155
f,*sffir$ruË$,**v3 $ rug Ë,rukf .g;&,'ãtr s€3ru $T FHê.? Â,& * FgBë g €*ç*.FBrsF"ã'"}ffi sgBïT

Luis Bernardo Honwana

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Nós Matamos o Cão Tinhoso

Citation preview

Page 1: Luis Bernardo Honwana

f,*s

ffir

$ru

Ë$

,**v

3

$ru

g Ë,r

ukf

.g;&

,'ãtr

s€

3ru

$T

FH

ê.?

Â

,&

* Fg

g

€*ç

*.F

Brs

F"ã

'"}f

fi

sgB

ïT

Page 2: Luis Bernardo Honwana
Page 3: Luis Bernardo Honwana

NOS MATÁMOS O CÃO-T INHOSf )

Page 4: Luis Bernardo Honwana

CABO VE

Bissau -.ffi*"'

INE-BISSAU

Page 5: Luis Bernardo Honwana

- {Ii

"., {F O 'ÍÈ

EUROPA

AFRICA

j , Çquad-ot

I

t r t (

M()ÇAMBTQLIT

Page 6: Luis Bernardo Honwana

O L r r i s R e l t r a x l o I l o t r r v a n a , l 9 ó ' [

O IrìrÌ içõcs (ìoÌor i;r, l i la ( ')(X)ál)

l ì t r r N o v a t ì u ' l ' r i r r t l r r l e . 2 4 ,

ì 2 [X) - i30 i i l . i s l x ra

( ì a J r i r : r r ' l r r o r ì t t 1 ã o r ì t ' t l e s e t r Ì t r r c t t r o g r ' ú Í i c r r t l e F e l n a t t t l o C a l ì r a n o '

p l i r l i í ì < . i r ç r - r q r l t : r r r < r l ì v o s ( ) r l r â n l e l ì t r Ì i s t l t . l r i r s t i l c s f e i l , r s < < t t r r a r a t t r e t l e < : o l t r e , M o ç a t t t l t i t ; t t e

Out ì Ì l r r ( ) 2 (X)8

ISI IN : ! l7 t \ -972-7 95-26 | -u

Page 7: Luis Bernardo Honwana

Índice

Nota do azttor à prinzeìra etlição

Nós matámc)s o Cão-Tinhosc-r

Inventário cle imóveis e jaceutes

Dina

A velhota

Papá, cotrra e eu

As rlãos dos pretos

Nhinguit imo

p.9

11

'J

63

87

97

r17I23

Page 8: Luis Bernardo Honwana
Page 9: Luis Bernardo Honwana

Lui s B erÍìardo FI onwana

NÓS MATÁIuoSO CÃO-TI1\FIOSO

,,,,,8.j', ',,,

Page 10: Luis Bernardo Honwana
Page 11: Luis Bernardo Honwana

Nota do autor à pr imei ra ed ição

Não sei se realmente scrr-r escritor. Acho que al)enáÌsescrevo sobre coisas qlre, âcc)ntecenclo à minha rrolta, serelacionem intimar-nente conrigo ou trtrdu zan f actos cìueme L)areçam decentes. Este l ivro cle histórias é o testen-ÌLÌ-nìro erl que tento retratzLr uma série de situações e proce-cl imentos clue talvez interesse conhecer.

Chan-ro-me Luis Augusto Bernzrrdo Manr,rel. O apeli-do Flonurana não venl ncls nleus documentos. Sou filho cleRar-rl Bernardo Manuei (Honurana) e cle Nally JeremiasNhaca. Ele intérprete da administração da Moarnb:r e eladoméstica. Tenho oito innãos.

Nasci em Lourenço Marques, errt 1912, e vivr corrl crsmells pais, na Moarnba, até aos 17 anos. Actualmente morc)no Xipamanine, em Lourenço MarclrÌes, e alérn c1e frecluen-tar o liceu, sou jornalista.

As minhas primeiras histórias datanr do início cla antigapágína literária juvenil do jorr-ral "Notícias", o "Desprertar".

Todavia qlrase toclos os contos cÌrÌe aì!Ìora sLro pul-rlicacloscomeçaram a ser feitos anterjormente, cluando ainda nãodava tanta atenção a<> ql-re de vez em cluando rne darra pzìraescrever. Foi nutna altura em cÌue, embora prraticasse des-portos muito intensarrellte, Lrnl grupo de jornalistas, pin-tores e poetas erjudolr-me a ler Lrma qLÌ?ìnticlade de livrc>s

Page 12: Luis Bernardo Honwana

Lu is Bcrnarc lo FIonu' t rnzr

iÌnportântes, levou-ÍÌle a ver filmes que tinharn cle ser vis-tcls e emprestor-Ì-me algumas das suas preocupações. En-tretanto estuclei desenho e pintura durante algum tempo epart icipei com vários rrabalhos errl exposições de arte.Tar-nbérr-r escrevi coisas para filmes que não se fizeram epertenci a Llnìa equipa qLre corìreçol.Ì a fazet urn filne e de-sist iu antes clo f im.

Depois do "Despertar", Eugénio Lisboa, Rui Knopflie José Craveirirrha entusiasrnarâm -me, p ublicar-rdo algumasdas minhas histórias enl jornais. FÌá pouco teÍÌ1po o Pan-cho, que tornou possível o aparecirnento deste livro, falou--me pelar prirneira vez elrÌ editar alguns contos errr livro.

Para a capa e para ilustrar as histórias aproveitaram-sefragmentos de clesenhos que a Bertina tinha feito sem co-nhecer os meus escritos o que o Pancho usou depoís de verque eìs coisars qt-re os desenhos contam são parecidas comas hístórias que fr2. O pedaço cle inventário é de um inven-tário verdadeiro: â mão d'As mãos dos pretos é a minha.

Lurs BgnNaloo HoNwANA

1 0

Page 13: Luis Bernardo Honwana
Page 14: Luis Bernardo Honwana

O Cão-Tinhoso t inha uns o lhos azuis" . .

O Cão-f inhoso tinha uns olhos ilzuis qtre não tinharnbri lho nenhum, l lras erarrr elÌorn-Ìes e estzlvarn serÌrprecheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Meti-am medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar coÍrìounra pessoa a pedir qualquer coisa sern qrÌerer dizer.

Eu via todos os dias o Cãct-ïnhoso a andar pela som-bra do muro em volta do pátio da Escola , a ir para o call-to das canlas de poeira das galinhas do Senhor Professor.As galinhas nerìl fugiam, porqr-le ele não se metia correlas, setnpre 2ì andar devagar, à plocura de uma canra depoeira que não estivesse ocupada.

O Cão-T'inhoso passava ct terxpo todo a clornrir, masàs',uezes anclava, e então eu gostava cle o vef, corf-ì os ossostodos à mostra no corpo n-Ìagro. Eu r-runcavia o Cão-Ti-nlroso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz dissc-r,porque andava todo a tremer, lffesmo sem haver frio. fa-zendo balanço com a cabeça, corrìo os bois e dando unspeìssos tão rnalucc-ls qlÌe par-ecia un-ìa carroça velha.

Houve um clia que ele Íìcou cl tempo todo no portàoda Escola a ver cls oLltros cães a brincar no capim clo outrolaclo da estrerda, a correr, â cc'l:rer, e a cheirarr debaixo clcr

l i

Page 15: Luis Bernardo Honwana

Ltris Bern a r-clo lïons'arrr a

rabo uns aos outros. Nesse d ia o Cão-Tinhoso t remia rnaisdo que rÌÌÌrìca, mas foi a única vez qtÌe o vi com a cabeçalevantada, o rabo direito e longe clas pernas e as orelhasespetadas de curiosidade.

Os outros cães às vezes deixavam de brincar e frca-vaÍn â olhar para o Cão-Tinhoso. Depois zar'gavaïÍr-se epunharn-se a ladrar, mas cornc) ele não dissesse nada e sóficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam acheirar debaixo do rabo uns aos olÌtros e a correr.

Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso colTÌeçou a chiarcoÍÌl a boca fechada e avançou para os outros quâse que acorrer, mas com a cabeça muito direita e as orelhas maisespetadas do qLre nunca. Quando os outros se virarermpâra ver o que ele queria, teve rneclo e parou no meio daestrada.

Os outros cães ficaram urn bocado a pensar ncl qLlehavianr de fazer por ele estar a olhar pata eles daquela ma-neira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com eles.

Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qual-quer coisa aos outros e avançou devagar até onde estava oCão-Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver e neÍn se me-xel-Ì quando o Bobí lhe foi cl-reirar o rabo: olhava sernpreem frente. O Bobí, depois de ficar uÍÌ1a data de tempo aanclar ern volta do Cão-Tinhoso, foi a correr e disse qual-quer coisa aos outros - o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi,a Mitr. osa e o Lulu - e puserârn-se todos a ladrar rnuitozangados para o Cão-Tinhoso. O Cão-Tinhoso não res-pondi.r, senìpre rnuito direito, rnas eles zangaÍaÍlr-se eavanç2ìralrì para ele a lzrdrar cacla vez mais de aito. Foi en-tão que ele recuor-r coln medo, e voltanclo-lhes âs costas,veio para zr Ilscola, corrì o rabo toclo enfiado.

T 4

Page 16: Luis Bernardo Honwana

N ós r-n atírnros cl (lão-'l ' inlroscr

Quando passou por lrlim ouvi-o a chiar corrr a bocafechada e vi-lhe os olhos azuis, cheios de lágrimâs e tãograndes a olhar como un-Ìa pessoa a peclir qualquer coisasem querer dizer. Mas ele nenr olhou para rnirn e foi pelasorrrbra do pátio cla Escolaì, sempre conl a cabeça a fazerbalanço corno os bois e a andar conìo uma carroça velira,para o czìnto cl.rs camas cle poeira das galinhars do SenhorProfessor.

Os outros cães air-rda ficaran urn bocado a laclrar pâraìo portão da Escola, todos zangados, lrras voltaram pariÌo carpim clo outro lado cla estrada tr)ara continuar a correr, arebolar, a fingir que se mordiarn uns aos olrtros, a correr,a correr e a cheirar debaixo do rabo uns dos outros.

De vez enì qr-rândo o Bobí olhavtr parâ o portão dzrEscola e, lembrando-se do Cão-Tinhoso, punha-se a la-drar outravez. Os outros, ?Ìcl ol lvi- lo, cleixâvam de brincare punham-se também a ladrar, rrruito zangados, para oportão da Escolzr.

O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cireiar cÌe pêlos bran-cos, cicatrizes e mnitas feridas. Ninguém gostava clele por-cÌLìe erâ um cão feio. Tinl-ra senlprc nruitas troscas acolrrer-l}ìe as crostas dtrs feridas e cluando andava, zÌs nloscasiam com ele, a \/oaf em voltar e â pot-lslìr rlas crostzìs das feri-das. Ninguém gostava cle lhe passerr a mão pelas costas colTìoacls outros cães. Iìem, a lsaurzr era rì única que tazia isso.

O Quim disse-me unr día qr-re o Cão-Tinhoso era mui-to velho, rxiìs qLre quanclo air-rcla era novo clevia ter sido r-rmcão com o pêìo a brilhar corìro o clo Mike. O Quirr-r disse--tle tambénr clue as fericlers clo Cão-Tinlrcrso eranr por car-r-

1 5

Page 17: Luis Bernardo Honwana

Luis Ì3errr : r rdo Ì Ionwanir

sa da ÉìLrerra e da bomba atórnica, mas isso é ca\)az de serpeta. O Quirn diz muitas coisas clue â gente nem pensaque podem não ser verdadeiras, porqlre quando ele ascoÌrta a €ïente fica tudo de boca aberta. A malta gosta deouvír o Quirrr a contar coisas de outras temas e os filmesque vai ver lá ern Lourenço Marques, no Scala, e as coisasdo El Índio Apache a jogar luta-livre e a fazer tourada, eaquiÌo que El Índio Apacl-re fez ao Zé Luís no Continen-tai. O Quim diz que El Índio Apache só não vai ao foci-nho ao Zé Luís porque não quer.

O Quirl clisse-me isso de o Cão-Tinhoso ser muitovelho quando um dia o virnos a bocejar sern dentes naboca. Foi nesse dia que me contou a história da bombaatómica coÍÌl os japoneses pequeninos a morrer todos queera Lurìa loeleza e o Cão-Tinhoso a fugir depois de ela re-bentar e â correr Lll]fa distância monstra para não morrer.O Qr-rirn não me contor'Ì a história toda logo de uma vez edisse que só a acabava se er-l rrre portasse bem lá dentro, naprova. Eu passei-lhe quase toda a prova fiìas a Ser-rhoraProfessora topclu e deu-lhe 8 reguadas no rabo. Quandosaímos eu não lhe pedí par^ acabar a história da bombaatónrica porque ele era capaz de se lernbrar do que a Se-nhora Professora lhe tinha feito 1á dentro e zang4ar-se co-migo. Ele só a acatrou à tarde no Sá, antes de começarmosa jogzrr o sete-e-n-ìeio a cigarros.

Toclos ficaram de boca aberta a ouvir. Até o Sá clei-xou de atencler os fregueses para ouvir o Quim a contar.

Ele contou tudo desde o princípio sem ninguém pe-dir, mas era diferente claquilo que tinha começado a con-tar nâ Escola, porque já não l l let ia Cão-Tinhoso. Eu nãodisse nada porqrÌe ele era cl lpaz de se zangar comigo.

l 6

Page 18: Luis Bernardo Honwana

Nírs nrar ta inros o ( lão-Tinhoso

O Cão-Tinhoso t inha a Lrele velha, cheia de p-rêlosbrancos, cicatrizes e muitas lericlas, e em muitos sítios nãotinha pêlos nenhuns, nenf brancos nerrì pretos e a pele erapreta e cheia de rugas corrìcl a pele cle urn gala-gala. Nin-guém [Ìostava de lhe passar a mão pelas costas conro âosoutros cães.

A Isaura eÍa ^ única que gostava do Cão-Tinhoso epassava o tenrpo todo conr ele, a clar-lhe o lanche delapara ele comer e a fazet-lÌre festinhas, mas a Isaura erzÌ n-ìa-luquinhar, todos sabiam clisso.

A Senhora Profess<>ra já tinl-ra dito que ela não regu-lava 1â muito bern e que o trrai a havia de tirar da E,scolapelo Natal.

A Isaura não brincavâ ccrlfi âs clutl'zls rneniuas e era amais velha c1a segunda classe. A Senhora Frofessora zuìlr-gavâ-se por ela não saber r-rarda e dar erros na cópizr, e cii-zia-lhe que só não llre dava reguarclas porque salria que elanão tinha tudo lá dentro da cabeça.

Quando ia para o estrado ler a lição não se ouvia nadae a élente dízia- "\16 se oLlve narda, não se ouve 121d21" -,

e a Senhora Professora dizia que os rleninos cla quarta clas-se não tinham nada que ouvir. Ilntão os meninos cla seÉ{Lrn-cla classe conleçavarrr a dizer: "Não se ouve nacla. não seot-lve nada". A Senhora Prof-essora zan€Iava-se e fazia luntabronca dos diabos. Por isso, no intervalo, as olrtras rnenlnasfazianl. uma roda corìl a Isaura no meio e punham-se ir clan-

çar e a cantâr: "Isaura-Cão-Tir-rhoso, Cão-Tinhoso, Cão-ï-nhoso, T inhoso, Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso,Tinl-roso". A Isaura parecia clue não ouvia e f icava comaquela cara de parva, a olhar parâ toclos os lados à procuracle não sei quê, cclmcl tlrzia er Senhc-rra Professora"

Page 19: Luis Bernardo Honwana

Luis Benrzrrclo T-Ioreç'arra

Houve um dia em que falei corn a Isaura. Foi assim:Estaver sentado n2Ìs escadas cla Escola, f f Ìesrrro em

frente âo portão, a coÍÌrer o lanche. Era o intervalo do lan-che. A Senhora Professora estava a ler um livro e passeavapela varanda, indo até uma ponta, virando-se e vindo paraa outra. Como ela passava por rnim (ouvia os sapatos, cóc,cóc, cóc, no chão) eu estava para saber se me havia de le-vantar ou não quando ela passavâ, pclrqr-Ìe era chato le-vantar-me todas as vezes que ela passava por mirn. Deresto, efa rnesÍÌlo capaz de estar â pensar que eu não davapor ela, por estar de costas para o sít io por onde passeava,e não rne perÉIuntar depois, na aula, se os meLrs pais nãome dar.'am eclucação.

Eu estava a pensar nisso e à coÍner o lanche, quandovi que a Isaura andava zì procura do Cão-Tinhoso. Depoisfoi lá parzi. fora e espreitou a rua toda. Corr.o não visse oCão-Tinhoso, ficou no portão a olhar paÍe' todos os laclosaté que me viu. Ficou Lrma quantidade de tempo a olharpara rnirn e, clepois, veio até às escadas, a andar devagari-nho e de laclo, subiu-as, e quando chegou perto de mirnvoltou-se para LÌnìa coluna e pôs-se lá zr r isczrr qualquercoisa, muito distraída. Perguntou-rne corno se estivessea falar corn outra pessoa qlÌe eu não via:

- Vi51s o meu cão? Heim? Viste?Como eu não clesse nenhuma resposta, porql le era

a prir leira vez que ela talava con igo, insist iu:- Não passolr lâ para fora?. . .Nísto, o Cão-Tinhoso apareceu n<l portão. Parou um

bocado, e clepois, en-ì vez de ir paráÌ as camas de poeira dasgalinhas .lo Senhor Profe.ssor, veio piìra âs escadas. Eu disse:

- E,stá aii.

1 8

Page 20: Luis Bernardo Honwana

Nós matr inros o Cão-TinÌroscr

A Isaura voltolr-se logo:- Aolrde? Ah! Meu cãozinho... Tinhas ido passear?A Senhora Professora parclr-l rìresnìo atrás de mirn (ouvi

o cóc, cóc, cóc dela a vir e rul cóc mais forte lTìesÍTÌo atrzis demirn. De resto, senti o perfume dela em cína de mim).

A Isaura tinha corrido 1ogo, escadas abaixo, a at4alraÍ--se ao Cão-Tinh<lso, quando a Senhora Professora disse:

- Ó menina, cllre pollca-verÉIonl-ra é essa? Yai jálavzrras rnãos !

Eu estaver ainda a pensar para serber se nle havia cle le-van ta l o t r r ì ão , l ) o rque ouv ía -a n ìes l l l o po r sob rc as n r i -nhas costas, embora não a estirzesse a ver.

A Isaura afastou-se do Cão-Tinhoso e virou-se paÍà aSenhora Professora. O Cão-Tinhoso ficou rambém a olharpara ela. Foi aí que a Senhora Professora disse para o Cão--Tinhoso:

_ suca I

O Cão--Iinhoso aincla ficor: unr bocaclo a olhar para aSenhora Professc-rrâ, coll os olhos gral-rdes a oll'rar conloLrma pessoa a peclir qualquer coisa sem querer dizer. Eu vi--lhe as lágr:imas a brilhar em riscos no focinho. A Senhor:aProfessora cleu um grito paráÌ o Cão-Tinhoso orrvir bern:

_ suca daqui !C) Cão-Tinhoso voltou-lhe as costas e desapareceu

pelo portão Íbra, sem clizer nacla, com o seu andar cle car-roça velha e colTì a cabeça a fazer balanço corlro os bois.

A Senhora Professora continuou a andar (cóc, círc,cóc, de LÌnla ponta da varetndzr para a or-rtra) e a Isaura fi-cou LÌrr'r bocaclo ar olhar corrr aqr-ìela cara cle parva páÌra osítio ertrás de lr. im oncle a cara da Senhorzr Professora cle-via ter estaclo, e clepois veio derragarirrho e a andar cìe laclo

l 9

Page 21: Luis Bernardo Honwana

Luis IJernerrdo Honrvanar

e encostolr-se outrà\/ez à coluna, muito cl istraída a r iscafna cal. Daí a bocaclo disse-rne:

- V i51s) . . .E eu disse:-v i .E ela:- Comeu com e le . . .E eu:-- Sim.Ficámos um bocado sem falar e depois eÌa veio numa

corridinha pôr-se-rrìe em frente para me olhar com força.Os cantos dos olhos dela começâraÍrr a encher-se de lágri-mâs e quando os olhos estavam cheios elas rebentaram ecaíram-lhe pela cara aloaixo, a fazer dois riscos Eïrossos.Pergr-rntou-Íìfe:

- V i s l s ) . . . V i s te o que e la fez? . . .Eu respondi:-' vi.Ìl ela:- E la é rná. . . E rná, . . .E,u não disse nada e ela continuou:- f 'cldos são rnaus paÍa o Cão-Tinhoso...Os olhos dela não eram azuís, mas eranr flrandes e

olhavaur como os olhos do Cão-Tinhos<-r como urna pes-soa a peclir qualquer coisa sem cllrerer clizer.

Depois ela foi-se errborrr, lâ pata trás, onde os outrosestavam a ctlnler os lanches e a brincar.

2 0

Page 22: Luis Bernardo Honwana

Ntis nrat i imos o Cào- ' l - iubosc>

O Senhor Administrador ctrspilr para nós os dois edisse aquilo do Cão-Tinhoso, rïras era só porque ele e oparceiro tinharn levado urlra limpa-quatro-l:olas;

O Cão-Tinhoso costumava âparecer no Clube aos sá-bados à tarde para ver a malta a treinar futeLrol. Eu r-rão seiporque é que o Cão-Tinl-roso gostava disso, mas â verdade

é que ele estava lá todos os sábados à tarde.Houve url dia qlle zÌ maÌta cluis f-azer un'ì cìesafio a sé-

rio e não me cleixou jogar. O Gulamo nenl nre deixou jogar

àbaliza. Ele disse-me: "Aguentáì un bocaclo na varanda doCÌube. Ficas conìo srlplente. Daqui â pouco entras, 1Tìashá-de ser quando estiveruros à riìsca ou a perder, porcpre'aí

entras tu e â gente resolve o iogo". Eu vi logo qr-re eÌes nãome haviam de cleixar jogar porque o jogo era a clinhciro eqr-rando é assim eles não lre deixam jogar. Isso de eu ficar

corrìo suplente era o que eles dizian quanclo não queriatlt

que eu jogasse, mas eLÌ não disse nadar e fr,ri para a varandi.r

c{o clube. O Cão-Tinhoso estava lá.O Senhor Adrr-inistraclot: e os outros estavalrl lla varan-

dzr clo Clube, a jogarr à sueca cclnìcl tarmbéur era hzíbito toclosos sábaclos à tarde. Eu estarrra a olhar parâ o Senhor Adninis-trador quanclo ele e o parceiro levzrrarn un-ì capote e ele disse

ao Doutor da Veterinária, que se estavzì er rir todo satisfeito,por lhe ter daclo o capote: "Não acho graça nenhuma" " " Issofoi leiteir:a" ... Depois olhou partr nirl- e viu que eu tambérr.me estava a rir. Olhou para o Cão-Tinhoso e üu-o tambem arir-se. Por isso zané{cl l-r-se e perél lrntou âos outros: "Eh!

Quenr é que disse qr-re isto nào era a Arca de Noé?".

Depois continuaraÍn a jogar zì sueca e o Senhor Admi-

nistraclor e o parceiro levarânr LÌlr lâ l impa-quatro-trolas.

2 1

Page 23: Luis Bernardo Honwana

L,uis Berr-rardo Flonlvan;r

Eu estava zr olhar para ele qrÌândo ele disse ao Doutor da Ve-terinária que se estava a rír por lhe ter dado a iirnpa-quatro--bolas: "Mas qual é a piada, porra? Conr os trunfos todos narnão qr:em é qr-re não fazia o qr're vocês frzerant? Olha fiIho,toma! Toma! Chupa!... Eu chamo-lhe leiteirzr.. . " Depoisolhou parzr mir.,- e zanÉÌoÌ-r-se. Ele sarbia que eu sabia que eleestava a perder. Olhou paràmirrr e para o Cão-Tinhoso semsarlrer com qual de nós os dois haúa de correr prirneiro. En-quanto pensava para resolver isso cuspiu para nós os clois,isto é, para LÌrrr sítio entre nós os dois. Está-se lrìesr:rìo a verque o cuspo tanto era para mim cc)lrìC) para o Cão-Tinhoso.

O Doutor da Veterírtâria ainda se estavâ a rir por lheter dado a l impa-quatro-bolas e ele acabou com aquilo detÌnìa vez:

- Oulus lá, o qr,re é que este cão está a fazer aindavirro? Estzl tão podre que é urn nojo, carambar ! Bolas paraisto! Ai que eu tenl-ro cle nre meter em todos os lados tr)arapôr mr-r i ta co isa em ordem.. .

O Senhor Chefe dos Correios, qÌre era o 1-rarceiro doSenhor Aclministrador, já estava a dar as cartâs nessa alttr-re, e por issc-r ficaram todos a ver qlrantos trunfos é quelhes l-ravierrl cle szrir. Er-r Êqlrei um momento a olhar parzÌaquilo tuclo até co1'Ì-ìpreencler o cllìe o Senl-ror Administr:a-dor qrreria cl izer: - O Cão-Tinhoso vai morrer! Olheipara ele: estava a dormir com a czrbeçer entre as LliÌtas, trui-to clescansaclo cla vida.

Fui a correr para o calììpo de futebol para avisar errlalta: "O Cão-Tinhoso vari n orrsp". - O Gularno disse--l ìre: "Fora daqui|" -Agarrei-r le a ele evoltei a dizer-lheque o Cão-Tinhoso ia morrer: "I-arga-me". Ele só cl iziaisso. "Lafeeì-nfe" - Mas estava quieto.

2 2

Page 24: Luis Bernardo Honwana

Nós nratr inros o ( lão-' Ì ' inhos<r

Ficámos os clois a ver Lll-ìlzÌ avançacl2l do grupo clo

Quim. O Faruk, que eral cl ponta direita cleles, f-oi com abola até ao canto, depois cle ter batido o Narotalno errìcorrida, e de lá centroLl. O Quin-r passolÌ por nós â correrpara abalíza, rrìzrs o Gr-r]an"ro só cl izia: "Larga-me". O

Quim meteu o golo com Lrm2r cabeçada. O Gulamo foilogo a correr: "Este golo não verletr porcl le este t ipo estavaà àgíttr'àt-lrle". O Quinl e cls clrÌtros não quiserâm s,lber:"Isso é que vale, estás a ouvir?".

Depois o (ìr-rlelmo veio ter corrigo:_- Ó frlho da mãe, sLrc.;ì clilqui para fora e não voltes a

chatear, estás a ouvir? Suczr claqui ar-ìtes que eu te rebenteo f 'oc inho!

Iìetn, corrÌo o Gulanr o dizia aquilo muito zangado eufui-me emborzr para fora do câmpo, mas f iquei chatearcloporque os ol l tros não queljerm saber do Cão-Tinhoso.

QuancJo ia ja a sair do czìlrrpcl, o Telmo correLÌ pararnin e prôs-se a trater-me na cerbeça e a gritar:

- Só , só , só ma is u rn ! Só , só , só ma is um! . . .Agarrei- lhe os braços e cl isse-lhe o qlre ia acontecer

ao Cão-Tinhoso, rnas ele continuava:- Só, só, só tna is rur , só, só, só maís unl . . .f-ive vontade cle bater no Telmo, mâs o Gulan-ro esta-

va ali perto a olhrrr para mirn con'ì os braços cruzaclos r-ropeito e tive nìesn-ìo cle me ir embora.

Quando passei pela vararnda do Ch-rbe, o Senhor Acl-ministraclor e os oÌ-rtros estavarn muito entretidos a jogar àsrÌeca, e o Cão-Tinhoso estava muito quieto, a dormir con'ra cabeça entre as pâtas sem ter percebido o qr-re lhe haviade acontecer-.

2 )

Page 25: Luis Bernardo Honwana

I -u is Bel l rarc lo Honrvana

Na segunda-feira de manhã fui ver o Cão-Tinhosologo que cheguei à E,scola. A Isaura estava ao pé dele edava-1he o lanche dela, partindo o pão aos bocadinhos eespalhando-os perto da boca do Cão-Tinhoso, qure ia co-mendo dev.rgar, porque levavtr muito tempo a fiÌastigar.

Qtrtrndo tocou paÍa entrar, a lsaura despecliu-se dele erreio a correr para a charnada.

Lá dentro, enquanto fazía as contas e o desenho, e1Tìesmo durante o cfitaclo, fui pensando no Cão-Tinhoso âser norto pelo Doutor da Veterinârra, depois de ter esca-pado da bombzì atómica e tuclo, depois de ter corrido unriìclistância monstra para não morrer por caltsa da bombaatórnica. O Doutor da Veterinária se calhar não tinha von-tacle nenhun-ra de rrratar o Cão-Tinhoso, rrÌiìs coÍÌlo é que

ele havía de fazer. coitado. se foi o Senhor Administradorque mandou?

Perguntei zro Quirn conlo é que o Doutor da Veteri-nárra l-raviar de matar o Cão-Tinhoso, e ele disse-me: "IJm

cão matzr-se colrl arntibióticos". Eu perguntei-lhe o que eraisso de antibióticos e ele zangoll-se e disse: "Ó seu burro!"E clepois de se carlar um bocado e continuar a fazet o clese-rrho, r,oltou a falar, rffas já sem estar zangado: "Meu Deus,qrlem é que te rnzrnda ser tão besta? E quetn é que memanda ter tanta çraciência para te aturar. E clue aindar por

cin-rer não sei em cllre língua é qr-re te hei-de falar porque

não percebes nacla de portr-rguês, chiça? ! Um cão mata-secorrÌ Lrma bala de Ponto 22. Sirn, para ti tetn de ser assirn. E,unr:r balar de Pontct 22 e pronto, arre!". Calou-se Íì1as con-t inuou: "Ou coÍn antibiót icos. . . ". E pouco depois: "A não

ser que o Doutor cla Veterinária seja tão burro como tu que

só o posszÌ nlatar con'r LÌma bala cle Ponto 22" .

2 4

Page 26: Luis Bernardo Honwana

N os nr trt:írl os o (ião- J'ir-rl-ro-.o

- Ó lì leninos, isto não é unr bazar" hein-r.. .Era a Senhora Professora"- O que é qr-re o Quirn te estav'a a cfizer? Sim, tu, Gi-

nho, responde!Eu ia a responder mas o Quinr cleu-me um beliscão.- Não queres clizer? Scrá preciso r,rsar ar régua no

teu rabinho?- Não era nada, Serrhortr Professora, era pcrr causa

do Cão-Tinhoso. C) Doutor cla Veterint ir ia vai rr.artá-lo.- Vocês não tên-r telxpcl pÉìrâ tratar desses sigilosos

negócios de estacìo clurante a hora clo ir-rtervalo/- f 'emos, sim, Senhora Professora.- pn1[s tocâ a fazer o clesenho e bicir calaclo.Ficán-ros de bico carlaclo a fazer o clesenho.

Qr-ranclo chegou a hora do intervalo a Isarurlr veio tercorrrigo, rn uito atlita

- O que é que tu e o Qr-rim estâvzÌl1 para ali a dizertE,u já tinha falaclo conr ela Lltrìa vez, mas era como se

fosse a prin'reirà\rez, porque f iquei sem saber o que lhe ha-via cle responcler.

- O que é que tu e o Quinr estavam para al i a falardo Cão-Tinhoso?

_ Nadz ì . . .- Vão matá-Ìo? O Doutor da Veterinzíria vai matá-lo?- Não, isso é nrent i r ' . r do Quim. . .- p11ls, porqlre é qrre esta\/am a Ftt lar nisso?-- l>avapassar t-l terrìpo. E, que o desenho era chato.. "- Vocês não saberr que não devem dizer merìtiras?

(Ela estava a armar enì Senhora Professc-rrâ or-l qualqueroutrâ pessoa já crescid:l).

- O Quin ' r é que d isse ment i ras, lo i o Qtr i rn . . .

2 5

Page 27: Luis Bernardo Honwana

Ltris B.:rtrardr> Flon$'anzr

y'\ Isaura respirou Íundo (ainda a ârrrÌar errr pessoacrescida) e foi a correr pare_ o canto das camas de poeiradas galinhas do Senhor Professor. Antes de chegar Iá, pa-rou e rroltou-se para rnin- coÍn as rnãos a tapat a boca, rnascomo visse cJue eu aínda estava a olhar pa-ra ela voltou-meA S C O S I A S .

C) Cão-'Iinhoso viu-a chegar e pôs-se logo zr abanar orzrlro e a balancear íì cabeça, erntrora não estivesse a anclar.A lsaura ajoelhou-se diante clele, agamou-lhe zr cabeça epôs-se ;r dizer-lhe urÌ1,ì clata cle coisas que não ouvi.

Deprois sentou-se sobre os calcanhares, cruzou os cle-dos no regaço e pôs-se a olhar para as nrãos. Eu estavanlesn-ìo atrás dela quando ela cl isse:

- Não ligues zr isso tudo porqlre é peta do Quim, oDoutor cla Veterir-rairía não te cluer matar nem nadar, isso épeta. Nós air-rdâ \/rìrrlos f'alat cl:ls nossas coisas e eu hei-dedar-te cle comer todos os clias. Também posso ür à tarde de-pois cla lrora do lanche e tÍ'azer-te de comer, a minha tnãenão diz naclzr. Cão-Tinhoso! Não sejas malcriado! O que éque estiìs a qlrerer ver clebaixo clas n.inhas saias? - E, plrxaa saia p^ra tapar os joelho Oh! Desculpa-me, Cão-Ti-nhoso! Estás a ver a barra da rninha saia nova! Desculpa--me, eu devia saber que não és como esses meninos mal-criados c1-re andam por aí. Não tinhas visto ainda a minhasaia nova/ Tbn- mr-ríta roda, queres vs12 - Levantou-se e es-ticou a saia pelos lados. Estava a fazer uma voltinha quandonre viu meslÌìo atrás dela. Ficou de troca aberta a olhar-medepois r.'irou-se para rnirrr com a boca muito fechada e derr.ãos nas ancas'- O que é que você quer daqui?

tringi que est2Ìva a zrpanhar qualquer coisa corn qr-re ti-\/esse estado a brincar e tivesse ido parar ali sem ser de

z l )

Page 28: Luis Bernardo Honwana

Nós tnnt i tnros o Cão-J- inhoscl

propósito, e depois fui-me embora a f ingir que metiâ acoisa ao bolso.

fjrn clizr, o Senhor Duarte clzr Veteri nária veio ter con-nosco quanclo estávanlos no Sá ?ì contar filmes e aneclotzrse d isse-nos:

- Ó rapazes, tenl-ìo uma cois a \)ara vocês. Claro quefornos todos atrás dele até âo r-Ììuro da Veterinária.

- Oiçam, ó rapazes, tenho umer coisa pata yeçgs -

repetiLr - alepois de se sentar ao alto do muro, com a tnai-tâ errl volta.

- É rnesnro Lrnra coisa para a rlalta.Calou-se por um boczrclo e olhou para as nossas caras.

"É uma coisa de rnalta, rrìesmo de malta (agora só olhavapara as unhas com cls olhos cluase fechacÌos por causa clol -u t t ro c lo c igarro) . E co isa c lue cu co l ì - ì i Ì vossa idat le r rãodeixaria de fazer, se r-ne pedissern para fazer. Benl, vocêssalretn, o f)outor mandou-me clar cabo de urn cão, aquele,vocês conhecem-no, aquele que anda aí todo podre que éum nojo, vocês não o conhecem! ' . . . Ora l :em, o Doutormarrdou-me dar cabo dele. Bem, eu iá o devia ter liquida-do há mais tempo, 1nâs cl Doutor só me disse esta manhã.Bem, acontece que eu tenho visitas em casa e é bera estaragora a pegar enì armas e zLtca-z uca atrás de r:m cão, vo-cês compreendem, não é rapazes?. . . Mas elr nerrÌ rle afli-gi porque pensei cá para comigo - que diabo, os rapazesestão sem fazer peva e é para as ocasiões qt-re a gente con-ta corrr os arnigos - e pensei logo erl vocês, porqlÌe já sevê, vocês até devern gostar de lr- anclar Lrns tiritos, hern?Bern, calern-se não digam mais, eu já sabia que vocês sãonralta fixe. Olh efi:' ra-pazes, vocês pegam aí numa corda

2 7

Page 29: Luis Bernardo Honwana

Lr-r is Llern arr lo I Ions'an:r

clualquer, procuram lá o cão e levam-no para o mato semgrzìndes arlaridos e aí ferram-lhe uns tiritos rlos cornos, quetai?'. . . E,stá bem. está bem. calma. deixem-rrre acabar defa lar" . . .

() Quir-r-r bateu-me na boca - Deixa ouvir o SenhorDuarte, cararrrba!

- Olhenl. vocês, eu sei que vocês andam por aí aostiros tìs rolas e âos coelhos, olhem que eu sei.. . Mas dei-xet.r- lai qlÌe eLÌ não levo a mal, malta é malta, isto é assirrrììesnÌo, eu só não quero é clue façarr-r as coisas à minhafrente porqLre l.enho responsabilidacles, vocês sabem. Oravocês jár têm armas e por isso não tenho de vos ernprestarirs Ì)otrtcr 22 daq:ui cltr Repartição, :rliás uma chega, rnas sevocês quiserem fazer tiro ao alvo, eu não tenho nada comisscr... Mas, L)st, setrl f'azer uffì câÉIaçal que se oiça aqui navila?... Prontio> ràp^zes, icle, ide divert ir-vos um peclaço,mas cuidado lá colrl âs armas, lrem? Nacla cle clesatar a fer-rarr t iros nos cornos ul ls dos outros...

A malta pôs-se logo a correr, e o Senhor Duarte tevede se pôr de pé ao alto clo nruro da Veterinária paráì noschrurarr de rrovo. Depois esperou que chegássemos bernao pé clele para nos olhar bem n?ì câra antes de falar comos olhos c)Lrtra vez qlr2ìse fechaclos por caLÌsa clo fumo dociglan'o:

- Oiçarn, rap'àzes, et-l estou a falat entre homens,porrâ ! Isto escllsa de ser propalaclo L)or aí aos quatro ven-tos, estão a ouvir? Eu só quis dzrr utrr prazer à malta por-clue sei clue vocês gostâm de dar uns tiritos de vez emqu'anclo e eu não levo a mal... Sirn, sei quevocês gostârnde dar por aí uns tiritos às rolas e aos coelhos, mesrrÌo semterem licença de uso e porte de arma, tr)ara não falar na li-

2 8

Page 30: Luis Bernardo Honwana

N<is nratr inros o (- , i ìo- I ' iuh<-rs,- r

cença de caça, e vocês sabenr qt-re se sãc-l apanlrados por

mirÌÌ oLÌ por um Íìscal cìe czrça, chutrrarm uns rrleses de pri-

sãcl qLle se Ìixam. Mas deixa lá clue eLÌ rìão levo er nral netr

digo a ninguém c1ue rrocês LÌsarrì - as arrÌlzìs dos vossos

pais ilegalmente. E,r-r só cÌLìero clue não me façarl essas coi-

sas nìeslxo debaixo clo nariz, porcl l Ìe tenho responsahi l i -

dades , r 'ocês sabenr " Eu não le r ro i sso a mal , p ( ) rque

conheço bem rr n-ralta, nrirs isto não é parâ ser espalhaclo

por aí, rrocês não acharn /

De resto isto nerl tinha cle sel dito, porclÌÌe estou a fa-

l a r e n t r e h o n r e n s . . .- F ique descarnsac lo , Senhor Duar te . . .

Foi o (luim.- p1cl11<l, r^L)àzes, ide cl ivert i r-r ,os. l l laìs pouco ala-

r i do . . .O Sá, da varancÌa clzr loja, Íãzia-nos sinais para lhe ir-

n-ìos contar cl que o Senhor Duarte nos t inha dito, rras nósnem olhán-los pârâ 1á. Fornos logo para a escola, e no can-to das canrlls de poeira clas galinl-ras do Senhor Professor láestava o Cão-Tinhoso a dormir. Quando nos viu, Ìer'ântou--se e veio por'.rli fora a cobrejar, todo cansado, com as pâtas

a tremer. Olhou para todos nós com os olhos azuis, senl sâ-ber que nós queríamos rrratá-lo e veio erfcostar-se às mi-nhas perr-ìas. Depois cle estzrr um bocado assirl encostado,c le ixot r escorregdr o t rasei ro e sentou-se. Eu serr t i -o a t re-mer como não sei o quê, encÌLlzìnto os outros combinavanl,e via os rneus sapatos a briÌhar onde ele os lambia.

- Ouve lá, tr-r deixas esse cão todo podre que é umnojo encostar-se a ti? -- O Farruk estava serÌpre zÌ n-Ìeter-secornigo, nlas o CJuim queria combit-rar as coisas e não qrÌe-ria ouvir o que ele dizia:

l ' )

Page 31: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernarclo l ]onrl 'an:r

- Deixa 1á, é preto e basta, cleixa lá... Bem, rrraltzì,o cãtl não sai claqui e a gente vai cada um para a sr-ra câsabuscar as Arlrìas e depois levarno-lo para a r11ata atrás dornatzrclouro e clamos cabo dele, óquêi?

- Corno é que o levarnos? E,u é que não o levo àscostas. . .

- Ó minha bestal - O Quin não gostava daquelaspiaclinha E isso seria demais? - Corrlo é que vocês,os cltraclrúpedes, costlurÌam levar as coisas? - Depois vi-rou-se para rnim:

- T'oucinho, tu trazes aquela corda que tens na tuacasa cfettaixo do canhoeiro.

_ E, querrr é que leva o cão? _ (Eu não queria levaro Cão-Tinhoso).

- A gente depois atíta LlÍÌrâ moeda ao ar e vê querné que o leva.

- Não rne digam que este gajo também atira...- Ó rnalta, vamos fazer o qt're o Senhor Duarte Ìrran-

dou ou não?Fomos todos a correr para ir buscar as armas.

Quando cheguei a casa, a minha rnãe estava sentadanuma esteira Ínesrno à porta. Escondi-me atrás de uma ár-vore para pensar corno é que havia de levar a minha Ponto22 de um tiro sem ela se zar,ga-r, mas ela viu-me logo e cha-moLÌ-me: "Ginho! O que é que estás aíafazer todo escon-dido?" - Qs51i para ela e entrei eÍÌì casa saltando-lhe porcima das pernas. "Eh! Que brincadeira é essa>' - Mas eujâ náo a ouvia. Fui buscar a arrÌa e voltei muito devagar,sem fazer barulho nenhum, até ao corredor. Depois corricom força. - O que é isso? Para oncle é que levas a espin-garda? Anda cá! Olha que eLr faço queixa eìo teu pai!

3 0

Page 32: Luis Bernardo Honwana

Ncis nat i í r -nos o Cão ' f i r - rhoscr

Só parei urr l)ocad() parel lerrar o r<llo de corda debai-xo clc, canhoeiro. Depois r-ìão c-r.vi mais os Lrerros clela.Enquanto corria parà a escola fui pensando que ahnal atéera bom l l latar o Cão-ïnhoso porqrìe anclrrva toclo clreíode Íeridas que era ulr nojo. E zrté era trem feito para ^rsaura que a'dava cheia cle'rarnias p.,r câLÌsa dele. er-ran-do cl-reguei a escola, apaltrrei o bolso cla c^rnisa para sentiras balas a esfregarem-se LÌrrìas nas outras. Bem, esqueci--nre de clizer qLle, quândo fui busca. a espingzrrda, tarr,-bém levei algumas balas. Se as não levasse, colrro é quehavia cle matrrr o Cão-Tinhoso?

Nós éramos 12 quando fornos para a estrada do Ma-tadouro com <l Cão-T'inhoso.

O Quirrr, o Cìulamo, o Zé, o Xangai, o Carl inhos, orssufo e o chico itrm pelo meio cla estradiì conì ars esp>in-gardas apontadas para :r fi:ente. Atrás deles ia o Faruk,que não t inha espingarda, a ârrastaf o Cão-finhoso pelacord,l. O Cão-Tinhoso não clueria zrndar e chiava que sedanava, cclm a boca fechada. Nós, eu e o Telmo de umlado, o Chichorro e o Norotamo cfo ol l tro lado, ía'rostambém armados, meio rneticlcls no czrpirl.^ , corfio o euin.t inha mancl:rdo, a bater c' r-zìto. Eu não entrava muitopelo capirrÌ, porcìLle, qu:.rndo rÌìe apirrecia u'la nricaia pelafre'te, eu contorl lava-a pelo lado da estrada do'-rataclou-ro, por onde o resto da nraÌta ia, e volta e rneía o euim ti-nha cle trle perfjur-ìtar se er-r ia a bater o trratcl ou quê,porque eu só queria era olhar pz.ìra o Cão-ïnhoso, a cl,r iar,que se dan.va e'rais aquele barulho de ossos lá dentro

) l

Page 33: Luis Bernardo Honwana

l-tris Berr-rarrclo I lonr"'zrnrr

dele clue às vezes ollvia quando o Faruk o puxava comforça, e rrÌeslrro lá na escola, no canto das camas de poeiradas galinhas do Senhor Professor, qlrando ele andava.

Quando chegárnos ao matadouro os moleques doCosta vierarn ver a malta a passar:

- Ollde vai jimininu? Leva xipingar, vai no caça?Mas aquele cão num prrêsta!

- Fora daqui, negralhaCa! - Era o Quim.Os rnoleques julgaram qLre o Quim falava na brínca-

deira e não se mexerarla, rnas o Quirrr apontou-lhes a arrnae repetiu:

- Ilora daqui, negralhacla,fora daqui cabroada escura!Desapareceram todos nt-lrn instante, a correr, que ba-

tiam conì os calcanhares no cu, corno àizia o Quim.Avançámos para o mato, rrìas et-r tinha a cetteza de

que eles nos estavafiì a seguir.- Ó pá, vocês ajuclem-me, - era o Faruk - venha

outro t ipo puxar o sacana do cão.. . ,- Ó pá, rnas a gente mandou Lrmâ moeda ao ar e fr,-

caste tì . Ì . ".-- Então mandern cl lrtra vez...- Bc l las, ass im não! Nós t ínhalTìos combinado. . .

Bem, óquêi. O Quim olhou para mim: - T"oucinho,anda tu!

- Ó pá, rlas eLr vou a bater o mato corno tu disseste...- O Faruk frca a bater o mato!- Ó pá, não há o d i re i to . . .- Não há uma ova! Vai tu e não refi Ies! Dá arua

anfra ao Faruk!

) z

Page 34: Luis Bernardo Honwana

Nós tn i r t i i t ros o ( , i ìo-Tin l roscr

Os outros pararam LrnÌ pcluco atrás. Eu sabia disso,Irras não fui capaz cle 1-rarar. C) Cãcl-Tinl-roso zrgora ia àfrente de mim e eu é qr:e andava devagar. E,u via-o de ca-beça esticada L)ara ir frente e cle rzrbo espetado. Andavatcrdo inclinado para a frente, colrr as pernas afazer nrúscu-los com o esforço de fugir da corda que lhe apertava opescoço.

Tínhamos entraclo rluito pelo mato adentro m:rs está-vamos nllrrì sítio onde não havia árvores e só havia capirl.As árvores estâvam à nossa Írente e o Cão-Tinhosc-r queriair para lá. Às vezes ele nem se via no capím a[to, rnas de vezem quando andava tão depressa, qt-Ìe a corda se esticava eentão eu tinha de andar LÌm por-rco mais cìepressa para naì()sentir na n-rão, na cabeça, aqui dentro, no corpo todo, aforça dos ossos dele a chiar, a chiar e a chiar.

- Ei, para oncle é que levirs isso?Parei e o peso veio toclo na corda pzÌra clentro de

mim. Virei-me devagar e vi o Quin-r a nleter um cartuchona Calibre 12 de Dois Canos.

- Ó Chico, o clrÌe é qr-re dizes, SG ou iA? - Agorafalava conl o Chico, com o cartucho rrreio metido nlÌtrrdos canos e com o cledo a erlrplrrrá-lo clevagarinho 1á par-adentro da câmara.

- Ó Quim, pá, põe-lhe o núnrero 4, não sejas beraque colrr isso escangalhas o cão todo, p'á.".

- Quvs 7â, para onde é que Ìevas isso/ - Eu estavaparado, a sentir tudo aquilo do Cão-Tinhoso que vinhzrpela corda est icac ia. O Cão-Tinhoso v i rou-se l )drâ r r r in l eatirou-se para trzís de recuo a chiar por todos os lados. Eusabia qr-re ele fiie estava a olhar cclrlì os olhos arzuis, masnão pude cleixar de olhar LraraÌ aÌ maltâ, que estava a fazer

) )

Page 35: Luis Bernardo Honwana

Luis l]ernarclt-r Honrvana

meia roda, andando devagar e sem fazet barulho, semprea armar e a clesarrrÌar as espingardas. O Quim, em cirna deuma peclra, olhava para rnim colnì o cartucho rÌleio metidonum cÌos canos da Calibre 72. O Faruk ag'àrrava corn for-

ça a minha Ponto 22 de Um Tiro, e jâ lhe t inha metidouma bala expansiva na câmara. Ele era o único que nãoestava selrìpre a mexer na culatra para arrrrar e desarmar aespingarcÌa.

- Ó Quirn, não atires corn SG nem com 3A que issoé cha to . . .

- Não : r t i res, Qui rn, isso é bera. . .- [55111, o gajo quina logo. . .- Ó Quirn, mete-lhe o número 4 ou outro número

quaìquer, o Senhor Duarte disse que nós também podía-rnos ât i r? ì r . . .

- Poça, Quin-r, isso não!O Cão-Tinhoso jâ não fazia força e de repente senti a

corda lassa. Daí a por-rco o Cão-Tinhoso encostava-se àsminhers pernas, todo a trener e a chiar baixinho.

O Quim acabou de meter o cartucho num dos canosda espingarda e endireitolr-a devagar até fechar a cârnara.A arrna ficor-r voltada para mim. Eu não pude olhar maispara lá, rr. as era por causa dos olhos do Quinr, que meolhavam qlrase fechados, a brilhar sem ele estar a chorar.

Eu é que tinha urìra danada vontade de chorar masnão poclia fazer isso corrr arqueles toclos a olhar para mim.

- Quim, a éìente pode não rlatar o cão, eu f ico comele, trato-o clas teridas e escondo-o para não andar maispela vi la conì estas feridas que é tur trojo...

O Quirn olhou para rnim como se nurìca me tivessevislo erl nenhuu lacJo, trras respondeu aos outros:

) 1

Page 36: Luis Bernardo Honwana

Nós n-ratános o Cão-Tinl-roso

- !qç$s qt-Ìe se lixem, elr âtiro colrl o cartucho quequero e pronto !

- {1i12s Lrrn raio é que zrtiras ! Não julgr,res que teÍnosmedo de t i !

O Quim olhou pata o Gulamo e perguntou devagare em voz baixa:

- Ó meLÌ frlho da mãe, queres qr-Ìe eu te rebente ofocinho?

- Rebentâs Lrma ova, tu aqui não armes em nandãoque eu não tenho medo cle t i !

O Gularno tir-rha-se virado para o Quim, corrr arnÌae tudo.

- Ouve 1á, queres ter algurla coisa conigo, monhéde um raio?

O Quim não teve medo da arrmar cle Gularro.- Isso erâ o teu avô, nÌel l la'breguinlro orcl inârtol

Nunca te contararn isso 7á na tua alcleizr? Seu maguerre! . . .- Monhé! tr i lho de tür corno!- Ó C)uirn, não atires conr SG nern 3A que isso é ser

cha to . . .- Não at i res, Quim, isso é bera. . .O Quim tinha clesciclo cla peclrer e avançava pzÌrzr ()

Gr-rlamo.- Ó Quinr, rnete-lhe o nírrrero 4 ou clutro núrnero

qutrlquer, o Senhor Duarte clisse clue ncis tar-nbém poc1ía-mos a t i ra r . . .

- Poça, Quim, isso não!O Cão-Tinl-roso chiava barixinho e r()çava-se peÌas

minhas pernas 11 trel-ìfer. O Faruk aéÌarrava a minhar espin-garda corn fcrçâ e ?ìpontaìva-a par-â nrint corll âs pernasafastadas, rrìas olhava parzr o Cão-Tinhoso, corrl os olhos

) 5

Page 37: Luis Bernardo Honwana

Ltr is l lerr r r r r ' . ìo I Iorrrv: rna

grandes de medo. Os outros todos ficavam tarnbém comos olhos cl-reios de medo quando oÌhavam para os olhosazsis do Cão-Tinhoso.

- Eh, malta, vam<rs acabar com isto que é tarde eestá quase escLÌro. Vocês não desatem aqui âos tiros p^raos cornos ulTÌ do outro... O Qr-rirl pz-Ìrou e virou-se parao Xangai:

-- Cornos tenl cl teu pai, estás a ouvir? Eu não deixoque unr rnonhé abuse sern levar na cara! De mirn ninguémse frca zr r ir. . " E se ladras mais também comes no foci-r-rho... Ttr ou qr-ralquer outro! Vocês todos estão a ouvir?

O Quirn gritava ctlnlo urn doido, rrras o Gularno nãotinha medo dele porque começolÌ a arregaçar as mangasda c;,rt l isa.

Já estava quase escuro e o Cão-Tínhoso tremia contraas minhas perr-ras como não sei quê.

- Eh pá, vamos cleixar isto para o outro dia, - o Fa-ruk olhava para o brilho do cano da Ponto 22 de IJm ïro- vâmos deixar isto para amanhã or-r olrtro dia.. .

Ele tarlvez ficasse por aqui, l:rìas cc>rfro o Quirl deixas-se de berrar parâ ouvir o qt-re ele clizia, continuou:

- É que iá está quase escuro e podíamos ferir al-guérl serrr cluerer, no escl-rro, com tantas espingardas...

O Quim gritou logo:- Ó meus filhos da mãe, vocês estão cotn medo?Só er,r é clue respondi:- Eu estot-Ì corrr rnedcr - cLrstou-me dízet aquilo

porqLle mais ningtrém estava com meclo, rnas foi melhorass im - Eu estou con nrec lo, Qtr im. . .

Apesar cle já estar quase escuro eu via os mells sapa-tos â bri lhar nos sít ios oncle o Cão-Tinhoso os lambia.

) 6

Page 38: Luis Bernardo Honwana

Nc;s l l ìe1 t i ì r ì l c ls o ( . i to - l inhos t r

Mesmo corn o capim e tudo. O Qr-rim e a outra maltariam-se corn forçâ e o Gulamo rebolava no capim cle tan-to se rir por et-r ter tr. edo.

- ps12 é l:orte, rnalta - dizi^ o Qr-rim. conl â bocatoda atrerta e os olhos a chorar de ttrnto rir"

- ps12 é qr,re foi - chzia o GuÌamo qr-re neur se viapor estar a reÌ:olar no capin. Os outros r ianl-se mr-ri to,também.

Parece que eu tive rnuita vergollha por ter díto aqr-ri-lo. Voltei a sentir um peso nronstro dentro de minr e nc>pescoço. Eu não nre nrex iâ pard os outrcrs l rão se r i re t r rmais de mim, mas as pernrìs trerl ian'Ì- l-ne l)or causar doCão-Tinhosc), a tremer er-rcostado a elas.

- ps12 é forte! - O Quim Lrerrirva c)utra \/ez"- ps1i1 é forte! O Gulamo dtzizr isto enquanto rebo-

lava no capim de tanto se rir de mim. - [5gs é forte...Os outros, às vezes calavau-se, e só o Quim é que se

ria sempre, sempre e cacla vez cclnr mlris fcrrça. C)s outrosouviam-no quando se calavam e volt,rvanl a rir-se com for-

ça corno ele. E, r iam-se, r iam-se, r iam-se enqrrirnto o pesono meu pescclçcl e cá clentro âurnerÌtava curcler rrcz mais. Pzr-rece que nlrnca nrais acab2rvâl-ìr de se rir, e eu ct.rlll aquilosó tinha vontade de chorar ou de fugir c()m o Cão-ifinl-ro-so, lTÌas tarlbém tinha meclo de voltar: ar sentir a corder atremer de tão esticada, corÌl o chiar c,los ossos a querer fu-gir da minha rlão, e com os latidos clue saríam a chizrr, afcr-gados na boca fechzrcla corno ainda l-rá bocaclo. Sirl, eunulrca maís qtreriar voltal a sentir isso.

O Quir-n estava de novo em cirna cla pedra mas atncler

se ria de rrez erx qLráìnclo e dizia esta é forte, estar é fcrrte .

) 7

Page 39: Luis Bernardo Honwana

I-r-ris Bernardo Ijonu,ana

O Gularno estava ajoelhado, sentado sobre os calcâ-nhares e corn a camisa limpava a cara das lágrimas que sal-târalTr dos olhos de tanto se rir de mim por eu ter medo etanrbém dizía esta é forte, esta é forte.

Os outros já não se rizrm mas de vez em quando con-corclavam ctlrn o Quim e conr o Gularrro nisso de esta éforte, esta é forte.

.]á estava quase escl-Ìro e o Quirn, do alto da peclra,disse para a malta:

- Eh, malta, agora é que vai ser: Eh! Toucinho, desa-ta a corda!

Mas eu não era càpàz de rne Ínexer, todo envergonha-do e com o pescoço a doer corno não sei o quê.

_- Eh, malta, vocês nLrnca me viram aì rrlâtaf rìm pre-162 _- O Quir-n aproximou-se cle mirn: "Eh, Toucínho,desa t r r aco rda ! "

O Gularlo aproxilrrou-se também. "Eh, Toucir-rho,clesatar a crtrcla!"

O r-ró estava feito de tal maneira qr-re clrstâva a desataqe eu não t inha força nenhuma nos dedos. Tinha vontadede choral ou fugir corn o cão e tuclcl.

-- Anda Ìír, senão rebentarnos contigo, preto de umraio !

- Al-ìda lá con-r isso, carambzì, - aÉìora era o Faruk- a l ld ' r Iz i cor l isso, preto de um raío! . . .

No pescoço, as feridas do Cão-Tinhoso iânão t inharncrostzr pclr causa dar corclaÌ, mars só saía delas urrra aguadi-lha vermelha qr-re rrre rr-rolhava as rnãos.

- Al lda lá, nãc-r tentes ser besta, Toucinho!

Quando acabei cle desapertar o nó, agarrei a cordacom força parâ ela não cair e continuci a rnexer no pesco-

ço do cão, mesnìo colr-ì os olhos fechados.

l 8

Page 40: Luis Bernardo Honwana

Ncís n ' ratárnos o Cio- ' l ' in [ rosc-r

- Eu tenho lnedc>, clesculpa-me Cão-Tinhoso - eudisse aquilo tão baixinl-ro que só o Cão-Tinhoso me podiaouvir - eu tenho rnedo, Cão-Tinhoso. - Eu vou pedir

isso ao Quim e à rnalta. e eles cleixam cclnr certezà, e eLtlevo-te e trato-te e depois vaís outra vez dormir pâr.ì as ca-mas de poeira das galinhas clo Senhor Profèssor. Ifu voupedir ao Quim e à malta e eles cleixarm. Mas, não nre olhescorno se eu t ivesse culpa, Cão-Tir-rhoso! Desculpa, mas eLltenho medo dos teus o lhos. . .

Abri os olhos e o Cão-Tinl-rosc'r estava conr cls olhosem cima de rlirn, corÌìo se não tivesse percebido o qr-re elrt inha pedido. Tive de desviarÍ ̂ càr'ã clepressa e pclr isso aco rda ca iu - rne das n ràos . . .

- Ei, o qLre é ciue estás parâ trí a dizer? O c1uê, iti trca-baste?'

- Quir lr, a gel-ìte pode nãcl matal o cão, etr f ico cotlele, trato-lhe as feridas e escondo-c-l parzì não anciirr t-naispela vi la com estas feridas qrre é um nojo ! . . .

O Quim não queria saber do que eu estava a,Jizer e,por isso, aÉlarrolr-rxe pela gola cla car-nisa e perÉlulÌt()Lr-meo qrre é qtre eLÌ estava para ali a dizer.

O Cão-Tinhoso trerlía, circlir vez mais enfiaclo nas rni-nhas pernas corì-ì o rabo a clirr e ar clar e et.r ernptrrrei c-r

Quim parar voltar â àgarrar er corda no pescoço clo cãopari.ì os outros rrão vcrenr.

- O que é que estás a cl izer? - Era o Gulamo.O Cão-lfinhoso olhava me c<lrr-r forçzr. C)s seus olhos

azuis não tirrhan-r brilho nenhunr, rnas erzìr-Ìl enclrtr-tes e es-tâvam cheíos de lágrímas qlÌe the escorriam pelo focinho.Metiam meclo aqueles olhos, assim tão grandes, a oll-rzrrcolrìo ulrÌa pessozr a pedir clualquer coisa sen-ì cluerer clizer.

) L )

Page 41: Luis Bernardo Honwana

l - l r rs l lern;r r r lo I Ìonrvarta

Quando eu olhava agcra para clentro deles, sentia urn pesolrrtlito maior do que quando tinha a corda a tremer de tãoesticadar, corrÌ os ossos a qlrerer fugir da minha mão e conos l'atidos que sâíaln a chiar, afogados na boca fechada.

E,u t inha Llma danacla vontade cle chorar mas não po-dia fazet'isso com a n:alta toda a olhar para mim.

O meu braço estavâ todo molhado pelo sangue dasfer idas do pescoço do Cão-Tinhoso, rnas t inha de meabaixar Lrnr pouco mais, só urais rÌm bocâdinho, l)ara apa-nhar ar corder.

O Faruk falava rnuito baixinho e depressa. Devia es-tar outra vez a olhar para o brilho do cano da espingarda:

- Vallros deixzrr isto para or-rtro dia, pâ... Damoscabo do cão arlanhã cru or-rtro dia... Carlou-se mas conti-nLrou logo:

- Ê que já estiÌ quase escr-rr<l e podíamos ferir al-guénr sem qlrerer, r lo escl-rro com tantas espingarclas...

- Qr-r im, eu não qLÌero dar o primeiro t iro... (Eles

queriam qlre eu clesse o çrrirneiro tiro).- Ancla lai, ar-rda 1á, não tenhas rnedo...- $sbss, Quim, é que eu não qtÌero matar o Cão-Ti-

nlroso". " O meu pai é càparz de me bater qurlndo souber...c r t r r ì o que ro , r r ão . . .

- $11111çvs, pá. I:u disse-te qr-re só davas o primeirot i rur , c e só isso o c1 l re va is fazer .

- E cpre, sabes, pá. . . O r reu pai lá er r r câsa. . . Ì lu\/ou-me errrbora, ele está à minha espera... Se chego tarde,e le bar te-me. . . l la te-me, Quim, c la oÌ Ì t ra vez bateu- [ ìe . . .

- Vamos, valflos, deixa-te clessas coisas, não sejas me-clrosc'r.. . Iá r ' i ram isto. nrzrlta. tun dc' nós a borrar-se todo

. 1 0

Page 42: Luis Bernardo Honwana

N(is l ì r r Ì t i Ìnros <l ( ,âcr- l - inhostr

por causa do cão... E que eu não sei porque é que este t ipoanda connosco se não é macho de verdade... . lâ viram/

__ Eu não me estou a borrar toclo, Quim, eu se nãoquero dar o prirneiro t iro... E que er-l sou Llm bocâdo ami-go do cào e e c l ra to se r eu e r i a r ' o p r i n re i ro t i r o . . .

- Isso são desculpas, isso são desculpas... Tu não ésé rnacho, cclnfo a gente... Mirr icars! Não tens vcrgonha?Dá,1á o t i ro , ^ r 'd .^ . . .

- Merd.à para ti, caran.]1a! - Era g Gularnç -- Pre -

to de merda!- Dispara, pâ, não sejas meclrosc-r.. . Até L)ârece que é

a primeira vez que aÉIarra nlu:rìa ânrìa. . .- Q t r i n r , eu não que ro . l a r o 1 - r l i r r r c i ro t i r o . . .- Se continuas assirn aÌ gente clepois conta 7á na esco-

la que tu tiveste r-nedo de n-ìatar o cã<>, que con)eçaste confcagtrfas. . . A gentc vaí dizer qrre te borraste toclo.. . A gen-te vai contar isso, palervra clue vai contar...

- Quim, eì.Ì não tetrl-ro cagrrfzr rìem naìda, não tenhotnedo . le rnatar o cão. . . E só l )orque o r r ìeu l - ra i cstá à es l re-ra lá enr casa. . .

- Se elTr vez cle estares aí 'a falar t ivesses daclo o t iro,ja estaríamos despachaclos. Ancla lá, não sejas nreclroso!

- |vl[scl1oso, tne-dfo-so ! me-clro-so !- Eu não sou rneclroso! .Jrí cl isse, não sou rleclrosoJ- É r . és . és . . . A t i r a se não és ! A t i ra !- {1i16, sirn, e clepois? Eu nranclo já t l l t i ro no sâcâ-

na c l o cão . . .- 1556v é que é f-arlar!".. O Quim abraçou-n-re.Eu tinha a arrna áìpontadel ìrlas cl Cão-Tirrhosci farta-

va-se de clançar no polrto de mirzr. C) Quim não saía dometr lado:

.+ l

Page 43: Luis Bernardo Honwana

I - r r is I lernzrrc lo l Ì onur: rnur

- Não atires à rrratar> estás a ouvir? Mas se quiseres,podes tÌt írar... Sabes, é só porque tu estâvas todo cheio decagufa e era preciso rnostrar à rlalta qlre não és rnaricas. Épor isso que tu és o gajo que vai dar o primeiro t iro... Euse fosse a ti atiravà a Ínatar e despachava o gajo logo...Não há azar nertlturn nisso, foi o Senhor Duarte que rnan-dou... E assim poupavas o trabalho à rnaltu. É q.-r" urn tipochega para mâtar o cão, e escusávamos de encher o gajo dechumbo, que isso é ser rrraldoso e se o Padreca souber dis-so é capaz de andar para aí a dizer que nós soÍnos ordiná-rios. Sabes, Ginho... Eu acho qLre o Doutor da Veteriná,riadeviar ter liquidado o sâcana do cão corn LlÍrìa droga qual-quer... Eu l i numa revista que na América os cães matan-r--se corn drogas... Sirr, Iâ na América, quando um Doutorda Vetertnária quer matar urr cão que anda lá nas rr-rascl-reio cie fericlas que é urn nojo, dá-lhe urna droga qual-qt- ler.. . Só para rnostrar ao Doutor qt- le ele não percebenacla disto a malta devia não rnatar o cão... Não era por

medo nem por nada, mas erâ para o gajo ver... Ginho, nãoacl'ras cirre clevia ser assim? Não, não achas? Hem?

- Ó Quirn, pá, não podes conversar mais tarde con-resse t ipo? - Era o Gularrro.

- Sabes, pá. . . Eu estava a d izer aqui ao Ginho uma

coisa bestiarl L . . Não era, Ginho? É Llma coisa que a rnalta

devia fazer, não era Ginho?- psl i bem, está bem, contas isso depois, agora vai

pârâ o teu lugerr e deixa o tipo dzrr o prirneiro tiro para amalta zrt irar também... Ou será que o gajo voltou a fr.car

com rnedo de atirar?- Eu não estou corl medo, já dissel - Eu virei-me

para o Gularlo - ELÌ atiro já...

1 2

Page 44: Luis Bernardo Honwana

Ncis nrar t . inros o Clãc, Tinhoscr

- [51[ bem, está bem, eLÌ só qlreria saber... Vamos,

Quirn, vaí parâ o ter-Ì lugar... Ou tarlbém estás cctlr rlredcl?O Quirrr riu-se coÍÌro se arcluilo fosse rÌma piada e foi

com a arma dele para cinla da pedra. Quando lr i chegou,gritou paÍa mim:

- Pn1[cl, atiras oll nãcl?A rlinha Ponto 22 de um Tiro (a clue estava colr-ì o

Faruk) estava conl ulr-ì lreso clanaclc',, e pclr isso o Cão-T'i-nhoso Íartava-se de dançar no polrto de míra. Só os olhosdele é que não se mexiam nacla e olhavam sempre parrÌmim. Comecei a f)uxar o gatilho muito clevagar.

"Desculpa-me, Cão-Tinh()so, lr las não vou atirar an]ratLrf" ...

Eu clisse acluilo n-ruito baixinl-ro, e só o Cão-Tinhoso éque ouvia. Eu só havia cle darr o prín-reiro tiro porque amalta queria clue fosse eu, mas r-rão havia cle mzrtar o Cão--Tinhoso!

"É clue eu tenho tnedo, eu tenho medo, Cão-Tinho-so, rrìas eu vor-Ì atirar para a rnalta não clizer que eLÌ tenhocagufa".

Depois vi que aÊ.nal não estavaì 1Ì pLr-\zÌl'o gatilho, por-que tinha o cleclo no guarda-n-ìato. Comecei â plrxar o gati-lho devagar para ter tempo cle clizer tuclo ao Cão-Tinhoso:

"Eu não tenho outro reméclio. Clão-Tinhoscl. et'r tenhode atirar... Eu estou cheio de n eclo, desculpa, Cão-Tinho-so... Deixâ-me atirar e não rle olhes desser rnaneirzr.. . E,uestor ì é corr r medo, estás a ouv i r?. . . Estou con medo! . . .Se pudesse, fugía e levava-te corrigo. E depois tratava-tee nunca mais aparecias pela vila corrl essas feridas qr,re éum no jo , mas o Qu im. . .

+ )

Page 45: Luis Bernardo Honwana

Lu i s Berrr rr rclo Ì-Ì onr.r'zrr-ra

A folga clo gatilho acabou cle repente e o peso damola eriì tal, que cr Cão-Tinhoso dançava a.i:nda mais sob opolrto de mira da minha ârrrìa. Tive de fechar os olhos eera por c2Ìusa dos olhos do Cão-Tinhoso, qr-re estavam pa-rados e olharram parzl rnim muito quietos, mesrno quandoele dançava no ponto de mira.

- VamoS, pá, atíÍa lá que nós estanos à espera de t i ;mostra que és teso e que podes contínuar conì a n:ralta! "..

A moia ia cedendo aos pot'rcos e cada vez estava maispesacìa. A tensão iria aurnentar âté o cão saltar e perfurara bala. Então não haveria mzris resistência e o gatilho viriaaté ero fitn, com o estoiro do cartucho na cãrnara e o Ìigei-ro coice da coror-rha. Tinha de falar mais depressa pãre-acarbar cle clizer tudo antes do estoiro, e não podia art>rir osolhos senão velia os olhos do Cão-Tinhoso e não seria ca-paz cle atirar.

"1-\ão vais sofrer nada, porqlìe o (]uim meteu na Ca-l ibre 12 rnais Lun cârtucho SG, e cls outros também vão:rt irar i ìo nlesm() tenìpo. Não te rrai cloer, tu ainda cstás apenszìr er-n qualquer coisa e já estás morto e não sentesmais ntrclrr, nell-r rrs feridas a doer pclr causa da corclâ nemnad i ì . . . "

- p6112, atiras ol l não, L)reto cle mercla?"TLr rnorres e varis parzr o Céu, direit inho ao Céu...

Vais gozar lá r-ro Céu... À,Ias antes clisso eu hei-de enterrâro ter-Ì corpo e hei-cle pôr umal cruz branca... E tu vais para olirnbo... Sinr, ântes de ires pâra o Céu, vais para o limbo,colrfo trura criança pequena... L,stás a ouvir, Cão-Tinhoso?"

4 1

Page 46: Luis Bernardo Honwana

N ós r l r r t i inros o ( lão- ' I ' inhos<-,

A Senhotzr Professorâ perg+ifit{ru se o:s x-rtr$süs pais não

nos davâm educação lá enl casÉË e r-iós nr-rÍÌaâ rÌlâis faÌárnos

sobre o Cão-Tinhoso, rÌìesnìo quelrldo estávanros no Sár"

Logo depois do estoiro ouvi unr grito lìlonstro e naclar

nais. O tneu tiro devia ter rr-lasoardo nruito o Clão-Tinhoso

para ele gritarr co1Ììo urr-tÍì pessoa. Iriclr-rci sem sarber o que

harr ia de fazer porque logo depois, o Cão-Tinhoso corrÌe-

çou 2r g ,e rner - corT ìo r i l r ra c r ia r rça .

Fui afzrstzr,nc-lo as mãos dar cat'a e tlepois ill>ri c-rs ,rll-ros.

A Iszrura estava agarrada ao Cão- finhoso e era ela cluem es-

tava ^ Élerrrer-, mas não sei se não terirr sido mesrlo o Cão-lii-

nhoso quem gritara aincla hai bocado. A rnzrlta estaÌva toclir

de boca aberta a olhar par'áì âquiÌo e só se ouvia zr Isar-trer a

gemer muito alto e a oll'rarr parar toclcls os laclos colll ()s oll'ros

toclos saídos e muito agarrada ao Cão--finhoso.

O Quin-r fcri o prir-neirc-r a Íalar':- C) que é qlre esta tipa vei<-r peìr'aì acltti tazer?

O GuÌarno também tinha ^ voz roucâ:- Se cir lhar forar-n os pretos do Costzr que Ìhe disse-

r a m . . .

C)s n-roleqlìes clo Costzr estaviÌrlr 1-ror detrás da rnalta,

clisfarçaclos no escl-lrc-r clos troncos das árrzores, e ctll lì iìs

nãos cruzaclas sotrre o peito e os olhos todos srr ídos. " I-o-

dcrs eles ian-r c l izenalo - "Hi!" c o 'FIê!",

À ol l -rar t r)ara a

malta. O capataz dos moleqtres clo Costa escondeu-se ain-

da r lais no tronco cle uma r l icaia e falou ccl l r os braços a

voar para todos os laclos:- A nós não terrr cLrl'pa! Elc que veio prlrguntar', e

gente veio corl ele para ver jirnininu cunr cão ! A nós não

t e m c u r p a , s ó v e i o v e r n a t a r - c ã o l N ã o t e m c u r p a ! . . .

1 5

Page 47: Luis Bernardo Honwana

Ltris llernarcìo l-lonrvanzr

- Ah, negros cabrões! - O Quim âpontou-lhes aCalibre 12 de Dois Canos.

- Nu1Ìl nÌata nós, nurn t ira, pâtrão. . . Hi ! - e clesa-

i)errecerarrl toc]os ccllll rÌnr cergaçal meclonho pelzrs micaias,a g r i t a r "H i ! " e "H i ! "

O Quirn virou-se para a fsaura, que estava meio es-conclic{zr no capim e colr-r os olhos todos de fora, a olhar

l)ara zì nrailtar e a éIerner.:* Ó t ipínha. não te disseram que nós não queremos

fêmea a esta hora? O que é que vieste p^ta aqui fazer?Não cluerctÌlos gajas a atraprìlhar o que nos manclararl fa-zer, ourriste?

A Isarura r-rão dizia nada e só gemia para a ntalta.Ficou tr-rdo calado por u1r-r instante e a rnalta a olhar

Lrns L)arrr cls ot-rtrcls, serfi saber o cILÌe f azer.- Eh, rna l ta , temos de matar o cão. . . Fo i o Senhor

Duarte quem marrdou... Ele disse que contava connos-co... - O Quirl já não estava rouco. - [512s1os aqui acìemorar isto não sei çrorquê...

- Quem é que está com cagaço? Quem é que se bor-ra nas ca lças?. . .

_EU não ! . . .-Eunão ! . . .

-Eunão ! . . .

Toda a rnalta disse eu não e ficaram a olhar para tnima ver o que eu d iz ia .

- ELI não estou com câgaço, Quim.. . Eu não rre vouLrorrar nas calças, Quit l- Eu estava a trerner todoquando disse acpri lo, mas gâranto que não estava cornmedo nenr nada. Então â E{ente não t inha vindo para ma-

4 6

Page 48: Luis Bernardo Honwana

Níis rn:rt : inros o Cão-Tinhoso

tar o cão que andava todo podre qr-Ìe era Lìm nojo? Foi c-rsenhor Duzrrte que disse, e porque é que não havíantos declar uns tiritos? Eu estarza era coltl pella cle o matar depoisde ele correr urrra clistância nìol-ìstriì para não nrorrer pclr

causa da bomba atómica e mais nada.- Girlho, tira 'a gaja cle cin-ra dcr cão!O Quim falava sem olhar pariì mim.O Faruk veio buscar a Por-rto ?2 cle Llm ïro, quc nre

tinl 'ra caído das nrãos quanclo c{isprrrei, e voltou para o l tr-gar dele.

- [11[e, Ginho, estás conl cuÌgâço oLr quê?- Não, Qtr i t l , não esto l l conl câgaço, nem nacla. . .

Es tou só a pensa r . . .- Pensâs depois. Agora vai t irar a gaja do cão. -

O Quim falava sem olhar pzlra nrin, só a malta é clue nàc-rtirava os olhos de cin.a de rnim, parra ver se eu tinha caga-

ço ou não.- And2r lá deprressa, clue já estzí escuro... O senhor

Duarte disse para despachanllos o cão nuÍn instatnte...A Isaura gemia e olhava parâ a maÌta com os olhos to-

dos de fora. Fui arndando prara oncle a Isaura e o Cão-Ti-nhoso estavam, e ela, quarndo me via a ir pzrra laí, gerrriacadavez mais alto.

- {ssqp2, sa i c la í . . .- ï ra a gaja, não vês que e lar não quer sa i r?. . .- Isaura... A gente qLler fazet o clue nos rrrandaraln

Íaze r . . . Sa i da í . . .- Mas que burro qr- re e le é1. . . Arr :anca a t ípa, não

ouves?Agarrei-a por debaixo dos braços e ela sactrcl iu-se

toda para qlÌe eu a deixasse.Ftz nrais força rlas elzr dobra-

1 7

Page 49: Luis Bernardo Honwana

Lurs Bcr-narclo Ì {onrvarra

va eìs pernâs e não ficava de pé. Mas já não lutava corrÌo noprincípio e só gritava colrÌo se eLl lhe estivesse a bater"

- Isaura, não vês que foi o senhor Duarte qlre Ínan-dou? - O Xangai também queria explicar aqr-rilo à Isaura.

Puxei-a devagarinho e ela largou o pescoço do Cão-Tiuhoso, clue ficou a olhar para eÌa e a ganir corn a bocafechada cclr'ìrcl ainda há pouco.

- I sau ra . . .( ) Quim estava em c ima da pedra e toda a mal ta

trpot'rterva as espingerrdars parâ o cão.- Isalrrà... - Eu queria dizer-lhe qualquer coiszr

r-nas não szrbia o quê.- ÌJmmmr-ì1. O Quim colneçou a contar.Tcrclos harriam de atirar âo nlesmo tenìpo e por isso as

balas não haviam cle ser muito custosas para o Cão-Ti-nhoso. Elc estava aincla a pensar err. qualquer coisa e já es-tava l'ì-ìc)rto.

- Isaura... O Cão-Tinhoso deve jâ ter visto qr-re osoutros cães não querem brincar com ele... Ninguém gos-ta clele... Eu nlrnca vi ninguém a passar-lhe a mão pelascostas confo se faz corrf os outfos cães. . .

- Dooooooii i is.. . (O Quim levou rÌm tempo enorÍneer dizer dois).

"Ele deve saber que é rnelhor rnorrer do qr-re atÌÌraraquilo tudo, os miúclos da primeira classe a atiÍar-lhe pe-clras e a fazer rodinhas par:à lhe cham at Cão-Tinhoso, aSenhora Professora a dizer-lhe suca e o Senhor Adminis-trador er mar-rdar o Doutor da Veterinária rnatá-lo por eleter fericlas por car'rsa da bomb a atórnica. . ."

- L i i i . . "

4 8

Page 50: Luis Bernardo Honwana

Nos nratr imos o L, : ìo- ' l ' i r - rhoso

A Isaura gemia e estava toda lÌlole, a não querer áÌlldar ecom os olhos todos saícJos a oÌhar o Cão-Jìnhoso. Eu tarl-bém tinhuÌ f)ena de ver o Cão-Tinhosc-r a lTìorrer, mas nãc-radiantava nada levá-lo parar casa e tratar-lhe as fericlas e fazerurrra casirha para ele clorniq porque ele er^ c^L)az de não

€ïostíìr cüssc-r. I}-r serbia que ele já sabia de muitars coisas parasó querer cl que clualquer cão pocliar ter. O Cão-Ïnhoso de-via estar à esperar de clualquer coisa cliferente do que cls oLr-tros cães ccrstLÌrlfalr tel, serxpre cc)r'Ìl os oll'ros 'azttis a olllarr,tnas tão grerndes qr.re paìrecia tula pessoa a peclir quaìqurercoisa senì qlrerer clizer. Il lr- esrlo quando olhava pâra os ou-tros cães, pâra as árvores, pàrd os cíìrros a prÌssâr> páìra as Ela-linhas do Senhor Professor a debicar l-ìo chão por entre aspatas dele, pzrra os miúdos da primeír'a classe a jogar berlin-des ou olÌtra coisa qualcluer-, paÌra cl Seuh<'rr Acltr- inistrzrclot: epara os ot-rtrcls a jogar à sueca na r''aranda clo Clr-rbe Lìcls sába-dos à tarcle, par?r cr Quirn zÌ colltar coisas na loja do Sá, parzra Isaura a dar-lhe o lert-rche e a falar com ele, selrpre quando

olhava, estava a pedir querlqtrer coisar clLle eu não entencliarmas cÌLre não der.ía ser só parer lhe tr,Ìtarem as feridets, paralhe darem de comer oLr para lhe fazerenr LÌnrzÌ casinha.

- rnÊsrFicou ttrclo parurdo e até a lsaurlr czrlou-se e f icou

dura.- Atirem, porrer!- Isâura. . . - Eu quer ia c l izer- te quaiquer co isa,

queria clizer-te tuclo o qr-re estava a pensar.- Poça, ninguém atira?- flsm) A Isaura olhava pareÌ mim conr aque-

les olhos todos"

ll c)

Page 51: Luis Bernardo Honwana

Ì -u is Bernir rcìo I Ionu' iu-r i r

- A gente não pode dar nada ao Cão-Tin l - roso. . .A gente não sabe o que ele quer. Palavra clue a gente nãosabe . . .

A Isaura ficou a olhar L)ara mim sern ter compreendi-clo, porque eu falei muito depressa.

- Eu vclrÌ corltar. olrtfa vez até três, mas ai do gajoque não atirart . . .

_ I sau ra r . . .- Um. . . Do i . . . z í . . .

' I r ês ! . . .

Logo ao primeiro tiro a Isaura agarrou-se-me de talmaneira que caímos, e eu fiquei corn tanto medo que thegritei: "Tapa-me os ouvidos!" Ela meteu-se toda no rrìeupeito e procurou-me as orelhas colrr as rnãos. Os tiros re-bentavarn por toclos os lados e lrÌesmo com os olhos fecha-dos eu via fogo a saltar dos canos das espingardas. O corpocla Isaura estava duro e estremecia a cada estoiro.

Os tiros retrentavaln sem parar, mas quando a Calibre72 de Dois Canos do Quim disparava, o chão tremia e asárvores faziant "IÃaat . .." atê ao longe. O cão já devia estarmorto mas eles continuafatrr a atirar. Sentia o ar querìtecomo o corpo da Isaura e tinha a boca cheia de pólvora, eisso dava-me uma danada vontade de tossir, mas não con-seguia fazer isso porque estava cheio de medo do assobiardas balas que passavam por cima de nós; é que esse asso-biar só acaltava noutro estoiro, que também não tinha ecoporque mesnro antes de a bala acabar de assobiar o matorebentava cofiì olrtro estoiro.

Os tiros acabaram de repente e a Isaura ficou comomorta, por címa cle rr-im, mas muito tlja. Quando ía a sa-cudi-la, vi por entre o capim o Quim a meter urn cârtuchorra câmara e a fechá-Ia. O nÌato todo estava ainda cheio do

5 0

Page 52: Luis Bernardo Honwana

Ncis n-ratárnos o ( lão-Tinhoscr

barulho dos t iros a afãstar-se de nós, qlrando do buracoescuro clo cano da CaÌib re 12 brilhou um fo€Ìo rápido equase b ranc t> e ao r r ì cs l ì ì ( ) t e l ì ì l ) o sc ouv iu o es lo i ro .A Isaura deu um berro com toda a força e voltc-ru a enfrar--se pelo met-Ì corpo. I)epois, ao lrlesn-ìo terrpo cìue o estoi-ro ia rebentanclo preÌo mato fola, cada vez rlais longe,cluviam-se outra vez os gerniclos da Isaura. Eu sentia a bar-riga clela muito quente e suada, tocJa colacla à rrrinha.

- Chega, ntalta, \/zlmos errbora - O Qr-rim estavamais rouco do que ainda há bocaJo. A rrossa voÌta o ca-pirn fazia " fff -fff" quando eles andavam.

- Ó pá, quando mandei o SG, o t ipo comeÌÌ enlcl-reio no peito... Eu vi-o levantar-se tocio do chão e a el l-terrar-se todo no capin... Ainda ressaltou conro se fossede borracha, vocês não viram?

- Eu acertei- lhe 1lo olho esquerdo quando o t içroainda estava de pé. O focinho até lhe ficou todo para cllado com a força c la bala. . .

.E depois meti dois 3As e mzrnclei-os quase aomesmo ternpo par2r os cornos c1o gajo. O tipo c-leve ter fi-caclo com a cabeça toda rebentada...

- Ó pâ, tu com o SG mataste-o logo. . . A gente at i -ÍoÌÌ parâ um alvo já morto...

-E depois? O que é qr- re tens conì isso?. . . Eu at i rocom o que bern nle apetece...

A Isaura gemia para mim e chorava baixinho, senl lhesaírem lágrimas dos olhos. O cabelo delar estava cheio clecapim mas só cheirava à pólvora quancJo se me rrÌetia peÌonariz adentro.

_ I sau ra . . .A barriga dela ficou dura, toda colada à r'ninha.

5 i

Page 53: Luis Bernardo Honwana

Lrr ts l lc lnarc lo I lonrvern:r

_ vanlos eÍl lb()ra...As unhas dela furavaffì-me o pescoço, mâs el'r flostava

e n?io trre rnexia.- Isaura. . .A cara clela esta\za querìte como a barriga.- ELÌ só gostava de saber o que é que aqueles dois es-

tão para ali a fazer escondidos no capirrì há uma data de

telTÌpc-). " "-- Foi o Quim.A Isaura levantou-se logo e pôs-se a cornpor o vesti-

do,, toda cnvergonhada. Depois olhor-r pàra mim e fugiupara as árvores. Durante algurrr tempo ainda ouvirrros o

barulho do vestido dela a rasgar-se pelas nricaias, mas de-pois ficotr tudo em silêncio.

-_ Va tnos embora ! . . .

O Quim veio ter comigo no intervalo clo lanche. Eu

vi que era ele rnesrrlo sem deixar de olhar pavà os cães

a brincar do outro laclo da estrada.- G inho . . .- Diz.- d51s é urr ra chat ice. . .-É

Sentou-se nas escadas ao pé de rnim e ficou também

a o lhar para os càes.- Eles não queriam brincar coÍÌr o Cão-Tinhoso -

apontiÌva pariì sle5 - eles não queriam brincar cotrr o

Cão-T inhoso ! . . .Falar"r cor'.^ muita força e espalhava os braços para to-

dos os lados. - p6s1s tr.r qLÌe nle contaste isso, não foste?. . .

5 2

Page 54: Luis Bernardo Honwana

Nós rnatánros o Llào- ' I ' tnÌ roscr

Os sapatos da Senhora Prof-essc'rra faziant "cóc, cóc,cí1c", atrás de nós, mas colrìo eLr estavzì a collvefsar com o

Quim e a olhar para outra coiszr, não precisava de n-re le-vantâr.

- Sabes?. . . A fsaura fcr i d izer ao pzr i que nós. " "- O quê?- Ela pediu i ro par i para nos batc- r . . .- f f , 211s r ) . . . Po rquê?- Porque nós matán- ìos o Cão-Tinhoso! . . "E ria-se com força, todo torcido. -- Não é tramada?

E esta, heinr ?. . . Bater-nos porque nós matár-nos o Cão-Ti-nhoso ! . . .

Depois calou-se. Aí falor-r zr Senl-rorir Professora:- Meninos> para a auÌa!- Ginhcl . . . Tu passas-n le a prova? - O Quim abra-

çou-lne pelos ombros. - Deíxas-nre copiar?. . ._ E,stá bem"- Ginl-ìo... Tu estás zangado comigo? A gente não

clev ia ter l iqu idado o cão?. . . Fo i o Senl - ror Duar te quemnndou. . . Tu tarnbérn estavas Iá. . .

- Eu não estou zangado nenÌ nada. . ._- pn1[6 passas-rne os problemas?. . . Ì)assas-n. e?. . .

Eu faço- te o desenho. . .- Esrá bem.- Meninos ! Para a aula ! Para a rrula, iá disse !E, Íbmos pâríì a aular.

5 l

Page 55: Luis Bernardo Honwana
Page 56: Luis Bernardo Honwana

Inventár io de i rnóveis e iacentes

Page 57: Luis Bernardo Honwana
Page 58: Luis Bernardo Honwana

As portas e as janelas estão fechadas" O Papá Íìaìcl gos-

ta de donlir c<>m zìs portas e as j'anelas rrbertas não seiporquê. Pode-se pensar qr-re é por causa da doença, mas

eu acho que eÌe foi sempre assim. Ele agora dortne no nos-so qlrarto porque os n-rédicos, quando lhe deram zrlta. re-

cortendaram-lhe que clorrrrisse nurla can-ìa dura, o que seimprovisou no nosso qlrarto, já qr-re não convinl-ra rnexerna cama de casal, ncl quârto dele.

O ar está pesado neste quarto, pclrqr-le além de estar tuclofechado, dormenr aqui, incluindo-me, 5 pessoâs. As vezes so-mos 6 e isso dá-se mais frequentemente, porque a cama agorá1ocupada pelo Papá é norrralrrente ctcl-r1)acla çrela Tina e peltr(ìita, que agora donnenr colrì a Mamh llo (ìÌltro clrÌarto"

O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra czìlrÌâ res-sonanì. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nanditoressona também. C)nterl, quancìo h-ri sorrateiramente abrir aporta, clepois de deixar que c-ls olrtros adormecesserrì bem,c,urri resson'ar no outrc> qLraìrto. Não sei se era :r Mamã ou seera a Tina. Devia ter siclo a Mzurã. Sim, acho c1rle foi a Mamã.enrbora não tenha a cerÍeza. Será que eu taurirém fessonareiquando adorlnecer?

J 7

Page 59: Luis Bernardo Honwana

Luis Ilernardo .Honrvturer

C) Nandito muclou de posição e disse qualquer coisa.Deve estar a sonhar.

Além do quarto em que estâmos e do olltro em queestá a Mamã, a nossa casa tem mais 2 divisões: a sala de vi-sitas e a sala de jantar. Esta última tern as paredes enegre-cidas pelo furno, porque dantes a Marnã tinha ali o fogão,a um canto. É oc,-r.pada por 1 mesa já despolíàa e sem es-tilo, rodeacla por 7 cadeftas, Lrma de cada espécie, urn ar-nrárío elrr que alguém escreveu "Elvis", e vários sâcos nocanto, atrás cla porta. Às refeições, como não cabemos to-dos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se no chão, viradasLrma para a outra e encostadas, uma aos sacos e a outra aoarmário. Ao meio ficzr o prato de alumínio. Quando fazfrio sentaln-se sobre LÌma esteira. Invaríavelrrrente o pratoco1ìtém arrc.z e caril de arrencloinl. Naturalrrente um diauma clelas enjoou e virando a c^ra pegou nunÌ lápis e es-creveu "Iflvis" no armário. Acho que devia ter sido assirnporqrÌe a inscrição está nurrr ponto tal do arntârio que for-

çosanlente foi feita por alguém sentado ao nível do chão.A sala de visitas teln urrìa parecle cornrlm cofiì o qÌrar-

to oncle estanros e outra com o quarto onde estâ a Mamã.Alén'r der porta clue dá para a rraranda, tem outra que clápera LÌm c}rartito zr que chamanfos Coffedoq pafa ondetanrbém clão a portâ deste quarto> a cla sala de jantar, a <1oquarto c1a Mamã e a da casa de banho.

Aci-ro qlre a Mamã tilou o fogão da sala de jantar porcausa clo fturno, elnbora as parecles já estejarn todas ne-gr:rs. 1-alvez fosse porque as paredes do corredor e closquerrtos começasserì a eneÉïrecer também. Agora a Mamãcozirrha rrLl l l ìr l palhota que se constrl Ì iLl a um canto no

5 8

Page 60: Luis Bernardo Honwana

I r rventár i r ' r de imóveis e jacentes

quintal. Apesar de se ter mlldaclo para rá ha be'r poucoternpo' a palhota está quase negra, tanto por crentro comopor Í'ora. Agora de'e lá estar a clor'rir o úud,r.anzr" A pa_lhota não tem nada a'edar a enrrada. c) Totó clerre lá estara dormir também. Não o ouço a laclrar.

Para se passar da sala de jantar para a sara de estartem-se forçosan.ente cle F)âssar pero co..e.r<l.. Acho quepor lá passamos sempre qt.le \/amos cle u'ra clivisão paraoutfa.

Entre a porta que dá píÌra zì casa cle banho e a que clápara este quarto, encostada à parede do Cor.redor, há r_rrnaestante conr 5 prateleiras tocras cheias de rivros. Terl a co-bri-la uma cortína feita dum pâno icrêntico ao do clas cor-tinas da sala de visitas. As corti'as do quarto cla Manrã sãotambém do nresrn., pano. Só neste quarto é que as cort j_'as são diferentes. são dunr pano éÌrosso e amareracro.A Tina diz que o pano é feio, n-ìas quando o papá estevepreso tirou 2 cortinas e com elas fèz 1 saia que'ão era páì-recida con-ì nenhuma szria que eu n-Ìe lernbrasse cle ter vis-to. Eu acho que era feia.

o Nandiro vohou a'ruclar cJe posição e .ì farar. pare-ce que está com vo'tade de ir à caszr de banho. o colchãoÍaz o barulho de palha a esnìagar-se. Toclos os corchõesdas nossas canÌas são de pa[-ra, ''ìenos o cÌa Marlã. ,Esse éde sumerírma. Foi cor'prarJo ern segunda mão pelo ManoMário, que depois o vendeu acl V"pa. É,-,m borr ' l colchãoe eu gosto de descansar nele. euanclo esto. cle férias queÌ-se que passo o dia lá deitado. () papá zanga-se quanclo rnevê lá, e, por isso nresmo, tenhc-, o cuidaclo cle eviia. qr.re nìe

5 9

Page 61: Luis Bernardo Honwana

Lurs Bernartdo I lonwzrrrzr

âpânhe" A Tina está o teffÌpo todo à espera de ver quando

é que eu saio pata se ir lá deitar também. A Mamã disseurrìa vez que a preguiça é urn defeito feiíssimo nuÍna mu-lher, e er.r repeti isso rnesmo à Lolota quando urìfa vez avideitadar no colcirão de sumaúma.

Além clo colchão de sumaúrna e da caÍ11a que o con-tém, o qlrarto da Mamã tem 1 berço ern que dormem o

Joãozinho e a Carlinha, 1 cómoda, 1 guarda-fatos, 2 mesi-nhas de cabeceira, uma de cada lado da cama do colchãode sunraúma, e 1 rlala de cânfora sobre a qual estão váríasmalas cle viagem. Sobre as rnalas de viagem deve estar omonte de roupa que â Mamã engomou durante a tarde dehoje. Ern cornparação, o quarto da Mamã é melhor doql-le o nosso, que além das J camas e 2 rnesinhas de cabe-ceira, só tem 1 rnala cfe cânfora.

Debaixo clesta calrìa está guardado o lrreu material dedesenh<-t e pintura, contido em dois caixotes de madeira.FIá ainda mais 3 caixotes corrl livros. Debaixo da cama ernque estr i o Papá há mais caixotes com l ivros. As revistasesttlo distribuídas pelars 4 mesinhas de cabeceira dos cloisquartos. As mais apresentáveis estão na sala de visitas, so-bre a nÌesa cle centro, sobre o aparador, sobre a máquinacle costura e na mesinha do rácl io. Se agora quisesse lerunra levísta ia direitinho à rnesa do centro, porque lá eque estão as "Lifes", as "Tinfes" e os "Cruzeiros" mais re-

centes. Nos outros lugares dzr sala de visitas estão as revis-tas mais antigas e as mais ordinárias. Na Ínesa do centroestá tamllém o "Iìeader's", mas talvez neÍìf lhe tocasseporcpe parece que não é grancle coisa. O Papá diz que

6 0

Page 62: Luis Bernardo Honwana

I r r r c n t a l i o t l ç . i r r r t r v c i s ( . i : r \ ' ( - r ì t c s

e uma porcâria. Bem, Ínas llârzÌ ele todas as re\/isras que aMamã costu' 'zì pôr na saia de visitas são uma porcaria.í1r por isso que 'ão tenho assim tantrì vontade de sair dacama errrbora não tenha sono nenhurn"

( ) l

Page 63: Luis Bernardo Honwana
Page 64: Luis Bernardo Honwana

Dina

Page 65: Luis Bernardo Honwana
Page 66: Luis Bernardo Honwana

Dobraclo sobre () ventre e con-ì as n-rãos pendentespara cl chão, Maclala ouviu ar última das doze Lradalaclas dcrrneio-diu. Erguenclo a cabeça, cl ivisc-ru p()r entre os pés demilho a brancura esverdeada cJas calçr,rs do czrpataz, a dezpassos de distância. Não ousou enclireitar-se rlais porcÌLresabia que apenas devia largar o trabaÌho quarndo ouvisse aorclenr traduzicla nlrrrr berro. Apoiou crs cotovelos aos joe-

lhos e esperor-r pacientemente.O sol estav?ì mesrìÌo em citrra do seu dorscr nrl, mas

convinha sLrportarr um pouco mais. ( lontou o tempo pelonúmero de gotas de suor que lhe pingavam ;rela pontzr c{onariz para Lrma pedrinha que brilhavâ no chão, a seus pés,e concluiu que o caF)atàz clevia estar nruito zangaclo. Vol-tou ?r espreitar as pernas a dez passc>s de distância e viuas ainda na mesma posição. AÌongando a vista parzÌ alémdelas, viu a mancha escura do corpo clo Ìrílir-none, igual-Ìrìente dobraclo sob a supertÌcie clars folhas mais altas dospés de mi-lho, aguarclando a ordem cle larrgar o trabalho.

A dor de rins era-lhe insuportável, e muito pior agorarque já, tinha tocado o cÌina. (]uando os rnúrsculos clo pes-coço lhe conreçaram a doer pela torção a qtre os subn etiul,mantendo a cabeça erguida, deixor-r cair os braços ate to-câr nas folhinhas carnuclas e escorregadias clas ervas clue

6 J

Page 67: Luis Bernardo Honwana

l -u is lJernardo Honwan,r

devia arrancar. MrrquinaÌmente, apâlpou-âs parâ sentir a re-sistência clo cal-le dimintrto, entrânhou os declos p<lr entreos rarninhos e retesou o ccrrpo. Embora a plantâ não supor-tasse grar-rdemente o ernpuxão, os tendões da parte posteriorda irrticulação do joelho Tatejaratn-lhe cìolorosamente. De-pois ergr-reu a planta para se reanirrrar com o cheiro forte daterraì cpre vinl-ra presa às raízes esbranquiçadas.

Enquarrto aspirava sofregamente, corrì as raízes daplanta apertaclas contra o lábio superior, observou o bura-ccì que se produzirano chão. Iìeahnente, o dia estava mui-to qLlente porque llem urrr fio de vapor se escapava de 1á.

De rnaclrugacla, e clurante as primeiras horas da ma-r-rhã, ainda húmido clo orvalho nocturno, o chão humosocla machamba íturnegarra rnesmo clos torrões mais peque-ncls e o trabalho não cansava tantcl. Mas quando o sol jâia

alto, só clos buracos deixados pelas plantas é que saía algurn vapor, e rnesmo cfaí, caáa vez clurante Ínenor espaçode tempo.

Deixou cair a planta e escutoÌÌ. Nacla. Só o ulular dabrisa por sot>re as folhas rnais altas do mill-ro.

Voltou a endurecer o corpo e a deixá-lo pender paratrás atê que a planta que tinha segLrra na mão deixasse deoferecer resistência. E que assim poupava os rnovimentosàtê. ao imprescindível. O esforço de aÍrar'caÍ uÍna plantaresultava da aplicação de parte do peso clo próprio corpo,e não de contracções dos rnúsculos dos L;raços, que só do-brava de vez effÌ quando, para sorver a força dos torrõesque vinhâÍrÌ presos às raízes.

Quando arrâncou a sétirna planta desde que ouvira aúitima badalada do dina, o velho voltou a espreitar por

entre os pés de milho, receando não ter ouvido a voz do

6 6

Page 68: Luis Bernardo Honwana

Dirrr i

capataz. Apurou o ouvido durante um pedaço, nfas só ou-viu o murrnúrio abafado cla oncl-rlação.

Madala enclrrvoll-se parâ a frente erté experirrrenttrruma clor lancinante, mas nessa altura já tinha a plar-rta bernsegura e inclinolÌ-se para trás, até qr-re ela se desprendeuclo chão. Por entre as raízes saltou unì escorpião, mascomo não lhe conviesse erglrer-se e não tivesse ulfla enxa-da à mão, deixou-o fugir. fJm pouco assustado, Madalapensolr que se fosse rnordido pclr âqlìele escorpião teriadores horríveis durante três cl ias e talvez morresse rrc)quarto. Sim, jâ não era tão robusto que purclesse resistir aoveneno de um escorpião daquele tarranho clepois de trêsdias de dores.

Às primeiras horas da manhã ainda saltavam gafa-uhotos das folhas das plantas que zÌrrarlczìva, mas àquelashoras só apareciam escorpiões, lacraus, lagart ixas e zrténtesmo cobras. O Pitarrossi morrera nìordido tr)or uÍïraÌcobra que o atàcàra quanclo trabalhava r-raquela macham-ba. Nenhun. dos olrtros conhecera o Pitarrossi, mas todosdeviarn conhecer a mulher clele, que cìepois disso começa-ra a dormir conr os hornens ql're lhe pagavam bebidas nascantinas. Primeiro dtzia que só se deitarra con-ì quem ll-redesse vinte escuclos, rnas agora só the interessava beber.

Quando havia magaíças, ernlrebedava-se de tal maneiraque não era preciso dar-lhe nadtr, e, então, qualquer um,mesrìlo que trabaÌhasse nas mzrchanrllas, levava-a para ocapim alto atrás das cantinas. Mas todos sabem qLle qr-tan-do é assirn, ela adonrìece logo e só acorcla quanclo o ho-mem se Ìevanta.

Só ele é que já estava tão velho que não ia dormir comela. Alérn disso, tinha conhecido o Pitarrossi.

6 7

Page 69: Luis Bernardo Honwana

Luts Berurrrd<'r Horru'etnar

Maclala arrancou mais dr-ras plantas e esperou, de co-tovelos apoiaclos aos joelhos. O sol parecia aproximar-sea cadâ instante, mas já devia faltar poucó pare_ o capatàzrnandar largar.

De reprente, sentiu o víolento esticão dos f ios da suacl..ença. Era o prirneiro nó.

Atendendo à ordem do capataz,Madala não se t inhaapercebiclo do esticar clos fios, nras agora, depois de sentiro prímeiro nó por entre as dobras do intestino, endureceuo corp)o na rrã esperança de contrariar o enlaçar dos froscorrì a tensão muscular. Todavia, o fio que descia por den-tro cla gafganta encrespolr-se por alturas do meio do pei-to, formirnclo um novelo que cleslizou rapidamente para oestômago. Durante os segundos de expectativa, as veiasdo pescoço qllase qr'le explodiram no ser-r latejar tenso eo corpo estremeceu-lhe convulsivarnente. As folhinhas daplar-rta que tinha nas mãos desfizeram-se, exalancÌo unraÍragrâncía opressiva. O segundo nó quase que lhe aÍraÍt-cava os rins, mas pelos lábios apertados de Madala nemunr único queixume se escapou.

"Porque é que o branco não manda largar> . . . " -

Murrnurou Madaia, tentando alcançar os raminhos de urnarbusto. - "psscle qr-re tocou o dina as sombras já cresce-ram dois pal r r ros" . . .

Ao puxar o arbusto, Madala não pôde evitar que osjoelhos se lhe dobrassem e, como não largasse o apoio dosraminhos, caiu de borco.

Quando veio o espasmo doloroso do nó, as pernasen clireitaran-r -se -lhe violentamente.

6 8

Page 70: Luis Bernardo Honwana

f)ina

Pouco depois, corrl o corpo estirado sc-rbre a terra secae fofa, sentiu os fios a afrouxar gradualmente. Fechou c'rsolhos corrr força e esperou que ers clores desaparecessenr.

De joelhos, já reconposto da crise, Maclala lançoumão a um tufo de ervas e desenterrou-as clevagarr.

"Não se pode trabalhar cle joelhos... " -- lr-ìurmurouenqlÌanto deixava cair as erv?Ìs. Agarrou o caule cle um pe-queno arbusto, mas antes de o arrancar sepzÌrou o molhode caules das ervas que acabava de atir-ar ao chão e contou--os : " I Jm . . . do i s . . . t r ês . . . quâ t ro . . . c i r l co . . . " .

Quando acabou a contagem ârrâncou violenlamentea planta qlÌe lrantinl-ra na nrão direita e alinhou-a às ou-t r as : " se i s . . . "

"Não se pode trabalhar cle ioelhos..." - sibi lou, en-quanto esmagava corrr os dedos as folhinhas cla sexta planta.

Con-r um suspiro deixoll-se ton.bar sobre o ourbrr-rclireito e enroclilhou-se no chão. apertando o clueixo aclsjoelhos. Com certa satisfação, lembrou-se dos f ios da suacloença, agora quietos em volta clos selrs órgãos. I-evou àboca o qlÌe restava da sexta plar-rta e cclrÌÌeçou a mastigarde oÌhos fechados.

- Chega > r^pãzes! Varlos comer!"Se te ! O i to ! Nove ! Dez l . . . " _ Mada la e fgueu ,se

precipitaclarnente e arrarlcou as ql latro piantzrs. Depoispassou os dedos pela testa para espaÍìtar unras gotas desuor qLle quando escorrierm provocavan arclor nos olhos.

Não se levantou logo. Não convinha que o càpàtàznotasse que tinha pressa em largar o trabalho.

Quando aflorou à strper:fície expelirrentou urrr últi-mo esticão e urna vaga tontura. O n'Guiana e o Mutakatijá estavam de pé, nìas cl capataz dizia-lhes:

6 9

Page 71: Luis Bernardo Honwana

Lrt is lJema rclo I ' Ionu,ar r:r

- p21a conleçar são urnas corrrichões qt-re nunca rììaisacabarn, rnas para despegar é a correr, não, nìeus cabrõezi-nhos? Continuern assi lrì que eLÌ desanco-vos o lombo...

O Fil imone, ql le estavâ só com a cal)eça de fora,afunclou-se até aos olhos quando ouviu os berros do capa-t2ì2, mas, vendo o Maclala, ganhou c<-lragerrl e endireitou--se com uma espécie de desafio no olhar.

Aos poucos, o Tandane, o Djimo e o Muthambi foramemergindo da machamba, corfr os olhos postos no capataz.

O corpo do Djimo estava todo coberto de suor, rnasÍÌlesnfo assirrr o Madala observou a clança bonita dos seusnrúscr-úos assustadíços debaixo da peie da cor da areíado rio.

- Vamos ao ch icafo! . . .O capataz iniciou ar. rnarcha e os outros seguiram-no

ern silêncio.Madala estendeu o olhar ern volta, sentinclo um certo

prazer enl rnagoar avista nos pedaços de sol que saltavamdas folhas lisas do milho. "Machamba é como o mar".

Os outros já ian-r longe, meio mergulhados na espes-sura esverdeada da machanba, caminhando lentarnenteconlo se realmente estivessem a vencer um meio líquido.

Madala cont inuou imóvel : "Machanrba é como on - ìa r " . . . i ns i s t i u enquan to segu ia com a v i sca o ondear dasuperfície uniforme da machamba. Só lá longe é que sedesfazia a onda e1l que viajava o olhar de Madala, assalta-da por rnil fulgurações prateadas, pequenos sóis tornadoscometas pelo vento.

Quando Madala chegou ao acanparÌìento, os outrosgrupos já tinharn chegado. Alguns deles iâtinhan almoça-do. O grupo clo desbravalTÌento, eue era sellpre o primei-

7 0

Page 72: Luis Bernardo Honwana

I) ina

ro a chegar, estava agora disperso pelas sombras. A maiorparte dos seus homens dormia, para se reconlpor clo es-forço dispenclido durante a manhã. O gn-rpo da horta de-via ter tardado, L)orque José, cl seu kuka, aincla estava afazer a fogueira para a botwa de farinhzr.

Madala dirigiu-se para urn dos celeiros velhos e sen-tou-se à sombra, escolhendo lugar entre os hornens clo gru-po do curral, que, ao vê-lo aproximar-se, deixaram deconversar sobre mulheres e vestiram urn ar mais reverente.

- Madala, corno é que vão as coisas no ter-r grupo?- perguntou Lurìa voz. Madala não respondeu pronta-mente, porque antes de emitir qualquer opinião, tinha derepetir a perglrnta interiorlnente e ouvir a resposta clo seuíntimo.

- E;az muito sol na macharnba... - clesculpor,r-seavoz ante o mrÌt isrno de Madala-

- S im, faz mui to so l na machamba. . .Sentindo a obrigação de continuar a fazer-se ouvir,

àvoz arriscou:- E o branco não sai de cin.a de vocês...Madala fitou a cara jovem do seu interlocutor e ten-

tou lernbrar-se de qualquer coisa que pudesse dizer, clemaneira a fazê-lo compreender que não era necessárioque continLrasse a ÍÌrostrar-se interessado.

- O branco é mau. continuava o rapaz - EIedemora muito antes cle manclar largar. . . F-u via isso qlrân-do traLralhavar'a machamba... Tarrrbém não deixa as pes-soas endireitarern-se por urn Lrocado para descansareln ascostas... Eu vi isso nrltnâ vez... - Subitâmente inspirado,o jovem virou-se para os olrtros - is16 não é rnentira, juro

que não é rrrentira... uma vez, esÍávamos nós a trabalhar

-7 1

Page 73: Luis Bernardo Honwana

Luis llern,rrcl<.l Ho1-ìu'zìna

na rnacharnba colTì o branco. f-azia muito sol.. . toda agente siìbe clLre faz muito sol na nìeìchâtrba... vocês vãover porque é que eu dígo que o capataz é mau. Estávamosnós a trabalhzrr na macharnba. .. Fazia muito sol na mer-chanrba o jovem continuou a narração, cada veztnais tomado prelo er-rtusiasmo, transferinc]o a audiênciadzrs suas palavras de Madala para os seus companheiros.

O velho otrservou o capatà4 que sentado nulTì caixo-te, â LlnÌa clas sornbras contíglÌas, se serrria clo seu almoço.Diante dele as rrrarrnitas empilhavarrÌ-se sobre Lrm olrtrocaixote que servia de mesa. Cornia com muita vontade ebebia o vinho pelo gargalo.

Quando MaclaÌa ia zìs cantin:rs, no {im do mês, ofere-cia um por-rco do seu vínho aos amigos, rrlas o capataznunca ofereciar o seLl vinho ar ninguérn errrbora neÍÌl serrÌ-

çrre acirbasse as garrafas qt-re a rnulher lhe mandava para

o almoço.O vinho era cle Llnl anìarelo sujo e ^ gattafa estava

toda suacla. Quando o branco bebia, até fechava os olhos._ Madalar _ E,ra o Djirno _ NIadala, vamos co_

n Ìe r . . .Pelas sombras, os hornens dos vár ios grupos da

propriedacle <lescansavalrì e comiam. Havia muitos que

Maclala nern conhecia, mas todos o conheciam, e o cumpri-n-Ìentavan, quando passava.

- M.dala! Eu não te disse lop;o, mas era só por cau-sa do branco. Está ali a tua filha.

A Maria vinha 1â ao encontro deles:- Boa ta rde , pa i ! . . .- Boa tarcle, minha filfia.

7 2

Page 74: Luis Bernardo Honwana

I) ina

O Djimo âproxirnou-se de Marier:- Maria, eu fui brrsc:rr o teLÌ pai 1-rarar o veles, mas scl

agora é qr,re lhe clisse cÌue cstão aqui, porque cr braìnco es-tava a corÌfer nt-lnf sítio perto clo lugrrr oncle ele estava sen-taclo. . .

-Mar í4 cc ln lo é que estão as pessoas Ìá de casâ?. . .- Marlala, é nrelhor ires fal.ar cor-ìì a tua filha nâqLÌe-

l a so r r r b ra . La não l r : i so l . [ , r r r c l l r o r ' . . . Ma r i a . va i l r r r r aztcluela sombrar e leva () teu pai contiéìo para frrlares comele. Lá não há so l . . .

O Diimo çrareciir g()strrr mlrito clar Merria, lrlzìs o velhosabizr que corrìo ela dormiar com muitos Ìromens ninguélllqueria casâr-se com ela.

- Maria, ccl l f io é clue estão as L)essoâs lá em casa?...- Lá elrì casa estão todc,rs Lrons, pai. IÌu vim czi Lrara

t e v e f . . .- Eu estor Ì bom, n inha f i lha. . .Todos os homens c]o 2ìcampamento olhavam L)ara a

Marria, percorrendo-lhe as fbrmas apetecíveis por sobrea capulana.

- Boa tarde, Mar ia ! . . . ï rdos a curnpr imentavam,buscando LÌrrr olhar, nas el ir respondia sel l : Ì afastaf osolhos do chão.

Madala e Maria ficaram curlados clurante um peclaço.Maria sentilÌ-se embaraçacfa com os oihares qr-re os

hornens lhe lançavanl.- Madala, não qtreres vir comel) - Era outrzr vez cl

Djirno. - Agora é rnesrlo para comer porque o n'Cluianae o Muthakati jâ acabararn de tazer a cornida. Agora não ésó para o branco não perceber qtre a tua filha veio acluipara te ver... É -.rn-ro par2Ì comer.

- 7 4

Page 75: Luis Bernardo Honwana

l -uis ì ien-rarclo FIonu'an:r

- ELì fico aqr-ri corrl a minha frlha, Djimo.O capataz surgiu da esquina do celeiro e aproximou-

-se conì um cigarro na rnão:- Olá, Maria! O que é que vieste câ fazer? E,stás a

engatar o Maclala?. . . Ao Madala não deve ser porque estánruito cocuana. .. Ta|vez seja ao Djimo... Maria, tu estása engatar o Djirno?. . .

- ELr não está engatar Djimo respondeu Maria,tentando falar enr português.

Diver t ido, o capataz in ter rornpeu o movimento de le-vâ roc iga r roàboca :

- Mas tu não gostarias de dormir com ele?De olhos postos no chão, lVlaria não respondeu.

- Madala, varnos comer. . . As pessoas que t raba-lham na machamba oLÌ noutra parte qualquer precisamde comer quanclo chega o dina!

Madala não se pôde pronunciar imediatamente. Na-quele rnorrìento olhava para a filha, tentando descobrir oque ela sentiu quando o capataz the dirigira a palavra. Ma-ria desviou o olhar.

-P^1... Eu penso que é melhor ires comer.Maria esgâravatava o chão com um pé.Ao ver qÌre o Pai conhecera o seu nervosismo, reco-

theu o pé precipitadamente. Cruzorl os braços sobre opeito e apertou as costas com as mãos.

Maclala aproxirnou-se mais da filha e tentou esprei-tar-lhe os olhos ensombrados pelas pestanas descidas.

- Porque é que tu pensas assim?Ao ouvir a voz cava mesmo jtrnto à sua cara, Maria es-

qúvou-se ainda mais, cluase que fic'ando cle costas para o pai.

7 4

Page 76: Luis Bernardo Honwana

l ) ina

- Bern, eu não tenho nacla... Eu não tenho nacla qr' leme faça pensar assim calou-se por um bocado, maslogo continuou um polrco mais animad:r - eu não sei,pai, rlas penso qlÌe tr-r precisas de ir cclnrer...

Madala contornou o corpcl de Maria e pôs-se-lhe en-rfrente, corrì os joelhos exageradarnente dobrados, renran-do ver-lhe os olhos definitivamente esconclidos por detrásdas pálpebras.

- Tï r pensas ass im/ . . .- Tu precisas cle ir corrler, ;pa.i... - de olhos fecha-

dos, Maria falava mais afoitamente.- Mas eu não tenho fome nenhurna na minha bar-

úga... - Madala abriu os braços colr lo que admirado.- Tens de ver que não tenho fome nenhuma na minhabar r i ga . . .

Maria não retrucou.- E tu não queres comer, rninha filha?- Eu corni nas cantinas, antes de vir ver-te. Quando

eu ia a passar pelas cant ínas ur ì ìa pessoa at r r iga v iu- r r re cchamou-rne7â para dentro. Essa pessoa antiga corrÌprou--me urrlas coisas e disse - toma lá, isto é para tu comeres- e eu comecei a corner. - |y1[21is abriu os olhos. mas te-chou-os imediatanÌenre.

- E agora jâ não tens fon.e? Não queres ir corner darcomida do meu grupo? - A voz de Madalzr estava ansiosa.

- Não, rneu pai, o qLre essâ pessoa amiga me ofere-ceu para comer deixou-rne satisfeita e àgicra jâ não tenhofome. Eu fico aqui à tuzr espera enquanto ccllt- es.

Djimo censurou o Madala:- Madala, atuafilha está a dizer coisas muito ceÍ'tas...Il Madala desistiu:

7 5

Page 77: Luis Bernardo Honwana

Luis Bcrr r :rrcl .-r I lonu'arra

- p51f bem, et-r vot- l comer e tt-r esç)eras-lne aqui.. .Maria abriu os olhos quando pressentiu o pai a afàs-

taf-se.O velho L)artiu um pedaço cie côi, molhoLÌ-o no tacho

do m'tchovelo e levou-o aì boca. Os outros irnitararn-no.Corr.ram silenciosamente. O rn'tchovelo estava clelicioso,todo cheio de gordura.

Do ponto errl que estava sentado, Madala poclia ver âMaria, meio oculta, à sombra de um celeiro. Embora estives-se o tempo todo a olhar paralá, não viu o capàtaz a chegar.

Maria respondeu às trrerguntas do branco sern tirar osolhos do chão.

Madala sentiu pena de não pocler ouvir o qlre <lizian,e, por isso, pergrÌntou ao seu íntimo o que é que um ho-rrìerr-ì diz tt urìÌâ mr-rlher quando qlrer ir dormir com ela.O seu íntimo estava adorrnecido.

O capataz parecía zangar-se coÍÌl a Maria, rrras às ve-zes falava docemente. Tirou urn pacote de cigarros dobolso, abriu-o, escolheu urn, acendeu-o e apagou o fósfo-ro âssoprando-lhe LlrÌra nlrvem de furrro. Manteve a rnãono ar> brandindo o palito ardiclo à medida que falava.

Quando acabou de fumarr o cigarro, voltou as costas àMaria e desaparecelr na esquina do celeiro. Pouco depoisaMaria tomava o 1Tìesrno caminho.

O côi já estava rnuito reduzido, nras Madala tinha acerteza de que ninguérn saciara a fome. O último bocadoera pata o n'Guiana e o Muthakati, os kuka clo grupo. Osrestos do rrr'tchovelo também eraÍn para eles.

Depois de sugar das mãos os últimos vestígios de co-rnida, Madala esfregou as mãos Lìrrra à outra e passou-as

7 6

Page 78: Luis Bernardo Honwana

I)ina

pelo cabelo. Dando a refeição pror f incìa, levantorÌ-se.Os outros imitaranf -ncl.

Ainda faltava algum tenlpo pareì serem horars de vol-tàÍ a mergulhar rìa rrìachamba, e pclr isso M:rdala olhouem volta, proclrrando um sít io para descansar.

Os horlens do grupo do curral afastararn-se e o velhovoltou para o sítio oncle antes tinha estado. O joven-r queainda há pouco the dirigira a p-,alavra fitava-o allora corìlumâ expressão clel iberadamente irónica:

- Madala, a tua filha está ali atrás, a colrversar com clb ranco . . .

Elías, cl el lcarregado clos homens do grupo do curralnão gostor-r da provocação:

- Ql rando as pessoas nào conrpreel rde ln cer tas co i -sas derrem calar-se.

O si lêncio tornolr-se pesado. Maclala buscou com amão uma planta que sentira junto à suer perna esquerda.Prendendo-lhe os raminhos entre os declos, enrolou umaboa parte do caulezito rnaleável ern volta do pulso e pu-xou corn cleterrninação. O arbustc't desprendeu-se da terracom LÌma explosão surda.

Dj imo aprox i rnc)u-se:- Madala, queres qlre eu faça algur-na coisa?Madala não respondeu. Por detrás do Djino, pelo

canrinho que levava à machanrba, o câpatâz àvar,çzva.Dez passos atrás, Maria seguia-o.

O velho seguiu cl par ccrnr â vista. Procurou no chãoalgo que não encontrou. Os dedos cerraram-se-lhe emvolta de uma planta irnaterial.

Maria mergulhou os pés ncl lnar verde e chapinhou de-sordenadamente pelos rebentos tenros clo milho da perife-

7 7

Page 79: Luis Bernardo Honwana

l-uis Bcrnarcìo 1-Ionu,errrir

ria, procurando colocar os pés sobre as pegadas do homem.A espesslrra verde jâ li;-e tingia os joelhos, rrras continuotÌ.Todavia, carninhava rrÌais clevagar, embora resolutarnente,p1aÍà vencer a correnteza.

Já muito dentro da machamkra, o ca;pataz parou e vol-tou-se para l\üaria. Esta tarnbém parou, a alguns metrosde distância.

- Madala, realmente não pensâs ern nada de quegostes e que eLÌ te possa fazer sern rne custar nada?

Madala viu o capataz a tentar retroceder até onde aMaria estava, e a parar corrìo se mudasse de ideias, poucospassos volvidos.

Andavar corì lo se estivesse â atravessar um rio.Madala pensoLr que devia dízet qualquer coisa ao Dji-

mo, mas não se lerrrbrou de repetir a pergur,Ïa pata si mes-rno e por isso não soube o qlre dizer.

O capataz fazia sinais à Maria mâs esta parecia nãoentender.

A planta que M,.rdala segurava na rnão oferecia ao seuesforço un-ìa resistência exagerada. Por isso, o punho deMadala tremia.

O homem mergulhou na rnachamba. Momentos de-pois a Maria agitou os braços, apoiou-se aos frágeis pés demilho e acabou por desaparecer também. No sít io poronde ela submergiu, as folhas do milho agitararn-se porunr perlaço, rrras depois a ondulação desapareceu.

O tom da voz de Djirno revelzrva certo nervosisrno:- Maè la lâ . . .Mas o nen'osismo <ìesaparecelÌ logo. Djin-o deu uma

orderrr:- Madala, não olhes paralá!

7 8

Page 80: Luis Bernardo Honwana

I)ina

Dentro de Madala, qualquer coisa se crispou. Masnão erarl os Íìos da sua doença.

Na confusão verde do fundo da rrrachamba, Marianão viu o capataz imediatanente. Esbracejou com aÍLição,tentando libertar as pernas. IJm braço rodeou-lhe os om-bros duramente.

O bafo quente e ácido do homem aproximou-se dasua face"

A capulana da Maria desprendeu-se ciurante a breveluta e a sensação fria de água tornou-se-lhe rrrais vívida.IJm arrepio fê-la contrzrir-se.

Sentiu rìas coxas nuas a carícia morna e áspera dosdedos calosos do horlem.

Madala olhou em volta. Ninguém o olhava directa-mente rnas todos os hornens do acalnpamento se tinharndisposto pelas sorlbras de rnodo a poderem vigiá-lo. Só ojovem do grupo do curral, que ainda há pouco o interpe-Iara, é que Ínantinha a expressão malcriacla.

O silêncio tornolÌ-se opressivo. José, o kuka do grupoda horta, tossiu insistenterrìente, tnas o silêncio manteve-se.

Na penumbra do fundo da macharrrba a pele exan-gue do c^pataz adquir ira um tom esverdeado. A face,dura, crispada de desejo, encheu momentaneamente osolhos de Maria. O hálito de fogo do hornem entrou-lhepelos lábios entreabertos e embriagou-a ntlÍn ápice. Mzrriafechou os olhos sern raiva e abandonou-se à ondulação.

{Jma vaga quentura ve io co l ì ì as onc las subnrar in : . rs ,misturou-se às algas crespâs clo fundo da machamba eborbulhou mansamente no ventre de Maria.

7 . )

Page 81: Luis Bernardo Honwana

Ltt rs Bernar<lo FIonu' :ur : r

lJn-ra a unla, Madala eslnagolr as folhinhas da robustzlplanta imaginária que tinha na Ínão. Escapou-se-lhe nr.rmaespécie cle soluço, eLÌando lhe ocorreu que os fios cla suacloença the tinl-rarn rninado os ór5{ãos cle tal rnaneira quenão lhe sobravarrr forças L)^ra clesenterrar ufiìa planta quese agarrasse à terra Lrm potÌco rnais soliclamente do que asque arrâr-ìcava na rlacharnba.

- Não chores, Madala. era Djimo.O n'Guiano e o Filimone foram os primeiros do gru-

po da sacha. Seguiu-se o José e o Maleísse, que, emboraaélora trabalhtrsseÍrì no desbravamentc), tinham pertenci-do anteriorlTìente ao grupo do Madala. Num instante to-dos os homens do grupo da sacha e muitos de outrosgrr-lpos roclearram Madala.

Maclerla corrreçou a acariciar os râminhos agora nusda planta imaginária.

- Maria, o que é que vieste fazer aqui?A voz do capat'dz estava rouca.Esrnagado pelo peso clo homem, o peito cÌe Maria ti-

nha urn arian: brando e con-ìpassado.A voz do capa-rtaz chegava-lhe misturada a um lon-

gínquo rurnor de vagas.- P6pqsê fez isso? murlrturou.- f l sn1 ) . . _- Porquê... - Maria sacudiu o horlem corn rudeza.- I f lrm? ... - A mão do capataz fechou-se pregui-

çosamente sobre o seio de Maria.

- TrÌ não gostaste?. . . - O hornem pulou para olado. - l ls i11?. . . Não gostaste? -Ç66pôs a roupa ev i -r ou -se pa ra a Mar i a r . He i ! . . . Acz rbou ! . . . Aco rda ! . . .

8 0

Page 82: Luis Bernardo Honwana

r'Dina

Os olhos da Maria briÌhavanl na rxeia escuridão dc-rfundo da machamlra:

- Assin não é bom... De noite é meris üìel l-ìorÌ -

E houve pânico na sr-lâ voz. - Agora Mrrdala viu!.. . Ma-dala viu... gemelr. Mas \/ocê cl isseste é só p'ara combinarpara gente contrar de noi te . . .

- !211-1ç'vs, rapariga, acabou a festa. Depois dotr-te amassa . . .

Maria senti lr o chão duro da rlacl-ramba contra asSUAS COStAS.

O caprataz foi o primeiro a aparecer à superfície cÌomar vercle. Esbracejou para \zencer o sentido da maré eavançou em direcção do carninho clo acampamerìto.

Quando a Maria surgiu à superfície foi pror-ìtaÍÌrenteenvolvicla pelo sopro prolongado da exclamação do mar.Sacudiu da capulâna LrÍìs torrões de areia e reÉÌressclu zìclacarnpament().

Ao longo do caminho teve de erguer as mãos de vezem quando, para se defender dzr ondulação qr-Ìe â passa-genr do càpatàz provocara.

Os hornens do grupo do curral afastarane-se pzrra Ma-ria passar.

Maria cheirava à maresia.A f isionomia do jovern do grupo clo curral que se

aborrecera corn Madala estava comprletamente rlodifica-da. Os traços do ódio tinhzrm substituíclo o esgar cínico cÌea inda há pouco . A qua r l r ì l cn ta t i vâ co r ì segu iu em i t i r a l -guns sons:

- Madala. . . faz mui to so l . . . or - rc1e t r - r t ra t ra lhas. . .Madala pensou qr.re antes de achzrr as palavras certas

c lev ia d izer qu i r lquer co iszr :

8 1

Page 83: Luis Bernardo Honwana

l-uis Bern:rrdo I lonlvarr.r

- Sim. Íneu f i lho. Na macharnba faz muito sol.. .Mas o silêncio não chegou a ser destruído. A Maria

não levantava o oll-rar. De pé, todos os hornens do acarn-parnento olhavam pare- o chão, quietos coÍno estacas.

- MadaT^. .. - A voz do jovem conrinha,se - Ma-dala... Diz-nos o que é que devernos fazert.. . Fala e nósacabaremos já com is to tudo. . . E les podem rnatar-nosmas nós não ternos rledo de morrer...

{Jrn rumor de aprovação elevou-se da massa coÍnpac-ta dos homens do acarnpaÍnento.

Madala ergueLr os olhos e percorreu dernoradamenteos seus companheiros.

- Madala, todos nós vímos o que ele fez à tua filha,rnesrno diante cle t i ! . . . Diz qualquer coisa, diz,Madala! -..Os olhos súplices do jovem buscavarn avidamente urn tra-

ço de revolta nos olhos de Madala.O íntimo de Madala estavâ aclormecido.O capataz surgiu pela esquina cle um dos celeiros ve-

lhos e procurou Maria coÍÌr o olhar. Quando a descobriuÌarrçou-lhe paraÌ o regaço urrìa rlloeda de ptata

- Aí tens o que te <fevo. Trazia nos lábios um ci-garro furneg;rnte e um sorriso satisfeito.

Maria cfesembaraçou o braço da capulana. Alguém tos-siu. Maria retraiu a rnão nervosârrìente. Cruzou os bracossobre o peito e apertoÌr as rnãos às costas.

- Então, Maria? I - Os olhos do capataz estavaÍncheios de surpresa.

Maria projectou o corpo contra a parede do celeiroe desv iou a ca ra .

a2

Page 84: Luis Bernardo Honwana

Dir-ra

Madala observava-a corn c> seu oÌl-rar triste. Ela fe-

chou os olhos.- Porquê fez isso? - sibilou surdamente.

O capataz descansou as mãos nas ancas e soprol-r ulna

breve gargalhadzr:- Mas o que é que tens, rapariga? Não queres o di-

nheiro? Tens medo de o receber? - Calou-se, aÉ1Ìârdan-

do a respostâ cle Maria. Mas continuoll' .- Tens medc-r

que os t^peizes descubraÍn ql're és urna puta?

Maria abraçout-se mais apertadamente e, crâvando as

unhas nas costas, choramingou:_ Mada la v iu nós . . . Mada la v iu . . .- E, o que é que isso terr-/ - O càL)ataz abriu os bra-

ços, reforçanclo er adrniração, e depois crl lzou-os sobre

o peito.- Madala é minÌ ra pai t . . . .- O quê? I - 26içulou por firn o c,àp'àtz-z.

A cara arnarela tingia-se-lhe rapidamente de sangue.- Eu não sabia que eras f i lha clo Madala... - gesti-

culou asfixiado. Eu não sabia... palavra de honra, Mada-

la, palavra qrÌe não sabia. . . eLÌ t lão sabia que t inhas unì?ì

f i l l r a . . . t ão bon i ta . . . eu . . . so t t a rn igo de la . . .

O silêncio dos homens do acampamento latejava cle

tensão.- Madala... - o càpataz aproximou-se de Maclala

- Madala, se quiseres pocìes não tralralh.rr esta tarde. ' -

ficas aqui no acalnparnento a coltversar corn à t:ua filha' '.

Maclala esconcleu no chão o ser-Ì olhar triste. Os seus

dedos, desconhecenc{o o volume da planta invisível, fe-

charanr-se com força.

8 l

Page 85: Luis Bernardo Honwana

Lui s Berrarr:lo IJonrr,,;rnar

O silêncio parecia desesperar o capataz. (Jaguejando

unl €ìesto eÌÍnistoso explodiu:- Merda! . . . Como é que eu havia de saber? - Vol -

toÌ-r-se para os honrens do acarmpamento, estendendo-lhesa interrogação.

Mudos, os homens nantinham-se na sua ngidez som-bria"

- Merdat - rugiu o capata4 cheio de terror. - Ma-d,ala... Eu dou-te algurn dinheiro e tu vais com a tua filhapara as cantinas... - O capataz espiava ansiosarnentequaÌquer vestígio cle animação na expressão velada delvlaclala.

O velho encrÌrvou-se um pouco mais.- Madal^... - balbuciou o capataz. A mão inter-

rolrrpelr-se-lire no nreio do gesto e caiu. - Merd at - 7g-cuou até clesaparecef na esquina de um celeiro.

O jovem do grupo do cr-rrral levantou avoz:- Madalzr, todos nós vinros o que ele fez à tua filha

rrlesmo diante de t i !Maria sr-rbiu as mãos pelas costas e soluçou.O capataz surgirr pela esquina do celeiro corn unlâ

gerrafa de v in l ro na nrão:- Eh rapazes sua voz era f i rme. Encarou o

rìcarnparnento e berrou. - Vamos trabalhar que jâ sãohorers! Vamos emborer que já passa da uma e rneia! Des-l:rzrvamento! Maleíssel El ias! Alberto... Os homens doDesbravamentoT... Desbrâvanìerìto, alat Acabar com amata clo laclo clo r io... Horta! Ernbora Horta! Morte aosbichos das couves ! Currzrl ! Grupo do Curral, levar o gadoer bel rer ! . . . Sacl ra, comigo! Embora, Sacha, embora paràa machamba ! . . .

8 r l

Page 86: Luis Bernardo Honwana

rI

I ) i n a

Todos de pé, os homens do a.canlpamento continua-ranr irnóveis.

Os dedos cle Madala frcaram de reper-ìte conscientesda planta irlirginária. Abrirarr-ì-se e voharam a acariciá-la.

- pn1ls , raL)azes?! Não ouvi ram/ . " . Já tocoLr ! Aca-bou o d ina! - O c.J l - tà taz r l r j tava cc lnì r r t ì ìa i r r i tação ct 'es-cente. Olhor-r p^ra a gïarrarfa qr-ìe t inha na rnão:Mada la ! . . .

Merdala levantou-se.- Vocês não ouvem/ Embor 'a , jâ d isse! . . . Ernbora

cab rões ! . . .Madala arceitou a garrafa clue lhe ela estendida.- Cabrões! Cachorros! Para o trabalho, cachorros!Todo o acampamento oll-rarrra parâ o MadaÌa. O jovenr

do grupo do curral avançou LÌn-ì passo:- Madala I

Com uma expressão cheier de cÌureza, Maclalar relan-ceolÌ o olhar pelas fisionomias ansiosas qt.Ìe cl cercâvanl.

A garrarfa estava tocla suadar e o vinho era cle LÌm ama-reio sujo, avermelhado. Madala beberl de urlar únicer vez,deixando que rÌrrla boa parte Ìl-re moÌhzÌsse as barbas e lheescorresse pelo pescoço. Depois derrolveu a garcafa vaziaao capataz.

- F i lhos da pt r ta ! Ì ) ' ró t rzrbal l ro , já d issel . . .As estacas oscilerrarn-r, fracluejando.O silêncio era cfe c]errotzr.Maria observava tudo, apreensirra.C) c.r lrataz branclia aÌ garraìfa \, tzíà, segtrr-ando-a pelo

gargalo.- trilhos <ìa puta!O jovern clo grupo do crrrral cr,rsçritr paraÌ os pes de

Maclala:

8 5

Page 87: Luis Bernardo Honwana

Luis Bcrnarcìo Honwana

- CãoJ . . .O velho desconhecelr o insulto. Voltou-lhe as costas e

torrlou o caminho da rnachamba. O n'Guiana e o Filimo-ne seguiram-no"

O Djimo voltou-se paÍ^ os outros trabalhadores:-- $21ns5. . .- Depressa! Depressa! . . . - o càpat^z rugia. - De-

pressa, seus cães!Os homens do acarnpaÍnento, encabeçados pelo Dji-

mo, iniciaram a marcha de retorno ao trabalho.- Psplsssâr - o capataz investiu.A garrafa partiu-se ao primeiro golpe, rnâs o jovem

do grupo do curral não se Ínoveu. O segundo golpe abriulhe o cotÌro cabeh-rdo. Os pés do capataz calcararn-lhe orosto com raiva:

- tr i_lf io-da-pu-ta !

Madala inclinotr-se para a frente e enrolou o caule deurn arbusto ern volta do pulso. Deu um ligeiro puxão pàraver se estava bem preso. Depoís, deixou o corpo penderpara trárs até que o arrancoLl. Colocou-o cuidadosamenteno chão, alinhando-o com <l monte dos que játinl;'a ^ttar'-czrclo à sna volta. Alongou a vista por entre os pés de milho

até c{istinguir o vulto do Djimo. O FiÌimone, o n'Guiana,o Mr-rthakati, o Tanclane e o Muthambi também estavamperto, Madala conseguia vê-los. Com um suspiro roucoretornou o trabalho.

Por sobre os seus estranhos peixes, a superfície clor-ììâr vercle era percorriclâ pclr uma brisa suave. A ligeira

orrdulação qr-le lhe era imprimida cilesfazia-se, avançava evoltirva a desfazet'-se, l-Ìrurmuranclo o segredo clos búzios.

8 6

Page 88: Luis Bernardo Honwana
Page 89: Luis Bernardo Honwana
Page 90: Luis Bernardo Honwana

E,u jurarier qLre não cheguei er perder o conhecimentoembora pouco antes de cair tirzessc ex1>erinrcntaclo aqr-releestado de embotarrìento cle sensilriliclade quc, cllrando nostonra, restringe a nossa capacicl'ade de clefesa acrs gesrrlspuramente instint iv()s nras estupidanlente lentos, que to-dos conhecem nos boxel r rs "grogr les" . Acho c lue n in-guérrr podia avaliar o esforço tremer-rdo que fiz r-resses nãoseí se longos se breves nlclnìenttrs, prìrrì corrclurzir os rner-lspunhos, brr-rtalmente pesacìos antes de ganharem rnovi-mento e incrivehrente flutuantes depois de erguiclos. En-tretanto, às çrancaclas qr-re recebiir não se alivierva clualcluersensação física porque só lhes percebia cl cco di luinclo-seÌentamente dentro clar minha cerbeçar. Esse maldito eco e sóele é que foi o cr-rlpado cle etr cair. E, cÌLÌe atrapalhava-memuito e fazía conr clue antes cle levantâr Lll-Ìr braço tivessede pensar cotn força qlÌe tinha que levantar Lrrn braço. Caílentamente, com plener consciência de estar cainclo.

Primeiro senti-r-ne quase bem no chão, ernbora o ecocontinuasse a er-rcÌrer-n-ìe a czrbeça. Quanclo abri os oll-rosveio o zut-nbiclo e senti raiva cle rnim nÌeslrì<-l por. ter caíclo.O eco atrapalhava-De a vistzr a tal pont() que não t inha acertezà do que via, n-ras clepois, quando a minha vista clei-

8 c )

Page 91: Luis Bernardo Honwana

Luis Bern:rrdo Honurana

xou de trerner, vi as duas pernas vestidas de escuro, Çtue,nascidas urrrâ de cada lado do meu corpo cresciam longa-Íìrente l)at^ cima, tesas e tensas, convergindo para a placacle metal brilhante clo cinto, Por cima delas, lá em cima,perto da lâmpada do tecto, a cara fitava-me, ateÍrta, sorrin-clo satisfeita. Voltei a fechar os olhos.

Sentí-me a treÍnef, nÌas o eco era mais suportável por-que deixava de se processar desordenadamente para seruma espécie de latejar. Só voltei a abrir os olhos quandotive a certeza de que o tipo já se tinha ido embora, farto cleprovar aos oì,rtr<>s que realmente me batera.

Eu precisava cle ir para casa. Acho que já t inha vonta-de de o fazet ântes mesrrìo cle entrar no bar, por isso, oqlre aconteceLl lá clentro não era o que me levava a tet tat:r-ta vontacle cle ir pelra casa. Não via a velhota e os miúdos,não sei desde quando, porqlre ultimamente voltava à casamuito tarde e saía muito cedo, mas não tinha bem a certe-za tle os qlrerer ver mais alguna vez. A velhota era insípi-da e os miúrdos eram chatos e barulhentos, sempre cc>mporcarias pÍìra resolrrer. Claro qt'le isso não era nacla que secomtr)arasse àquilo do bar, de há bocado, ou de todos osoutros l:ares, restatÌrantes, átrios de cinemas ot-r quaisqueror-rtros lugzrres no género errì que todos rne olhavam dumamaneira ir-rcomodativa, como que â denunciar ern mimum elemelÌto estranho, r iclículo, exótico e sei lá o quemais. Que nojentos! E eu sern poder rebentar exacta-rìente por caìrsa do raio da velhota e clos ranhosos dosmiúdos !

Aquilo do bar, ainda há bocado, era afrnal o que sepâss:lvzì: eu r-lão consegui bater o tipo porque ele era todos

9 O

Page 92: Luis Bernardo Honwana

A veÌhot , r

os outros> e exactâmente como isso é que ele nre baterl.Não aclianta contetr,porizaq tuclo é a rnesma coisa. Mes-mo os que têrrr a rnzrnia de que fazerrt exceprção só são issoem caÌìrpos neutros ou quando tenham necessidacle <le viraté mim, porque, em volta deles edifican rrruros de tabuse defendem-se conl os ïnesrrros nojentos olhares enojacìossempre que alguém vai para além desses nÌuros. Eu queo diga!

Eu precisava cle ir para casa. fa corner artoz e caril deamendoirn corrlo eles queriam clue fizesse, rlas não paraencher a L'>arriga. E precisava de ir 1-rara casa perra encheros ouviclos de berros, os olhos de misér:izl e a consciênciade artoz corn caril cle arnencloim-

Sentada na esteira a velhotaì estava quieta, a ver osmiírdos a comer. De vez em quanclo levantavzì-se um e vi-nhaúazer-lhe o prâto de alumínio para ela servir-lhe mais.Foi de uma dessas vezes que a velhota cleu comigo. Estarracom a colher de pau erguida, cheia de arroz, e ia clespejá--lo no prato, quancìo parecer-r<Jo lembrar-se de qualquercoisa, se v i rou p i ì rz Ì a por tnÌ . Logo que nìe v iu espre i tor rpara o fundo da pzlnela e perguntorÌ-rne se queria conÌer.

- Ainda não sei se cluero conÌer ou não - respondi.Virou-se parà o lume, clemorou-se um bocado a olherr

para as chamas conl eì concha ainda rìo ar e depois per-guntou:

- [s1fs zangardo? Estás tão zan)s.ado que não podescomer e neÍìl sabes se qÌÌeres ou não?. . .

- Não, não estou zangado.A velhota pensou aincla um bom pedaço e resÍnungou:- Então estzi bem. se não estás zancado. . ̂

9 I

Page 93: Luis Bernardo Honwana

Luis -BernartÌo I Iorrrr, . i rnzr

E corno '.to dizer isto estivesse virad a para o miúdo,pergl l lr tou-lhe ccrmo se isso lhe interessasse mais do quequalcluer outra coisa.

_- Quito! C) que é que tu estás para aí a mastigar sempârar. Quito-t

Antes qr-re Quito clesinrpedisse a boca paÍa poder res-ponder, a Khatidja berrou lá clo fundo:

- Ì--.qse Quito está a mastigar a carne clne roubou domel-Ì prato seln eLr ver! E, mínha, marrã! Chi? Quito, tu ésum laclrãer - e voltando-se par?r pim - Erninha, estorÌ--te a cl izer, Mano!

O Quito mostrolr n'a palma da rnão tudo o qLre t irouda boca e aclmirolr-se:

- Esta carne, Kati, est.r aqui? troi er Mamã qrÌe mecleu, est'/rs a ouvir? - e pâra mim:

- Não foi, Mano?A essa altura já os rniúdos estavam nr-lm bemeiro des-

graçado e a velha inpôs-se:-shhh! . . .Calou-se tudo nurrì instante rrlenos a Khatidja, que

ainda choramingavaÉ rn inha . . . É m inha . . . E le roubou ! Ch i ! Qu i to

não tens vergonha? Eu v i - te . . .Mas os olÌtros miúdos ajudaram a vell-rota:-Shhh ! . . .

A Khatidja virou-se para eles:- Shhh ! . . .E, desataram-se todos a fazer "shhh".

Corn a colher de pau ainda erguida a velhota olhavapara aquilo tudo. Depois os miúdos fartaram-se da brin-cadeira e voltaralTÌ a comer e o Quito pôs na boca tudo

L ) 2

Page 94: Luis Bernardo Honwana

A velhota

o que t inher na nlão. Sci então é que a veÌhota despejotr acolher no prato do miúdo. Antes de lhe pôr cari l pensor-Ìum bocado e voltou a servir- lhe ourra e or-rrra colheradade arroz. Quando o miúclo se ia embora perglrntcìLÌ-mecom um ar distrzrído:

- Mas é verdade cìuc não sabes se cllleres confer ot-lnão?

- Bem, e se er'r quiser? (Aborrecia-rnc aqtrela insis-tênc ia, caramba!) .

A velhota pareceLì ficar erflita. Espreitolr para o fundoda panela e sorriu-se prrra rlinr conìcl qLre a desculpar-se:

- É que só há ucoco!Lá dos cântos os miúclos conìentzìrarn: Chi!! A uco-

co?! O Qui to fez "shh" e tudo se pôs a fazer "shh" .

A velhota berrc>u e os t'- iúclos continLrararrÌ a comer.- E então porque é que ins is tes enì perguntâr 'se

quero comer? Iì o que é que tu vais comer/- ELr não tenho fome - responcleu a velhota.- Mas não há nrais comicla, não é isso?-- Eu não tenho fome. . . Não tenho, juro que não te-

nho. Mas se tu quiseres faço chá num instante, qrreres/- Eu talrbém r-rão tenho fornc.- Nesse caso faço chá para os miúdos, parâ eles to-

marern, se continuareln corl fome.

Depois não nre pude furtar ao impulso cle .rbraçar zrvelhota. Ela manteve-se quieta quanclo enterrei a cabeçaentre crs seus seios. Rírrdo-se nervosa, protestou:

- Mas tu não costrÌmas fazer isso. . .E continuou a rir-se até ter coraêIerfi de me apertar

nos bracos.

. ) )

Page 95: Luis Bernardo Honwana

l . r t is Ì lernart ìo I Jonrvarr : r

- Meu f i l ho . . .Senti- lhe os cledos ásperos a percorÍerem-me timida-

mente à cara. Depois beijou-rne e rilr-se muito. Ouvi osmiúdos a rirern-se rambém.

"f'u não costumaÌs ser assim ! O que é que foi. . . Meufi lho... Meu f i lho... Tens fome? Queres que faça dná parar i? "

Eu jaí não onvia aquele tom de voz desde não seiquando e talvez neffÌ me lernLrrasse de o ter ouvido algu-írìa vez.

- ff'a1s1am-te? Diz-me, meu frlho, eles baterarn-te?

Quem foi?- Não, não rne bateram.- Mas eles fizeram-te alguma coisa, não frzerarn? Tu

estás com raiva, não é?Tentei não fafar, mas não tive ternpo de pensar:- Eles destruíram tudo, eles routr ararÍ), eles não que-

rem. . .Senti-a prender a respiração e endurecer ligeiramente.-- Não queres conrar? Não? Não queres?_ Não serve de nada.Os rníúdos aproximaram-se:- Ç 6 n 1 2 , c o n t a . . .- Nada, vocês hão-de crescer, âgora não chateiem.- S im, l r - reu f i lho, há o tempo, o tempo. . . Tudo

hárde rnudar, tudo há-de rnelhorar... E quando eles cres-ce re1n . . .

- F lão-de crescer . . . Pois hão-de crescer n is to. . .- De verdade que não queres contar?- Çe112, contal - e os miúdos rodeavam-nos na

esteira.

( \ À/ -

ïqI

Page 96: Luis Bernardo Honwana

A veÌ l ' rota

Não, eu não contaria. Não fìrr,r para ísso clue vierapâra casa. Além disso, não seria eu a destruir neles fosse oque fosse. A seu teïÌìpo algr-rén-r se encarregaria de os pôrna taiva. Não, eu não contaria.

- Meu f i l ho . . .Acho que rr-re sobressaltei ao ouvir a velhota.- Meu filho, eu não entendo bem o que estás para aí

adizet:, palavra que não entendo. Mas tu tremes, tr: estásou assustac{o ou muito zangado ou outra coiser qualquer, erì que tu dizes não é borrr, pclrqr-Ìe estás a tremer, palavraque estás a trerrrer...

Talvez a velhota tivesse razão porque deve ser raro aveihota não ter razão. Mas de todar a rlaneira isso não mo-dificava nada. Eu não contaria e pronto; e ainda que con-tasse de que serv i r ia isso? Si rn, de que serv i r ia , se aporcaria, o raio da porcaria daqr-ri1o tudo viria para aque-les miúdos coln outros porrrlenores, em outras circunstân-c ias e com outros nomes?

- Eh, vocês todos! Dormir ' , anda! Sim, dormir, oque é que estão a o lhar? Dorrn i r ! . . .

ÌVIas. . . quem sabe? E tambénì porque não acredi tar?Porque não acreditar en-r qualquer coisa de giro? Comopor exemplo que a formação dos miúclos fosse diferenteda minha e qr-re lhes conferisse tula conclescenclência paracom aqlrelas coisas, rÌrfla condescendência que as minhascoordenadas emocionais não comportavam... E que tal-vez, eLÌ sei 1á, que talvez pala com eles o tempo obrigassea mais compreensão, rnais carinho, sim, a r lais hurnanida-de... Porque talvez a velhota t irzesse razã<>, há o tempo,o t empo . . .

- MeLÌ f l lho os rniúdos iír se foram...

9 5

Page 97: Luis Bernardo Honwana

Luis l ìcr t - r : r tc lo l Iot ru ' i rna

- Sim, eLÌ \/c)rÌ dizer: eles bzrteram-me.- Quen-r fcri? Mas isso não é tudo, tu tremes...- Sinr. isso não é tudo. E mé não é nada. Eles f ize'

rzllrì-me pequenino e conseglrem qì-ìe eu nre sinta pequeni-no. Sim. é isso. Isso é que é tudo. E porquê-/ Eles lrem odizer-r-r de alto. E tudo cai, cai de repente, com barulhoaqui c Ìent ro, e ca i e czr i e ca i . . .

- Bem, acho qr-re o rlelhor é não querer saber dissopara nada, porque não percebo nada do que tu d izes. . .

Ficámos silenciosos os clois, e cle tal maneira estáva-mos abraçados que não sabia se era realmente ela que tre-mia. Tenho zr impressão cle clue só neste rrromento é que vias chamas, ernbora estivesse há muito ten-ìpo a oÌhar paraelas. () seu calor era bom e envolvia-nos, mas para issoelas torciarrÌ-se nuÍn baiÌado estranhamente rubro. Só dei-xei de as olhar quando a velhota falou duma rnaneira queme fez logo L)ensar que ela tinha estado um bom pedaço amatutirr na maneira de nre dizer qualquer coisa que aÊnalnão disse. Acho que ela só disse:

-- ffisu filho. . .

,rïl

1II

l

I

Il

I

L) (-t

Page 98: Luis Bernardo Honwana

Papá, cobra e eu

Page 99: Luis Bernardo Honwana
Page 100: Luis Bernardo Honwana

Logo que o Papá saiu da nresa para ir ler o jornal nasala de visitas, saí também. A Marnã e os oLrtros deviamdemorar-se uÍÌf pouco mais, mas eLÌ não tinha vontade ne-nhuma de ficar ali.

Assim que rne levantei a Mamã olhou paramim e disse:- Anda cá ! Deixa-rrle ver os teus olhos ! . . .Aproxirnei-me dela devagar porque quando a Marnã

nos chama nunca se sabe se está zangada connosco ou não.Depois de me ter levantado as pálpebras corn o polegar damão esquerda, para me observar bem os olhos, voltou-separa o prato e eu fiquei à espera que ela me rnandasse em-bora ou dissesse orÌtra coisa qualquer. Acabou de mastigar,engoÌiu e levantou urn osso para espreitar pela cavidade,fechando urn olho. Depois voltou-se precípitadarnentepara rnim e olhou-rne corn cara de espanto:

- fbns os olhos cheios de veias encarnadas, estás fra-co e andas sem apetite.

Ela falava cle tal maneira que rrÌe sentia obrigado a cli-zer que não tinha culpa nenhuma, qr-re era sem querer. To-dos os outros olhavaur rluito curiosos, a ver o que é queaquilo dava. A Mamã voltou a espreitar piìra clentro doosso. Depois começou a chupá-lo, de oÌhos fechados, e sóse interrompeu para dizer:

L ) 9

Page 101: Luis Bernardo Honwana

Ltr is Bernardo FIonu. ' :rna

- Alr-tanhã tomas um purgante...Assirn qt-re ouvirarÌr isso, os olltros começaram a co-

rrrer corÌf rruito ruído e mr-Ìito depressa. Como a Manlrtãnão parecesse ter vontade de dizer mais narda, fui para oquintal.

E,stava tudo cheio de calor e não se via ninguém naestrada. Por sobre o mr-Ìro do quintal três bois olhavampara mim. NaturahTìente voltavam do tanque de água daAdministração e tinham ficado a descansar à sombra. Lálonge, por sobre os cornos dos bois, os tufos cinzentos dernicaias poeirentas trerrriarn conÌo se fossern chamas. Aolonge tudo oscilava, e viam-se ÍTìesÍÌro as ondinhas que seelevavam das pedras da estrada.

Sentada numa esteira à sombra da casa, a Sartina al-moçava. Enquanto mastigava devagar, olhava em volta eàs vezes afastava coÍn rÌrn gesto distraído as galinhas quese aproximavaÍn à espera das migalhas. Mesmo assirn, devez em quando os frangos mais atrevidos pulavam para aborda do prato e fugiam com torrões no bico. Quandoisso acontecia, os ot-rtros perseguiam-nos e todos clisputa-vam o bolínho, que por fim ficava tão esfrangalhado quemesrno os pintainhos maís peqrÌenos apanhavarn bocadospara debicarr.

Quando me viu a andar por ali perto, a Sartina puxoua capulan a para baixo, de rnaneira a cobrir melhor as per-lras e, lrlesÍrìo clepois clisso, conservou urna rnão espalma-da à frente dos joelhos, pensan<lo, muito convencida, queeu queria espreitar alguma coisa. Mesmo quando eu Ínevirava para outro lado qualquer, ela não tirava de lá a rnão.

O Totó apareceu a andar devagar, respirando de lín-gua de fora, e avançou para oncle estavâ a Sartina. Cheirou

1 0 0

Page 102: Luis Bernardo Honwana

Papá, cobra e eu

o prato de longe e virou-lhe as costas, dirigindo-se parà asombra do muro, à procura de um lugar fofo onde se deitar.

Quando o achou, enrolou-se corrr o focínho quâse em cirnado raLro e só parou quando a barriga assentolr no chão. Bo-cejou sem pressas e depois deixou cait a cabeça entre as pa-tas. Contorceu-se ligeiramente, à procura de urna posiçãomais cómoda e cobriu as orelhas corrr as patas.

Quando acabou de comer, a Sartina olhou insistente-mente para mirn antes de afastar a mão corn que rapava oespaço entre os joelhos, e só quando se convenceu de queeu não a estava a olhar é que se pôs de pé nunì pulo. O pra-to estava tão lirrrpo que ate brilhava, mas ela, depois de rnelançar um último olhar de desconfr.ança,levou-o para a se-lha da louça suja. Andava com um ar cansaclo e part ia-setoda pela cintura quando as nádegas surbiam e desciamdebaixo da capulana. Debruçou-se sobre a selha, nras ctlmonessa posição as pernas lhe ficassem todas à rnostra, atrás,foi para o outro lado da selha para eu não ver.

A Mamã apareceu à porta da cozinha, ainda corn oosso na rnão e antes de charnar a Sartirta para ir tirar amesa, olhou em volta para ver se estava tuclo em orc{ern.

- Não te esqueças de dar corlida ao Totó - acres-centoLr ela em ronga.

A Sart ina dir igiu-se 1âpara dentro,l impanclo as rnãosà capulana e depois szriu corrì a imensa pilha de pratos"Numa segunda viagen-r trouxe a toalha de mesa e sacudiu--a nas escadas. Enquanto as galinhas se atiravaÍr. às miga-lhas, insul tando-se e batendo-se, dobrou a toa lha ernduas, ern quatro, erfi oito e voltou lá para c{entro. Quandosaiu novamente trouxe o prato de alumínio conr a comidado Totó e foi pô-lo ern cima da caixa de cimento do contâ-

1 0 1

Page 103: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernar<io L lonw:rna

dor de âgua. Mesmo antes de acabar de colocar o praro, oTotó, que não precisa que o chamem p^ta ir corneq já setinha atírado à comida. Com o focinho desfez rapidamen-te o monte de arroz à procura dos pedaços de carne que iaengolindo gulosarnente. Quando já não havía rrrais carne,afastou os ossos e comeu urn pouco de arroz. As galinhasestavarr todas à volta mas não se aproximavam porque já

sabiam conlo é o Totó quando come.Depois de engolir um por-rco de arroz o Totó fingiu

não querer rnais e foi sentar-se à sornbra das canas-de-açú-car à espera do que as galinhas fossern fazer. Estas foram-seaproxirnando muito a medo da comida do Totó e arrísca-rarn Lrma e outra debicadela, todas desconfiadas. O Totóollrava para aquilo tudo sem Íãzer urn único movirnento.Anirnadas pela irnpassibilidade do cão, as galinhas atira-ram-se com gosto âo arroz, arntando LÌm pandemónio des-graçado. Foi então que o Totó se fez âo monte e distribuiupatadapor todos os lados, rugindo como um leão zangado.

Quando as galinhas desapareceram, fugindo para todos oscantos do quintal, o Totó foi outra vez para a sombra dascanas-de-açúcar, à espera qt- e elas se juntassem novarrrente.

Autes de ir para o serviço o Papá foi ver a capoeiracom a Marnã. Apareceram os dois à porta da cozinha, aMamã c<rrn o avental já posto e o Papá com um palito naboca e o jornal debaixo do braço. Quando passararn pormirl o Papá dizia "ÍÌão pocle ser", "não pode ser", " isto

não pode continuar assim".Irui zrtrás deles e quando entrámos na capoeira a

Mamã virou-se para- mirn corno se fosse <fizer qualquercoisa, mas desist iu e avânçou para as grades de rede.

t o2

Page 104: Luis Bernardo Honwana

Papá, cobra c er t

Atrás da capoeira estavam arrìontoadas urna data clecoisas: tubos que sobraraln quando se fez o moinho damachamba, blocos que foram traziclos quando o Papá ain-da pensava elrì fazer uma dependência em alvenaria, cai-xotes, tábuas de madeira, trapos e eu sei lá que mais. Asgalinhas às vezes metiam-se por entre aquelas coisas todase iam pôr os ovos onde a Mamã os não pudesse ir buscar"A um canto da capoeira estavâ uÍìra galinha rìrorta e âMamã disse apontanclo para ela:

- Qsnr esta jâ não sei quantas galinhas morrem deum dia pa'ra o outro. Os pintos desaparecem simplesrnen-te e os ovos tarnbém. Mandei deixar esta galinha aqui parà

tu veres. Eu jâ estou farta de te dizer e tu não queres

ouv i r . . .- Está bem, está berl, tnâs o qlre é que tu queres que

eu f aça? . . .- Olha, as galinhas atr)arecem mortas e os pintos de-

saparecem. Ninguérn entra na câpoeira durante a noite enern se ouve qualquer barulho. Tens de descobrir a coisaqì-re rne mata as galinhas e me conÌe os pintos...

- E o que é que achas qr-re é?A Marnã pareceu ficar zartgada L)orque respondeu em

ronga:- As galinhas são morclidas e os pintos são engoli-

dos. Só pode ser a coisa que pensas que é se é que a tua ca-beça esÍ^ a pensar em alguma coisa...

- pslf bern. Amanhã de manhã mando lÌìatar a co-brzr. Como é clornirrgo é fá"cíI arranjar genre para isso.Amanhã ! . . .

O Papá ia a sair da cap-roeira quando a Mamã disse, já

em português:

1 0 1

Page 105: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernardo Ilorrwana

- Mas amanhã de manhã sem falta porque não que-ro ver nenhÌìrn dos rneus filhos mordido por uÍTra cobra!...

A Mamã esperolr qLÌe o Papâ desaparecesse atrás daesquina da casa, a carninho do serviço, paÍa se voltar patamim:

- Ì{unca te ensinaram que quando o teu pai e a tuamãe estão a conversar não deves ficar a ouvir? Os rneus fi-lhos não costrÌÍÌrarn ser mal-educados. A quem é que tu sais?

E voltou-se pâra a Sart ina que estava encostada àrede da capoeira:

- O que é que tu queres? Alguém te chamou? Eu es-tou a faTar coÍÌr o rnell filho e tu não tens nada que ouvir!

A Sartina não devia ter compreendido aquilo tudoporque não percebia bem o português, rnas afastou-se darede rnuito envergonhada e foi outra vez pata a selha.A Manrã continuou a falar paÍa mim:

- Se tu pensas qrìe rne hás-de apanhar distraída paralevares a espingarda e ires caçar, estás enganado. Ai de tise fazes uma coisa dessas! Ponho-te corn o rabo em sân-gue! E se julgas que ficas aqui nâ capoeira tarnbém estásenganado. Não estou disposta a ter maçadas por tua cau-sa. ouviste?

A Mamã devia estar muito zangada porque naqueledia ainda não a tinha ouvido a rir corno nos otltros dias.Depois de falar comigo, saiu da capoeira e eu fui atrâs dela.

Quando pâssorÌ pela Sartina perguntou-lhe ern ronga:- ç ;az mui to ca lor debaixo das tuas capulanas?

Quem é que te disse que hás-de vir parà aqui rnostrar astuas pernas a toda a gente?

A Sartin a não disse nada mas deu a volta à selha econtinuolu alavar os pratos debruçada sobre o outro lado.

t o4

Page 106: Luis Bernardo Honwana

Papá, cobra e eu

A Mamã foi-se embora e eu fui sentar-me onde antestinha estaclo. Quando a Sartina deu por isso virou-se paramim zangada e depois de rne olhar conr os olhos cheios detaíva deu outravez a volta à selha e corneço:u a carrtar uÍnâcantiga monótona, daquelas que ela sabia e às vezes leva-va uma tarde inteira a repetir, quando se zar'gavà.

O Totó já se tinha aborreciclo de brincar corn as gali-nhas e já tinha acabado de comer o atroz. Estava agiora adormir outrâ vez corn âs patas em cirna das orelhas. Devez em quando retrolava na poeirer e -6cava deitado de cos-tas corn as patas dobradas no ar.

Fazia rnuito calor e eu não sabia se havia de ir para acaça como era costl lme todos os sábados, ou se havia de írà capoeira para ver a cobra.

O Madunana entrou no quintal corl unr rrfonte cle le-nha às costas e foi arrumá-lo perto do sítio onde a Sartinalavava os pratos. Esta, quando o viu, deixou de cantar etentou disfarçar um sorriso desajeitado.

Depois de olhar perra todos os lados, o Madunanadeu um beliscão na nádega da Sartina, que ficou cclrrì Lurlrisinho envergonhado e responcleu-lhe com uma palmadasonora no braço. Os dois riram-se satisfeitos sern olharum para o outro.

O Nandito, oJoãozir-rho, a Nelita e a Gita saíram nes-se mornento a perseguir Lrma bola e puseraffÌ-se às carrela-das no meio do quintal, muito diverticlos.

A Mamã âparecelÌ à porta cla cozinha, vestida patasair. Logo que ela surgiu o Maclunana baixou-se rapida-mente, fingíndo procurar qualquer coisa no chão e a Sar-tina voltou a debruçar-se sobre a selha.

1 O 5

Page 107: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernardo Honr: l 'ana

- $26ina, vê se consegues não partir nenhum pratoatê acabares. Despacha-te. Tu, Madllnana, deixa a Sartinaeír, pàz e mete-te na tua vida. Não quero poÌÌcas vergonhasaqui. Se vocês contirÌuâm com isso, digo ao Patrão! Tu,Ginho (agora falava em português) toma contâ da casa elembra-te de que jânão és nenhurna criança. Não t>atas ernninguém e não deixes os miúrdos sair do quintal. A Tina e aLolota estão 1á dentro a fazer a\l:rnpeza e não as deixes fa-zer maluquices. Sartina (voltou a falar em ronga), quandoacabares isso põe a chaleira ao lume pa;ra o lanche das cri-anças e manda o Madunânâ comprar o pão. Não deixes osmiúdos acaL>ar uÍÌl pacote de rnanteiga. Ginho (agora eraem português) toma conta de tudo que eu volto jâ, vou alià casa da comadrcLúcía conversar um bocado.

A Mamã ajeitou o vestido e olhou em volta para verse estava tudo em ordem e depois foi-se ernbora.

O cão do Sr. Castro, o Lobo, espreitou o Totó 1â daestrada. Logo que viu, o Totó avançou e puseram-se osdois a ladrar uÍn parâ o outro.

Todos os cães da vila tinham rnedo do Totó e llresmoos maicres fugiarn quando ele se zangav^. Apesar de pe-qÌÌeno, o Totó tinha urn pêlo grande e branco e quando seaborrecia com qualquer coisa eriçavzr-o corno os gatos, fi-canclo colrl um aspecto terrífico. Isso devia ser a causa dotemor dos outros. Norrnalmente afastava-se deles e prefe-ria divertir-se corrr as galinhas. Mesrno às cadelas, só emcertos rnoÍnentos é que atLrrava. Para rnim era um cãocom "pedigree", ou por outra, "pedigree" só podia ser oque ele possuía. Tinha muito de mandão e a única pessoa

de qr-rem tinha medo eta a lvIamã, emLrora esta nunca lhe

1 0 6

Page 108: Luis Bernardo Honwana

Pirpá, cobra e eu

tivesse batido. Para cl tirar de cima de uma cadeira era pre-ciso que a chamássemos, porque rnesmo aoPap.á, rosnavacom os dentes à rnostra.

Os dois cães estavam frente a frente e o Lobo já tinlnacomeçado a reclrar, cheio de rneclo. Nisto passou o cão doSr. Reis, o Kiss, e o Totó pôs-se a ladrar tambérn para ele.O Kiss fugiu logo, r-Ìlas o Lobo foi atrás dele, abocanhan-do-lhe o traseiro, e só o deixou quando já gania, cheio dedores das mordidelas. Quando o Lobo voltou parajuntodo f-otó os dois iá erant zrnigos e plrseram-se a brincar.

O Nandito veio sentar-se zro pé cle mirn e disse-me,sem qlre eu lhe perguntasse, que jâ estava cansado de jo-gar à bola.

- E porque é que vens para aqui/- Til não queres?- Eu não disse isso.- p11[6 f içç.- F ica, se quiseres.Levantei-rre e ele levantou-se tambérl.- Onde é que vais? Vais à caça?- Não.- p11[62

- Não rne chateies. Não gosto cle falar corn garotos.- Tu também és garotci! A Mamã ainda te bate...- Se voltas a dizer isso vou-te à cara ! . . .- Ps1{ bern, não digo mais.Fui para a capoeira e ele veio atrás cle mim.Os tr-rbos estavar-ìì quelltes e tive cle os tirar colr. a aju-

da de Lrns panos. A poeira que se levantorÌ era densa e sll-focante.

r07

Page 109: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernardo Honwana

- O qrìe é qrÌe estás a procrÌrar? Posso ajudar-te?- Sa i daqu i ! . . .Afastou-s e para urÌl canto da capoeira e pôs-se a chorar.

Quando tirei o últirno bloco de urna rirna, vi a cobra.Era uma rrrarrrtra de cor rnuito escura. Sentindo-se desco-berta enroscoll-se urn pot.rco rnais apertadarnente e levantoua cabecita triangular. Os olhitos briÌharam apreensivos e alíngua negra e bífida palpitou ameaçadora. Recuei até sentirnas costas a rede do cercado e clepois sentei-me no chão.

- Não chores, Nandito.- Tu és rnau, não queres brincar coÍn a gente!- Não chores rnais. Eu depois brinco contigo. Não

chores.Ficámos os dois quietos. A cabecita da cobra pousou

lentamente sobre o anel mais alto e todo o volume deixoude estremecer. Mas os olhitos continuavaÍÍ1 a vigiar-rrreatentaÍnente.

- Nandi to , d iz-me qualquer co isa. Fala! . . .- O que é que queres que eu diga?- Diz o que te apetece dizer. Qualquer coisa. Fala.- Não me apetece dizer nada.O Nandito ainda esfregava os olhos e estava ressenti-

do comigo.- ïa viste alguma cobra? Gostas de cobras? Tens

medo delas? Responde! . . ._ onde é que há cobras?O Nandito levantou-se cheio de rnedo e olhou em volta.- Ncl rnato. Senta-te e fala.-- Aqui não há cobras?- Não. t ra la ! Fala-me c le cobras. . .O Nandito sentou-se muito perto de rnim.

I O 8

Page 110: Luis Bernardo Honwana

Papá, cobra e cu

- Eu tenho muito medo das cobraÌs. A Mantã cfizque é perigoso andar no mato por czÌLÌsa delas. Qr-rando agente anda no capirn pode pisar un-ìa senÌ querer e podeser mordi<1o. Quando urna cobr:a nos morde a gente n-ìc)r'-re. A Sartina diz que para a gente nào morrer clepois deser mordidos por Llnìa cobrar é preciso rnatá-la, queirná-laaté frcar secâ e comê-la. Ela cliz que já corrìeu urrìâ cobra epor isso, nrìesnìo que seja mordida não há-de morrer.

-Iá r ' iste algurna cobra/- Iá ! Foi em casa do Chico!

capoe i ra . . .O moleqlre r ì ìatol Ì-a na

- Como era essa cobra/- Erâ grande, encarnadar e tinhar uma Lroca colfro Lrnr

sapo . . .- (l6512vas de ver LÌrnzì cobra agoraTO Nandito levantoll-se e encostou-se iÌ rnirn, olÌrandc-r

erl volta, muito receclscl.- FIá alguma cobra nesta capoeira/ Tenho mecÌo!

Vanos sa i r daqu i ! . . .- Se queres sa i r va i - te embora. Eu não te chamei . . .- Tenho rnedo de sa i r soz inho! . . .- pn1[s senta-te até eu ter vontade de sair.Ficámos os dois rnuito si lenciosos por url bocado.O Totó e o Lobo estavam a brincar do lado de fora da

rede. Corriam de urrra estaca para a outra, dando a voltaao cercado e recomeçanc1o. Errr cacla estaca p?ìravam e uri-navam de pata levantada.

f)epois entraranr na capoeira e deitararn-se de barri-

[Ìa, pzìra descansar. O Lobo viu a cobra imediatamente ecomeçor-r zr ladrar. O Totó laclror-r também rlas esterva decostas par: l ela.

l 0 c )

Page 111: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernarcìo Ì - Ionwana

- Mano, costrÌrrìa haver cobras errÌ todas as capoeiras?- Não._ Aqui há aÌguma?_-H.â.- [n1[6 porque é que não saímos. Tenho medo.- Se que res sa i r , sz r i . . .O LoÌ:o avançoì.r paÍa a cobra, ladrando cada vez

rnais aflitivamente" O Totó voltou a cabeca mas continuousenl ver nada de estranho.

O Lobo tremía todo nas pernas e escarvava o chãonLrm desespero. De vez ern quanclo olhava para rnirn serncolTìtrlreender a razão por que eu não acudia ao seLÌ alarrne.

- Porque é que ele ladra assim?. . .- É porque viu a cobra.EncurraÌacfa ao fundo do vão da rima de blocos, a

nramba alargou o seu corpo de rnaneira a apoiar-se maissolidanrente. A cabeça assente sobre o pescoço esguio,manteve-se fixa r1o ar, alheia ao movimento do resto docorpo. Os olhitos luziam cclmo brasas.

Os apelos do Lobo erâm agoÍ:a horrivelmente lanci-nalltes, e elrì r'olta do pescoço o pêlo tinha-se-lhe eriçado.

Encostados à rede, aTirs.a, a Lolota e o MaduzÌna es-preitavarl, curiosos.

- Porque é que não vais matar a cobra? - A vozdo Nancli to estava chorosa e ele t inha-se-me agarrado aopescoço.

- Não r re apetece. . .A distância entre a cobra e o cão era de metro e rneio.

Não obstante, ela enterrou a cauda no ângulo que um blo-co fazia colrt o chão e levantou os seus anéis uns dos ou-tros preparando-se para dar o bote. A cabecita triangular

1 1 0

Page 112: Luis Bernardo Honwana

Papzí" colr ra e eu

recr-rou irnperceptivelrnente. Parecendo aperceber-se daproximidade do seu finl o Lobo começ<lLl a ladrar freneti-camente, sem contudo tentar afastar-se da cobra. urnpouco atrás, o Totó laclrarra tamlrérn, tlas já de trré.

Durante fracções de segundo o pescoçcl cla cobra en-clrrvou-se enqlranto a cabeça descaía pâra trás, rnas logoprojectou-se para a frente num movirnento impossível deseguir, e, embora o cão se t ivesse erguido nas patas trasei-ras conlo unr bode, atingiu-o em pleno peito. Livre deapoio, a cauda da cobra chicoteou Ì lo ar, acorì lpânhancloo ondear do últirno anel.

O Lobo caiu <le costas esperneânclo convrrlsivamente ecoffÌ um ganido abafado. A mamba abanc{onou-o irr-reclíatzr-mente e com outro salto clesapareceu por elltre os tubos.

_ A nhokar _ gritou a Sartína.O Nandito atirou-rìle L)ara um laclo e fugiu da capoei-

ra com um berro, antes de desrnaiar nos braços do Maclu-nafia.. O Lobo, assim que se viu livre da cobra fugiu eclesaparecerÌ em n-reia duzia de pulos, rlas ouvímo-lo ganiren-r direcção à casa do Sr. Castro.

Os miúdos começaram todos a chorar senr ter com-preendido o qr-le se t inha passado, e a Sart ina levou oNandito para clentro de casa, transportando-o nos bra-

ços. Só quando os miúdos desapareceram atrás da Sart inaé que chamei o Madunar'a para rxatarmos a cobra.

O Madunana manteve-se, com un-lâ capulana erguidaao alto dos braços enquanto er-r ia removendo os tuboscom um pau de vâssoLlra. Logo qlÌe a cobra aparecelÌ oMadunana atirou-lhe a capulana e desatei à paulada sobreo monte.

1 1 1

Page 113: Luis Bernardo Honwana

Lr r is LJcrrr l rc ìo Honrvaua

Quanclo o Papá regressolr cìo serviço o Nandito já tinhavoltzrcio a si e tinha-se recomposto do abalo chorando co-piosarrnente. A Mamã, que ainda não tinha ido ver a cobra,foi com o Papá à capoeira. Quanclo tarnbém fr-ri para 1á, vi oPapá a rrirar â cobra cìe barriga paÍà o ar corn um pau.

- Eu nerrl qllero perlsar no que LÌrna cobra destaspodia fazer a urrr frlho meu ! . . "

O Papá riu-se:- ()LÌ a qualquer olrtra pessoa. Foi melhor assim.

O que me cLÌsta é pensar qì-re estes quase clois metros fo-ram conseguidos à custa dzrs rninhas galinhas...

E estavam nisto quando o carro clo Sr. Castro parou àfrente cla casa. O Papá foi para lâ e a Mamã foi falar coma Sartina. E,u fui atrás do Papá.

- Boa tarc le , Sr . Castro. . .- Ó Tchernberre, o tner-r cãro perdigueiro aparecelr-

-me rnorto e conÌ o peito inchado. Os meus pretos dizernque veio daqui da tr-ra casa a ganir, antes de morrer. Eunão estou para muitas conversas e só te digo isto: ou pagas

uma in<lernnização ou faço queixa à Administração! Re-solve! Era o rnelhor perdigueiro que jamais t ive...

- Eu acabo rnesrrìo de chegar do serviço e...- Eu não quero saber disso pàra nada! Pouca con-

versa! Pagas ou quê-/- Mas ó Sr . Castro. . .- Sr. Castro coisa nenhurna! São setecentos paus.

E é rnelhor as coisas f icarem por aqui!. . .- Comc> queira, Sr. Castro, mas eu não tenho dinhei-

ro agora. . "- Isso depois veren-ìos ! Espero até ao fim clo mês e

se não pagas rebento contigo ! . . .

I t 2

Page 114: Luis Bernardo Honwana

Papá, col>r-a e err

- Si-. Castro, nós conhecemo-nos há tanto terrrpo enunca . . .

- Isso corrr igo não pega! E,u já sei o que vocês que-renl ! Só eì porrada. . .

O Sr. Castro lneteu-se no c2rrrcl e zìrrancor,r. O Pap,á fr,-col-Ì um bocado a ver o carro a afastâr-se.

_ trilho da mãe !Aproxirlei-me dele e pr,rxei-lhe a rÌlanpïzl clo casaco._-Papá, porqrre é que não clisseste isso à frente dele?Não me respondeu.

Mal acabárnos de jantar: o Papá clisse:- Mulher, mander a Sart ina t irar a mesa deçrressa.

Meus filhos, vârrros rezàn Hoje não vamos ler a Bíblia. Va-mos rezar, sirnplesmente.

Quando a Sart ina acabou de t irar os pratos e ârru-morÌ a toalha o Papá começou:

-Tz1ar,a,ha ku dumba Hosi ya t i lo ni misaba...

Quando acabou estava de olhos vermelhos._ Amen I_ An - ten r . . _A Mamã levantou-se logo e perguntou como se falas-

se de LÌrna coisa sem importância nenhurna:- Mas afrnal o cÌue é que queria o Sr. Castro?- Não tem nada de especia l . . . Não in teressa! . . .- pslf bem, contâs-me 1á no quarto" Vou arrurrìar as

camas dos miúdos. Tu, Gínho, amanhã acorclas ceclo paratomares c t purgante! . . .

Quando se foram todos embora perguntei ao Papá:- Porque é qrÌe o Papát reza qrrando está muito

zangado?

Page 115: Luis Bernardo Honwana

Luis l lerr rardo I lonrvarr i l

_ porque Ele é o melhor conselheiro.- O que é que Ele lhe aconselha?- Ele não me aconselha. Dâ-rne forças para conti-

nua r . . .- O Papâ acredita muito n'Ele?

O Papá olhou-me como se rrre visse pela primeiravez

e depois explicou:- Meu filho, tem de haver ÌrÍnìa esperança! Quando

um dia acaba e sabemos que amanhã será tudo igualzinho,telrros de ir attanjar forças para continuar a sorrir e conti-nuar a dizer "isso não ten-ì importân cia" .. . Ainda hoje vis-

te o Sr. Castro a enxovâlhar-me! Isso foi só um bocadínho

da ração de hoje... Não, meu f i lho, rrìesmo que isto tudosó O ne€fue, E le tem de ex is t i r ! . . .

O Papá paroì.r de repente e sorriu nurn esforço. De-pois acrescentolr:

- Mesnro um pobre tem de ter qualquer coisa... Mes-

Í Ì ro que se ja só uma esperança! . . . Mesmo que e la se jafa l sa ! . . .

-Papá, eu podia ter evitado que o cão do Sr. Castrofosse mordido pela cobra. . .

O Papá olhou-me corn uns olhos cheíos de carinho edisse surdamente:

- Não tern importância. .. Ainda bem que foi rnor-d i do ! . . .

A Marnã apareceu à porta.- Deixas o miúrdo ir dormír ou não?...

Olhei para o Papâ, lembrámo-nos do Sr. Castro e

rirno-nos corrr muita vontade. A Mamã não comDreendeu.- Vocês estão cloidos?

1 1 ÀI I ï

Page 116: Luis Bernardo Honwana

Papá, col>ra e eu

- Sim, já era tempo de sermos doidos - foi o Papáque respondeu sorrindo.

O Papá já ia a caminho do quarto rnas devo ter faladodemasiadamente alto. De qualquer maneira foi melhorque ele tivesse ouvido:

-Papâ, eu às vezes... Não sei bem, mas havia já al-gì-rÌÌf te1:rÌpo que estava sernpfe a pensar que não gostavade vocês todos. Desculpa. . .

'A. Mamã não percebia o que nós dizíamos e por issozângoLr-se:

- Parem com isso senão. . .- Sabes, melr filho - o Papá falava pausadamente e

gesticulava muito antes de cada palavra - sofre-se mui-to . . . Mui to , mui to , mui to ! . . . A gente cresce com mui tacoisa cá dentro rnas depois é difícil gritar, tu sabes...

-Papâ, e quando o Sr . Castro v ier?. . .A Mamã iabarafustâr rrìas o Papá seÉlurou-lhe os om,

bros firrnemente:- Não é nada, rnulher, mas o nosso filho acha que

ninguém rnonta em cavalos doidos, e qÌÌe nos famintos emansos é onde lhes dá rnais jeito, percebeste? Quandoum cavalo endoidece dá-se-lhe um tiro e tudo acaba, masaos cavalos mansos rnata-se todos os dias. Todos os dias,ouviste? Todos, todos, todos enquanto eles se aÉJuentarernde pé ! . . .

A Mamã olhava-o cle olhos esbugalhados.- Sabes, rlulher, tenho medo de pensar qtre isso sejzr

verdade, rrras tzìmbém não tenho coragem pâra lhe dizerque é rnent i ra . E le vê. . . A inc la hoje v iu . . .

O Papá e a Mamã estavam já no qlÌarto e por isso nãopude ouvir mais, rrìâs mesrno de lá, a Mamã berrou:

1 1 5

Page 117: Luis Bernardo Honwana

l-uis Bernzrrcìo I Ionrr,,ana

- Amanhã tornas purgante qr-re é pàra saberes ! Eunão sou o teu pai que se cleixzr levar...

O luar inundava a rninha cama cle amarelo e era agta-dável sentir a pele a arrepiar-se com a sua carícia fria. In-compreensivelmer-ìte veio-rrìe aos sentidos a sensaçãolrlorna cio corpo da Sartina. Por rnoÍnentos consegui retera sua preserlça qrìase tísica, e desejei adormecer corn ela

L)ara não sonhar corn cobras e cães.

1 1 6

Page 118: Luis Bernardo Honwana

ï ì

ì

As rnãos dos preros

Page 119: Luis Bernardo Honwana
Page 120: Luis Bernardo Honwana

ï

J á não sei a que propósito é que isso vinha, rÌlâs o Se-nhor Professor disse urn día que as pahnas clas mãos dospretos são mais claras do que o resto do corpo porqueainda há poucos séculos os avós deles andavam cotn elasapoiadas ao chão, corno os bichos do rrrato, sern âs expo-rem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto clo corpo.Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de di-zer na catequese qlÌe nós não prestávamos nlesmo paranada e que até os pretos eralTì melhores do que nós, vol-tou a falar nisso de as rnãos cleles serem mais claras, clizen-do que isso era assim porque eles, às escondidas, andavamsempre de rnãos postas, a rezan

Eu achei urn piadão tal eì essa coisa de as mãos clospretos serelrl mais claras que aÉÌora é ver-rne a não largarseja qr-rem for enqtranto não rne disser porque é qr-re elestêm as palmas das mãos assirn mais claras. A Dona Dores,por exeÍnplo, disse-me qr're Deus fez-lhes as rnãos assinrmais claras para não sujarem a cornicla que fazenr para crsseus patrões ou quzrlquer outra coisa que lhes rrranclem fa-zer e que não deva ficar senão lirrrpa"

O Senhor Antur-res dzr Coca-Cola, clue só âpzìrece naìvila de vez em quando, quando zls cociì-colas das cantinasjá tenham sido todrrs vendidas, cì isse que tudo o que nle t i-

l 1 c )

Page 121: Luis Bernardo Honwana

Ì , t t is Belui r rc lo Ì {orru.r rn i t

nham contado era alcìrabice. Claro que não sei se real-mente erâ, nlas ele garantiu-rne que era. Depois de eu lhedizer cpre sirn, que era aldrabice, ele contolÌ então o quesabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:

"Antigamente, há rnuitos anos, Deus, Nosso Senhor

Jesus Cristc-r, Virgern Maria, São Pedro, rnuitos outros san-tos, todos os anjos que rìessa altura estavarrì no céu e algu-mas pessoas qlre tinharn rrrorrido e ido pafa o céu fi.zeran'tuma reunião e resolverat;rt fazer pretos. Sabes como? Pe-gararÌì em trarro, enfiaram-no em moldes usados e parâcozet o barro clas criaturas levaraÍn-nas para os fornos ce-lestes; conro tinharn pressâ e não houvesse lugar nenhum,ao pé do brasido, pencluraralTì-nâs nas chamines. Fumo,fumo, furrro e aí os terÌs esclrrinhos corno carvões. E tuagora qLreres saber porque é que as mãos deles ficarambrancas? Pois então se eles tiverarn de se agattar enquan-to o barro cleles cozia? !"

Depois de contar isto o Senhor Antunes e os orÌtrosSenhores que estavan-r à minha volta desataram a rir, todossatisfeitos.

Nesse nìesrno dia, o Senhor Frias chamou-me, depoisde o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me quetucio o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca abertaera urna grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobreisso clas mãos dos pretos era o que ele sabia: qr.re Deusacabav:r de fazet os homens e mândava-os tomar banhollulrì lago do céu. Depois do banho as pessoâs estavarÌbranquinhas. Os pretos, colTìo foram feitos cle macln-r gaàae a essa hora a ítgua do lago estivesse muito fria, só tinhamrnolhado as palmas das rnãos e as plantas dos pés, antes dese vestirem e virern para o mundo.

1 2 0

Page 122: Luis Bernardo Honwana

, {s nràos r Ìos l r retos

Mas eu l i num l ivro, que por acaso falava nisso, queos pfetos têm ars nrãos assirtr mais claras por viveretll en-curvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgíniae de rnais não sei 2ìonde..Iá se vê que a Dona Ì lstefânia nãoconcordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por asmãos deÌes desbotarem à fbrça de tão lavadas.

Ììem, eu r-rão sei o que rrá pensar disso tudo, rìfas arterdacle é qr-re ainda que calosas e greradas, as mãos dun-preto são sernpre mais claras clue todo o resto dele. Essa éque é essa !

A rninha mãe é a úniczr que derre ter razão sobre essaquestão de as tnãos de urn preto serem mais claras clo queo resto do corpo. No dia em que falárnos nisso, eu e ela,estavar-lhe eu aincla a contar o clue iá sabia dessa questào eela já estava farta de se rir. O qt.re archei esquisito lbí queela não me clissesse logo cl qr-le pensâvâ disso tudo, quarÌ-do eu quis saber, e só t ivesse respondido depois de se fãr-tar de ver que eu não rr le cansava de insist ir sobre a coisa,e nlesrrro assinr a chorar, agarraclr à brrrriga colrlo qLleffÌnão pode mais de tanto rir. C) c1r-re ela disse f<ri nrais c-llr rr-ìe-nos isto:

"Deus fez os pretos porque t inha cle os haver. Tinhade os haver, rrìeu filho, Ele pensolì que realnrente tinha deos har,'et... I)epois trrrependerr-se cìe os ter feito por-qlre osclutrcls l-rorlens se riam cleles e lerravanl-llos piìra as czìsâscleles para os pôr a selvir cclrlìcr escravos clLÌ potÌco nrais.M'.rs como Ele já os não puclesse fazer ficrrr todos brancc-rsporqrre os qLle já se t inhanr habituaclo ar vê-los pretos re-clarnariam, fez colrr que zìs palmas das mãos cleles ficassernexactanlente cclrxo trs palmas cl:rs t lãos dos outros ho-n lens. E sabes porque é c lue fo i r Claro qr- Ìe não sabes

1 2 1

Page 123: Luis Bernardo Honwana

'ry'j

t

Luis Bernardo l-Ionrvana

e não admira porque muitos e muitos não sabem. Poisolha: foi para Ínostrar que o qtle os hornens fazern é ape-nas obra de hornens... Qu. o qÌre os honrens fazem é fei-to por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo

sabem que antes de serern qualquer outra coisa são ho-mens. Deve ter siclo a pensar assim que Ele fez com que asmãos dos pretos fossem iguais às rnãos dos homens quedão graças a Deus por não serem pretos".

Depois de <lizer isso tuclo, a minha mãe L'eijoll-lïìe asmãos.

Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia apensar que nr-rnca tinha visto Lrma pessoa a chorar tantosern que ninguérl lhe tivesse batido.

1 2 2

Page 124: Luis Bernardo Honwana

Nhingui t i rno

Page 125: Luis Bernardo Honwana
Page 126: Luis Bernardo Honwana

As R olas

Pouco antes do início clas colheitas, as rolas reúnerr--se nas matâs que divideÌrf as macharnbas do vale" Duranteduas ou três semanzìs, ern trandos Íìunlerosos, sobrevoamos carnpos etrì largos círculos. Nesses voos as rolas clemar-cam do ar os carnii-rhos ql-Ìe os tractores e os lavradoresutilizam mais frequentemente e, cle posse desse porme-not pfepararrÌ a estratégia 1]ara o ataque às esçrigas acaba-das de torrar ao sol pocleroso cle Setembro.

De vez err- quando duzls, três roÌas, seis no máximo,destacam-se cla tral'ectória do resto do banclcl e polrsaì11Ìnas macharml:as para provar os gr'àos.

Vários dias clecorrenÌ neste período cle reconhecimen-tcl ncl futuro carnpo cle operações, rfias, em cclrfipensação.na manhã em qr're scliì a orclem cle atacar', o bando é dirigi-do pelos guias para as uachar-nbars onde o bago de milho élr- ais pequeno e mais redc,ndo, onde o pé cla planta nãoteve tempo de crescer par?Ì além de um llfetro clo chão.

Por uma questão cle segurzrnça, o bzlndo proctrra co-brir áreas não nruito sulcaclas pelos carminhos dos homensc dos tractores. Mas, ÌÌlesrrìo depois cle tomacla essa medi-cla cle precaução, uma dezena cle rolas, geralmente das

r25

Page 127: Luis Bernardo Honwana

*q

I-uis llernardo I-{onrv:rna

Inais lrovas, crga:nizam um cordão de vigilância que bor-deja toda a superfície de actuação do bando.

Com o serÌ colarinho negro, recortado no torn palha--arroxeado das penas, a rola é uma das aves mais antipâtí-cas da criação. Pelo menos assim parece estar estabelecidoentre as populzrções das pequenâs viÌas que, subsidiáriasda actividacle agrícolzr, <Jisputam às rnacharnbas e às matasde micaias os terrenos do vale do Incornáti.

Essencialmente prâtica, a rola sacrifica no seLl voo agraça de uma pirueta e a amplitude de uma curváì à neces-sidade de chegar rnais depressa. Ninguém se lerrbra deter visto urrra rola a deixar-se embriagar pela carícia dovento, como frequentemente acontece à anclorinha; nin-gr-rém pode jurar qlle, coÍrìo o abutre, a rola se entregue noseu vc)o ào prazer sensual de cleslizar ccllrtra o azul pasto-so cìo espaço, colrì as aszrs todas clesfraldadas; por certcrtamtrém ninguém ouviu clizer que uma rola tenha passadoLÌn-ìa manhã inteirâ a catar piolhos no ventre, zr esttrfar opeito e a alisar a penlrgern, corrìo faz a preguiçosa sécua.

Com os olhitos neÉìros senìpre vigilantes, a rola viajanaesteira clos grãos e volta pontuahlente todos os anos, sema-nas antes do início das colheitas. Reprocluz-se enquanto vaie volta e engorda calnramente corrl o tempo. Engorda eeneéIrece.

C) seu cantar, que não telfì tenÌpo cle ser musical, é ime-dizrtamente triste; é uma espécie de refiIalrço ror-rco e agres-te. Às vezes, sencio monótono, é clescritivo e nostálgico-Nunca lrorém poético ou divagzrnte: é sempre horrivelmen-te directo.

L 2 6

Page 128: Luis Bernardo Honwana

Nl-ringuirirncr

Cantando, a rola não lzrmenta, como fazel;t muitos ou-tros pássaros, acLÌsa. Entristece o vale. Torna desproposita-do o verde dos campos e insípiclo o azul intenso do ceu.

Quando o visgo adocicado do bago cle rrrilho seca e aespiga endurece, c> \/ento levanter do chão das nrachamb,rse do seio das rnatas a poeira adormecicla clesde as últ imaschuvas. O céu to|r-ìa-se parclo e clescai por sobre as nìa-chambas. Animado, o vento sobe e clurante clias redemoi-nha espirais de Íoli-ras secas, rotrbadas ao cl-rão das n-ratas,assustando as rolas> cllÌe fogem dos carnpos.

Depois as mzrchambas cobrem-se cle eìmarelo e, rnaclu-ros, os grãos se desprendem dars espigas. O vento da poei-ra já estâ farto de se eslìapar pelos espinhos vibrantes dersmicaías e já entonteceu de tanto redemoinhar. As rolas vol-tatrr iìo áìtaque, refeitas do susto e l-rabitr-raclas ao zunir con-tínuo e inofensivo do vento. Então chega o nhinguitimo.

Nuvens apressaclas escaparì-se dos nrontes Litrom-bos, e clescenclo a encosta, ?ìtravessam o vale. O vento dapoeira cessa e recolhe à profundiclacle c'las matas do outrolac-lo clo rio. O zrr ;rára; os bicl-ros truscam iìs tocas e as mi-caias nlras retalham firmemer-Ìte cl céu cinzento.

O nhinguitin-ro irrompe pelo vale e varre instantanea-melfte er poeira que enche o ar. Célere, vasculha as mataìs,

demuba os pés cle mili-ro e clobr.r as micaias, qLre gernernde aflição.

As rolas procr-rralrl refúgic-r no mais recôndito cla fo-thagem espessa das f igueiras que segurân-Ì o r io no seu lei-to . Ì ìnqUanlo as r ì ì i l is l lovas sc l rper [ar ] ì un las às outras,trernendo cle rneclo, as mais i<Josas comentzìlrl cl telnpocolrl o seu arrulhar soturno.

1 2 7

Page 129: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernarcfo Honr,r'ana

Duas ou três rolas, seis no máximo, perfurarn nervo-sa.mente o espaço, pof sobfe as rnachambas, avisando dosperigos da tempestade e concluzindo a retirada.

Como ser:ia possível esquecer aquela noite, caramba?!

Em noites extrerÌarneÍÌte húmidas como aquela, por

um acordo tacitamente firrnado entre nós e os nossos pais,permitíamo-nos retarclar anormalmente a hora de reco-lher ern nais duas dú.zias de partidas de sete-e-meio. Deresto, os hábitos qlrâse sempre rígidos da vila escanÉÌa-lham-se coln o excesso de hurnidade que todos os anos sefazia sentir porÌco antes das grancles chuvadas: o adminis-trador, o méclico, o chefe dos correios, o veterinário e ochefe da estação, iam beber paÍa o balcão da cantina doRodrigues, sítio geralmente tido corrro impróprio para agente grada da vila; os trabalhadores clas rnachambas dovale alrandonavam os acampamentos e iam al:ancar no sa-lão da frente da cantina do Rodrigues, sítio onde só erarrracìmitidas pessoas "da nossa rrrelhor sociedade", no dizetdo çrróprio Rodrigues; as prostitutas da vila, normalmen-te tímiclas e obscuras, circulavam alegremente por entre asmesas, deixanclo que os ra,pàzes e os trabalhadores dasmachamlras ll-res treliscassem arnigaveknente as coxas eque os membros da tal melhor sociedade da vila lhes aca-riciassem sub-repticiamente os traseiros.

Por detrás do Ltalcão-frigorífico recentemente com-prado, o Rodrigues, todo boa disposição, anirrrava as in-

vestidas meclrosas clos senhores da vi la aos rabos dasprostitutas e clava pahradinhas nas costas dos trabalhado-

1 2 8

Page 130: Luis Bernardo Honwana

Nl-r inguit imo

res das machârnL>as, fazendo-os torrÌâr mais ulrrâ pingLri-nha. O tipo ficava terrivelmente satisfeito conl o facto de atasca dele se transformar de repente enì cerltro de reuniãoda vi la. À. .r. t-, desaprrrecia pela porta dos funclos, iaacordâr a tnulher e fazta-a espreitar a sala para qtre ela vis-se conr os próprios olhos a excelente ideia que forzr â com-pra do balcão-frigoríÍìco, já clue toda a vila se rnatava pelassuas bebiclas sernpre geladas.

Por entre aquela confusão tocla, eu e C)s (ìt_Ìt-ros rapa-zes inteirávamo-nos das ideias clos senhores irlportantes7a da vila, confraterniz'âvamcls abertarnente conì as prosti-tutas, sem que isso merecesse qualquer reproviìção e ote-recíarnos cigarros aos trab:.r11-raclores; matá\/ar-ìlos a sedeccrrrl cocâ-colas e o ternpt.l conì zrlclrzrbices.

De uma maneira geral, as collversas versavarl sobreasslrntos relarcionados corl a agricultura do vzrle: os senho-res "da sociedade" disclrtian o preço qlre o n-rílho poderíaatíngir; os trabzrlhadores zrczrriciavan-r velhos sonhos possí-veis de realizar cclm a abunclância que se previa para aque-le ano agrícola; nós anunciávzrmos solenemente núlrneroscorresponclentes ao clobro e ao triplo cla qr-rantidarde desacos cle rnilho qlre os nossos pais esperavam colher. NãoSe exceptuando. rÌs pfostitrltas pergufìtavaÍrÌ LÌlllas às ou-tras o que devían^n fazer cc)rìr o dinheíro ganho durante afar t t r ra c las co lbei tas.

Er-r não era amigo do VírgLrla C)ito, trabalhzrdor darnacharnba do Rodrigr-res cla lojer. Apzrrentando ser muito1ìovo, o tipo era trrzìgro, desengonçaclo e tinha uns olhosmuito expressivos. Embora trabzrlhasse na macharnba dcrIìo<lrigues, tinha a slra prclpria macharnba do outro lad<>

1 2 c )

Page 131: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernarclo I ' Ionrvana

clo rio, no Goana, rÌrn sítio onde o adrninistrador aindanão tinha ordenado o levantamellto da reserva indígena.

Naquela noite quente, terrivehnente húmida, ern queparecíamos lrìergulhados nunr líquido 1ïÌorrìo, pegajoso,estava eu a olhar para a escuridão da ru,a, sinceramentechateado com tudo o que ouvia dizer à minha volta quân-do o Vírgula Oito ap)Íìreceu à porta clo bar. Vestia uma ca-misola in ter ior mui to branca e u l ì ìas ca lças de caqui ,cheias cle bolsos e de remenclos coloridos, como as dosmagaíças. Parou um pedaço, pestânejou para habituar avista à h-rz intensa das lâmpadas <J,a loja e dirigiu-se para

urrìzì ÌTìesa próxinra onde estâvam Maguigu at)a e o Mat-churnbutana, tarnbém trabalhadores da machamba doRodrigues cla loja. Lembro-me ainda do seu andar desajei-tado e bzlrrrbolearrte, cts set-rs ombros secos e estreitos eclos seus oihos brilhantes.

- BclrÌ noite. clisse cl tipo patà os outros. Falavaem swazi.

-_- B'oa noite, Massinga - responderam os outros emchangane.

Cararnba, ainda hoje parece-rne sentir no ombro orucle impacto do encontrão que o tipo me deu quando,

corrì o seu anclar desengonçaclo passou pela mesa da mal-tal

Como não podia deixar de ser, a conversa que se de-senvolveu na rrìesa zìs minhas costas erzr sobre as colheitasque se arvizinharrarm. Para fazet inveja aos outros, o Vírgu-la Oito desatou a falar do seu mi-lho, do seu feijão, do seu

amendoim, das suas corlves, da sua batata... Tarnbém sefartou de falar da N'teasse, urna rapariga lá do Goana, fi-Iha do Sigolohla.

1 3 0

Page 132: Luis Bernardo Honwana

Nhinguit incr

Avoz do Vírgulzr Oito lenrbrou-rÌre o arrulhar das ro-las que, para exercitar a pontâria, nós "at:atíarnos" todasas tardes nas machambas próxinras à curr,'a do rio.

Chiça?! Mas que calor quefazia naquele dia, cararn-ba! Suava horrorosaÍrìente e sentia LÌrr torpor, Llrìfâ espé-cie de sonolência febril.

Perdi 4 maços de cigarros ao sete-e-rìreio. Depois, defi-nitivamente enjoado, fui-me embora. A Marta mostrou de-sejos cìe vir comigo. Nem nre opus nem a animei. Ela r.eio.

Muito depois de abandonzìr a N|arta, já em casa, en-quanto esperava pelo golpe seco e fulminante do sono, otom bíblíco da última frase que ouvira cJo Vírgula Oítoveio-nre à rnemóría:

- Quando chegar o "nhinguit ir lo" tuclo vai mudar- dissera ele - As machambas grandes que eles fazemvão ficar clestrr-rídas pela fírria clo vento. As nossas lrìa-chambas continuarão a ermarelecer calmamel-ìte porqlle âsgrandes árvores do outro lado do rio protegem-nas dosvento*c. O çrreço do milho rrai sutrir e nós vamos ter algurndinl-reiro. Deus ten-r de querer que seja assirn...

Poça, aquilo era urrl crilor de nratarr! Hurniclade conrosei lá o quê e o cén todo cheio de estrelas. Chateavâ pensarque as grandes chuvadas ainda tarclariam. Estive quase parair tomar olrtro banho de chr:rreiro. mas entretanto adormeci.

O Rodrigues da loja fartou-se de esfregar o tâmp<ldo balcão

Vírgula Oito bateu coÍn c> cclpo vazio no taÍnpo damesa e lirnpou os beiços às costas da mão. Corn um rápiclo

1 1 7

Page 133: Luis Bernardo Honwana

Lrris Èìcmar.ìo l f onu'an:r

olhar, certificou-se do interesse dos seus companheiros noque acabirva de revelar e pigarreou para aclararr à voz, aÍr-tes de continuar.

- Se eu chegar fogo à rnata e não âpagar as chamasclurante três dias seguidos, fico corrr ulrra machamba duasvezes maior - a sl-ra voz tinha Lrrrr torn de conficlência -

O dobro - lTìLlrrÌÌurol-l .- Mas ness?ì altura ficas com tanto clinheiro conro cl

Lodrica e os outros brancos... - admirou-se o Magui-guana - Até podes andar cle camo e comprar tractores...

- Nessa altura pago o imposto, compro sâpatos, Lrmfato, unr chapéu, uns óculos, uma bengala e Lrm sobretu-do. . . e cr ìso-me conl a N' teasse. . . - esc lareceu VírgulaOito - Se o milho chegar aos duzentos escudos o saco,para o ano palavrzl que alrmento ur macharnba.Jâ falei como régulo e ele disse que sim... Arranjo uns homens parame ajudarern porque a rlínha mãe está velha e à minhairr lã casa-se um dia destes na igreja do Padre. Arranjouns homens para trabalhar só para mim, como moleques,e erÌ mesmo é que lhes pago quando chegar o fim do mês,porque nessa a l turzr sou eu o patrão. . .

- Nlas suspirou MatchurnbLrtana.Rápic1o, Vírgula Oito percebeu um esboço de dúvida.- Não acredi tas?. . . _ ata lhou.- Bem, eu arcredi to . . .Vírgula Oito virou-se interrogativarnente para Ma-

guiguanu.- Berrr, eu tarrrk;érrr acredito - apressou-se este a

esclarecer.

r )2

Page 134: Luis Bernardo Honwana

Nhirrguit ir-no

Repetindo zì rodader de whisky, Rodrigues insinuou:- Porclue é que o senhor administrador não vai ver â

terra corrr os seus prírprios olht>sl- Porqr-re tenho tnaris que falzer, horler-n1... - ps5-

poncleu o aclministrador:, desa,rpcrternclo mais urn botão dacamisa.

Enqr-ranto cleitartzr rrma nreclicla de ág,ua gelada noscopos, Rodrigr-res trlr-lrrllurol-Ì L)araì si: merda... Logo c-le-pois voltou ao ataque:

- Senhor administraclor, ers infr-a-estruturas clestap rov ínc ia . . .

.E as rnédias e aìs superestrLrtrtrrìs. . . - acrescen-tou o administrador, imitando L\voz clo Roclri[ÌLres. Todo ogrr-rpo se riu perdicìern-rer'ìte. Satisf-eito corrì o apârte que fr-zer^, o adnrinistr ' .rdor repisou-o quando as gargalhadascorneçavzÌrÌì a dirlir-ruir de intensíclade:

.e as méclias e as sLìperestnÌt l Ìras...O grr-rpo voÌtou rr clobrar-se sottre o ventre, espre-

mendo outra explosão cle gargalhaclas.

Envergonhado, o Rodrigues afastoLr-se, polinclo afa-nosallrente o tampo do balcão-frigorífico.

.e as rneclias e as sLrperestrl t turas... - voltou adeclam ar o aclministraclor-.

- Merd n-ÌLrrllllÌrotr o Rodligues, quando, ten-do atingiclo a ponta do tanrpcl, teve de descer o L)âncl porr,ì.nìa clas paredes larterais do frigoríÍìcc-r para poder conti-rf l- Ìar a esfregar. "Merda..." - repetiu quando chegou aochão. Arregaçanclo o Lreiço, erêÌLrerÌ-sc e aproximou-se dcr

É{rlrpo..e as nrédias e as s l rperest rut l r ras. . .

1 ) i

Page 135: Luis Bernardo Honwana

Luis l ìernzrr-do I lons,an zr

Obediente, o Élrlrpo soltou olrtra gargalhada. O Ro-drigues, cientro do ritmo, muito desportivâmente contri-buiu também colrì a sua gargalhadazinha.

- Massinga... Ouve, eu acredito nisso tudo que tudizes que vais fazet. afirrnou Matchumbutana - Deverdade que acredi to , mas. . .

- Mas o quê? - avc,z de Vírgula Oito tornou-se im-paciente. Mais rastejzrnte, Maguiguana justificou-se:

- SaÌres. . . Eu não sei se eles não fr.carão zangados por

tu teres tanto dinheiro... Eles são capazes de não gostar

disso... Eles não vão permit ir que tenhas tanto dinheiro...- E les são capazes de não gostar , Massinga. . . -

acudiu Maguiguar'a - Eles são capazes de não Élostar.. .E que tu és cap^z de ter mais dinheiro do que o enfermei-ro e o intérprete> os assimilndos...

- Mas porque é que vocês pensam que eles se hão--de zangal'2 - Vírgula Oito adoptou urn tom de voz ex-tremarnente paciente - eu não mato nem roubo; como oque ganho n9 trabalho; gasto o dinheiro com a minha fa-míl ia; pago o imposto... Pago aos rrreus trabalhadores...Corno é clue eles se podem zangar?

- B,enì... assim não se zar.garn... Assim não se po-

dern zang ar. . . - O Maguiguana tentava desculpar-se.- Não se zangam.. . Acho que não se zangam

O Matchumbutar-ra tanrbém retirou a sua dúvida.- Amanhã vou lá para casa - Vírgula Oito reiniciou

o fio da narração, desconhecendo os restos de increduli-

dacle que os outros ainda rrrostrava O Lodrica deixa--nre ir porqLÌe eu disse-lhe que precisava de ír para casaparzì consertar as palhotas. Chego lá e dou uma ajuda à

1 3 1

Page 136: Luis Bernardo Honwana

Nhi r rg t r i t imc>

rrrinha rÌrãe e à minha irmã nzr colheita. Se colhermos de-pressa podemos vender o rnilho antes cìe o preço corrreçarer bzrixalr, quanclcl os braÌ1cos tambérl fizerem as slÌiÌs ccr-l he i tas . . . E ve jo a N ' teasse . " .

- Senhor adnrinistrador, se er'l insisto nisto é só pror-qr-ìe rrre clrsta ver uma terra tão r-ica a ser cìesperdiçada pelospretos - O Rodrigues tinl-ra conseguidc-r deter a palavradepois das três rodas de whisky que durou a festejar cl apar-te do adrrrinistrador, - e selxpre lhe digo que esta vila po-dia ter melhor sorte se se desse ulrr pouco mais de ater-rçãoàs pretensões dzrs sr-ras €Ienter... (o Roclrigues darra a suarrrordidela vingativa. . .) Senhor adrlinistrado! eu sempreconfiei na clarriviclência colrr que Vcrssa llxcelência dirigesuperiormente os interesses clas populações neste Íncrlllen-to conturbardo. o Rodrigues rectificáìva a canelaCa -

rrras isto lá do baixio do Goan a é tão importante. . .

- Vírgula Oitor - chamou o Rocìrigues - VírglllâOito! Andzr cá!... C) senl-ror administraclor quer pergLln-tar - te umas coisas lá do teu s í t io . . .

Cruzando os braços sobre o peito, rlr-urla atitucle deproÍundo respeito, Vírgula Oito aproximou-se clo grupo.Erguenclo as mãos até à aÌtura da cabeçâ, numa espécie clecontinência, sauc{()Lr o adrninistrador:

- S,2ys1i n 'koss i ! . . .Depois voltou à crazaï as mãos sobre o peito e esperou.- O Senhor adrninistraclor pode interrogar este indí-

ger-Ìa e inteirar-se clar veracidzrde clas rninìras arf irnrações...- o Roclrigues esfregc-,u o peÌr'ìo ao târÌllro do balcão-frigo-ríÍìco, elrr peqrrenos e rápiclos movinentos circulares -

L ) 5

Page 137: Luis Bernardo Honwana

Luis Rernarclo I lonu, i r r r r r

. . .e inteireÌr-se da veracidacle das rninhas âfirn-ìações... re-petiu a frzrse para si próprio, satisfeito com â ressonânciâsolene cìa sua voz ao proferi-la.

- Conlo é que tu te charnas, ó rapaz? - perguntouo achninistrador.

- Eu chana Alexandre Vírgula Oto MassinE4a, si-nhoro Mixacloro!

O Rodrigues voltou da ponta do balcão nuÍÌra corri-dinha e debruçou-se para a conversa, todo ínteressado:

- 161s1 ' roÉIue-o, in ter rogue-o senhor admin is t ra-do r ! . . .

- C)ncle é que tu trabalhas? - in1s1r'ompeu brutal-mente o adrlinistrildor - Onde é que tu trabalhas) ra-paz?

Vírgula Oito atrapalhou-se com a ira do administra-dor. Quando se dorninou, responcleu:

- ELì trabalha machambar patrão Lodrica. Trabalharluito te[ìpo ÍÌ]esrno...

- d ls><2ndre Vírgula Oi to Massinga. . . Raio denome.. . De onde é qr- re tu és?

Eu são cfo induna Goana, senhora Mixadoro. . .O barulho que enchia a sala cessâra instantanearnen-

te. Tocla a gente se pôs à escuta. Maguiguana segredou aMatchumbutana, encostando-lhe os lábios ao ouvido:

- Eu não disse que eles não haviam de gostar?Mc-n'endo a c,rbeça nurrr larrgo assentimento, Mat-

chumbr-rtana devolveu a pergunta intacta:- ELr não disse que eles não haviam de gostar?- Eru não clisse) - insistiu Maguiguana.- EìLr não disse) - repetiu Matchumbutana.

1 3 6

Page 138: Luis Bernardo Honwana

Nhingrri t i r-nc,

- f'LÌ tens n-ìacharnba 1á no Goana?- Eu tem machamber lá mesrr. o na Goana sinhorcr

Mixadoro. . .- Tern muito rnercharnb a lá7- f-errr muito macl-ramba lei sinhoro Mixacloro...- Mâchamba lá no Goana é prociutiva/ Raios... Pro-

dut iva não! . . . É born?. . . Machamba 1á no Goana é bol r . ? . . .

Jesus, isto sír com o irrtérprete, lá na adrninistração...A-larnr ado, o Roclrigues ofereceu-se:- ELr posso servil cle intérprete, senhor administra-

do r . . .- Não ! . . .O pano arra.ncolr do talrpo do balcão-frigorífico ullr

chiar afl i t iv ' . . .Merda. .. , , _ getniu o Rodrigues.- Ouve cá, tu tiras muito milho lá na tua machamba?- Câcìa veztita, cada vezrtão tira, sinhoro Mixacloro.. "- O que é que estás para aí a ãizer, hornem?- Eu d iz eu t i ra , s inhoro Cìomandante. . .O aclministrador conteve o riso que lhe provocara o

novo tfatamento.-A te r raéboa?

Vírgula Oíto percebera a rápicla sombra que perpaìs-sou pelo olhar do admitristrador quando o tratara por ctl-mandante:

- Terra é borrr, sinhor:o Mixacloro...- A terra é boa? - berror'r novamente cl admir-ristra-

doq irritado corl a perspicácia clo trabalhzrdor'.Vírgula Oito clemorou a resposta, indeciso:- fbrra é born, sinhoro Conandante. Toclo o

corpo de Vírgula Oito osci lou, srrbl ir-r lrando a afirmação.

t ) 7

Page 139: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernarclo I ' {onrvan a

Perante o silêncio do interloclrtoq Vírgula Oito optor*l:- T'erra é borrr. e aguardou o efeito da nova fór-

mula, apertando as rnãos ao peito.Depois de olhar para Vírgula Oito de cenho franzido, o

administrador explodiu numa gargalhada. Rápido, o Rodri-gues introduziu o acompanhamento à terceira quebra doriso do administrador. Mais nroroso, o grupo que rodeavâ oacLninistrador começou o coro já com bastante atrâso.

AJgumas clas raparigas desatararn a rir sem que tives-serrl percebido o que se passava.

Menos teÍìso, Vírgula Oito disfarçou um sorriso, bai-xando a cabeça.

- ps1[ bem, r^L1az, vai-te embora... Depois falamos,meu v i vaço . . .

Novamente, Vírgula Oito er€luer-r os braços l lumasaudação.

- Nós não dissemos?. . . Nós dissemos que eles nãohaviam de gostar, Massinga... Maguiguana estavatodo excitado - Disselrìos ou não dissemos?...

Vírgula Oito fitou longarnerìte as pahnas das rnãosantes de responcler:

- Nós dissemos Matchumbutana parecia sa-tisfeito col-ìr a atrapalhação de Vírgula Oito.

- Vocês sabem... Eu não sei falar como o intérpreteou comcl o enfermeiro, eu não sei falat bem a língua deles,mas vi clue o Mixadoro não gosta de ver qlre as pessoas sa-bem o que ele pensa... Ele f icou zangac)o pclrque ... Bern,eu vi que ele ficor,r zangado. . .

Vírgr-rÌa Oito não tentou disfarçar aì sua perturbação.

l l 8

Page 140: Luis Bernardo Honwana

NÌringuit imtr

A terra do Goan a era boa que se fartava

Ernbora na últ ima estação :rs chuvas t ivessem sicloabundantes, o lodo do vale já secara havia alguns rrreses"

Causticacla por um sol intenso, a terra endurecidafendera em sulcos sinuosos e profundos. Livres da sujei-

ção das raizes do capim, àquela altr-rra do ano já duras equebradiças, as terras da encosta soltavam-se e rolavârÌ âomínimo soÌavanco do vellto, exa]ando LlÍÌrâ poeira clensaque caía sobre o vale, asÍìxianclo a folhergem das ánzores eturvando as águas vagiarosas do rio.

A todo o comprimento do rrale, o lençol cle macham-bas ondulava rigidamente, percorrido pelas rajadas brevescle urn vento volúvel.

Maduras, as espigas per-rdiarÌl para o chão, gordas einteir içadas.

Do outro lado do rio, a colheita já tinha sido iniciada.As pequenas macharnbars mergulhadas nzl espessura dafloresta enchiam-se de €ierÌte que afanosamente partia asespigas de rlilho das hastes. Era Lrnr rrlatraqlÌear entusias-mado, LÌÍna corrida contrar a baixa de preçc-r c1r-rc surgiriaquando os armâzéns da vila se enchessem colrr o rnillrodos grandes agricultores.

Em vol ta das povoaçòcs os ce le i ros entLrmesciarn ra-piclanrente durante as manl-rãs para, durante a tarde, vo-mi tarern as espigas paraì a c lebulha. Durante a noi te ,conrboios de pequenas jangadas ajoujzrclas cle strcos àtra-vessavam o rio.

Encravzrdas entre grancles propriedacles, t i t l Ì ladâs edemarcadas corrì cercados de ararne farpado, as reser\/as

I 3 ' )

Page 141: Luis Bernardo Honwana

Luis Berlr ard c> ll onu'.rnar

inclígenzrs cresciam em profundidade, dando para o riou1Tìa frente estreitíssima. Contra a regra, a reserva da regiãodo Goana dava ao rio uffÌa das faces do seu comprimento.'fodas

âs suas pequenâs rlacharnbas tinham L)crr isso aces-so às águas do Incomáti.

Situada a 12 qui,ómetros da vila, na outra marÉIem,era a mais próspera de toda a circunscrição. Compreen-dendo terrenos baixos, alagadiços, era manchada por umasérie de lagos qr-re se mantinham ÍÌlesmo durante a estaçãoda cacirnba.

Nos terrenos mais secos do Goana apareciam Ltelosrnilheirais regados por varlas abertas pelos agricuÌtores.Nas zonas pzÌntanosas verclejava o arÍoz, o tabaco e, ernpequerìas áreas recuperaclas das águas pelos aluviões, ca-vava-se \>atata.

IJrn extenso véu de vapor coLrria as terras do indunaGoarra. De malha finíssima a nlrvem rodeava as árvores, ascâsas e os animais rrum halo azulado, serrr contudo depo-sitar nâs superfícies indícios de humidade.

Por sobre as copas das árvores a neblina era perpas-sada pelos primeilos raios de sol, aclquir indo urr tomc{or-rraclo, antes de se desfazer no calor.

Saudando o dia, os sclns do mato, zrinda vaÉIos bocejosroucos e, por vezes estr idelrt es, ziguezag,ueavam preguiço-

sos, saltitando cle foll-ra em folha e ecoando surdamenteaté se perderem na profundidade do véu de vapor.

IJm l<rrte cheiro a barro subia da terra, misturava-se aosvapores acres clo pântano e às fragrâncizrs da floresta; depoisaétarrava-se às gotículas do véu azti.ado e desfazia-se lá emcirler, rìo ar já ir-rtensanente clourado pelo sol nascente.

1 4 0

Page 142: Luis Bernardo Honwana

Nll inutr i trrncr

Com as narinas frementes Vírgula Oito sorvelr lolrgclshaustos do rrapor fresco cla manhã, antes de enveredarpelo capirn estreito qlÌe rastejava a seus pés. A cada passosentiâ a carícia leve da franja de capirl que pendia p'ara apequena concavidacle do canrinho, ulr'ìâ cócega agradávelnos tornozelos e nos calcanhares.

Vírgula Oito atravessou a machamba, pondo ern de-bandada uma nr lvenl de insectos que. pendurados nasplantas, esperavam a chegacla clo sol.

Descuidado deixou qr-re os espir-rhos de LÌmâ pequenâmicaia que se disÍarçerva no capin lhe clilacerassem o bra-

ço. O sangue brotou ímediatarnente do rasgão, mas Vír-gula Oito não se preocupoll.

O trabalhaclor deambulou pelos reéÌos da macharnba.e, por fin, ébrio do cheilcr forte da terrar, cleixou-se cair'sobre urn tufo de ervas.

Bocejanclo restos de sono, N'teasse, f i lha cle Sigo-lohla, avançoLr lentamente até transpor o limite dtr povoa-

ção. Desinteressacla, ajeitou a capulana e espregtriçolr-sccotrr urn gernido. O mato acolheu-a c()lrl LÌn-ìaì car:ícia géli-da. Esrrerrìeceu-

A nuverl de vzrpor perturbotr-se ligeiramer-ìte, encres-por-r e divicl iu-se. Depoís uniu-se, envolvendo-a.

A tema clo Goana aíndrr donliar;os carxpos, de um âr1ìa-relo azulado, estavam desertos. Aqui e ali. enorn-ìes piràli-des de espigas cle milho elerravatl-se c{o seio das nraclrarlbers.

Com LÌma lenticlão capr-ichosa. Vírgula C)ito leverr-r-tolr-se do chão. N'teasse ria-se l lervosanlente, conf os den-tes a faiscar por entre os lábios túrgidos. C) seLr corpoestrernecia sacudiclo pelas gargalhadas.

l ' - l l

Page 143: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernardo l-Ionu'ana

De pé, Vírgula Oito fez nrenção de se atirar sobre arapariga que, assustada, fugiu corrÌ Llrïì grito. Poucos pas-sos voÌvi. los 1't : l16u e voltou a r ir-se, nunìa provocação.Vírgula Oito avarìçou. Ela recuou.

- Espe ra a í . . ._ p21a quê? . . "- Espe ra . . .- Não . . .Vírgula Oito correu, rnas tropeçou e caiu. Com raiva,

ouviu o riso excitante dz-t rapariga.- \ '1szÌssê! . supl icou.Não poclendo conter o r iso, a rapariga torcia-se em

espâslnos. Vírgula Oito levantou-se num salto, e N'teassefugiu pela macharnL,a.

De gatas, Vírgula Oito ârrastolr-se cuiclzrdosamentepela estreita passagem entre as micaias. Do outro lado dosarbustos N'teasse espreitava-o, sorridente.

Quando Vírgula Oito transpôs a passagem N'teasseesperou que ele se levantasse e voltou a correr, rindo-seem frescas gargalhadas.

Segura erltre os braços do homeln, N'teasse sorria en-vergonhada. A inteusiclade clo olhar cle Vírgula Oito, bai-xor-l c)s olhos. E,nrbzrraçadc-r, o hornem afrouxou o braço;a rapariga desprendeu-se com urÌr safanão e fugiu corrrerlormes gzr rgalha das.

Deitado no capim, Vírgula Oito deslizou com a ajudados pés, aproximarndo-se de N'teasse. Iìrandindo um pau,

a rzrpariga nrantinha-o zì distância, sorrindo satisfeita.

r 42

Page 144: Luis Bernardo Honwana

Nhingu i t ino

- \ '1szrsse... - atneaçoll Vírgula Oito, at irando-sepafa a frente.

O pau caiu pesadamente sobre o orlrbro do homem.A rapariga soltou ÌÌma breve gargalhada. Vírgula OitotentorÌ segurar o palr, mas N'teasse rÌaÉÌoou-lhe os cledos.

- \ ' 1 s 2 S S e . . .

A rapariga arrastolÌ-se pelo capin, fugindo devaga-rinho.

Por fim, Vírgula Oito conseguilr seéllrrar cl pau. A ra-pariga puxou. Com o braço l ivre o homern alcançou-lheo tornozelo.

Flacidamente, a rapariga lutou para se libertzrt. De-

çrois cobriu os olhos com as mãos e gemeu baixinho.Vírgula Oito prendeu entre os Ìábios a bochecha cle

N'teasse. Depois, a força de sr-rcção diminuiu e a cârne es-corregou corrf LÌrìf estalido sc>n<lrcr.

Nhinguitirno

- Massinga, nós não poderrros fazer nada... Eles le-vam-nos :ìs terrâs e nós tt: Ínos cle não dizer nada...

Vírgula Oito não respondeu. Sentado nLln caixote,m2rntinha-se cle cabeça baixzr. Mertchumbutana insist ir-r:

- Tu não te pocles zàtrgar, Massinga... Não te deveszat1g,ar.. .

- l \{36çhr-rrnbutana... - Vírgula Oito falava lenta-mente, t i tulreants - M21churr- butana... I lu nasci naqr-re-la terra... O meu pai tarnbérl nasceu lá. Tocla a minhafanrí l ia é do Goana... Os meus avós todos estão lá enter-rados... Maguiguanzr, o Loclr ica tenl Ìojas, tenr tractores,

t 4 )

Page 145: Luis Bernardo Honwana

Ltr is Bernart lo I Ionrr , 'ana

terrr macharnbas grandes... Porque é que ele quer o nossosí t io? Porquê- / . . .

Em volta, o Zedequiel, o Munanga, o .ê.lifaz, o Ma-guiguana e os outros traL,alhadores da machamba do Ro-dligues seguiam a conversa, acocorados.

- ELr trabalho aqui, na machamba dele - continuouVír:gule'r Oito cclrÌr1>rcl o qLre preciso na loja dele...A nrinha mãe, quando vem cá à vila vai para aToja dele.. "

- Massinga, deixa 1á isso, o Mixadoro é capaz de nãomandar sair ninguén... Se o Padre disse que ia falar cornele tu não deviâs pelÌsâr assim. assustado corrì o tonlcla própriavoz, o Matchumbuterna calou-se de repente.

O condutor meteu a primeira e aceleror-r. Relutatlte, ocatnião â\/ançou, n-rgindo. No pino da subida o condutorrl'ìetelr a seguncla e o camião hesitou vaganÌente, antes derolar, mais clóci l , pela picada.

Erritzrndo urrr rrìo1fte cle saccls, o carrrião resvalou dotri lho, derrapou rrras logo se recornpôs. Cem metros àfrente, jâ na macharlba, parou com Lrrrr estremecimento.

- E,i rap2Ìzes1 - gritou o câpat'.t2, saltando para ochão : Car rega r n lun i ns tan te ! Tenho p ressa l . . . I . â ! . . .

Zeclequiet deixou cair uma espiga e chamou os conl-parnheiros colrì LÌm gesto. Vírgula Oito continuou acoco-raclo, por cìetrais cle unrzr pirârlide de rniÌho.

- C)rlde é clue está o Vírgula Oito-/ - perflLrntou o câ-pLltàz - [s5e Vírgula paìrece que anda â qlrerer brincar...

Vírgr,rla C)ito ap rc'rximou-se :- EÌì esti i doente, partrão... Dói cabeça... Dóí tnuito...- []s12i bem, quzrnclo largares pocÌes ficar cloente à volt-

trrde, 1-ìláÌs âÉIora vai ajucl'ar os oLrtros a cârregâr o catnião...

1 4 1

Page 146: Luis Bernardo Honwana

Nhinguit irno

Tcrdo abatido sobre as molas, o calnião inrzerteu osentido nurra manobra trabalhosa e tneteu pela picada,gelxendo e Lrufando.

- Zedequ ie l ! Ma tchunbu tana ! . . . Magu iguana !Munanga ! . . . Vocês todos ! . . .

Todos os trabalhaclores se aproximaram de VírgulaOito.

- Vocês cligarm-rne Lrnfa coisa: acham que isso dcrLodrica está certo?. . .

Ninguér-n respondeu. Vírgula Oito dobrou-se sobreo ventre e r iu mansamente.

fntrígados, os trabalhadores cntreolhzìrarì-se.- ()s olrtros tarmbém se encheram de medo

cJisse por fim Vírgula Oito, toclo strfocaclo trrelo riso - F.s-tão todos co rn medo . . .

Surgindo do sul, âs nuvens zìvançavam rapiclâmente,tir-rgindo o céu de negro.

- ps1[6 todos conr rnedo... Nós \ráìlr lcls f icar sen-rnacla e toclos contirìLri Ìr l l conl r led<,...

O estrondo enonle do prirleiro trovão esnlzÌ{tc)Ll c)riso cle Vírgula Oito. Rugir-rdo, C) vento troLtxe Ln-ìta nu\/enìde poeira qlì.e envoh'eu os homens. Vírgula Oito ergueuo oÌhar e abriu os braços pateticârxente.

- É o nhinguit iq-rol . . . - gri tor-r alguén-r.De braços erguiclos, Vírgrrìa Oito explicava ao céu

pensamentos qr-re o vento desf,lzizr.- Mass i r r ga ! . . . Mass inge r ! " . . V i r gu lô ! . . .- Nhinguit irnol . . . -gargalhou Vírgula Oito, carÌ)-

baleanclo.Perfurando nervosameÍìte a poeirada, duas ou três

rolas, taltrez seis, sobrevoaran) os trabalhzrdores em círcu-

1 4 5

Page 147: Luis Bernardo Honwana

Luis Bernardo I - Ionwana

ios apertados. Depois do aviso frenético, as rolas ruma-ranr para as grandes florestas do outro lado do rio, fugin-do do nhinguitimo.

Nessa noite iuro que senti raiva

Lã fora a chuva caía rniudinha. Não fazia propria-mente frio, mas o ternpo estava bastante mais fresco.

- gelg_s_meio realt _ gritou alguém a Íneu lado.Baixei as ciìrtas e procurei mais rÌmas neoedas no fundo clobolso.

O Maguiglrana entrou ântes de eu polrsar as moedasna banca. Todo coberto de lodo, esplÌrnava e berravâ estu-

çridamente. Ao meio cla sala, arquejante, anunciou:- Vírgula Oito f icou rrraluco patrão... Matou Zede-

cluiel com Alifaz collr Matcl-rumbrìtana... Tambérn que-reu rneltar eLÌ, rnas eu fugiu, correr rnuito mesmo ! . . . A nósquerelr aÉÌarrar ele e ele começou rnatar nós ! . . . Estava fa-lar cotn céu... A nós queria levar ele para fugir de ventoc le nhingui t imo. . .

Todo debruçado por sol;re o tâmpo do balcão-frigo-rífico, o Roclrigures atrriu a boc:,ì, sem poder ernitir qual-quer sonl. Depois fzrlor-r.

- Ilomens ! Peguern errÌ arnÌas e valnos abater esser-Ìegro aÌntes que ele lTrate rnais gente! Varnos depressa an-tes que aconteça qualquer co isa de rnui to mau nestav i i a ! . . . MeuDeus ! . . .

Pouco clepois de eles saírem levantei-me da mesa:- Vão todos à merda tnais a estupidez deste jogo!

r 4 6

Page 148: Luis Bernardo Honwana

Nhinsrr i t imcr

Ninguém se preocupoLÌ conÌigo. Saí. Poucos passos ri-nha daclo quando senti a Marta a chapinhar, atrás de mim.

Caramba, cc)nìcr é clue é possível haver tipos colTìc)eu? Encluânto eu lnatava r -o las e jogava ao setc-e-r r - le ioacontec iarr ì un lâ data de co isas e eu l le l ì ì lne i r r rpress iona-va! Nada, f icava na rr lesrÌ la, fazia qr-re não era cornigo...

- ffi2rt2! - charnei. A rapariga veio a correr.Poça, aqui Ìo t inha que mudar l . . .

1 Á 1L a I

Page 149: Luis Bernardo Honwana
Page 150: Luis Bernardo Honwana

Colecção IJi lr l iote<,a l t l<. l i tores Inclepenclentes

1 . I líarht. l- lornt'r.o

2- D- Qt t ì .x t t .e : r ! .e lu Mtt tu; l t t r . , / , Migrr t : l r le Cer. r , t r r r l .si3. D. Quit:.te rle kt, Iï l l tr.rt. lut, I l . Mìgtteì t le Cer.virÌìtes

4,. Mett.sttgellr, F'er.rrarrrrlt l I)essoa

!-t. T rês l t o nt e t t.s rt ttt t t l t r t rr.o, .] e,rr rrne lt. .Iercrrr re( i . Poentus. Mrí r . io t le Sei_Carr-nei r r r

7. Cort.trts cle Sãtt l)r:!ersbttrgr.,, Nilçoìai Gírq-oì

ti. (.) rlrt,rt r lr;, V i rgirr i ir Ïíoolí-(). O que é tt h-ì.[tt.so/ìrr.2, ()r-tegir y (ìarsst:l

lo. o cri.nrc de [ 'orrl.e tlrÍ.ttr stu:i1e e ottrrtt.s oortto.s, ()st.ar: wilrleI l - F-ícç'õt;' rht Irtrt:rl tí.r!.i.. - I)trcrnrts lntlt[.it.tuLt.s t:rrt t,ì.rkt.

Fenrrr nt lo l tessoa

12. ( ) I .h , ro rk t r . / r r í . l (akrrzo Okal<ur-alil- A xrarot,i.l.lto.so l/i,r44ern rl.t: Nir..s ÍIol.l4er.s.srttt atrru,é.s rkt. ,stuít.irt-

Selnra Lager l t ; f '

f :1,- Zen e rr ArÍ,e rl. T'i* t:.nt Art..- I l trgen t[e'. igell15. {./rn e.strunlut ent (}oct.,.José Flrluarrl<l Aguerlr-rsar

16- (Jrno lÌecrrrt!ctg'ã,o rk: Irt.fânt'ia. rre Lerntrurht clrt l/i.rtt.i,.

S igrnurrr l l ì r 'e t r< l

I7 - Cu,dentos tltt ,Ju.ltt<:rrâtte:o. JJosloiévskilB- Menórün 7tóstu,,tas t!e Rrcí.s cLtbrts, Mtr.rracÌti rÌe Assis

19. ( ) .fogrtrl or. I)ostoiér,skj

Page 151: Luis Bernardo Honwana

49. No hlostrt rlct Cctrsdr/o lerxt:t 'r-to tla Peregril laçãol,

l-ernão Mer-rrles Pinto

5|o. Iú t r iku, f Ìer r r iq t re ( iah 'ão

51 - Terra. tìt()Ì ' t.(r,. Ctrstlo Strrontt tthrr

l>2. \/ iru44enl, (lastr'o Sorornenho

5:3.,.1 c:|rcr.14tt, CirsI r 'o Soronrenht.r

!>4,. B t t In cct trt ./è it. i.ç'o, LJa r rI re n gar Xit u

55. /Vd.s, os do Mrt.l;tt, l .u.stt., Lrrerrtrl ino Vieira

5(>. Oonto st c t r r t lu t t lc t t t , r io Íz le.s .se Le.sI t . I ìuy I )uar- te t le Carv i r l f rcr

i>7. Nós ntctt,rírntt.s o Cã,rt- ' l- i tt l toso- I-rris fìen-rarclo Ilorrrvarra

Sti. I lu.. o Prnto, Mulirrr..t l i ïJarn:rlrí: João

59. C lt i ,t1tt ítt.I t rt. [ìuÌtasar' -[,o1res

6(l - f) o <: t t,r n e r t tr í, r i,o. A I-n íl r:ar (-ì alrrer I

Page 152: Luis Bernardo Honwana

'20. Arte rle Ser Portttguês, Teixeira rle Pasc:oaes

) f - P lntcro e et t . . . l t rarr Ri . rnr í r r r J i r r rérrez

22. Al.ìce do Otúro Lodo d.c' l)s1>ellto, Lewis Calroll

2i3. (,)s Doze Cé.sares, Suetóni()

24. M rtn gcílio, Ilernarclo Car-vaÌho

25- () Spl,eett. de I 'u,ris. Charles LÌaucleÌaire

26- Re:;ti.tír ict. Iì 'ã.btrlet.s e OLLtro.s E.scriÍos, Leonerrrìo Da Vin<:i

27 - LIa rn l ,ez, Wi l l inrn Sl r : rkespeare

2tl. O Cttlt.o clo Cltd, $íencesltru tle Moraes

2()- Poesias Oontpl.et.írs. S- . loão da Cruz

lfo- Câlttico clos Câtt.tit:os

-iI . Cotttos, Tchéklror.

ì\2. Martttri l , da Pre.stidì.gitação, Mário Cesarirry

):,lJ- Desrrtetl,írlo - Crón,icrt,s do Bro..si.l., Ruy f)uarte rle Carvalho

i \ ,1 . ( ) F ' í .n t de L izz ie- Ana' l 'eresa Perei ru

i l1- Ar te c le Arnar . Or ' íd io';\b.

l;itt.ge:n.ç, Mtrrco Polo

37 . I 'ertsatnentos. Marco Aurélicl

lftì - 0 dissefuz, I]onrercr

:19. Noites Brant,ctts, Dostoiévski

40. Ca.rta sobrc A Felí,cíducle, Elticuro e Da Vidn. Felí2, Séneca

4,f . Terror <: Misérirt, tlct Terc:eiro Reir:lt, Bertolt Brecht

f '2. Poesíct, Antírnio Mnriar Lisbo.r

.t iì. Surraslrr.r:, Honoré cle Ralzac

44- Trê.s Corttos da. htd.io, Ruclyarcl Kipling

4-.>. Conto cl,e Mint, Mesnto. 'Walt

Whitman

46. Grt rclerr Prrrty, I(atherine Mansfield

4'7. O Alieni.sta e Otúr-t>s Con,tos, Machado de Assis

4'8. Maria ll'loi.sés. CarniÌo Castelo Branco

Page 153: Luis Bernardo Honwana
Page 154: Luis Bernardo Honwana
Page 155: Luis Bernardo Honwana

fura

Ãs ffir

yã-s

Ëã

ãs"

*ãw

,ry

il t{

ËË

€ ?

B *â

ãg

ãü

g

roffi

S ru

ãiq'

ffi=

r%ru

'ff

{BS

r/

ffi T

*Tflr

oF

f,ü