36
15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 1/36 Luís Graça: Textos sobre saúde & trabalho / papers on health & work página / page 62 62. Graça, L.; Henriques, A. Isabel (2000) - Evolução da Prática e do Ensino da Enfermagem em Portugal [Practice and Teaching of Nursing in Portugal during the XX Century] (a) (b) Versão em português Portuguese version only Índice 1. A historiografia da enfermagem em Portugal 2. O ensino da enfermagem: a subordinação ao modelo médico-hospitalocêntrico 3. O ensino da enfermagem: a autonomia 4. Enfermeiros e técnicos de diagnóstico e terapêutico: um estatuto de subalternidade

Luís Graça, Textos62_ Enfermagem Em Portugal _ Nursing in Portugal

Embed Size (px)

Citation preview

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 1/36

Luís Graça: Textos sobre saúde & trabalho / papers on health & work página / page 62

62. Graça, L.; Henriques, A. Isabel (2000) - Evolução daPrática e do Ensino da Enfermagem em Portugal

[Practice and Teaching of Nursing in Portugal duringthe XX Century] (a) (b)

Versão em português Portuguese version only

Índice

1. A historiografia da enfermagem em Portugal

2. O ensino da enfermagem: a subordinação ao modelo médico-hospitalocêntrico

3. O ensino da enfermagem: a autonomia

4. Enfermeiros e técnicos de diagnóstico e terapêutico: um estatuto de

subalternidade

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 2/36

1. A Historiografia da Enfermagem em Portugal

Falta-nos uma perspectiva histórica da evolução da

enfermagem em Portugal, do seu ensino, da sua prática, das suas

condições de exercício, de emprego e de trabalho, da sua

sociodemografia, da sua actividade associativa, etc., pelo menos

desde há 150 anos para cá, em articulação com o

desenvolvimento do sistema de saúde e de assistência (Graça,

1996).

Aliás, sobre este tópico a bibliografia ainda é escassa e de

reduzido interesse, a não ser descritivo e factual (Sacadura,

1950; Ferreira, 1986; Nogueira, 1990; Ferreira, 1990). Quanto à

investigação sociológica, ela é praticamente inexistente.

Lemos (1991), por sua vez, dedica à história da enfermagem

apenas algumas notas circunstanciais, o mesmo é dizer que ignora

pura e simplesmente a proto-história da prestação de cuidados

básicos aos doentes desde a Idade Média até ao fim do Antigo

Regime.

Há cem anos atrás, a situação da enfermagem hospitalar no

nosso país deixaria muito a desejar, por comparação com países

europeus como a Inglaterra ou a Alemanha. Em contrapartida, no

início da segunda metade do Séc. XVIII, temos notícias de que

eram frequentes os abusos praticados pelos enfermeiros e

ajudantes do Hospital Real de Todos os Santos (HRTS).

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 3/36

Lemos (1991. 142-143) dá-nos conta de alguns exemplos, mais ou

ou menos anedóticos e caricatos, de "comportamentos

reprováveis", extraídos da leitura do relatório do enfermeiro-

mor (provedor) D. Jorge Mendonça, que tinha sido nomeado pelo

Marquês de Pombal:

Por volta de 1758, "os enfermeiros e mais pessoal inferior"

(sic) costumavam trazer os amigos para almoçar e jantar no

hospital;

Entre Julho de 1758 e Junho de 1759, o consumo de carne

de galinha era exorbitante, dando qualquer coisa como 100

galinhas em média por dia e originando uma despesa

superior a 7600$000 réis;

Como termo de comparação, refira-se que na época uma tal

importância era elevada: o equivalente à remuneração anual

de 180 enfermeiros (Em 1775, um enfermeiro do Hospital

Termal das Caldas da Rainha ganhava anualmente 42$000

réis) e muito provavelmente superior a 10% das receitas do

HRTS (Em 1788, o seu sucedâneo, o Hospital de S. José,

tinha de rendimento anual 80 contos);

Os cadáveres não eram devidamente removidos pelos

enfermeiros e ajudantes, pelo que entravam rapidamente

em putrefacção e, não raras vezes, serviam de repasto aos

ratos que infestavam o hospital;

Era frequente os enfermeiros e ajudantes fugirem de noite

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 4/36

pelos telhados, abandonando as suas tarefas de vigília dos

doentes; ou, em alternativa, passarem o tempo a jogar às

cartas ou a tocar instrumentos musicais;

Havia igualmente o hábito de se ficar com o espólio dos

doentes que morriam; o vestuário era depois "arrematado

por um trapeiro, à razão de 2$500 réis por mês".

Foram, de resto, estes e outros abusos que Jorge Mendonça

terá procurado combater, de acordo com o teor do relatório que

enviou ao Marquês de Pombal.

Também não sabemos como se processava, entre nós, o processo

de procura e de oferta de cuidados de enfermagem ao domicílio,

fora portanto do contexto assistencial hospitalar.

Sabe-se, no entanto, que no princípio do Séc. XIX havia dois

lugares de enfermeiras no quadro do pessoal feminino da Casa

das Rainhas, com um vencimento anual de 53$900 réis cada uma,

bastante maior do que as moças de quartos (38$230 réis), mas

bastante menor do a engomadeira ou até as açafatas, para não

falar das outras categorias de pessoal, de estatuto social mais

elevado, como as damas, a camareira-mor ou as damas de honor.

Em pleno Séc. XIX devia ser já relativamente frequente o

recurso aos serviços de enfermeiros e de enfermeiros por

parte das famílias nobres e burguesas mais ricas. Por exemplo,

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 5/36

em 1864, escrevia o Marquês de Fronteira e d'Alorna (1802-

1881) à sua filha, Condessa da Torre:

"Levo comigo [ para Paço de Arcos ] o enfermeiro, do qual não

posso prescindir, porque tem que temperar a água, fazer-me as

fricções, que vejo hão-de continuar, e curar-me as mãos. E para

mim é indiferente que ele fique em casa ou fora, porque das dez

da noite à seis da manhã não o ocupo. A minha vida é um relógio;

assim o exigem os nervos que estão bastante atacados"

(Memórias do Marquês de Fronteira e d'Alorna, Vol. V. 1932.

258) (Itálicos meus).

Tudo indica que a enfermagem, com a expulsão das ordens

religiosas em 1834 e a laicização do pessoal hospitalar, começa a

ganhar alguma especificidade e visibilidade, ao ponto de se

poder falar também de uma enfermagem hospitalar para os

pobres e de uma enfermagem privada para os ricos, a exemplo

da medicina. O mesmo Marquês de Fronteira e d'Alorna que

recorre em 1862 aos serviços particulares de um enfermeiro, é

o mesmo que escreve, também à filha, em 21 de Setembro de

1862, o seguinte:

"O Dr. Gomes esteve aqui ontem muito tempo; examinou-me,

achou-me muito melhor, mas não bom. Escreveu ao Teixeira,

lembrando os banhos do Estoril, o que muito me seca, mas, que,

se for necessário, tomarei, e, depois deles, os banhos do mar.

Faça-se o que os doutores determinarem!... Aprova a mudança

de ares" (Memórias do Marquês de Fronteira e d'Alorna, Vol. V.

1932. 259) (Itálicos meus).

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 6/36

É, com o romantismo, que a literatura vem popularizar a figura

da enfermeira à cabeceira do doente, ainda e sempre um papel

que cabe à mulher, no domínio da prestação de cuidados no

domicílio, como é o caso de Margarida, um das heroínas do

popular romance de Júlio Dinis (1839-1871), As pupilas do

senhor Reitor:

"Assim continuou este viver por muitos anos mais, até que a mãe

de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e

incansável enfermeira (sic, itálicos meus), colhendo sempre, em

paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos, expressões

inequívocas da aversão que nunca deixara de sentir por ela. A

heróica rapariga não afrouxava por isso na afectuosa caridade

com que a tratava.

"A doença agravou-se, e a morte foi declarada inevitável" (...)

(Dinis, 1986. 103).

Trata-se da mesma Margarida de quem Ricardo Jorge disse:

"idealíssima Margarida que iniciou a minha puberdade no

platonismo do amor" (cit. pro Ferreira, 1986. 56).

2. O Ensino da Enfermagem: a Subordinação aoModelo Médico-Hospitalocêntrico

Com um atraso de algumas décadas em relação às ideias

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 7/36

pioneiras dos grandes reformadores da enfermagem no Séc.

XIX (v.g., o Pastor alemão Fliedner e as inglesas Florence

Nigthingale e Ethel Bedford Fenwick), as primeiras iniciativas no

domínio da formação profissional dos enfermeiros portugueses

remontam ao final da Regeneração ou fontismo.

De acordo com Ferreira (1986), os primeiros cursos de

"enfermagem científica" (sic), realizados entre nós datariam de

1881, 1886 e 1887 (respectivamente nos Hospitais de Coimbra,

Lisboa e Porto).

Significativamente, a necessidade de formar pessoal de

enfermagem minimamente qualificado é sentida sobretudo pelos

hospitais das três cidades onde se ministra o ensino oficial da

medicina (A Faculdade de Medicina de Coimbra e as Escolas

Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto).

E é sentida sobretudo pelos médicos e cirurgiões. Será, de

resto, por sua iniciativa e sob a sua liderança, que serão criados

os primeiros cursos e escolas profissionais, como foi o caso, por

exemplo, das Escolas de Enfermagem Artur Ravara, em Lisboa

(1930) e da Ângelo da Fonseca, em Coimbra (1931).

A Escola Superior de Enfermagem Dr. Angelo da Fonseca

reivindica hoje o privilégio de ter sido "a primeira Escola de

Enfermagem do País, fundada em 17 de Outubro de 1881, pelo

Administrador dos Hospitais da Universidade de Coimbra,

Senhor Professor Doutor António Augusto Costa Simões, sendo

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 8/36

denominada por Escola dos Enfermeiros de Coimbra". No sua

página na Internet pode ainda ler-se que:

Em 1919, transformou-se em Escola Oficial, com a

designação de Escola de Enfermagem dos Hospitais da

Universidade de Coimbra;

Em 8 de Janeiro de 1931, adoptou a designação de Escola

de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca;

Em 1982, passou a leccionar cursos de formação pós-

básica;

Em 15 de Setembro de 1989, foi convertida em Escola

Superior de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca,

começando em 1990 a leccionar os primeiros Cursos

Superiores de Enfermagem e, em 1998, Cursos Pós-

Graduação;

Em 1999, deu início à Licenciatura em Enfermagem.

Segundo Ferreira (1990. 549), a Escola de Enfermagem dos

Hospitais da Universidade de Coimbra só teria sido criada em

1918, pelo Decreto nº 5768, de 10 de Maio. De novo

regulamentada em 1920, passará a ter a designar-se como

Escola de Enfermagem de Dr. Ângelo da Fonseca pela Portaria

nº 7001, de 8 de Janeiro de 1931.

Recorde-se que Ângelo da Fonseca (1872-1942) ficou sobretudo

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 9/36

conhecido como fundador da urologia em Portugal, como

director-geral da instrução pública e como principal colaborador

do Ministro do Interior, António José de Almeida, que também

era médico, na reforma do ensino superior (1911).

Outra escola pioneira foi a de Artur Ravara: a "Escola de

Enfermeiros do Hospital de S. José" nasceu por iniciativa do

enfermeiro-mor (termo que designava então o cargo de

director) do Hospital de S. José, o Dr. Tomás de Carvalho.

Criada pela portaria do Ministério do Reino, de 28 de Janeiro de

1886 (Diário do Governo nº 22), destinava-se exclusivamente ao

pessoal do Hospital de S. José e hospitais anexos (Hospitais

Civis de Lisboa, a partir de 1913).

Da elaboração do respectivo programa, publicado em 1887, foi

encarregue o Dr. Artur Ravara, professor da Escola Médico-

Cirúrgica de Lisboa e cirurgião da corte... Ao que parece, a

primeira experiência de formação regular em enfermagem

terminaria precocemente, em 1889, devido às dificuldades

provocados pelo analfabetismo da grande maioria dos alunos/as

(Nogueira, 1990. 133).

Em rigor, a primeira Escola Profissional de Enfermagem vai

nascer já no Século XX, por Decreto de 10 de Setembro de

1901. Com sede no Hospital de S. José, em instalações

provisórias, propunha-se então como missão ministrar "a

instrução doutrinária, técnica e os conhecimentos de prática que

as exigências da ciência actual reclamam" a todos aqueles que, no

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 10/36

hospital, "tenham de cumprir prescrições médicas ou cirúrgicas

e de prestar cuidados de enfermagem a doentes" (cit. por

Nogueira, 1990. 134). Em princípio previa-se já um curso básico

com a duração de um ano, enquanto o curso completo seria de

dois anos.

Em 1918, pelo Decreto nº 4563, de 12 de Julho, é reorganizada

a Escola Profissional de Enfermagem dos Hospitais Civis de

Lisboa, a funcionar no Hospital de S. Lázaro.

Em 1930, pelo Decreto nº 19060, de 29 de Novembro, passa a

chamar-se Escola de Enfermagem Artur Ravara, sendo então

transferida para o Hospital dos Capuchos (Ferreira, 1990. 549;

Nogueira, 1990. 134).

No final do Séc. XIX, terá nascido igualmente a Escola de

Enfermagem do Porto (a de Santo António, em 1896).

Recuando no tempo, constata-se que já em 4 de Janeiro de 1836

havia sido criado nas Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e

Porto um curso de parteiras, com a duração de dois anos e

estágio final. Em princípio, exigia-se como habilitações mínimas o

saber ler e escrever. Todavia, a formação de parteiras com

alguma preparação prática já se fazia antes, na Casa Pia, criada

em 1780 (Miguel, 1981. 541).

Por sua vez, Ricardo Jorge, no seu relatório apresentado ao

Conselho de Instrução Pública (1885), faz uma referência

explícita à necessidade de criação de cursos de enfermagem no

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 11/36

âmbito das Escolas Médico-Cirúrgicas (criadas em Lisboa e

Porto, em 1836), ao mesmo tempo que invectiva a tentativa a

continuar a manter essas "entidades fósseis" (sic) que eram os

barbeiros-sangradores e os cirurgiões ministrantes.

Não deixa de ser interessante notar que a condenação destes

dois praticantes de artes médicas se faz em nome da defesa da

profissão médica e, implicitamente, do monopólio do exercício da

medicina pelos médicos diplomados. Por outro lado, o enfermeiro

é visto claramente em termos subordinação ao médico (ajudante

hospitalar ou assistente de leito na clínica privada, segundo as

expressões usadas por Ricardo Jorge):

"Houve já, depois da restauração das escolas [médico-

cirúrgicas], cursos de sangradores e cirurgiões ministrantes;

ainda na ditadura de 1870 se restabelecia a fóssil entidade que

foi, e bem, pouco depois abolida. Fora com esses títulos que

desvirtuam a profissão e abrem o caminho da curandeirice", diz

Ricardo Jorge (Itálicos meus).

O autor refere-se aqui ao golpe militar liderado pelo velho

Duque de Saldanha, em 19 de Maio de 1870, dando origem a um

governo ditatorial que teve apenas cem dias de vida. Por outro

lado, o ofício de sangrador ou barbeiro-sangrador será extinto

por decreto de 13 de Junho desse ano (Pina, 1938). E

continuando, escreve o nosso higienista, no seu habitual estilo

enfático e contundente, tão característico do seu tempo e da sua

personalidade:

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 12/36

"Não direi o mesmo dos cursos de enfermeiros, destinados a

fornecer aos hospitais bons ajudantes, e mesmo à clínica

particular bons assistentes de leito. Nos Estados Unidos

florescem belas instituições desta ordem; e na França, graças a

Bourneville, prosperam já num grande número de hospitais.

Criado o internato e a assistência de clínica, não poderia iniciar-

se esse curso humanitário no Hospital de Santo António, cuja

administração devia ter o máximo empenho em promovê-lo?"

(Jorge, 1885, cit. por Correia, 1960. 49. Itálicos meus).

Quanto à formação das parteiras, ministrada nas Escolas

Médico-Cirúgicas, Ricardo Jorge, diz que é um "curso menor de

obstetrícia (...) frequentado por mulheres que não possuem em

geral a menor instrução". Embora a lei então impusesse então

como condição mínima o saber ler e escrever , "o lente de partos

tem de desempenhar (...) todos os anos as funções de mestre-

escola".

E comenta em tom jocoso o autor do relatório:

"Com tais predicados imagina-se o que serão em geral estas

comadres ao rematar o curso e em que condições estão elas para

utilizar do ensino. Ao menos que os exames de instrução primária

e francês lhes sejam exigidos" (Jorge, 1885, cit. por Correia,

1960. 49).

Ricardo Jorge estaria então longe de imaginar que, pela mão de

muitas destas comadres, que não sabiam ler nem escrever, nem

muito menos tocar piano e falar francês, virão ao mundo ainda

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 13/36

muitos milhões de portugueses e portuguesas até meados do

Séc. XX!

Pelo Decreto de 28 de Outubro de 1903, será entretanto

aprovado o regulamento do curso de parteiras, professado na

Universidade de Coimbra e nas Escolas Médico-Cirúrgicas de

Lisboa e Porto. A partir de 1905, só serão admitidas a este

curso candidatas com o 2º grau de instrução primária, o

equivalente hoje ao 1º ciclo do ensino básico (artº 7º).

O curso era de dois anos: no 1º ano, a regência do curso era

confiada a um professor substituto da secção cirúrgica e no 2º

pelo professor titular da cadeira de obstetrícia (artº 1º).

Embora competisse aos conselhos escolares definir os

respectivos programas, o regulamento do curso de parteiras

estipulava que, no 1º ano do curso, as matérias deviam

restringir-se "ao que for mais elementar e mais propriamente

referente a gravidez e partos normais"; o 2º ano, por seu turno,

era dedicado ao estudo dos partos distócicos, aos exercícios

com manequins e à assistência clínica (Boletim dos Serviços

Sanitários do Reino, 1903. 146-148).

Outras iniciativas surgirão já depois da República, e

nomeadamente por mão das congregações religiosas que

entretanto começaram a regressar ao país. A este nível, a Escola

de Enfermagem de S. Vicente de Paulo poderá ser considerada

pioneira.

Fundada em 1937 por Eugénia Tourinho, uma religiosa brasileira,

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 14/36

diplomada em enfermagem por uma escola francesa, a Escola de

Enfermagem de S. Vicente de Paulo procurou "pôr em prática um

curso de três anos, no qual eram incluídas matérias de cariz

humanístico, como higiene mental, psicologia, sociologia, etc."

(Nogueira, 1990. 135).

É já no auge do Estado Novo que irá, entretanto, proceder-se ao

início da reforma do ensino e da prática de enfermagem, com o

D. L. nº 32612, de 31 de Dezembro de 1942, o qual vem, no

entanto, impor a infamante proibição do casamento às

enfermeiras, uma medida claramente sexista, inspirada no

modelo fascista italiano, e que só será revogada mais de vinte

anos depois (D.L. nº 44 923, de 18 de Março de 1963).

Ferreira (1990. 551), a propósito deste diploma legal, limita-se a

dizer candidamente que ele vem permitir "o casamento das

enfermeiras hospitalares, medida reclamada há muito" (sic).

Em 1940, pelo Decreto nº 30447, de 17 de Maio, o Ministério da

Educação Nacional havia, entretanto, criado a Escola Técnica de

Enfermeiras (ETE) do Instituto Português de Oncologia (IPO),

durante muito tempo a mais prestigiada e elitista de todas.

No sítio da actual Escola Superior de Enfermagem de Francisco

Gentil, pode ler-se:

"A sua criação ficou a dever-se, sem dúvida, à preocupação

dominante do Prof. Doutor Francisco Gentil de assegurar ao

país a formação de enfermeiros altamente qualificados,

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 15/36

capazes de participar, pela sua competência científica,

técnica e humana, na melhoria da assistência de saúde;

"A criação da ETE (...) veio dotar o país, na época, com uma

Escola nova, moderna, na perfeita acepção do termo, que

iniciaria uma mudança profunda a nível de formação de

enfermeiras em Portugal.

Com um curso de três anos e exigindo como habilitação mínima o

2º ciclo liceal (o antigo 5º ano dos liceus ou o actual 3º ciclo do

ensino básico), esta escola teve reconhecidamente um "papel

importante na evolução do ensino da enfermagem em Portugal,

sob os auspícios da Fundação Rockfeller" (Ferreira, 1990. 549).

É nesta época que se regulamentam também os cursos de

especialidades de enfermagem (Decreto nº 32612, de 31 de

Dezembro de 1942).

O ensino de enfermagem nos pós-guerra sofrerá sucessivas

reformas, em geral ao sabor da produção legislativa no domínio

da saúde e assistência:

Em 1947, com o D.L. nº 36219, de 10 de Abril, passa-se a

exigir aos enfermeiros a instrução primária, sendo a

formação de um ano (curso ordinário) ou de dois anos (curso

completo);

Data desta altura a criação da figura da auxiliar de

enfermagem, como forma de colmatar a falta de pessoal de

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 16/36

enfermagem que já se fazia sentir no nosso país, apesar da

lenta evolução do nosso sistema hospitalar.

O Regulamento das Escolas de Enfermagem da Cruz Vermelha,

que estava sob a tutela do Ministério do Exército, também data

do pós-guerra (Portaria nº 13833, de 7 de Fevereiro de 1952).

Os D.L. nºs 38884 e nº 38885, de 28 de Agosto de 1952, vieram

finalmente disciplinar e organizar o ensino da enfermagem nas

escolas oficiais, segundo Ferreira (1986) e Nogueira (1990).

A partir de então, passam a haver três cursos distintos:

Curso geral (Habitações mínimas: 1º ciclo liceal; duração: 3

anos);

Curso de auxiliares (Habilitações mínimas: instrução

primária; duração: 1 ano, mais seis meses de estágio);

Curso complementar (Habitações mínimas: 2º ciclo liceal,

além do Curso de Enfermagem Geral e prática profissional;

duração: 1 ano).

Foram, além disso, introduzidas em 1952 as seguintes reformas

(Nogueira, 1990.137-138):

O ensino passa a ser ministrado apenas em Escolas de

Enfermagem, oficiais ou particulares (ligadas aos institutos

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 17/36

religiosos ou às misericórdias, no caso da do Porto), dotadas

de autonomia técnica e administrativa;

Melhoria da formação dos monitores para quem foi criado

especificamente o curso complementar de enfermagem;

Além da idade mínima (18 anos) e das habilitações mínimas

(conforme o curso), são requisitos de admissão ter

"robustez física" e "comportamento moral irrepreensível"

(sic);

O plano de estudos passa a ser constituído por aulas

teóricas, aulas práticas e estágios, de frequência

obrigatória;

No final do curso, os alunos deviam submeter-se a um

exame de Estado, a realizar em escola oficial.

3. O Ensino da Enfermagem: a Autonomia

O alcance da reforma de 1952 ficou, no entanto, limitado pela

persistência, se não mesmo agravamento, das deficiências que já

vinham de detrás. No essencial, e segundo o autor que temos

vindo a citar (Nogueira, 1990. 138-139):

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 18/36

Indefinição dos objectivos de ensino/aprendizagem;

Natureza meramente selectiva dos exames;

Carência de monitores em quantidade e qualidade;

Aproveitamento oportunístico pelos hospitais do trabalho

dos estagiários, com grave prejuízo para a sua formação;

Enfoque hospitalocêntrico e tutela médico-hospitalar da

enfermagem.

Por exemplo, e ainda nesta época, a Escola de Enfermagem Dr.

Assis Vaz, com sede no Porto, e que tinha sido criada pela

Portaria nº 14719, de 23 de Janeiro de 1954, passa a designar-

se um ano e meio mais tarde por Escola de Enfermagem do

Hospital de S. João (D.L. nº 40303, de 3 de Setembro de 1955).

Em Lisboa, por sua vez, será criada a Escola Oficial de

Enfermagem do Hospital de Santa Maria (Portaria nº 15965, de

10 de Setembro de 1956). Médicos e hospitais persistiam em

tutelar (senão mesmo) colonizar o ensino e a prática da

enfermagem.

Será preciso, entretanto, esperar pela reforma de 1965 (D.L nº

46448, de 20 de Julho), para que o ensino e o exercício da

enfermagem em Portugal comecem a desmedicalizar-se e ganhar

maior autonomia e especificidade, abrindo-se assim às correntes

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 19/36

internacionais (e nomeadamente às orientações da OMS e do

Conselho Internacional de Enfermeiros):

Para admissão ao Curso Geral, cuja duração continua a ser

de três anos, passa a exigir-se como habilitações mínimas o

2º ciclo liceal ou equivalente;

O plano de estudos visa uma formação mais equilibrada e

polivalente do enfermeiro, com menos peso da patologia e

de outras matérias do domínio das ciências biomédicas;

A orientação da enfermagem já não é apenas para o hospital

mas também para o exercício de actividades no campo da

saúde pública e dos cuidados ambulatórios;

Enfatiza-se a necessidade de uma pedagogia activa e

participativa, etc.

O regulamento de 1965 virá, entretanto, a ser actualizado pela

Portaria nº 34/70, de 14 de Janeiro, "já na fase de

reorganização geral dos serviços de saúde" (Ferreira, 1990.

550).

De qualquer modo, e mesmo depois da reforma de 1971, não

deixa de ser sintomática que continuem a criar-se

sucessivamente novas escolas de enfermagem no âmbito do

sistema hospitalar. Em todo o caso, e ainda antes, em 1967,

tinham sido criadas a Escola de Ensino e Administração de

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 20/36

Enfermagem (Portaria nº 22539, de 27 de Fevereiro) e a Escola

de Enfermagem de Saúde Pública (Portaria nº 22574, de 6 de

Setembro).

Paralelamente, começa a prestar-se atenção à formação de

enfermagem na área de saúde mental, com a criação de escolas

de enfermagem psiquiátrica junto das delegações do Instituto

de Assistência Psiquiátrica (Lisboa, Poro e Coimbra) (Portarias nº

22574, de 6 de Setembro de 1967, e nº 23335, de 25 de Abril

de 1968).

Também o ensino da enfermagem não passou incólume pelas

transformações operadas na sociedade portuguesa, na sequência

da revolução do 25 de Abril de 1974:

A estrutura e o conteúdo curriculares do curso de

enfermagem sofrem novas e profundas alterações, por

diploma legal de 9 de Agosto de 1976, como resultado de

um grupo de trabalho onde desempenharam um papel activo

os representantes das escolas e dos recém criados

sindicatos de enfermagem bem como da Associação

Portuguesa de Enfermagem (Nogueira, 1990. 140);

Curiosamente este diploma é omitido (deliberadamente ou

não) por Ferreira (1990), o qual, na qualidade de Secretário

de Estado da Saúde e Assistência do Governo de Marcelo

Caetano, foi um dos grandes mentores da reforma da saúde

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 21/36

de 1971);

As próprias escolas de enfermagem, nascidas à sombra

tutelar dos hospitais e, durante anos, dependentes das

próprias direcções dos hospitais, só muito lentamente

começaram a ganhar a sua autonomia técnica e

administrativa, "sob o impulso da legislação de 1952"

(Nogueira, 1990. 143);

Em temos legislativos, é preciso esperar pela Portaria nº

34/70, de 17 de Janeiro, que vem consagrar a sua "plena

autonomia técnica e administrativa": As direcções passam a

ser entregues aos enfermeiros com funções de ensino, para

quem de resto tinha sido criada anteriormente uma carreira

própria (D.L. nº 48166, de 27 de Dezembro de 1967).

Poucas escolas, segundo Nogueira (1990. 144), terão conseguido

entretanto aplicar na prática o regulamento de 1970, que previa

além disso a participação dos alunos e da comunidade na

organização e funcionamento dos estabelecimentos.

A experiência de gestão democrática, no pós-25 de Abril de

1974, também não se fez sem sobressaltos e conflitos na

grande maioria das escolas de enfermagem. Entretanto, em

1976, será publicado novo regulamento dos órgãos de gestão

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 22/36

(Portaria nº 674/76, de 13 de Novembro).

Os cursos de especialização na área de enfermagem que

entretanto tinham sido criados passavam a ter três áreas

distintas: (i) Gestão dos serviços de enfermagem; (ii) Ensino de

enfermagem; e (iii) Prática de investigação em enfermagem.

De qualquer modo, convém recordar que só em 1979 é que

passou a ser exigida, como habilitação mínima para a admissão ao

curso de enfermagem, o 3º ciclo ou curso complementar dos

liceus (ou seja, onze anos de escolaridade) (D.L. nº 98/79, de 6

de Setembro).

A mais recente das alterações, a nível do ensino da enfermagem,

é a sua integração no ensino superior politécnico, sob a dupla

tutela do Ministérios da Educação e da Saúde (D.L. nº 490/88,

de 23 de Dezembro, regulamentado pela Portaria nº 65-A/90,

de 26 de Janeiro).

Com integração no ensino superior, abre-se finalmente a

oportunidade, às escolas de enfermagem, de conquistar a

terceira vertente da autonomia que lhes faltava, a autonomia

científica, o que passa (também) pela valorização do seu pessoal

docente e pelo desenvolvimento da investigação científica. Com o

Decreto-Lei nº 353/99 de 3 de Setembro, o Ministério da

Educação vem aprovar a criação do Curso de Licenciatura em

Enfermagem, do Curso de Pós-Licenciatura de Especialização em

Enfermagem e Curso de Complemento de formação.

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 23/36

Como muito bem nota Nogueira (1990. 144), ele próprio um

enfermeiro diplomado e docente, pertencente à Ordem

Hospitaleira de S. João de Deus, "o pessoal docente (...) tem

sido aumentado bastante, em número e competência (...).

Contudo, tem-lhe faltado oportunidades de se dedicar à

indispensável investigação científica".

Quanto à carreira profissional de enfermagem, ela existe desde

1971, criada juntamente com a carreira médica de saúde pública

e a carreira médica hospitalar (D.L. nº 414/71, de 27 de

Setembro). Sofreria depois profundas modificações até à

actualidade (D.L. nº 178/85, de 23 de Maio e D.L. nº 134/87, de

17 de Março).

Presentemente, há três áreas de actuação específica do pessoal

de enfermagem: (i) prestação de cuidados, (ii) gestão de

serviços e (iii) assessoria (D.L. nº 437/91, de 8 de Novembro).

É difícil de prever o exercício da profissão de enfermagem em

Portugal, mas há quem pense que não seja "risonho" (sic) no

futuro próximo. Nogueira (1990. 145) aponta as seguintes

razões para fundamentar o seu cepticismo, embora algumas

possam estar eventualmente datadas ou ser meramente

conjunturais:

Extinção dos cursos intermédios de auxiliares de

enfermagem em 1975 (embora o Decreto nº 47523, de 4

de Fevereiro de 1967, já previsse a sua extinção, ao

permitir o funcionamento dos respectivos cursos, a título

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 24/36

provisório);

A inexistência de planos de formação e requisitos legais

para os auxiliares de acção médica (antigos ajudantes de

enfermaria);

A insuficiência de pessoal de enfermagem, com a devida

qualificação, sendo ainda no final da década de 1990 os

enfermeiros em número inferior aos médicos e passando a

haver um crescente recurso a enfermeiros estrangeiros

(espanhóis, brasileiros, etc.);

A aparente atracção pelas actividades de gestão, em

detrimento da prestação directa de cuidados de

enfermagem, exercida sobre os enfermeiros com formação

pós-graduada;

A emigração, o abandono da profissão ou, pelo menos, o seu

exercício temporário ou sazonal em certos países dentro da

UE e até fora da UE (por ex., Suiça), com um mercado de

trabalho mais favorável ou mais atraente, etc.

4. Enfermeiros e técnicos de diagnóstico eterapêutica: um estatuto de subalternidade

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 25/36

A enfermagem (tal como a fisioterapia e outras actividades

ditas paramédicas) foi, durante muito tempo, um típico exemplo

de uma ocupação ou semi-profissão, que nasceu de um processo

de especialização vertical, independentemente de mais tarde

ter vindo a desenvolver o seu próprio campo de competência.

Há mais de um século atrás a enfermagem, tanto em Portugal

como no resto da Europa, não tinha a preparação académica do

médico. Mas as enfermeiras de hoje não são o resultado da

professionalização das suas antecessores do Séc. XIX. Na

Noruega, por exemplo, as enfermeiras diplomadas aparecem

pela primeira vez, em 1860 (Hofoss, 1986). Não tinham nada em

comum com o pessoal, não qualificado e sem qualquer preparação

específica, que prestava cuidados básicos ao doente, no

domicílio ou no hospital.

As enfermeiras diplomadas limitaram-se a substituir esse

pessoal. Ou seja, a moderna enfermagem não foi construída a

partir de dentro, através de um projecto profissional de auto-

reforma. Foram formadas em escolas de enfermagem, não pelas

enfermeiras tradicionais com um projecto de melhoria da

qualidade da enfermagem, mas pelos médicos dos hospitais que

sentiam necessidade de assistentes clinicamente melhor

qualificadas.

Quanto às antigas auxiliares de enfermagem, recorde-se que a

sua criação, em Portugal, remonta a 1947, tendo sido então uma

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 26/36

solução adhoc para suprir a falta de enfermeiros diplomados.

Esta situação não é especificamente portuguesa, aconteceu na

maioria dos países europeus. O exemplo da Noruega é

sintomático (Hofoss, 1986):

Na Noruega, depois da II Guerra Mundial e na sequência de

um acelerado desenvolvimento económico e social, a rede

hospitalar vai crescer muito rapidamente;

Durante os anos 50, torna-se cada vez mais difícil

satisfazer a procura de enfermeiras hospitalares;

O problema agrava-se nos anos 60 quando as escolas de

enfermagem foram integradas no ensino superior;

As estudantes de enfermagem passam a estagiar menos

tempo nos hospitais e a dedicar-se mais aos livros e às

aulas;

A falta de pessoal de enfermagem nos hospitais agudiza-

se, o que leva à criação de curtos programas de formação

para auxiliares de enfermagem;

O número de auxiliares de enfermagem, com formação

profissional, em breve será superior ao das registered

nurses (RN).

Em Portugal, entre 1965 e 1974, o número de auxiliares de

enfermagem que se formavam anualmente era cinco vezes

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 27/36

superior (cerca de mil) ao número de enfermeiros com o curso

geral (cerca de 200).

Grande parte dos auxiliares de enfermagem, antes do 25 de

Abril de 1974, iam substituindo na prática os enfermeiros,

nomeadamente nos hospitais e nos serviços médico-sociais da

Previdência, sem as necessárias contrapartidas em termos de:

(i) reconhecimento formal das suas competências; (ii) nível ou

estatuto remuneratório; (iii) oportunidades de formação

profissional, etc., o que acabou por originar um movimento

reivindicativo, mais ou menos manifesto, já a partir de 1969.

A criação do Curso de Promoção de Auxiliares de Enfermagem,

com a duração de 20 meses, no consulado de Marcelo Caetano,

acabou por não ter grandes efeitos práticos, por diversas

razões (limitada capacidade de resposta das escolas,

dificuldade de dispensa do pessoal por parte dos serviços de

saúde, etc.).

A pressão sindical acentuou-se com a Revolução do 25 de Abril.

de 1974. Numa conjuntura favorável às reivindicações

igualitárias, o Curso de Auxiliares de Enfermagem acabou por

ser extinto, tendo os auxiliares, com três anos de serviço no

mínimo, sido promovidos ou integrados na carreira de

enfermagem (como enfermeiros de 3ª classe).

Na realidade, tratou-se de uma passagem administrativa, já que

o novo curso de promoção dos auxiliares de enfermagem, criado

em 1975, e indispensável para as pessoas progredirem na

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 28/36

carreira, esteve muito longe de cobrir toda a população em

causa.

Apesar dos problemas que a enfermagem portuguesa continua a

enfrentar, é inegável que o seu estatuto socioprofissional, nos

últimos trinta anos, se aproximou do estatuto dos médicos, pelo

menos quando comparado com a situação em 1901. Nessa época, o

pessoal de enfermagem continuava a ser social e técnica

desvalorizado em relação à medicina e outras ocupações de

saúde Veja-se, a esse propósito, o quadro de pessoal de dois

serviços sanitários, resultantes da reforma de Ricardo Jorge

(Quadro 1).

Para além de funções laboratoriais (análises e preparação de

soros e vacinas), de investigação e de ensino, o Real Instituto

Bacteriológico de Lisboa (criado em 1892 por Câmara Pestana)

era também dotado de enfermarias para o internamento de

doentes portadores de doenças infectocontagiosas (v.g., raiva,

difteria, tétano, peste e outras).

O regulamento dos serviços de hospitalização será aprovado

pelo Decreto de 30 de Janeiro de 1902. O seu quadro de

pessoal prevê sete enfermeiras, duas com funções de

enquadramento: A enfermeira regente tinha a seu cargo especial

a enfermaria de difteria, e a enfermeira chefe a do serviço anti-

rábico (art. 15º do citado regulamento de 1902).

Um pormenor digno de nota é que a vacinação contra a raiva, por

exemplo, é feita, não pela enfermagem, mas pelo chefe do

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 29/36

respectivo serviço (art. 8º), que é um dos dois médicos

auxiliares, de acordo com o disposto nos artigos 167º e 169º do

Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública

(1901). Ou seja, a vacinação era então um acto médico por

excelência, que só após a sua banalização será delegado, mais

tarde, à enfermagem.

O mesmo se passou, de resto, com o termómetro clínico que até

meados do Séc. XIX era um elemento básico do acto médico

(tal como ver os "pulsos" e ver as "águas" até ao Séc. XVII): à

medida que se desenvolvem outros meios auxiliares de

diagnóstico, mais sofisticados, o termómetro banaliza-se e tirar

a temperatura passa a ser um acto de rotina que é delegado pelo

médico à enfermeira.

Quadro 1 - Quadro do pessoal de dois serviços sanitários em que está prevista a

categoria de enfermeira ou enfermeiro (1901)

Real Instituto Bacteriológico de Lisboa Lazareto e posto marítimo de

desinfecção dos Serviços Sanitários

do Porto de Lisboa

Categoria Ordenado (em

réis) p/

categoria

Categoria Ordenado (em

réis) p/

categoria

1 Director (médico) 1000$000 (a) 1 Inspector 1000$000 (b)

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 30/36

(médico)

1 Médico assistente 700$000 (a) 2 Médicos adjuntos 900$000 (c)

2 Médicos auxiliares 600$000 (a) 1 Médicos auxiliar 500$000 (d)

1 Amanuense 300$000 1 Amanuense

intérprete

500$000 (d)

1 Escriturário 300$000 1 Fiscal chefe 500$000 (d)

2 Preparadores 300$000 1 Fiscal subchefe 400$000 (d)

1 Ajudante de

preparador

200$00 2 Fiscais 400$000

1 Maquinista 306$000 1 Capelão 400$000

1 Auxiliar de

maquinista

180$000 1 Servente 180$000

10 Serventes 180$000 2 Enfermeiros 200$000 (e)

2 Palafreneiros 180$000 4 Guardas de 1ª

classe

200$000 (e)

1 Porteiro 150$000 12 Guardas de 2ª

classe

170$000 (e)

1 Enfermeira

regente

240$000 1 Maquinista

serralheiro

(1)

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 31/36

1 Enfermeira chefe 180$000 1 Maquinista (2)

5 Enfermeiras 140$000 2 Fogueiros (3)

4 Criadas 120$000

4 Criados 132$000

Gratificação de exercício: (a) 200$00 (b) 450$000 (c) 300$000 (d) 100$000 (e)

80$000

Jornaleiros (salário ao dia) : (1) 1$500 (2) 1$000 (3) $600

Fonte: Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, de 24 de

Dezembro de 1901 (Boletim dos Serviços Sanitários do Reino, 1902. 123-124)

Em termos remuneratórios, as enfermeiras continuam a ter, em

1901, o estatuto de pessoal menor ou auxiliar, com um ordenado

anual de 140$000 réis, ligeiramente superior aos dos criados e

criadas mas inferior ao do porteiro (150$000 réis). A

enfermeira-chefe, por seu turno, ganha o mesmo que os

palafreneiros e os serventes (180$000). Ainda em termos de

ordenado, a enfermeira regente (240$000) está longe de se

equiparar aos preparadores ou analistas de laboratório e ao

pessoal administrativo (300$00) e, muito menos, aos dois

médicos auxiliares que eram chefes de serviço e que, como tal,

recebiam 800$00 cada um (incluindo a gratificação de

exercício).

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 32/36

Em contrapartida, no lazareto de Lisboa e no posto marítimo de

desinfecção, pertencentes aos Serviços Sanitários do Porto de

Lisboa, o respectivo quadro de pessoal só previa a existência de

dois enfermeiros (não de enfermeiras!) cujo vencimento anual

atingia os 280$000 réis (incluindo uma gratificação de exercício,

no valor de 80$000 réis), o mesmo que aliás ganhava um guarda

de 1ª classe.

No quadro de pessoal dos restantes serviços de saúde pública a

que se refere o Regulamento de 1901 (Direcção Geral de Saúde

e Beneficência Pública, Instituto Central de Higiene, Delegação

de Saúde de Lisboa, Serviços de Saúde do Porto, Posto de

Desinfecção Pública de Lisboa, Estação de Saúde e Posto

Marítimo de Desinfecção do Porto, do Funchal e de Ponta

Delgada), não estava previsto qualquer lugar de enfermeiro ou

de enfermeira:

Num total de 291 lugares previstos nos diversos quadros de

pessoal, anexos ao Regulamento de 1901, o número de

enfermeiros (n=9) não representava senão uns escassos e

insignificantes 3%, enquanto que o número de médicos ascendia a

86 (cerca de 30%)

Em suma, no princípio do Séc. XX não existia ainda a enfermagem

de saúde pública, continuando-se a confiar aos enfermeiros

apenas as tarefas de custódia dos doentes internados, tarefas

essas que até então eram praticamente indiferenciadas.

Em contrapartida, o que é notório na reforma de 1901 é a

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 33/36

emergência do protagonismo médico: são os médicos quem ocupa

exclusivamente os cargos de pessoal dirigente ou exerce as

funções de direcção técnica dos serviços, desde o director-

geral de saúde até ao guarda-mor chefe das estações de saúde

e postos marítimos de desinfecção.

No caso dos técnicos de diagnóstico e terapêutica, a sua

evolução é muito mais recente do que a do pessoal de

enfermagem. Todavia, já no Regulamento de 1901 surgem novas

categorias de pessoal de saúde, distintas quer da medicina quer

da enfermagem:

É o caso dos químicos (habilitados com um curso superior de

química), os preparadores ou analistas, os desinfectadores

e os engenheiros sanitários;

Estes últimos passaram a ser formados no Instituto

Central de Higiene, tal como de resto os médicos sanitários

(ou futuros médicos da carreira de saúde pública, criada

em 1971).

A formação dos técnicos de diagnóstico e terapêutica esteve a

cargo inicialmente das Escolas Técnicas dos Serviços de Saúde

(mais tarde, Escolas Superiores de Tecnologia da Saúde).

Pertencentes ao Ministério da Saúde, foram criadas pelo D.L. nº

371/82, de 10 de Setembro, e regulamentadas pela Portaria nº

549/86, de 24 de Setembro. Hoje, a formação tende equiparar-

se à de enfermagem, com a sua integração no sistema de ensino

superior politécnico (D.L. nº 415/93, de 23 de Dezembro).

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 34/36

Entretanto, e ainda na 1ª metade do Séc. XX, foram criados

novos cursos sanitários. Ferreira (1990. 335-336) refere, pelo

menos, três ou quatro:

Visitadoras sanitárias (funcionou com maior ou menor

regularidade entre 1929 e 1952);

Agentes sanitários (entre 1946 e 1971, ano que foi

reestruturado);

Preparadores de laboratório (também entre 1946 e 1971)

Técnicos superiores de laboratório (entre 1969 e 1971, ano

em que também foi reestruturado).

No âmbito dos serviços públicos de saúde, a carreira dos

técnicos de diagnóstico e terapêutica obedece aos princípios

consagrados no D.L. nº 384-B/85, de 30 de Setembro. Em 1993

foram regulamentadas as actividades ditas paramédicas,

através do D.L. nº 261/93, de 24 de Julho. Dezoito categorias

de actividades paramédicas constam em anexo ao citado diploma

legal.

Legislação pertinente para as Escolas Superiores de Tecnologia

da Saúde (ESTES) e para a carreira de Técnicos de Diagnóstico

e Terapêutica (1985-2000) pode ser consultada no sítio da

ESTES de Lisboa (vd. http://www.estesl.pt/ ). Poderá ainda ser

consultado o "site" do Sindicato Democrático dos Técnicos de

Diagnóstico e Terapêutica, criado em 1979 e filiado na UGT (vd.

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 35/36

http://www.sindite.pt/ ).

Referências Bibliográficas / Bibliography

CORREIA, F. S. (org.) (1960) - A vida, a obra, o estilo, as lições e o

prestígio de Ricardo Jorge. Lisboa: Instituto Superior de Higiene

Dr. Ricardo Jorge.

FERREIRA, C. (1986) - Assistência social portuguesa. Apontamentos

para a sua história, seus princípios e sua organização. Revista

Portuguesa de Saúde Pública, 4(1/2), pp. 39-50. (Originalmente

publicado em Hospitais Portugueses. 9(61-62) 1957.)

FERREIRA, F.A. G. (1990) - História da saúde e dos serviços de

saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

GRAÇA, L. (1996) - Evolução do sistema hospitalar: Uma

perspectiva sociológica. Lisboa: Disciplina de Sociologia da Saúde

/ Disciplina de Psicossociologia do Trabalho e das Organizações

de Saúde. Grupo de Disciplinas de Ciências Sociais em Saúde.

Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa.

(Textos, T 1238 a T 1242).

HOFOSS, D. (1986) - The origin of species. Soc. Sc. Med. 22: 2

(1986) 201-209.

LEMOS, M. (1991) - História da medicina em Portugal: instituições

e doutrinas, Vol. II. Lisboa: D.Quixote; Ordem dos Médicos (1ª

15/6/2014 Luís Graça, Textos62: Enfermagem em Portugal / Nursing in Portugal

http://www.ensp.unl.pt/lgraca/textos62.html 36/36

ed., 1899).

Memórias do Marquês de Fronteira e d'Alorna, Apêndice (1932)

(Org. de Ernesto de Campos de Andrada). Coimbra: Imprensa da

Universidade (Uma reimpressão fac-similada desta edição foi feita

pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986).

MIGUEL, M. A. M. (1981) - Casa Pia. In: Dicionário de História de

Portugal (Dir. de Joel Serrão). Porto: Figueirinhas, Vol. I, pp.

513-515.

NOGUEIRA, M. (1990) - História da Enfermagem, 2ª ed. Porto:

Edições Salesianas.

(a) Versão provisória. Não publicado / Draft. Unpublished paper

(b) Ana Isabel Henriques é enfermeira especialista tendo trabalhado no Hospital Garcia

d'Orta, Almada. Actualmente está colocada no Centro de Saúde do Fundão.

Última actualização: 1 de Abril de 2008 / Last update: April 1, 2005.

© Luís Graça (1999-2008). E-mail: [email protected]

| index | textos_papers | l inks | forum | pst_whp |

| dados_data | historia_history | citações _quotations | antologia_anthology | cvitae |