmos eas elites também.

Vejamos então, com uma relativa riqueza de detalhes, um dos maissutis, mas não menos eficazes processos de exclusão das populações negras:a ampliação progressiva da taxação sobre as atividades de trabalho livredesenvolvidas pelos negros na Bahia, em especial, os africanos, durante oséculo XIX, como forma de excluí-los do mercado de trabalho livre.

Ao lado de várias outras medidas legais claramente excludentes, avertente fiscal da legislação escravista do século XIX baiano, indicaevidências incontestáveis do que afirmo acima.

Na esteira das medidas repressivas contra os africanos, editadasimediatamente após a Revolta dos Malês, um dos maiores movimentos derevolta negra nas Américas, acontecido em Salvador, no mês de janeiro de1835, ao lado de artigos que previam a expulsão dos africanos suspeitos, aproibição de que eles adquirissem bens de raiz, e a proibição de quealugassem casas, a legislação escravista passa a taxar todos os africanos,indistintamente, pelo simples fato de serem africanos.

O art. 8º da Lei nº 9, fixa para os africanos forros de ambos os sexos,que residissem ou fossem encontrados na Província, a imposição anual de10$000rs., sem especificar a razão da incidência da taxa. Logo em seguida,no art. 9°, além de se prever uma premiação de 100$000rs. a qualquerafricano que denunciasse algum projeto de insurreição, a Lei isentaria odenunciante de pagar taxa de 10$000rs. e, se ele fosse escravo, o libertariapagando ao proprietário, o seu valor de mercado (LEGISLAÇÃO...,1996).

A Lei nº 14, de 2 de junho de 1835, lei que institui capatazias encarregadasde policiar o serviço dos ganhadores negros1, determina no seu art. 3º, umamulta de 10$000rs. aos ganhadores que exercessem suas atividades sem sematricular, duplicando a multa em caso de reincidência. Tentando garantir

1 O termo “ganhadores”, referia-se aos escravos e negros livres que trabalhavam nas ruas exercendo atividadesmecânicas, artesanais, ou prestando algum serviço, como por exemplo, carregar volumes e gêneros ou cadeirasde arruar para o transporte de pessoas.

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a sua eficácia, a mesma lei impõe um arrolamento geral de todos os africanosresidentes na Província com declaração de nome, idade provável, endereçode moradia e ocupação (LEGISLAÇÃO..., 1996).

Considerando o momento em que essas leis foram sancionadas, assimcomo suas características, pode-se dizer que a taxação sobre os africanosnasceu como forma de punição, controle e exclusão, e não como parte deuma política de arrecadação fiscal da Província.2

Em 1846, a taxação sobre os africanos começa a se especificar. Fixa-seo valor de 10$000 rs. “para a licença a ser concedida pela repartição fiscal,a africanos livres de ambos os sexos, para poderem mercadejar,estabelecendo a multa de 50$000 rs. a ser aplicada àqueles que nãoportassem a referida licença” (LEGISLAÇÃO..., 1996, p. 33). Estipula-setambém uma taxa de 2$000 rs. a ser cobrada pela Câmara da cidade daBahia, por africano livre que se empregasse em saveiros ou cadeiras dealuguel (LEGISLAÇÃO..., 1996).

Não parece ter sido coincidência o fato da taxação direta sobre otrabalho dos escravos aparecer na mesma lei que proibia africanos e escravosde atracarem saveiros em determinados estações no cais da capital(FONSECA, 1988). Além das taxas já existentes que, indiretamente,envolviam os escravos, como as taxas de meia siza, as taxas de escravosdespachados para fora da Província, e as taxas sobre escravos residentesnas cidades e vilas, a Lei nº 344, no seu art. 2º, taxa em 10$000rs. osafricanos livres, libertos ou escravos, ocupados em remar saveiros ealvarengas (LEGISLAÇÃO..., 1996). Existia, em 1846, uma lei que taxavaem 2$000, apenas os africanos livres empregados nessa atividade(LEGISLAÇÃO..., 1996), mas, em relação aos escravos, a Lei nº 344, de1848, é a primeira a taxar diretamente suas atividades de trabalho.

Ao que parece, a impossibilidade de exclusão imediata desses segmentosnegros nas atividades de serviços urbanos, fez com que o poder públicoadotasse o mecanismo da taxação progressiva e ascendente, não só comoforma de aumentar as rendas provinciais, mas como estratégia indireta

2 Um estudo de Moraes (1950, p. 182) intitulado O escravo na legislação tributária da Província da Bahia, apesarde só parcialmente dar conta daquilo que se propõe, informa que até 1832, a despeito da existência de cobrançade impostos durante todo o período colonial, não existia propriamente um sistema tributário no Brasil. No períodocolonial os impostos eram considerados receita privada do rei. As províncias só passaram a ter direitos privativossobre a cobrança de impostos, a partir de uma lei geral do Império editada em 1835.

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para alcançar o objetivo da exclusão, num lapso de tempo suficiente paraarticular formas de substituição da mão-de-obra africana e escrava, nessesramos de atividades. Dessa forma, a necessária continuidade dos serviçosnão ficaria comprometida. Vejamos essa progressividade.

No ano seguinte à edição da Lei nº 344, a taxa sobre remadores desaveiros e alvarengas, sobe para 20$000 rs. (LEGISLAÇÃO..., 1996). Em1850, observa-se um novo aumento, e um desmembramento na incidênciada taxa. A Lei nº 405, sancionada neste ano, no parágrafo 27, estipula a

taxa de 30$000rs. sobre africano livre, liberto ou escravo que se ocupasse emremar saveiros ou outra embarcação que servisse para desembarque, e a de20$000 rs. por cada africano livre, liberto ou escravo que se ocupasse em remaralvarengas ou qualquer outra embarcação de descarga (LEGISLAÇÃO..., 1996,p. 40).

Dados quantitativos reunidos por Cunha (1985), asseguram umapresença significativamente majoritária de trabalhadores negros empregadosna lide do mar, o que certamente não passou despercebido aos olhos dopoder público. Para o ano de 1856 em Salvador, de um total de 3.503trabalhadores do mar, 43,3% eram escravos, e entre esses escravos, 98,1%eram pretos, contrastando com ínfímos 1,9% de pardos (CUNHA, 1985).

Se considerarmos que, à época, o termo designativo “preto”, não era sóatributo da cor da pele, mas servia, principalmente, para designar osafricanos, procede levantar a hipótese de que a presença deles era massivanas atividades do mar pois, mesmo entre os trabalhadores marítimos livres,os pretos representavam 32,2% (CUNHA, 1985).

Os dados sobre os trabalhadores marítimos na Província da Bahia comoum todo, apontam para uma forte diminuição da proporção de escravosnesse ramo de atividade a partir da década de 1860. De 30,7% em 1862,os escravos passam a representar apenas 9,8% em 1874. Cunha (1985)afirma ainda que as medidas de exclusão do início da década de 1850,foram responsáveis pelo desemprego de 750 africanos.

A taxação progressiva, estendeu-se, praticamente, a todas as atividadesque, de uma forma ou de outra, envolvia os escravos ganhadores e osafricanos libertos.

Em 1855 inaugura-se a taxa de 100$000 rs. sobre escravo que sematriculasse como marinheiro. Aumenta-se a mesma taxa para 150$000rs.,em 1863; 200$000rs., em 1864; 240$000rs., em 1876; e, em 1877, diminui

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para 200$000rs., onde se estabiliza até o final da escravidão(LEGISLAÇÃO...,1996).

Os escravos ganhadores, aqueles que exerciam suas atividades de trabalhonas ruas longe do controle direto dos seus senhores, são taxados anualmente,de 1857 até 1881. Essa taxa, inicialmente de 3$000rs., sobe para 5$000rs.,onde permanece até 1875; depois, sobe para 10$000rs., nos anos de 1876e 1877; aumenta para 15$000rs., em 1878 e 1879; e termina em 20$000rs.,no ano de 1881 (LEGISLAÇÃO..., 1996). Segundo o Inspetor do TesouroProvincial, Dr. Gustavo Adolfo de Sá – em relatório apresentado ao Presidenteda Província, Dr. Antônio de Araújo Aragão Bulcão – “pela expressão,escravo ganhador, se deve entender todo o escravo que estiver à ganho oualugado, seja qual for o serviço em que se empregue”3.

A Lei nº 420 de 7 de junho de 1851, impõe, pela primeira vez, a taxa de10$000rs. sobre todo africano que exercesse ofício mecânico. Dois anos depoisessa taxa passa a incidir também sobre escravos que exercessem os mesmosofícios (LEGISLAÇÃO..., 1996). Entretanto, a legislação toma o cuidado deisentar dessa taxa, aqueles escravos que estivessem ligados ao serviço da lavoura.

A quase interminável relação dos trabalhadores cujas profissões incluem-se na categoria de ofícios mecânicos, nos informa sobre a dimensão daintervenção do poder público no controle das atividades urbanas detrabalho, tanto quanto nos permite desmentir a idéia veiculada pelahistoriografia oficial de que os negros não tinham preparo para o ingressono mundo do trabalho livre e qualificado. Segundo o título XVIII doRegulamento de 20 de agosto de 1861 editado pela Presidência da Província,eram considerados ofícios mecânicos os de: abridor, armeiro, alfaiate,asfalteiro, barbeiro, cravador, caldeireiro, coronheiro, correeiro, chapeleiro,cabeleireiro, charuteiro, carapina, carpinteiro, cordoeiro, calafate, calceteiro,canteiro, cavouqueiro, curtidor, dourador, espingardeiro, escultor,entalhador, encadernador, empalhador, envernizador, ferrador, ferreiro,funileiro, fogueteiro, lapidário, lavrante, latoeiro, livreiro, marceneiro,ourives, pintor, polieiro, pedreiro, relojoeiro, serralheiro, sirgueiro, surrador,seleiro, segeiro, sapateiro, serrador, tintureiro, tecelão, torneiro, tamanqueiro,tanoeiro, vidraceiro (LEGISLAÇÃO..., 1996).

3 APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia / Biblioteca. Relatório apresentado em 2 de abril de 1880. Essa definiçãode escravo ganhador, é uma correção feita pelo Inspetor do Tesouro, ao art. 218 do Regulamento de 20 de agostode 1861, que orientava a cobrança de impostos.

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De 1873 a 1877, as leis passaram a especificar diferenças no valor doimposto que incidia sobre os escravos que exercessem seus ofícios mecânicosna capital e seus subúrbios (10$000rs.), daqueles que os exercessem nasdemais cidades e vilas da Província (5$000 rs). Observa-se um aumentorespectivo para 20$000rs., e 10$000rs., na lei de 1876, e na lei de 1877(LEGISLAÇÃO..., 1996).

A partir de 1878, desaparece da legislação a diferença de valor entre aincidência da taxa na capital, e nas outras cidades. As leis subseqüentes passama taxar em 20$000rs., indistintamente, todos os escravos que exercessemofício mecânico. Essa taxa perdura até 1886, último registro da sua presençana legislação escravista do século XIX baiano (LEGISLAÇÃO..., 1996).

Walfrido de Moraes, no seu estudo sobre os impostos que incidiamsobre os escravos durante o século XIX, informa que em 1887, ano deexercício da Lei orçamentária de 1886, foi arrecadado com a cobrança dataxa sobre escravos que exerciam ofício mecânico, apenas 20$000rs., ouseja, apenas um escravo foi taxado. Quanto à cobrança de taxa sobrecompra e venda de escravos, informa ainda o autor, a sua arrecadação, nomesmo ano, foi zero (MORAES, 1950). Obviamente a “causa mortis” dessesimpostos, foi inanição.

É obvio que a escravidão teve um peso fundamental na vitalidadefinanceira da Província. Além das taxas acima especificadas, houve outras,tais como, as que incidiam sobre o transporte em cadeiras de arruar, licençaspara mercadejar, contratos de compra e venda de escravos, e as taxas sobreescravos matriculados como marinheiros. É necessário considerar tambémas multas que incidiam sobre aqueles que burlassem o pagamento dessastaxas.

A Lei nº 1.054 de 27 de junho de 1868, na parte referente à receita doorçamento provincial para o ano financeiro de 1868-1869, faz previsõesde que, só com os impostos envolvendo escravos, os cofres públicosarrecadariam: 81:630$340rs., com a meia siza sobre a compra de escravos;5:487$500rs., com a taxa sobre escravos que exercessem ofícios mecânicos;51:233$610rs., com a taxa por escravos que fossem despachados parafora da Província, e 3:000$000rs., com a taxa sobre escravos matriculadoscomo marinheiros (LEGISLAÇÃO..., 1996).

Somando-se esse montante, a previsão do governo provincial é de quearrecadaria, somente com esses impostos, 141:351$450rs. Quantia essa,

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suficiente para comprar 321 escravos do sexo masculino, de acordo comseu preço médio nesse período. Segundo Andrade (1988), o preço médiode um escravo do sexo masculino em 1868 era 440$071rs.

Um relatório técnico do Inspetor do Tesouro Provincial, apresentadoao Presidente da Província em 1878, é indicativo da necessidade que ogoverno tinha de cobrar esses impostos. Escreve o Inspetor que,

os diversos impostos sobre escravos, a saber: A meia siza sobre os que sãodespachados para fora da Província, os ganhadores e os que exercem officiomechanico, tendem a diminuir progressivamente, até que finalmente cessem detodo. É necessário que o poder competente cuide em crear fontes de receita que,proporcionalmente, vão substituindo o desfalque que a diminuição na rendade taes impostos vai deixando nos orçamentos. O deficit final será superior a300:000$000, em relação ao que elles já produzirão4

Ainda que esses dados indiquem que o peso dos impostos que incidiam,direta ou indiretamente, sobre os escravos e suas atividades de trabalho,não foi pequeno na composição do orçamento provincial, isso não anulaa hipótese, anteriormente levantada, de que a taxação progressiva eascendente, sempre precedida de arrolamentos e matrículas, além de cumprira óbvia função de aumentar as rendas provinciais, significou um expedienteproibitivo, complementar às tentativas mais notórias de exclusão dosescravos e africanos das atividades de trabalho urbano. Sobretudo aquelasatividades nas quais esses negros desfrutavam de uma relativa autonomia.

Informando tal hipótese, uma observação geral sobre o conjunto dasleis de arrecadação orçamentária entre os anos de 1835 e 1888, aponta umdado que merece ser mencionado.

Acompanhando essas leis, ano por ano, observa-se que os africanoslivres que exerciam ofícios mecânicos, são taxados pela última vez, em1863 (LEGISLAÇÃO..., 1996).

Há duas razões possíveis para o desaparecimento da cobrança dessataxa. Uma seria o governo provincial ter, deliberadamente, aberto mão dacobrança de taxas sobre as atividades de trabalho dos africanos livres. Aoutra, a que nos parece mais provável, é que a própria cobrança da taxa, esua progressividade, teria contribuído para a redução do número de africanosempregados em ofícios mecânicos, tornando desnecessária a reedição das

4 APEB – Biblioteca. Relatório de 2 de abril de 1878, apresentado ao Presidente da Província Barão Homem de Mellopelo Bacharel Ignácio José Ferreira, Inspector do Thesouro Provincial da Bahia. 1878.

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leis de cobrança. Não se crê que o governo provincial deixaria de taxar osafricanos empregados nesses ofícios, se o seu número fosse considerável.Aliás, a taxa sobre africanos que exerciam ofícios mecânicos existia desde1851, se repetindo, ano a ano, em todas as leis orçamentárias, até deixarde ser cobrada a partir de 1863.

O último registro de cobrança de impostos sobre o trabalho dosafricanos, é a Lei nº 950, de 27 de maio de 1864, estabelecendo uma taxade 20$000rs. para cada africano, de ambos os sexos, que mercadejasse nacapital e cidades do litoral. A partir daí, os africanos desaparecem dalegislação orçamentária.

Evidentemente, isso não significa que eles tivessem deixado de exerceroutras atividades. Cabe observar que 809 africanos estavam inscritos comoganhadores, entre os 1761 trabalhadores negros constantes do Registro deMatrícula de 18875. Mas, esse mesmo Registro, indica que a redução donúmero de africanos que exerciam atividades mecânicas deve ter sido grande,pois, ao contrário de outros ganhadores matriculados e identificadas àssuas profissões, não aparece nenhum africano com esse tipo de registro.

Em contrapartida, os escravos que exerciam ofícios mecânicos, e osescravos ganhadores – é bom que se repita, escravos cujo trabalho na rua,os livrava de um controle senhorial mais estreito –, muitos deles,provavelmente, arrimo dos seus senhores6, tiveram suas atividades detrabalho taxadas até a década de 1880. Os primeiros, até 1886, e ossegundos até 1881(LEGISLAÇÃO..., 1996).

Somente os ganhadores livres, crioulos ou africanos, deixaram de sertaxados a partir de 1858 (LEGISLAÇÃO..., 1996). Certamente foi umadecorrência da vitória parcial obtida na greve dos ganhadores de 18577. Aprincipal reivindicação dos ganhadores em greve, era a abolição do

5 Registro feito pela Chefatura de Polícia, intitulado Registro de Matrícula dos Cantos de Ganhadores Livres. Ariqueza desse documento está na profusão de detalhes que ele nos fornece sobre todos os trabalhadoresnegros registrado na cidade de Salvador: nome, idade, condição, local de trabalho e de moradia etc. APEB - Colonial/Provincial. Séire Polícia. Maço 7116.

6 Ter escravos em Salvador no século XIX, não era prerrogativa exclusiva dos ricos. Muitos pobres, inclusive africanoslibertos, adquiriam escravos, seja como forma de consolidar um “status” social diferenciador, ou, sobretudo,como forma de garantir a própria sobrevivência utilizando-se do escravo em atividades de ganho. Na cidade deSalvador, grande parte dos proprietários não possuíam mais do que 2 ou 3 escravos. Mais detalhes sobre issopodem ser encontrados no livro de Fraga Filho (1996) e na dissertação de mestrado de Sena Júnior (1997).

7 Com base em estudo de Reis (1993) sabemos que essa greve foi empreendida por negros ganhadores, seposicionando contrários às imposições de disciplinamento , controle e taxação sobre as suas atividades de trabalho,impostos pela Câmara Municipal de Salvador, em 1857.

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pagamento da taxa obrigatória que incidia sobre suas atividades. Depoisde uma semana de greve a Câmara Municipal de Salvador, anulou a taxa.8

Procurei mostrar que, de alguma maneira, a parte fiscal da legislaçãoescravista na Bahia, especialmente, a partir da segunda metade do séculoXIX, foi um dos componentes do quadro de exclusão social das populaçõesnegras, no âmbito do processo mais amplo de transição da hegemonia dotrabalho escravo para a hegemonia do trabalho livre.

Evidentemente que ainda há inúmeros aspectos dessa exclusão que estãopor ser pesquisados. A quem quer que se interesse, não será difícil encontrarem arquivos públicos de cidades brasileiras de passado escravista, pistassobre os procedimentos e formas através das quais essa exclusão se efetivou.

Meu objetivo aqui foi, como dito anteriormente, entrar no debate sobreações afirmativas, destacando, na história do Brasil, processos concretosque reforçam argumentos relativos à necessidade e justiça na adoção detais medidas.

O que foi encontrado e, nesse texto, exibido como exemplo, não deixadúvidas. As ações afirmativas como medidas construtoras da igualdade raciale, sobretudo, como medidas de reparação de discriminações e exclusões daspopulações negras, têm sua necessidade confirmada pela História. Portantopenso que qualquer manifestação contrária a essa necessidade, na melhordas hipóteses, implica em ignorância, ou, o que não queremos crer, em algumarazão inconfessável que não ousa dizer o nome publicamente.

REFERÊNCIAS

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CUNHA, Manoela Carneiro da. Negros estrangeiros: escravos libertos esua volta a África. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FLEXOR, Maria Helena. Oficiais mecânicos na cidade do Salvador.Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador, 1974.

FONSECA, Luis Anselmo da. A escravidão, o clero e o abolicionismo. Recife:Massangana, 1988. Edição fac-similar, 1887.

8 Cf. REIS,1993.

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LEGISLAÇÃO da Província da Bahia sobre o negro: 1835-1888. Salvador:Fundação Cultural do Estado da Bahia/Diretoria de Bibliotecas Públicas,1996.

MALERBA, Jurandir. Os brancos da lei. Maringá: Editora da UniversidadeEstadual de Maringá, 1994.

MATTOS, Wilson Roberto de. Escravos astutos - liberdades possíveis:reivindicações de direitos, solidariedades, resistências e arranjos desobrevivência em Salvador (1871-1888). In: SILVÉRIO, Valter Roberto et.al. (Org.) De preto a afro-descendente: trajetórias de pesquisa sobre relaçõesétnico-raciais no Brasil. São Carlos: EDUFSCAR, 2003, p. 25-50.

______. Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais ecurrículos escolares. Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade.Salvador, v. 12, n. 19, p. 247-252, jan./jun., 2003.

______. CANTOS: trabalho, cultura e solidariedade. Africanos e crioulosem Salvador na segunda metade do século XIX. Revista Sementes – Éticada coexistência. Salvador, v. 2, n. 3 e 4, p. 114-128, jan./dez., 2001.

______. Ações Afirmativas na Universidade do Estado da Bahia: razões edesafios de uma experiência pioneira. In: SILVA, Petronilha BeatrizGonçalves et. al. (Org.). Educação e Ações Afirmativas: entre a injustiçasimbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos ePesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003.

______. Inclusão social e igualdade racial no ensino superior baiano – umaexperiência de ação afirmativa na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).In: BERNARDINO, Joaze et. al. (Org.). Levando a raça a sério: açãoafirmativa e universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

MORAES, Walfrido. O escravo na legislação da Província da Bahia.CONGRESSO DE HISTÓRIA DA BAHIA, 1., 1950, Salvador. Anais...Salvador: IGHB, 1950, v. 4.

REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia, Revista USP, São Paulo,n. 18, 1993.

SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias F. de. Entre a pobreza e a propriedade: opequeno proprietário de escravos em Salvador. 1850/1888. 1997.Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e CiênciasHumanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1997.

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Branqueamento e branquitude:conceitos básicos na formação paraa alteridadeAna Célia da Silva

Esse artigo foi elaborado a partir do projeto de pesquisa, emprocesso, intitulado A diferença como prestígio: a representaçãosocial do branco no livro didático. Com essa pesquisa pretendocontribuir para a distinção entre os conceitos debranqueamento e branquitude, este último recente nos estudosbrasileiros e que tem como precursoras as pesquisadoras daPsicologia Social da Universidade do Estado de São Paulo(USP), Iray Carone, Edith Piza e Maria Aparecida Silva Bento,bem como para a melhoria das relações étnico-raciais, na escolae na sociedade como um todo.

O interesse pelo objeto de investigação foi despertado inicialmente apartir de atitudes percebidas nas relações cotidianas na minha atividadeprofissional, de algumas pessoas de fenótipo branco ou assemelhado. Essasatitudes revelavam dificuldade em manter relações não hierárquicas,tendências a identificar o “outro” como ocupando espaços que não lhessão próprios, a tratá-lo como objeto de brincadeiras e elogiar a inteligênciadesse “outro” quando toma conhecimento da sua produção acadêmica.Porém o que mais me instigou foi um diálogo com uma criança de quatroanos, filho de um casal amigo, ele branco e ela parda. A criança tem a peleclara, cabelos lisos e traços fisionômicos indígena. Sempre que eu procuravaabraçá-la ela dizia que não gostava de mim e me afastava. Um dia ela medisse muito zangada quando eu a abracei: – vou pintar você de preto.

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Respondi: – não precisa você não vê que eu sou preta? Ela retrucou: – vocênão é bem preta, você é preta clara. Eu disse: – e sua mãe? ela é preta? Eladeu um grito e disse: – minha mãe não é preta, é marrom e eu sou branco.A criança de pele clara quis me castigar me pintando de preto e distinguiu-se se valorizando por ser branca.

Que fatores podem contribuir para uma criança de quatro anos já tercondições de hierarquizar as diferentes cores da pele, atribuindo um valorao fato de ser branco?

Porque é tão importante ser ou parecer branco?Qual o grau de prestígio econômico ou simbólico que esse grupo detém,

para que muitos procurem assemelhar-se a ele?A escola, o currículo e especificamente os livros didáticos, contribuem

para a construção desse sentimento de superioridade por ter a pele clara ecabelos lisos, ser denominado e denominar-se branco?

Investigo a existência de representações sociais dos personagens brancosno livro didático de Língua Portuguesa das séries iniciais modelados nosentido de construir valoração positiva das diferenças fenotípicas e culturaisdesse grupo humano.

Tenho como hipótese a ser investigada, que os livros didáticos, atravésdos seus textos e ilustrações, contribuem em grande parte, para a construçãode um sentimento de superioridade da população branca ou assemelhada,pelo valor que é atribuído às suas diferenças feno típicas e culturais, Oprocesso da investigação pretende responder as seguintes questões centrais:

O livro didático de Língua Portuguesa de Ensino Fundamentalde 1º e 2º ciclo contribui para a atribuição de valor às diferençasfeno típicas e étnico/raciais do grupo humano branco?

A atribuição de valor às diferenças fenotípicas e étnico/raciais dogrupo humano branco contribui para a formação de atitudesetnocêntricas e hierárquicas desse grupo étnico/racial em relaçãoa outros grupos étnicos/raciais?

As palavras chaves da investigação são: representação social, hegemonia,branqueamento, branquitude.

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Nos caminhos a serem percorridos para coleta, análise e interpretaçãodos dados utilizei a abordagem qualitativa e utilizo o procedimento deanálise de conteúdo, para caracterizar as mensagens expressas nos textos eilustrações analisadas bem como “a descoberta do que está por trás dosconteúdos manifestos, indo além das aparências do que está sendocomunicado” (GOMES, 2004 apud MINAYO, 2004, p. 74).

Os livros objetos da investigação, em número de cinco, foramselecionados da última pesquisa realiza para obtenção do título de doutor,uma vez que os mesmos foram os que tiveram uma representação positivados personagens negros entre os desesseis livros pesquisados. Os dadosobtidos serão analisados qualitativa e quantitativamente em suas ilustraçõese texto, agrupados e categorizados. Subcategorias poderão ser construídaspara maior explicitação da análise.

Alguns conceitos fundantes para uma reflexão sobre a problemáticaem questão.

A REPRESENTAÇÃO SOCIAL

Os estudos de representação social não são antigos. Tiveram inícioquando Moscovici criou o termo, escrevendo a sua obra La Psychanalise,son image e son public em 1961, publicada no Brasil com o título Arepresentação social da psicanálise, 1878, traduzida da segunda ediçãofrancesa, e em 1976, pela presses Universitaires\France, de Paris, na sérieBibliotheque Psychanalyse.

A existência de estudos sobre representações sociais é marcada por obrasque confirmam a existência desse campo de investigação, tais comoMoscovici (1978), Jodelet (1984, 1989), Ibanéz (1988), Doise (1990,1993), Vala (1993), Sá, (1996), Abric (1994), Wagner e Elezabarrieta (1994).

No Brasil existe um movimento acadêmico voltado para os estudosdas representações sociais, que vem se desenvolvendo no sentido de umafamiliarização com o seu conceito, análise, crítica e produção científica.Algumas iniciativas desse movimento são as formações de um grupo detrabalho sobre o assunto nos III, IV e V Simpósios de Pesquisa e IntercâmbioCientífico da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação emPsicologia (ANPEPP), realizados em 1991, 1992 e 1994 respectivamente(SÁ, 1996). Outra iniciativa constituiu-se na participação de autores

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brasileiros em sessões específicas realizadas em outros eventos científicos,tais como a I Internacional Conference on Social Represetation, em Ravello,na Itália, em 1992; o Congresso Interamericano de Psicologia realizadoem Santiago do Chile em 1993; os V, VI e VII Encontros Nacionais dePsicologia Social da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO)em 1989, 1991 e 1993, respectivamente; o XXIII Internacional Congressof Applied Psichology, realizado em Madrid, Espanha, em 1994; o Encontrode Representação Social do Rio de Janeiro, na Universidade Estadual doRio de Janeiro (UERJ) em 1994; a 2ª Conferência Internacional sobreRepresentação Social na UERJ, promovida pelo Mestrado em Psicologia,Instituto de Psicologia e École dês Hautes Ètudes em Sociales e a SocialRepresentations Communication Network, que contou com a presença de46 pesquisadores brasileiros dos diversos estados, dentre os 115 participantesque apresentaram trabalhos (SÁ, 1996 apud SILVA, 2001, p. 24-25).

Moscovici diz que apesar das representações sociais constituírem-se ementidades quase tangíveis, que se cruzam e se cristalizam através da fala, dogesto, do nosso universo cotidiano, existe uma dificuldade de apreensãodo seu conceito devido a sua posição “mista” na encruzilhada de uma sériede conceitos sociológicos e psicológicos, referindo-se, talvez, às divergênciasde tratamento do seu objeto nos Estados Unidos e na Europa. No entanto,ele enuncia na sua obra diversos conceitos quando define suas característicase funções; quando diz, por exemplo, que nos aproximamos da noção derepresentação, “quando precisamos sua natureza de processo psíquico capazde tornar familiar, situar e tornar presente em nosso universo interior o quese encontra a uma certa distância de nós, o que está de certo modo ausente”(MOSCOVICI, 1978, p. 62-63). Diferenciando representação social deimagem, mito e ideologia, ele caracteriza as representações através dasseguintes definições:

Por representações sociais entendemos um conjunto de conceitos, proposiçõese explicações originado na vida cotidiana no curso de comunicaçõesinterpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade, dos mitos e sistemasde crenças das sociedades tradicionais, podem também ser vistas como a versãocontemporânea do senso comum (MOSCOVICI, 1981 apud SÁ, 1996, p. 181).

A representação social é uma preparação para a ação, ela não é somentena medida em que guia o comportamento, mas, sobretudo na medida em

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que remodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que ocomportamento teve lugar (MOSCOVICI, 1978, p. 49).

São também importantes iniciativas a publicação de duas obrasbrasileiras coletivas sobre representações sociais: O Conhecimento docotidiano – as representações sociais na perspectiva da Psicologia Social,de Bock e Spink (1993) e Textos em Representações Sociais, de Guareschie Jovchelavitch (1994).

Outra importante iniciativa foi a estada no Brasil de pesquisadoresvisitantes, a convite do Mestrado em Psicologia da UERJ, dos professoreseuropeus Denise Jodelet, da École de Hautes Études em Sociales: WolfgangWagner, da Universitat Linz da Áustria: Jorge Vala, da Universidade deLisboa, Portugal; Jean-Claude Abric, da Université de Provence, França, eRoberte Farr da London Shool of Economies and Political Science, daGrã-Bretanha, a convite do Mestrado de Psicologia da PontifíciaUniversidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul (SÁ, 1996).

Outro evento histórico nas representações sociais no Brasil foi a JornadaInternacional sobre Representações Sociais: teoria e campo de aplicação,realizada em novembro de 1998 em Natal, RN, na qual estive presente,organizada pela Universidade Federal do rio Grande do Norte (UFRN),Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), École de Hautes ÉtudesEm Sciences Sociales e Fondation Maison Dês Sciences de L’Homme, coma presença de vários dos pesquisadores mencionados, entre eles Moscovici,Jodelet e Farr. Este evento constituiu-se, na minha avaliação, na culminânciados estudos teóricos e empíricos realizados no Brasil, com a parceria dospesquisadores precursores desse campo de investigação. A presença depesquisadores conceituados, junto aos que iniciam investigações nesse campodo conhecimento foi muito significativa, porque deu importantesreferenciais para os caminhos que trilhamos na busca de repostas para asnossas questões de investigação.

Moscovici (1978) instituiu como a questão central da sua investigaçãoa forma em “que se converte uma disciplina científica e técnica quandopassa do domínio dos especialistas para o domínio comum, como o grandepúblico a representa e modela e porque vias se constitui a imagem que delase faz” (LAGACHE, 1976 apud MOSCOVICI, 1978, p. 7). A análise deum conceito teórico e abstrato da representação social foi substituída, na

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sua investigação, pela análise de um objeto concreto, a psicanálise,pesquisando a forma como o povo francês a representava.

Durkheim (1978), precursor desses estudos, foi o primeiro a propor aexpressão “representação coletiva”, localizando o pensar social sobre oindividual. Moscovici acrescentou o entendimento de que a representaçãocoletiva não é a soma das representações dos indivíduos que compõem asociedade e criticou Durkheim por não abordar nem explicar a pluralidadede modos de organização do pensamento social.

A representação social é importante, uma vez que o grande volume deteorias e fenômenos transmitidos na sociedade não poderia ser corroboradona experiência individual. Os significados transmitidos através doconhecimento e realidades diretas são limitados em relação aos conhecimentose realidades transmitidos através da educação, meios de comunicação einstituições (MOSCOVICI, 1978). Contudo, a representação de uma realidadeou objeto não corresponde à percepção real dessa realidade ou objeto, umavez que esta tem o papel ativo de modelar o que apreende do exterior e reproduzessa realidade ou objeto, reconstruindo-o. Segundo Moscovici (1978, p. 63),“as representações se constituem para tornar o estranho, o ausente em nós,que nos impressiona, familiar”. Essa percepção que causa estranheza éacomodada pela modelagem, através do repertório de experiência de suarealidade interior. O objetivo ou ser ausente em nós, ao penetrar no nossouniverso, relaciona-se e articula-se com outros objetos que aí encontram,permutando entre si as propriedades daquele e deste, tornando-o próximo efamiliar, transformado e transformando os objetos já encontrados, deixandode existir como um objeto, para converter-se no seu equivalente.

Na vida social há situações em que “cada pessoa é uma representaçãode uma pessoa” (MOSCOVICI, 1978, p. 64), como os filhos dos ricos, dosartistas, etc. e as reações dos indivíduos não são a essas pessoas, mas aonome e posições que ocupam. Quando se trata de um indivíduo ou grupoestranho, eles não são julgados por si próprios, mas pela etnia, raça, classeou nação a que pertencem como os judeus, os ciganos, os negros, os pobres,entre outros. Para Moscovici (1978 p. 64) “o racismo é o caso extremo emque cada pessoa é julgada, percebida, vivida, como representante de umaseqüência de outras pessoas ou de uma coletividade”.

A representação social é diferente da imagem, esta vista como um reflexona consciência individual ou coletiva, de um objeto ou feixe de idéias que

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lhes são exteriores, uma fotografia captada e alojada no cérebro, enquantoa representação social é ativa, porque modela e reconstrói o dado do exterior(MOSCOVICI, 1978). Se representação fosse apenas uma imagem, fixariana consciência individual ou coletiva a imagem da diversidade de papéis efunções do negro na sociedade, a riqueza da sua cultura e religiosidade,entre outras imagens do cotidiano do povo negro, que os objetosrecalcadores internalizados na nossa consciência invisibilizam ou modelamnegativamente.

A representação social se constitui pelo processo da percepção einternalização de estímulos distantes. No interior do organismo ocorre oprocesso de construção da percepção ou tomada de consciência do objetoou da realidade percebida. Para que haja a percepção é necessária a presençado objeto; porém, para a sua conceptualização, a sua presença não énecessária, porque um ser representado à consciência é atualizado, modelado,apesar da sua ausência ou até de uma eventual existência. Dessa forma, arepresentação de algo pode não ser do objeto inicialmente percebido, masdo objeto construído a partir dos elementos que a ele acrescentamos, noprocesso de modelagem e reconstrução. Por isso Moscovici considera queas representações sociais constituem-se no senso comum dos indivíduos,elaborado a partir de imagens, crenças, mitos e ideologias. Para ele arepresentação social é uma preparação para a ação, “ela não é somente namedida em que guia o comportamento, mas sobretudo na medida em queremodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que ocomportamento teve lugar” (MOSCOVICI, 1978, p. 49).

Por tudo isso é fundamental em representação social, segundo Moscovici,saber “por que” se produzem as representações sociais, uma vez que a suafunção “é contribuir exclusivamente para os processos de formação decondutas e de orientação das comunicações sociais”.

Nesse sentido, transformar as representações sociais significa transformaros processos de formação de conduta em relação ao outro representado,bem como as relações com esse outro, porque na medida em que essasrepresentações não apresentarem objetos de recalque, inferiorização ousupervalorização desse outro, a percepção inicial e o conceito resultante dessapercepção, em nossa consciência, terá grande aproximação com o real.

Muitos pesquisadores identificaram o branco como representante dahumanidade e da cidadania (HASENBALG, 1979; NEGRÃO, 1986;

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ROSEMBERG, 1980; SILVA, 1995), entre outros. Esse grupo para mantera hegemonia política e econômica construiu ideologias e representaçõessociais etnocêntricas e hierárquicas, utilizando os aparelhos ideológicos deestado para reproduzi-las. A saturação dessas ideologias e representaçõesconverteu-as em hegemônicas e em conseqüência as mesmas foraminternalizadas, em grande parte, pelos mesmos e por outros grupossubordinados na sociedade e representados de forma recalcada no livrodidático, na mídia, entre outros.

A HEGEMONIA

A presença do grupo branco enquanto representante da humanidade eda cidadania na nossa sociedade pode ser explicada, em grande parte, pelarepresentação saturada e hegemônica desse grupo nos aparelhos ideológicosdo Estado. Ideológica, não concreta, essa representação constitui-se emrealidade para a maioria dos sujeitos expostos a essa representação saturada,ou seja, o próprio grupo branco e os demais.

A hegemonia ou supremacia de um grupo social, de uma ideologia, deuma cultura pode ser teoricamente conceituada na tentativa de explicá-la,construindo-se com essas tentativas novos significados, uma vez que a teoriaé uma representação, uma imagem um reflexo, um signo de uma realidadeque cronologicamente, ontologicamente a precede. A teoria está implicadana produção da realidade. O objeto que supostamente descreve é umproduto da sua criação (SILVA, 2000).

Apple (1982) apresenta conceitos de hegemonia de Gramsci e Williamsque considero elucidativos do termo. Para Gramsci,

a hegemonia pressupõe a existência de alguma coisa que é verdadeiramentetotal, que não é apenas secundária, ou superestrutural, como o fraco sentido deideologia, mas sim que é vivenciada tão profundamente, que satura a tal pontoa sociedade e que, conforme propõe Gramsci, constitui mesmo o limite do sensocomum para a maioria das pessoas que se acham sob o seu domínio, que acabapor corresponder à realidade da experiência social de modo muito mais nítidodo que quaisquer outras noções derivadas da fórmula de base e superestrutura(APPLE, 1982, p. 14).

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Williams por sua vez define hegemonia como

Todo um corpo de práticas e expectativas: nossas tarefas, nossa compreensãocomum do homem e de seu mundo. É um conjunto de significados e valoresque, á medida que são experienciados como práticas, apresentam-se como seconfirmando reciprocamente. Constitui portanto, um sentido de realidade paraa maioria das pessoas da sociedade, um sentido do absoluto, porqueexperienciados como uma realidade fora da qual é muito difícil para a maioriados membros de uma sociedade instalar-se em grande parte das áreas de suasvidas (APPLE, 1982, p.15).

Identificar e interpretar teoricamente os processos de saturação quetornam hegemônicas ideologias que promovem a supervalorização de umgrupo e o recalque dos demais pode constituir-se em propostas deinvestigação, com efeitos positivos na educação das relações étnico-raciais.

O BRANQUEAMENTO

Uma das ideologias identificadas por diversos pesquisadores da questãoracial na nossa sociedade é a ideologia do branqueamento. Ela parece tersido construída por ideólogos transvertidos de cientistas, devido a presençade uma maioria populacional negro/mestiça no país e de um possívelconflito a ser gerado a partir da exigência desse grupo dos seus direitos decidadania e de respeito ás suas diferenças étnico/culturais. Aceitar asdiferenças pressupõe atribuir-lhes igualdade de direitos e oportunidades.O respeito ás diferenças implica numa reciprocidade na igualdade derelações. Como não é possível estabelecer relações recíprocas de direitos erespeito em um sistema baseado na exploração do outro, desenvolve-seideologias de dominação, objetivando a desconstrução da identidade étnico/racial/cultural, da auto-estima e do reconhecimento dos valores epotencialidades do oprimido.

A ideologia do branqueamento foi defendida por homens como JoaquimNabuco, Rui Barbosa e Euclides da Cunha, entre outros. Todos eles eramcontrários á escravidão, mas imbuídos do racismo e da inferioridade inatados negros. Na obra o Abolicionismo Joaquim Nabuco dá uma explicaçãopara o que se pretendia ao abolir a escravidão: “absorver o sangue caucásicovivaz, enérgico e sadio que certamente embranqueceria o nosso povo”(CHIAVENATO, 1986 apud SILVA, 1995, p 26).

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Euclides da Cunha que denunciou o genocídio da população do arraialde Canudos em Os Sertões, apesar de defender o negro e o mestiço os viacomo desiguais. Em sua obra clássica diz o seguinte:

Intentamos esboçar palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores,os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexo de fatores múltiplos e diversamentecombinados aliada às vicissitudes históricas e deploráveis situação mental emque jazem, os tornam talvez efêmeros, destinados ao próximo desaparecimentoantes as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensivadas correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra(CUNHA, 1979 apud SILVA, 1995, p. 7).

Afrânio Peixoto, representante da intelectualidade, também expressouo desejo de eliminar o componente negro da nação brasileira. Ele explicitasem dissimulações o ideal do branqueamento, quando diz: “Trezentos anostalvez, levaremos para mudar de alma e alvejar a pele, e se não brancos, aomenos disfarçados, perderemos o caráter mestiço”

Em 1870 chegou ao Brasil o conde de Gobineau, amigo de D. Pedro II e contrárioà miscigenação, uma vez que via o miscigenado como um produto degenerado.Como solução para uma degeneração genética, que ele previa se efetivaria noBrasil em menos de 200 anos devido á mistura de raças, pregava a “purificação”com o sangue europeu. Gobineau escreveu que, excluindo D. Pedro II “todomundo é feio aqui, mas incrivelmente feios: como macacos” (CHIAVENATO,1986 apud SILVA, 1995, p. 171).

Atribui-se apenas às elites dominantes ganhos com a ideologia dobranqueamento aqui implantada. Porém, alguns autores atribuemconquistas para os negros de pele clara, como forma de compensação ejustificação para a ideologia. Caste diz a esse respeito que

diferenças mínimas no tom da pele tornaram-se dados sociais significativos.Criou-se assim uma situação em que os favores são distribuídos entre os mestiçosna base do seu grau aparente de mistura. Em outras palavras, uma recompensaé atribuída aos graus de branqueamento entre as pessoas de cor (CASTE, 1970apud HASENBALG, 1979, p. 235).

Porém esses ganhos não podem ser considerados uma vez que ofracionamento da identidade, a auto-rejeição, a rejeição ao seu povo, anegação do racismo aqui existente e a ausência de participação na luta

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pela sua destruição, significam um prejuízo efetivo para a luta por direitosde cidadania e respeito às diferenças.

É importante observar que os brancos pertencentes às classes nãodetentoras do poder também recebem benefícios com a exclusão do negrona demanda pelo mercado de trabalho, bem como benefícios simbólicosde prestígio e oportunidades na distribuição de bens econômicos e por issonegam que aqui existe o racismo, ao tempo em que expandem as práticasdiscriminatórias na sociedade.

O desejo de contrapor ao Brasil real pluriétnico e pluricultural um Brasilideal hegemonicamente branco pode ser observado nas leis de imigraçãobrasileira, que impediam legalmente o ingresso de negros e asiáticos nopaís. O Decreto de 8 de junho de 1890 dizia que

É inteiramente livre a entrada nos portos da República dos indivíduos válidose aptos para o trabalho [...] excetuados os indígenas da Ásia ou da África, quesomente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos(NASCIMENTO, 1978, p. 71).

O Decreto-lei nº 7.967, de Getúlio Vargas, de 18 de setembro de 1945,regulava a entrada de imigrantes “de acordo com a necessidade de preservare desenvolver na composição étnica da população as características maisconvenientes da sua ascendência européia” (NASCIMENTO, 1978, p. 71).

A ideologia do branqueamento além de causar a inferiorização e a auto-rejeição, a não aceitação do outro assemelhado étnico e a busca dobranqueamento, internaliza nas pessoas de pele clara uma imagem negativado negro, que as leva a dele se afastarem, ao tempo em que vêem, namaioria das vezes, com indiferença e insensibilidade a sua situação depenúria e o seu extermínio físico e cultural, atribuindo a ele próprio ascausas dessa situação.

A BRANQUITUDE E OS PACTOS NARCÍSICOS NO BRASIL

Iray Carone, professora e pesquisadora do Instituto de Psicologia daUniversidade de São Paulo (USP) iniciou em 1992 um estudo sobre os efeitospsicológicos do legado do branqueamento sobre o processo de construçãoda identidade negra. Essa pesquisa concluída em 1996 intitulou-se A força

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psicológica do legado social do branqueamento – um estudo sobre anegritude em São Paulo (BENTO, 2002).

Outros estudos realizados por Iray Carone (2002), Edith Piza (2002),Maria Aparecida Silva Bento (2002) e Lúcio Otávio Alves Oliveira (2007),entre outros, vêm instituindo na área da Psicologia Social a análise dopapel desempenhado pelos brancos na ideologia da branquitude, seus pactos,seus medos, seus silêncios e principalmente, os privilégios conquistadoscom o recalque e exclusão produzidos na população negra por essaideologia.

Os estudos sobre branquitude marcam uma nova direção nos estudosétnico-raciais, uma vez que objetivam “abordar as dimensões do quepodemos nomear como branquitude, ou seja, traços da identidade racialdo branco brasileiro a partir das idéias sobre branqueamento” (BENTO,2002, p. 25).

O branco pouco aparece no processo de branqueamento. Aparece apenascomo o representante da humanidade e modelo universal a ser imitado. Obranqueamento é considerado como “racismo do negro”. “É o próprionegro que faz o racismo” diz o senso comum, que por ser transclassista fazaparecer essa expressão na periferia e na academia. A procura deidentificação com o branco, a negação dos seus caracteres feno típicos, astentativas de clarear a pele e ter cabelos lisos as custa da química, do ferroquente, das chapinhas modernas, do alisamento “definitivo”, a adoção dasua cultura e do seu comportamento, a rejeição à sua cultura e aos seusassemelhados étnico/raciais não são identificadas como produto dabranquitude construída pela elite branca brasileira.

Considerando (ou quiçá inventando) seu grupo como padrão de referência detoda uma espécie, a elite fez uma apropriação simbólica crucial que vemfortalecendo a auto-estima e o autoconceito do grupo branco em detrimentodos demais, e essa apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica,política e social (BENTO, 2002, p. 25).

Segundo Bento há um silêncio sobre o lugar que o branco ocupa nasrelações sociais brasileiras. O seu papel nas desigualdades sociais não érefletido, nem problematizado. O foco de discussão é o negro, o problemaé exclusivamente dele.

Bento identifica “um pacto, um acordo tácito entre os brancos de nãose reconhecerem como parte absolutamente essencial na permanência das

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desigualdades raciais no Brasil” (2002, p. 26). Os mesmos atribuem àescravidão a situação atual do povo negro no Brasil.

Assumir a sua ação nas desigualdades impostas pela discriminação racialnão é culpabilizar o seguimento branco pelo passado e presente, masdesenvolver o senso de responsabilidade que o mesmo tem para com asituação do grupo negro, para que participe na promoção de açõesresponsáveis e políticas de ação afirmativa, para que os direitos eoportunidades prevaleçam independentes das diferenças étnico/raciais, entreoutras. Diferenças essas que não devem instituir-se de formas hierárquicase submetidas a recalques na sociedade.

Algumas considerações sobre as etapas concluídas da investigaçãoA pesquisa corrobora o pressuposto inicial de que o livro didático de

Língua Portuguesa de séries iniciais descreve e representa o elemento brancode uma forma hegemônica, idealizada positivamente, contribuindo, emgrande parte, para a construção de uma auto estima e identidade étnicoracial de representante da humanidade e da cidadania.

Os personagens brancos foram ilustrados e descritos como maioria, comconstelação familiar, exercendo os papéis e funções de prestígio na sociedade,com papéis e funções da realeza, como seres divinizados e sem estereótipos.Nos textos receberam nomes próprios, foram adjetivados positivamente,praticaram ações positivas e receberam elogios.

Foram ilustrados apenas uma vez exercendo papel não reconhecidosocialmente (ladrão) e duas vezes exercendo função sem prestígio social(trabalhadores braçal).

As categorias de análise pressupõem um maior aprofundamento teóricoque permita uma interpretação concreta em sua totalidade. A segundaetapa da pesquisa em processo, constará da análise das categorias à luz dateoria, no sentido de corroborar o papel desempenhado pelas representaçõesdo branco nos textos e ilustrações do livro de Língua Portuguesa das sériesiniciais, para a construção de um sentimento de superioridade e dabranquitude da população branca, bem como apresentando proposta dereflexão para a desconstrução da hierarquia das diferenças étnico-raciais.

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REFERÊNCIAS

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Movimentos sociais rurais,quarenta anos depoisAntônio Dias Nascimento

A abordagem desse tema nos dias atuais, ou seja, quarentaanos depois, exige o esboço de um quadro conjuntural dosanos que antecederam a 1964, como recurso necessário paratornar possível o desvelamento das principais motivações quederam causa aos movimentos sociais do campo naqueleperíodo. Esse procedimento, como indicado por Goldman(1988), além de ser uma prática necessária nas CiênciasHumanas, uma vez que os problemas sociais devem sercompreendidos dentro do contexto em que se desenvolvem,têm também o sentido de contribuir para facilitar uma melhorcompreensão, sobretudo, por parte do público jovem.

Serão privilegiadas aqui, brevemente, nesse quadro conjuntural, trêsordens de elementos. A primeira delas está ligada às mudanças econômicas,políticas e sociais, ocorridas no Brasil, a partir de meados da década de1950, a era do desenvolvimentismo, com ênfase nos seus reflexos sobre arealidade nordestina. A segunda refere-se a uma certa caracterização dopensamento social e político dominante e a concepção que se tinha daquestão do campo na época. A terceira diz respeito ao surgimento dos doisprincipais movimentos sociais camponeses, as Ligas Camponesas e oMovimento Sindical de Trabalhadores Rurais, com ênfase nas suas práticaseducacionais.

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O DESENVOLVIMENTISMO NO NORDESTE

O período pós Segunda Guerra mundial, no Brasil, foi marcado pelatomada de decisões do Estado no sentido de assegurar as bases necessáriasao processo de industrialização do País. Exemplos dessas medidas foram aconstrução da Hidrelétrica de Paulo Afonso para a produção de energiaelétrica, a implantação de Volta Redonda para a produção de aço, aprospecção, descoberta e instituição do monopólio estatal do petróleo e aconseqüente criação da Petrobras. Outras medidas foram ainda tomadaspor Getúlio Vargas na tentativa de colocar o Brasil na rota de um processode crescimento econômico marcado por um certo nacionalismo.

O alinhamento continental do País com os Estados Unidos, no pós-Guerra, foi uma estratégia delineada de fora para dentro e que aqui forjouseus adeptos. Mas a sua aceitação não foi consensual dentro da sociedadebrasileira, sobretudo entre os setores de esquerda que arregimentavam ascamadas populares e certas camadas do empresariado industrial de basenacional. Talvez os prejuízos que foram impostos ao Brasil pelos vencedores,sobretudo Estados Unidos e Inglaterra, tenham acentuado esse sentimentonacionalista, segundo o qual o País teria de encontrar seu próprio caminhobuscando a autodeterminação.

Nesse período, prospera fortemente o populismo implantado e reforçadopor Vargas, ao longo dos mais de vinte anos em que marcou a cena políticabrasileira, seja como regente do poder de 1930 a 1945 e de 1950 a 1954,ou como força latente, no período Constituinte de 1946 a 1950. Paraentender-se melhor o populismo implantado por Vargas, é importantelembrarmos a memorável expressão de Antônio Carlos, governador deMinas Gerais naquele período, diante das pressões exercidas pelas classestrabalhadoras durante a República Velha, por melhores condições de trabalhoe de vida: “Façamos a revolução, antes que o povo a faça”.

De fato, com a implantação paulatina de uma legislação de proteçãoao trabalho, inclusive permitindo-lhe a organização sindical, e com umaforte repressão ao movimento sindicalista autônomo – sem a tutela doEstado – ele conseguiu estabelecer o controle do Estado sobre o sindicalismobrasileiro cujas marcas são ainda hoje fortemente perceptíveis. Alguns doscríticos de Getúlio, costumam caracterizá-lo, a partir da análise das suasmedidas políticas adotadas, como tendo sido ele “Pai dos pobres e Mãe da

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burguesia”. Esse populismo, no entanto, entra em colapso em 1964 (IANNI,1975).

A ênfase dos historiadores do período anterior ao desenvolvimentismorecai, comumente, sobre o populismo, caracterizado pela acentuação dopapel do Estado como promotor do desenvolvimento capitalista de cunhonacionalista e de uma estrutura política calcada no trabalhismo,caracterizado pela atuação de uma frente política, liderada pelos PartidosTrabalhista Brasileiro, o Democrata Cristão e o Socialista. Esses partidos,por sua vez, abrigavam também representantes de agremiações partidáriasclandestinas desde o Governo Gaspar Dutra. Essas representações deesquerda, abrigadas nesses partidos legais, irão desempenhar, mais tarde,papel decisivo no apoio e no desenvolvimento dos movimentos sociaistanto urbanos, como rurais.

Embora algumas medidas, que marcaram essa nova fase da vida nacional,tenham sido tomadas no período Vargas, é ao Governo de JuscelinoKubitischek que a nossa historiografia associa a adesão do Brasil aodesenvolvimentismo. De certo modo, as grandes obras realizadas no governoKubitischek, como a construção de Brasília em cinco anos, transferindo aCapital da República para o Planalto Central, e a abertura da rodovia Belém-Brasília que abriu o caminho para integração territorial da Região Amazônicaao Brasil, assim como a implantação da indústria automobilística no País,acabam por ofuscar as bases para o desenvolvimento lançadas no períodoanterior, o varguismo.

Dentre as principais conseqüências ocorridas no Nordeste e que vieramaguçar as contradições entre donos de terra – especialmente senhores deengenho – e o campesinato descendente de escravos, brancos empobrecidose indígenas aculturados, destaca-se em primeiro lugar a demanda peloaumento da produção de açúcar em decorrência do aumento da renda dossetores operários e outros setores urbanos. Diante dessa demanda, algunssenhores de engenho buscaram reaver as suas terras, até então cedidas, emarrendamento e outras formas de contratos agrários tradicionais, aos seusantigos trabalhadores rurais.

A segunda grande repercussão, desse novo surto econômico, foi aaceleração das migrações de trabalhadores nordestinos em direção ao CentroSul e ao Centro Oeste do País. No caso do Centro Sul, buscavam trabalhona construção civil, acentuadamente na implantação das novas indústrias,

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e nas lavouras açucareira e algodoeira. No Centro Oeste, por sua vez, eramtambém fortemente demandados, tanto para a construção de Brasília, comopara a abertura das grandes rodovias que ligavam a Nova Capital ao restantedo País, sobretudo, a Belém-Brasília.

Um terceiro fato marcante desse período foi a criação do Grupo deTrabalho de Desenvolvimento do Nordeste (GTDN). A liderança dessegrupo foi assumida por Celso Furtado. Ao final de alguns anos, com basenos estudos e reflexões realizados sobre o atraso nordestino em relação aoCentro Sul, foram levantadas estratégias com vistas a superar a estagnaçãoda região, sobretudo, no sentido de promover o estabelecimento decondições de vida digna às populações rurais historicamente vitimadaspelas secas. O esforço do GTDN resultou na criação da Superintendênciado Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, – uma agênciagovernamental destinada a estabelecer políticas de desenvolvimentoregional.

A criação da Sudene representou um momento histórico de amplasmobilizações sociais, uma vez que, tanto os setores de centro, como os deesquerda a apoiaram. Inclusive a aprovação do Primeiro Plano Diretor foiconseguida através de grandes mobilizações populares no centro de Recife.Todo esse contexto vinha bem ao encontro das expectativas dos técnicosque a conceberam, um vez que eram eles partidários da idéia de que odesenvolvimento é, antes de tudo, social. Daí que, ao lado do estímulo àindustrialização, através de incentivos fiscais, as suas primeiras ações forammarcadas também pelo apoio aos diferentes processos de educação populare à criação de oportunidades para a formação de quadros técnicos voltadospara o desenvolvimento (FURTADO, 1964).

Evidentemente que essa consciência, expressa em maio ao aparato doEstado, refletia também a mobilização que fervilhava por toda a AméricaLatina. Também no âmbito da sociedade, vários foram os setores que semanifestavam favoráveis à industrialização do Nordeste e à realização deuma reforma agrária que transferisse não apenas terra aos camponeses,mas também poder, ou seja, condições em pé de igualdade com os demaissetores sociais, de participar na definição dos destinos nacionais. Dentre ossetores que mais se destacaram estavam a ala progressista da Igreja Católica,parcelas de outras Igrejas Cristãs e organizações de esquerda ligadas a diversasorientações políticas.

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Assim, o período desenvolvimentista se deu, portanto, no embate comfortes mobilizações das classes trabalhadoras, comumente lideradas pelaestrutura sindical de base populista e de esquerda, assim como de setoresmais politizados das Igrejas Cristãs. A própria Conferência Nacional dosBispos do Brasil (CNBB), recém criada, embora inspirada em motivaçõesdiferentes das motivações da esquerda, manifestava-se vigorosamente emprol de reformas sociais como forma de se superar as condições deestagnação e de miséria que o País vivia. Em particular, no caso do Nordeste,a cúpula da Igreja fez cerrada pressão junto ao Governo Juscelino paraassegurar a criação da Sudene.

PENSAMENTO SOCIAL E POLÍTICO, DESENVOLVIMENTISMO E A QUESTÃO

CAMPONESA

O pensamento social e político do período desenvolvimentista refletiaintensamente as questões que norteavam o mundo no pós Guerra. Dentreas várias correntes de pensamento destacam-se, em primeiro lugar, opensamento conservador que, abertamente, alinhava-se ao pactointercontinental comandado pelos Estados Unidos, contra o avanço docomunismo. Esse pensamento afirma-se em defesa da propriedade privada,contra as reformas sociais e pela defesa intransigente das instituiçõesestabelecidas pela democracia ocidental. Esse pensamento não era expressoapenas no mundo acadêmico, mas em todas as esferas da sociedade e doEstado.

Entre as ações mais importantes embasadas no pensamento conservador,no sentido de assegurar a resistência a uma possível inclinação do Brasilpara o comunismo, foram celebrados pactos militares de âmbito continental,feitos aliciamentos de parlamentares, de membros do governo, realizadasações junto a universitários, setores religiosos, além da prestação de serviçossociais a setores populares por todo o País e, sobretudo no Nordeste, atravésdos chamados Voluntários da Paz. Mesmo no campo cultural foramdesenvolvidas ações importantes nesse sentido como a produção de filmes,tanto em defesa da democracia americana, como ataques às experiênciasexitosas do mundo socialista de modo especial a revolução cubana. Viagensde intercâmbio cultural eram promovidas para propiciar a lideranças

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estudantis, operárias e políticas verdadeiras imersões na maravilhaamericana.

Como base de apoio financeiro sistemático a agências de difusão dessavertente conservadora de pensamento, foi criado no Brasil, ligado aoDepartamento de Estado Americano, o Instituto Brasileiro de AçãoDemocrática (IBAD). Além de uma revista intitulada Ação Democrática,eram patrocinadas emissões de rádio, programas de TV e peças de jornalismocinematográfico em geral de caráter alarmista contra o perigo comunista.Os adeptos dessa corrente não viam com bons olhos as ações dos quadrostécnicos e políticos que se mostravam favoráveis ao desenvolvimentismo,os que apoiavam os movimentos sociais e as mobilizações de massa pelasreformas de base realizadas em diversos recantos do País.

Em suma, esse pensamento conservador é aqui destacado pelaimportância que ele assumiu nos episódios que levaram ao colapso, tantoo populismo, como os embrionários projetos de reformas sociais ou mesmode revolução. Passados quarenta anos, tem-se mais frieza para se olhar opassado histórico e detectar como esse pensamento conservador ganhourobustez e tornou-se capaz de engendrar um projeto de silenciamento ànascente democracia brasileira e ampliou os laços de dominação econômicae cultural do sistema mundial sobre a formação social brasileira.

Uma segunda expressão que compôs o arcabouço do pensamento sociale político à época do desenvolvimentismo foi ligada à democracia cristã eà social democracia. Em síntese, a democracia cristã inspirava-se na DoutrinaSocial da Igreja Católica, expressa através das Encíclicas Papais RerumNovarum, Quadragessimo Anno, Mater et Magistra, Pacem in Terris ePopulorum Progressio. Essa corrente reconhecia a exploração dostrabalhadores pelo capital, mas propunha o diálogo entre empregadores eempregados, senhores de terra e camponeses como forma de superação dosconflitos. Pressionavam os aparatos do Estado para que intermediassemos conflitos sociais, através das negociações e não da repressão.

A democracia cristã, no contexto anterior a 1964, chegou a ter influentesrepresentantes na esfera federal. Suas bases, embora estivessem pulverizadaspor todo o País, seus maiores contingentes encontravam-se no Sul e Centro-Sul do País. A social democracia, por sua vez, inspirava-se na socialdemocracia alemã que se baseava no fortalecimento da democracia pelaliberdade expressão dos diversos setores da sociedade. Também como a

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democracia cristã, defendia inclusive a participação dos trabalhadores noslucros das empresas. Essa corrente se expressava através de empresáriosrepresentantes de setores da burguesia de caráter nacionalista e pelotrabalhismo fortemente embasado no sindicalismo.

De certo modo, essa aliança entre social democracia e democracia cristã,conseguiu firmar uma sólida liderança política e obteve importantesconquistas para a organização dos trabalhadores destacando-se, dentre asprincipais, o pagamento do décimo terceiro salário a todos os trabalhadores,a sindicalização dos trabalhadores rurais e a extensão da legislaçãotrabalhista ao campo. Apesar de suas posições políticas moderadas, essafrente também foi alvo da conspiração dos setores conservadores.Frequentemente, eram acusados pelos conservadores de fazerem frente únicae de serem coniventes com os comunistas.

Uma terceira corrente de pensamento definia-se em torno de ideaisrevolucionários de diferentes matizes. Seus adeptos mais antigos surgiram,embrionariamente, ainda nos anos de 1920, quando se orientavam poruma certa ortodoxia doutrinária. Viam na formação social brasileira umcaráter dominantemente feudal, pois não se via por aqui uma sociedadecivil independente dos interesses agrários e, muito menos, um Estadonacional fundado em bases iluministas. Enxergava-se, de certo modo, osideais de liberdade, igualdade e fraternidade que, de certo modo,influenciaram a formação da República no Brasil, como retórica dossenhores feudais no poder.

Reforçavam ainda esse pensamento o fato de vigorarem, ainda nocampo, os contratos agrários como meação e outras formas de parceriacomo heranças medievais e como expressões evidentes do feudalismo. Dessemodo, os camponeses eram vistos como forças reformistas, ou seja, sem onecessário vigor revolucionário característico da vanguarda operária. Assim,numa perspectiva estratégica, os camponeses eram vistos mais como aliadosimportantes. Acreditavam que as reivindicações camponesas poderiam seratendidas pelo Estado burguês através da reforma agrária e da introduçãoda legislação trabalhista no meio rural.

Outras vertentes mais recentes, inspiradas em outros processosrevolucionários, posteriores à Revolução de 1917, como a RevoluçõesChinesa e Cubana, aliavam-se ao processo latino americano, ou seja, nãosendo a América Latina uma região industrializada, não se dispunha,

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consequentemente, de uma vanguarda operária suficientemente forte paraassumir a direção revolucionária. Neste caso, eram fortemente revividos osideais de Simon Bolívar, sobretudo diante do triunfo da Revolução Cubanaem janeiro de 1959, apoiada no campesinato.

Esses setores de esquerda acreditavam no potencial revolucionário docampesinato. O mais expressivo movimento camponês ligado a essaesquerda foi a Liga Camponesa que, nascida da resistência de meeiros emdeixar suas terras, lutavam por uma “Reforma Agrária na Lei ou na marra”.(AZEVEDO, 1982). Identificavam uma forte aliança entre o imperialismonorte americano e o latifúndio no Brasil contra a qual se organizava umaaliança operário-estudantil-camponesa. Ainda em 1961, realizaram umCongresso em Belo Horizonte, onde destacavam como uma dasreivindicações principais ao Governo Federal a investidura sindical dasLigas Camponesas. Nesse aspecto eles se opunham não apenas à presençaamericana no Brasil e na América Latina, como também às alas progressistasda Igreja, à Social Democracia, e a Democracia Cristã aos quaisdenominavam de reformistas.

PRÁTICAS EDUCACIONAIS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

CAMPONESES ATÉ 1964

Assim como foram vários os movimentos sociais camponeses, tambémforam diferentes as suas práticas educacionais. Todas elas tinham em comumo reconhecimento do estado de opressão em que viviam tanto oscamponeses, ou seja, aqueles que detinham a posse precária da terra oumesmo que possuíam pouca terra, assim como os assalariados. Nem semprefoi uma questão pacífica para cada um dos movimentos dar conta desustentar as duas frentes de luta: a da permanência na terra, ou a luta pelaterra e pelo salário.

Aqui serão tecidas considerações sobre os processos educacionaisassumidos pelos dois movimentos que ganharam maior notoriedade – aLiga Camponesa e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais. A literaturaespecializada não se refere a um processo educacional, propriamente dito,característico da Liga Camponesa. Melhor seria, talvez, reportarmo-nos auma prática política calcada na mobilização de massas. Identificava-seclaramente os dois inimigos fundamentais da sociedade brasileira que eram

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o latifúndio e o imperialismo e contra eles fazia-se um intensivo trabalhode denúncia na expectativa de estimular a justa ira contra a opressão.

A primeira grande palavra de ordem era a necessidade de organização emdefesa da luta pela terra desde o seu começo nos meados dos anos de 1950,até a sua extinção pelo movimento militar. Contudo, as estratégias dessaluta foram sendo alteradas, na medida em que prosperavam as disputas,dentro Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, majoritariamente, nãoaceitava a principalidade do campesinato no processo revolucionário. Paraa maioria dos membros do PCB, quem detinha a função de vanguarda era ooperariado.

Com o triunfo da Revolução Cubana, baseada na luta do campo paraa cidade, como visto anteriormente, contrariando a ortodoxia do PCB,segundo o qual a Revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevaraestaria queimando etapas. A partir de então, sobretudo depois da invasãoda Bahia do Porcos pelos Estados Unidos e da Proclamação da II Declaraçãode Havana, reforça-se, dentro da Liga Camponesa, a idéia de organizar-semilitarmente para intensificar a luta em prol do socialismo o que, segundoalguns autores, a teria levado ao isolamento de importantes setores sociaisde esquerda, seus potenciais aliados.

Assim, diferentemente de reuniões em ambientes fechados, as práticaseducacionais da Liga Camponesa se davam no enfrentamento aberto como latifúndio, nas mobilizações de grandes massas nas capitais do Nordestee mesmo em outros centros urbanos menos importantes. Embora a grandemassa camponesa fosse, em sua maioria iletrada, era feita a distribuiçãomassiva do jornal A Liga, cuja temática dominante era a defesa da ReformaAgrária Radical, ou seja, a extinção pura e simples do latifúndio semindenizações como preconizava o PCB de então.

Eram também largamente utilizados os cordéis, abordando os váriosaspectos da exploração sofrida pelos camponeses e estimulando-os aaderirem à luta contra o latifúndio, através da Reforma Agrária Radical. Aformulação de palavras de ordem era um recurso didático tambémfortemente utilizado. Dentre essas as mais recorrentes podem ser lembradas:“Reforma Agrária na lei, ou na marra!”, ou ainda, “Camponês sem terra,Operação sem Pão, é barriga vazia, tambor de revolução, viva a ReformaAgrária Radical, com Francisco Julião”.

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No que pese todo o altruísmo que se tinha em ajudar os camponeses ase libertarem da opressão em que viviam sob o peso do latifúndio, o que sebuscava afirmar nos corações e mentes era o sentido de classe explorada ecuja tarefa histórica a desempenhar era a derrubada do latifúndio e doimperialismo. Não havia, portanto um processo educacional no sentidode contemplar os indivíduos na sua inteireza. A ênfase dada, na verdade,era à dimensão social e, sob este aspecto, não caracterizava, na ação daLiga Camponesa uma ação educacional propriamente dita, dado ao seucaráter homogeneizador (MEDEIROS, 1989; MARTINS, 1981).

Todavia, não se pode falar de uma orientação única da Liga Camponesa,pois, além de ter divergido da orientação central do PCB, ela não conseguiumanter a unidade dentro do próprio movimento. Assim, praticamente, emcada Estado, havia uma conduta política própria. Nos Estados doPernambuco e Paraíba, porém, ela conservava características similares. OPartido Comunista do Brasil, por sua vez, passou a fundar sindicatos detrabalhadores rurais por acreditar que, considerando o caráter da revoluçãobrasileira, os camponeses deveriam ser orientados nos sentido de reivindicardireitos trabalhistas, liberdade de organização sindical e uma reformaagrária dentro da Lei.

Nesta linha da sindicalização rural também atuavam, em sua maioria,os setores progressistas da Igreja Católica. Entre outras, talvez a diferençabásica, entre a atuação do PCB e Igreja, residisse no fato que o partidofundava os sindicatos como mecanismo de angariar adeptos, enquantoque, em relação à Igreja, o que se percebia era a preservação da ordem,diante do entendimento de que a ordem liberal também comportava aextensão dos direitos trabalhistas sem que necessariamente se tivesse quepassar por uma revolução socialista.

Equivocadamente, alguns autores como Azevedo (1982), associam otrabalho de sindicalização da Igreja Católica, com a posição extremamenteconservadora dos Arcebispos de Diamantina, em Minas Gerais, DomGeraldo de Proença Sigaud, e Dom Antônio Castro Mayer para os quais,cometeria um sacrilégio, pecado grave, aquele que recebesse um pedaço deterra que tivesse sido expropriado pelo Estado. Sob as bênçãos desses Bisposfoi criada no Brasil a Sociedade Tradição, Família e Propriedade, lideradapor Plínio Correia de Oliveira.

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As Dioceses mais importantes do Nordeste, à época, justamente emdireção oposta aos Bispos Sigaud e Mayer, destacando-se em especial as deRecife e Natal, criaram organismos ligados à estrutura diocesana paracuidarem da formação de lideranças trabalhadoras rurais, tanto a cerca deseus direitos como cidadãos, como direitos trabalhistas, além da organizaçãosindical. Evidentemente que muitos dessas lideranças, as primeiras,sobretudo, foram recrutadas dentre os membros das organizações religiosasde leigos, mas com a ampliação dos quadros formados, como conseqüênciado efeito multiplicador, muitos outros trabalhadores também foram tendoacesso ao que se denominou de educação sindical.

Os trabalhadores eram convidados para fazerem um curso em regimede internato, geralmente por um fim de semana, para que não chamassemtanto a atenção dos senhores de engenho seus patrões. Esses cursistasrecebiam passagens de ida e de volta, alimentação três vezes ao dia duranteo curso, como não costumavam ter em seus cotidianos, dormida e, porfim, eram ressarcidos, à custa dos promotores dos cursos, pelos dias quepassassem em estudo. Nos primeiros cursos, costumava-se dar preferênciaa candidatos que já soubessem ler porque eles também podiam levarmaterial didático para ler e explicar aos seus companheiros.

Todos os cursos começavam por um levantamento da situação deexploração em que viviam os participantes, tais como a jornada detrabalho, comumente bem superior às oito horas diárias, ausência de saláriosdefinidos, e a inexistência de uma organização representativa de seusinteresses que pudesse defendê-los. Em seguida, além de ouvirem explicaçõessobre os direitos, participavam de diferentes dinâmicas organizadas de talmodo a despertar reflexões nos participantes sobre temas fundamentaisno processo de organização que se queria estimular, tais como a importânciade os trabalhadores estarem unidos em torno de um sentido comum, aforça da união de todos no sindicato contra o latifúndio.

A programação dessas jornadas de formação era também integrada pormomentos de recreação e integração, através dos quais, cada um eraestimulado a aprender os nomes dos demais companheiros, revelar seusdotes artísticos, como a criação de repentes, declamação de poesias, contarhistórias, cantar alguma canção, dançar, tocar o violão, o acordeom, oumesmo a percussão e outros instrumentos usuais entre os camponeses. Alémdisso, entre as dinâmicas realizadas havia um momento especial para serem

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aprendidos cantos de conteúdo exortativo à união dos camponeses contraa espoliação dos patrões, em prol da reforma agrária e outros temas que,em momentos posteriores, de mobilização em marchas pelas ruas dascidades, eram cantados por todos em uníssono (NASCIMENTO, 1993;1985).

Esse trabalho de educação sindical foi também muito reforçado peloMovimento de Educação de Base (MEB), sistema de educação à distância,realizado através de transmissões radiofônicas. Esse movimento era tambémligado à Igreja Católica e contava com um certo suporte do governopopulista. Esse processo educacional, embora começasse pela formação delideranças trabalhadoras rurais, na continuidade, chegava-se à organizaçãodos Sindicatos de Trabalhadores Rurais em diferentes municípios. Nessemomento, havia uma verdadeira corrida contra a ação do PCB, para verquem conseguia chegar primeiro junto aos trabalhadores em cadamunicípio.

Era fato comum os trabalhadores não perceberem a diferença entre ossindicatos orientados pela Igreja e aqueles orientados pelo PCB. Ambospautavam-se pela conquista da legislação trabalhista para o campo, pelofortalecimento da classe trabalhadora e pela reforma agrária. Tanto ascúpulas da Igreja como do PCB, embora se digladiassem nos debatespúblicos nas universidades e em centros de estudos, não conseguiam fazerchegar essas divergências às bases. Isso se evidenciava, de modo especial,nos momentos de encaminhamento dos movimentos reivindicatórios,quando todos marchavam unidos. Aos poucos, no entanto, essasdivergências foram-se tornando conscientes pelas lideranças de base, tendochegado, em muitos casos, também aos trabalhadores.

Enquanto o trabalho educacional da Igreja era realizado em gruposmenores, o trabalho de educação do PCB, para os trabalhadores rurais,guardava uma certa semelhança com o trabalho das Ligas. Apelava-se muitopara as concentrações onde eram feitos os discursos e as proclamaçõessobre a legislação, sobre o sindicato e sobre a perspectiva revolucionáriaonde todos seriam reconhecidos como cidadãos. Desse modo, pode-seperceber que o trabalho educacional da Igreja dirigia-se muito mais aosindivíduos em particular na expectativa de que estes, uma vezconscientizados e politizados, comunicassem também essa nova consciênciaaos seus companheiros alfabetizados ou não.

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O trabalho educacional da Igreja para os trabalhadores rurais não serestringia apenas aos camponeses. Havia também uma preocupação emformar quadros técnicos que pudessem assessorar as organizações sindicaisem suas demandas cotidianas e no exercício da representação dostrabalhadores fossem eles associados, ou não, aos sindicatos. Além deadvogados que se dispunham a atuar junto à militância sindical, tambémestudantes universitários de diferentes áreas e até mesmo secundaristas sedispunham a apoiar esses sindicatos em suas diferentes tarefas.

Esses voluntários, comumente, eram ligados à Ação Católica, movimentode leigos por um mundo melhor, nascido na França, que se inspirava naDoutrina Social da Igreja. No caso do Brasil, teve significativa atuação nomeio da juventude onde conseguiu formar importantes lideranças políticaspara as lutas futuras. Um dos grupos de jovens organizados dentro daAção Católica foi a Juventude Agrária Católica (JAC) que também muitocontribuiu para a formação de lideranças no meio rural. Assim, embora setenha tornado habitual entre os militantes remanescentes e os memorialistasfalar-se mais do trabalho desenvolvido pelos organismos diocesanos e,posteriormente, pelo próprio movimento sindical de trabalhadores rurais,a ação educativa foi assumida de forma difusa e cooperativa por váriossetores progressistas da Igreja.

Ao perceber como proliferavam os sindicatos de trabalhadores ruraispor todos os lados, tornou-se fato digno de registro o apelo realizado porFrancisco Julião à união de todos os camponeses. Numa tentativa derecuperar a união dos trabalhadores do campo em torno da LigaCamponesa, Julião lançou uma carta aos camponeses, intitulada “A bênção,mãe Liga”, onde ele argumentava que o sindicato era filho das Liga e,consequentemente, o filho não podia brigar com a mãe, nem a mãe com ofilho. Em sendo assim, portanto, todos os membros da Liga deveriamassociar-se ao Sindicato e todos os membros do Sindicato deveriam associar-se à Liga.

Assim, os meses que antecederam ao golpe militar de março de 1964em Pernambuco, pelo menos, foram marcados pela realização deassembléias camponesas onde as diretorias sindicais de orientação católicaforam destituídas e, em seus lugares, foram empossadas diretorias compostaspor militantes da Liga Camponesa. Desse modo, praticamente todos ossindicatos da Zona da Mata de Pernambuco foram transformados em

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representantes oficiais da Liga e foi, justamente nessa condição, que o golpemilitar os alcançou. Todos os sindicatos foram fechados, muitas liderançasforam presas, outras evadiram-se para destinos ignorados. Passados osprimeiros momentos de instalação da nova ordem, no entanto, a IgrejaCatólica assumiu a responsabilidade política juntos aos militares pela criaçãodos sindicatos e, aos poucos, foi-se restaurando a normalidade administrativados sindicatos através de Juntas Governativas, nomeadas pelo Ministério doTrabalho, por indicação dos organismos diocesanos. Nos anos seguintes essaposição foi a causadora do estremecimento entre o Movimento Sindical eesses setores da Igreja Católica e desta com outros setores progressistas.

Em conclusão, pode-se dizer da efetividade desse trabalho educacional,realizado junto aos camponeses e trabalhadores rurais realizado por diferentescorrentes ideológicas. Embora não se tenha eliminado, por inteiro, o sistemade exploração estabelecido no campo desde os primórdios da colonizaçãobrasileira, a história recente tem registrado como os camponeses, apesar detodos os reveses e baixas sofridos, têm-se insurgido contra a opressão. Apesarde toda a repressão que se abateu sobre o movimento camponês, enquantocategoria social, ao longo desses quarenta anos, ele ressurge em outras formasde expressão.

Definitivamente, os movimentos do campo se inscreveram na cenapolítica nacional, tanto como atores sociais importantes, marcando comsuas presenças as diferentes conjunturas, assim como sendo portadores deexperiências de mobilização, organização e de conquistas sociais capazesde servirem de motivação a outros setores sociais que ainda sobrevivemsob novas formas de opressão seja no campo, ou nas cidades, engendradaspela ordem moderna.

REFERÊNCIAS

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FURTADO, C. Dialética do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo deCultura, 1964.

GOLDMAN, L. Ciências Humanas e Filosofia. O que é Sociologia? 11. ed.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

IANNI, O. O Colapso do Populismo no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1975.

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______. Origens Agrárias do Estado Brasileiro. São Paulo: Brasiliense,1984.

JULIÃO, F. Escucha Campesino. México: Extemporâneos, 1971.

MARTINS, J. S. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes,1981.

MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. História dos Movimentos Sociais noCampo. Rio de Janeiro: FASE, 1989.

NASCIMENTO, A. D. Peasant Social Movements and Rural Workers´ TradeUnions in Bahia (1972-1990). PhD Thesis. Liverpool: Liverpool University,1993.

______. Organização de Base: a reinvenção da participação popular.Salvador: FFCH – Universidade Federal da Bahia, 1985.

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O projeto pedagógico do MST:a experiência em escolas de Vitóriada ConquistaRosana Mara Chaves Rodrigues

As condições históricas que resultaram no surgimento doMovimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) levaram-noao estabelecimento de um amplo projeto de enfrentamento aser empreendido na ordem estrutural do País, na expectativade eliminar as condições de reprodução da miséria, dadominação e da exclusão dos trabalhadores rurais, através deum conjunto de ações concretas. Estas ações, por sua vez, estãomaterializadas em projetos de desenvolvimento local e demobilizações local, regional e nacional, no sentido de reunir onecessário apoio da sociedade civil e ampliar seu nível deconsciência quanto à necessidade e à urgência dastransformações propostas além de levar o aparato do Estadoa estabelecer canais de negociação que tornem possível aimplementação das ações a fim de que ocorram as mudançaspreconizadas.

Essas propostas são concebidas em plano nacional, com suamaterialização no local, nos assentamentos, o que estabelece e revelanecessariamente um caudaloso manancial de possibilidades de negociação,de tensões, resistências e mudanças, cuja análise pode oferecer elementosimportantes para a construção de um conhecimento voltado para oentendimento dos processos de modificações em diferentes áreas, seusalcances e seus limites e de como se montam as estratégias, tanto para a

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obtenção das mudanças pelos oprimidos, como para a resistência pelossetores dominantes.

Embora a análise desse amplo processo de enfrentamento entreresistência e mudança, que vem sendo levado a efeito pelo MST nas maisdiversas regiões do País, possa se apresentar sob variadas perspectivas, opresente estudo volta-se, especificamente, para avaliar a implementaçãoda proposta pedagógica do MST para as escolas dos assentamentos.

Esta pesquisa parte do princípio de que a produção do conhecimentoacontece na relação mútua de troca entre o pesquisador e o pesquisado, poisambos possuem saberes que se complementam. Dessa forma, o objeto depesquisa não está dado por inteiro, a priori, mas é construído nessa relação.

Por se tratar de um Movimento, a pesquisa de campo foi permeada porduas tensões: de um lado, a própria natureza do objeto que se constitui emum objeto em movimento, e do outro, a dificuldade de penetração numaorganização que, apesar de estar aberta a receber pesquisadores, orecebimento é feito com certos critérios o que impõe certos limites aodesenvolvimento do estudo. Para enfrentar essas tensões, procurou-seatravés das observações registrar a forma como o objeto se apresentava acada visita, como também construir uma relação de confiança com o grupo.Esta relação foi fundamental para que a pesquisa se desenvolvesse comêxito. Considerando a complexidade do tema abordado e os limitesinerentes ao presente estudo, a metodologia foi sendo definida a partir docontato estabelecido com os sujeitos da pesquisa em cada visita realizada.

Portanto, para apreender os aspectos relevantes de resistência e mudançaque emergem do confronto entre uma proposta educativa que se pretendelibertadora e inclusiva, e a realidade local estruturada segundo os padrõessociais e culturais que tendem a reproduzir a condição de dependência e desubmissão e exclusão dos sujeitos, decidiu-se pelo Estudo de Caso. Justifica-se a escolha porque este método permite o estudo realizado em umarealidade dinâmica, e, através do contato direto com os sujeitos da pesquisa,é possível desvelar os encontros e desencontros que permeiam o dia-a-diada prática escolar e da comunidade que abriga a escola. Permite, também,chegar bem perto da escola e da comunidade para entender como operam,no seu dia-a-dia, a proposta de educação do MST, suas ações, relações,retrações e interações, apreendendo as forças que a impulsionam ou que asretêm, as resistências e as mudanças.

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De acordo com Ludke e André (1986), o estudo de caso, enquantoabordagem de pesquisa permite uma apreensão profunda e ao mesmo tempoampla e integrada de uma unidade social complexa, considerando suasmúltiplas dimensões e sua dinâmica natural, e para isso requer um intensotrabalho de campo, ou seja, contato direto e prolongado do pesquisadorcom a situação investigada.

A pesquisa foi realizada entre os anos de 1999 e 2002, tempo em que sevisitou a região por sete vezes, com permanência de, ao menos, uma semanaa cada visita, o que resultou no mínimo 280 horas de observação noslocais investigados. Nestas visitas, buscava-se estar sempre em contato comas escolas, professores, alunos e comunidade, seja em reuniões, cursos ourealizando os trabalhos escolares, o que possibilitou a realização deentrevistas, conversas informais, observação direta do cotidiano e coletade materiais produzidos pelos alunos e professores.

Como instrumentos de pesquisa, lançou-se mão de entrevistas semi-estruturadas conversas informais, observação com registro em diário decampo e coleta de materiais produzidos pelos alunos.

O referencial teórico esteve orientado no sentido de buscar compreendero MST e seu processo de produção do projeto pedagógico para escolas deassentamentos rurais. Ao analisar a proposta de educação do movimento,identificou-se que se encontra, entre seus princípios, categorias pensadaspor Gramsci (1981), a exemplo de escola formativa, intelectual orgânico ecultura, ou seja, a idéia de escola como espaço de transformação e de Freire(1987), sobretudo os que tratam de educação bancária e educaçãolibertadora. Ao lado dessas categorias, parte-se do pressuposto de que, nabase do MST e também da escola concebida pelo movimento, encontra-sea idéia de utopia, enquanto um horizonte que impulsiona a luta. Portanto,na base deste trabalho, a utopia será retomada pela necessidade de redefini-la na contemporaneidade.

O MST COMO UM “NOVO” MOVIMENTO SOCIAL

Inúmeras e rápidas transformações estão-se processando no seio dasociedade em decorrência da globalização tecnológica e informacional nasúltimas décadas. Para alguns teóricos, a globalização se apresenta “[...]como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam

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localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais sãomodelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa” (GIDDENS, 1991, p. 69).

Para outros, a globalização se apresenta como um movimento estruturaldo capitalismo – uma fase em que as principais tendências, já presentesdesde os primórdios, são levadas as suas últimas conseqüências, desenvolve-se no seu limite, sendo, portanto um novo momento histórico no interiordo sistema capitalista (DRUCK, 2000).

Ainda para Druck, (1996, p. 24), “[...] a globalização representa aslinhas mais gerais de radicalização do homem racional e produtivo produtorde mercadorias”. Nesta perspectiva, a globalização traz consigo inovaçõesno âmbito econômico e político. No econômico, a transnacionalização docapital e dos investimentos num mercado “sem fronteiras”. No político, aconstituição de uma articulação de centros de poder global, o Grupo dosSete (G7), Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericanode Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). Apresenta as seguintescaracterísticas: concentração, centralização e dispersão de capitais;transnacionalização; superdimensionamento da esfera financeira (a lógicafinanceira se sobrepondo à lógica produtiva); reforço do poder dos bancoscomo instituições financeiras; a reestruturação do Estado e a intervençãogovernamental; a redefinição das relações de poder entre os países centraise periféricos e, em especial, a rapidez do tempo social em que ocorrem astransformações: informatização, redes de comunicação mundial, definiçãoe intervenção simultâneas de um lado a outro do planeta. Enquanto, noséculo XIX, transformações que revolucionaram a sociedade eram frutode até 2 ou 3 séculos, no século XX, transformações mais profundas ocorremem décadas. Conforme analisa Hobsbawn, (1995, p. 13).

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculamnossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos maiscaracterísticos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens hojecrescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica como passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofícioé lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca nofim do segundo milênio.

Nesse contexto, vão surgindo os “novos” movimentos sociais, que sãochamados assim porque apresentam algumas diferenças fundamentais em

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relação aos movimentos tradicionais ou clássicos e, em especial, em relaçãoao movimento operário (SCHERER-WARREN, 1996). Ainda como refleteMaria da Glória Gohn (2002, p.12):

Os novos movimentos sociais (ecológico, ambientalista, pela paz, direitoshumanos, das mulheres, negros, índios e tantos outros) colocaram na agendada sociedade novos valores e transformaram o lugar que a sociedade lhesreservara tradicionalmente. Transformaram-se em sujeitos, saíram das margense bordas do social e migraram para o centro, tornando-se fonte de criatividadee de referência. Criaram e desenvolveram identidades culturais e políticas apartir da constituição de redes; inovaram ao construir novos valores esignificados novos aos já existentes, reformularam as formas de atuar e deinteragir na sociedade. Produziram o que se constitui um dos pilares da práxishumana: conhecimentos, novos conhecimentos. Por isso, os movimentos sociaistêm sido vistos como fontes de inovação, revitalização das energias do social.

Para a autora, a novidade é que a grande força impulsionadora dosprocessos sociais não advém somente da política, ou da reação/resistênciaaos mecanismos de privação socioeconômica, mas também da cultura, poisraízes culturais têm sido resgatadas, não para cultuar a memória de umpassado, mas para dar amálgama a práticas novas.

O MST surge nesse contexto trazendo para a ordem do dia um velhotema – a Reforma Agrária.

A posse da terra, embora seja o objetivo imediato desse grupo social,vem acompanhada de outras lutas como, por exemplo, pelos direitos sociaise pela conquista de uma sociedade justa, o socialismo. Para atingir os seusobjetivos, o MST toma a educação como um direito indispensável que sedesenvolve como um processo que inclui a educação formal – fundamental,médio e superior – e informal, realizada a partir da participação dos sujeitosnas mobilizações organizadas pelo MST através das marchas, ocupações emanifestações outras, incluindo, nesse processo, todas as gerações: crianças,jovens, adultos e os gêneros.

Assim, compreende-se que a trajetória do MST, desde o seu nascedouro,assume formas diferenciadas nos diversos espaços onde ele se materializa ea força impulsionadora desse movimento é a sua utopia, que renasce acada conquista dos trabalhadores Sem Terra.

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EDUCAÇÃO, UTOPIA E TRANSFORMAÇÃO

Pensar a utopia do MST nos remete a concepção defendida pelo filósofoalemão Ernst Bloch que retoma esse conceito, atribuindo-lhe um sentidosingular. A utopia em Bloch (1970) na sua obra O Princípio da Esperançaassume um caráter de possibilidade, conquista, perspectiva de transformaçãosocial. Forja, portanto, um conceito de “utopia concreta”.

Para entender a concepção bloquiana de utopia, é necessário tomaralguns pontos básicos da sua análise sobre as raízes antropológicas doprincípio da esperança.

O que orienta o seu pensamento é o princípio da esperança, o qual étomado não apenas como uma diretriz, mas como a causa da ação, umafonte da práxis. Bloch (1970) distingue uma primeira raiz da esperança,que é o fato comum de o homem ter consciência de que tem fome, assim acarência do homem é o que lhe garante a consciência de que tem fome e doque lhe falta.

Quando um homem tem fome, esta necessidade fisiológica imediata econstrangedora não é recebida com indiferença, mas projeta o homem parafora da sua indiferença, provocando o acordar da sua consciência. Este acordarnão só padece de necessidades, mas que tem consciência de ter necessidade(BLOCH, 1970 apud FURTER, 1974, p. 80).

A necessidade, portanto, é o que faz despertar, no homem, a consciência,da carência e da insatisfação, o que impulsiona o movimento de satisfaçãoda carência, e nesse movimento é feita à exploração do possível. Em síntese,a fome gera a consciência da carência que faz emergir a possibilidade deatuar para passar da carência a algo desejado, a satisfação.

A fome, embora seja uma sensação individual, leva a um projeto coletivoporque, segundo Bloch, “ [...] a comida visada poderia ser consumida porum outro e, no mundo da escassez em que vivemos, esta ameaça do outroexiste violentamente” (BLOCH, 1970 apud FURTER, 1974, p. 81). Aorefletir sobre essa reação, pode-se imaginar que o outro em vez de ameaçaro que quer, o alimento desejado, poderia dividi-lo: daí a idéia de umaorganização social, mais ainda poderiam unir-se para produzirem mais outrocarem os excessos.

Porém não existe só uma fome física, há também outras fomes: afetivas,sentimentais, eróticas, intelectuais. E “[...] o conjunto destas fomes pode

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ser caracterizado como o desejo, sendo a vontade humana de ir além quefaz crescer, desenvolver e aumentar as dimensões do homem” (BLOCH,1970 apud FURTER, 1974, p. 82) o que já indica o que estar por vir, ohomem como inacabado, como tendência para ser outro e para ser mais.

Além da fome e dos desejos, os sonhos acordados são fatos elementaresonde se enraíza a esperança. Nas palavras de Bloch:

O sonho acordado manifesta uma verdadeira fome psíquica pelo qual o homemimagina planos futuros e outras situações em que supere os problemas, asdificuldades e as obrigações de um hoje onipresente. Assim os sonhos acordadosnos dão uma primeira forma tosca, vaga, talvez ilusória, do que será, numa fasemais elaborada, a utopia. Nos sonhos, une-se pela primeira vez o que será decisivopara a constituição de uma consciência antecipadora: a consciência da fome, e opossível imaginário: os desejos e as imagens (1970 apud FURTER, 1974, p. 83).

São os sonhos acordados que nos impulsionam para o futuro, aocontrário dos sonhos noturnos, que se gastam no inconsciente. Nos sonhosacordados, a reflexão é imediatamente possível.

No entanto, a capacidade de sonhar, de aspirar e de esperar, ainda queseja inerente aos homens, pode sucumbir quando as condições econômicas,sociais e culturais lhes faltem em demasia, pois podem destruir a sensaçãode fome e conseqüentemente o impulso e o desejo. “[...] os sonhos acordadosprovocados pela nossa vontade de mudança, as aspirações transformam-seem expectativas, sendo colocadas nas perspectivas das nossas possibilidadesconcretas” (BLOCH, 1970 apud FURTER, 1974, p. 85). Ora, é estapossibilidade de sonhar acordado que impulsiona os homens para o futuroe os leva a construir utopias.

Para Bloch, segundo Furter (1974), do mesmo modo que a esperançaemerge no momento em que o homem toma consciência de que ele é um“ser de carências” e portanto inacabado, ele também não acredita que afonte da utopia se encontra na consciência que o homem tem da suaperfeição, mas, ao contrário, do seu espanto diante da descoberta de suaimperfeição. Ora a consciência do seu “inacabamento” é o que impulsionaos homens para o futuro e a consciência das suas carências é o que os fazpensar em possibilidades para resolvê-las. Assim, são criadas as alternativaspara a satisfação das muitas fomes que o homem tem, tais como: materiais,afetivas, sexuais e intelectuais.

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A utopia, para Bloch, segundo Furter, (1974) existe porque o homem sedescobre imperfeito e quer ultrapassar este estado até atingir uma perfeiçãoabsoluta. Ao nos tornarmos conscientes das imperfeições do mundo, a utopiaconcreta aponta e chama a atenção para uma realidade transformável.Portanto a utopia pode induzir os homens a tudo, ela mobiliza os sujeitos auma ação em favor de uma mudança. E, ainda segundo Bloch, é através dautopia concreta e da sua exigência de radicalidade que a esperança de virtudetransforma-se em otimismo militante.

A reflexão sobre utopia impôs-se como uma necessidade de compreendera idéia de utopia presente nos ideais do Movimento dos TrabalhadoresSem Terra e no seu Projeto de Educação (MST, 1996). Como em Bloch etambém para o MST, é o desejo de ir além que aumenta as dimensõeshumanas e amplia as possibilidades de ação.

AS ESCOLAS DO MST DA INTENÇÃO AO GESTO

A educação pensada pelos Sem Terra visa ao mesmo tempo garantir oacesso de todas as crianças à escola, como também de uma escolatransformada, com uma nova idéia de educação, em que ele não sejasomente sinônimo de aula, de conteúdos e obediência, mas que seja umespaço que possa permitir aos educandos e educadores a não aceitaçãopassiva do fatalismo da reprodução social.

Esta nova escola propugnada pelos Sem Terra, enquanto concepção,guarda uma estreita relação com o pensamento do italiano Antônio Gramscie do brasileiro Paulo Freire, sobretudo no que se refere à escola formativadesinteressada e à pedagogia do oprimido.

Para Gramsci (1968), a escola formativa poderia proporcionar o acessodos trabalhadores à cultura, devendo ser assegurada pelo Estado, quandoeste é ético e educador. Esta escola pensada por Gramsci, e igualmente peloMST, deve possuir um caráter revolucionário, proporcionando aostrabalhadores e a seus filhos a superação da consciência ingênua e aconstrução de uma consciência crítica. Nessa perspectiva, tanto Gramscicomo os sem-terra, ao refletirem sobre o caráter transformador da escola,abandonam a idéia dos reprodutivistas, de que a escola é somente espaçode reprodução e manutenção de uma ordem social que tende a ser excludentee dominadora.

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Um outro aspecto é o da idéia de libertação do sujeito, ou seja, daconquista da condição de cidadão, de sujeito da sua própria história – umnovo homem uma nova mulher – que possa exercitar a condição de cidadão/cidadã, de modo a potencializar sua capacidade de tomada de decisões.Almeja, portanto, uma escola que prepare os cidadãos, sujeitos sociais,capazes de conduzir à construção de um novo modelo de desenvolvimentopara o campo e de uma nova sociedade.

Esse processo de libertação se instaura à medida, que se pensa umaescola diferente nos moldes tradicionais, garantindo uma autonomia quese configura em um “desde dentro”, ou seja, a partir de dentro doassentamento, sem desprezar o “desde fora”. As experiências de vida dosassentados traduzem elementos importantes para a prática educativa dessegrupo, capazes de suscitar uma reflexão mais apurada rumo à construçãocoletiva do Projeto. São baseados na proposta de Freire de que a pedagogiado oprimido é construída a partir da realidade e da vida concreta dossujeitos e que os temas geradores devem emergir da realidade ou dasnecessidades da comunidade, reconhecendo que esse grupo já possui umsaber adquirido a partir da sua práxis.

A trajetória do setor de educação do MST é marcada pelosdesdobramentos das necessidades que se foram impondo ao longo dotempo: das crianças ainda sem acesso à escolarização, das demandas porensino fundamental, da qualificação técnica, em nível do ensino médio,para os jovens nas áreas de produção, administração e formação deprofessores para trabalharem com a população acampada, assentada; aeducação infantil e a educação de jovens e adultos; e a implementação docurso superior em pedagogia para atender à crescente demanda deprofissionalização dos jovens na área de educação.

Nessas múltiplas frentes de atuação, o MST vem elaborando princípiose orientações metodológicas que fundamentam o seu projeto pedagógico.Este projeto vem atender a uma demanda: a de sistematizar as experiênciasvividas no interior dos assentamentos e, a partir disso, consolidar um projetomais elaborado de educação e de escola que faça valer os interesses dosassentados.

O MST, partindo desses princípios, reivindica do Estado que a escolapública dos assentamentos seja pensada e organizada para atender àsnecessidades do trabalhador rural. Enfim, a escola pensada pelos Sem Terra

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tem sido diferencialmente assumida pelas coordenações estaduais e regionais,procurando respeitar as diversidades locais.

Em Vitória da Conquista, o estudo demonstrou que as escolas, sob acoordenação do MST diferenciam-se das demais escolas do Municípiopor vários motivos, a seguir apreciados.

Em primeiro lugar, o MST no Município tem estabelecido junto àPrefeitura canais de negociação, de modo a possibilitar a implementaçãodo projeto na localidade, de forma que já se garantiu autonomia paracoordenar as escolas em áreas de assentamentos; e indicar professores paraserem contratados e fazer uma pré-seleção dos professores concursadosque vão atuar em escolas de assentamentos. A seleção dos professores se dácom o intuito de garantir, pelo menos, um professor sensível à proposta deeducação do Movimento.

Em segundo lugar, o Movimento tem buscado partir das práticasconcretas da escolarização e das demandas da luta pela terra para formularseus conteúdos e metodologias de trabalho.

Em terceiro lugar, o MST tem conseguido garantir o acesso de todas ascrianças às escolas, pelo menos nas séries iniciais do ensino fundamental,bem como, ampliar a concepção de leitura e escrita de modo que não serestrinja à decodificação das letras, mas valorizar a realidade do educando,dando-lhe vez e voz. Logrou, também, ocupar espaços na sociedade para odesenvolvimento de novos valores, estimulando práticas solidárias.

Em quarto, pode-se identificar a educação como fundamental naformação das crianças, dos jovens e adultos para se tornarem futuraslideranças do Movimento. As professoras relatam que, além de levaremem conta o conteúdo formal, também valorizam as questões históricas,políticas e ideológicas. Propõe-se uma educação que não se limite àtransmissão de conhecimentos teóricos pré-estabelecidos, mas capacite acriança e o jovem para o trabalho agrário e para a concretização de suasexpectativas de vida própria e do Movimento do qual fazem parte.

No entanto, o MST também ainda enfrenta desafios na construção deseu projeto de educação. A principal delas é a demora na transformaçãodas rotinas das escolas e também a resistência dos professores e dacomunidade na adoção de novidades ou de engajamentos em projetosvindos de fora do grupo. Isto gera uma defasagem entre a teorização daproposta educacional e a sua implementação nos assentamentos, uma vez

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que a prática escolar, segundo os princípios filosóficos e pedagógicos, nãose tem realizado plenamente e por diversos motivos, listados como segue.

a) a permanência temporária dos professores nos assentamentos. Muitosprofessores, após serem formados pelo movimento, não retornam àssuas bases, sendo aproveitados no trabalho de liderança; outros sãodesligados do movimento porque são transferidos por opção própriaou por ter vencido o período do contrato com a prefeitura. Foiobservado que esta transitoriedade deve-se também ao fato de estesprofessores serem funcionários da Prefeitura e, em função disto,podem ausentar-se para a realização de cursos e reuniões na Secretariade Educação do Município e residirem na cidade;

b) o conflito entre o projeto de educação do MST com o do Município.Ainda que os docentes atuem sob os princípios e coordenação doMST, eles estão, ao mesmo tempo, subordinados às normas daSecretaria Municipal, o que gera dificuldades para os professores,como a necessidade de adoção de procedimentos de avaliaçãoadequados às normas da educação formal. Tal situação tempromovido um descompasso entre a reflexão sobre a educação e aimplementação deste projeto;

c) a insuficiência de formação e qualificação de um quadro de professores,ainda, em sua maioria, formados na cidade para atuarem na cidade enão nas áreas rurais. A zona rural possui especificidades que demandamum profissional com formação específica, de forma a atender àscondições e exigências dessas áreas;

d) a prioridade do MST à formação política e ideológica dos educandos,o que provoca, de certa forma, uma certa “limitação” dos indivíduos,prática esta contraditória com a própria utopia do projeto pedagógicodo Movimento, que é o de educar para a libertação do homem, queeste educando ou educanda possa ser capaz de possuir uma autonomiae fazer suas próprias escolhas e se tornarem “novos” homens e “novas”mulheres.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditando nas potencialidades dos assentados rurais ligados ao MST,colocam-se, aqui, os desafios que, por ora, devem despertar o desejo eestimular o grupo a continuar as suas lutas em busca da concretização daescola desejada.

1. Estabelecimento de escolas nos assentamentos com oferta do ensinofundamental completo e ensino médio, de forma que, os estudantesnão precisem se deslocar do assentamento para a cidade paracompletarem seus estudos;

2. Formação e qualificação de um quadro de professores e gestores daspróprias comunidades para implementar o projeto pedagógicopensado para os assentamentos, fazendo os necessários ajustes, demodo a se apropriar das exigências locais;

3. Estabelecimento de parcerias formalizadas ou não com outrasorganizações de agricultores, para ampliar a proposta de umaeducação mais adequada não só para áreas de assentamentos, mastambém para todo meio rural;

4. Formar parcerias com as Universidades locais a fim de ampliar oquadro de professores qualificados para trabalharem emcomunidades rurais;

5. Prosseguir no esforço de transformar as escolas em espaços, onde autopia permeie o seu cotidiano, alimentando a luta pela construçãodessa nova sociedade.

Estes não são certamente desafios pequenos, no entanto são desafiosque se fazem urgentes e requerem uma intensa mobilização para queocorram as transformações necessárias.

REFERÊNCIAS

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MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Caderno deEducação: princípios da educação no MST. Porto Alegre, n. 8, 1996.

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Aspectos constitutivos para umaanálise da escola inclusivaLuciene Maria da Silva

Mesmo sabendo que estamos ainda distante da universalizaçãodo ensino no Brasil1, é possível identificar a expansão dosistema educacional nas últimas décadas, fato que, certamente,tornou possível a inserção de um novo contingente de alunosna escola, forçando-nos ao reconhecimento da diversidade dasua composição, resultante das diferenças sociais, étnicas eculturais.

Essa crescente diversidade no âmbito da escola, resultado também dapressão social no sentido de mais oportunidades de escolarização paratodos, vem se constituindo em objeto de investigação que dá centralidadeàs instituições escolares por se constituírem elas em espaço de possíveispráticas heterogêneas envolvendo sujeitos e identidades variadas. A escolapode ser considerada um espaço privilegiado para a observação de mudançasque vêm ocorrendo na sociedade. Busca-se saber sobre seus processosinternos e quais são suas variáveis sem perder a perspectiva macro doscondicionantes sociais. As escolas são espaços onde os protagonistasexpressam seus interesses e necessidades não apenas relacionados ao ensinoe aprendizagem, pois que outras dimensões (políticas e subjetivas) tambémse manifestam. Pesquisadores com esse interesse têm utilizado diversoscaminhos para coletar os dados sobre a organização da escola e sua estrutura

1 A esse respeito, Ferraro e Machado (2002, p. 238), em artigo que versa sobre a questão da universalização doacesso à escola no Brasil, concluem que a análise dos dados demográficos de 1980 a 1996 tornou evidente oavanço na incorporação da população em idade escolar nas redes de ensino, porém, “o não-acesso à escola,entendido como o conjunto da não freqüência” é ainda um problema a ser resolvido.

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social a partir de referenciais da sociologia com enfoque sobretudo nasrelações entre a escola e a sociedade, vendo como os elementos culturais seapresentam, e também como são determinantes para a conformação dasrelações sociais.

É forçoso afirmar, que a instituição escolar vem sendo alvo dequestionamentos importantes sobre seu papel na sociedade contemporânea.As críticas têm sido sobre o distanciamento da escola do “novo contexto”sócio-cultural, justificadas no fato de que os alunos precisam ter uma formaçãocoerente com a sociedade para que assim possam atuar, parecendo sugerirque aqueles são exteriores a esta, como se a escola fosse uma cápsulaformadora alheia às configurações sociais, porém com o poder de auscultá-las, para assim formar indivíduos, também naturalizados, que posteriormenteintervirão na sociedade. Entendemos que a escola é uma instituição dasuperestrutura da sociedade e, embora efetivamente reproduza de forma eficaza ideologia dominante, tem um movimento mais lento de incorporação dasmudanças que acontecem na base econômica. Por outro lado, esse aspectodetermina uma especificidade para a escola, que passa a constituir-se numespaço menos vulnerável às pressões sociais, que poderia ser aproveitadoexatamente para a crítica da sociedade.

Ademais, a questão de fundo que se coloca para a análise da educaçãoescolar diz respeito ao fato de que, apesar da expansão do acesso à escolano Brasil nas duas últimas décadas, guardadas as devidas variações marcadaspelas desigualdades regionais, a permanência dos alunos, na escola, não sedá com o esperado tempo de permanência necessário à conclusão do ciclobásico. São variadas as formas de enfrentamento dessas questões: fala-seda necessidade de “reinventar” uma escola que favoreça os diversos espaçosde produção do conhecimento e da informação; aposta-se na pluralidadede linguagens, no sentido de formar pessoas com capacidade reflexivacomprometida com um novo projeto de sociedade e humanidade; busca-se denominações diversas para caracterizá-la, numa tentativa de mostrarseu novo desenho e assim, surgem as propostas de “escola da diferença”,“escola cidadã”, “escola plural” etc. Entretanto, se essa discussão seencontra num patamar fértil de análises, na prática escolar ela é ainda umaquestão percebida de forma etnocêntrica e assimilacionista, porque osalunos identificados como “diferentes” são freqüentemente associados acomportamentos desviantes ou distantes das referências culturais

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consideradas relevantes. Isso evidencia que essas questões ultrapassam oslimites dos processos educacionais, já que sua dimensão se estabelece paraalém do momento de instrução que se realiza no cotidiano da escola. Ofato é que a visibilidade das diferenças tem provocado no ambiente daescola, atitudes de suspeitas e dúvidas, porque o contato e convívio comalunos diferentes perturbam e desordenam o já estabelecido.

Alunos que possuem atributos particulares por terem algum tipo dedeficiência fazem parte desse universo e são classificados no âmbito daestrutura educacional como alunos vinculados à modalidade deatendimento educacional denominada Educação Especial. Esse campoconsolidou-se a partir da forte influência da Psicologia e da Biologia comseus padrões de normalidade e classificações ajuizadas como adequadas ecom o pressuposto de que indivíduos “especiais” podem ser educados pormeio de procedimentos educacionais especiais, em escolas separadas dosistema regular de ensino.

Esse texto apresenta a proposta inclusivista, entendendo-a como umaabordagem crítica à educação especial, mas não só a ela, posto que pretendeser uma orientação que atenda às necessidades da diversidade dos alunos.Para isso iremos tecer breves considerações sobre os conceitos de inclusão eexclusão e posteriormente, analisar os fundamentos da Educação Inclusivarefletindo sobre aspectos relevantes para a sua realização.

A DIALÉTICA EXCLUSÃO X INCLUSÃO

A idéia de educação para todos os alunos no mesmo espaço escolar nãoé algo inédito atualmente, posto que é uma proposição antiga domovimento de integração. A diferença está em que a integração sempreenfatizou os limites do aluno para aprender, numa suposição de que aescola é boa para os alunos considerados normais, isentando-a de qualquercrítica sobre os seus resultados. O princípio de normalização ou acompreensão de que as pessoas com deficiência devem se aproximar aomáximo das experiências cotidianas tidas como normais, foi disseminado,no final da década de sessenta, sugerindo desde então o que posteriormentepassou a ser entendido como integração, cuja abordagem na literaturapode referir-se a conceitos ou a sistemas organizacionais.

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As discussões sobre educação inclusiva no Brasil tomaram corpo nadécada de noventa do século XX, no rastro das discussões da ConferênciaMundial sobre Educação para Todos realizada em Jontien/Tailândia, em1990, por iniciativa da Organização das Nações Unidas para a Educação,Ciência e Cultura (UNESCO). No entanto, é o documento Declaração deSalamanca (UNESCO, 1996) resultado da histórica Conferência Mundialsobre Necessidades Educacionais Especiais: acesso e qualidade, evento quereuniu mais de trezentos representantes de 92 governos e 25 organizaçõesinternacionais na cidade de Salamanca (Espanha), em 1994, que marca asdiscussões sobre a temática (MENDES, 2002). Dois anos após sua realizaçãofoi sancionada no Brasil a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacionalnº 9.394/96, que possui um capítulo dedicado à Educação Especial e prevêem seu artigo 58, “o atendimento aos alunos com deficiência,preferencialmente na rede regular de ensino, em classes regulares, sendooferecidos, quando necessários, serviços de apoio especializado para atenderàs peculiaridades do alunado”. O atendimento em classes, escolas ouserviços especializados só deverá ser oferecido quando não for possível aintegração destes alunos em classes regulares, devido às suas condiçõesespecíficas.

Fatores variados contribuíram para a emergência e consolidação dadiscussão sobre inclusão: o movimento pelos direitos humanos, adesinstitucionalização das pessoas com deficiência, o surgimento de novosestudos e abordagens teóricas sobre a educação e aprendizagem, além dosencontros internacionais com foco na universalização do ensino,especialmente a Conferência Mundial de Educação para Todos em 1990 ea Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: acesso equalidade, em 1994. É imprescindível entender a proposta inclusivista comoum fenômeno histórico das sociedades contemporâneas, com seuscondicionantes econômicos e políticos, no âmbito de reformas educacionais.A busca por inclusão de crianças e adolescentes com deficiência na escolanão é um fato isolado dentro do sistema educacional brasileiro, pois sucedeao mesmo tempo diferentes tipos de demanda por inserção e permanêncianessa instituição por parte de outras categorias de indivíduos para arealização da democratização da escola que ainda convive com elevadastaxas de evasão e repetência. O que se quer destacar é que a diretriz deinclusão escolar não emerge apenas dos anseios pela concretização dos

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direitos humanos, mas também das políticas globais, principalmente como advento do neoliberalismo, orientadas pela lógica do capital quepropugnam possibilitar “cidadania capaz de operar no mundo globalizado”(WARDE, 1998, p. 1).

Embora o movimento inclusivista na educação seja relacionado às pessoascom deficiência, o discurso veiculado pelas instituições internacionais eorganismos governamentais, por meio de publicações e outros veículos decomunicação, é de que a inclusão deve ser pensada não apenas no sentidode expansão de oportunidades escolares, mas numa acepção alargada desociedade inclusiva. O discurso sobre educação inclusiva incorpora algunsprincípios para sua configuração como proposta pedagógica, cujo objetivoé incluir todos os alunos na rede regular de ensino, de modo a responder àssuas necessidades.

O Brasil tem se comprometido oficialmente com o movimentoinclusivista, não apenas por ser signatário de documentos internacionaismas, especialmente, por expor na legislação nacional diversas resoluçõesfavoráveis a uma mudança de atitude para com as pessoas com deficiência,a exemplo da Lei Federal nº 7.853 e da Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (LDB) nº 9.394/96. A partir da deliberação da LDB, o Ministérioda Educação (MEC) passa a incorporar a temática da inclusão maisexplicitamente em seus discursos, documentos e publicações – RevistaIntegração, Relatórios de Gestão, Série Atualidades Pedagógicas, – entreoutros.

Sendo a inclusão a proposta considerada necessária e viável comomecanismo para garantir oportunidades para todos nos diversos setoresda sociedade, a exclusão, como diagnóstico de uma realidade que se quersuperar, tornou-se também um objeto de debates que está na pauta dodiscurso político e acadêmico, de cujas concepções são emanadas as políticaspúblicas. Muito se tem falado no Brasil sobre a exclusão social e econômicade grande parte de sua população, os considerados despossuídos edesapropriados de condições mínimas de sobrevivência, mas também dossegmentos de baixa renda da população que se encontram privados debens materiais e simbólicos. Exclusão tornou-se um conceito que podedescrever os efeitos de uma insuficiente política social por parte do Estadoou ao recrudescimento do processo de desemprego gerado por uma novaconfiguração da sociedade capitalista. É um “termo denúncia”, bastante

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utilizado pela mídia para descrever qualquer tipo de carência identificada,levando à banalização do seu uso.

Além disso, o termo “exclusão” é, assim como o de identidade e diferença,algo escorregadio, que demanda desvelo para ser usado, posto que setransformou num “conceito abrigo” que serve para diversas categorias.Mesmo porque, os processos por que passam os diversos gruposmarginalizados são extremamente diferenciados pelo contexto, pelasmanifestações de repúdio por parte dos que excluem e mesmo pelo sentidodo “ser excluído”. Percebe-se que o termo “exclusão” busca correspondênciacom processos, indivíduos, categoria sociológica, justificativa para propostase projetos sociais e econômicos, entre outros, tornando-se uma denominaçãopara uma infinidade de situações.

A discussão sobre inclusão e exclusão torna-se simplista se não consideraa sociedade na sua totalidade e, sobretudo, se não considera como semanifestam os fatos que evidenciam tais fenômenos. Se por um lado, asociedade tem sido capaz de produzir inovações tecnológicas que se traduzemem bens materiais e culturais capazes de suprimir a pobreza e privação dapopulação, por outro, não tem priorizado a distribuição eqüitativa dessesbens, indicando, dessa forma, que o problema é menos de ordem econômicaque social e político. Martins (2002) afirma que a categoria “exclusão”resulta de duas interpretações que não se conciliam, denominando-as de“orientação transformadora e orientação conservadora”. A primeira,compreende o excluído como “vítima da exploração capitalista”,projetando nele o agente histórico fundamental para ruptura do sistemaexcludente, posto que essa contradição leva a uma situação extrema quedemanda solução: a transformação das relações sociais. No entanto, adverteo autor, essa possibilidade não é dada aos excluídos, mas aos incluídos nadinâmica do “processo de reprodução ampliada do capital”, porquepossuem canais de participação social, ainda que restritos.

Nesse sentido, essa categoria não tem correspondência com os que estãosendo chamados de excluídos - trabalhadores sem terra, sem teto, os queestão privados de escola ou de serviços, entre outros, e que, na verdade,experimentam situações transitórias e flutuantes que expressam umainclusão precária. Daí deriva a sua constatação de que “exclusão” é umacategoria de “orientação conservadora”, pois ao solicitar “inclusão” buscaremediar necessidades no âmbito da mesma sociedade que denuncia.

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A fragilidade da categoria, exclusão educacional, é marcada pela perdada perspectiva de relação e movimento, na medida em que torna os sujeitos“excluídos” uma espécie de seres amorfos, que estando do lado de foraacatam a inexorabilidade de sua exclusão, tornando invisível a sua atuaçãocomo sujeitos que podem, pressionam e reivindicam, mesmo sabendo queesse indicativos de resistência estão cada vez mais escassos. Nesse sentido,excluídos seriam os que estão de fora, no limbo, demandando por meio deum sentimento de compaixão ou de justiça que outros agentes externos semobilizem em sua causa. Essa relação, por certo, inviabiliza o que aindapode restar de resistência. Embora saibamos que a fragmentação dasociedade contemporânea não pode ser atribuída apenas à divisão de classessociais, posto que outros indicadores além do econômico se interpõempara a configuração de tal fracionamento, consideramos que é ainda aluta de classes, com suas contemporâneas expressões, que realça omovimento de enfrentamento e de correlação de forças que possibilita oacesso aos bens produzidos pela sociedade ou o contrário.

A exclusão de diversos segmentos sociais na sociedade capitalista é umfenômeno previsível, visto que são incorporados visando a manutençãodo próprio sistema, sendo, portanto, necessário que eles sejam incluídos,absorvidos e adaptados. Para isso a educação é de fundamental importânciacomo diretriz de desenvolvimento necessária à reprodução do capitalentrando fortemente na agenda política dos países, com o objetivo tácitode desenvolver as habilidades necessárias para “operar no mundoglobalizado” (WARDE, 1998, p. 1). As diretrizes das reformas dos anos1990 são resultado das formulações das agências internacionais que têmcomo propósito maior o reparo das finanças públicas com a devidaracionalização de mercado. E a inclusão dos segmentos vitimados porprocessos de segregação, principalmente os que intensificam a pobreza,pode ser entendido como um mecanismo de integração viável nessa mesmasociedade que produz a denominada exclusão, decorrente dela própria.

A inclusão está hoje nos discursos dominantes no campo da política,dos programas dos partidos políticos e instituições conservadoras, numaclara apropriação das elaborações teóricas progressistas que há muito fazemparte das falas dos que lutam pela igualdade e dos que se consideramexcluídos. Porém, o que vem sendo denominado por diferenças em muitosdiscursos em defesa da inclusão confunde-se com desigualdade, que são

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diferenças socialmente produzidas no âmbito de determinadas relaçõessociais, que confere privilégios e direitos distintos para um segmento dapopulação.

O ACOLHIMENTO DA DIVERSIDADE NA ESCOLA

No debate entre os educadores, a discussão sobre educação inclusivatem gerado polêmicas. Alguns entendem que é o princípio da inclusãosocial que deve ser defendido, na medida em que reforça um outro princípiosemelhante que é o de educação para todos. Para esses, a viabilização eincorporação das mudanças demandam condições materiais deaparelhamento das escolas e capacitação dos professores, sob pena de aproposta constituir-se em uma nova exclusão. Outros se posicionam deforma mais radical em favor da inclusão, tendo como idéia central que oconvívio com a diversidade das condições humanas é necessário e benéficoà formação de todas as crianças, especiais ou não. Defendem adesinstitucionalização de todas as crianças e têm como meta primordialnão deixar ninguém fora do ensino regular.

Muito se discutiu a respeito da diferenciação terminológica entreintegração e inclusão. Embora ao termo integração possamos atribuirsignificados variados relacionados aos diferentes ramos do conhecimento(sociologia, psicologia, antropologia), a compreensão que o diferencia deinclusão educacional diz respeito à ênfase que é dada para o aluno adaptar-se à escola sem que seja considerado a necessidade de mudanças, posto queo ensino tem uma abordagem unidimensional e generalizante. É o alunoquem deve preparar-se previamente para as adversidades sociais na formade discriminação, impedimentos ao trabalho, inacessibilidade etc. São osmovimentos civis que mais insistem nessa precisão: integração seria umcaminho de mão única em que apenas a pessoa com deficiência modificar-se-ia para responder às solicitações sociais referentes à educação(escolarização), saúde (reabilitação), entre outros.

A inclusão é colocada numa perspectiva contrária à da integração: aatenção é deslocada do aluno com deficiência para o conjunto de recursosque lhes são necessários em determinado momento da sua trajetória escolare o que é considerado déficit do indivíduo passa a ser responsabilidade,também, da interação entre ele e o meio em que vive. A própria Educação

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Especial passa a ser questionada nos seus objetivos e, principalmente, noque toca à sua forma de organização escolar, que busca tornar os alunos“especiais” seres adaptados e considerados de forma fragmentada a partirdo que percebem como função prejudicada.

Bueno (2004) faz uma reflexão que coloca essas concepções de educação– integração e inclusão – como resultado da caracterização que se faz daescola, principalmente em referência aos seus resultados. Afirma que, seconsiderarmos, por uma visão acrítica da escola, que o problema está noaluno com deficiência, estaremos assumindo que a escola vemdesempenhando bem seu papel. E, se considerarmos que existem alunosdiferentes, e que, portanto, a escola deve mudar para incorporá-los, é porquesabemos que mantendo a escola como é, atualmente, não haverá educaçãocom qualidade. É importante situar o problema do fracasso escolar, nainadequação da estrutura da escola, que é proveniente das diretrizeseducacionais, e não do indivíduo, contemplando, assim, uma dimensãomais ampla que abrange as determinações políticas e econômicas edesmistifica a concepção de desvio ou déficit que põe a criança, que temnecessidades educacionais especiais, como anormal. Ou seja, a preocupaçãocom a formação dos professores como uma condição necessária efundamental não é suficiente para a melhoria da qualidade de qualquerque seja a modalidade de ensino, posto que a questão de fundo está namanutenção de um sistema de ensino que, ao longo da história, temreproduzido de forma persistente processos de marginalização de parcelaconsiderável da população escolar.

A reflexão sobre o perfil do professor que irá aprimorar a educaçãoescolar num sentido inclusivista tem suscitado discussões sobre o tipo deformação que responda aos objetivos propugnados. Para assegurar aaprendizagem de todos os alunos parece claro que o planejamento escolardeverá considerar reflexões teórico-práticas consistentes que abranjamsituações diversas e que demandam procedimentos pedagógicos, por vezesespecíficos, coerentes com as necessidades identificadas na classe.

Entre os professores, vigora um mito de que o aluno com deficiênciademanda uma série de técnicas e métodos para aprender, devendo haverum currículo especial ou um artefato técnico específico sugerindo todotipo de adaptações. Essas preocupações dos professores são procedentes,mas não tão impossíveis de serem encaminhadas como eles parecem atribuir.

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Os professores precisam ser incentivados a elaborar respostas teórico-práticas para o seu trabalho cotidiano. Na verdade, estas constatações nãobuscam supervalorizar as relações professor aluno, posto que estas nãotêm que ser harmoniosas ou sem tensões, considerando o conteúdo própriode cada um desses sujeitos, porém é inegável que na maioria das vezes asinterações, na escola, são saturadas de elementos dissonantes que resultamno desinteresse dos alunos. Ainda precisamos contar com o professorespecialista para apoiar o professor das classes regulares nas atividades queexigem conhecimentos pedagógicos específicos sobre as deficiências,tornando falsa a dicotomia professor especialista X generalista, queculpabiliza o primeiro pela segregação dos alunos em contraposição àcompetência do segundo para promover o ensino inclusivo.

Mas, o conhecimento especializado, sem a devida vinculação com osfatores sócio-culturais, descontextualiza a prática pedagógica. O especialquase sempre é discutido dentro do próprio contexto, buscando soluçõesviabilizáveis dentro dos procedimentos das técnicas e metodologias. A áreade Educação Especial não pode estar restrita nas suas análises apenas aoâmbito educacional, pois ela não evidencia as variadas perspectivas de análise,uma vez que a impossibilidade de os alunos com deficiência ingressarem naescola não se limita às práticas pedagógicas, embora nelas encontre terrenofavorável para produção e reprodução da condição de marginalizados.

É importante salientar também que as desvantagens e limitações daspessoas com deficiência para suas atividades cotidianas dizem respeito àausência de acessibilidade, e, principalmente, à sua condição ou posiçãoque ocupa na sociedade. As relações humanas se constituem pelas reaçõesde trocas subjetivas suscitadas no encontro com o outro, sendo observávelnuanças de aproximação ou distanciamento, tais como desconhecimentoou negação do outro, indiferença, intolerância, receptividade, aceitação,simpatia, entre outros. Porém, o critério que vai efetivamente compor asrelações sociais é o contexto, que se define no tempo/espaço histórico comcaracterísticas determinadas, sendo que a humanidade ainda nãoexperimentou uma situação favorável ao acolhimento da diferença. É nacoletividade que as normas são produzidas, atribuindo valores a partir dasnecessidades de ordem moral ou econômica. O desejável para qualquersociedade é a cumplicidade em torno das expectativas valorativas que sefizeram normas, na medida em que foram incorporadas na vida social.

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A rejeição da deficiência como preconceito diz mais da condição demenoridade que ainda estão submetidos os seres humanos nas relaçõessociais, daí decorrendo os processos de segregação ou de integração, doque da condição de limitação resultante de uma determinada patologia. Oolhar para uma análise crítica sobre a discriminação acerca da deficiênciadeve estar detido para o contexto que a identifica como um desvio que éparticular assim como o é para outras situações de segregação que permeiama vida coletiva. E mesmo no âmbito das deficiências, é razoável consideraras condições das pessoas que são discriminadas, posto que para algumas,oportunidades são dadas em função da sua posição e participação na teiadas relações sociais concretas. Goffman (1998, p. 138) é contundentequando afirma: “Está, então, implícito, que não é para o deficiente que sedeve olhar em busca da compreensão da diferença, mas para o comum”.

O desvio que se estabelece nas relações sociais é manipulado no sentidode tornar viável a realização de um projeto de sociedade que, para funcionarcom equilíbrio, deve dirimir as situações de tensão e conflito, nummovimento de reforço e atualização dos limites do que é normal e das“expectativas normativas” do corpo social (OMOTE, 1995, p. 59). Dessaforma, a perspectiva de sociedade inclusiva se reporta a uma quase abstraçãoao não considerar os condicionantes histórico-culturais, explicitando seucaráter idealista, posto que admite que, pela expansão da educaçãoinclusivista, as relações sociais se transformarão rumo a uma outra sociedadeque admita as diferenças. Parece ser novamente a concepção da educaçãocomo redentora da sociedade desajustada, em que sua posição é deslocadade determinada para determinante. Ou uma proposição recortada dahistória, pois mesmo havendo uma legislação favorável não existe umacolhimento por parte da sociedade, que mantém uma estrutura pautadaem relações desiguais e discriminadoras, dificultando uma orientaçãoinstitucional voltada para a adaptação da escola às necessidades dos alunos.Tal argumentação sugere que a segregação pode recrudescer ainda mais,porque a (pseudo) inclusão, estando direcionada para o aluno, iráresponsabilizá-lo nos casos de sucesso ou fracasso escolar. O que se põe emquestão é a possibilidade de, mediante programas e propostas educacionais,tornar a escola um espaço propício para resolução de conflitos econtradições que se encontram no âmbito das relações sociais.

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As considerações críticas direcionadas à educação inclusiva intentamexplicar a contraditoriedade dos pressupostos que lhe são imputados desdesua origem pelos organismos internacionais. De fato, pouco tem sidorealizado no que diz respeito às suas diretrizes práticas, quais sejam, tornarrealidade a escolarização de alunos com necessidades educacionais especiaisnas escolas regulares, garantindo uma educação com qualidade para todos.Isso demanda a superação de mecanismos impeditivos para o acesso epermanência desses alunos, formação adequada para os professores emelhoria das condições materiais e físicas das escolas.

A demanda da escola inclusiva se insere na dinâmica da sociedade atual,no sentido de afirmação dos direitos sociais proclamados pela democraciaformal, entendendo que pessoas com deficiência são sujeitos inteiros,independentemente de seus atributos. Consideramos, todavia, que essassão questões fundamentais para a educação de todos os alunos, posto quesão diferentes, não cabendo formulações e políticas educacionaisdiferenciadas, no que se refere às condições para sua implementação. Apreocupação evidente da educação inclusivista com os alunos que têmdeficiência não é por outro motivo que o fato de que são esses os que estãomais culturalmente marginalizados e sob o risco de segregação por meiodos mecanismos mais irracionais que a sociedade cria. Busca-se umaeducação que leve todos os alunos a aprender na escola com professoresque possam organizar ambientes de aprendizagem para todos os alunos.

De fato, as diferenças humanas não têm sido reforçadas pela sociedadee a escola pouco tem feito para mudar essa prática, visível pelas políticaseducacionais no que se refere à formação dos professores, orientaçãocurricular, organização e gestão da escola. A escola segue cumprindo suasfunções imediatas e, ao mesmo tempo, respondendo às necessidades atuaisdas políticas educacionais tensionadas pelas diversas práticas pedagógicase supostas inovações teórico-metodológicas que incorporam cada vez maisos meios de comunicação de massa e as novas tecnologias. E apseudoformação é determinante para a legitimação de tal (de)formação,pois, embora ultrapasse os muros da escola, é nela que encontra espaçofavorável para atuar, devido às suas funções e a sua condição atual precária.Nesse processo, a ideologia tem papel fundamental para a integração social.Sua função é a de ocultar as contradições, legitimando a realidade existentee, assim, perpetuando-a, ao tempo em que impede a reelaboração e

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impossibilita experiências formadoras. O desencantamento do mundotornou-se um paradoxo, pois, abstraiu das experiências a aproximaçãocom as imagens e formas, substituídas pelo discurso elaborado em que oconteúdo é representado a partir de recursos tecnológicos, o que favoreceum outro tipo de encantamento que nada tem de racional.

A formação deveria tornar possível a autonomia dos indivíduos, paraque possam se apropriar de forma espontânea e livre do que a culturapode oferecer-lhes. Afinal, na atualidade, as seleções ou opções dosindivíduos dizem menos do que eles realmente necessitam e mais em funçãode pseudo-necessidades, forjadas para cumprimento de compromissos. Aindústria cultural oferece satisfações que reforçam ainda mais a adesão auma forma de viver que contraria os próprios interesses. É o sentimento deimpotência que leva os indivíduos a desistir de seus ideais, por perceberema realidade como algo imutável.

Propostas de inclusão justificadas pela idéia de harmonia da diversidadenecessária ao bom funcionamento da sociedade, sem considerar a essênciadas individualidades e vendo a escola como se fosse uma unidade detransformação social, é uma forma de adaptação que não proporcionaformação porque, de fato, não são superadas as representações da deficiênciacomo inferioridade e incapacidade nem esclarecidas suas determinaçõesconstituídas na teia das relações sociais.

A inclusão é uma proposta que pode ser caracterizada como umaproposta liberal para a educação, como o são as demais políticascompensatórias. Os princípios universais formulados pelo liberalismo põemênfase nos direitos do homem e tem a educação como um meio para oindivíduo fazer-se indivíduo social. Essa orientação ainda está para sercumprida, mesmo que a sociedade já tenha conseguido avançar em outrosaspectos. A proposta de colocar todos os alunos na escola regular podefavorecer a identificação, base para uma educação mais humana que admitaa aproximação com o outro.

É no âmbito das relações sociais que a atividade humana se configurapela apreensão do imediato e a compreensão posterior do real peloconhecimento; é aí que está a possibilidade de desenvolvimento dos homense da sua individualidade considerando as particularidades e um projeto desociedade que as incorpore. Nesse sentido, a convivência com a diferença éum aspecto constitutivo para tal aspiração, na medida em que a reconhece

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como “essência da humanidade e não como exceção da regra” (CROCHIK,1997, p. 13). Assim entendida, como o que nos faz singular, busca aaproximação do outro na busca por identificação possibilitando oreconhecimento da diversidade. Esse processo de diferenciação eidentificação só é possível com a interação e o contato para a realizaçãodos vínculos, das trocas afetivas e cognitivas que enriquecem as relaçõessociais e favorecem a individuação. Com efeito, a diversidade compõe-sede singularidades e diferenças e estas não deveriam se constituir numaoposição binária.

Mesmo considerando que a adaptação é necessária tendo em vista umaorientação da atividade humana na sua relação com o meio social, ela nãopode anular a possibilidade da escola resistir à tendência de uniformizaçãoe negação da individualidade, o que induziria a sua caracterização comouma instituição burocrática que visa meramente cumprir funções dedistribuição, seleção social e transmissão de conteúdos culturais e científicos.

A escola tem incorporado o discurso da diferença, mas não sabe aindao que fazer com ela, limitando-se a nomeá-la e classificá-la. Dessa forma, aheterogeneidade é diluída, reduzindo mesmo a perplexidade inicial docontato: educa-se para a diferença na indiferença. Isso é o resultado de umprocesso determinado objetivamente, cujos mecanismos de concretizaçãonão se reduzem aos utilizados pela educação escolar.

Grande parte da população, entretanto, está à margem dessa discussão.Nos circuitos mais próximos – Faculdades de Educação, Secretarias deEducação e Instituições Especializadas –, a discussão sobre o que significainclusão ainda é muito precária e confusa. Mesmo no âmbito da academia,muitos se mostram indiferentes à questão, levando-os, quando informados,a questionar sobre a viabilidade da proposta, a adaptação das crianças, acarência de recursos materiais, entre outros, sem mostrar, porém, umcompromisso maior, como se fosse uma necessidade distante. Muitosprofessores têm se comportado de forma semelhante à indústria cultural,ao transmitir bens culturais fossilizados ou tentando adaptá-los ao máximoao gosto dos alunos. Com essa incumbência, os professores, que já têm amarca da deformação na sua própria formação, seguem veiculando umconhecimento que se presta mais à domesticação. A maioria dos cursos deformação de professores continua ignorando o fato de que seus egressosirão encontrar alunos com deficiência nas classes, pois na sua estrutura

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curricular, essa temática é apenas sugerida nas ementas das disciplinas daárea de Psicologia.

Concluir que a escola é irrecuperável é contraditoriamente admitir aconcepção fatalista de que nada escapa do controle absoluto dapseudoformação, cedendo a uma leitura indefectível da reprodução dosistema social por meio da educação escolar. A perspectiva já anunciada noâmbito da Teoria Crítica está na reflexão sobre a formação e seuscondicionantes. Cabe enfatizar e defender a emancipação, a autonomia e adiferenciação como possíveis aos seres humanos; entendê-los comoindivíduos capazes de dar sentido, pela reflexão elaborada, às situações einterações no mundo em que vivem.

Dessa forma, a defesa da escola inclusiva não pode estar restrita apenasà expansão de oferta de vagas, pois isso diz respeito a uma exigênciaimediata da sociedade como um preceito pretensamente racional epragmático de utilidade e eficiência. A falência do sistema educacionalnão se reverte com reformas, se limitadas a ações no âmbito pedagógico-escolar, numa tentativa de harmonização de instâncias contraditórias.

A proposta de inclusão no contexto da democracia formal traz acopladaa idéia liberal de expansão do ensino sem rever os princípios que lhes sãoadjacentes, no que diz respeito aos conteúdos e currículo, formação deprofessores, infra-estrutura da escola e relações sociais. Na verdade, priorizao discurso de aceitação das diferenças secundarizando o necessárioesclarecimento sobre a condição para que haja uma efetiva melhoria dequalidade do ensino. Porém, defendê-la é tornar possível o avanço dasreflexões sobre a formação que admita a diferenciação. Pode ser uminstrumento questionador dos preconceitos que, por dificultar o contatocom pessoas diferentes, não possibilita a experiência. E o pensamento queprescinde dela é puramente formal. É ela que permite a identificação como outro a partir da idéia de ser igual na diferença.

A educação inclusiva, de certa forma, vem proporcionando a discussãoentre os educadores com uma abordagem ampla, saindo do puro aspecto dadeficiência como anormalidade que necessita de intervenção e que privilegiao enfoque das áreas de instrumentalização de propostas metodológicas,para uma discussão sobre o que acontece no âmbito das instituições especiais,nas relações que se dão no interior das escolas e classes especiais, nas(im)possibilidades de trabalho e nas experiências de integração.

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Estamos numa fase em que o discurso da inclusão já foi sistematizadoe parece ter sido assimilado pelos sistemas de ensino, e, até ONGs quepreservavam o sistema segregado e mesmo resistiram à proposta, estãoatualmente pregando a escola inclusiva. Parece claro que esse movimentopode ser uma perspectiva de melhoria do atendimento educacional paratodos os alunos e, dessa forma, constituir-se numa reforma, cujo objetivo éproporcionar a escolarização das pessoas com deficiência, o que nada temde revolucionário. É necessário assumirmos o risco de negar a políticainclusivista sem recusar o que ela tem de progressivo para a atual sociedade.E, nesse sentido, diferenciar a crítica identificando os aspectos de resistênciados que se opõem à afirmação da diferença, pois no fundo, esta é umaameaça para a tirania de uma minoria que se fortalece pela desigualdadeinstitucionalizada, que produz e reproduz insistentemente as anormalidades.

As dificuldades práticas que se tem posto para dar acesso aos alunoscom deficiência à escola regular, mesmo com orientações tão precisas comoas que estão propostas pelos documentos analisados, está na diretaproporção da relutância em revogar as distinções entre normal e anormal,tão intensamente consolidadas. Parece que se nega a diferença para que oatributo considerado estranho passe a pertencer absolutamente àquele quecausa estranheza. Ou seja, circunscreve-se determinadas anormalidades noslimites do indivíduo, subtraindo tudo que na verdade pertence àsdeterminações da sociedade. A urgência pela inclusão e as críticas que vêmsendo elaboradas à Educação Especial não podem ocultar o fato de que aformação danificada já se encontra prefigurada nas práticas educativas,seja ela para alunos com deficiência ou não.

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A representação social datransferência do professor e doaluno na sala de aulaMaria de Lourdes S. Ornellas

Vamos bordando a nossa vida, sem conhecer por inteiro orisco; representamos o nosso papel, sem conhecer por inteiro apeça. De vez em quando voltamos a olhar o bordado já feitoe sob ele desvendamos o risco desconhecido (SOARES, 1990,p. 25).

Representação social é uma representação de palavra que faz laço coma educação e a afetividade, e é por essa via de enlace que esse escrito estásendo bordado, quando no início das minhas pesquisas sobre a temáticaos primeiros riscos, pontos e alinhavos esboçavam no bastidor algumasformas e texturas em que minha escuta do avesso se confundia com odireito.

Introduzir este texto com uma epígrafe que fala de risco e bordado temuma intenção: revelar que a teoria das representações sociais ao mesmotempo em que vai além das bordas, traz a linha e a agulha e no encontrocom o tecimento se aproxima da cor, do desenho e do risco para se chegarao afeto e à educação. É possível dizer também que esta temática revele aurdidura em que a teoria das representações sociais, a educação e aafetividade podem enlaçar o cotidiano escolar. Vale ressaltar que nesseestudo o conceito de representação social se assenta em Moscovici e Jodelet;a educação se referencia no recorte da relação professor/aluno e a afetividadeé colocada tomando como referências Freud e Lacan.

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A representação social é um conhecimento do senso comum e é formadaem razão do cotidiano do sujeito. É uma abordagem que se encontra hojeno centro de um debate interdisciplinar, na medida em que se tenta nomear,fazer relações entre as construções simbólicas com a realidade social e dirigeseu olhar epistêmico para entender como esta realidade constrói a leiturados símbolos presentes no nosso cotidiano. Neste entendimento, a fala deMoscovici (1978, p. 181) nos convida a refletir sobre conceito:

Por representações sociais, entendemos um conjunto de conceitos, proposiçõese explicações na vida cotidiana no curso de comunicação interpessoal. Elas sãoo equivalente, em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crenças das sociedadestradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do sensocomum.

Os estudos desenvolvidos no campo das representações sociais, nosúltimos 30 anos, consensualmente reportam-se ao conceito trabalhadopor Moscovici (1978) e tomam como referência o seu estudo publicadoem La psychanalyse, son image et son public. A obra aponta para adificuldade de conceituar as representações sociais, admitindo que se, porum lado, o fenômeno é passível de observação e de identificação, por outro,o conceito, por sua complexidade, requer um tempo de maturação paraque a definição seja construída de modo consistente.

Allport usa uma metáfora para historiar a origem da representaçãosocial e sugere uma unidade orgânica entre a flor e a raiz:

Tanto a flor como suas raízes são européias, e existe uma similaridade na formaentre a flor (uma forma sociológica de psicologia social) e a semente da qual elanasceu (isto é, a sociologia). No caso da psicologia social, a semente e o solo emque germinou provieram de continentes diferentes (Europa e América do Norte)e de diferentes disciplinas acadêmicas (sociologia e psicologia) (FARR, 1998, p.31-32).

Essa história, além de sinalizar a origem, pontua os terrenos demarcadospela representação social. Trata-se de um conceito germinado nestacomplexidade, no entanto, não é apenas a soma das contribuições advindasdos estudiosos, é a construção de algo de novo, pretendendo observar umfenômeno básico da realidade cotidiana.

As obras de Moscovici (1978) e Ibañez (1988) sinalizam duasjustificativas para essa complexibilidade conceptual: a primeira refere-se

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ao fato de que a representação social é um conceito híbrido, nãopertencendo a uma única área do conhecimento, visto que sua origemvincula-se tanto à Sociologia quanto à Psicologia – o que leva a pensarque a representação social é um conceito psicossocial. A outra justificativaderiva da primeira, pois como os conceitos aglutinados de outras áreas sãomais restritos, uma vez que tratam basicamente de objetos e não defenômenos, constituem, em relação ao próprio conceito de representaçãosocial, os mais operativos.

Pode-se dizer que a representação social, ao estudar o sujeito em processode interação com outros sujeitos, expressa uma espécie de saber prático decomo os sujeitos sentem, assimilam, aprendem e interpretam o mundo,inseridos no seu cotidiano, sendo, portanto, produzidos coletivamente naprática da sociedade e no decorrer da comunicação entre os sujeitos. Nestalógica, Jodelet (2001, p. 41) aprofunda o construto:

As representações sociais devem ser estudadas articulando elementos afetivos,mentais e sociais e integrando, ao lado da cognição da linguagem e dacomunicação, as relações sociais que afetam as representações e a realidadematerial, social e ideal sobre as quais elas intervirão.

É possível pontuar que esse conhecimento tem uma base cognitiva eafetiva e que não constitui uma categoria bipolar, podendo-se, desse modo,ser afirmado que as representações sociais não são saberes articulados apenasao cognitivo, mas que se tecem, de forma dinâmica, em um processohistórico, que envolve tanto a racionalidade quanto a afetividade.

Pesquisadores da área de Educação e também fora dela mostram-sepreocupados em integrar aspectos afetivos e simbólicos na elucidação eanálise das representações sociais, concebendo que na atividaderepresentativa o objeto deixa de existir como tal, para se converter numequivalente dos objetos aos quais foi vinculado como uma contingênciapsicossocial. Moscovici (1970) pensa a representação associada àsexperiências subjetivas do sujeito, expressas na comunicação social,simultaneamente como um produto e um processo: “a atividaderepresentativa constitui, portanto, um processo psíquico que permite tornarfamiliar e presente em nosso universo interior; um objeto que está distantee, de certo modo, ausente” (MOSCOVICI, 1978, p. 28).

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No papel de sujeitos cognitivos, afetivos e sociais, os indivíduosproduzem e comunicam aos seus pares, incessantemente, suas própriasrepresentações, designadas tanto por conteúdos conscientes como porprocessos inconscientes. A fala a seguir explicita o processo:

Identificar a natureza complexa das representações sociais implica, inevitavelmente,estabelecer um intercâmbio entre intersubjetividades e o coletivo, na combinaçãode um saber que não se dá apenas por processos cognitivos, mas que contémaspectos inconscientes, emocionais, afetivos, tanto na produção como nareprodução das representações sociais (LANE, 1993, p. 61).

Na última década, o estudo das representações sociais tem espaçogarantido na educação e de modo específico na Psicologia da Educação.Observa-se hoje um número cada vez maior de pesquisas nessa área, o quepode contribuir para a construção de um novo olhar no que se refere aosprocessos educativos e subjetivos que interagem na sala de aula. Nessesentido, Souza (2002, p. 286) nos diz:

No final da década de 1980 e início dos anos 90, as investigações nas áreas deeducação passaram a exigir construções teóricas que conciliassem pontos devista do autor individual e do autor social e de perspectiva micro e macro. Énesse contexto que a “descoberta” da teoria das representações sociais, peloseducadores, surge como uma das possibilidades teóricas relevantes da área daPsicologia, possibilitando a compreensão de um sujeito sócio-historicamentesituado e, ao mesmo tempo, formando condições para a análise de dinâmicassubjetivas.

Aspectos afetivos constituem-se de processos subjetivos que emergemno interior da sala de aula, e é possível que a psicanálise possa contribuircom esse debate na sala de aula e que as representações sociais de professorese alunos apontem para a escola que queremos construir.

Freud (1905) acalentava um sonho de que a psicanálise pudesse um diavir a contribuir com a sociedade como um todo e, especialmente, com aeducação; acompanhava os movimentos sociais e desejava que a psicanálisepudesse estender-se a outras áreas do conhecimento. A partir daí a psicanálise,ainda que sutilmente, ousou adentrar os muros da escola.

A psicanálise não tem receitas sobre o que deve ser feito na escola, masreflete sobre o que tem sido feito, uma vez que pode contribuir na escuta dodiscurso do professor e do aluno. Articular psicanálise e educação é um grande

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desafio, e o fato de a psicanálise se oferecer como um importante fundantedo instrumento da escuta é o que nos permite muitas vezes contribuir para aleitura do mal-estar vivido pelo professor no contexto educativo.

O mal-estar na escola tem diversas faces para serem olhadas e pensadas: é comose olhássemos um cubo, que tem seis faces, como sabemos, mas só podemos, deum determinado lugar, ver três faces, é necessário que nos desloquemos paraque vejamos todas as faces (OUTEIRAL; CEREZER, 1994, p. 1).

Pela escuta cuidadosa dos sintomas presentes no mal-estar na sala deaula, por parte do professor, é que penso que algumas fronteiras são possíveisentre psicanálise e educação. É preciso, pois, escutar o ambientetransferencial de sala de aula, lugar no qual acontece o ato educativo. Énesse ambiente que ocorre a escuta da relação professor/aluno, visto comoum campo de mediação entre os sujeitos que, no espaço escolar, se configurasob a nomeação de disciplina ou (in)disciplina escolar, constituindo, naatualidade, uma das preocupações mais emergentes do professor.

Na contemporaneidade, quando se dirige para a sala de aula, o professorse questiona acerca de como administrar a dispersão, a falta de atenção ede interesse pelas atividades desenvolvidas em classe. Diante desse mal-estar no ambiente escolar, a escuta pedagógica pode abrir um canal decomunicação, porque o instrumento da escuta pedagógica envolve não sóo sentido do ouvir, mas o de fazer uma leitura subjetiva do discurso,apresentado pelo sujeito escutante.

Por este caminho, em que a escuta é vista essencialmente comoinstrumento de trabalho do professor, Kupfer (2000, p. 34) diz:

Uma leitura que inclua o discurso social que circula em torno do educativo e doescolar [...] estará produzindo uma inflexão na ação do psicanalista e o levará auma prática que não coincida mais com a clínica psicanalista ‘ortodoxa’, poisele terá de se movimentar o suficiente para ouvir pais e escola. Isso amplia ocampo de ação do psicanalista, que passa a incluir a instituição escola comolugar de escuta.

Se a psicanálise pode contribuir, de alguma forma, com o campo deeducação, terá de apontar para a necessidade de uma postura reflexivasobre a tarefa de escutar, que supõe uma reconstrução a ser feita peloprofessor junto aos alunos. Escutar é dar sentido ao mundo que cerca o

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aluno. Ao escutar os ditos e os não ditos, produzimos e ampliamos o mundodas coisas, damos a nossa versão, que é réplica e não uma repetição.

A escuta da fala do outro é na verdade um diálogo dentro de nós mesmoscom as muitas falas que nos constituíram e nos constituem. Escutar e falarfaz parte do processo educativo, porém este binômio na escola parece terpesos diferentes entre os atores.

Esse mundo desejante, que habita diferentemente em cada sujeito, estarásempre preservado cada vez que um professor renuncie ao controle e aosefeitos de seu poder sobre o aluno. “Matar o mestre – para falar, escutar etornar o mestre de si mesmo – é uma lição que precisa ser ressignificada”(KUPFER, 2000, p. 45).

Se, por um lado, Freud foi de fato um antipedagogo; por várias razões,foi um mestre da educação. Seu jeito peculiar de fazer teoria revelou asingular relação que tinha com o ato de pensar, falar e escutar. Freud pensoucom a mente e com o desejo, e, talvez por isso a fala e a escuta tenhamocupado um lugar singular no seu modo de educar. Neste sentido o mestrenos convida a pensar:

A psicanálise já encerra em si mesma fatores revolucionários suficientes paragarantir que todo aquele que nela se educou jamais tomará em sua vida posterioro partido da reação e da repressão. Penso até mesmo que as criançasrevolucionárias não são desejáveis, sob nenhum aspecto (FREUD, 1976, p. 348).

As conexões da psicanálise e educação precisam ser ainda estabelecidas.Mas, talvez, desde já, a psicanálise possa oferecer à educação um outroolhar, não narcísico, não tão etnocêntrico, mas um olhar em que o professorse coloca no lugar daquele que investiga, daquele que questiona o saberfechado, previamente estruturado do aluno.

Em meio a toda impossibilidade de se casar a psicanálise com aeducação, é certo que ambas começam a se olhar. Nesse caso, estão abertasas portas para que o saber da representação social tome lugar entre essesdois saberes, mostrando ao leitor o que podemos ver por detrás dele, sem,contudo, conduzi-lo para dentro, porque educar segundo Freud, parece sermesmo uma tarefa difícil.

Após discorrer sobre as relações entre psicanálise e educação faz-sepertinente encontrar um ritmo, um compasso entre representação social epsicanálise. Nesse sentido, Kaes (2001 apud JODELET, 2001, p. 67- 68) diz:

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A psicanálise é, ela própria, objeto de representação social. De fato, foi emrelação a ela que S. Moscovici (1960) definiu o próprio conceito de representaçãosocial e seu método de estudo. [...] É pouco provável que os dois objetoscoincidam, pois se constituem de projetos, epistemológicos diferentes e práticasdiferentes; mas é possível que ligações pouco evidentes se desvelem.

Por este caminho é possível tentar percorrer uma trilha demarcandoque tanto a representação social quanto a psicanálise e a educação forame são influenciadas pela cultura. É nesse contexto que educação,representação social e afetividade são convidadas a comparecer neste estudo,entendendo que essas áreas engendram-se no desfiladeiro da cultura, sendoa palavra “cultura” pode ser entendida como:

O resultado de tudo o que o homem produz para construir sua existência. Nosentido amplo, antropológico, cultura é tudo o que o homem faz, seja materialou espiritual, seja pensamento ou ação. A cultura exprime as variadas formaspelas quais os homens estabelecem relações entre si e com a natureza (ARANHA,1996, p. 14-15).

Desse modo, pode-se resgatar que a psicanálise contribuiu para se pensara afetividade na educação, que está presente de mil maneiras na cultura ena vida cotidiana. Estas concepções são em si mesmas uma parte da culturacontemporânea, tanto no plano científico-filosófico quanto no efeito queessas posições teóricas têm sobre os costumes, as idéias, o senso comum e aprópria civilização.

É pela trilha da cultura que é possível mapear pontos em que arepresentação social e a afetividade se engendram no contexto da sala deaula. Sabemos o quanto a sala de aula é produtora de cultura, de relação ecomunicação e, por sua vez, é um espaço de construção das representaçõessociais.

Pode-se afirmar que tanto a afetividade contribui com a educação, paradesvelar os aspectos afetivos do desenvolvimento, quanto a teoria dasrepresentações sociais reconhece igualmente a importância desses aspectos.Desse modo Jodelet (1989, p. 41), acrescenta:

As representações sociais devem ser estudadas, articulando elementos afetivos,mentais e sociais e integrando ao lado da cognição, da linguagem e dacomunicação, as relações sociais que afetam as representações e a realidadematerial, social, ideal sobre as quais elas intervirão.

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A escola pode se constituir num espaço no qual a construção das relaçõesafetivas acontece e, ao mesmo tempo, é onde acontecem a fala e a escuta.Uma fala bem elaborada pode ser escutada, trocada e analisada, na prosada sala de aula, na prosa da relação. É nesse lugar que se encontram os doissujeitos: o professor e ao aluno. Ambos são portadores de uma fala, deuma escuta e das representações que as sustentam.

Logo, pode-se dizer que a representação social de professores (sujeito)sobre fala e escuta (objeto) constitui um leque de possibilidades para quese perceba um novo olhar sobre a sala de aula, no que se refere à relaçãoprofessor/aluno.

Vale pontuar que os campos das representações sociais, da educação eda afetividade encontram-se no centro de um debate interdisciplinar, namedida em que se tenta nomear, fazer relações entre as construçõessimbólicas com a realidade social e dirigem seu campo epistêmico paraentender como esta realidade constrói a leitura dos símbolos do nossocotidiano que nos movem à ação. Na condição de pesquisadora, pergunto:não seria essa capacidade de dar uma nova forma às coisas pela atividadepsíquica que constitui uma representação social?

Kaes (2001), ao pensar sobre representação social numa vertentepsicanalítica, elabora a hipótese de que a representação é um trabalho delembranças daquilo que está ausente, que está em falta. Portanto, arepresentação, assim como a psicanálise, indica uma ausência, se formacomo traço e reprodução de um objeto perdido.

Representação social, educação e afetividade são como a imagem dotecelão, alguns fios parecem partidos, outros estão unidos desenhando emseu trajeto uma peça necessariamente interminável. Então, posso suspirarmais aliviada ante o esforço feito de encontrar na cultura um caminho pormeio do qual representação social e psicanálise se encontram, mesmosabendo que a incerteza atormenta o laço possível.

A amarração entre representações sociais, educação e afetividade é feitaa partir da convivência, das interações, da partilha e das trocas entre ossujeitos desejantes que estão na sala de aula na busca da construção doconhecimento.

Diante dos passos construídos, minha argumentação é de que asrepresentações de afeto de professores em sala de aula vão além da

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transmissão de conteúdos, mas se revestem de subjetividades em que osafetos não são vistos apenas no campo do prazer (alegria, realização,satisfação, etc.), mas também no campo do desprazer, como luto, tristeza,desatenção, etc. O professor e o aluno possuidores da sua cultura e da suahistória, desenvolvem relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo,e essas dimensões estão (entre) laçadas na sala de aula. Com vistas a elucidarque o afeto está simbolizado pelo Eros e Thanatos, os mestres da psicanálisenos ajudam a compreendê-lo como “um dos estados emocionais, cujoconjunto constitui a gama de todos os sentimentos humanos, do maisagradável ao mais insuportável” (FREUD, 1894, p. 124).

Essa maneira bivalente de conceituar afeto, sem dúvida, representa umavanço no conhecimento sobre a temática, na medida em que desnuda aidéia de que o afeto encontra-se ancorado apenas nas situações ditasprazerosas. No entanto, ao mesmo tempo, torna cada vez mais precisa anecessidade de transpor o nível de constatação, seja do que se passa nocotidiano da sala de aula, seja do que ocorre no imaginário do professor edo aluno. Para Lacan (1978), o sujeito é marcado pela falta, seus afetosestão enodados no prazer e no desprazer.

Construímos, como professores, nossas próprias representações e, emrazão delas, orientamos nossas atividades e as impomos ao aluno, nasuposição de que sabemos o que é melhor para ele. Conhecer asrepresentações sociais dos professores constitui uma boa trilha para nosajudar a ajustar com maior visibilidade o quanto a fala e a escuta em salade aula podem contribuir na eficácia do projeto pedagógico da escola.

É possível dizer que a citação que principia essa escrita revela a históriada educação, de como vem sendo bordada, levando-se em conta as coresquentes e frias dos fios da afetividade através das representações e estasexpressam o relevo, ou seja, o que vejo e o que não é possível ver, e estemovimento de falta tem origem no senso comum e na vida cotidiana.

Enquanto pesquisadora, me constituo enquanto sujeito da falta e mecoloco também no lugar da fala quando tento apresentar o risco de nãopoder na sua completude enodar educação, representação social eafetividade, mas sinto-me (in)satisfeita de tentar dar forma a esse desejo,na busca de amarrar e desatar e amalgamar os fios quebrados do material

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teórico e empírico a ser tecido. O desenho a seguir mostra simbolicamentecomo deve ser construído esse enlace:

Educação

Afeto

RS

Enlaçar educação, representação social e afetividade é ousar a uma escutada interface que deve ser construída nas relações do processo educativoque acontece na escola. Esse tripé possibilita pensar o processo ensino/aprendizagem e sua interseção com os dois sujeitos: professor e aluno.Ambos trazem para o contexto escolar seus afetos. Estes podem serconceituados como já foi visto como estados emocionais, cujo conjuntoconstitui a gama de todos os sentimentos do sujeito, do mais agradável aomais insuportável.

Para não concluir, convido o leitor a fazer o risco e começar o bordado.A cor da linha é uma opção de cada um. A forma tem lugar na suasingularidade. O tamanho da agulha constitui-se de significante porquepode ter furos. Mesmo assim, corre-se risco e é aqui que se encontra oágalma.1

REFERÊNCIAS

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1 Objeto de desejo, brilhante, galante, termo que vem do gal, brilho no antigo francês e Lacan utiliza esta palavrano Seminário 8 - A transferência.

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Conscientização: uma dasestratégias na formação continuadaVânia Finholdt Ângelo Leite

Este artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado1, objetivandoanalisar a influência das estratégias formativas baseadas nareflexão, resolução de problemas e na conscientização daprática pedagógica ligadas a números e operações e asconseqüentes mudanças da prática pedagógica.

Desde 1996, quando desenvolvia um trabalho de formação continuadaem uma escola particular de Salvador, o trabalho estava voltado para oestudo de temas ligados às pesquisas e discussões recentes na área daeducação. Entretanto, observava que esses estudos “teóricos” não revertiamem uma prática coerente com as concepções estudadas, muitas vezes, osprofessores expressavam um discurso compatível com as concepçõespedagógicas discutidas, mas sua prática em aula diferia daquelas discutidasnos grupos de estudos.

Então, emergiram as seguintes questões: por que os estudos e concepçõesteóricas não se revertem em ações na prática pedagógica? Qual seria oformato e quais características teria uma formação continuada quepossibilitasse a transposição dos conhecimentos teóricos para a prática desala de aula?

A partir dessas questões que se formulam as hipóteses do trabalho,tomando como os elementos primordiais os problemas enfrentados pelo

1 Dissertação intitulada Experimentando estratégias de formação: da reflexão à conscientização sob orientação daDrª Profª Maria Cristina Martins Penido.

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grupo em relação a números e operações, buscando refletir sobre eles demaneira crítica, como sugere Freire (1980, p. 37):

Cada relação de um homem com a realidade é deste modo, um desafio ao qualdeve responder de maneira original. Não há modelo típico de resposta, senãotantas respostas diferentes quantos são os desafios [...] É possível encontrar-serespostas bem diversas a um mesmo desafio.

Assim, a formação de professores estará pautada no desvelamento dosproblemas por eles enfrentados, pois para solucinoná-los deve-se questionaro que se fez para respondê-los? Pode-se fazer diferente? Que elementosexistem para enfrentá-los? A quem se pode recorrer para solucioná-los?

Nesse processo de desvelar os problemas do grupo e buscando solucioná-los, os professores estariam mobilizados a construir conhecimentos, poispara resolver as questões da prática precisam refletir sobre os elementosque dificultam e/ou impedem suas ações na sala, como também, buscarnos textos e pesquisas elementos que possam auxiliar na resolução de suasquestões.

A partir desse referencial, o professor estaria constituindo-se como sujeitode sua ação, sendo autor de sua prática. Essa construção é fruto de suareflexão sobre a realidade em que está inserido, pois nas palavras de Tardif(2002, p. 127):

os professores serão reconhecidos como sujeitos do conhecimento quando lhesconcedermos, dentro do sistema escolar e dos estabelecimentos, o status deverdadeiros atores, e não o de simples técnico ou de executores das reformas daeducação concebidas com base numa lógica burocrática top and down.

O foco desta pesquisa foi, portanto, buscar resolver os problemasenfrentados pelos professores da Escola Educar para Vida2, levando emconta suas necessidades, conhecimentos e sua prática pedagógica.

Assim, a pesquisa refletiu sobre os elementos de uma formação quecontribuem para a efetiva mudança na prática pedagógica, tendo a questãonorteadora: em que medida as estratégias de formação baseadas na reflexão,resolução de problemas e conscientização ligados a números e operaçõesproporcionam a modificação da prática pedagógica?

2 Nome fictício escolhido pela direção da escola.

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Diante dessa questão de pesquisa, buscamos nos referenciar em Alarcão(2000), Scarpa (1998), Tardif ( 2002), Nóvoa (1995).

Nesse texto, nos deteremos com mais detalhes nas contribuições de PauloFreire que aborda a reflexão visando à conscientização, possibilitando aosprofessores entenderem os problemas pedagógicos, gerados na sala de aula,e compreenderem o conhecimento como produto social e histórico.

O termo conscientização foi cunhado por uma equipe de professoresdo Instituto Superior de Estudos Brasileiros em 1964, entre eles, o filósofoÁlvaro Pinto e o professor Guerreiro (FREIRE, 1980, p. 25). Sendodifundido por Hélder Câmara que encarregou de traduzi-lo para o inglês eo francês. Conscientização não se restringe à simples tomada de consciência,mas ao desenvolvimento crítico da tomada de consciência que implicaultrapassar a esfera espontânea de apreensão da realidade.

Na formação, não se separa a pessoa do ser profissional, pois no dia-a-dia da sala de aula, não basta que os professores conheçam novas teoriasno campo das Ciências da Educação, é necessário que eles formulemperguntas sobre situações fundamentais em torno de si mesmo e das tarefasque cumprem. Para Freire (1980, p. 37),

A conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a “dês-vela”para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a mantera realidade da estrutura dominante

Com esse olhar mais crítico, as situações de sala de aula serão visíveis epalpáveis, possibilitando ao professor desvelar o que está por trás de suaprática.

Com isso, a formação parte das condições em que se encontram a escolae os professores, refletindo sobre sua prática, escolhendo e decidindo qualação poderá acionar a partir daí e se submetendo ou não a determinadaimposição. Para Freire (1980, p. 37), são esses movimentos que nos tornamsujeitos, pois

o importante é advertir que a resposta que o homem dá a um desafio não mudasó a realidade com a qual se confronta: a resposta muda o próprio homem,cada vez um pouco mais, e sempre de modo diferente.

Nesse sentido, não será pela imposição de uma concepção pedagógicaou de um receituário de atividades que ocorrerá a mudança na prática dos

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professores, mas pela conscientização, colocando-se como sujeitos de suasações pedagógicas, pois no processo de aprendizagem só aprende quem seapropria do objeto, transforma-o, com o que pode, por isto mesmo,reinventá-lo.

Assim, para Freire a superação ou substituição de uma forma de conhecerpor outra ocorre por meio da ação e da reflexão através da problematização,na qual o sujeito busca a explicação e solução, visando transformar arealidade, pela sua própria ação. Desta forma, o indivíduo estaria seapropriando da posição que ocupa aqui e agora, “que resulta descobrir-seem uma totalidade, em uma estrutura, e não preso ou aderido a ela ou àspartes que a constituem” (FREIRE, 2002, p. 34).

Para o indivíduo descobrir essa totalidade, demanda conscientizaçãoque permite a ele se apropriar criticamente da posição que ocupa com osdemais seres no mundo. Esta apropriação crítica os impulsiona a seremsujeitos da transformação do mundo, com a qual se humanizam.

Nesta perspectiva, uma formação pautada na estratégia daconscientização reflete com os professores as suas ações, as atividades e asposturas na sala de aula, respeitando e conhecendo a visão de educação/mundo desses professores, enfrentando-a e aceitando o fato de que osprofessores têm uma visão diferente da qual o formador vem propondo enem por isso é pior ou melhor do que a dele. Ao buscar com os professoresa tomada de consciência do que fazem aqui e agora, descobrindo uns comos outros quais as concepções educativas existentes por trás de sua práticaatravés de reflexões de questões, como: o que é proposto pelos teóricosestá de acordo com a minha realidade? Qual a relação entre essa propostae a humanização dos meus alunos? Ou será uma domesticação?

Esse ato de pensar a realidade se dá na comunicação que é uma relaçãodialógica-comunicativa, na qual a expressão verbal e o sistema de signoslingüísticos têm que ser percebidos entre os sujeitos. Se não houver umacordo em torno dos signos, não poderá haver compreensão entre os sujeitos,o que impossibilitará a comunicação. De acordo com Freire (2002, p. 70),

[...] exige dos sujeitos interlocutores incidam sua ad-miração sobre o mesmoobjeto; que o expressem através de signos lingüísticos pertencentes ao universocomum a ambos, para que assim compreendam de maneira semelhante o objetoda comunicação.

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Desse modo, para que ocorra a comunicação verdadeira deve haver acompreensão pelos sujeitos intercomunicantes do conteúdo sobre o qual seestabelece a relação comunicativa. Além disso, não se pode deixar demencionar que o processo de comunicação não está isento dos condicionantessócio-culturais.

Por outro lado, se as pessoas na formação não expressarem com ossignos lingüísticos comuns, se acham auto-suficientes, ou se fecham àcontribuição do outro, temem a superação, ou se acham donos da verdadee do saber, não se estabelecerá um diálogo, conseqüentemente, a formaçãopoderá não atingir seus objetivos.

A dialogicidade começará quando professores e formadores seperguntarem em torno do que vão dialogar, sobre como e por que estãofazendo dessa forma, como e por que substituirão ou não suas ações. Assim,o conteúdo não será uma doação ou imposição de um para os outros, masuma construção entre eles.

A partir das relações entre professores e os formadores, enquanto travamrelações com o mundo e entre si é que ocorrerá a tomada de consciênciaque “é uma operação própria do homem, resulta de sua defrontação como mundo, com a realidade concreta, que lhe torna presente como umaobjetivação” (FREIRE, 2002, p. 77). A objetivação implica em umapercepção que se encontra condicionada pelos ingredientes da própriarealidade.

Dessa maneira, há níveis distintos da tomada de consciência e daconscientização, descritos por Freire (2002) e aqui separados para efeitode melhor compreensão do processo:

1º momento descodificação – aquele em que os educandos começam adescrever os elementos da situação vivida por eles, como partesconstitutivas de seu todo.

2º momento etapa descritiva – a cisão da totalidade ad-mirada3. É umaespécie de movimento no qual o sujeito se comporta como se estivesseolhando a realidade de dentro.

3 Ad-miração - é o processo onde o sujeito afasta-se de si mesmo e de seu próprio estado para se ver e para vero estado em que se encontra (FREIRE, 2002, p. 69).

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3º momento – no qual o sujeito, com outros sujeitos, volta à ad-miraçãoanterior, em que abarca a situação codificada4 em sua totalidade, a fimde percebê-la como uma estrutura na qual os vários elementos se achamem relação solidária.

4º momento – neste o sujeito realiza a análise crítica do que a codificaçãorepresenta e passa a não mais aceitar as explicações focalizadas darealidade.

Esses momentos são parte do processo da conscientização, dos quaisresulta a inserção crítica na realidade pelos homens.

Portanto, a conscientização ultrapassa a mera apreensão do fato,colocando o homem num sistema de relações, dentro da totalidade emque se deu. Assim, percebe-se que ela não acontece em seres abstratos e noar, mas com os homens na sua realidade, daí não ser de caráter individual,mas social. Na formação, ela se dá na práxis concreta, na qual “ação ereflexão, solidárias se iluminam constante e mutuamente” (FREIRE, 2002,p. 80).

Desse modo, a formação não se baseia na transferência de conhecimentosdos formadores para os professores. A tarefa do formador seria a deproblematizar, com os professores, os conteúdos originários de uma aula,de um exercício elaborado por eles, refletindo sobre esse fazer, e para quejuntos possam compreender o que está por trás dessa prática. Isso porque,“a educação problematizadora se faz, assim, no esforço permanente atravésdo qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo nomundo com que e em que se acham” (FREIRE, 2002, p. 72).

O aqui e o agora da prática dos professores são, pois, os pontos departida para a tomada de consciência da situação em que vivem, em que seencontram imersos.

CONSTRUÇÃO DA PESQUISA

Na busca das respostas ao problema apresentado, foi desenvolvida umapesquisa qualitativa do tipo pesquisa-ação. Essa pesquisa levou emconsideração as idéias e conhecimentos das professoras partindo das suas

4 Codificação - uma situação existencial, uma situação vivida pelos homens que enquanto a vivem não a ad-miram,apenas se dão conta da situação.

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experiências e das informações coletadas através da mobilização coletivaem torno do estudo dos temas: leitura nas aulas de matemática e o sistemade numeração.

A pesquisa foi realizada na Escola Educar para Vida em Salvador queatende as crianças e jovens da comunidade que freqüentam a rede de ensino.O grupo foi composto pela investigadora, quatro professoras da escola, acoordenadora e a diretora.

Na primeira fase da pesquisa realizamos entrevistas iniciais, buscandoconhecer cada educadora, percebendo-a como profissional, suas relaçõescom o conhecimento matemático e suas dificuldades/anseios em trabalharcom situações-problema.

De posse dessas informações, organizamos e agendamos os encontrosgrupais de 2004.2 no qual priorizamos: leitura nas aulas de matemática,análise de situações-problema, trabalho de leitura com diferentes tipos deproblemas, resolução de problemas através das estratégias pessoais, processode ensino e aprendizagem na concepção de construção de conhecimento efuncionalidade do planejamento na prática pedagógica.

CONSTRUINDO A FORMAÇÃO CONTINUADA

Nosso grupo buscava encontrar soluções para as dificuldades dos alunosem ler e interpretar situações-problema nas aulas de matemática. Ao nosdebruçarmos sobre o estudo dessas questões, descobrimos outros problemasque precisávamos solucionar como, por exemplo, ligado ao projeto políticopedagógico, a concepção de ensino, aprendizagem e ao planejamento.

Nesse sentido, nas reuniões, as discussões com o grupo favoreciam queemitissem suas opiniões relatassem suas aulas e a partir daí, refletimossobre as dificuldades de aprendizagem das crianças. Assim, nos deparamoscom um problema que não é responsabilidade somente das professoras,mas envolve o contexto da escola, seu projeto pedagógico, que explicita osprincípios didáticos partilhados, na comunidade escolar. Durante a reuniãode 5 de novembro de 2004, quando estávamos discutindo sobre adificuldade dos alunos da 3a série em compreenderem a multiplicação,lançamos uma pergunta ao grupo sobre a proposta da escola:

V - Mas é isso que eu quero entender. Se você tem um programa e aulas.Se é reforço?

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3a - Mas aí...

V - Não deveria abarcar a dificuldade?

3a - A gente não tá fazendo esse tipo de reforço. A gente tá fazendoassim. Antes a gente pegava o programa da outra escola e trabalhavaem cima daquele programa. O programa da 3a série, o programa da 4a

etc. E trabalhamos com ele.

Ao questioná-las sobre a meta da escola, percebemos que elas estãoseguindo um programa da escola regular, desconsiderando o fato de seruma escola de reforço e que deveria dar ênfase no processo de aprendizagemdos alunos, buscando atender às dificuldades encontradas na sala. Noentanto, elas esperavam que o processo de aprendizagem dos alunos seadaptasse ao ensino, não havendo um equilíbrio entre os conteúdosdesenvolvidos e o processo de aprendizagem do aluno. Desconsiderando ocaminho de aprendizagem que o aluno estava percorrendo e em funçãodisso, não propunham atividades que permitissem a ele avançar do patamarde conhecimentos que já conquistou para outro mais evoluído.

Com a pergunta “aqui não é uma escola de reforço?”, buscávamosrefletir com o grupo sobre o processo de ensino e aprendizagem, as condiçõesespaço-temporais que a escola está inserida, a influência dela nasdificuldades de aprendizagem das crianças. Enfim, os problemasenfrentados pelo professor não se limitam à sala de aula. Exige olhar arealidade de uma forma crítica, buscando perceber os elementos quemantêm sua prática tal como é, como também, anunciar outros caminhosa partir dessa tomada de consciência. Para Freire (1980), é assim que ohomem integra-se ao seu contexto, reflete sobre ele e se compromete, constróia si mesmo e chega a ser sujeito. Esse encontro acontece através do diálogo,no qual a reflexão e ação são inseparáveis, convidando os homens a secomprometerem com a realidade. Ou ainda nas suas palavras, “a realidadenão pode ser modificada, senão quando o homem descobre que émodificável e que ele pode fazê-lo” (FREIRE, 1980, p. 40).

Como esse problema não era de responsabilidade somente dasprofessoras, convocamos a coordenadora e a diretora para discutirmossobre o fato das professoras estarem seguindo os conteúdos propostos nocurrículo de cada série sem observar a aprendizagem dos alunos. Isso ocorreupor considerarmos que o processo de formação abrange todos da escola,

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não adianta uma professora mudar suas concepções e práticas se a direçãoe a coordenação não acompanharem o processo de formação. Nesse sentidoconcordamos com as idéias de Nóvoa (1995) e Rui Canário, para os quaisa formação consiste em mudar as escolas e os professores ao mesmo tempo.Para Canário, a escola pode ser comparada a um quebra-cabeça, semudarmos uma peça só, ela poderá não se encaixar novamente. Rui Canário,em 2000, prestou assessoria as Faculdades Jorge Amado, cujo material foigravado e transcrito para uso interno da Instituição.

Nesse encontro, evidenciou-se que a coordenadora percebia que a propostaque desenvolvida não contribuía para a construção de conhecimentos pelosalunos. Ela indicava dois pontos para a melhoria dessa situação: a formaçãodo professor e a construção de projetos.

Embora reconheçamos que a formação seja um dos fatores para o sucessoda aprendizagem dos alunos, não é único. O contexto educacional, o projetoeducativo explícito e compartilhado pelos membros da escola, quadroestável de professores, planejamento coletivo do trabalho e avaliaçãocontínua são fatores que contribuem para uma educação de qualidade.

A proposta da coordenadora era de que os professores elaborassem osprojetos de aprendizagem. No entanto, a construção desse recurso didáticoe sua utilização não garantem que o professor saia do lugar comum, poisnão podemos classificar uma prática de construtivista ou tradicional somentepela utilização de um material, mas pela forma “como” é proposto e se elereúne certas condições, a exemplo dos alunos que têm problemas a resolvere decisões a tomar em função do que se propõem produzir ou no casoonde a tarefa garante a circulação das informações, os alunos põem emjogo o que sabem e pensam sobre o conteúdo (WEISZ, 2000). Ou seja, osprojetos de aprendizagem podem proporcionar ou não a contemplaçãodesses itens, mas dependerá do saber fazer do professor, e de como realizá-lo na sala de aula, pois esse saber não é aplicação de conhecimentos“teóricos” sobre como se trabalha com projetos, mas se desenvolve naprática cotidiana.

Além de refletirmos sobre os aspectos macros ligados ao problema quebuscávamos resolver, tivemos encontros que focavam no objeto. Assim, emum dos encontros, as professoras começaram a refletir sobre as intervençõese orientações realizadas para ajudar o aluno a compreender as situações-problema. Veja a discussão:

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1a - Eu falo assim vamos supor: haviam 4 pássaros num galho. Saíramdois. Quantos ficaram? Eles mesmo perguntam: Pró é de mais ou demenos?

Voaram......( dando ênfase) Quantos ficaram?

3a - Voaram... ( risos porque ela deu ênfase). Tem a dica.

1a - Aí eu sei.... e fez o problema. Ana tinha 8 balas. Chuparam 3 (fazendoo gesto com a mão). Mãe como eu sei? A mãe repete: Ana tinha 8 balas.Chuparam (repete o gesto) quanto ficaram? Eles perguntam e a gentefica assim... né? Mostrando a eles, não querendo dizer.

Outro relato:

2a - Eu boto assim, oh Vânia. Eu deixo eles fazerem. Se eles têmdificuldade. Mexe com um, pergunta pro outro. Eu não sei fazer, eunão sei fazer. Vamos ler o problema, vamos ver a situação e vamos colocarno quadro. Fulano tinha tanto. Quebrou 4. Aí eles dizem...bote tanto.Bote o número. Aí, ganhou não sei quanto. Eu pergunto: como façoagora? Esse número bote embaixo desse. Pronto, pode resolver?(perguntada prof.) a conta? Prof - Vamos resolver agora? Cç - Falta o sinal. Prof- Qual é o sinal? Cç - Aí, eles dizem. É de mais, é de menos.É o tracinho.Prof - Eu vou lá e coloco. Na hora de resolver, aí que o bicho pega.Como é que eu faço? 6x4 o que eu boto aqui?

V - Aí, nós estamos no cálculo. E pra fazer resolver essa pergunta: se agente ta com a intenção de ler pra aprender a ler. Essas estratégias que agente tá usando não está ensinando o menino a ler. A gente tá dando eos meninos vão continuar com a deficiência em matemática (5/11/04).

A professora 3a série mostrou-se inquieta porque percebeu que induziaos alunos na resolução dos problemas, mas não sabiam o que fazer.Retomamos a questão para o grupo, e a 1a série ao relatar a forma comotrabalhava com os alunos se deu conta que não os deixa ler as situações.

No relato da 2a série, notamos que a sua maior preocupação era que oaluno identificasse a operação, o tipo de sinal a ser utilizado e não emproporcionar que de fato entendessem o que estavam fazendo.

Nesse encontro, elas começaram a perceber que induziam a resposta doproblema, mesmo não tendo consciência de tal ação. As professoras ficaram

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angustiadas por “descobrirem” que as intervenções da forma que vinhamocorrendo não estavam favorecendo a leitura do problema pela criança.Buscamos aprofundar sobre essa questão, lendo um dos textos de Smole eDiniz (2001), no qual pudemos discutir as sugestões das autoras sobrecomo se desenvolve uma aula de leitura com as crianças. Elas sugerem queos alunos contem o problema com suas palavras, verifiquem se havia algumapalavra desconhecida, buscando a pergunta e do que se trata o problema.Enfim, questionando e discutindo a situação com a turma para que acompreendessem e não induzindo uma resposta. Logo, cabe ao professorquestionar as autoras do texto, “será que isso é viável?”, “será que eu estoude acordo com as autoras?” Essa é a postura de um educador, ler as palavrasdo texto, analisando o contexto, verificando se essa forma de trabalhar oproblema vai tornar o aluno autônomo, ou se ele continuará esperandoque indiquem como resolverá a situação. Exercemos nosso direito, quandoquestionamos os autores estudados, buscando entender o motivo de suascolocações, de sua concepção de educação, enfim, buscando adentrarcriticamente no tema.

Em outro encontro, fomos aprofundando sobre o tema nos debruçandosobre as análises das estratégias pessoais que é a oportunidade que o professordá a criança de demonstrar como pensou e entendeu a situação para resolvê-la. Diante de um problema, ela pode resolver utilizando o desenho de pauzinhos,objetos ou os números e algoritmos. Cabendo ao professor analisar essas diversasformas e intervir para que as crianças avancem nas suas estratégias.

Uma das análises que fizemos foi de uma estratégia inventada por quatrocrianças para resolver a operação 51x34, partindo de uma situação-problema. As crianças multiplicaram 51x10, obtendo 510, realizaram essaoperação três vezes. Depois, multiplicaram 51 x 4, obtendo 204 e finalmentesomaram todos os produtos chegando ao valor 1734.

Destaco esse trecho da transcrição, porque a análise feita pelasprofessoras demonstra que não é tão simples e nem fácil olhar sob aperspectiva do outro, percebendo como ele vem pensando para construirseus conhecimentos. Muitas vezes, estamos tão automatizados com umaúnica forma de resolver as situações, que quando nos deparamos com odiferente, ele nos causa estranheza. Entretanto, se houver umadisponibilidade em aprender com alunos, poderemos aguçar nosso olhar eacompanhar o raciocínio utilizado por eles. Veja a discussão:

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3a - ...Ele fez 10 vezes 51 e depois ele colocou 510, 510, 510.

V - Por que? O que ele pensou?

3a - Ele pensou que era trinta vezes que era a dezena, né?

V - Certo.

3a - Aí faltaria 4 vezes, que ele multiplicaria esse (51) que ele somou denovo. E ele encontrou essa soma. Ele somou e deu o total daqui, né?Foi muito mais complicado pra resolver do que eles fizessem isso daqui?

V - Não.

3a - Você acha que não?

Assim, a professora olhou com a lógica de um adulto que já domina asoperações, por isso não compreendia os conhecimentos demonstrados peloaluno. Na perspectiva da criança, resolver pela estratégia é muito natural,pois traduz o caminho que pensou para encontrar a resposta viável para oproblema. Através da análise desses registros, concluímos que o alunodecompôs o trinta e quatro, utilizou a propriedade distributiva,demonstrando que domina conhecimentos matemáticos que são a basepara o cálculo escrito.

Assim, nos encontros buscávamos compreender as respostas das crianças,mesmo que a princípio essa análise causasse estranheza pela maneiraincomum apresentada, afinal não aprendemos dessa forma e ela difere damaneira convencional e tradicionalmente exigida pela escola.

Discutimos a importância do professor não deixar a criança semprecom as mesmas estratégias pessoais. Cabe a ele desafiar os alunos a buscarestratégias mais elaboradas, socializando-as no quadro, discutindo comeles, como cada um pensou, e solicitar maneiras diferentes de resolver aquestão. Para isso, é necessário que o docente planeje suas ações para queos alunos alcancem os objetivos educacionais e a escola cumpra a suafunção social. Para isso, nós educadores, precisamos ter clareza do atopolítico que exercemos, nas palavras de Freire (1999, p. 23),

ter clareza em torno de a favor de quem e do quê, portanto contra quem econtra o quê, fazemos a educação e de a favor de quem e do quê, portantocontra quem e contra o quê, portanto contra quem e contra o quê, desenvolvemosa atividade política.

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O educador não é neutro, isso não significa ser espontaneísta oumanipulador no processo de construção do conhecimento, mas que assumauma opção e seja coerente com ela na prática.

Selecionei alguns momentos dos encontros para esse artigo, na dissertaçãoo leitor poderá acompanhar o percurso do grupo.

Durante a pesquisa, as professoras foram tomando consciência do papeldelas como educadoras capazes de intervir e recriar o processo de ensino.No início, apesar da insatisfação da professoras com os resultadosapresentados pelos alunos, apontava-os como os únicos responsáveis.Atualmente, elas descobriram que as intervenções e propostas de trabalhosão fundamentais para que as crianças possam avançar do patamar emque se encontram para um nível mais avançado.

Isso ficou evidenciado na entrevista final, através dos depoimentos dasprofessoras que demonstraram uma tomada de consciência dos pontosque precisam ser investidos e modificados. Cabe destacar que não podemosavaliar até que ponto esses conhecimentos se efetivaram na prática, umavez que não observamos o trabalho de todas as professoras, somente da 3a

série. Essas modificações, não ocorrerão repentinamente, requerem esforço,reforço, suporte e atenção com todas da equipe.

Esse incentivo, as professoras poderão solicitar da equipe administrativada escola, uma vez que demonstraram essa abertura participando dosencontros, possibilitando a reflexão sobre a gestão da escola, suas metas epropostas. Chegamos a conclusão de que se o projeto pedagógico nãoestiver bem definido, cada um poderá agir conforme suas concepções,interferindo no trabalho de todos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar os dados da formação desenvolvida durante este estudo,pudemos observar de perto a multiplicidade de fatores que envolvem aformação, desenvolvimento e atuação dos professores. Percebemos que areflexão sobre a ação pedagógica permitiu às professoras a mútuaarticulação entre teoria e prática, originando uma atuação voltada para aconstrução de conhecimento. Os saberes teóricos mesclaram-se com ossaberes da prática, sendo re-significados e reinterpretados de acordo comsua realidade.

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Um dos fatores que contribuiu para essa re-significação foi o fato departimos da necessidade apontada pelo grupo, emergindo daí, o conteúdoda formação. Assim, o conteúdo não era transmitido para elas, mas umobjeto construído pela equipe.

No decorrer da pesquisa, evidenciou-se que a reflexão sobre a ação nãoé algo simples e nem rápido de ser construído, requer que o educadortenha espaço, tempo e parcerias com as quais possa compartilhar suasangústias, propostas e atividades. De acordo com os dados analisados,consideramos que houve um espaço respeitoso no qual as professoras sesentiram seguras para socializarem a sua prática, tendo disponibilidade eabertura para se debruçarem sobre a própria prática tendo-a como objetode reflexão. “Com a certeza de que sabiam algo e de que ignoravam algo eque se juntavam com a certeza de que poderia saber melhor o que já sabiame conhecer o que ainda não sabiam” (FREIRE, 1996 p. 153).

Este estudo nos deu indicadores de que a realização de projetos, envolvendoprofessoras e pesquisadores, pode contribuir para o desenvolvimentoprofissional das professoras que deles participam. Contribuindo também,para a ampliação do conhecimento da pesquisadora, uma vez que a cadaencontro tínhamos que construir uma proposta para que atendesse asdificuldades apresentadas pelos alunos. Estávamos constantemente avaliandoas estratégias formativas que seriam mais efetivas para as professoras com asquais estávamos trabalhando, respeitando seu momento e sua trajetóriaprofissional de cada qual.

Percebemos, também, que as professoras estão “sedentas” porencontrarem caminhos para os desafios enfrentados na sala de aula, sendomuito receptivas e comprometidas quando encontram um grupo deformação voltado para escutá-las, apoiá-las, acolhê-las em suas inquietações.

Por outro lado, é essencial que tenham melhores condições de trabalhoque possibilite a reflexão e a pesquisa. A escola se constitua em um espaçodemocrático de análise permanente de suas práticas com seus pares e como grupo, como também, requer uma política que transforme as jornadasem integrais elevando o salário a patamares dignos de um profissional daeducação.

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REFERÊNCIAS

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______. Pedagogia da autonomia, saberes necessários à prática educativa.São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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______. Extensão ou comunicação? 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,2002.

NÓVOA, Antonio (Org.). Os professores e sua formação. 2. ed. Lisboa(Portugal): Dom Quixote, 1995.

SCARPA, Regina. “Era assim, agora não”... uma proposta de formação deprofessores leigos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

SMOLE, Kátia Stocco; DINIZ, Maria Ignez (Org.). Ler, escrever e resolverproblemas: habilidades básicas para aprender matemática. Porto Alegre:Artmed Editora, 2001.

TARDIF, Maurice. Os professores enquanto sujeitos do conhecimento:subjetividade, prática e saberes no magistério. In: CANDAU, Vera Maria(Org.). Didática, currículo e saberes escolares. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A,2002.

WEISZ, Telma. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo:Ática, 2000.

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Cidadania na formação doprofessor: desvelando sentidos efinalidades da prática educativa Sandra Regina Soares

As tensões provocadas pelo caráter cada vez mais multiculturale multirracial da população de quase todos os países ditosdesenvolvidos, o ataque às estruturas do Estado de Bem-EstarSocial pela política neoliberal e a perda de credibilidade dasinstâncias da política instituída são alguns dos aspectos centraisque têm suscitado a intensificação de estudos (BERNARD,1997; BRUBACKER, 1997; CAPELLA, 2004; CONSTANT,1998; COUTURE, 2000, etc.) e debates sobre a questão dacidadania, animados por questões filosóficas acerca da posiçãodo sujeito na sociedade contemporânea. No Brasil, a cidadaniatambém emerge como um tema de crescente interesse, variandoo enfoque dos estudos de acordo com o período histórico emque esteja sendo avaliado. Por exemplo, no período após o fimda ditadura militar, na década de 1980, as preocupações dosestudiosos estavam voltadas principalmente para a ausência dosdireitos políticos. Em outros contextos, como aquele da adoçãomais ofensiva pelo governo brasileiro de uma política neoliberal,os autores orientaram suas reflexões sobre as desigualdadessociais, sobre a relação entre cidadania, democracia eparticipação e sobre a relação entre educação e cidadania.

No bojo desses estudos, diversos autores, entre os quais, Lefort (1987apud TELLES, 1994), Ferreira (1993) e Chauí (2000) revelam a existência

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de uma tendência do povo brasileiro à aceitação resignada. Essa tendência,sinônima de falta de consciência de ter direito a ter direitos, de ser um cidadão,caracteriza-se pela forma como a sociedade civil percebe e age, em relação àsdesigualdades e à falta de respeito aos direitos. Como registram Ferreira(1993) e Chauí (2000), de uma maneira geral, essa situação, na qual seencontra a maioria da população brasileira, é percebida com compaixão,mas, sem indignação, isto é, sem reação coletiva e efetiva para transformá-la.

A educação formal, em nosso ponto de vista, poderia constituir uminstrumento importante no sentido de romper com o círculo vicioso datendência à aceitação resignada ou da falta de consciência da cidadania,todavia, diversos estudos apontam para a direção contrária. No que concerneà formação de professores no contexto universitário, Arroyo (2001), Ribeiro(2001), Rinesi (2001) e Silva (2001) indicam a predominância de umaconcepção de cidadania intelectualista e cognitivista, centrada no discursosobre cidadania sem a possibilidade do seu exercício efetivo na sala deaula. O currículo, baseado nessa concepção, não conseguiria preparar osprofessores para agir de maneira adequada, por exemplo, face aospreconceitos que se manifestam, cotidianamente, nas relações interpessoaisque ocorrem, na sala de aula. Acrescentam os autores que a universidadepública adota uma lógica orientada pelas necessidades do mercado, e aconseqüência disso é o afastamento da universidade de uma perspectiva deformação de cidadãos autônomos. Além disso, as práticas educativas,segundo pesquisas diversas (ABUD, 1999; GRIGOLI, 1990; OLIVEIRA,1996; TANCREDI, 1995), privilegiam a transmissão de um saber livresco,sem espaço para elaboração dos conteúdos pelos estudantes, a avaliaçãotradicional e posturas autoritárias do professor na relação com os estudantes.

Em resumo, os estudos sobre a formação dos professores, na universidadeindicam a existência de uma ligação entre as relações educativas e a formaçãopara a cidadania dos futuros professores, e, que as práticas educativas podemfavorecer ou tornar difícil a formação da consciência e de atitudes cidadãsentre os estudantes, futuros professores.

REFLETINDO SOBRE OS SENTIDOS DE CIDADANIA

O conceito de cidadania reaparece no fim da Idade Média, junto com anoção de individualismo, associado à idéia de liberdade e igualdade e à

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luta liderada pela burguesia contra os privilégios da nobreza feudal, contraa hierarquia e contra a imposição da religião. Assim, o conceito modernode cidadania é o resultado da articulação, mais ou menos conflituosa,entre o liberalismo e um esforço de adaptação da política e do conceito decidadania dos antigos1 (COUTURE, 2000). A retomada desse conceito,simbolizada pelas revoluções dos Estados Unidos e da França, coincide,portanto, com o fim dos privilégios feudais e dos Estados Confessionais e,ainda, com a constituição do Estado-nação e de sua maneira de governarbaseada na democracia representativa (BRUBACKER, 1997; HABERMAS,1998; SCHNAPPER, 1991). Apesar de ter se constituído historicamentecomo um princípio universal e de possuir certos traços comuns nassociedades ocidentais modernas, não é um conceito unívoco. Os diferentessentidos que lhe são atribuídos, em cada Estado-nação, provêm de condiçõeshistóricas, políticas, econômicas e culturais próprias a cada contexto e dasrelações de força que aí se estabeleceram entre os grupos sociais em conflito(SCHNAPPER, 1991).

A cidadania, na concepção de Constant (1998), revela-se como umconceito complexo e multidimensional, ao mesmo tempo, uma realidadede ordem legal, política e social que permitiria orientar o pertencimento àvida coletiva, e um ideal. O autor destaca quatro concepções de cidadaniaque emanam dos estudos: a cidadania como manifestação da identidadenacional; a cidadania como estatuto jurídico caracterizado pelos direitos(civis, políticos e sociais) descritos por Marshall (1963 apud CONSTANT,1998); a cidadania como um conjunto de papéis sociais ligados àparticipação ativa na vida da cidade e a cidadania como conjunto dequalidades morais.

A cidadania também pode ser compreendida, conforme sugere Pagé(2001, p. 41), como “a maneira que as pessoas têm de se conceber comocidadãos”. Em função dessa idéia, ele apresenta quatro concepções: a) acidadania liberal, que enfatiza a dimensão jurídica dos direitos do cidadão,em especial os direitos civis e os sociais, delegando a participação ativa navida da cidade aos especialistas, de forma que o cidadão liberal fique livrepara agir na esfera econômica e privada; b) a cidadania deliberativa

1 O conceito de cidadania na Antiguidade grega e romana era caracterizado por uma participação direta dos cidadãos– homens livres – nas decisões políticas, o que demonstra o caráter essencialmente político deste estatuto, epela ausência de igualdade de direitos, na medida em que nem os escravos nem as mulheres podiam participardesse processo.

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pluralista, que incorpora o regime de direitos, mas valoriza a participaçãoativa em beneficio dos interesses comuns; c) a cidadania civil diferenciada,que se configura como uma variação da cidadania liberal, na qual oscidadãos têm uma frágil participação política, em contrapartida têm umaforte identificação com pólos identitários infra e supra estatais; d) acidadania nacional unitária, que preconiza a subordinação dos cidadãosao modelo identitário majoritário.

A cidadania liberal é a mais difundida, a despeito das variações na formade sua concretização em cada Estado-nação. Essa concepção de cidadaniatem como pano de fundo uma contradição e uma tensão entre a igualdadeideal e a desigualdade concreta, entre a igualdade do direito e a desigualdadeda fortuna. Ela sustenta a ideologia do individualismo radical e depende,fortemente, do conceito de propriedade privada (BARBER, 1997). No sentidosocial e econômico, a desigualdade concreta diante da igualdade formal temsido minimizada pelo estado de bem-estar social o qual, no novo contextomundial, é objeto de ataques sistemáticos da parte dos neoliberais e vive umprocesso de enfraquecimento, que indicam a tendência a um agravamentodas desigualdades sociais e a fragilização da cidadania na sua dimensãosocial. No sentido da participação política, a cidadania freqüentementeapresentada como uma ação política intimamente ligada ao engajamentodos cidadãos na vida pública é, na prática, restrita ao momento do voto. Asociedade, por sua vez, é concebida como constituída de uma coleção deindivíduos isolados que, simbolicamente, no momento “sagrado” do voto,na cabine isolada, tornam-se membros de uma “comunidade de cidadãos”,fonte de soberania e de legitimidade política para o Estado-nação(SCHNAPPER, 2000). A importância progressivamente atribuída ao voto,nas sociedades democráticas modernas, revela, como sugere Garrigou (1988apud SCHNAPPER, 2000, p. 144), que na sua essência, a cidadania liberalé ”um princípio de expressão eleitoral no qual o indivíduo é a única unidadepertinente em detrimento de qualquer outra”. Assim conduzida, tem-se umacidadania mais passiva que ativa, mais potencial (referência a um estatutoabstrato) que real (BARBER, 1997), em outros termos, uma cidadaniabaseada nos direitos jurídicos do cidadão e não em seu poder político(CAPELLA, 2004).

No contexto da globalização e do neoliberalismo, como sugere Bernard(1997), a supremacia triunfante da economia e do poder financeiro tende

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a definir a cidadania pela atitude do indivíduo de produzir, consumir einvestir. Esse contexto aponta, ainda, para o esvaziamento do poder doEstado com a transferência de decisões da esfera pública para a esferaprivada, que passa a constituir um novo poder supra-estatal, de carátereconômico, que impõe políticas que favorecem o monetarismo, adesregulamentação, o comércio livre, o fluxo de capital desimpedido e aprivatização em massa (CAPELLA, 2004). Em síntese, a cidadania caminhapara um esvaziamento total de seu sentido social, político e nacional, e ocidadão tende a ser transformado em consumidor, peça passiva de umaengrenagem, instrumento sem possibilidade ou canal de intervenção numsistema cujo controle é mantido por agentes econômicos e financeiros.

Esse momento de crise por que passa o próprio conceito de cidadania,em ressonância à crise que atravessa as sociedades democráticas ocidentaispode ser gerador de visões críticas e inovadoras, e de uma nova concepçãode cidadania verdadeiramente democrática e plural, conforme apontam osdefensores da cidadania como construção social. Nesse sentido, esse conceitoparece não estar esgotado, particularmente no Brasil onde, efetivamente, oestado de bem-estar social não se consolidou. Assumida com um novosentido, a luta pela conquista da cidadania tem um grande potencial dedesmascaramento da política neoliberal, de mobilização, de organização ede articulação social capaz de contemplar a diversidade e a pluralidade,aspectos enfatizado nas análises mais atuais, que pretendem mostrar asmudanças advindas, dentre outros, do processo de globalização.

AS CONCEPÇÕES DE CIDADANIA NO BRASIL

A literatura brasileira apresenta, basicamente, duas concepções decidadania, as quais recebem diversas denominações. A primeira recebequalificativos como formalista, restritiva, passiva, excludente, tutelada,controlada, outorgada. A segunda é denominada de substantiva, ativa,estratégia de construção democrática. Neste estudo adotamos asdenominações: cidadania de direitos restritos e cidadania como construçãosocial.

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A CIDADANIA DE DIREITOS RESTRITOS

A concepção de cidadania de direitos restritos se expressa desde a primeiraConstituição da República Brasileira e foi fortemente inspirada, segundoModerne (1989), nos ideais liberais. Todavia, esses ideais foram adaptados aocontexto de uma sociedade marcada pela herança de três séculos de escravidão,por uma economia essencialmente agrícola orientada para a exportação epela predominância da família patriarcal. Os traços mais evidentes dessasociedade são: uma profunda desigualdade social, um débil grau de coesão ede articulação interna e uma forte subordinação ao Estado. A adaptação dosideais liberais a esse contexto provocou uma espécie de “esquizofrenia político-jurídica” das instituições, que consiste em proclamar fortemente o valor daregra e do direito no texto da lei e na prática ceder à tentação do autoritarismoe da medida de exceção (MODERNE, 1989). A cidadania de direitos restritospode ser definida como um conjunto de atributos formais reconhecidosjuridicamente como acessíveis a todos os cidadãos igualmente. Assim, elareduz a condição cidadã à esfera da lei (GENTILI, 2000). Segundo essaconcepção, a cidadania é outorgada e controlada pelo Estado. Na prática, odireito político se resume ao direito de voto e o povo é excluído das decisõespolíticas. Essa concepção tem como principais elementos constitutivos: anegação da noção de direitos, a negação do princípio da soberania política, ocivismo como subordinação e o autoritarismo social.

A CIDADANIA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL

A concepção de cidadania como construção social ganha contornosmais claros na primeira metade da década de 1980, ponto culminante dacrise da ditadura militar, momento em que a sociedade brasileira vive aretomada dos movimentos populares – das mulheres, dos negros, dosecologistas, etc. – , e dos trabalhadores rurais e urbanos (DAGNINO, 1994).Esses movimentos sociais fizeram emergir a consciência de ter direito a terdireitos e mostraram a possibilidade da constituição de espaços públicos“nos quais sobretudo a dimensão ética da vida social pode se constituirem uma moralidade pública através da convivência democrática com asdiferenças e os conflitos que elas carregam” (TELLES, 1994, p. 92). Emconformidade com essa concepção, a concretização dos direitos (civis,

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políticos e sociais) é a base fundamental da cidadania. Sendo isso umarealidade, o reconhecimento dos direitos ultrapassaria o aspecto formal dalei e se traduziria, na prática, de maneira igual para todos os cidadãos,independente das suas condições econômicas, sociais e raciais. Esses direitosseriam conquistados pela ação e pela luta social e política quotidiana,razão pela qual esta concepção atribui uma grande importância aos direitospolíticos e à participação ativa e direta, participação que impulsionaria aconquista de outros direitos, principalmente os direitos sociais (GENTILI,2000). Assim, como afirmava Freire (1978, p. 35),

A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanentebusca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. [...] Écondição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homenscomo seres inconclusos.

Pressupõe, como sugere o autor, a superação pelos oprimidos do “medoda liberdade”, e a expulsão da “sombra introjetada” dos opressores e dassuas pautas. Implica o preenchimento, do vazio deixado a partir dessaexpulsão, com outro conteúdo “o de sua autonomia. O de suaresponsabilidade, sem o que não seriam livres” (FREIRE, 1978, p. 35).

A cidadania como construção social enfatiza, portanto, a importânciada formação de valores e atitudes capazes de tornar os indivíduos cidadãoslivres, responsáveis, éticos, autônomos e participativos. Atitudes e valoresque se constroem nas relações sociais e não no contexto de práticas“educativas” prescritivas. Isto porque:

Um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a prescrição. Todaprescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentidoalienador das prescrições que transformam a consciência recebedora no que vimoschamando de consciência ‘hospedeira’ da consciência opressora. Por isto, ocomportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base depautas estranhas a eles – as pautas dos opressores (FREIRE, 1978, p. 35).

Nessa mesma perspectiva, Capella (2004, p. 164) se refere à “cidadaniabaseada nos poderes” de movimentos de solidariedade que atuam nodomínio público-voluntário capaz de sustentar e completar a limitada“cidadania dos direitos”. A novidade dessa “cidadania baseada em poderes”,que se espera possa emergir da “Agora pública voluntária e estável”,consistiria em não atribuir apenas a este último a tutela das necessidadessociais reconhecidas em público.

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Enfim, constituem os principais pontos de defesa da cidadania comoconstrução social: o direito a ter direitos; novas formas de sociabilidade ede relações entre o Estado e a sociedade; a participação ativa e direta; aautonomia, o respeito à diferença e às identidades, a solidariedade, adesobediência aos poderes totalitários como valores e atitudes fundamentaisdo cidadão crítico, participativo e ético.

Neste estudo, assumimos como pressuposto, em consonância com osautores que fundamentam a concepção de cidadania como construçãosocial, que tanto a consciência de cidadania (consciência de ter direito a terdireitos) quanto o usufruto dos direitos estabelecidos juridicamente aindaestão por ser conquistados pela maioria da população brasileira, mediantea ação consciente e solidária dos movimentos sociais, materializando assima cidadania dos direitos e a “cidadania baseada em poderes”. A educaçãopode contribuir efetivamente com a construção desse novo sentido decidadania graças, especialmente, ao compromisso político-pedagógico dosprofessores, traduzido em práticas educativas voltadas para o desenvolvimentointegral e a autonomia dos alunos e para o florescimento da solidariedadeentre eles (FREIRE, 1998).

A reflexão sobre como a escola e a formação de professores podemcontribuir para a construção da consciência de cidadania como construçãosocial pode ser facilitada pela discussão do conceito de “relação com osaber” do aluno, pois, a depender do tipo de “relação com o saber” que osujeito estabelece, estará se construindo como autor de sua própria históriaou, ao contrário, sendo conformado como um sujeito passivo, heterônomo,subserviente.

SOBRE OS SENTIDOS DA NOÇÃO DE “RELAÇÃO COM O SABER”

De início, é importante entender que a relação com o saber de um sujeitocontempla, como nos sugere Larose e Lenoir (1995), as representaçõesevocadas sobre o que é saber e, ao mesmo tempo, as formas de acesso a essesaber. Em outros termos, a noção de “relação com o saber” remete à maneirapela qual o ser humano vivendo em sociedade entra em relação com o reale atribui um sentido à realidade que o impacta.

A “relação com o saber” do aluno tem sua matriz construída no seio dafamília, através do sistema de expectativas e do jogo de atitudes que esta

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estabelece com a instituição escolar. Faz parte desse processo de construçãoo lugar e a natureza dos livros na casa, a existência ou não de atitude deleitura, a estimulação da criança à leitura, a visita da família a museus,bibliotecas, etc. Essa relação é também influenciada pela mídia nas suasdiversas formas (escrita, audiovisual ou visual). Não se trata de uma relaçãorígida e estanque, portanto, a educação formal pode e deve contribuir parasua transformação ou manutenção mediante as experiências concretas nasala de aula, na convivência com os colegas e com o professor, que tambémtem uma relação própria com o saber. No dizer insistente de Freire (1998),o professor, além de respeitar os saberes do aluno, deve promover,sistematicamente, a discussão sobre a razão de ser desses saberes e seusnexos com os conteúdos ensinados, “Por que não estabelecer uma necessária‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e aexperiência social que eles têm como indivíduos?” (FREIRE, 1998, p. 24).

O CONCEITO DE SABER

J. M. Monteil (1985 apud CHARLOT, 1997) estabelece distinção entreinformação, conhecimento e saber. A informação é um dado objetivo exteriorao sujeito que pode ser comprada e estocada em um banco de dados. Oconhecimento é o resultado de uma experiência pessoal ligada à atividadede um sujeito dotado de qualidades afetivo-cognitivas, nesse sentido, eletem um caráter subjetivo e intransmissível. O saber, apesar de ter um caráterobjetivo, supõe uma apropriação (da informação) pelo sujeito assim comose verifica no processo de conhecimento. Mas, de acordo com esse autor, osaber é uma forma de conhecimento livre dos aspectos dogmáticos quetendem a se associar à subjetividade. Dandurant e Ollivier (1991 apudLAROSE; LENOIR, 1995, p. 56) distinguem, também, conhecimento esaber, termos que, segundo eles, são freqüentemente confundidos. Para essesautores, o conhecimento, compreendido como toda apreensão simbólicada realidade, é uma noção mais ampla que aquela de saber. Este últimosupõe uma apreensão mais restrita do real “que obedece a racionalidadecientífica e é submetido a procedimentos definidos de verificação; ou ainda,a noção de saber é empregada na medida em que ela remete a conhecimentosmais próximos da prática e tornam-se, no limite, o equivalente de saber-fazer” (DANDURANT; OLLIVIER, 1991 apud LAROSE; LENOIR, 1995

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p. 56). Em resumo, o saber supõe uma apropriação, uma construção pessoaldo sujeito. Todavia, é importante considerar que existem diferentes formasde ter acesso ao saber, ou seja, várias maneiras de se promover a relação doaluno com o saber.

Segundo Lenoir (2001), é possível afirmar que o saber pode ser oresultado de quatro concepções de “relação com o saber”: revelação,contemplação, desvelamento, descoberta e apropriação construtiva. Astrês primeiras concepções são expressões, com nuances diferentes, daepistemologia positivista do saber e repousam sobre a convicção que osaber pré-existe ao ser humano e a existência lhe é independente. Essaepistemologia supõe, para o contexto educativo, que a aprendizagem sejaconcebida, exclusivamente, como um processo de internalização de objetosde saberes, estabelecidos de forma heterônoma. O saber reduz-se a umconjunto de bens de consumo e os alunos tornam-se, ao mesmo tempo,consumidores e receptáculos do saber. E o professor, enquanto portador dosaber, pode apresentá-lo em porções, de forma fragmentada.

A quarta concepção de “relação com o saber” aparece como alternativaface às concepções anteriores. Refere o saber como o resultado de umaprodução humana, como uma construção realizada por um sujeito vivendoem sociedade. Essa concepção repousa sobre uma epistemologia de tipodialética e construtivista. No contexto educativo, essa epistemologiaconcebe que o acesso do aluno ao saber se realiza mediante a apropriaçãoativa, processo que implica assimilações e acomodações do novo, supondo,freqüentemente, rupturas com as representações iniciais. Essa construçãodo sujeito pode se fazer, grosso modo, de duas formas. A primeira, atravésdo ensaio e erro empírico realizado pelo sujeito, sozinho ou em grupo,mediado por procedimentos de investigação espontânea, configurando umtipo de ensino baseado em métodos de “auto estruturação cognitiva” esobre um modo de intervenção estimuladora e desafiante do professor. Asegunda forma se produz mediante um processo de objetivação cognitivamediada por procedimentos de caráter científico e sustentado ativamentepelo professor. Nesse caso, o ensino é baseado em métodos de“interestruturação cognitiva”, no qual o formador tem uma função demediação finalizada, temporária e limitada.

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“RELAÇÃO COM O SABER” COMO RELAÇÃO CONSIGO MESMO

Analisar a “relação com o saber”, como afirma Charlot (1997, p. 60), éestudar o sujeito frente à necessidade e mesmo à obrigação de aprender

[...] para se construir, num triplo processo: de hominização (tornar-se homem),de singularização (tornar-se um exemplar único de homem) e de socialização(tornar-se membro de uma comunidade, com a qual se compartilha valores eonde se ocupa um lugar).

Essa autoconstrução parece ser resultante do esforço natural de todosujeito para dar sentido a seu contexto e à sua própria história. Atravésdesse processo criador de saber, “o sujeito toma consciência de sua ação ede seus sentimentos, explica para si mesmo os determinantes objetivos eafetivos do seu entorno, e tendo em conta sua percepção do real, seu lugar,sua posição, o sujeito determina sua ação” (BEILLEROT, 1989, p. 194).

Essa tomada de consciência permite, ao sujeito, reconhecer-se e afirmaro que sabe, o que pensa e o que faz, a partir da apropriação consciente dosaber que decorre de sua própria experiência. Assim, a questão fundamentalé a possibilidade de apropriar, ao máximo, o saber à sua experiência,independente do valor intrínseco de seu conteúdo. A relação do processocriador de saber com o “sabido” é mais importante que apenas o “sabido”do qual sairiam respostas ou soluções. A “relação do saber” como processocriador permite, ao sujeito, ultrapassar a reificação e a fragmentação dascoisas que ele sabe. Permite, enfim, sua liberdade de ação, impedindo queele se torne um objeto manipulável pelos outros e por ele mesmo, ou seja,pelo seu inconsciente (BEILLEROT, 1989). Nesse processo, desempenhapapel importante a curiosidade e a criticidade. A curiosidade humana,entendida na perspectiva freiriana, como inquietação indagadora, comoinclinação ao desvelamento de algo, como procura de esclarecimento esinal de atenção e estado de alerta, é uma construção e reconstrução históricae social. A passagem da curiosidade para a criticidade, compreendida comocuriosidade epistemológica apoiando-se em métodos que possibilitam umaaproximação do objeto e conota achados de maior exatidão, não se dáespontaneamente. Assim, “uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica,insatisfeita, indócil” (FREIRE, 1998, p. 35-36).

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A “relação com o saber” como processo criador é uma forma deassegurar, ao sujeito, o papel de autor de sua própria história, superando aarmadilha da imposição de numerosas determinações que a noção diretadessa forma de relação inclui. Assim, se o sujeito não sabe toda a históriaque ele faz: ele guarda uma consciência, essencial, pois é a sua, do sentidode sua história (BEILLEROT, 1989). Com efeito, a “relação com o saber”,refere esse autor “torna-se capacidade de elucidação e de consciência naqual o desejo de saber é o desejo de liberdade” (BEILLEROT, 1989, p. 193),mesmo se essa elucidação não é completamente possível. E esclarece que,considerada como processo criador de saber, é uma relação necessária paracada um agir e pensar. Desenvolver a “relação com o saber” como umprocesso criador dos alunos supõe considerar o desejo de saber como motorda aprendizagem. Falar dela como processo criador em educação “é convirque os objetos de saber ensinados na escola devem ser investidos de desejopara serem apropriados” (DEVELAY, 1996, p. 45). Em outros termos, paraque haja apropriação do saber ensinado, o aluno deve estabelecer com essesaber uma relação afetiva e não unicamente cognitiva, isso significa sernecessário que esse saber faça sentido para o aluno. Fazer sentido equivaledizer que algo (uma palavra, um enunciado, um evento, etc.) tem, paraalguém, “relação com outras coisas de sua vida, coisas que ele já pensou,questões que ele se colocou” (CHARLOT, 1997, p. 64). Ademais, “aprenderfaz sentido em referência à história do sujeito, a suas expectativas, [...] àsua concepção de vida, à sua relação com os outros, à imagem que ele temde si mesmo e àquela que ele quer apresentar aos outros” (BEILLEROT,1989, p. 85).

Cabe lembrar que a origem do autoconceito, é social, portanto, asinterações com outros significativos são fundamentais na construção, deforma um tanto inconsciente, das apreciações sobre si mesmo, e que, na“relação com o saber”, a autopercepção e a autovalorização são essenciais.Assim, a expectativa positiva, a escuta atenta e empática, a abertura para odiálogo, o conflito cognitivo baseado na amorosidade são atitudes doprofessor que legitimam o desejo de aprender do aluno, fortalecem aconfiança na sua capacidade, portanto, o autoconceito positivo, quer sejana educação de crianças e jovens ou na educação de adultos (FREIRE,1998). Esses aspectos nos remetem à idéia da “relação com o saber” tambémcomo uma relação com os outros.

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“RELAÇÃO COM O SABER” COMO RELAÇÃO COM OS OUTROS

Ficou esclarecido anteriormente que a “relação com o saber” comoprocesso criador de saber sobre o real e sobre si mesmo tem como autorum sujeito de desejo. Charlot (1997), entretanto, sublinha que esse desejonão pode ser tomado numa perspectiva biologicista, associado à pulsão,associação que permite pensar o psiquismo sem referência a outro sujeito.Por tal razão, acrescenta esse autor: “não existe desejo sem objeto de desejo.Este objeto, em ultima análise, é sempre o outro” (CHARLOT, 1997, p. 53).Ademais, o desejo se constitui como tal, e assim faz sentido, para o sujeitoque está, ao mesmo tempo, “em busca de si e aberto ao outro e ao mundo”(CHARLOT, 1997, p. 55). Como enfatiza esse autor, é a condição humana,que se estabelece a partir da coexistência e da troca, que faz de um indivíduoum sujeito desejante e criador do saber sobre si e sobre o real. “Toda relaçãoconsigo mesmo é também uma relação com o outro, e toda relação com ooutro é também relação consigo” (CHARLOT, 1997, p. 52). É importantedestacar que o outro não tem, necessariamente, uma presença física, “É ooutro como forma pessoal da alteridade, como ordem simbólica, comoordem social [...]” (CHARLOT, 1997, p. 51). Isso significa que o processocriador de saber deve ser considerado como um processo individual e,também, coletivo, no mínimo como processo de grupo (BEILLEROT,1989). Em síntese, conforme Beillerot (1989), os microcosmos dos gruposconstituem uma interface inevitável entre a dinâmica individual e omovimento coletivo e social, tendo, então, uma importância fundamentalna vida do sujeito e na constituição de seu psiquismo, análise que conduziuFreud a definir o indivíduo como um grupo interiorizado. O processocriador de saber sobre o real e sobre si desenvolve-se, como vimosanteriormente, numa rede de relações na qual o aluno está em relação comoutros alunos. Assim, o professor preocupado em facilitar uma “relaçãocom o saber” como processo criador deve levar em conta que essa relaçãodepende, também, do contexto no qual se produz a relação com os outrosalunos. Razão por que lhe compete estimular o questionamento, a reflexãocritica sobre as próprias questões dos alunos, sobre as opiniões dos colegas(DAYRELL, 2001; FREIRE, 1998; SANTOMÉ, 1997). O relacionamentocom os outros implica relação com as regras de convivência e de civilidade.

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“RELAÇÃO COM O SABER” COMO RELAÇÃO COM AS REGRAS

As regras de convivência na sala de aula, em outras palavras, os direitose deveres de cada um, os limites, a disciplina, as regras de convivência nasala de aula devem ser construídos e reconstruídos coletivamente pelosestudantes e pelo professor (DEVELAY, 1996; FREIRE, 1998). Assim, asregras do grupo, o saber sobre o real, os valores e atitudes éticos na relaçãocom o outro se constroem, simultaneamente, na sala de aula, com a mediaçãodo professor. Esse processo contém um potencial educativo, igualmenteum potencial psicossocial, na medida em que se engajar na construção dasleis do grupo é conseguir renunciar ao narcisismo para entender e contemplaro desejo dos outros. Develay (1996, p. 81) avalia que a “única maneira deestar totalmente num grupo é poder se distanciar dele analisando os riscosda fusão”. As regras construídas coletivamente garantiriam as condiçõesfavoráveis à manutenção do sujeito são no grupo; elas constituiriam, então,uma terceira presença estrategicamente colocada na relação de cada sujeitocom os outros. Sem construção coletiva das regras, todo esforço educativotorna-se apenas condicionamento a regras prescritas de forma heterônoma,adverte o mesmo autor.

Coordenar o processo coletivo de construção das regras de convivência,na sala de aula, implica para o professor que, conscientemente ou não, seorienta pela concepção de cidadania como construção social, aceitar colocarem questão seus desejos, implica escutar e, concretamente, levar em contaos desejos dos alunos, tendo como meta a criação de um contexto favorávelpara aprender e viver em conjunto. Implica, ainda, aceitar “renunciar àrelação senhor-escravo e desenvolver uma relação educativa baseada emuma relação de confiança e não em uma relação de autoridade carismáticaou mesmo de competência” (DEVELAY, 1996, p. 111).

O professor consciente dessa verdade estará sempre empenhado emfacilitar as relações entre os estudantes, contribuindo para eliminar, atravésda reflexão e não do sermão e da prescrição do “dever-ser”, os problemasrelacionais que emergem no cotidiano da sala de aula (DAYRELL, 2001;FREIRE, 1998; SANTOMÉ, 1997). Importa ter em mente que a formaçãode sujeitos autônomos, no processo educacional pressupõe levar emconsideração a complexidade do grupo-classe, carregado de histórias edeterminado pela dinâmica da vida afetiva. Uma relação educativa que

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não perca de vista tais aspectos estará valorizando os estudantes comoportadores de direitos e, além de oferecer um lugar para sua expressão,estará possibilitando que se construam referências comuns nos domíniosdos valores e das práticas que os concretizam. Além disso, no processo deavaliação se acordariam aos estudantes oportunidades de auto-avaliação ede reflexão sobre suas aprendizagens cognitivas e suas atitudes (DAYRELL,2001; PIMENTA; ANASTASIOU, 2002), o que concorreria para aaprendizagem da responsabilidade, da tomada de decisão, enfim, daautonomia (FREIRE, 1998). Os estudantes seriam também convidados aparticipar da avaliação do professor, de sua metodologia e de suas atitudesna sala de aula.

Pode-se concluir com Develay (1996) que toda relação com o sabercomo processo criador é, ao mesmo tempo, “relação com o saber”, relaçãoconsigo mesmo, relação com os outros e relação com as regras/leis e com opoder. Nesse sentido, como sugere esse autor, para garantir umaaprendizagem significativa, o professor precisa compreender e, se for ocaso, contribuir para transformar o tipo de “relação com o saber” e derelação com as regras e com o poder que adotam seus alunos. Assim, uma“relação com o saber” que não seja, de início, uma relação de rejeição,mas, sim, de adesão, constitui uma condição prévia para a aprendizagem,e uma relação com a lei que não seja de submissão e, sim, de adesão, constituicondição indispensável para a aquisição do saber.

ENTRELAÇANDO AS REFLEXÕES SOBRE CIDADANIA E “RELAÇÃO COM OSABER”: À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os elementos sumariamente apresentados no decorrer desta exposiçãoindicam que cidadania adquire sentidos diferentes nas diversas sociedades(em decorrência das condições históricas, políticas, econômicas e culturaispróprias) e, também, no interior de cada sociedade, por parte dos diferentesgrupos e classes sociais, haja vista as duas concepções de cidadania, no casoda sociedade brasileira. Além disso, é um conceito complexo e multidimensional,que incorpora, de um lado, uma realidade material de ordem legal(estabelece direitos e, conseqüentemente, deveres), política (depende dasrelações de poder, atravessadas por interesses econômicos, e da correlaçãode força dos segmentos e grupos em conflito) e social (expressa-se na cultura

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e nas relações entre pessoas e grupos no convívio social). De outro lado,um ideal que estabelece um conjunto de atitudes e valores relacionados à,maior ou menor, participação dos indivíduos na coletividade, em prol dobem comum.

Em síntese, é um conceito que articula as dimensões: direitos,participação e valores e atitudes. Atitudes, por exemplo, em relação ao seucontexto, em relação aos outros, em relação às leis e em relação ao poder,que são construídas nas interações com os outros significativos, no seio dafamília, da escola e por influência da mídia.

A contribuição da educação formal, em especial da formação deprofessores, para a construção da consciência de cidadania, para a formaçãode um sujeito e cidadão crítico, participativo e ético pressupõe práticaseducativas que promovam a “relação com o saber” do aluno como umprocesso criador. Essa forma de relação, como vimos anteriormente, implica,além da relação do sujeito com o saber, a relação consigo mesmo, com osoutros, com as regras e com o poder. Assim, esses dois conceitos, emboracom amplitudes diferentes, o primeiro se situa no contexto macro dasrelações na sociedade e o segundo, embora transcenda o ambiente daeducação formal, na perspectiva tomada neste estudo, situa-se no contextomicro da sala de aula, mantêm entre si uma relação de interdependência ecomplementaridade.

As considerações que se vêm de fazer levam à compreensão de quepráticas educativas heterônomas, centradas na transmissão bancária deconteúdos acadêmicos fragmentados, dogmatizados e descontextualizadosdo ponto de vista social, político e histórico, sem as controvérsias e variaçõesjá produzidas sobre o fenômeno em questão e, ainda, desconectados dosdemais conteúdos da disciplina, da realidade e da prática educativa dosestudantes (GRÍGOLI, 1990; PIMENTA; ANASTASIOU, 2002;SANTOMÉ, 1997); baseadas em relações professor-aluno fortementehierarquizadas, autoritárias e destituídas de afetividade positiva seentrelaçam com a concepção de cidadania de direitos restritos e contribuempara a reprodução da tendência à aceitação resignada, da falta deconsciência de cidadania.

Em contrapartida, práticas educativas capazes de desenvolver uma“relação com o saber” de forma construtiva, criadora, crítica, reflexiva ecooperativa contribuem para a construção da consciência de cidadania,

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concorrem para a formação de valores morais e éticos necessários aoexercício da cidadania como construção social. Assim, a noção de “relaçãocom o saber” como processo criador contribui para a formação da cidadaniacomo construção social, pois, como sugere Beillerot (1989), situar o processocriador como definidor da “relação com o saber” é uma forma de assegurar,ao sujeito, o papel de autor de sua própria história.

A reflexão sobre os conceitos de cidadania e de “relação com o saber”ainda é muito restrita e incipiente no contexto da formação de professores,entretanto, consciente ou não, os formadores de professores têmrepresentações sobre esses conceitos. Representações compostas deinformações, crenças, atitudes, que são construídas e compartilhadassocialmente e, conseqüentemente, como formulou Moscovici (1976),orientam suas práticas educativas, pois, como sabemos, as convicçõesexistenciais, os valores e visões de mundo e de relação com o mundo, enfima concepção de ser social e de cidadão que se quer contribuir para formaré subjacente à escolha dos saberes a ensinar e das práticas adotadas quelevem os alunos a ter acesso ao saber. A discussão sobre esses conceitos esobre o entrelaçamento dos mesmos no contexto da formação de professorespode contribuir para o processo de reflexão crítica dos formadores deprofessores, na universidade, sobre suas próprias práticas, a partir doreconhecimento, como nos ensinou Paulo Freire (1998, p. 146), de que aeducação é um ato político e ideológico, o que nos convoca a encerrarestas reflexões com palavras de sua autoria, que trazem elementos sempreatuais para sustentar o sentido da cidadania com o qual trabalhamos aqui:“Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me umser condicionado, mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento”.

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O movimento nacional pelareformulação dos cursos deformação do educador: embates naconstrução de um projeto coletivode formaçãoZenilde Durli

CONTEXTUALIZANDO O SURGIMENTO DO MOVIMENTO

O Movimento pela Reformulação dos Cursos de Formaçãodo Educador foi organizado no mesmo período da crise queconduziria ao declínio e esgotamento da ditadura militar,iniciado com a posse de Geisel em 1974 e estendendo-se até otérmino do Governo Figueiredo em 1985. O próprio Regime,como destaca Germano (2005), em função das desavenças nobloco do poder, abre perspectivas à participação da sociedadecivil. Assim, a organização da sociedade civil em movimentossociais1 de diversas naturezas, a partir de meados da década de1970, conta inicialmente com a participação das classessubalternas e, de forma gradativa, com a incorporação dasclasses dominantes nas mobilizações contra a ditadura.

No quadro da crescente crise que se desenhava, o Estado redefine suametodologia de ação, deixando de se centrar na função de “domínio”,

1 Conforme Cunha (2005, p. 60), “com o nome de movimentos sociais têm sido chamadas as ações reivindicativasde segmentos de populações urbanas (principalmente) que se caracterizam por reagirem às desigualdades nadistribuição dos recursos públicos, nos serviços de abastecimento de água, coleta de esgotos e de lixo, saúde,educação, transporte, energia elétrica, telefone, ou seja, os serviços urbanos que têm a ver com o que seconvencionou chamar de qualidade de vida”.

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pois se vê debilitado diante das mobilizações e começa a considerar, emmaior grau, a função de “direção” (GRAMSCI, 1978, p. 87). A conquistadas massas era essencial à consecução dos objetivos de adesão ao Regimeno sentido de torná-lo hegemônico. Centrada nisso, a sociedade política seutilizava das políticas sociais como instrumento para fazer concessões emtroca do apoio e da cooptação da sociedade civil. Entretanto, conformeafirma Germano (2005), o Regime não chegou a alcançar tal hegemonia,caracterizando-se sempre como uma “ditadura sem-hegemonia”.

Na intenção de explicitar os objetivos da abertura, Germano (2005,p. 213) enfatiza uma questão que considera essencial à análise daimportância da mobilização da sociedade civil para a redemocratização,qual seja: a principal causa da abertura foram as contradições do próprioaparelho estatal e não uma “exclusiva conquista da sociedade civil”. Aabertura, nessa direção, não visava à democratização da sociedade, mas atransição de um autoritarismo militar para um autoritarismo civil.Corroborando este entendimento, Cunha (2005, p. 65) afirma que oEstado, “por sua omissão ou por suas políticas anti-democráticas tem sidoo verdadeiro impulsionador dos movimentos sociais, ao mesmo tempo emque pode funcionar como elemento de contenção desses movimentos”.

A dinâmica social então criada, segundo análise de Germano (2005),introduz uma modificação na metodologia de ação do Estado no que serefere à sua relação com as classes subalternas e, por conseguinte, “há umamudança na forma das políticas sociais, inclusive na política educacional,conduzindo a estratégias mais sutis de dominação ou mesmo à absorçãode interpelações populares na formulação de tais políticas [...]”(GERMANO, 2005, p. 213). As mudanças de forma, por sua vez, remetemàs relações entre a sociedade civil e a sociedade política que se estabelecemnos momentos de definição das políticas sociais (CUNHA, 2005;GERMANO, 2005). Ou seja, na intenção de lograr a posição hegemônica,promovendo o alargamento do espaço político, o Estado apontou apossibilidade de “maior” participação da sociedade civil diante do seupoder de regulação.

A política educacional, nesse contexto histórico e social, ganhara, então,novos contornos. Os problemas educacionais passaram, segundo Germano(2005, p. 233) a ser encarados pelo Estado como questões políticas, aomesmo tempo em que as políticas sociais se revestiram “de uma conotação

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ideológica que as identifica diretamente com uma ação destinada aos‘carentes’” e cujo objetivo manifesto era agir como mecanismo de correçãodas desigualdades sociais. Os discursos em favor da distribuição de renda eos apelos “participacionistas” que impregnaram os Planos Nacionais deDesenvolvimento (PND), no período 1974-1985, tinham dois interlocutoresprincipais, conforme Germano (2005, p. 233): “as classes subalternas, opovo pobre das periferias urbanas das áreas rurais e, com menor intensidade,uma parte das chamadas classes médias empobrecidas pelas políticaseconômicas dos sucessivos governos militares”.

Diante da conjuntura vigente na segunda metade da década de 1970, oRegime começa a ser questionado no âmbito das universidades e escolas, eo campo educacional inicia sua organização, impulsionada em grandemedida pela oposição à pedagogia oficial e à política oficial dominante(SAVIANI, 1997). Assim, o Movimento dos Educadores (ME) promoveua criação de entidades e/ou associações educacionais na sociedade civil,representativas de parcelas dos trabalhadores em educação e, ainda,impulsionou a revigoração de outras tantas já existentes que, inclusive, jáhaviam atuado em momentos políticos importantes da história educacionaldo país em décadas anteriores. Colaboraram intensamente com estaorganização, em meados da década de 1970 e início de 1980, segundoCunha (2005) e Germano (2005), quatro dessas entidades e/ ou associações,a saber: a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), aAssociação Nacional de Pós-Graduação em Educação (Anped), o Centrode Estudos Educação e Sociedade (Cedes) e a Associação Nacional deEducação (Ande).

A partir de 1974, a SBPC, fundada em 1948 e realizando reuniões anuaisdesde então, amplia seus eventos para a participação de professores,universitários e pesquisadores de todas as áreas, configurando-se como umespaço de expressão das demandas políticas da sociedade e de oposição aoregime. Em 1978, ano de criação da Anped e do Cedes, os educadores sereuniram em Campinas, no I Seminário Brasileiro de Educação, onde sequestionou veementemente, como destacam Germano (2005) e Cunha (2005),a política educacional da ditadura. Em 1980, é realizado o II SeminárioBrasileiro de Educação, sob a coordenação da Anped, Cedes e Ande, entidadesda sociedade civil, do campo da educação que, a partir de então, transformaramo Seminário em Conferência Brasileira de Educação (CBE).

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Entre os anos de 1980 e 1988, período que nos interessa destacar,considerando que nele foram construídas as principais teses do MovimentoNacional pela Reformulação dos Cursos de Formação do Educador, foramrealizadas cinco conferências. A I Conferência Brasileira de Educaçãoocorreu em abril de 1980, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) deSão Paulo, com a temática central “A política Educacional”. Estruturadaem 11 simpósios e 34 painéis, contou com aproximadamente 1.400participantes. A II CBE foi realizada em Belo Horizonte, na UniversidadeFederal de Minas Gerais (UFMG), no mês de junho de 1982, com a temáticacentral “Educação: perspectiva na democratização da sociedade”.Estruturada em 13 simpósios e 67 painéis, contou com um númeroaproximado de 2.000 participantes. A III CBE aconteceu em Niterói, naUniversidade Federal Fluminense (UFF), no mês de outubro de 1984, como tema central “Da crítica às propostas de ação”. Organizada em 12seminários e 124 painéis, contou com aproximadamente 5.000participantes. A IV CBE foi organizada em Goiânia, na Universidade Federalde Goiás (UFG) e Universidade Católica de Goiás (UCG), em outubro de1986, com o tema central “A educação e a constituinte”. Com um programaestruturado em 25 simpósios, 77 atividades de atualização, 93 painéis e 23outras atividades, contou com aproximadamente 6.000 participantes. A VCBE foi realizada em Brasília, na Universidade de Brasília (UnB), em agostode 1988, com a temática central “A Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional”. Com um programa prevendo 24 simpósios, 250 painéis eatividades de atualização, contou com aproximadamente 6.000participantes (CUNHA, 2005, p. 94).

No I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, além dasdiscussões gerais em torno da temática de redemocratização do país,discutiram-se, conforme afirmam Brzezinski (1996a) e Bissolli da Silva(2003), os estudos pedagógicos em nível superior, concentrando-se em tornodos seguintes temas: extinção ou não do Curso de Pedagogia; formaçãodo pedagogo em geral ou do pedagogo especialista; formação do especialistano professor ou do especialista e do professor no educador; formação doespecialista nas habilitações da graduação ou na pós-graduação; formaçãona perspectiva da pedagogia do consenso, ou da pedagogia do conflito;formação mais teórica ou mais prática; entendimento do pedagogo comoreprodutor ou produtor de conhecimentos; adoção de um núcleo central

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ou de uma base comum de estudos, dentre outros (BRZEZINSKI, 1996a).Notadamente, na centralidade das discussões estiveram as temáticasrelacionadas aos problemas então vivenciados pelo Curso de Pedagogia.Sob a influência da informação de que o Ministério da Educação (MEC)retomara a matéria das Indicações 67/1975 e 70/1976 do CFE2, oseducadores se mobilizaram no esforço de acompanhar e quiçá tentarparalisar tais ações no sentido de impedir a extinção do curso, causa emque o Movimento logrou êxito, uma vez que as Indicações foram sustadaspelo MEC no ano seguinte.

A organização mais sistemática do Movimento para a reformulaçãodos cursos se deu, porém, na I Conferência Brasileira de Educação, onde osparticipantes desencadearam uma mobilização nacional, visando a intervirnos rumos do processo de definição das políticas para a formação dosprofissionais da educação. Neste evento, realizado em 2 de abril de 1980,no contexto do Governo de João Batista Figueiredo, quando estava à frentedo Ministério da Educação e Cultura Eduardo Mattos Portella, foi criadoo Comitê Pró-Participação na Formação do Educador, “face à necessidadede mobilização de professores e alunos em torno da reformulação do Cursode Pedagogia, então colocado em debate nacional” (ASSOCIAÇÃO..., 1992).Embora a centralidade das discussões estivesse no Curso de Pedagogia3, jánaquele momento o Comitê apontava a importância de se ampliar o debateem direção a todas as licenciaturas (ENCONTRO..., 1986).

A atuação do Comitê, a partir de então, esteve vinculada tanto àadministração dos conflitos gerados pela diversidade de proposiçõesinternas ao Movimento quanto a acompanhar os trabalhos que a Secretariade Educação Superior (SESu), do MEC, passou a organizar. Dentre asiniciativas do MEC nesse período, destaca-se a realização de sete SemináriosRegionais de Reformulação dos Cursos de Recursos Humanos para aEducação, aos quais o Comitê enviou representantes com a intenção deevitar a imposição de mudanças vindas de gabinete e reivindicar a realizaçãode um encontro nacional (BISSOLLI DA SILVA, 2003; BRZEZINSKI,1996a).

2 Nessas Indicações o conselheiro Valnir Chagas propunha a extinção do Curso de Pedagogia na forma curriculardeterminada pela legislação de 1969.

3 Em 1980, os Cursos de Pedagogia alcançaram um total de 206 (BRZEZINSKI, 1996b).

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O I Encontro Nacional ocorreu em 21 de novembro de 1983, comuma programação inicialmente definida pelo MEC. No dia 22, no entanto,em resposta indignada ao fato do Ministério apresentar, já na seção deabertura, uma proposta de formação de professores previamente elaborada,docentes e discentes se fizeram ouvir encaminhando nova pauta aostrabalhos e passando a coordenar o evento. Este ato representou aindependência do Movimento, fortalecida, também, pela transformaçãodo Comitê Pró-Formação do Educador em Comissão Nacional deReformulação dos Cursos de Formação do Educador (CONARCFE).Segundo a Associação... (1992, p. 4), “a Comissão herdou do Comitê oespírito de autonomia frente aos órgãos oficiais, bem como seu objetivode promover a articulação, em nível nacional, dos esforços destinados areformular os cursos de formação do educador, sistematizando propostas eexperiências”.

Criada num contexto de tensão entre educadores e representantes dopoder educacional instituído – MEC e SESu, sua ação compreendia duasatribuições principais: primeiro, dar continuidade ao processo de discussãosobre a reformulação dos cursos de formação do educador e, segundo,acompanhar as ações do MEC junto aos cursos de licenciatura(BRZEZINSKI, 1996a; SCHEIBE; AGUIAR, 1999). Embora conturbado,inicia-se, pelo acompanhamento que a Comissão passa a realizar junto àsações do MEC, um processo de maior participação da sociedade civil nasdiscussões e decisões relativas às políticas educacionais no âmbito dasociedade política.

O firme posicionamento dos participantes neste I Encontro Nacionalpossibilitou, de um lado, o fortalecimento do Movimento Nacional pelaReformulação dos Cursos de Formação dos Educadores diante dasimposições do poder instituído, que passou a reconhecê-lo, embora não deimediato, como legítimo. A princípio, houve resistência do MEC/SESu tantona aceitação da legitimidade da Comissão Nacional como instância dearticulação das diversas propostas relativas à reformulação dos cursos deformação de educadores quanto em considerar os resultados dos estudos edebates do Encontro de Belo Horizonte como expressão do pensamento edas tendências então em discussão no País. De outro lado, promoveu umafastamento ainda maior em relação ao projeto da sociedade política, oque dificultou, em certa medida, o trabalho da Comissão que se seguiu ao

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Encontro Nacional de 1983, em virtude de não contarem mais com ofinanciamento do Estado (BRZEZINSKI, 1992; 1996a), razão pela qualos encontros posteriores de avaliação foram organizados aproveitando osespaços de outros eventos. Observou-se, então, como estratégia utilizadapelo MEC, enquanto aparelho de Estado, o incentivo às discussões deamplos setores de profissionais da educação, mas o refluxo deste processoquando as decisões, frutos de tais debates, contrariavam o projetogovernamental, ou seja, “estímulo ao debate não como uma política dedemocratização do ensino, mas como uma tática de cooptação dosmovimentos sociais” (ENCONTRO..., 1986, p. 153).

Malgradas as dificuldades financeiras impostas à manutenção doMovimento, após o afastamento das propostas do MEC/SESu, aCONARCFE trabalhou intensamente entre 1983 e 1990, promovendotrês encontros nacionais de avaliação e quatro encontros nacionais querepresentavam a continuidade do histórico Encontro de Belo Horizonte. Ahistória deste Movimento, portanto, pode ser subdividida em três períodos,a saber: (i) o primeiro, sob a forma de Comitê Pró-Formação do Educador,entre 1980 e 1983; (ii) o segundo, como Comissão Nacional deReformulação dos Cursos de Formação do Educador, entre 1983 a 1990 e(iii) o terceiro e atual período como Associação Nacional pela Formaçãodos Profissionais da Educação (Anfope), a partir de 1990 (ASSOCIAÇÃO...,1992, p. 5).

A BASE COMUM NACIONAL

Há quase três décadas, a construção coletiva das proposições da Anfopeapóia-se em princípios que expressam o caráter de resistência e contraposiçãoàs ações impositivas oriundas das políticas governamentais no campo daformação de professores. Buscou-se, nessa direção, um princípio norteadorque expressasse a prática comum na formação de professores contra aimposição dos currículos mínimos. Nos sucessivos Encontros Nacionaisaprofundaram-se e ampliaram-se as discussões sobre essa temática, natentativa de superar as antigas fragmentações presentes no processo deformação e expressas principalmente pela divisão do curso de Pedagogiaem Habilitações. Nesse sentido afirmava:

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[...] Haverá uma única base comum nacional para todos os cursos de formaçãodo educador. Esta base comum será aplicada em cada instituição de forma arespeitar as especificidades das várias instâncias formadoras (Escola Normal,Licenciatura em Pedagogia, demais Licenciaturas específicas) (ASSOCIAÇÃO...,1992, p. 14).

A acepção de base comum nacional esteve marcada por dois sentidoscomplementares: (i) um sentido político, caracterizando-a comoinstrumento de luta pela formação e carreira do educador e (ii) e um sentidoteórico, constituindo-a como princípio orientador dos currículos dos cursosde formação dos educadores.

No sentido político, a idéia de base comum nacional foi tomada com oobjetivo de servir como “instrumento de luta e resistência contra adegradação da profissão do magistério, permitindo a organização ereivindicação de políticas de profissionalização que garantam a igualdadede condições de formação” (ASSOCIAÇÃO..., 2000, p. 9) e a valorizaçãosocial do educador. Foi considerado, ainda, um elemento unificador daprofissão.

No sentido teórico, ainda como princípio orientador dos currículosdos cursos de formação de educadores, opunha-se ao modelo representadopelo “padrão federal” (1939) e, mais tarde, pelo “currículo mínimo” (1969).Inserido no contexto dos anos de 1980, o Movimento foi marcado pelacontestação e refutação dos atos advindos da tecnoburocracia, propondoorganizar os cursos pelo princípio da base comum nacional como“sustentação epistemológica norteadora da elaboração e dodesenvolvimento do currículo” (ASSOCIAÇÃO..., 1994, p. 11). Buscava-se, então, pela mediação de uma base teórica comum e de uma consciênciapolítica, o desenvolvimento de cursos de formação voltados a uma práticade caráter crítico.

Consensuou-se, assim, ao longo das discussões, que a base comumnacional “teria como função servir de ‘ponto de referência para a articulaçãocurricular de cada instituição formadora do profissional da educação’ [...]e a sua concretização dar-se-ia por eixos articuladores” (ENCONTRO...,1990). Importa ressaltar, no entanto, que em torno dos eixos curricularesarticular-se-ia um corpo de conhecimentos selecionado em função daconcepção sócio-histórica de formação, abrangendo três dimensõesfundamentais e intrinsecamente relacionadas, a saber: i) dimensão

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profissional – envolvendo um corpo de conhecimentos capaz de identificartoda a categoria profissional e, ao mesmo tempo corresponder àespecificidade de cada profissão; ii) dimensão política – organizada a partirde um corpo de conhecimentos de modo a permitir uma visão globalizantedas relações educação-sociedade e do papel do educador comprometidocom a superação das desigualdades existentes; iii) dimensão epistemológica– envolvendo um corpo de conhecimentos onde o científico deve ter umespaço privilegiado, rompendo com o senso comum (ENCONTRO..., 1990,ASSOCIAÇÃO..., 1994; 1996; 1998; 2000; 2004).

A garantia de uma prática comum nacional de todos os educadores,qualquer que seja o conteúdo específico de sua atuação, é o objetivo centraldo princípio, promovendo a compreensão da totalidade do trabalho docente.Esta prática comum estaria centrada, também, na defesa da docência comoa base da formação de todos os profissionais da educação, pois permite,segundo a Anfope (2000, p. 9), “assumir com radicalidade, ainda hoje, nascondições postas para a formação de professores, a formulação de Saviani(1982): formar o professor e o especialista no educador”.

Neste sentido, enquanto a legislação regulatória do Curso de Pedagogiade 1969 (BRASIL, 1969) formava os especialistas ou os professores para adocência no ensino de 2o grau, com um curso organizado a partir de habilitações,a proposição da Anfope considerava tanto a formação para a docência quantopara as especialidades de forma integrada. O Curso de Pedagogia deveria,assim, formar o profissional de educação para atuar no ensino, na organizaçãoe gestão de sistemas, unidades e projetos educacionais e na produção e difusãodo conhecimento, em diversas áreas da educação, sendo, ao mesmo tempo,um bacharelado e uma licenciatura (ASSOCIAÇÃO..., 2000; 2004).

Nessa direção, o profissional a ser formado seria o pedagogo “unitário”,que é ao mesmo tempo um bacharel e um licenciado, apto a exercer tantoas funções de magistério na Educação Infantil, nos anos iniciais do EnsinoFundamental e nas matérias pedagógicas do Nível Médio quanto as funçõesde gestão nas instituições de ensino e a produção e difusão do conhecimentona área da educação.

O Curso de Pedagogia seria organizado por eixos norteadores – sólidaformação teórica e interdisciplinar; unidade entre teoria e prática, gestãodemocrática da escola; compromisso social e ético; trabalho coletivo einterdisciplinar; articulação da formação inicial e continuada – em torno

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dos quais se estabeleceria um corpo de conhecimento compreendendo asdimensões profissional, política e epistemológica, em um processo formativovinculado à concepção sócio-histórica visando à formação crítica deeducador. Um curso de graduação plena, pautado na acepção de docênciacomo base, superando em sua estrutura a separação entre bacharelado elicenciatura, com duração mínima de quatro anos, compreendendo umacarga horária de 3.200 horas4, visando à garantia de formação teórica dequalidade.

Infere-se, a partir da leitura dos documentos, que a idéia de uma basecomum nacional representava a vontade política de construção de umaconcepção elaborada, orgânica e coerente de formação que, articulando ocoletivo de educadores, tornar-se-ia hegemônica.

A DOCÊNCIA COMO BASE: O POMO DA DISCÓRDIA

Conforme vimos, o princípio da base comum nacional compreende aidéia da docência como base da formação do educador. Há entre oseducadores, no entanto, conforme registrado nos documentos finais dosEncontros Nacionais, posicionamentos diferenciados a respeito do Cursode Pedagogia que polemizam essa questão (ENCONTRO..., 1984a, 1986,1989; ASSOCIAÇÃO..., 1992). Segundo Brzezinski (1996a), a polêmicasurgiu em função da análise da prática dos especialistas, conduzindo oseducadores e se dividirem em dois grupos com posicionamentos antagônicos(ENCONTRO..., 1989). Considerando sua importância no âmbito daconstrução de uma proposta coletiva representativa do Movimento noenfrentamento do projeto de formação de professores da sociedade política,destacamos esses dois posicionamentos representativos dos dissensosinternos presentes nas discussões realizadas nas últimas duas décadas.

O primeiro grupo, composto por intelectuais com participação ativano Movimento, alguns, inclusive, assumindo a função de presidência daentidade, tem como representantes principais, dada a fecunda produçãoteórica dedicada ao tema, Aguiar (1999), Aguiar; Mello (2005), Brzezinski(1992; 1996a; 1996b), Freitas (1999; 2001; 2002; 2004) e Scheibe (1999;2001; 2002; 2003; 2006). Neste grupo postula-se a extinção das

4 No IX Encontro Nacional a carga horária fora definida em 2.500, sendo ampliada posteriormente para 3.200.

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habilitações nos moldes da organização preconizada ao Curso de Pedagogiapela legislação de 1969, compreendendo-a, então, com base em eixosarticuladores, numa dinâmica de formação integrada, onde o curso seria,ao mesmo tempo, um bacharelado e uma licenciatura. Estes intelectuaisdefendem a pedagogia lato sensu, abrangendo o amplo campo da educação,onde sua identidade estaria relacionada à responsabilidade social e, portanto,com o exercício profissional situado historicamente (ENCONTRO..., 1989).

A defesa desta proposta encontra em Freitas (2002, p. 140) o argumentoda “necessidade de um profissional de caráter amplo, com pleno domínioe compreensão da realidade de seu tempo, com desenvolvimento daconsciência crítica que lhe permita interferir e transformar as condições daescola, da educação e da sociedade”. Destacando o caráter sócio-históricodessa formação, defende uma concepção emancipadora de educação,avançando no sentido de buscar superar as dicotomias entre professores eespecialistas, pedagogia e licenciaturas, especialistas e generalistas. Estasuperação, segundo Freitas (2002, p. 140), seria alcançada a partir daformação de um “profissional da educação que tem na docência e notrabalho pedagógico a sua particularidade e especificidade”. Ainda paraFreitas (2002), a oposição e a resistência dos educadores à concepçãofragmentada de formação – professores e especialistas – fundam-se nanecessidade de superação da docência na forma de habilitação, entendendo-a como fundante, isto é, base da formação do especialista, na compreensãodo trabalho pedagógico escolar como totalidade

O questionamento de Scheibe (2002) ajuda-nos a compreender melhoras defesas desse primeiro grupo de intelectuais: como formar um supervisor,ou como exercer o papel de supervisor escolar sem ter também uma basede formação semelhante a dos docentes? O entendimento concentra-se naquestão da docência como trabalho fundamental na escola e, nessa direção,todo educador que desenvolve atividades nela, professor ou não, deve terna base de sua formação a docência. Ou seja, para supervisionar, orientar,inspecionar em uma instituição dedicada ao ensino seria necessáriocompreender o trabalho fundamental ali desenvolvido, a docência. Apedagogia, assim, teria como objeto de estudo prioritário a educação formalem ambiente escolar, pois é a partir do profundo conhecimento da educaçãoem ambiente formal que se poderá compreender melhor a educação emambientes não formais, coerente com o princípio de que o conhecimento

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deve iniciar a partir do mais desenvolvido (ENCONTRO..., 1989;ASSOCIAÇÃO...,, 2006).

Os lineamentos básicos dessa proposta, considerada hegemônica noâmbito do Movimento e no enfrentamento das propostas governamentais,podem ser encontrados nas idéias defendidas por Saviani em 1981. Em seutexto intitulado “Uma estratégia para a reformulação dos Cursos dePedagogia e licenciatura: formar o especialista e o professor no educador”,Saviani defendeu a formação do pedagogo em geral, do “educadorgeneralista”, argumentando:

o essencial é formar o educador, o qual, se bem formado, será capaz de exerceras atividades específicas que a maior ou menor divisão de tarefas, segundo amaior ou menor complexidade da organização educacional venha a exigir(SAVIANI, 1981, p. 2).

Ao expressar seu posicionamento contrário às habilitações, o autorconcluía que ao invés de “especialistas” em determinada habilitação restrita,estamos necessitando é de

educadores com uma sólida fundamentação teórica desenvolvida a partir e emfunção das exigências da ação educativa nas condições brasileiras. Este será oprofissional com habilitação polivalente capaz de enfrentar os desafios da nossarealidade educacional (SAVIANI, 1981, p. 4).

Dessa acepção de educador polivalente, assentada sob uma base docente,emerge o entendimento de um processo de formação unificado onde todosos egressos estariam qualificados, igualmente, para as funções técnicasespecializadas, para as funções do magistério na Educação Infantil, nosanos iniciais do Ensino Fundamental e nas matérias pedagógicas do EnsinoMédio e, ainda, para a produção e difusão do conhecimento que sematerializam no campo prático-institucional (escolar e não escolar). Adocência configura-se, então, como elemento catalisador de todo o processode formação, pois a partir dela se materializaria o trabalho pedagógicocompreendido como práxis educativa e unidade teórico-prática. A docênciapassa a assumir, então, uma dimensão mais alargada, em consonância coma idéia de educador polivalente e na perspectiva de “mediação para outrasfunções que envolvem o ato educativo” (SCHEIBE, 2001, p. 7). Em artigocoletivo, publicado em 2006, os integrantes do Movimento reconhecemesse sentido ampliado reportando-se, no entanto, ao fato do trabalho

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pedagógico ser desenvolvido em espaços escolares e não-escolares e não anova configuração dada à docência (AGUIAR e outros, 2006, p. 9).

O segundo grupo, representado inicialmente por Libâneo (1998; 2001;2002), importante intelectual brasileiro, envolvido com o Movimento desdeos primeiros encontros, vai ganhando novos adeptos, dentre eles Pimenta(1999; 2001; 2002; 2004) e Franco (2002), os quais, contrapondo-se àversão anterior, entendem a pedagogia como teoria geral da educação, tendocomo objeto a educação em qualquer ambiente social em que ela ocorra.Em outras palavras: o objeto de estudo da pedagogia é o processo educativohistoricamente dado, cabendo-lhe avançar na sistematização eaprofundamento de uma teoria da educação abrangente e não reduzi-la auma teoria da escola, ou seja, postula-se a pedagogia stricto sensu.

Nessa direção, Libâneo (2002, p. 68), propõe uma tríplice tipologia depedagogos. Os (i) pedagogos lato sensu seriam “todos os profissionais quese ocupam de domínios e problemas da prática educativa em suas váriasmanifestações e modalidades”; em seguida, viriam os (ii) pedagogos strictosensu: seriam “especialistas que, sempre com a contribuição das demaisciências da educação, e sem restringir sua atividade profissional ao ensino,dedicam-se a atividades de pesquisa, documentação, formação profissional,educação especial, gestão de sistemas escolares e escolas, coordenaçãopedagógica, animação sociocultural, formação continuada em empresas,escolas e outras instituições” (LIBÂNEO, 2002, p. 69); o terceiro tipo,também pedagogos stricto sensu, seriam “professores do ensino público eprivado que atuam em todos os níveis e modalidades de ensino” (LIBÂNEO,2002, p. 69). Estes postulados encaminham a uma compreensão deformação bastante diversa daquela defendida pelo primeiro grupo.

Franco (2002, p. 46), ao discutir as diferenças existentes entre serpedagogo e ser professor, afirma:

ser o profissional que promove, organiza e pesquisa a formação docente serásempre diferente de ser o profissional que se formará para ser o docente, emboranão exclua, nem a relevância de ambos os papéis, nem a possibilidade deconcomitância desses papéis.

Neste entendimento, o primeiro seria aquele cuja formação e práticavoltar-se-iam à pesquisa e à produção e difusão do conhecimento científicoem pedagogia. O segundo, o professor, dedicar-se-ia ao ensino. Embora

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remeta à possibilidade de concomitância de papéis, esta tese demarca umacisão sustentada pela diferenciação tanto das especificidades dos saberesinerentes a cada um quanto da particularidade da ação que desempenham,em consonância com as proposições de Libâneo. Ou seja, um é pesquisador,outro é professor.

Nessa perspectiva de formação, segundo Pimenta (2006), a docênciaconfigura-se como uma das modalidades de formação e inserçãoprofissional do pedagogo, onde a pedagogia seria a base da formação e daatuação profissional do professor, e não o contrário como configura aposição da Anfope.

Estes dissensos têm como marca histórica o ano de 1983, porquanto neleforam construídos os princípios gerais do Movimento. O posicionamentomais efetivo, no entanto, ocorreu no IV Encontro Nacional e nos encontrossubseqüentes, culminando, por ocasião das discussões sobre as DiretrizesCurriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (DCNP), em um manifestoenviado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) intitulado “Manifestode Educadores Brasileiros sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para osCursos de Pedagogia”5, apoiado, nessa ocasião, por aproximadamente cemeducadores que o assinaram. Nesse documento, os signatários defendiam oentendimento de que a formação dos profissionais da educação para atuaçãona Educação Básica e em outras instâncias de prática educativa far-se-ia nasFaculdades/Centros/Departamentos de Educação, oferecendo curso debacharelado em Pedagogia e curso de Formação de Professores,argumentando: “o objeto da legislação em questão não pode ser o curso delicenciatura para a formação de professores, mas o de bacharelado empedagogia, que se destina à formação de profissionais da educação nãodocentes voltados para os estudos teóricos da pedagogia, para a investigaçãocientífica e para o exercício profissional no sistema de ensino, nas escolas eem outras instituições educacionais, incluindo as não-escolares”(MANIFESTO..., 2005).

Em entrevista concedida a Rodrigues (2005, p. 204), por ocasião dafeitura de sua tese, na qual discute o Curso de Pedagogia, Libâneo explicitaainda melhor esse entendimento:

5 Educadores Brasileiros, liderados por José Carlos Libâneo, encaminham ao CNE o “Manifesto de EducadoresBrasileiros”, opondo-se tanto à proposta do CNE quanto àquela defendida pela ANFOPE e entidades parceiras, nadefesa do Curso de Pedagogia como um bacharelado, em 20/09/2005.

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Se a formação de professores deve ser feita integralmente numa Faculdade dePedagogia, então temos no curso de Pedagogia o bacharelado com habilitaçõese um Centro de Formação de Professores de Educação Básica, ou seja, aslicenciaturas, com percursos curriculares distintos.

E mesma autora afirma: “ai eu teria que trabalhar com a idéia dehabilitações, não tem jeito” (2005, p. 202).

Parece-nos, pois, que mais uma vez, os dissensos se estabelecem em funçãodas questões fundamentais que acompanham a história do Curso dePedagogia: (i) quem é o pedagogo? Na perspectiva da Anfope, um professor,cuja formação para exercer a docência, lhe permite atuar, também, comogestor e pesquisador no campo da educação. Na perspectiva defendida porLibâneo, o pedagogo é o cientista da educação, o pesquisador que poderá,em um outro percurso formativo, preparar-se para ser professor; (ii) Quala estrutura a ser dada ao Curso de Pedagogia? Segundo a Anfope, umcurso único, em que a docência se configura como a base de uma formaçãointegrada para atuação no magistério, na gestão e na produção e difusãodo conhecimento. Segundo Libâneo, uma estrutura que contemple cursosdiferentes dedicados à formação para o magistério, para a gestão e para apesquisa, uma organização pautada em habilitações. Na centralidade daprimeira proposta está a licenciatura, na segunda, o bacharelado.

Para Helena Costa Lopes de Freitas, os mentores intelectuais da segundaproposta fortalecem tanto o MEC quanto o CNE na implementação dasnovas concepções do perfil necessário de professores e especialistas narealidade atual da reforma educativa. Com isso, “tentam introduzirnovamente no campo da escola, sob o manto do pesquisador e do cientistada educação, as antigas tarefas do ‘especialista’ supervisor e gestor, agorasobre novas bases, determinadas pelas políticas da reforma educativa [...]”(FREITAS, 2002, p. 7). Para Libâneo (2002, p. 91), no entanto, “padecede suporte conceitual e histórico a idéia corrente entre os educadoresbrasileiros de denominar pedagogia ao curso de formação de professorespara as séries iniciais do Ensino Fundamental, e de pedagogo ao professorformado por esse curso”.

Constata-se, pois, que muitas são as críticas a apontar as limitações deum e de outro posicionamento. Caberia, ao primeiro, o ônus de reduzir apedagogia à docência e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, decorroborar com o fenômeno do “alargamento” das funções docentes. Ao

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segundo posicionamento, o ônus de retomar as dicotomias presentes nahistória do curso, às quais o Movimento buscou superar na sua longatrajetória de enfrentamentos com os legisladores, representantes, na suagrande maioria, dos interesses da sociedade política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As propostas elaboradas no âmbito do Movimento, representaram aruptura com o pensamento tecnicista, evidenciando novas tendências, dentreas quais ganhou destaque, especialmente por sua natureza emancipadora,a concepção sócio-histórica de educação. Tais propostas influenciaramfortemente as concepções que embasaram os trabalhos das duas Comissõesde Especialistas do Ensino de Pedagogia que estiveram à frente dos trabalhosde elaboração das DCNP, entre os anos de 1998 e 2002. Por essa influência,os princípios da docência como base e da base comum nacional estiveramrepresentados nos documentos produzidos que, por sua vez, foramencaminhados ao MEC/CNE.

No longo período que antecedeu a aprovação das DCNP, homologadaspela Resolução no 1, de 15 de maio de 2006, posições antagônicas estiveramem tensionamento demonstrando interesses diversos no campo da educaçãoe, especialmente, da formação de educadores. Nesse embate, o Movimentose manteve em posição de alerta, pronunciando-se em defesa da propostade formação de educadores que foi construída coletivamente na perspectivade garantir, na medida do possível, as finalidades políticas e as posiçõesteóricas firmadas desde a década de 1980.

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Universidade e formação deprofessores: qual o peso daformação inicial sobre a construçãoda identidade profissional docente ?Cristina Maria d’Ávila

Ver-se como autor, saber-se responsável, reconhecer-se naprofissão. Estas questões passam, inexoravelmente, peloprocesso de escolha profissional desde o seu nascedouro.Deslindar as razões que levam um jovem a se interessar pelacarreira docente e compreender, no seu interior, o papel quecumpre um curso de formação inicial, particularmente noterreno das disciplinas didático-pedagógicas, constitui-se emnosso objeto de estudo.

Esse recorte se dá no âmago de um panorama educacional problemático:as condições de trabalho, os magros salários, a desvalorização social queconcorrem para a desprofissionalização docente no Brasil, em que pesemos movimentos de educadores e estudantes, os fortes debates acadêmicos eas mais recentes publicações sobre a formação de professores e o trabalhodocente (VEIGA, 2000; 2002; 2005; LIBÂNEO, 2000; 2006; NÓVOA,2002, PIMENTA, 2000; TARDIF, 2002; TARDIF; LESSARD, 2005, dentreoutros). O que nos salta aos olhos é que mesmo diante de um cenáriopouco estimulante de trabalho, tenhamos um número significativo dealunos que abraçaram a licenciatura como primeira escolha. Da sondagemque realizamos, 52% dos estudantes afirmaram ter escolhido o curso porse sentirem identificados com a profissão, 36% apontaram outros motivos

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e, dentro destes, 59% disseram terem escolhido o curso por realizaçãopessoal. Portanto, malgradas as precárias condições de trabalho, o que levajovens estudantes à opção pela docência? Onde se enraíza o desejo de setornar docente? Como se constrói essa identidade profissional e qual opapel do curso de formação inicial, particularmente da didática, nesseprocesso?

O currículo dos cursos de licenciatura reproduz o que historicamentesignificou a curta fatia destinada à formação de professores. Brevementepodemos dizer que ainda hoje, em cursos de licenciatura que ainda nãopassaram pela reforma curricular datada de 2001, os estudantes cursamcinco semestres de disciplinas específicas voltadas para sua formação nobacharelado – sem qualquer relação com a docência – e mais três semestresdas disciplinas chamadas pedagógicas, dirigidas à formação para a docência.Esse quadro está em reforma.

Com o processo de elaboração das Diretrizes curriculares nacionais(DCN) para a graduação, conduzido pela Secretaria de Ensino Superiordo Ministério da Educação (SESu/MEC) no ano de 2001, a Licenciaturaganhou terminalidade e integralidade própria em relação ao Bacharelado,constituindo-se em um projeto específico, rompendo com a antiga formaçãode professores que ficou caracterizada como modelo “3+1”. A propostaincluiu a discussão das competências e áreas de desenvolvimentoprofissional, sendo assim flexível, para abrigar diferentes desenhosinstitucionais. Atualmente, a carga-horária de estágio é de 300 horas (ParecerCNE 5/2006), o que consideramos inadequado como período de exercícioda prática pedagógica. Como bem afirmou Nóvoa (2002, p. 22)

os professores nunca viram seu conhecimento específico devidamentereconhecido. Mesmo quando se insiste na importância da sua missão, a tendênciaé sempre considerar que lhes basta dominar bem a matéria que ensinam epossuírem um certo jeito para comunicar e para lidar com os alunos. O resto édispensável.

A problemática mencionada e tomada ao apreço pelo autor, sem dúvida,conduzem ao desprestígio da profissão: «‘semi-ignorantes’, os professoressão considerados as pedras-chave da nova ‘sociedade do conhecimento’»(NÓVOA, 2002, p. 22). Reduz-se assim a nobre profissão ensinante a umestatuto de profissão sem importância.

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A discussão em torno da dicotomia teoria-prática nos cursos delicenciatura continua. No âmbito desses cursos, é freqüente colocar-se ofoco quase que exclusivamente nos conteúdos específicos das áreas, emdetrimento de um trabalho sobre os conteúdos que serão desenvolvidosno ensino fundamental e médio. A relação entre o que o estudante aprendena licenciatura e o currículo que ensinará no segundo segmento do ensinofundamental e no ensino médio continua abissal. Concorre para isso tambémuma visão simplificadora da prática. E como bem assinalamosanteriormente, o desprestígio que acomete o conhecimento didáticopedagógico nas universidades. Tal visão parece bem arraigada no meioacadêmico que compartilha de uma cultura universitária – um conjuntode significados, representações e comportamentos – um tantodesqualificadora do próprio meio profissional. Segundo Libâneo, emprefácio à obra de Guimarães (2004, p. 13), são traços dessa cultura, aprevalência dos discursos teóricos, a hipervalorização da pesquisa emdetrimento do ensino, desvalorização das práticas profissionais e dalicenciatura, individualismo exacerbado. Infelizmente são traços que nutremtambém o imaginário do estudante de licenciatura que passa«naturalmente» a rejeitar a docência ou a menosprezar a formação.

Assim, com base nos resultados da sondagem que realizamos comoprimeira etapa da pesquisa e, nos apoiando em estudos anteriores (Cf.DUBAR, 1991; CATTONAR, 2005; GERVAIS, 2005; LENOIR;MAUBANT, 2007), podemos afirmar que o curso de licenciatura tem tidoum peso limitado sobre a construção da identidade profissional docente.Com efeito, 36% dos sujeitos da pesquisa afirmaram que a origem dodesejo de ser professor repousa sobre o exemplo de algum professor nopassado, na escola de nível fundamental ou médio; sobre a mesma questão,apenas 16% declararam que os estudos, na formação inicial em níveluniversitário, estão na origem da sua identidade profissional.

Em suma, temos um quadro que caracteriza a formação inicial comoproblemático, diante do qual concebemos como principais hipóteses: a) opeso relativo da formação inicial no processo de construção da identidadeprofissional dos futuros professores; b) as disciplinas do curso de licenciaturanão parecem aos estudantes corresponder às representações do ato deensinar. Diante do exposto nos indagamos: Como se constrói a identidadeprofissional docente? Que condições, no curso de formação inicial, podem

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favorecer a construção dessa identidade? Qual o papel das disciplinas deformação pedagógica, especificamente, da Didática geral e didáticasespecíficas, nesse processo?

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo exploratório e, como tal, não procura demonstraruma hipótese inicial, mas principalmente descobrir caminhos inexploradose desvelar pistas ricas em questões a serem aprofundadas. Este trabalhocombina uma abordagem quantitativa (peso relativo das respostas aoquestionário) preliminar e uma segunda abordagem, principal, sobre a qualnos concentraremos, na análise sobretudo qualitativa dos resultados quetrazem como referência uma análise das representacões presentes, nas escritasautobiográficas dos estudantes, sujeitos do estudo. Sublinhamos que asondagem inicial por questionário teve por objetivo, principalmente, oenriquecimento da problemática e contextualização da pesquisa, nãoincidindo, pois, de modo direto, sobre a análise dos resultados finais.

Tivemos como população, na primeira etapa – sondagem viaquestionário – 78 estudantes cuja faixa-etária variou entre 18 e 45 anos,situando-se a maioria, 54%, na faixa etária entre 18 e 24 anos, de 26 a 30anos, 18%; de 31 a 35 anos, 6%; de 36 a 40 anos, 8%; de 41 a 45 anos, 8%, de 45 anos acima, 6%. Desses estudantes, 53% são do sexo masculinoe 47 feminino; 69% trabalham e, desses, 55% como docentes. Essesestudantes se encontravam no 5º semestre do curso de licenciatura, sob umtotal de oito semestres. A sondagem foi realizada entre 2005-2006 em 12cursos: Licenciatura em Educação Física, Filosofia, Desenho e Plástica,Biologia, Geografia, Música, Economia, Ciências sociais, Dança,Matemática, Química e Estatística, numa universidade pública na Bahia.Na segunda etapa, trabalhamos com as escritas autobiográficas de metadedesses 78 estudantes.

Para a análise dos dados da parte aberta do questionário, recorremos àverificação de conteúdo a partir de codificação de categorias abertas (umacategorização não pré-determinada, mas construída no processo de estudodas respostas). Erigimos como categorias: “representações da profissãodocente”; “representações do ato de ensinar”; “representações do ser

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professor”. Recorremos também a tratamento estatístico para o conjuntodas respostas, abertas e fechadas.

Para análise dos escritos autobiográficos, recorremos à análise deconteúdo, apoiados sobre a teoria das representações sociais, a partir deum paradigma interpretativista. A escrita autobiográfica foi escolhida comometodologia qualitativa por apresentar várias vantagens, dentre as quaispodemos destacar: a retomada das histórias vividas continuamente,perscrutar com maior acuidade as representações dos sujeitos, suas crençase influências sobre a escolha profissional. No processo de análise dos escritosautobiográficos, concebemos duas categorias que sustentaram ainterpretação dos dados: são elas, os “modelos” e “contramodelos deensino” Compreendemos esses “modelos de ensino” como um tipo deidentificação com normas, valores, crenças e modelos comportamentaisdos membros dos “grupos de referência” dos estudantes de licenciatura,isto é, de seus professores. Os “contramodelos” se referem a modeloscomportamentais negativos de ensino, vividos e marcantes em suastrajetórias (CATTONAR, 2005; DUBAR, 1991).

IDENTIDADE PROFISSIONAL DOCENTE: UMA IDENTIDADE SOCIAL EPESSOAL

Identificar-se com uma profissão, desenvolver uma intimidade com amesma, de modo a não poder imaginar-se fazendo outra coisa. Estarimpregnado deste fazer, integrado a este universo, sendo assim reconhecidopelo que se faz. É encarnando as relações sociais que o indivíduo configurauma identidade pessoal, uma história própria, um projeto de vida(PIMENTA, 2004). Embora o conceito seja polissêmico, numa coisadiversos autores concordam: a identidade se constrói. Ninguém nasce comuma identidade pessoal definida, a mesma se constitui ao longo da existênciahumana, na relação com os outros e com o meio sociocultural. Da mesmaforma, a identidade profissional. Não há um marco zero neste processo.Sua construção, garante Pimenta (2004) depende de espaços de formaçãoou de emprego para se estruturar, sendo, assim, condicionada socialmente.

Adotaremos, neste trabalho, o conceito de identidade profissional apartir de um quadro conceptual provindo sobretudo da sociologia,

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sustentando que a identidade profissional é um processo ao mesmo temposocial e pessoal (DUBAR, 1991; JOSSO, 1991; TARDIF; LESSARD, 1999;BRZEZINSKI, 2002; NÓVOA, 2002; CATTONAR, 2005). É pessoalporque singular, intransferível, própria a cada indivíduo com sua trajetóriaoriginal, construindo-se no diálogo do sujeito consigo mesmo, e com seuentorno. É também social, pois construída coletivamente e nas relações dosujeito com outrem. Neste sentido, é contextual, constrói-se de modo situadonum tempo/espaço histórico determinado.

UMA IDENTIDADE SOCIALMENTE CONDICIONADA

De acordo com Pereira e Martins (2002), a identidade profissionaldocente deve ser entendida como prática social construída pela ação deinfluências e grupos que configuram a existência humana. A práticaeducativa é uma prática social; assim sendo, a constituição da identidadedocente só acontece no âmago dessa prática, e em relação com outros, como grupo de pertença. Assim, compreender esse processo passa pelacompreensão do seu próprio caráter intersubjetivo e relacional.

Segundo Dubar (1991) há dois processos convergentes ou não queconcorrem para a constituição das identidades: um processo biográfico(identité pour soi) e um processo relacional, sistêmico e comunicacional(identité pour autrui). O primeiro está ligado à trajetória de cada um, oque inclui múltiplas esferas, seja da família, da formação escolar eprofissional, do trabalho, etc.; o segundo, relacional, está ligado às relaçõespartilhadas em atividades coletivas, organizações, instituições etc. Nestesentido, não há como se pensar numa disjunção possível entre identidadeindividual e identidade coletiva.

No caso da identidade profissional docente, o sujeito do trabalho é o serhumano, portanto sua característica mais marcante é a interrelação entre aspartes (aquele que ensina e aquele que aprende). Nesse sentido, é um trabalhointerativo, por definição. Um trabalho que conduz à interação no seio deuma organização. Como tal, os professores constroem e reconstroem umaidentidade profissional pertinente a um grupo, ou ainda, a subgruposespecíficos, a depender do segmento ao qual pertençam (educação infantil,ensino fundamental, ensino médio) e de suas características específicas. Existe

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uma dinâmica identitária significativa nesse contexto (LESSARD; TARDIF,2003). A identidade também se constitui de forma relacional ou seja, refere-se à relação do sujeito consigo mesmo e também com o outro. É a um sótempo uma relação de identidade e de alteridade, construída através deum processo contínuo de identificação e de diferenciação imbricado naexperiência com o próximo. Nesse particular é muito importante o papelconferido ao ambiente de trabalho e a relação entre os professores e seumeio. É na relação com os pares que a identidade profissional ganha forma:observando, refletindo, discutindo para se compreender os afazeres do métiere assumir, assim, um certo perfil singular de ser professor, uma identidade,porém construída na relação e no contexto do trabalho.

A identidade profissional resulta, portanto, de uma socialização própriaao grupo de pertença profissional. Significa dizer que as experiências comunssão importantes, assim como o próprio processo de formação inicial. Talsocialização, portanto, significa, para os professores em formação, umprocesso de identificação ligada a tipos identitários específicos, disponíveise definidos como ideais (DUBAR, 1991).

UMA IDENTIDADE AO MESMO TEMPO PESSOAL

A identidade é também uma construção pessoal, singular e complexa, oque não nega todas as suas implicações sociais. Ela é ao mesmo tempo estávele provisória, individual e coletiva, subjetiva e objetiva; multirreferencializada,pois resultante de múltiplas interfaces; contextualizada e situada poisenraízada em espaços/tempos determinados e determinantes. O processo deconstrução identitária é um processo biográfico contínuo “e a identidadepode ser vista como o resultado de uma transação entre uma identidadeherdada do passado e uma identidade visada pelo indivíduo ou impostapela situação presente” (CATTONAR, 2005, p. 197).

Portanto não se pode reduzir as identidades sociais às determinaçõesdo campo profissional e da formação porque, segundo Dubar (1991, p.119), desde a infância o indivíduo herda uma identidade de gênero, umaidentidade étnica e uma identidade de classe social – identidades essasligadas à família. Entretanto, é na escola que a criança vive a experiênciade sua primeira identidade social.

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A construção da identidade profissional tem estreita relação com aprofissionalidade, entendendo este conceito como conjunto deconhecimentos, capacidades, habilidades, ie., competências gerais, para alémda disciplina que ensina. Corresponde a um modo de ser, as qualidadesque identificam os elementos necessários à profissão. A profissionalidadeestá articulada à formação inicial, à experiência que resulta da prática e àformaçao continuada. Ao identificar-se com a profissão, o sujeito passa adesenvolver um perfil, um modo de ser, ganha, por assim dizer, uma novaestatura diante da qual se posta como profissional. Desenvolve a suaprofissionalidade.

PROFISSIONALIDADE E PROFISSIONALIZAÇÃO

É muito sutil a diferença entre esses dois conceitos. Em busca de umasíntese possível, sustentamos que a profissionalidade se refere às competências(habilidades, atitudes e saberes) desenvolvidas ao longo do processo deprofissionalização do docente (LIBÂNEO, 2000; VEIGA e outros, 2005;BREZEZINSKI, 2002; LESSARD; TARDIF, 2003). Neste caso, o sujeito/ator/professor pode desenvolver suas competências desde o processo deformação inicial ou, e principalmente, no exercício da sua profissão, aoadentrar no espaço escolar e praticar suas atividades pedagógicas. Aprofissionalização se refere ao processo onde se insere a profissionalidade –essa busca incessante por uma identidade ou perfil profissional.

O conceito de profissão – do latim professio: declaração,profissão,exercício, emprego – evolui socialmente e está marcado pormudanças sociais e econômicas ocorridas ao longo da história. Não é porisso uma palavra neutra, diferenciando-se do que se entende no senso comumpor ofício ou ocupação. A profissão é um ato específico e complexo e dizrespeito a um grupo especializado, competente. Nesse sentido, um grupoprofissional é formado por pessoas que se mantêm unidas por umaidentidade e por uma ética comuns (VEIGA e outros, 2005, p. 25).

Segundo Dubar (1991) o termo profissão possui dois sentidos correntes:um que diz respeito à ocupação e outro que se refere à profissão, ela mesma.A profissão designa a um só tempo um conjunto de empregos reconhecidosna linguagem administrativa e as profissões liberais (profissões médicas ejuristas, notadamente) Neste sentido, uma profissão é uma ocupação na

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qual os práticos dispõem de um monopólio sobre as atividades que elaimplica e de um lugar na divisão social do trabalho. Pode-se ainda falar deuma distinção jurídica entre profissão e ocupação: os membros de umaprofissão podem se organizar em associações profissionais; os que se incluemnuma ocupação, podem se organizar em organismos sindicais. Aindasegundo Dubar (1991, p. 150): “mesmo se uma minoria de assalariadosfazem reconhecer sua atividade como uma ‘profissão’, a maioria nãoconsegue, ou, só parcialmente” (falamos então de “semi-profissões”). Seráesse o caso da profissão docente?

Ao lado da formação especializada, a profissão requer autonomia ecolegialidade. A autonomia se refere à capacidade de tomar decisões e acolegialidade à união coesa e entre os membros de um grupo reguladospor um código comum. “Assim, o conhecimento especializado, a formaçãoem nível superior, a autonomia, o prestígio social, o controle de qualidadee um código de ética são características que servem para definir umaprofissão” (DUBAR, 2005, p. 26).

A profissionalidade, por seu turno, se refere a um conjunto decapacidades e saberes desenvolvidos no desempenho de suas funções numdeterminado momento histórico (BRZEZINSKI, 2002, p. 10) Saberes estesque evoluem e se ressignificam no exercício da profissão. Essastransformações ocorridas na vida dos professores é que levam àprofissionalização. A profissionalidade de um grupo de trabalhadores dizrespeito, portanto, a tais competências: capacidades, racionalização desaberes estruturados e mobilizados no exercício profissional; o seuaperfeiçoamento contínuo constitui o desenvolvimento profissional. Acaracterística da profissionalidade é a sua instabilidade, vez que se constróiprogressivamente em contextos específicos. É enquadrada por um sistemade referências ou código de ética, garantindo, assim, a finalidade social daatividade profissional (LESSARD; TARDIF, 2003).

Do ponto de vista da análise do trabalho, é um constructo social,afirmam Lessard e Tardif (2003, p. 19), para onde confluem múltiplasdemandas, saberes e características: é, pois, um constructo demandado porinstâncias políticas e administrativas; é objeto de co-construção entreformadores e organização escolar, formalizada num referencial decompetências, sendo pois produto do trabalho dos formadores e seusformados; a profissionalidade está também estreitamente relacionada àconstrução identitária dos professores (2003, p. 19).

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A profissionalização se refere ao processo de aquisição das capacidadesespecíficas da profissão. Não se resume à formação profissional, embora ainclua, mas envolve outras características de cunho também subjetivos,como aptidões, atitudes, valores, formas de trabalho que se vão constituindono exercício da profissão. “É, portanto, um projeto sociológico voltadopara a dignidade e para o status social da profissão, em que se incluemtambém as condições de trabalho, a remuneração e a consideração socialde seus membros” (VEIGA, 2005, p. 31).

Para o que nos toca de perto, a profissionalidade e a profissionalizaçãorepresentam os saberes e o processo pelos quais passam os profissionais nodesenvolvimento de uma identidade ao mesmo tempo pessoal e social coma profissão.

ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL

A capacidade de refletirmos sobre os desafios apresentados no nossodia-a-dia e, particularmente, no dia-a-dia da profissão nos obriga à revisãoconstante de conceitos. Assim, a identidade profissional está calcada emsuperações de problemas de vida. Essas transformações paradigmáticas,levam, por assim dizer, a mudanças de necessidades e aspirações dosindivíduos. Portanto as identidades nunca se encontram prontas, estão emconstante construção, o que se exprime pelo seu caráter processual e auto-reflexivo. Em suma, advogamos, aqui, que a identidade é um processoconstrutivo e em permanente transformação.

Para falarmos deste processo, antes de mais nada, desejamos situar oleitor no terreno em que o mesmo adquire raiz. Para compreendermos essecontexto, tenhamos em mente, o ciclo de vida da profissão docente a partirdas seguintes etapas que sintetizamos a partir da literatura consultada:Socialização preprofissional; Socialização profissional : formação inicial;Inserção no meio profissional (entrada); Estabilidade profissional (DUBAR,1991; CATTONAR, 2005; RIOPEL 2006).

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SOCIALIZAÇÃO PRÉ-PROFISSIONAL

O que significa a socialização pré-profissional? Esta é uma socialização,antes de tudo, subjetiva, complexa e informal. O que significa dizer quediz respeito à trajetória de cada um, portanto ela se desenvolve de formaparticular em cada sujeito. A identidade profissional docente se encontraancorada em experiências ancestrais, em grande parte, na experiência devida de cada um como estudante em nível primário e/ou secundário. Esseperíodo portanto, vivido pelas pessoas, pode lhes fazer eclodir as primeirasidentificações com a profissão. É nesse momento portanto, que se iniciamas primeiras identificações e que o sujeito pode vir a elaborar seus modelosideais de ensino e de como vir a ser professor. É um tipo de identificaçãoantecipada para o grupo dos professores, porque enquanto estudantes vãoadquirir normas, valores, crenças e modelos comportamentais dos membrosdo seu “grupo de referência”, ou seja de seus professores. Muitas vezesessas normas são reproduzidas em jogos infantis, e mais tarde postas emprática no meio profissional, de modo inconsciente (CATTONAR, 2005).Desta forma, a socialização profissional parece acontecer antes da entradano ofício. Mesmo os docentes que escolheram a profissão como segundaopção, contam histórias que remontam à infância e, nestas, o despertar dogosto pelo ensino.

Os estudantes em formação, assim como professores já na ativa, vãonos contar sempre histórias em que os modelos de professores vêm à tonacomo sujeitos que marcaram suas vidas. E o interessante é que as qualidadesque os primeiros atribuem aos seus professores marcantes são aquelas queeles próprios pretendem ou reproduzem no exercício da profissão, denotandoassim um certo sentimento de filiação. Existe ainda aqueles que sãoconsiderados contra-modelos, ou aqueles professores dos quais não se guardaboas memórias e que não se pretende reproduzir. São exemplos fortes decomo “não fazer” ou de como “não ser”. Enfim, são modelos diversos quemarcam porque não correspondem aos ideais da profissão concebidos pelosestudantes.

As histórias de cada um, portanto, se constituem em material nuclear sequisermos refletir sobre o processo identitário em qualquer profissão; por estarazão e para melhor compreendermos o processo de construção da identidadeprofissional docente, recorremos à análise de escritos autobiográficos dosestudantes. Os relatos autobiográficos, segundo Catani e outros (1997, p.

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40), ajudam a compreender como os sujeitos reconfiguram suas identidades.A reconfiguração do passado com os olhos do presente, sem dúvida,possibilita uma compreensão mais larga da experiência e uma inserçãomais clara na profissão.

SOCIALIZAÇÃO PROFISSIONAL

O curso de formação inicial inaugura o momento da profissionalizaçãona docência. É uma fase instituída e também instituinte de uma identidadeprofissional que se estrutura a partir de saberes teóricos e práticos daprofissão; de modelos didáticos de ensino e de uma primeira visão sobre omeio profissional docente. É um momento importante na construção daidentidade docente, já que os sujeitos se transformam nas interrelações queali se estabelecem. Considerada como uma fase de socialização mais formal,é na formação inicial que o futuro docente vai se deparar com os chamadosconhecimentos teóricos ou saberes curriculares acadêmicos (TARDIF, 2002)e também com modelos ideais de profissionalidade, advindos muitas vezesdas teorias educacionais.

Segundo Pimenta e Lucena (2004, p. 64), os cursos de formação deprofessores são fundamentais no fortalecimento da identidade “à medidaem que possibilitam a reflexão e a análise crítica das diversas representaçõessociais historicamente construídas e praticadas na profissão”. Então, é noconfronto entre o “eu profissional” e “o outro” que se estabelecem asdiferenças e as possibilidades de análise crítica referente às posturasassumidas nas práticas educativas. É na relação com o outro que o processode individuação se consolida – no “não querer fazer assim”, ou, na melhordas hipóteses, na admiração do exercício profissional de quem já se encontrana profissão (o olhar sobre as práticas de professores regentes de disciplinas,seja num passado remoto, seja na própria formação universitária). É semdúvida um processo sofrido de decepções, muito esforço pessoal,solidariedade, abandono, solidão e compartilhamento que o exercíciodocente abre brechas para a constituição da identidade profissional. Muitoembora os estudantes de licenciatura possuam críticas quanto a esse processode formação, não há como negar que este incida, positiva ou negativamente,sobre a construção da identidade nos futuros professores.

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As críticas dos estudantes ao curso de formação universitária se apoiamsobre duas questões fundamentais: primeira, sobre a falta de apoio materialda instituição (55%); e, segundo, sobre a prática de ensino (25%), os demaisteceram críticas à falta de apoio institucional e ao currículo defasado. Defato e ainda hoje nos deparamos com problemas de infra-estrutura, nauniversidade, como os citados pelos alunos. Somado a isso os exemplosnas práticas docentes parecem não se constituir como referentes ideais. Sãomuitos os debates em torno da questão, e, grande parte destes situam oproblema na falta de nexo entre a formação teórica e prática no períodode socialização profissional inicial. Com efeito, perguntados sobre osproblemas na prática de ensino universitária, 40% se queixam da falta deaulas práticas, 20% afirmam que seus professores são mais pesquisadoresdo que professores, 20% dizem que os professores têm problemas com aavaliação e outros 20% são “impacientes”. É voz corrente a opinião que,primeiro, os estudos iniciais preparam mal e, segundo, que os exercíciospráticos são mais importantes que os “conhecimentos teóricos” (DUBAR,1991).

Dos momentos mais importantes no processo de construção identitáriaprofissional, encontram-se a saída do sistema escolar e a entrada econfrontação no mercado de trabalho. A entrada numa especializaçãodisciplinar constitui-se assim em ato significativo para a identidade doprofissional, mas é na confrontação com o mercado de trabalho que selocaliza o aspecto identitário mais importante; é lá, nessa primeiraconfrontação que se vai consituir uma identidade profissional de base,uma projeção de si para o futuro, enfim, a colocação em prática de umacerta lógica de aprendizagem e também de formação. A entrada na profissãodomina um modelo prático concernente às tarefas cotidianas, ao trabalhoduro que tem pouco a ver com o modelo idealizado caracterizado peladignidade da profissão e sua valorização simbólica provinda da formaçãoinicial (DUBAR,1991, p. 146).

Decorre desse processo, as projeções pessoais pela profissão a partir deuma identificação com os membros que pertencem a um “grupo dereferência”, o que inclui a imagem de si, apreciação de suas própriascapacidades, realizações de desejos, choques, frustrações, projeções para ofuturo profissional etc. No caso da formação inicial para a docência sãoos mestres/professores, essa referência. Uma referência antecipada que pode

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nascer desde a mais tenra idade em modelos de professores da infância.Convém assinalar, que tal processo não se encerra aí – será regularmenteconfrontado com as transformações tecnológicas, organizacionais e políticas,implicando sempre em projeções para o futuro. Assim, essa primeiraidentidade profissional está marcada pela incerteza e parafraseando Dubar(1991) podemos mesmo compará-la à passagem da adolescência para avida adulta e, portanto, a uma forma de estabilização social.

ALGUNS RESULTADOS: O PAPEL DA FORMAÇÃO INICIAL NO PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

As hipóteses que sustentamos na introdução (1- o peso limitado daformação inicial sobre a construção da identidade profissional e 2- asdisciplinas dirigidas à formação pedagógica não correspondem àsrepresentações de docência dos estudantes) ganham corpo quandoobservamos os dados colhidos e nos permitem concluir, sobre a 1ª hipótese,apoiando-nos também sobre outros estudos, (RIOPEL, 2006; CATTONAR,2005) que são frágeis os laços que unem formação inicial de professores e aconstrução identitária (no que concerne ao contexto deste estudo).

Quanto à segunda hipótese, em curso de investigação, podemosdepreender, a partir das narrativas dos estudantes e das respostas aoquestionário, que suas representações de docência não correspondem aosreferentes concretos da formação inicial. Quando perguntados sobre o queé ser professor, por exemplo, 29% responderam “Gostar do que faz/ensinarcom competência e satisfação”; 21% “Ser agente de transformação social”;21% “Atuar visando o crescimento individual”; 18% “Ser educador, amigo,companheiro”; 11% “Ser mediador do processo ensino-aprendizagem”.Nos seus escritos autobiográficos, as queixas quanto aos professores quetiveram na universidade estão intimamente relacionadas ao autoritarismo,à negligência e ao distanciamento afetivo dos estudantes. Perguntados sobreo que é ensinar, 35% responderam que significa “Ajudar a pensar/desenvolver o espírito crítico”; 25% “Criar condições para a construção/reconstrução do conhecimento”; 17% “Trocar experiências”; 17% “Mediarsaberes, valores e experiências”; 6% “Transmitir informações”.Representações essas que não se coadunam com as críticas que fazem aosestudos na formação inicial.

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São visões idealizadas nascidas de suas trajetórias de vida, mas já ilustramque parecem distantes das disciplinas cursadas na faculdade, por exemplo.Nos relatos autobiográficos, quando solicitados sobre histórias marcantesna construção de suas identidades como futuros professores, foram muitorestritivos quanto à influência dos estudos universitários, apenas três modelospositivos e cinco contramodelos, num total de 39 escritos.

Os dados das narrativas autobiográficas quando confrontados com osdados colhidos dos questionários aplicados parecem confirmar a hipótesede que as experiências vividas sobretudo no ensino fundamental são maisfortes na memória dos estudantes e mesmo na constituição de sua identidadeprofissional, que as experiências vividas no ensino superior. Efetivamentedos 39 estudantes, 50% da população que fez parte da enquete porquestionário, que descreveram suas memórias escolares e fatos marcantesna construção de suas identidades profissionais, 26 são referentes ao cursode nível fundamental, três ao ensino médio, dois à educação infantil e oitoao nível universitário.

O que podemos retirar como lição dessas narrativas? primeira, a de quese encontra em modelos do passado, principalmente no ensino primário(de 1ª à 4ª séries) o principal referente de identificação com a profissão;segundo, de que os contramodelos de professores e de docência são maisfortes ou reverberam mais nas suas memórias que os modelos positivos.Efetivamente, dos 39 memoriais escritos, 28 se referem às experiênciasnegativas ou contramodelos de ensino, ou seja praticamente 72% do totalcontra 28% que se referiram a modelos positivos de docência.

Os modelos fortes do passado estão localizados, a partir da escrita dosestudantes, sobretudo no nível primário, vejamos alguns extratos:

[...] Será que essas aulas sempre iguais onde o professor é a autoridade máximae se impõe sem se importar em consultar nossas opiniões e necessidades sefixam na nossa lembrança de forma a nunca se perder ? Com certeza não sãoessas as recordações que quero perpetuar quando for atuar em sala de aula,mas sim os passeios pelo desconhecido, as minhas descobertas pessoais, meusolhos espantados por ver saltar dos livros didáticos coisas que eu não lembrariase não as tivesse vivenciado. Aliás, essa é a palavra mágica que guardo da parteboa da escola: vivência (E1).

Tudo isso faz parte do meu processo educativo e vou guardar isso sempre.Cada dia que conheço mais a educação percebo como foi importante passarpor essas fases... (E2).

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Descrever parece simples, mas para mim marcou toda a minha vida escolar e eufui evoluindo à medida que me debatia com novos desafios e obstáculos... (E3).

Os contramodelos têm muita força também na constituição de um perfilprofissional. E no ensino fundamental, é capaz de deixar marcas indeléveis(dos 39 escritos, 28 se referem a experiências negativas de ensino). Dentreos contramodelos flagrados e registrados pelos nossos alunos em seus escritosautobiográficos, podemos elencar como atitude mais marcante, oautoritarismo revelado sob diferentes ângulos, dentre os quais destacam-seos métodos conservadores da pedagogia tradicional; a desqualificação (ouviolência moral); e a punição (violência física). São, em síntese e não semdor, as lições apreendidas pelos estudantes (extratos de seus escritos a seguir):

Eu me recordo que a professora na ocasião ainda não havia completado alicenciatura e provavelmente não tinha cursado a disciplina de didática (ou aomenos não parece tê-la usado quando deveria), posto que mostrouincompetência na direção da sala de aula. [...] Não se pode crucificá-la por talato impensado, mesmo porque isso não era recorrente, todavia é importanteapontá-lo como uma falha no exercício da docência e uma experiência ímparque me permite hoje afirmar que me policiarei para não fazer o mesmo quandolecionar, pois senti as consequências que tais atos podem provocar no aluno(E4).

O ponto crucial dessa história reside no fato de que havia outras formas delidar com a situação, mas a professora, tradicionalíssima, preferiu não “destruir”sua postura dominadora [...] escolhendo escorraçar de sua sala, durante umbom tempo, um aluno que sempre gostou de estar ali (E5).

Certamente essas experiências não devem ter contado, no momento daescolha da profissão, mas reverberaram em suas vidas e ainda irão serepercutir em suas práticas profissionais e, na melhor das hipóteses, surgirãocomo negação do que foi vivido ou como uma outra forma de desenvolver-se na profissão.

Dos modelos positivos na universidade (três num total de 39 relatos -ou menos de 10% do total), os estudantes enalteceram as qualidades: lúdica,sensível (relacional), comprometida e competente de engajamento dosprofessores na prática profissional:

Eu ia tranquilo para as aulas, feliz com minha professora, animado com a idéiadela ter me enxergado e se preocupado com meu aprendizado no meio detantos outros alunos. Ela particularizou o olhar dela, individualizou o ensino,desceu do salto, iniciou um processo de construção do meu saber e conversou

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comigo como se fôssemos iguais. Como se fôssemos... [...] Pedagogias à parte,a relação professor-aluno é uma relação de poder assimétrica, mas não pode sermarcada por uma distância abissal. Diminuir a assimetria é objetivo das maisvariadas abordagens, independente do conteúdo e da instituição. Estamoslutando contra séculos de tradição (ainda em vigor) e sinais de mudançaaparecem tímida e esporadicamente. A professora não tinha um discursodemocrático,... e talvez nem conhecesse as abordagens pedagógicas a fundo,mas ela estava se tornando menos tradicional do que podia perceber. Tudobem, ela não foi intencionalmente construtivista, mas a experiência serviu paraa reconstrução de um novo esquema em mim. Não sobre a teoria, mas sobre oprofessor (E6).

Foi proposta como uma das formas de avaliação seminários em grupo. [...]Observei que nesses momentos a professora apresentava uma atitude muitoatenta: circulava pelos grupos, esclarecia dúvidas e observava... [...] Apesar dasprimeiras avaliações seguirem os moldes tradicionais ... a última abria espaçopara a pesquisa em grupo e o desenvolvimento da expressão oral. [...] Acreditoque a professora teve uma postura muito sensível as minhas necessidades naquelemomento... (E7).

Dos contramodelos de docência em nível superior revelados nasnarrativas dos alunos (cinco num total de 39 relatos), temos como marcaspreponderantes, o autoritarismo, a displicência e a indiferença:

Durante meu curso de história na universidade tive alguns professores que atuaramapenas como palestrante, simples fornecedores de informações. Eram displicentese indiferentes aos alunos em suas diversas necessidades. Irresponsáveis na execuçãode sua função, negligenciavam o papel de educador na formação de novoseducadores. Foi para mim marcante o Doutor (como ele mesmo gostava delembrar) em história. Trago-o como exemplo de uma catástrofe na sala de aula apartir de um fato acontecido que demonstra perfeitamente a sua falta de preparoe sua postura tradicionalista-ditatorial (EI).

Foi em época de final de semestre em um seminário e minha equipe estavaconversando com a tal professora. Ela adotou um método em que todas aspessoas da sala tinham que julgar as equipes, dando seu ponto de vista de comoa equipe apresentada se saíra, mas eu não concordava de jeito nenhum, pelofato de que na minha opinião, uma pessoa no ‘mesmo barco’ que você te julgandoseria antiético, o mesmo que um atrista plástico falar para outro que sua obraé uma porcaria, ou seja, colegas, futuros educadores, falarem para a equipe quesua apresentação foi o máximo ou até mesmo um lixo (na maioria!). [...] Elanão concordou comigo, tentou de todas as formas mudar minha opinião edisse ironicasarcasticamente: Coitadinha, tão nova e já é do sistema... [...] Moralda história: tenha opinião própria, não se intimidando por achar o que vocêacha ir contra o que seu professor acha (E9).

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As idéias herdadas e provindas do seu meio e sua história pessoal refletemum retrato idealizado da organização escolar e da profissão docente.Constituem-se assim em referência, importante situada no coração damotivação para tornar-se docente (TARDIF; LESSARD, 1999). Formam,por assim dizer, um quadro de referência de identidade profissional idealizadapelo futuro docente. Esssas visões, trazidas pelo estudante podem tantofacilitar a aprendizagem do meio profissional – quando estes compreendemos saberes da ação, o reconhecimento de situações típicas, etc. – como podemtambém não estar bem ajustadas à realidade onde se encontram os estudantes,tornando-se assim um obstáculo à aprendizagem (RIOPEL, 2006). É noseio da formação inicial, sobretudo no ensino das didáticas, geral e específicas,que se encontra o momento adequado para se identificar essas representações,compreendê-las e, também, transformá-las.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Parece-nos que o elo entre a construção da identidade profissional (quedeveria ser um dos objetivos da formação profissional), e formação inicialparece perdido. E por quê? São frequentes os reclamos em torno das práticasde ensino superior e da falta de vivências no terreno escolar como condiçãopara o desenvolvimento de competências requeridas pela profissão. E noque toca mais de perto ao presente estudo, parece que estamos aindadistantes de um trabalho de escuta das representações desses estudantes,dos seus saberes e quereres nas disciplinas do curso de licenciatura. Umtrabalho capaz de fazer brotar os desejos de ensinar e de tornar-se educador.

Pesquisas recentes têm demonstrado o problema do desenvolvimentoou da falta de identidade profissional nos jovens professores (RIOPEL,2006), e isso, evidentemente, nos remete ao lugar que ocupa essaproblemática em cursos de formação de professores. Essa é uma etapa quetraz em si momentos distintos: o choque diante da nova realidade, ainiciação e a descoberta (TARDIF; LESSARD, 1999; HUBERMAN, 1999).E o que pode facilitar a transição entre um e outro momento é justamenteestar identificado com a profissão.

É preciso, pois, que repensemos os programas de formação em termosde seus objetivos, conteúdos e formatos de aplicação didático-pedagógicas.

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Perrenoud (2001) apresenta duas razões que sustentam a idéia de se prepararos futuros professores para a realidade que lhes aguarda: 1- atenuar ochoque com a realidade, diminuir reações agressivas e/ou depressivas quepodem estar presentes logo na entrada do metier. 2- Justificar a construçãode instrumentos e de saberes que permitam afrontar o real. Não bastaantecipar se não se oferece instrumentos adequados. Afirma o autor (2001,p. 9):

Se os docentes conhecessem mais profundamente as raízes da violência, osfundamentos da autoridade, os determinantes da relação com o saber, afragilidade do sentido da escola, a importância das interrelações, eles se sentiriammenos impotentes.

Neste caso, há que se encontrar o equilíbrio: num curso de formaçãoinicial não se pode passar nem uma visão quixotesca de tudo poderenfrentar, diante de uma realidade por vezes adversa, nem seu inverso ou avisão fracassada de nada poder. Os cursos de formação de professores devemse basear sobre as dificuldades dos alunos, permitindo a estes odesenvolvimento de competências de alto nível: como a capacidade deproblematizar e de encontrar as próprias respostas. Nesse sentido, será precisopensar em cursos de formação onde a binomia teoria-prática não se oponhae nem se distancie.

A formação inicial será tanto mais importante para a carreira do futuroprofessor quanto mais próximo ele estiver da construção identitária dessesujeito. E isso passa pela sua organização coletiva. Para além da academia,esses cursos têm que estar em relação muito estreita com o meio escolar deatuação desses futuros ensinantes. O que significa dizer que será precisoum curso com matérias mais sensíveis às verdadeiras necessidades dessesujeito. Antes de tudo que seja um curso aberto a escutar, entender, saber desuas crenças, convicções e representações sobre o que é ensinar e aprender, oque é ser professor, etc. Um curso assentado sobre o que pensam os sujeitose que lhes favoreça um olhar para mais além, para o desenvolvimento decompetências emergidas no próprio contexto escolar; sobre seus “saberes”e seus “quereres”.

No processo de construção da identidade e profissionalidade docentesé inegável a importância de uma Didática geral – sem que se destitua doterreno as didáticas específicas com suas singularidades epistemológicas e

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pedagógico-didáticas – erigida enquanto conhecimento de iniciação e demediação. Longe de se constituir em disciplina prescritiva, a didática temum papel na iniciação desses sujeitos no seu processo de construçãoidentitária e, como conhecimento de mediação, tem o papel de traduçãodas representações, desejos e crenças dos futuros professores em outras enovas competências profissionais. Nessa abordagem o trabalho formativovoltado à construção da identidade profissional é objetivo precípuo.

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Políticas públicas e educação dejovens e adultosMaria Olivia de Matos Oliveira

GLOBALIZAÇÃO, SOCIEDADE INFOMÁTICA E EDUCAÇÃO DE JOVENS E

ADULTOS

A passagem da sociedade industrial para a sociedadeinformática provocou profundas alterações no planoeconômico, político, cultural e ideológico da sociedade atual.

O período atual é um período de crises: econômica, social, política emoral. Um período que se caracteriza pelo medo generalizado; abandonoda solidariedade e desamparo do cidadão.Um período onde o medo dafome, da violência, do desemprego e até do outro estão presentes (SANTOS,2001, p. 58).

Os grupos que detêm a hegemonia da tecnologia impõem um podersimbólico e cultural, reconceitualizando valores universais comodemocracia, direito à propriedade e á educação, impondo um “sensocomum”, determinando normas de conduta, formas de ação e indicandoo que é certo ou errado para o mundo.

Novas relações entre países e novas condições materiais de vida sãoproduzidas como explica com muita propriedade Santos (2001, p. 65)

Essa globalização tem que ser encarada a partir de dois processos paralelos. Deum lado dá-se a produção da materialidade, ou seja, das condições materiaisque nos cercam e que são a base da produção econômica, dos transportes e dascomunicações. De outro há a produção de novas relações sociais entre países,classes e pessoas. A nova situação vai se alicerçar em duas colunas centrais.Uma tem como base o dinheiro, outra se funda na informação [...].

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Nesse contexto, a tirania do dinheiro e da informação1 pilares daglobalização, produzem um Estado fraco, mínimo, que permite a expansãoe a reificação do mercado, que pode ser sintetizado no Brasil, por ummodelo de privatização, cuja característica prinipal é financiar as empresasestrangeiras que compram o capital social nacional. O referido modelo écaracterizado por um assistencialismo estatal transferido ao terceiro setor,representado pelas empresas (SANTOS, 2001, p. 66).

A flexibilidade do Estado fortalece as políticas de privatização que trazemno seu rastro, a exclusão social e a condenação de milhões de pessoas àmarginalização e ao desemprego. O tempo é de exclusão, que asseguraprivilégios a poucas pessoas e exacerba a competitividade e o individualismo.A perversidade sistêmica institucional caracteriza o processo deglobalização2, onde ser pobre é uma situação estrutural e natural ao processo(SANTOS, 2001).

Nessa mesma linha de pensamento Boneti (2006) cita que, até osintelectuais na academia reconhecem que, por trás do estabelecimento deparâmetros nas pesquisas feitas no Brasil sobre o conceito de condiçãosocial, existe todo um processo de dominação econômica e cultural quediferencia os segmentos.

São palavras do referido autor:

A valorização real e simbólica do capital social apropriado determina aconstrução de um parâmetro de sujeito ideal ou de segmento social ideal. Apartir deste parâmetro é que se consolida a idéia da igualdade ou da desigualdade[...] (BONETI, 2006, p. 41).

Dessa maneira, são construídos distintos parâmetros de pobreza : osoficiais, orientados por uma lógica burocrática racionalista e, aquelesutilizados pelas classes pobres, que definem pobreza como a falta de acessoaos bens sociais como trabalho, emprego, escola, etc. Em outras palavras,estabelece-se uma valorização diferenciada dos bens sociais e culturais –habilidades, hábitos culturais, bens patrimoniais, etc. – a partir dossegmentos sociais que os possuem (BONETI, 2006, p. 41).

1 Santos (2001), discorre com muita propriedade sobre os dois pilares da globalização: a ideologia do dinheiro quetem como medida geral: acumulação para uns ou endividamento para outros e a tirania da informação que atravésda mídia dissimula o engodo em nome do marketing, a mentira como segredo de marca, tomando lugar dodebate civilizatório que não se faz presente.

2 Santos (2001, p. 33) se refere á perversidade produzida pela globalização,onde o encolhimento das funçõessociais e políticas do estado ajudam a ampliar cada vez mais a pobreza.

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Nesse sentido, segundo Boneti, a instância burocrática do Estadodetermina a construção da condição social por meio daquilo que Castellschama de “identidade legitimadora, introduzida pelas instituiçõesdominantes da sociedade, no intuito de expandir e racionalizar suadominação em relação aos atores sociais [...]” (CASTELLS, 1999 apudBONETI, 2006, p. 32). Acrescenta ainda o referido autor : “Essa construçãosocial da noção da desigualdade faz dos iguais os desiguais” (BONETI,2006, p. 33). Dessa forma, o diferente e desigual é o pobre; legitima-seassim a condição de ser pobre e não de estar pobre.

Os jovens e adultos analfabetos fazem parte desse segmento pobre emarginalizado. A educação de jovens e adultos hoje no Brasil, enfrenta deum lado, o desafio de responder às necessidades materiais de milhares depessoas analfabetas que vivem em extrema pobreza, e do outro, aresponsabilidade de atender às atuais exigências de um mundo globalizado.

OS DESAFIOS E RESPONSABILIDADES SOCIAIS DA EDUCAÇÃO

DE JOVENS E ADULTOS

Por outro lado Castells (1997) mostra que as demandas por umaescolarização básica não são apenas conseqüência da escolaridade deficienteda nossa população, mas da constante evolução de sociedade informáticaque provoca uma mudança nas necessidades educativas dos jovens e adultos,diferentes das exigências de antigamente.

Sabe-se quão importante é renovar os conhecimentos, pois aqueles queadquirimos na educação inicial não servem para todas as formas de inserçãona sociedade e no mundo do trabalho. Vive-se um processo social de trocae produção de conhecimentos, cujo principal produto são as idéias e ondenão há espaço para os analfabetos (LÈVY, 1993).

Acresce a tudo isso, na atual sociedade da informação a constatação deque a cultura dominante continua priorizando os saberes acadêmicos, emdetrimento dos demais saberes. Na Educação de Jovens e Adultos (EJA), ossujeitos têm um conhecimento ou saber vivido que difere do conhecimentoou saber escolar: no primeiro aflora o valor da experiência, do saber popular,o valor da maturidade e da sabedoria.

Os jovens e adultos em situação de exclusão social e com níveis iniciaisde estudos desenvolvem igualmente habilidades comunicativas que lhes

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permitem atuar tanto na sua vida cotidiana como no mundo laboral, deforma plena, desde que a escola, tome como ponto de partida a valorizaçãodessas habilidades, legitimando os conhecimentos que eles possuem e quefazem uso no seu cotidiano, chamadas de habilidades comunicativasbásicas (FLECHA, 2001)3.

Isso significa que, do ponto de vista metodológico, a EJA deve além detrabalhar os conteúdos sistematizados, aproveitar as experiências dosdiscentes, numa perspectiva de análise crítica, para provocar uma discussãopermanente entre os alfabetizandos e sobre o que estão aprendendo. Éimportante o respeito pelos saberes vividos, pelas experiências e pelasmotivações internas que integram a auto-estima desse segmento populacional.As instituições deveriam desenvolver uma prática pedagógica que provocasseo debate permanente sobre as relações existentes entre o saber escolar e osaber vivido, trabalhando tanto os conteúdos sistematizados como os daexperiência vivida pelos alunos, numa perspectiva crítica.

Pelo exposto e tendo em vista a necessidade da inclusão social dessaspessoas que aspiram à uma educação de qualidade e a importânia daconstrução de um novo perfil identitário para a EJA, cremos que éfundamental que se encontre, na forma da lei e na prática, alternativas deatendimento educacional, em termos de acesso e permanência nas escolas,desse contingente populacional.

A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E A LEGISLAÇÃO

O problema do analfabetismo no nosso País é uma questão recorrente,apesar das tentativas de erradicá-lo. Resulta da ineficiência do nosso sistemaeducacional e de políticas públicas inadequadas, materializadas emprogramas e campanhas descontinuadas, que apareceram para erradicar oanalfabetismo tão antigas quanto ineficientes, desde o primeiro programaoficial criado em 1947.

3 Flecha (2001) da Universidade de Barcelona, Espanha, discute no seu trabalho, que o desenvolvimento dehabilidades comunicativas nos jovens e adultos é possível através da escola, quando os sujeitos iniciam seusprocessos formativos. Todas as pessoas possuem habilidades comunicativas, entendidas como aquelas quepermitem a comunicação e atuação dos sujeitos no contexto em que vivem.

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Campanhas, mobilizações, movimentos políticos marcaram as tentativasde erradicação do analfabetismo no nosso País, alguns mais efetivos, delonga duração como a Campanha de Educação de Adultos e Adolescentes4,o Programa Nacional de Alfabetização5 e o MOBRAL6, dentre outros(OLIVEIRA, 2007).

Entender o processo de avanços e retrocessos na formulação dascampanhas, projetos e programas de alfabetização de jovens e adultos quetramitaram ao longo da história da educação brasileira é refletir sobre aideologia contida nesses programas oficiais. É também, procurar entendera história institucional da educação popular no Brasil, mergulhando nacompreensão de todos os mecanismos formais e ocultos que atuaram eainda vêm atuando nos caminhos políticos que direcionam tais políticas.

A antiga Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 5.692,promulgada em 1971, incluiu pela primeira vez na história das legislaçõeseducacionais, um capítulo destinado à EJA, então chamada de ensinosupletivo, estabelecendo no artigo 24 a função de “suprir a escolarizaçãoregular para adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluídona idade certa” (BRASIL, 1997). O referido Ensino Supletivo foiregulamentado pelo Parecer nº 6997 cuja elaboração esteve sob aresponsabilidade do então Conselheiro Valnir Chagas, do extinto ConselhoFederal de Educação (CFE), hoje Conselho Nacional de Educação (CNE).

De acordo com Paiva (1987), nos idos de 1974, o Ministério daEducação e Cultura (MEC) propôs a implantação de Centros de EstudosSupletivos (CES)8 como a solução mais viável para essa modalidade deensino, atendendo ao tríplice objetivo de tempo (rapidez de instalação);custo (aproveitamento de espaços ociosos) e efetividade (emprego demetodologias adequadas).

A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394,promulgada em 20 de dezembro de 1996, que veio substituir a anterior,

4 Programa de alfabetização implantado pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1947.5 Baseado no método do emérito educador Paulo Freire, implantado em 1964, no Governo João Goulart.6 Movimento Brasileiro de Alfabetização, implantado no período da Ditadura Militar 1967-1978.7 Visando regulamentar essa modalidade de ensino, o Conselheiro Valnir Chagas, elaborou o parecer que estabelecia

normas e diretrizes para o ensino supletivo, onde cursos e exames eram previstos semestralmente para seremaplicados pelas secretarias estaduais de educação. O referido conselheiro recomendava, naquele Parecer, que osexames fossem gradativamente substituídos pelo atendimento através de cursos regulares (BRASIL, 1972).

8 A estrutura metodológica dos CES era baseada em módulos de auto-instrução. A freqüência nos referidos centrosnão era obrigatória e o sistema de avaliação previa a argüição em duas etapas: uma interna, ao final dos módulos,e outra externa, com exames especiais elaborados pelos sistemas educacionais (PAIVA, 1987).

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Lei nº 5.692, de 1971, estabelece novas diretrizes para a EJA. O Parecer doConselho Nacional de Educação e da Câmara de Ensino Básico, tendocomo relator o Dr. Jamil Cury, após ouvir as representações nacionais eespecialistas sobre o assunto em todo o Brasil, consolidou a política dodireito à educação para todos os jovens e adultos que não tiveramescolarização na idade certa. O referido Parecer estabeleceu que os sistemasde ensino estaduais e municipais terão autonomia para normatizar os cursosde EJA, inseridos na condição de educação básica regular. Ao mesmo tempo,enquanto modalidade, a EJA assume uma identidade própria para atenderaos processos educacionais de alunos muito diferenciados em relação àidade, classe, sexo, raça, cultura e experiência de vida, conforme estabelecidono seu artigo 37:

os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e adultos, que nãopuderam efetuar os estudos na idade própria, oportunidades educacionaispropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses,condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames (BRASIL, 1996, p.27833-27841).

Na legislação, a EJA deve assegurar aos seus egressos a continuidadedos estudos e inserção no mundo produtivo, com as mesmas condiçõesdos alunos que concluem o ensino fundamental e médio, nos cursos seriados.O Parecer nº 11 - CNE/CEB (BRASIL, 2000) considera que essa modalidadede ensino deve receber um tratamento diferenciado dada a especificidadeprópria. Daí porque a estrutura do Parecer apresenta, além da introdução,tópicos referentes aos fundamentos e funções, as bases legais das diretrizescurriculares nacionais da EJA (bases histórico-legais e atuais), trata tambémda educação de jovens e adultos hoje (cursos de EJA, exames supletivos,cursos a distância e no exterior, plano nacional de educação), bases histórico-sociais da EJA, iniciativas públicas e privadas, indicadores estatísticos daEJA, formação docente para a EJA além de refletir sobre o direito à educaçãodesse contingente populacional.

Como alicerce dessa educação, destacam-se as funções relacionadas aoprincipio de igualdade de educação para todos sem discriminação (funçãoreparadora); restabelecimento das mesmas oportunidades para os estudantesque se encontram em distorção série – idade (função equalizadora);possibilidades de apropriação, atualização e utilização de conhecimentospor toda a vida (função qualificadora).

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Na lei atual, o sentido da EJA assume a condição de uma educação quequalifica, ao invés de suprir, desaparecendo com isso a noção de supletivo.A atual LDB portanto, passa a denominar “educação de jovens e adultos”,o que a lei anterior chamava de “ensino supletivo”.

No entanto, ao definir as formas de concretização dessa educação paraos que a ela não tiveram acesso na idade própria, a legislação volta a falarem cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comumdo currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular.

A novidade mais expressiva, no capítulo referente à educação de adultosna atual lei, é a diminuição dos limites anteriormente fixados em 18 e 21anos para respectivamente 15 e 18 anos de idade, para que jovens e adultosse submetam a exames supletivos em nível de ensino fundamental ou médio,porém, o espírito da lei anterior não foi revogado.

Na legislação atual a função compensatória da educação de adultosfica evidenciada, quando deixa claro sua finalidade de atender a umaclientela de baixa renda, sem escolarização, com o objetivo explícito decomplementar situações iniciais de escolarização não suficientementeresolvidas. A conclusão evidente é que a expressão da lei anterior, comoexposto pelo artigo 38, não foi revogada (BRASIL, 1996).

Pelo exposto, urge que se busquem caminhos alternativos e, na prática,formas inteligentes e arrojadas de atender às exigências quantitativas equalitativas nacionais em termos de formação profissional e continuadados professores de EJA, para dar conta dos desafios apresentados nessenível de ensino.

UNIVERSIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE PARA O EJA

Como já frisado anteriormente, precisamos de uma outra visãoparadigmática para o enfrentamento dos desafios estruturais dessa sociedadeinformática e para o atendimento das exigências atuais em termos deeducação. A questão está em não adotarmos a inovação tecnológica paradar apoio á educação tradicional, mas para romper com o monopólio dastecnologias expositivas, buscando uma educação que favoreça a construçãodo pensamento crítico e reflexivo do alunado e o repensar de novos valores.

É necessário que as instituições substituam os velhos paradigmastransmissivos pelo paradigma emergente que favorece a produção coletiva

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do conhecimento, como condição para que as vozes minoritárias sejamescutadas, sentimentos partilhados e todos possam ter lugar nessa sociedadeplural.

Neste contexto, a universidade precisa repensar seus objetivos, conteúdose práxis para que possa dar conta dos desafios que lhe são apresentados,principalmente, nessa modalidade de ensino.

Iniciamos a discussão desse sub tema pelas seguintes questões: quemeduca o educador de jovens e adultos? Estão as universidades escutando asdemandas sociais e políticas no que tange ás solicitações de um novo modelode formação e de novas práticas educativas?

A formação de professores para a EJA, face à realidade apresentada noPaís, sobretudo nas regiões menos desenvolvidas do Brasil, exigiu que aatual, Lei nº 9.394/96, aumentasse de cinco para dez anos, o tempo deaquisição do diploma desses profissionais.

Vale destacar que a totalidade dos professores de jovens e de adultosque ensina na zona rural representa justamente os que padecem de ummaior isolamento profissional, e mais carecem das mudanças educacionais.Esses professores, mal remunerados e mal preparados, denunciam com assuas práticas as discrepâncias existentes nos processos formativos do ensino.

Sabe-se, no entanto, que os professores têm sido responsabilizadossozinhos pelo fracasso escolar, porém isso é um pressuposto inteiramenteinjusto, pois sua contribuição a esses resultados sinistros deve ser analisadajuntamente com outros fatores intervenientes contextuais, culturais esociopolíticos.

Esses professores, mal remunerados e mal preparados, denunciam comas suas práticas as discrepâncias existentes nos processos formativos doensino, fruto de uma política de formação docente que se concretiza emprojetos fragmentados, não satisfazendo às exigências de desenvolvimentoprofissional dos professores, e não respondendo às necessidades da sociedadetecnológica. O relato da pesquisa que se segue, comprova essas afirmativas.

EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NA BAHIA: PESQUISA E REALIDADE

Ao avaliar o Programa Educar para Vencer tínhamos a intenção de tornarvisível o cotidiano das classes de Regularização de Fluxo e de Aceleraçãodo referido programa, alimentávamos o desejo de desvendar, por trás da

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análise dos documentos, uma realidade prioritária, somente perceptívelatravés da sensibilidade e da paixão

A avaliação de um programa ou projeto exige do avaliador um processoreflexivo e sistemático de indagação da realidade que impõe a necessidadeda negociação, de diálogo e de consenso, levando-se em conta aheterogeneidade ideológica dos professores, a diversidade de ações e o perfilsócioeconômico dos alunos.

Quando analisamos o Programa Educar para Vencer, desvendamos adistância entre as propostas oficiais anunciadas e a realidade investigada,nas cidades e nas classes onde o referido programa se operacionalizou. Aofalarmos da distância entre o que está proposto teoricamente nosdocumentos oficiais da Secretaria de Educação e a realidade investigada,estamos comentando sobre a inadequação do programa ao contexto ondeestá inserido e, portanto, estamos nos referindo à falta de respostas adequadasàs necessidades reais da comunidade escolar.

No papel de observadora, procurei entrevistar os sujeitos, escutar seusdiscursos, as intenções implícitas nas suas falas, aspectos que me chamarammais atenção do que as questões semi-estruturadas da entrevista queelaborei. Como nos diz com muita propriedade Santos (1998, p. 93):

A pretensão de quantificar a realidade, longe de reconstruí-la rigorosamente, oque faz é deformá-la e descontextualizá-la. Do nosso ponto de vista, o importanteé a realidade e a atenção prioritária ao discurso dos fatos e o sentido das entrelinhas.

Constatamos quão importante é a capacidade de inferir, no conteúdodos discursos dos sujeitos. Muitas vezes faz-se necessário transcender omero conteúdo sintático das suas falas, através de entrevistas e observações,para buscar relações entre o nível semântico e o pragmático, fazendoindagações sobre a própria realidade.

Dentre os instrumentos que foram utilizados, as entrevistas buscaraminvestigar os conceitos que os professores e gestores faziam a respeito dascompetências que um professor deve mobilizar na sua prática docente.

Um resultado interessante revelado na pesquisa, foram os argumentosusados pelos professores para expressar suas expectativas profissionais, suasrepresentações a respeito do desempenho do alunado, seus conceitos sobreas competências requeridas ao professor alfabetizador, dentre outros. Paraos professores entrevistados as principais qualidades que um professor(a)

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alfabetizador(a) deve reunir é o compromisso e responsabilidadesprofissionais, conhecimentos na área, além dos laços de afetividade eamizade com os alunos.

No entanto, nas observações que realizamos, as práticas docentes revelamquão esvaziados de conteúdos e de saberes se encontram esses docentes equão afastados estão das competências exigidas a esses profissionais pelasociedade contemporânea.

Sem dúvida, ninguém está satisfeito com os resultados da escola.Observamos neste estudo que, sentindo-se “bodes expiatórios”, os docentespõem a culpa nos alunos, no seu despreparo, bem como no desinteresse edesarticulação das famílias. Os administradores e gestores apontam, orapara a falta de compromisso dos professores, ora para a irresponsabilidadedo Estado e/ou para os salários aviltantes. Os docentes, por outro lado,criticam a direção das escolas e a atuação dos coordenadores. E, nesse jogo,onde todos estão insatisfeitos e jogando a culpa nos outros parceiros, comofica a educação, como está sendo tratado o destino desde jovens e adultosdo nosso Estado? Sem dúvida, é necessário uma reflexão e discussãoconjunta do problema, com todos os setores envolvidos.

Pelos depoimentos dos sujeitos envolvidos (professores, diretores, ecoordenadores) constatamos a falta de estrutura necessária nas classes e/ouaté a inexistência de uma estrutura mínima de salas e equipamentos noslocais onde o programa está implantado. Observamos também a carênciade recursos humanos e materiais didático-pedagógicos nas classesinvestigadas.

Quanto á análise das opiniões favoráveis ou desfavoráveis expressaspelos alunos à respeito da escola, vimos, pelos resultados apresentados,que eles ainda acreditam no papel significativo que a escola tem na mudançade qualidade de vida mas, paradoxalmente, dizem que as atividades nelarealizadas são de memorização e que não conduzem à construção da leiturae escrita de forma significativa. De fato, observou-se que a escola não estáprovocando mudanças no processo de alfabetização dos jovens e adultos,pois as práticas docentes não conduzem á uma alfabetização crítica e àaprendizagem dos usos sociais da língua.

A formação teórico-prática inicial recebida pelos professores da Bahianão é suficiente para afrontar a realidade social e cultural, nos contextosonde esses professores desenvolvem suas atividades docentes, conforme

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podemos também onfirmar no nosso trabalho de investigação anterior(OLIVEIRA, 2001).

Além disso, no referido trabalho de pesquisa também destacamos ostrês elementos que nos permitem caracterizar com segurança, os três maioresproblemas da educação de jovens e adultos na Bahia: 1) a inadequadapreparação dos profissionais de educação de jovens e adultos; 2) os baixossalários percebidos e; 3) a precária qualidade de vida de todos os sujeitosimplicados, em decorrência das condições socioeconômicas da população.

À GUISA DE CONLUSÃO

Vimos nas considerações anteriormente feitas, os problemas decorrentesda globalização e do avanço tecnológico. Tecemos considerações sobre ouso da tecnologia que, se por um lado possibilita a inserção dos sujeitosnos processos formativos essenciais á sociedade, por outro lado, promovea exclusão digital e a pobreza moral e material de muitos.

Discorremos sobre os grupos hegemônicos que detêm nas mãos o podere o controle dos fluxos de comunicação e informação, usando a mídiapara formar padrões de comportamento, massificar a opinião pública elegitimar o discurso hegemônico.

Discutimos o mais grave problema educacional baiano: o anafabetismode jovens e adultos e a necessidade da universidade atentar para a necessidadede formação de um novo professor para esssa modalidade de ensino quedesenvolva, além das competências9 relacionadas no âmbito dodesenvolvimento profissional e pedagógico, outras competênciasrelacionadas aos valores emergentes desta nova sociedade informática.

Apresentamos a pesquisa por nós realizada e mostramos que a análisede uma política pública se assenta numa concepção de avaliaçãodemocrática cujo processo institucional deve envolver todos os segmentos,conforme expressa Dias Sobrinho (2000, p. 63):

a qualidade de um programa está na medida em que se utiliza a avaliação comoprocesso, inclue todos os segmentos envolvidos e delineia caminhos e soluçõespara a melhoria da formação dos alunos, possibilitando a qualidade do processoeducativo.

9 O conceito de competência aqui concebido se refere á articulação de três registros de variáveis : saberes, esquemasde ação, um repertório de condutas e e rotinas doentes disponíveis segundo Charlier (2001).

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Quando se realiza uma avaliação apenas formal e externa de umprograma, os instrumentos de natureza quantitativa, comumente utilizadospelos órgãos públicos, não refletem a realidade e podem conduzir a umasimplificação errada das mudanças que efetivamente ocorrem nos alunosjovens e adultos em processo de alfabetização

No desenrolar da pesquisa, inúmeros problemas ficaram evidenciados:desde os de natureza sócioeconômica dos sujeitos envolvidos, até aquelesrelacionados ás condições internas da organização escolar. Aprofundamosalgumas análises e outras deixamos indicadas, possibilitando a retomadado tema por outros pesquisadores.

Realizamos a análise dos fundamentos teórico-metodológicos doprograma e seu reflexo no cotidiano das classes. A partir da análise e discussãodos resultados apresentados, afirmamos a necessidade do programa terestratégias de ação mais coerentes com as diretrizes expressas nos documentosoficiais. Na nossa opinião, baseados no que observamos, os números nemsempre expressam toda a realidade e, quando esses dados são examinadosnas cidades, vemos questões importantes desmentidas e desmistificadas.

Inúmeros problemas foram revelados através dos resultados da pesquisa:desde os de natureza sócioeconômica, envolvendo as baixas condiçõessalariais em que vivem os alunos, o sub-emprego, as péssimas condições dehabitação e moradia, as condições salariais dos professores, sua precáriaformação, estendendo-se até outros aspectos, como o total desconhecimentode alguns gestores/técnicos sobre o próprio programa. Tal fato sinaliza averticalidade e centralização deste programa na administração da Secretariade Educação do Estado da Bahia, deixando os gestores como merosexecutores, sem autonomia.

O novo paradigma educacional se caracteriza pela transferência deresponsabilidades, cada vez maiores, da esfera federal para as esferasestaduais, municipais e em última instância, a escolar. Isso é preocupante,na medida em que, as políticas públicas enfatizam o comprometimento ea responsabilidade dos gestores no trato com a coisa pública. As escolasprecisam tomar consciência da forma como estão sendo pressionadas aapresentarem resultados e como serão posteriormente responsabilizadaspelo sucesso ou fracasso escolares.

Quanto á avaliação, é importante a aceitação por parte da escola deavaliar-se a si mesma. Por outro lado, torna-se necessário introduzir um

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elemento de hetero-avaliação no programa, para que todas as instânciassociais tomem conhecimento, participem do projeto de avaliação e maisque isto, fiscalizem a aplicação das verbas destinadas ao programa, quemuitas vezes são controladas pelas prefeituras nem sempre honestas. Porisso defendemos a constituição de um conselho comunitário nos municípiosonde o programa está implantado, constituído por pessoas idôneas e eleitasdemocraticamente, sem injunções políticas, para controlarem e fiscalizarema implementação das políticas públicas de educação naqueles locais. Nãobasta que os governos expliquem como gastam o dinheiro, mas devemjustificar esses gastos através de bons resultados.

Conforme comenta MacDonald (1976 apud SANTOS, 1999, p. 23) “ocontrole democrático da educação deve converter o processo avaliador numserviço de informação à comunidade sobre as características do programaeducativo”.

No estudo realizado, o aspecto mais comprometedor é o despreparodos docentes que, apenas com a escolaridade média, negam tudo queteoricamente está aportado nas diretrizes curriculares nacionais para aeducação de jovens e adultos.

Sabemos que a situação do analfabetismo é grave neste País e que osproblemas da educação de jovens e adultos são de ordem política e sópodem ser resolvidos a longo prazo. Seguramente os nossos professoresnão têm um juízo muito favorável sobre os processos de reforma daeducação. Acreditam nos processos colaborativos e numa gestão maisautônoma, porém resistem implicitamente às mudanças, conformedetectado no nosso trabalho anterior de investigação.

Se pretendemos estimular o desenvolvimento profissional dos docentese agilizar os processos de mudanças, o que devemos fazer primeiro é, semdúvida, discutir uma nova concepção de formação do educador quepossibilite contemplar dimensões relacionadas com o papel político, sociale pedagógico dos professores nesta modalidade de ensino.

Defendemos a idéia de que o desenvolvimento profissional doseducadores de jovens e adultos deve ser concebido como um processoconstante, ao longo da vida, que produzirá mudanças nas suas condutas,na forma de pensar, valorizar e atuar no ensino.

Nos cursos de formação não basta introduzir os professores nas teoriasou levá-los à apropriação do discurso pedagógico, pois a nossa experiênciamostra que eles continuam agindo como sempre. Nas salas que observamos,

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os professores continuam fazendo ditado de palavras, com aulas semplanejamento, com uma pobreza de material muito grande, apesar doscursos de capacitação que freqüentaram e sobre os quais opinampositivamente. Ficou patente que as metodologias utilizadas pelos cursosnão instrumentalizam o professor para melhorar a qualidade do ensinonem tampouco operacionalizam o seu saber-fazer. Na verdade, os cursospromovidos pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia10 são deexcelente qualidade, mas se constituem de certa maneira, em pacotes deinformação, como opinaram algumas professoras das cidades investigadas:“muita teoria e pouca prática”.

Para se ter uma atuação coerente com a concepção construtivista edialética da aprendizagem precisamos encontrar um caminho para alteraressa prática dos formadores. Uma das primeiras coisas a fazer é estabelecerum vínculo de confiança com a comunidade e com o professorado que vaireceber a proposta. Isso exige reuniões e conversas para submeter a propostaaos docentes, utilizando uma metodologia onde os meios multimidiáticosparticipem.

Não temos dúvidas de que esse novo tempo exige mudanças e ações acurto prazo e, neste particular, o papel da universidade pode e deve serrelevante. Como ficou evidenciado na pesquisa, o nosso professor de jovense adultos precisa ganhar muito mais e ter condições de trabalho adequadas.Assim, salário e valorização andam de mãos dadas. Essa premissa pareceser ignorada, na prática, pelos governos e a despeito da nova LDB exultarnum dos seus capítulos a valorização dos profissionais em educação.

É necessário que a sociedade tome consciência de que o professor é umprofissional indispensável, e que precisa ter um nível de qualificação superiorao exigido no passado. Se a sociedade exige uma escola de qualidade vaiter que assumir que isso requer também um professor preparado, com umperfil diferente do que vinha sendo proposto e também com um saláriodiferenciado. A luta não é somente da categoria, mas de toda uma sociedadeque não pode prescindir de uma educação de qualidade (WEISZ, 2002).

10 Os cursos se referem ao período da pesquisa, de 2002 a 2006, governo Paulo Souto.

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A formação dos professores noBrasil e em Santa Catarina:do normalista ao diplomado naeducação superiorLeda Scheibe

Ione Ribeiro Valle

Na política educacional brasileira, aos avanços legais parecemcontrapor-se, reiteradamente, recuos pragmáticos, que pouco têmcontribuído para a democratização do sistema nacional deeducação. Os dispositivos que se sucedem à promulgação das leisgerais para a educação nacional têm investido, sistematicamente,numa concepção técnico-profissionalizante de formação, definidapela ênfase nas competências docentes, muitas vezes confundidasunicamente com o fato de portar um diploma que comprove ahabilitação para o exercício do magistério. A ênfase tecnicista1

adotada pela maioria dos dispositivos oficiais, apesar do seucaráter instável2, leva a perseguir uma padronização do perfilprofissional, ao invés de reforçar a concepção científico-acadêmica,reivindicada por pesquisadores e pelas esferas representativas dosprofissionais da educação (associações profissionais, associaçõescientíficas, sindicatos). Esta discute as diferentes formas desocialização profissional, consideradas centrais na consolidaçãoda identidade dos professores.

1 Expressão empregada para caracterizar a influência da teoria do capital humano e do pensamento pedagógicoamericano.

2 Segundo Valle (2003, p. 236), com o objetivo de “construir um sistema unificado para o país, a administraçãofederal impõe aos estados e municípios uma dinâmica permanente de adaptação a suas determinações. Ora,estes dispositivos aportam orientações e recomendações que não somente desconsideram a capacidade criativados estados e municípios mas impedem também sua autonomia político-administrativa”.

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Embora os pesquisadores sejam unânimes ao mencionarem a insuficiênciade estudos sobre os efetivos problemas educacionais do país e a grandedistância entre o caráter acadêmico do ensino superior e a realidade daescola pública (VALLE, 2005), a história das políticas de formação docente,assim como a história do sistema de educação nacional, para o qual estaformação prepara, nos levam a uma constatação importante: os recuospragmáticos que têm acompanhado os avanços da legislação não impedemcerta melhoria no processo de formação de professores. Observa-se queesta não se deteriorou na medida da sua expansão quantitativa, pois oaumento do nível de exigência nos processos de recrutamento e aconstituição progressiva da carreira docente foram sempre defendidos poruns e perseguidos por outros, ainda que com finalidades diversas e atémesmo antagônicas. Valle (2006, p. 179) assinala que “o propósito deconstituir uma carreira para o magistério integra os objetivos das esferasadministrativas, estando associado à idéia de corpo unificado consideradaindispensável à ampliação de sua eficiência e produtividade”.

Além disso, preconizou-se o prolongamento da formação para omagistério das quatro primeiras séries do ensino obrigatório, restrita aindaao ensino médio, mas que deve alcançar – o mais rapidamente possível – onível superior. Tal ascensão supõe um maior engajamento da Universidadenas questões político-pedagógicas e administrativas que afetam as redespúblicas de ensino, a fim de favorecer as transformações sociais e culturaisreivindicadas nos diferentes momentos históricos.

Esta constatação nos autoriza a formular uma primeira hipótese: aprofissionalização e a formação dos professores sempre estiveram no centrodos projetos e investimentos do Estado brasileiro, visando ao mesmo tempoorganizar as massas, ampliar o controle sobre a escolarização da populaçãoe ampliar as oportunidades de acesso aos sistemas públicos de ensino. Tendopor referência a análise dos principais dispositivos legais que estabeleceramas políticas de educação para o país, examinaremos as diferentes etapas daformação docente, partindo do pressuposto que elas correspondem àsmutações das prioridades e diretrizes do Estado brasileiro em termos deeducação escolar, introduzidas ao longo do século XX.

Três fases, que não estão constituídas por rupturas ou descontinuidadesmas por mudanças mais ou menos profundas na organização dos sistemasde ensino (em âmbito federal, estadual e municipal), parecem se destacar

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no movimento de formação dos professores brasileiros: a primeira começacom o advento da República (1889) e se prolonga até o início de 1960,preconizando uma formação de nível médio, considerada fundamental àescolarização das novas gerações. A educação passa a ser vista como umserviço público de responsabilidade do Estado, devendo organizar as massase formar os cidadãos civilizados, visando o fortalecimento de uma sociedadeque pretendia se tornar hegemônica; a segunda fase prossegue até os anosde 1980, estando centrada principalmente numa concepção tecnicista deformação profissional, que permanece circunscrita ao ensino médio. Estafase se constitui sobretudo com a chegada dos militares ao poder em 1964e a instituição de um regime autoritário e burocrático, período em queocorre uma importante expansão da oferta escolar com a finalidade deampliar o controle ideológico sobre as massas e prepará-las para responderàs necessidades de um emergente mercado de trabalho, com fortescaracterísticas monopolistas; e a terceira fase aparece claramente após ainstalação da Nova República (1985), quando se propõe a formação parao exercício docente ao nível superior. Nesta fase é atribuída à educaçãoescolar a missão de compensar o déficit educacional e social, acumuladopela baixa qualidade e produtividade dos sistemas públicos de ensino, eparticipar efetivamente da democratização da sociedade brasileira.

UMA FORMAÇÃO DE NÍVEL MÉDIO PARA A ESCOLARIZAÇÃO EORGANIZAÇÃO DAS MASSAS

As escolas normais foram as primeiras instituições de formação deprofessores criadas no Brasil por iniciativa das províncias ainda durante oImpério, após a independência do país em 1822. Elas permanecerampraticamente como únicas responsáveis pela formação docente até finaldos anos de 1950. Um dos elementos centrais na organização das massaspopulares – a formação dos professores – adquiriu, no entanto, maiorimportância, com o advento da República, implicando um maior esforçono sentido de instalar essas escolas em todo o território nacional. Mas esseprocesso foi lento e gradativo, seguindo o ritmo do desenvolvimento social,político e econômico dos diferentes estados da federação.

A escola normal configurou-se como elemento essencial para a expansãodo ideário republicano, em oposição ao ordenamento institucional do

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regime imperial. Os professores, que deveriam ser os difusores de uma novavisão de mundo inspirada no ideário positivista, precisavam ser selecionadose preparados para essa tarefa ou “missão”, que tinha por objetivoalfabetizar toda a população e fortalecer o novo regime e seus beneficiários,ou seja, as oligarquias regionais (NÓBREGA, 2002).

No entanto, a conjuntura social, política e econômica da PrimeiraRepública, que prevaleceu até 1930, não favorecia a expansão da educaçãoescolar. O federalismo descentralizado, o Estado oligárquico, subordinadoaos interesses dos grupos dominantes das regiões produtoras e exportadorasde café, trouxe grandes discrepâncias no desenvolvimento das diversasregiões e estados. Estes que acabavam organizando, ao sabor de suascondições específicas e de seus reformadores, os seus sistemas de ensino(SCHEIBE; DANIEL, 2002). Não surpreende, pois, o papel paradigmáticoque o Estado de São Paulo representou no campo educacional para osdemais estados brasileiros nos primeiros 30 ou 40 anos da República.Comissões estaduais de todos os cantos do Brasil dirigiam-se a São Paulopara conhecer a organização do seu serviço de instrução pública, ao mesmotempo em que “missões” de professores paulistas visitavam os estados paraajudar a reorganizar o seu ensino.

A primeira tentativa oficial de garantir uma base comum nacional paraa formação de professores ocorreu durante o Estado Novo, instituído peladitadura de Getúlio Vargas (1937-1945), através das Leis Orgânicas deEnsino, promulgadas de 1942 a 1946. Convocou-se, para a sua preparação,a I Conferência Nacional de Educação, em 1941. Essas leis tiveram afinalidade de suprir a ausência de normas centrais e delinear um processode regulamentação, em âmbito federal, de políticas públicas educacionais(TANURI, 2000).

A Lei Orgânica do Ensino Normal, aprovada em 1946, foi assinadalogo após o fim da ditadura Vargas, tendo preconizado, sem grandesinovações, uma certa uniformidade na formação para o magistério (BRASIL,1946). Essa lei consagrava o que já vinha sendo adotado em vários estadosda federação em termos de educação. O ensino normal estava dividido emdois ciclos: a) o curso de formação de “regentes” do ensino primário, emquatro anos, para funcionar em escolas normais regionais e; b) o curso desegundo ciclo, em dois anos, para formar o professor primário, a serministrado nas escolas normais e nos institutos de educação. Esta lei, com

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o propósito de dar uniformidade à formação de professores nos váriosestados, estabeleceu para as escolas normais um tratamento de escolaprofissional: cada uma delas deveria manter um grupo escolar, um jardim-de-infância e um ginásio oficialmente reconhecido, visando estabelecer umarelação com a prática. As escolas regionais, destinadas a alunos com aidade mínima de 13 anos, portadores de certificados primários (com aduração de cinco anos de estudo), deveriam manter ao menos duas escolasprimárias isoladas (TANURI, 2000).

Ao ser promulgada a Constituição de 1946, poucos meses após aaprovação da Lei Orgânica do Ensino Normal, é retomada no país umaorientação descentralizadora e liberal. A grande maioria dos estados, porém,ainda que livres para regulamentar o seu ensino primário e normal, tomouessa lei como modelo para a organização do seu sistema de formação deprofessores.

Embora a primeira Escola Normal do País já tenha sido criada naprovíncia do Rio de Janeiro em 1835, a maioria das províncias brasileirasnão tinha mais do que uma ou quando muito duas escolas normais públicasaté o final deste período do Império, durante o qual formou-seprecariamente um número reduzido de professores em todo o país(TANURI, 2000). Em Santa Catarina foi criada a primeira Escola Normalem 1880, mas esta não manteve um funcionamento regular, datando doinício do período republicano (1892), a criação da Escola NormalCatharinense, que mais efetivamente inaugurou e instituiu a formação deprofessores no Estado.

Schaffrath (2002), ao estudar o currículo e os programas de ensinodesta escola, verificou nestes a valorização sobretudo do conhecimentocientífico, da cultura literária, de uma formação geral e enciclopédica,enfatizando conteúdos morais e cívicos laicos. Constatou, portanto, aforte influência do positivismo, que permeou a ideologia republicana, cujoideário estabeleceu desde cedo uma forte relação de identidade entreinstrução pública e fortalecimento da nacionalidade, da cidadania e doordenamento social. Segundo alguns autores, eram adotadas práticasdocentes e administrativas – seleção de alunos, castigos e recompensas,valorização da moralidade, discriminação do trabalho feminino – queestavam longe do ensino e composição das disciplinas oferecidas. Estas,“no conjunto de procedimentos curriculares da escola, ajudavam a desvelar

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bases ideológicas sob as quais se assentava este modelo de instituição escolar,formador de professores” (SCHAFFRATH, 2002, p. 110).

Em Santa Catarina houve importante reestruturação do ensino, inclusivena reorganização do Curso Normal, seguindo as linhas básicas da instruçãopública do Estado de São Paulo. Durante o governo de Vidal Ramos (1910-1914), por exemplo, o professor Orestes Guimarães, formado na EscolaNormal da Praça da República de São Paulo, foi nomeado Inspetor Geralde Ensino no Estado, cargo que ocupou durante 10 anos, com a anuênciado Governo de São Paulo, para assessorar e modernizar a reformaeducacional catarinense (FIORI, 1991).

As reformas educacionais paulistas foram, portanto, paradigmáticas parao país e para Santa Catarina. O currículo da Escola Normal Secundária foisendo modernizado a partir do que ocorria naquele Estado, destacando-sea ênfase nas matérias científicas, ao mesmo tempo em que maiores exigênciasde cultura enciclopédica passaram a ser requisito para ingressar no curso.Já os “cursos complementares”, pensados inicialmente para complementaro ensino primário, se tornaram uma forma adicional de preparar professorespara as escolas preliminares, concretizando-se com isso dois níveis deformação de professores para as séries iniciais. Esta estrutura foi justificadacomo necessária para expandir o sistema de formação docente e prover oensino primário de pessoal habilitado. A exemplo do que ocorreu em SãoPaulo, em Santa Catarina, na década de 1930, as Escolas Complementarespassaram a denominar-se Escolas Normais Primárias e as Escolas Normaispassaram a se chamar Escolas Normais Secundárias.

DA TRADIÇÃO NORMALISTA À FORMAÇÃO TÉCNICO-PROFISSIONAL

A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)aprovada pela Câmara Federal em 1961, após uma longa seqüência dediscussões e concessões, foi o resultado de uma estratégia de conciliaçãoentre os interesses privatistas e de defensores do ensino público (BRASIL,1961). Os acordos3 firmados entre esses grupos beneficiavam a elite em

3 Como assinalou Amado (1973), os procedimentos conciliatórios predominaram durante todo o processo deelaboração da lei. Eles definiram então os diferentes níveis da estrutura do sistema de ensino (federal, estaduale municipal), bem como suas áreas respectivas de competências político-administrativas.

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prejuízo do interesse geral da população no que concerne à escolarização.A nova lei não trouxe modificações significativas para a formação docente,pois o ensino normal continuou sendo o único nível de preparação dosprofessores do ensino obrigatório (de 1ª a 4ª séries). No que se refere àestrutura das escolas normais, nota-se que a maior parte dos estadosconservou o sistema dual, com escolas normais constituídas de dois níveisde formação: o ginasial, com conteúdos gerais aos quais se acrescentavauma preparação pedagógica que conferia um diploma de “Regente doensino primário”; e o colegial, que era consagrado aos aprofundamentos,no fim do qual o aluno obtinha o diploma de “Professor primário”.

Com a reordenação no campo político-administrativo e pedagógico,que ocorreu após a implantação do regime militar de 1964, o modelo deformação de professores foi em grande parte descaracterizado, embora tenhapermanecido centrado no nível médio, assim permanecendo até o iníciodos anos 1990. A Lei nº 5.692/71 reformou o ensino de primeiro grau,cuja obrigatoriedade passa de quatro a oito anos, e o ensino de segundograu, transformando a escola normal numa das habilitações profissionaisdeste nível de ensino (BRASIL, 1971). Esta habilitação passa a integrar aprofissionalização obrigatória adotada para todo o ensino médio (VALLE,2003).

A escola normal tradicional deixou de existir. A “habilitação magistério”regulamentada em 1972, que a substituiu, foi organizada de forma aapresentar um núcleo comum de formação geral (constituído de disciplinasda área de comunicação e expressão, estudos sociais e ciências) e uma partede formação especial (abrangendo os fundamentos da educação, a estruturae o funcionamento do ensino de primeiro grau, e a didática que incluía aprática de ensino). Fica evidente nesses dispositivos legais a forte influênciada concepção tecnicista que caracterizou o pensamento educacional oficialnesse período, destacando-se a fragmentação do curso, a grandediversificação de disciplinas no seu currículo com prejuízos para umaformação geral e o esvaziamento da habilitação em termos de saberespedagógicos consistentes.

A “desmontagem” dos cursos de formação de professores em nível médioprovocou um movimento denominado de “revitalização do ensino normal”,que estimulou estudos e propostas de ação efetivadas tanto pelo Ministériode Educação (MEC) como pelas secretarias estaduais, com a finalidade de

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reverter o quadro de descontentamento em relação a essa habilitação. Dentreas propostas do MEC, destaca-se o Projeto dos Centros de Formação eAperfeiçoamento do Magistério (Cefam), elaborado em 1982, que foiadotado em alguns estados da federação. Esse projeto propiciou algunsavanços na melhoria da qualidade do ensino, como enriquecimentocurricular, articulação entre as disciplinas, exame seletivo para ingresso nocurso, início da formação docente desde a 1ª série do ensino médio, trabalhocoletivo no planejamento e na execução do currículo e, ainda, a possibilidadede funcionamento em tempo integral, dedicado ao mesmo tempo àsatividades regulares do currículo e às de aprofundamento e estágio.

A partir dos anos 1980 houve também uma progressiva remodelaçãodo curso de pedagogia, nível superior4, visando adequá-lo à preparação doprofessor para a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental(1ª a 4ª séries). Esse curso formava, através das habilitações oferecidas, osdenominados “especialistas” em educação (supervisores, administradores,orientadores e inspetores educacionais), os professores para a escola normale, a partir de 1970, os professores para a “habilitação magistério”. Aparticipação do movimento docente, organizado em torno da AssociaçãoNacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope)5, foidecisiva na defesa da formação de professores para as séries iniciais. Pareciaevidente a carência de bases conceituais e metodológicas para a constituiçãoda identidade dos profissionais da educação brasileira.

UMA FORMAÇÃO SUPERIOR PARA O EXERCÍCIO DO MAGISTÉRIO –SÉRIES INICIAIS

Desde os anos de 1970, numerosos movimentos e manifestações eclodirampor toda sociedade brasileira, visando à rendição imediata do regimeautoritário. Uma transição política se desenhava. Então, sempre atentas a

4 Sobre a formação pedagógica do professor licenciado, ver SCHEIBE (1983).5 No final da década de setenta, iniciou-se um movimento pela reformulação dos cursos de formação de educadores

no Brasil que partiu das discussões sobre o Curso de Pedagogia, e ampliou-se para a discussão mais geral sobrea formação de todos os professores. Este movimento articulou-se mais fortemente em 1980, com a instalaçãodo Comitê Nacional Pró Formação do Educador, durante a I Conferência Brasileira de Educação em São Paulo e tevecontinuidade com a criação da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE), em1990, entidade que vem liderando desde então a construção coletiva de uma Base Comum Nacional para aformação destes profissionais.

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pressões sociais, as camadas dominantes prepararam cuidadosamente estatransição, reativando a velha prática das alianças. Após o fracasso dasmobilizações de 1984 reivindicando as eleições diretas em todos os níveis, oscandidatos civis Tancredo Neves (líder democrático) e José Sarney (coniventecom o poder militar) são eleitos por uma votação indireta para a Presidênciae a Vice-Presidência da República, respectivamente. Tancredo Neves ficagravemente doente na véspera da posse e Sarney assume interinamente em1985 o cargo de Presidente da República. Neves morre e Sarney ocupa ocargo até o fim do mandato (1990). Apesar deste episódio na transição doregime, o quadro institucional da Nova República propunha-se a retomaros direitos políticos característicos de uma democracia liberal, que haviamsido suprimidos pelo regime autoritário. Era evidente que a democratizaçãodo Estado brasileiro não podia se fazer sem uma transformação profundanas concepções e estruturas de poder fortemente cristalizadas no país. Aconsolidação do sistema de educação nacional, que permanecia fortementecentralizado no âmbito federal e dos estados, estava no centro dessastransformações, assim como a definição de uma política de formação deprofessores para todos os níveis do ensino.

O ideário crítico sobre o que deveria ser um efetivo projeto nacional deeducação, que foi se constituindo ao longo das últimas décadas,normalmente à margem das deliberações oficiais, foi contemplado em váriospontos pela Constituição Federal, promulgada em 1988. Esta forneceuum arcabouço jurídico capaz de permitir as transformações institucionaise educacionais, reivindicadas por amplos setores da sociedade brasileira.No entanto, a versão final da nova Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (aprovada em 1996) colocou vários obstáculos à implementaçãodas propostas elaboradas pelo conjunto da sociedade civil, organizada emtorno de um projeto de educação para o Brasil. Esta lei não desconsideroutodos os consensos do rico debate dos anos 1980, mas os traduziu, muitasvezes, para uma outra lógica de desenvolvimento, onde descentralização,por exemplo, passou a significar principalmente uma desconcentração daresponsabilidade do Estado6. Autonomia, por sua vez, passou a sercompreendida como liberdade para captar recursos financeiros. A igualdadefoi entendida como eqüidade, e a cidadania crítica, como cidadania

6 Sobre o movimento democratização-descentralização-municipalização, ver Valle, Mizuki e Castro (2004).

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produtiva, o que supõe uma adequação às exigências e necessidades domercado (SHIROMA e outros, 2000).

Para Mello (1999), intelectual brasileira que esteve à frente das reformaseducacionais da década de 1990, é preciso estabelecer uma política nacionalde formação, estruturada em um consenso construído pelo conjunto dossetores educacionais interessados. O primeiro passo, segundo ela, consisteem estabelecer um acordo sobre o caráter nacional da formação dosprofessores, que é do interesse da nação, pois desta formação depende aprodução e a reprodução do processo educacional. A formação aparece,nos diversos documentos da reforma, como estratégia para a unidadenacional, o pleno exercício da cidadania, a integração e a inclusão social, asobrevivência em uma economia mundial competitiva. Somente uma fortecoesão em torno da natureza da formação político-pedagógica, tomadacomo interesse nacional, poderá dar uma total eficiência às diretrizes, aosreferenciais ou às recomendações sobre o currículo e sobre a organizaçãopedagógico-institucional dos cursos de formação. Eis aí o conteúdo dapolítica de formação dos professores em implantação no Brasil e que seapresenta como um grande desafio à pesquisa educacional.

NOVAS DIRETRIZES PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB Leinº 9.394/96, enfrentou, portanto, desde sua implantação, uma situação dediversidade de concepções e uma pluralidade de instituições e de cursosformadores dos profissionais para a escolarização inicial, na tentativa desatisfazer aos diversos interesses postos pela sociedade. O estabelecimentode um acordo sobre o caráter nacional da formação dos professores, numpaís de profundas desigualdades educacionais, sociais e culturais, encontrouum maior peso no favorecimento das forças econômicas, contraditóriaspor natureza. Além desta situação, evidenciou-se também um imensocontingente de professores leigos ainda remanescentes no país. Asregulamentações decorrentes dessa lei revelaram claramente a intenção deimpor um modelo de formação docente, que, embora apareça vinculadoao nível superior, apresenta-se em grande parte desvinculado de umaformação universitária, passando a constituir-se numa preparação técnico-

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profissionalizante, que acrescenta pouco à formação de nível médio, atéentão vigente (SCHEIBE, 2003).

Foi então regulamentada uma nova institucionalização para a formaçãodos professores no Brasil, a saber: os institutos superiores de educação e oscursos normais superiores, que, em razão de suas características pedagógicase de infra-estrutura, contribui para a desvalorização do magistério, colocandoem xeque a melhoria da qualidade do ensino brasileiro, que vêm sendoreivindicada há várias décadas. Os programas de formação implementadospor estas novas instâncias educativas reduzem o tempo de duração doscursos, simplificam o trabalho pedagógico e descaracterizam a identidadedos profissionais do magistério, superpondo-se à estrutura de formação jáexistente nas universidades brasileiras. O que se observa então é que asólida formação universitária, amplamente reivindicada, vem de formatácita sendo procrastinada.

O estudo das concepções e das políticas de formação tem-nospossibilitado perceber que, apesar da elevação dos níveis de escolarizaçãodo corpo docente (VALLE, 2003), há dificuldades em romper com oprocesso histórico de desvalorização social dos professores, seja pelos recuospragmáticos da própria legislação ao se enfrentar com os preceitos de umademocracia mais formal do que real, seja pela precariedade das condiçõesde trabalho, pelos salários aviltantes, pela falta de estabilidade profissional,pelas dificuldades de constituição da carreira docente. No entanto, persisteuma concepção idealista em relação ao exercício do magistério, oscilandoentre uma “identidade vocacional” e uma “identidade profissional”(VALLE, 2002), que é corroborada pelos professores, por suas esferasrepresentativas e pelas instâncias de administração da educação.

O avanço qualitativo efetivamente democratizante, decorrente danecessidade de elevação da formação inicial para o nível superior não vingaráse houver concessões a programas de formação aligeirados. Isto nãosignifica negar a existência de situações emergenciais, relativas a carênciasde docentes em certas regiões e para certas áreas, o que deve ser enfrentadoatravés de uma sólida articulação entre as universidades, o Ministério daEducação, as secretarias de Estado e as secretarias municipais de educação.Mas não parece racional, mesmo do ponto de vista econômico e gerencial,o esvaziamento das estruturas existentes e sua substituição por novas

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estruturas. A oferta de formação a custo mais baixo representa a curto emédio prazo desperdício de recursos físicos, materiais, humanos e financeiros.

Os pesquisadores brasileiros, representados na Anfope, consideramimportante continuar apontando para a necessidade de acompanhar eavaliar as experiências de formação em andamento hoje nas diferentesinstituições de ensino superior dos diversos estados brasileiros, tendo comoparâmetro os princípios de uma base comum nacional para a formaçãodos professores, que vem sendo amplamente discutida e socializada pelacomunidade educacional. Tal acompanhamento diz respeito tanto aoscursos regulares (diurnos e noturnos), como aos cursos emergenciais, quesão hoje ofertados numa proporção realmente preocupante, seja em regimepresencial especial (fim de semana, em férias), ou cursos a distância.

A oferta de cursos de formação de professores a distância supõe a criaçãode espaços para o aprofundamento conceitual de um novo tipo de ensinoe de aprendizagem. Este é um campo extremamente complexo que envolvenovas concepções de aprendizagem interativa, por exemplo, e exige aressignificação das abordagens pedagógicas do fenômeno educativo. Osseguintes pontos merecem hoje particular atenção na sua oferta: 1. definirmelhor a dimensão/concepção de tutoria dos programas de formaçãocontinuada à distância; 2. buscar estabelecer uma cota adequada deeducação presencial como forma de garantir a socialização e o trabalhocoletivo dos professores; 3. definir mais claramente o caráter de programaemergencial desses cursos, vinculando-os às regiões menos atendidas, bemcomo explicitar o papel das Faculdades/Centros de Educação na suaconcepção, elaboração e desenvolvimento (ASSOCIAÇÃO..., 2000).

Os professores, reunidos nos encontros da Anfope, têm demonstrado oentendimento de que cabe tanto aos cursos de formação inicial quanto aosprogramas de formação continuada usar articuladamente tecnologiaseducacionais, não como substitutivos da modalidade presencial, mas comocooperativos, garantindo nesse processo a autonomia do trabalho dosprofessores em relação aos saberes escolares, aos materiais didáticos e àsmodalidades de avaliação do rendimento do aluno. Lidar com as novaslinguagens e compreender as novas formas do trabalho material é um desafiocolocado para os professores que entendem ser, hoje, a tecnologia uma realidadeque impregna a vida de todos, envolvendo novas concepções de ensino eaprendizagem. Mas não representa, certamente, um valor em si mesma.

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Enfim, cabe assinalar que as propostas pelas quais luta o movimentodocente nas últimas décadas – formação de qualidade, incentivo àsfaculdades e centros de educação como espaços privilegiados de formaçãode professores, construção da profissionalização e da autonomia e dodesenvolvimento intelectual do docente –, precisam ser recuperadas nestemomento, para que se transformem em políticas publicas. A discussão dessaspropostas e o encaminhamento das sugestões de modificação devem ocorrerde forma organizada, participativa, abrangendo nossas entidades eassociações acadêmicas e científicas e o conjunto das nossas instituiçõeseducacionais. Estes são compromissos urgentes que devemos assumir sedesejamos efetivamente oferecer a população brasileira condiçõesdemocráticas de acesso á um ensino de qualidade.

A valorização dos professores supõe formação continuada, condiçõesde trabalho dignas e adequadas e um plano de carreira responsável emotivador, dimensões indissociadas do trabalho docente e daprofissionalização do professor. Uma avaliação que não se insira nesseseixos ou que desconsidere a realidade concreta na qual se insere o professore o funcionamento da instituição escolar, tende a ser inócua.

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Saberes docentes na formaçãocontinuada de professores das sériesiniciais do ensino fundamental: umestudo com grandezas e medidasSuzeli Mauro

O PERCURSO DO OBJETO DA PESQUISA E A FUNDAMENTAÇÃO

TEÓRICA

A preocupação com os saberes dos professores vem ocupandoum lugar central nas pesquisas sobre o processo de ensino eaprendizagem nas últimas décadas, em especial a partir dofinal da de 1980, constituindo-se em um campo de investigaçãovasto e rico. Dentre aqueles que pesquisam sobre os saberesdocentes destacamos Shulman (1986); Guarnieri (1997);Gauthier e outros (1998); Pimenta (1999); Borges (2001);Tardif (2002), que a partir de abordagens diferentes, têmcontribuído em várias direções como: na ênfase dada aossaberes experienciais ou práticos dos professores; nofortalecimento da idéia de que existe um saber que se encontrana base do ensino e da profissão, saber este que é construídopelos professores a partir da suas experiências profissionais e,também, pré-profissionais em um longo processo desocialização; e, ainda, no olhar lançado sobre os problemasrelativos à profissionalização e à formação dos docentes,particularmente, quanto ao trato com o conhecimento e arelevância conferida aos saberes profissionais.

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Pimenta (1999), ao repensar a formação inicial e contínua, a partir daanálise das práticas pedagógicas, destaca a importância da mobilizaçãodos saberes da experiência para a construção da identidade profissional doprofessor, tendo em vista a sua prática com alunos de licenciatura. Nestesentido, são identificados pela autora três tipos de saberes da docência: osaber da experiência, ou seja, aqueles saberes adquiridos pelo sujeito nasexperiências vividas na sua trajetória estudantil, os quais são cristalizadose constroem a base de elementos que irão nortear sua prática, bem como, oque é produzido na prática num processo de reflexão e troca com os colegas;o saber do conhecimento, que envolve a revisão da função da escola natransmissão dos conhecimentos e as suas especialidades num contextocontemporâneo; e o saber pedagógico, que compreende o conhecimentoaliado ao saber da experiência e dos conteúdos específicos e que seráconstruído a partir das necessidades pedagógicas reais. Além disso, Pimentaenfatiza que deve ser superada a fragmentação entre os diferentes saberes,considerando a prática social como objetivo central.

A idéia de que a profissão vai sendo construída à medida que o professorarticula o conhecimento teórico-acadêmico, a cultura escolar e a reflexãosobre a prática docente, segundo Guarnieri (1997, p. 2), busca “a partir dopensamento e desenvolvimento profissional dos professores ‘umaepistemologia da prática’ que explique como se configura o processo deaprender a ensinar, de tornar-se professor”. O autor traz tal afirmaçãobaseado em uma pesquisa realizada sobre a atuação de professores iniciantes,ao revisar pesquisas que abordam a competência para ensinar.

Dessa forma, de acordo com Guarnieri (1997), a fim de superar o modeloda racionalidade técnica, as pesquisas e os cursos de formação de professoresdevem redirecionar as relações entre a teoria e a prática, de modo a centraras análises na prática docente e na identificação dos conhecimentos quesão desenvolvidos pelo professor ao atuar no âmbito da cultura escolar edas condições mais adversas do seu trabalho. Além disso, buscar especificare investigar as articulações necessárias desses conhecimentos do professortanto com a prática, quanto com os conhecimentos teóricos acadêmicosda formação básica. Cabe ressaltar que essas articulações possibilitam odesenvolvimento da capacidade reflexiva, que favorece o compromissocom o ensino de qualidade e a competência para atuar.

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Um terceiro eixo é introduzido no processo de formação dos professoresde matemática por Shulman (1986) que, tradicionalmente, se dá a partirde dois tipos de domínios, o específico e o pedagógico. Trata-se do “domíniodo conteúdo no ensino” que compreende: o conhecimento sobre a matériaa ser ensinada, que se refere ao modo como o conhecimento do conteúdoda matéria está organizado na mente do professor; o conhecimento didáticoda matéria, que diz respeito ao modo de representar e formular a matéria,de modo a torná-la compreensível aos alunos; e conhecimento curricularda matéria, que é o conhecimento dos materiais curriculares alternativospara uma dada matéria.

O domínio do conteúdo no ensino, na perspectiva de Shulman (1986)configura-se no eixo principal da formação dos saberes da docência, umavez que relaciona de modo intencional o saber matemático aos saberesdidático-pedagógico, levando em conta o sentido formativo que estásubjacente à prática escolar ao ensinar e aprender esses conteúdos.

Assim, segundo o autor para ser professor de matemática não basta terum domínio conceitual e procedimental da matemática produzidahistoricamente, é necessário, sobretudo, conhecer seus fundamentosepistemológicos, sua evolução histórica, a sua relação com a realidade,seus usos sociais e as diferentes linguagens com as quais se pode representarou expressar um conceito matemático.

Com as contribuições dos pesquisadores mencionados anteriormente, épossível identificar três saberes docentes que são essenciais no processo daformação inicial de professores, são eles: os conhecimentos epistemológicos,didáticos e específicos. Diante disso, a presente investigação aborda aformação em matemática de professores que atuam nas séries iniciais doensino fundamental, a partir da seguinte questão: Quais saberes docentessão mobilizados na organização da ação pedagógica para o estudo de áreae perímetro nas séries iniciais do ensino fundamental?

Assim, o objetivo da pesquisa foi viabilizar uma relação dialética entrea teoria e a prática no estudo de área e perímetro, por meio da organizaçãoe aplicação de uma seqüência didática com estes conteúdos, a partir de umambiente de análise e reflexão sobre a ação pedagógica, proporcionadoem um grupo de estudos, a fim de possibilitar a construção dos diferentessaberes docentes.

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O CONTEXTO DA PESQUISA E OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A investigação, um estudo de caso, teve origem em um grupo de estudoscomposto por duas formadoras, que trabalham com a disciplina Didáticada Matemática no nível superior e dez professoras, que atuam nos anosiniciais da Educação Básica, em instituições particulares de ensino. SegundoLüdke (1986, p. 18) o estudo de caso visa à descoberta e permite aopesquisador recorrer “a uma variedade de dados, coletados em diferentesmomentos, em situações variáveis e com uma variedade de tipos deinformantes”.

O objeto da pesquisa foram as inquietações de uma das professoras dogrupo de estudos (professora investigadora), quanto ao trabalho com áreae perímetro, que desencadeou na elaboração e execução de uma seqüênciade atividades na 4ª série do 2º ciclo do ensino fundamental, com um grupode vinte e seis alunos, em uma instituição particular de ensino, situada nointerior da Bahia.

Para tanto, a investigação pautou-se em levantamento de produçõesbibliográficas disponíveis em livros, revistas, internet, Cd-Room sobre osconteúdos área e perímetro; na elaboração de uma seqüência de atividades;na aplicação da seqüência em sala de aula e na análise de registros das aulas.

O desenvolvimento do trabalho com as grandezas geométricas junto àscrianças das séries iniciais do ensino fundamental constituiu-se em umgrande desafio para a professora investigadora, pois de acordo com seusrelatos, até então, ela não sentira despertada a curiosidade ou a necessidadede trabalhar com esse bloco de conteúdo, durante a sua vivência em salade aula. Uma explicação para isso seria o desconhecimento da importânciade trabalhar tais conteúdos ou a falta de propriedade acerca de o quê,porque e como proporcionar aprendizagem numa construção tão abstratado pensamento.

No grupo de estudos as questões da professora investigadora centravam-se nos aspectos pontuados por Shulman (1986) no que se refere ao domíniodo conteúdo no ensino e por Pimenta (1999), que destaca a importânciada mobilização dos saberes da experiência para a construção da identidadeprofissional do professor, o que é retratado nas suas falas: “Como ensinaro que não foi construído na minha própria aprendizagem?” “Comodescentrar um olhar perceptível para uma construção lógico-matemática?”“Como ‘desconstruir’ esta resistência em pensar diferente?”.

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Diante disso, foi tomada uma decisão no grupo de estudos: cadaparticipante deveria incumbir-se de levantar questões que os inquietavamno desenvolvimento de sua ação pedagógica, sendo aberto nos encontrosum espaço para estudo e discussão de cada questão. E então, a professora,sujeito deste estudo de caso, deu início à sua investigação que gerou anecessidade no grupo de um levantamento bibliográfico de produções,envolvendo área e perímetro para as discussões e posterior elaboração daseqüência de atividades.

ANÁLISE DOS RESULTADOS: OS ESTUDOS, A VIVÊNCIA EM SALA DE AULA

E A CONSTRUÇÃO DE SABERES DOCENTES

A partir das reuniões do grupo de estudos, no que se refere ao estudo decaso de área e perímetro detectou-se a escassez de publicações que abordamteoricamente o ensino-aprendizagem destes conteúdos. No entanto, aspoucas referências encontradas foram importante objeto de reflexões parao grupo, destacando-se dentre elas Pires (2000), Pavanello (2004), Brito eBellemain (2004).

De acordo com os autores referidos, no estudo de área e perímetro énecessário considerar três pólos: o geométrico – que compreende as figurasgeométricas e seu contorno; o numérico – que se refere às medidas dasgrandezas área e perímetro, composto por números reais não-negativos e dagrandeza relacionado às idéias de área e perímetro, constituindo-se naspropriedades das figuras geométricas e do seu contorno. E também, recomenda-se uma exploração de situações de comparação, produção e medidas naresolução de situações-problema, envolvendo muitas vezes as estimativas.

A partir de tal referencial a professora investigadora realizou uma buscaem diversos livros didáticos, a fim de analisar situações pedagógicas quefavorecessem a construção dos conceitos de área e perímetro, considerandoos três pólos acima mencionados.

No entanto, houve uma insatisfação do grupo e da professora, emespecial, quanto às propostas encontradas em livros didáticos, pois sedepararam com uma ênfase muito grande nos aspectos numéricos, o quenão era o objetivo maior; necessitava-se de situações que proporcionassemuma reflexão sobre os aspectos geométricos, da grandeza e numéricos, afim de favorecer a aprendizagem das crianças quanto à área e perímetro.

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É possível destacar nas discussões do grupo o empenho e envolvimentoda professora investigadora, a fim de desenvolver um trabalho considerandoas potencialidades e necessidades dos seus alunos. Segue uma de suas falas:

O desejo em fazer diferente foi aumentando, e por meio das parceiras no grupofoi também ganhando sentido. As nossas discussões favoreceram que eu metransformasse em aprendiz.

A cada encontro, a professora ao invés de apontar simplesmente o quedesejava, reunia diferentes situações didáticas que faziam os professores dogrupo identificar em quais momentos tinha-se uma abordagem no campogeométrico, das grandezas ou numérico. À medida que os encontrosaconteciam, as discussões tornaram-se cada vez mais promissoras e umsuporte teórico foi sendo construído. Segundo depoimento da professora,vinculado ao referencial estudado, a experiência de compartilhar umaprática de intervenções a fez aprender o que pretendia ensinar. Vale ressaltara sua fala em uma das discussões no grupo de estudos:

O professor precisa conhecer e ter propriedade do que deseja ensinar, ou éassim, ou se finge ensinar. Ele precisa colocar-se na posição do aluno (de aprendiz).

Durante o processo a professora perguntava-se: “Será que estou preparadapara extrapolar, ou pelo menos, assegurar o nível de aprendizagem desejada?”.

Apesar da resposta negativa durante um período, ela começava a sentir-se pautada nas possíveis intervenções que deveria fazer, pois o seu processode construção começava a sustentar o que pretendia construir com ascrianças. Sabia que neste tipo de ação pedagógica muitas surpresas poderiamsurgir, afirmações e questionamentos das crianças que desestruturariam asua ação inicial, mas era certo de que tinha condições de aproveitar, aomáximo, construções pessoais no decorrer da seqüência que levariam a umcrescimento coletivo.

Na elaboração da proposta efetiva de trabalho, a fim de organizar seusencaminhamentos, a professora procurou levantar o conhecimento préviodos alunos e possíveis dificuldades quanto à área e perímetro. Em seulevantamento a professora constatou que os alunos: confundem área eperímetro, assim como contorno e superfície; não diferenciam grandezas emedidas de grandeza; geralmente, calculam medidas utilizando fórmulas,sem saber o que exatamente calculam; costumam pensar que somente os

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polígonos que tem nome e fórmulas possuem área e perímetro; confundemcontorno e perímetro.

Assim, para a fundamentação do ensino-aprendizagem a professorafirmou seu olhar para algumas intencionalidades, como: introduzir o estudode perímetro e área, distinguindo e articulando a partir do quadrogeométrico e do quadro das grandezas; vincular situações-problema queviabilizam e dão sentido à construção do conceito de área que são: situaçõesde comparação, de medida e de produção; proporcionar situaçõessignificativas para as crianças, que podem envolver o uso de materiaisconcretos e situações didáticas que dispensam o uso deste tipo de materiais,como exemplo, a fala num momento de discussão coletiva ou dearticulações de idéias em duplas; diferenciar e articular o quadro geométricoe das grandezas, ou seja, comparar sem medir.

Desse modo, a seqüência de atividades elaborada e discutida nosencontros do grupo de estudos, que segue, efetivou uma relação dialéticaentre teoria e prática, visto que cada atividade ao ser construída mobilizouos estudos e reflexões sobre o ensino-aprendizagem de área e perímetro,realizados anteriormente nas sessões:

1ª Situação-problema:Mariana costuma fazer caminhadas matinais. Próximo a casa dela

existem quatro lagos e a cada dia da semana ela realiza três voltas ao redorde um deles. Observe a seguir estes lagos:

Figura 1

Fonte: SMOOTHEY, 1997, p. 8.

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Em qual dos lagos ela percorre uma distância maior? E a maiordistância? Qual(is) o(s) procedimentos(s) que você deve utilizar para afirmarsuas respostas com maior segurança?

2ª Situação-Problema:Marina adora criar figuras em malha. As últimas que ela produziu

ficaram bem originais. Mas há um problema: ela precisa definir qual(is)dela(s) ocupa(m) o maior espaço.

Observe cada uma delas:

Figura 2

Fonte: SMOOTHEY, 1997, p. 43.

Tente ajudá-la a descobrir e explique como você pensou para chegar àsconclusões.

3ª Situação-Problema:1. Desafio Legal:Qual dos dois terrenos ocupa maior espaço? O resultado está de acordo

com a sua estimativa apenas com a observação das formas? (Figura 3)2. É possível calcularmos a área da figura mais escura? Como? (Figura 4)

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Figura 3 Figura 4

Fonte: BIGODE, 2000, p.259.

4ª Situação-Problema:1. Observe a figura abaixo feita com palitos de fósforo.

Figura 5

Fonte: BIGODE, 2000, p.258.

Considerando como unidade de medida “O palito de fósforo”, responda:a) Qual o perímetro da figura? E a área?b) Movimente só 2 palitos para que a figura ganhe mais 1 pq (palito

por quadrado) de área.c) Movimente o menor número possível de palitos para que a figura

fique com área de 15 pq. (Figura 5).

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5ª Situação-Problema:“Está acontecendo uma grande reforma em minha casa. Resolvi mudar o

piso da cozinha e do pátio. Veja como é cada um desses espaços.”

Figura 6

Cozinha PátioNa cozinha decidi colocar Para o pátio, preferi utilizaruma cerâmica deste tipo: este tipo de cerâmica:

Fonte: PONCE, 1999, p.78.

Agora, um desafio:Eu calculei que para a cozinha vão ser necessárias 40 cerâmicas e para o

pátio 17. Portanto, podemos afirmar que a cozinha tem mais superfície(para colocar a cerâmica) que o pátio? Justifique a sua resposta.

6ª Situação-Problema:I Momento:Um terreno tem 90 m de perímetro.a) Desenhe como pode ser esse terreno e indique as medidas de cada lado.II Momento:Observe as quatro figuras a seguir:

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Figura 7

Fonte: FACCO, 2003.

a) Identifique estas figuras da que tem a menor área à que tem a maiorárea. Justifique sua resposta.

b) Entre elas há figuras que têm a mesma área? Justifique sua resposta.c) Identifique estas figuras da que tem o menor perímetro à que tem

maior perímetro. Justifique sua resposta.d) Entre elas há figuras que têm mesmo perímetro? Justifique sua resposta.

7ª Situação-Problema:1. Leia toda a atividade abaixo e responda:Marília, Luísa e João Pedro, são irmãos, eles estão construindo uma

casa de praia. Este mês os pedreiros darão início ao assentamento do piso,para isso cada um dos irmãos ficou responsável por comprar uma parte dacerâmica. João comprou a cerâmica da área de circulação da lateral esquerdada casa, Luísa de um dos quartos da casa e Marília a da área de serviço.

Os pisos comprados serão arrumados da seguinte maneira:4m X 5m 10m X 2m 1m X 20m

a) A qual dos espaços em negrito corresponde cada uma dessasarrumações? Justifique a sua resposta.

b) A área e o perímetro dos três espaços são iguais? Justifique a sua resposta.

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c) Considerando que os demais espaços de casa são: 2 quartos, 1 cozinha,1 sala de jantar, 1 sala de estar, 1 banheiro, 1 corredor e o restante da áreade circulação ao redor da casa. Organize na malha quadriculada abaixo aplanta da casa de praia. Cada quadrinho representa 1m2.

Ah, toda a malha deve ser utilizada e a área de circulação ao redor detoda casa deve constar nesta malha.

Figura 8

8ª Situação-Problema:As plantas a seguir foram construídas por algumas crianças da 4ª série.

Vamos analisá-las?Veja quais espaços a malha quadriculada deveria conter.a) 3 quartos d) 1 sala de estar g) 1 área de serviçob) 1 cozinha e) 1 banheiro h) área de circulação ao redorc) 1 sala de jantar f) 1 corredor

Obs.: Trata-se de uma casa de praia.

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Figura 9

Na 3ª situação proposta existem dois momentos. No primeiro momento,as crianças foram postas em uma situação de comparação de grandezas damesma natureza (superfície) apenas com a observação das figurasgeométricas sem nenhum suporte de divisão das mesmas para nortear oresultado. Esta atividade é semelhante a da 1ª situação-problema, porémdiferenciam-se quanto à grandeza a ser comparada.

No segundo momento nenhuma criança discordou de que seria possívelcalcular uma área aproximada; as situações de discussões anteriores deramsuporte para esta conclusão única.

A articulação de conhecimentos da grandeza área aos conhecimentosdas propriedades da figura e de seu contorno fez-se necessária. A partirdesta articulação, uma criança chamou as pequenas partes (que não eramquadrados) de pontas irregulares, considerando-as metade de um quadrado,portanto possível de calcular. Uma outra afirmou que era possível calcular,porque todo o espaço de um terreno tem que ser considerado, independentede ser plano (regular nas medidas) ou curvo.

Muitas afirmaram que as partes incompletas do quadrado nãocorrespondiam à metade, por isso dificultaria um valor mais aproximadopossível.

As crianças chegaram à conclusão que dependendo de quem iria calcular,poderia encontrar valores diferentes.

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Uma criança em especial, levantou um questionamento que setransformou situação de pesquisa:

Um arquiteto possui instrumentos modernos para calcular esse tipo de terreno?

A professora investigadora perguntou o motivo de sua dúvida e elarespondeu.

Ora pró, já pensou no tempo que ele pode perder sem esses instrumentos? Eainda correr o risco de pedir uma quantidade de materiais desnecessários paraa construção. Coitado, eu acho que se não tiver, ele perde muita clientela.

Neste momento a construção da aprendizagem ganha o que tanto seprega nas nossas diretrizes educacionais: uma função social.

A 7ª Situação-Problema foi a que a professora investigadora consideroude maior riqueza em toda seqüência, pois para ela:

A atividade envolve os três pólos: geométrico, grandezas e numérico articuladosem situações de comparação, produção e medidas. Além disso, trata-se dereflexões que viabilizam um pensar sobre o social. As crianças precisaramreportar-se ao seu cotidiano por uma necessidade implícita na tarefa. As criançastêm as medidas, pautada nisto, produzem o espaço e com a visualização deste,tentam adequar ao objetivo de ocupação deste espaço (objetos grandes oupequenos / maior ou menor circulação de pessoas).

A professora destaca ainda outra reflexão: Áreas iguais nem sempredeterminam perímetros iguais, uma intencionalidade, visto que, na 6ªSituação-problema houve uma pequena confusão neste aspecto.

Segundo a professora investigadora houve uma indecisão no grupo emrelação a definir 4m x 5m e 10m x 2m, para o quarto ou área de serviço e10m x 2m e 1m x 20m para circulação da lateral esquerda.

Veja como pensaram algumas crianças:

4m x 5m é para o quarto, pois todos os quartos sempre são quase quadrados.

4m x 5m é para área de serviço, porque precisa colocar só a parte de higiene queé pequeno.

10m x 2m - área de serviço, pois não precisa ser um lugar comprido e sim largo.

1m x 20m - área de circulação. Neste espaço sempre vejo largura pequena e bemcumprida. Acho que é porque passa pouca pessoa, não é um espaço que acumulapessoas.

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10m x 2m – este é ideal para área de circulação, pois o corredor tem umalargura menor e o comprimento maior porque acompanha o comprimento dacasa.

Já na 8ª Situação-problema a professora investigadora decidiu juntoao grupo de estudos, pautada na produção da situação anterior, coletartrês plantas-baixa para reflexão de adequação de espaços a partir do terrenodisposto e dos objetos que deverão compor as pequenas repartições (sala,cozinha, quarto…).

As crianças foram orientadas a pensar sobre:1. Qual das representações há uma maior adequação do espaço ao

objetivo desejado (casa de praia)? Por quê?2. Existe algum elemento que poderia ser colocado nas plantas e com

sua ausência dificulta a compreensão sobre as mesmas?

Os pensamentos das crianças foram bem incisivos em alguns aspectos,apresentados a partir de uma reelaboração das falas das mesmas:

1. As pequenas repartições podem dispor os objetos, dando maiorcomodidade quando são quadrados ou retangulares.

2. Não há corredor do lado da parede, geralmente ficam no centroporque eles existem para dar acesso aos outros cômodos.

3. Não é comum cozinha ficar no meio da casa e sala de jantar noinício.

4. A área de serviço deve ficar próxima à cozinha porque facilita otrabalho da dona de casa e também é mais higiênico.

5. Na planta-baixa, precisa ser sinalizado, aonde tem portas e janelasaonde é frente e fundo.

Cabe ressaltar que as falas dos alunos foram objeto de análise do grupode estudos e retratam as construções das crianças.

Um outro aspecto a ser enfatizado é a relevância da situação decomparação das produções pelos alunos, que proporcionou momentosenriquecedores na construção do conhecimento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da pesquisa realizada pode-se perceber que a construção desaberes docentes, no que se refere ao “domínio do conteúdo no ensino”,efetivou-se por meio da ação reflexiva da prática desenvolvida e dosprocessos interativos nos encontros do grupo de estudos.

Diante disso, ao considerar o processo de apropriação dos saberes sobreárea e perímetro é possível ressaltar a importância da articulação daprofessora entre as construções dos saberes específicos associado a um olharreflexivo sobre os saberes epistemológicos, que possibilita desenvolver umavisão sobre como se processa a construção cognitiva pelo aluno, em relaçãoa tais conteúdos, para daí acionar saberes didáticos que viabilizem aelaboração de atividades.

Destaca-se nesse estudo, a construção pela professora investigadoraquanto à importância no tratamento didático de área e perímetro emconsiderar que as atividades devem contemplar os pólos geométrico e dasgrandezas, e não apenas o numérico, visto que identificou-se nos estudosque a dificuldade de compreensão pelos alunos dos conceitos de área eperímetro estão relacionadas com a ênfase dada nas atividades apresentadasnos livros didáticos para o pólo numérico.

Assim, a seqüência “Medindo, comparando… produzindo”,caracterizou-se como uma proposta desafiadora, à medida que, possibilitaum trabalho com área e perímetro. Explorou-se o comparar sem medir; aspossibilidades de respostas a partir da tarefa cognitiva do aluno semnecessariamente partir da exatidão do campo numérico, o que não significouum abandono no que se refere às medidas das grandezas quando constituídaspor números, apenas deixou de ser um fim, para tornar-se mais um meiona construção das idéias destas grandezas.

A partir das discussões e reflexões ocorridas ao longo do estudo e dodesenvolvimento da seqüência, validou-se a importância de situações decomparação e produção na compreensão do que é contorno/perímetro,superfície/área e área/perímetro. Por trás destas ações didáticas existe umnível de reflexão significativo, porque faz com que a criança elaborediferentes estratégias, não restritas àquelas que envolvem o medir paradefinir com certeza as suposições solicitadas em torno de área e perímetro.

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Além disso, possibilita intervenções que levem ao uso de materiaisconcretos na construção das idéias, não sendo este o único meio importante,dependendo da situação-problema proposta.

A professora investigadora destaca a relevância social do trabalho commedidas e grandezas:

Por muitas vezes, em meio às nossas descobertas, percebia as crianças analisandoo piso da sala; falando que quando fosse receber uma mobília nova para o seuquarto, iria participar da escolha, procurando proporcionar a si mesmas maiscomodidade; questionando-se e aos outros como funciona o trabalho de umarquiteto; lendo revistas que tratam do assunto; enfim, tantas outras situaçõesque me faziam sentir feliz e com desejo de continuar mediando esse processo deconstrução.

Vale ressaltar que, é na ação que o profissional se depara com anecessidade de reconstruir o seu conhecimento matemático para atribuirsentido as ações de seus alunos.

Além disso, como contribuição desse estudo tem-se a importância daconfrontação das práticas consagradas pela experiência estudantil dosprofessores com as novas perspectivas para a ação pedagógica e da dialéticaentre teoria e prática, promovidas pelo processo interativo no grupo deestudo dos professores que atuam nas séries iniciais.

Assim, instala-se um ciclo de construção e reconstrução dos saberesdocentes em que o professor coloca-se em busca de um novo saber, quedeve ser questionado e refletido por meio das experiências vivenciadas nogrupo em que atua. Nesse momento, o professor constitui-se comoprofissional reflexivo, crítico e investigativo da sua prática pedagógica.

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Educação musical: um estudo apartir de experiências pedagógicasna Escola de Música daUniversidade Federal da Bahia Leila Miralva Martins Dias

Antes de iniciarmos propriamente a abordagem do tema,convém traçar um breve quadro conjuntural da trajetória doensino de música no Brasil, para facilitar o acesso da questãoa um público mais amplo. Apesar do reconhecimento quesempre se deu à música no campo das artes, somente nosúltimos 30 anos, vem-se destacando a sua contribuição para aformação e o desenvolvimento humano das pessoas em geral.Levantemos então, resumidamente, uma visão panorâmica dasituação.

A música foi praticamente extinta do ensino médio, desde o início dosanos 60 do século XX, quando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação(LDB) alterou profundamente o currículo do ensino médio, permitindo asua flexibilização. Ao longo desses 45 anos, a disciplina música tem aparecidoapenas como um diferencial em certas instituições de ensino, ou como“ornamento” em ocasiões especiais. Excluído o ensino da música doambiente escolar, ele foi confinado aos ambientes acadêmicos onde se afirmavirtuoso e profissionalizante.

Para as crianças, os adolescentes e jovens, no ensino pré-universitário,ao longo desse tempo, quando muito, o quê havia eram aulas de música jádirecionadas para o instrumento com a perspectiva do virtuosismo. Os

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professores davam aulas particulares em suas casas ou em conservatórios eos alunos levavam para casa as lições para praticarem como estudos detécnica e algumas peças de compositores eruditos, geralmente, da culturaeuropéia (DIAS, 1992).

Assim, depois dos anos de 1960, até os nossos dias, tornando-se a músicaeletiva como disciplina, a relação do sistema educacional brasileiro com oensino da música retrocedeu vertiginosamente à República Velha, quandoa instrução pública mal se esboçava. Neste aspecto, a situação tornou-semais dramática do que na República Nova, inaugurada nos anos de 1930,quando, apesar das restrições de ordem política, tornou-se obrigatório oensino de música nas escolas públicas.

Dos anos de 1930 até os anos 1960, no entanto, o fazer musical nosistema oficial de ensino era chamado de Canto Orfeônico, que, através dapredominância dos hinos patrióticos, assumia claramente objetivos deformação cívica e moral, e a iniciação musical, realizada dominantementena rede privada de ensino, em pequenos grupos com canções folclóricas(FUKS, 2007).

Coincidentemente, os anos que se sucederam à Lei de Diretrizes e Basesda Educação dos anos de 1960, foram marcados pelo desenvolvimentodos meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão e o cinema,uma vez que o rádio teve o seu desenvolvimento já desde os anos de 1930.E foi justamente, através desses meios de massa, que se processou,dominantemente, de forma assistemática e ao sabor dos interesses comerciais,o ensino da música no Brasil.

Entretanto, as transformações sociais ocorridas no País, entre os anosde 1960 e 1980, sobretudo marcadas por severas restrições à participaçãodos diferentes setores sociais, levaram os setores interessados nodesenvolvimento cultural à busca de formas de expressão que, a um mesmotempo, fossem o protesto contra a situação vigente, e significasse o surgimentouma nova forma de viver e expressar o mundo. Embora todas as artes tivessemsido mobilizadas, a música, pelo seu potencial de difusão, alcançou papelmais destacado. Todo o Brasil acompanhou os Festivais da Canção Popular.A nova geração de músicos passou a expressar os anseios de liberdade tantopolítica, como existencial (HOLANDA; GONÇALVES, 1986).

Entramos, definitivamente, em um novo tempo. Desde então, as artes,de um modo geral, passaram a ser valorizadas não apenas como bem

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simbólico de consumo, mas, sobretudo, como algo a ser buscado noprocesso de educação. Passou-se a reconhecer a contribuição da educaçãoartística na formação, não apenas das crianças, mas dos jovens e adultosde todas as idades. Nesse contexto, a música assume um destaquepreponderante e assume novos rumos (BRASIL, 1997).

A educação musical, independentemente do reconhecimento oficial pelopoder público, transpôs os muros da academia e passou a ser uma aspiraçãosocial. Então, de modo diverso de períodos históricos anteriores comoestudados por Souza (2007) e Fuks (2007), é a própria sociedade, dessavez, que se mobiliza ao encontro da educação musical, não mais comomecanismo de controle social e político como fizeram os regimes autoritáriosdo passado, mas como uma necessidade para o desenvolvimento humano.

Inegavelmente, essa nova tendência tem como marcos importantes ofortalecimento das pesquisas em educação musical nos cursos de pós-graduação desde os anos de 1980 e a criação da Associação Brasileira deEducação Musical (Abem), em 1991 (OLIVEIRA; CAJAZEIRA, 2007).Graças a esses esforços dos educadores musicais, nos dias de hoje, apesardo ensino da música ainda permanecer periférico ao sistema de ensinooficial, os pesquisadores de Educação Musical vêm afirmando-o, a passoslargos, como área específica de conhecimento e de investigação científica(SOUZA, 2007).

As pesquisas têm revelado que a tradicional “aula de música”, comteorias, solfejos e abordagens descontextualizadas, perde cada vez maisespaço. A nova preocupação dos educadores musicais, no entanto, não ésomente re-significar essa “aula de música”, mas também expandir seucampo de atuação abraçando as manifestações culturais, legitimando osdiversos outros espaços em que ela está presente, a exemplo das práticasmusicais religiosas, dos contextos fora da escola e das experiências musicaisdiversas no cotidiano das pessoas (SOUZA, 2001). Além disso, dentro dasociedade mais ampla, vem-se fortalecendo a movimentação política pelainclusão do ensino da música no sistema educacional brasileiro, contando-se inclusive, a essa altura, com projeto de lei em tramitação no CongressoNacional.

As pesquisas desenvolvidas sobre o ensino da música no Brasil,sobretudo a partir dos programas de pós-graduação, têm colocado algunselementos para a reflexão tanto dos educadores, como de pais, de líderes

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comunitários e de autoridades educacionais sobre a importância daeducação musical para a formação do sujeito. Em conseqüência, essasreflexões têm exigido uma tomada de posição de todos em relação ao quevem sendo denominado de uma educação musical e não mais um meroensino da música.

A realidade contemporânea, os novos objetivos da educação musical,os diversos espaços, as novas demandas da área e as expectativas trazidaspelos estudantes de música, portanto, nos fazem refletir acerca de modosde pensar diferenciados para atuar nessa nova realidade. Nessa novasituação, o educador se encontra diante não só de uma vastidão de espaços,onde a educação musical acontece, mas também diante de um universo dealunos mais conhecedores do repertório musical disponível na mídia emais consciente de suas próprias expectativas de aprendizagem.

Os alunos, que procuram a aprendizagem musical na atualidade, sãoportadores de objetivos bastante variados. Além do desejo de aprender uminstrumento, procuram a prática musical como um meio de interação social,de entretenimento, da busca pelo lazer e muitos outros. Ou seja, a músicanão é mais somente um veículo de formação artístico-cultural, mas tambémum instrumento de formação integral do indivíduo. Ela é também fatorde afirmação de identidades e um campo que abriga a diversidade culturalbrasileira.

Portanto, todas essas transformações no contexto da educação musicale, sobretudo considerando as subjetividades do aluno de música daatualidade, produziram mudanças que se impõem ao novo educador musicalpara que ele possa contemplar essa nova realidade com outros modos deatuação, diferentes dos habituais, legitimando as experiências trazidas tantopelo aluno, como pelo professor.

PROJETO CORAL DA ESCOLA DE MÚSICA DA UFBA: FUNDAMENTOS

TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Tendo em conta as contribuições que têm emergido das pesquisas nocampo da educação musical e a visão dessa realidade contemporânea, oProjeto Pedagógico da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia(UFBA), que serve de norte tanto para os seus cursos de graduação e pós-graduação, como para os seus diversos projetos de extensão considera que:

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Diante desta realidade, a escola não é mais considerada lugar exclusivo deaprendizagem na sociedade do conhecimento, na qual são múltiplas asoportunidades de ensinar e aprender. Da mesma forma, a área de educação musicalexpandiu-se em várias dimensões: faixas etárias, espaços de atuação, modalidadese metodologias. Se até há pouco tempo entendia-se o ensino de músicaprincipalmente voltado para as crianças, hoje são contempladas todas as idades:desde os recém-nascidos até a terceira idade. Surgiram novos espaços e outrosganharam reconhecimento: além do ensino específico de música (cursos de extensãouniversitária, conservatórios, cursos técnicos e de graduação) e as escolas regularespúblicas e particulares, entraram em cena as ONGs, os projetos sociais, o ensinoa distância, o ensino de música para portadores de necessidades especiais, asmanifestações da cultura popular, entre outros. As modalidades, inicialmentevoltadas para a musicalização infantil, passam a compreender qualquer tipo deconjunto instrumental, vocal ou misto, aulas de cunho mais teórico e a formaçãode professores. Às metodologias ativistas se juntaram outras abordagens(UNIVERSIDADE..., 2006, p. 6).

Com o objetivo de assegurar maior clareza sobre o que se espera doseducadores musicais diante dos desafios dos novos tempos, o presente ensaioapresenta experiências pedagógico-musicais, desenvolvidas através deprojetos de extensão, com adultos, jovens e adolescentes, através do corolivre e performático, onde, normalmente, o compromisso dos alunos como coral não é necessariamente prioritário em suas vidas.

A formação de coros performáticos, que se caracterizam por aliar adança e/ou o teatro ao canto, tem sido cada vez mais freqüente, em diferentespontos do Brasil, a exemplo do grupo da professora Ana Maria dos Santos,de Belém e dos corais regidos pelo Maestro Cícero Alves, em Salvador,Simone Raslam, em Porto Alegre e outros.

O trabalho com o coro performático, como visto acima, assume tambémum caráter interdisciplinar. Assumindo-se a idéia de que o educador devepromover um ensino que aborde, além das mais recentes inovaçõestecnológicas, elementos que contemplem a simplicidade, a natureza e oencontro do homem consigo mesmo. Essa mesma idéia é presente naproposta oficial dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para Arte.

A interdisciplinaridade, como nos adverte Luck (1999):

corresponde a uma nova consciência da realidade, a um novo modo de pensar,que resulta num ato de troca, de reciprocidade e integração entre áreas deconhecimento, visando tanto a produção de novos conhecimentos como aresolução de problemas, de modo global e abrangente (LUCK, 1999, p. 62).

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Também, com essa tendência, vêm-se informalizando a postura de palcodos coros, vinda dos moldes tradicionais, mantida durante muitos anos noscorais eruditos do Brasil e do mundo. Estas práticas performáticas têm comoobjetivos, entre outros, aumentar o nível de expressão e motivação dos coristasatravés da integração entre as linguagens artísticas, estimular o desenvolvimentodos educandos em outras dimensões humanas, além de provocar um maiorinteresse e envolvimento da platéia (DIAS; SANTA ROSA, 2007).

Esse trabalho fundamenta-se nas contribuições teórico-metodológicasde educadores musicais como Willems, Orff, Dalcroze e Swanwick, Oliveira,Souza e outros que convergem em torno da idéia de que o educador musicaltem como uma de suas principais funções, possibilitar aos alunos o(re)descobrimento de valores em diferentes dimensões, interior eexteriormente (LANDIS; CARDER, 1972).

A criação ou mesmo a montagem de espetáculos musicais, portanto,apresenta-se, nesse contexto, como uma ferramenta educacional enérgicafavorecendo, nos alunos, tanto o seu desenvolvimento musical, quantoartístico e cultural. Além disso, favorece o crescimento intelectual, odesenvolvimento psicomotor e emocional, proporcionando ao educandoo contato com as dimensões do sentimento, do prazer e da alegria.

Esse trabalho, ao par com as bases da nova educação musical,fundamenta-se também nas idéias de educadores e teóricos contemporâneosdo campo da educação em geral, como Paulo Freire, Edgar Morin e JeanPiaget. A cada espetáculo que se cria e se realiza, pode-se observar como aeducação musical se torna efetiva a partir da transformação das aulas numencontro dos saberes do professor e dos alunos.

As contribuições desses autores, portanto, levam à consideração de queo desejo e o saber trazidos pelo aluno para o contexto educacional são tãoimportantes quanto o desejo e o saber do professor. Tem-se observado, aolongo desses anos, como a instauração desse processo dialógico tornapossível perceber e alargar as possibilidades de práticas educacionais, quecontribuem, não apenas para o crescimento dos alunos como serespensantes, sociais, individuais, artísticos, musicais e, sobretudo, humanos,mas servem também, de modo extraordinário, ao aperfeiçoamento e arealização dos educadores.

A educação contemporânea ou do futuro, como diz Morin, por suavez, valoriza o saber do educando e o considera elemento necessário para a

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construção do conhecimento. O aluno deve ser a parte mais importanteno processo de ensino-aprendizagem tendo participação ativa nodesenvolvimento dos conteúdos e nas atividades com as quais ele lida. Oconhecimento teórico passa a ser algo adquirido com a vivência prática,podendo fazer parte de um conjunto de experiências do aluno diretamenteligadas à sua realidade e das quais ele pode se apropriar, tornando-se donodo seu próprio saber (MORIN, 2000).

Nessa mesma trilha, autores da educação musical já destacam aimportância de se valorizar o cotidiano do aluno no processo de ensino eaprendizagem, abrindo espaço para uma educação participativa comresultados efetivos (TOURINHO, 1995; SOUZA, 2000; ARÓSTEGUI,2000; 2007).

Nesse sentido, considera-se que o trabalho de educação musical, noprojeto coral, procura valorizar o espaço para a expressão do aluno e da suaindividualidade, o incentivo à imaginação e à criatividade, a atenção à emoção,à afetividade, e à sociabilidade, a busca pela autonomia do conhecimentoadquirido, o alcance da teoria a partir da prática, o diálogo professor/alunoem prol do conhecimento do mundo do aluno e da contribuição do professor,o conhecimento global do conteúdo trabalhado e a integração dasindividualidades para a construção de um todo musical artístico, educacional,sociocultural e, sobretudo, humano (DIAS; QUADROS, 2007).

O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES

As atividades de educação musical com os jovens e adultos, no coralperformático, a cada ano, começam com a elaboração de um projeto deum espetáculo musical (WHITE, 1999). Tem-se como princípio nãoselecionar previamente os prováveis participantes, considerando apenas,como exigências básicas, que sejam membros do Projeto Coral.Frequentemente há alunos e professores dos cursos de extensão, graduaçãoe pós-graduação da Escola de Música e de outros cursos da UFBA. Oimportante é que estejam interessados e comprometidos com o trabalho.Não é exigido nenhum tipo de experiência anterior e nem habilidadesespecíficas.

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Assim, as limitações apresentadas por alguns dos integrantes nãoprovocam prejuízos ao resultado final do trabalho, pois elas costumam sertrabalhadas durante o período de um ano letivo. Para a realização dessestrabalhos, além dos coralistas, conta-se eventualmente, com a participaçãode professores de teatro e dança, para ajudar a dar sentido ao roteiro e aampliar a espontaneidade e presença de palco dos educandos.

Uma vez discutido e acertado com o grupo a realização do espetáculo aser apresentado ao final de cada ano, são escolhidos os responsáveis paracada setor de produção necessária à realização do projeto tais comofigurinista e tesoureiro e outros. Alguns desses papéis podem ser assumidospor uma ou duas pessoas, ou mesmo pelo coletivo dos educandos quepassam a desempenhá-los através de processos dialógicos sob a coordençãodo professor ou professora que exerce também a direção geral.

Nesse sentido, os participantes tornam-se também organizadores. Ospróprios coristas assumem as responsabilidades por todos os passosnecessários para a realização do espetáculo. Espera-se que esse envolvimentocom o desempenho de tarefas voltadas para o projeto comum, proporcionemnão só o acolhimento do saber do aluno trazido do seu dia dia, mas tambémnovas descobertas e a ampliação dos seus horizontes pessoais de vida, tantocomo indivíduos, como seres sociais (SANTA ROSA; DIAS, 2007).

No primeiro dia de aula, o(a) professor(a)-regente propõe a formaçãode uma grande roda com alunos. Inicialmente ele(a) se apresenta e pedepara que cada um dos participantes se apresente. Declarando, inclusive, osmotivos que os levaram a participar de um processo de educação musical.Ainda no primeiro dia, são realizados trabalhos de aquecimento erelaxamento corporais. Além disso, vão sendo introduzidas várias outrasdinâmicas como jogos, brincadeiras rítmicas, improvisações vocais ecorporais com a intenção de proporcionar a descontração e um estado deespírito aberto e criativo. Daí em diante, esses momentos são repetidos acada dia, antes do início das atividades musicais e artísticas (SANTA ROSA,2006).

Uma vez decidido o tema, outras dinâmicas vão sendo realizadas paradescobrir maneiras de expor o tema do espetáculo em um coro performáticocom a intenção clara de chegar à montagem de um musical com texto,contemplando arranjos vocais, dança e teatro. Paralelamente a isso, já secomeça a levantar um repertório de canções referentes ao tema. Depois de

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muitas sugestões e experimentações, vão sendo selecionadas as músicasque são encaminhadas aos alunos de graduação para serem elaborados osarranjos. Comumente, os criadores dos arranjos se encarregam de ensaiarcom o coro.

Quando as vozes estão ensaiadas, é a vez de todos os coristas se voltarempara criar coreografias compatíveis com a proposta da música e do temaescolhido. Para essa parte convida-se um coreógrafo para auxiliar na criaçãoe no aperfeiçoamento das coreografias. Para o desenvolvimento do tema,geralmente convida-se também um graduando ou professor de teatro que,em comum acordo com os membros do grupo, coordena a criação dasfalas e das cenas, propostas no tema escolhido. Essa aproximação comoutros profissionais das áreas de artes, caracteriza também, um trabalhointerdisciplinar artístico.

Ao longo do ano, por diversas vezes, avalia-se o processo, os resultadose vão sendo traçados os passos seguintes. Geralmente, faz-se uma granderoda com todos os alunos sentados no chão, onde eles se colocam pararelatar um pouco de como estão vendo o desenvolver do trabalho atéàquele momento. A(o) professor(a) pede para que cada um deles aponte oque está vendo como positivo ou negativo, o que está faltando e pedenovas sugestões para serem acrescentadas ao trabalho.

Com esse diálogo, normalmente surgem, como aspectos positivosdetectados por eles, comentários ligados à evolução do tema e aos resultadosobtidos ao longo do caminho percorrido. De negativo, críticas a umamúsica ou outra que poderia ser trocada, um arranjo que está sendo difícilde apreender, uma coreografia que está confusa e outros aspectosrelacionados à dinâmica do grupo, tais como atraso de alguns participantespara os ensaios e outros. E como sugestões eles sempre propõem cenasnovas que são experimentadas imediatamente e, quando aceitas pelamaioria, são acrescidas ao trabalho.

No segundo semestre, em geral, é escolhido o teatro em que devem serrealizadas as apresentações públicas do musical. Aí, o trabalho costumaadquirir um perfil mais profissional, pois já se utiliza figurino apropriado,iluminação especial, sonorização para coristas e instrumentistas, cenárioligado ao tema, providências para divulgação e todos os elementos quesurgem em virtude do que é próprio do espetáculo musical apresentadoem um teatro.

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Como os corais recebem muitos convites para apresentações em diversosespaços, quando há possibilidade, a primeira apresentação do musical sefaz em eventos, quase como um ensaio geral para a apresentação no teatro.Portanto, geralmente, durante os meses de novembro e dezembro o trabalhopode ser apresentado em parte ou por inteiro, de acordo com o teor dosconvites. No entanto, o coral tem além do musical, um repertório extra-musical incluindo canções de natal para atender a convites diversos, inclusivepor ocasião das festas natalinas.

A partir de 2006, em relação aos outros musicais realizados nos anosanteriores1,de forma intencional, aprofundou-se ainda mais a participaçãodos alunos na criação do espetáculo, designando por inteiro a escolha dotema, do repertório, das coreografias e das cenas. Nesse caso a interferênciada professora-regente foi apenas para conduzir, conectar as idéias surgidas,avaliar com eles e dirigir os ensaios. Portanto, o trabalho criativo foiconstruído inteiramente com a participação de cada um dos coristas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre as contribuições trazidas, por essas experiências, ao crescimentodos indivíduos, pode-se destacar em primeiro lugar os aspectos relacionadosao desenvolvimento musical, onde se percebe um evidente crescimento dasensibilidade rítmica, melódica e harmônica, através da execução vocal,instrumental e da vivência corporal; a familiarização com as diversas épocase estilos de cada um dos temas trabalhados.

Em segundo lugar, os aspectos do desenvolvimento artístico, revelandoque os alunos desenvolvem a expressividade de um modo geral com oexercício de corpo, de execução vocal, de interpretação teatral e daexperiência artística e estética, do convívio com o palco e diversos elementosque envolvem a apresentação em um teatro da cidade.

Em terceiro lugar, destacam-se os aspectos sociais por onde os alunosapresentam uma sensível melhora da convivência em grupo, da confiançamútua e da solidariedade; os aspectos psicológicos por onde, na grande

1 O projeto Coral realizou dez musicais São eles: “Volta ao Mundo” em 1996; “Fotos Musicais” em 1997; “ViverBahia” em 1998; “Rimas da Bahia” em 1999, que foi uma remontagem aprimorada do Viver Bahia; “Sucessos de10 em 10” em 2000; “Sucessos de 10 em 10” em 2001, repetição atualizada; “Brasil em Canto” em 2002 e“Lacinho Cor-de-Rosa” em 2003, “Lamento Sertanejo“ em 2005, “Aprisionamento“ em 2006.

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maioria das pessoas, ocorre a superação dos bloqueios e da timidez, odesenvolvimento da autoconfiança e a construção e elevação da auto-estima;os aspectos cognitivos, onde são desenvolvidos, além de conhecimentos gerais,as habilidades de memorização, imaginação e de criação.

Nesse contexto descrito do trabalho do Projeto Coral, todos os coristasassumem papéis de responsabilidades indispensávies para o sucesso doprojeto coletivo. Esse envolvimento dos participantes, também comoorganizadores, permite a ampliação dos seus horizontes, tanto artísticos eculturais, como diante da vida em sociedade. Esse progresso se evidenciade modo mais claro quando se observa o desempenho de cada um, oucada grupo em suas tarefas específicas, como descritas em seguida.

O pesquisador realiza estudos e pesquisas desenvolvendo a habilidadede extrair o conteúdo essencial que posteriormente será exprimido naslinguagens dramática e musical. O roteirista estuda minuciosamente oconteúdo pesquisado e aprende a unir estas informações ao objetivo dadireção geral e transportá-las para o texto de uma forma criativa eapropriada para o gênero. Os figurinistas, além de estarem atentos aosrumos tomados pela montagem da peça, realizam pesquisas de estilos ecostumes de acordo com o contexto histórico e geográfico da trama. Otesoureiro tem em sua mente, melhor do que qualquer outro participante,a noção da quantidade de componentes envolvidos na montagem de umespetáculo, além de estar sempre atualizado nos preços de mercado dosserviços.

O arranjador e diretor musical aprende a conhecer as limitações ecapacidades vocais, corporais e cênicas do grupo de forma a contemplarestes elementos de maneira adequada nos arranjos, nas coreografias e nascenas organizando-os de forma harmoniosa. A direção teatral desenvolvepossibilidades de criação com pessoas leigas nesta área e com diferentestipos de egos no propósito de fazer com que o espetáculo expresse fluideze uniformidade nas passagens de texto para música e vice-versa.

O Coreógrafo aprende a criar seqüências que estejam de acordo com acapacidade do grupo e com o contexto da peça. Os músicos fazem pesquisase treinos constantes de estilos e repertórios diversos, ampliando acompreensão da história da música e da execução instrumental. O diretorgeral vive um processo de busca pela conciliação e pela sensibilidade deacolher o todo e a todos sem perder de vista o resultado final.

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Diante dos resultados obtidos, reforça-se o reconhecimento da importânciado diálogo no processo da educação, sobretudo, musical. Além do mais,pode-se perceber a vastidão de possibilidades para o desenvolvimento daspráticas de educação musical, trazendo crescimento para alunos e educadorescomo seres pensantes, sociais, individuais, artísticos, musicais e, sobretudo,humanos com a prática de uma democracia significativa.

Por fim, cumpre destacar que todo esse trabalho constitui-se numaocasião singular para os licenciandos em música, alunos de instrumento,composiçao e regência, alunos de teatro e de dança, que vivenciamintensamente todo o processo, complementando a sua formação deeducadores musicais para os novos tempos e consequentemente favorecendoao educador em geral a criação de abordagens pedagógicas voltadas para aescuta do seus aprendizes, atendendo a uma demanda contemporânea ondeo saber do aluno e o saber do professor se entrelaçam buscando a contruçãode sentido na aprendizagem mútua.

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Sobre os autores

ANA CÉLIA DA SILVA

Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA),Professora Adjunta do Departamento de Educação e do Programa Educaçãoe Contemporaneidade do Campus I da Universidade do Estado da Bahia(UNEB) e Membro Titular do Conselho Estadual de Cultura para compora Câmara de Política Sócio Cultural. E-mail: [email protected].

ANTÔNIO DIAS NASCIMENTO

PhD pela Universidade de Liverpool, Inglaterra. Professor doDepartamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós Graduaçãoem Educação e Contemporaneidade, da Universidade do Estado daBahia (UNEB), Campus I. Membro da Linha Educação, Gestão eDesenvolvimento Local e Sustentável. E-mail: [email protected].

CRISTINA MARIA D’ÁVILA

Pós-Doutora pela Universidade de Montréal, Canadá. Professora adjuntado Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação emEducação e Contemporaneidade – Universidade do Estado da Bahia.Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federalda Bahia. E-mail: [email protected].

ELIZEU CLEMENTINO DE SOUZA

Doutor em Educação pela FACED/UFBA. Professor da Faculdade deEducação da Bahia (FEBA), e do Programa de Pós-Graduação emEducação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia(UNEB). Coordenador do GT de Educação Fundamental da ANPEd(2006/2007). E-mail: [email protected].

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IONE RIBEIRO VALLE

Doutora em Ciências da Educação – Université René Descartes – ParisV Sorbonne. Professora do Departamento de Estudos Especializadosem Educação (EED) – Centro de Ciências da Educação – UniversidadeFederal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: ionevalle@ced ufsc.br

JACI MARIA FERRAZ MENEZES

Doutora em Ciências da Educação pela Universidade Católica deCórdoba, Argentina. Professora de História da Educação e Política daUniversidade do Estado da Bahia. Bolsista de produtividade em Pesquisada FAPESB, pesquisa sobre História da Educação e sobre Educação eDesigualdades. E-mail: [email protected].

JUVINO ALVES DOS SANTOS FILHO

Doutor em Música pela Universidade Federal da Bahia. EnsinaEducação, Música e Sociedade no Programa de Pós-graduação emEducação e Contemporaneidade da UNEB. Bolsista de Pós-Doutorado1 da FAPESB, pesquisa sobre Bandas, Filarmônicas e Mestres de Bandada Bahia, no campo dos estudos sobre cultura musical brasileira.E-mail: [email protected].

LEILA MIRALVA MARTINS DIAS

Mestra em Educação Musical pela Universidade de Manchester,Inglaterra. Doutoranda em Educação Musical, pelo Programa de Pós-Graduação em Música, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Professora da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia.E-mail: [email protected].

LEILA SCHEIBE

Doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora Titular eEmérita da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e vinculadaao Mestrado em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina(UNOESC) Joaçaba/SC. E-mail: [email protected].

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LUCIENE MARIA DA SILVA

Professora doutora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação emEducação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia(UNEB), componente da Linha. E-mail: [email protected].

MARIA DE LOURDES S. ORNELLAS

Profª Drª em Psicologia da Educação. Profª Permanente do Programade Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade. Pesquisadoranas áreas de afetividade e representação social na Linha 2 – Educação,tecnologias intelectuais, currículo e formação do educador. Psicanalista.E-mail: [email protected].

MARIA OLÍVIA DE MATOS OLIVEIRA

Doutora em Calidad y Procesos de Innovación Educativa – UniversidadAutonoma de Barcelona. Professora Adjunta da Universidade do Estadoda Bahia (UNEB), vinculada ao Programa de Pós-Graduação emEducação e Contemporaneidade (PPGEduC) e Professora da graduaçãoda UCSal. E-mail: [email protected].

ROSANA MARA CHAVES RODRIGUES

Socióloga e mestre em Educação e Contemporaneidade, professora daUniversidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanase Tecnologias – Campus XVI/Irecê-Ba. Pesquisadora do Núcleo deEducação do Campo do CampusXVI/UNEB – Irecê-Ba, Coordenadorado PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária)na PROEX/UNEB. E-mail: [email protected].

SANDRA REGINA SOARES

Psicóloga, Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia eDoutora em Educação pela Université de Sherbrooke – Québec-Canadá.Professora do Departamento de Educação Campus I e do Programa dePós-graduação em Educação e Contemporaneidade (UNEB) – Campus I.Linha 2. Área de pesquisa formação de professor – pedagogiauniversitária. E-mail: [email protected].

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SUZELI MAURO

Professora Mestre e Doutora em Educação Matemática pela UniversidadeEstadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP), com pesquisas realizadasna Universidade de Bielefeld, Alemanha. E-mail: [email protected].

VÂNIA FINHOLDT ÂNGELO LEITE

Mestre Ensino, Filosofia e História das Ciências pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e aluna especial doPrograma de Pós-Graduação em Educação (doutorado) da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected].

WILSON ROBERTO DE MATTOS

Doutor em História Social pela PUC/SP. Professor Adjunto de Históriada Universidade do Estado da Bahia. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional – UNEB/Campus V. 1º Vice Presidente da Associação Brasileira de PesquisadoresNegros (ABPN). E-mail: [email protected] e [email protected].

YARA DULCE BANDEIRA DE ATAÍDE

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação eContemporaneidade (PPGEduC) da Universidade do Estado da Bahia(UNEB). E-mail: [email protected].

ZENILDE DURLI

Mestre em Educação, Doutora em Educação pela Universidade doEstado de Santa Catarina (UFSC) e professora na Universidade do Oestede Santa Catarina (UNOESC). E-mail: [email protected].

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Este livro foi composto no formato 170x240mmutilizando a fonte Sabon LT.Impresso em papel 75 g/m2 no

Setor de Reprografia da Edufba.Impressão de capa e acabamento da Bigraf

Tiragem 600 exemplaresSalvador, 2007.

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