Livro Pudovkin Em Potuguees Ocr

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ndice

Prefcio 7 Introduo Edio Alem 27 X1. O ARGUMENTO CINEMATOGRFICO E A SUA TEORIA

Palavras Prvias 37 O Argumento 41 O Material Plstico 672. O REALIZADOR E O MATERIAL FILMICO

As Propriedades do Material Flmico 95 X O Realizador e o Argumento 139 O Realizador e o Actor 151 A O Actor no Quadro 165 1( O Realizador e o Operador de Imagem 169 3. TIPOS EM VEZ DE ACTORES 187 4. GRANDES-PLANOS NO TEMPO 1995 O ASINCRONISMO COMO PRINCIPIO DO CINEMA SONORO 211 6. OS PROBLEMAS RTMICOS NO MEU PRIMEIRO FILME SONORO 225 APNDICE

Notas Suplementares 239 Filmografia de Vsevolod Pudovkin 249 ndice de Nomes e Ttulos 261

MANUEL RUAS

inteligente lhes revele toda a enorme estatura deste grande mestre; e que o seu pensamento genial, devidamente assimilado e correctamente transfundido e desenvolvido na prtica e na crtica, tome bem depressa o papel que lhe cabe como slido, duradouro, verdadeiramente moderno fundamento de uma urgente reviso de coordenadas crticas (se que existem...) e semente viva de uma teoria viva e praticvel. Lisboa, Fevereiro de 1961. Manuel Ruas

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Introduo Edio Alem

Olkmdamento da arte do filme _ a montagem. O jovem cinema sovitico iniciou a sua carreira com esta palavra-senha, que at hoje nada perdeu ainda do seu significado nem da sua importncia. necessrio ter presente que a palavra montagem nem sempre completamente entendida ou correctamente interpretada. Alguns entendem-na ingnuamente como se ela designasse apenas o processo de agrupamento, na sua justa ordem cronolgica, dos troos de pelcula impressionada. Outros reduzem a sua noo de montagem distino entre um tipo, de mon-

I i i i oillio foi escrita propositadamente por Putlovk In em 1928 ',tira apresentar a primeira verso estrangeira dos At'll% i: m Film-Regie und Film-Manuskript, trad. eu rg e Nad ia l u iedland, ed. Verlag der Lichtbildbhne, Bcher der Praxis, 143m1 V (Berlim, 1928). Os ensaios nela compilados tinham sido originariamente publicados sob os n." 3 (O Argumento Cinematogrfico e a sua Teoria) e 5 (O Realizador e o Material l'Iltnieo) numa coleco de divulgao da Kinopetcht (Moscovo e Leninegrado, 1926). Alm destes dois ensaios de Pudovkin, a edio alem inclua um texto de S. Timochcnko (Filmkunst und Filmsch-

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VSEVOLOD PUDOVKIN

tagem rpida, e outro, de montagem lenta; mas esquecem (ou nunca chegaram a sab-lo) que o ritmo (quer dizer, o efeito obtido pela alternncia de imagens mais ou menos breves ou demoradas) no esgota de modo nenhum a totalidade das possibilidades da montagem. Para clarificar estas afirmaes, e para mostrar aos meus leitores, sem possibilidade de engano, o que significa a montagem e quais so todas as suas potencialidades, utilizarei uma analogia com outra forma de arte a literatura. Para o poeta ou para o escritor, as palavras, soltas, so como que matria-prima. Tm as mais latas e variadas significaes, que s comeam a precisar-se quando essas palavras tomam na frase uma posio definida. Na medida em que a palavra se integra numa frase composta que o seu efeito e

nitt) e trechos de argumentos de Thea von Harbou, Carl Mayer e L. Hailborn-Korbitz. A verso inglesa deve-se a Ivor Montagu e foi publicada sob o ttulo Film Technique por Gollancz (Londres, 1929) e depois, acrescentada dos n." III, IV, V e VI, por Newnes ( Londres, 1933). Entretanto, Umberto Barbaro dera estampa a primeira verso italiana, Il Soggetto Cinematografico, publicada por Edizioni d'Italia (Roma, 1932). A segunda verso italiana, ainda de Barbaro, trazia o ttulo Film e Fonofilm e foi tambm publicada por Edizioni d'Italia (Roma, 1935), incluindo j os n." III, V e VI. Todas estas verses so brilhantemente prefaciadas e anotadas pelos respectivos tradutores. A verso americana, posterior guerra, Film Technique and Film Acting (Lear Publishers, New York, 1949), traz porm um no menos valioso prefcio de Lewis Jacobs e inclui o notvel volume O Actor no Filme.

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a sua significao se definem em funo da posio que ela ocupa na forma artstica dessa frase composta. Perante o realizador cinematogrfico, cada troo de imagem do filme serve o mesmo propsito que a palavra perante o poeta. Hesitando, escolhendo, rejeitando ou retomando cada plano mediante um consciente processo de composio artstica, ele constri gradualmente as frases de montagem, as cenas e sequncias com que, passo a passo, se vai formando a obra completa: o filme. A expresso corrente, segundo a qual um filme filmado, inteiramente falsa e devia ser banida da nossa linguagem. O filme no filmado, mas construdo : construdo a partir de troos soltos de pelcula impressionada, que so a matria-prima nesta arte Se um escritor tomou uma palavra btula, por exemplo, essa palavra isolada constitui ~ente o esqueleto nu de uma significao, (por assim dizer) um conceito desprovido de essncia e de sentido preciso. S em combinao com outras palavras, s integrada na moldura estrutural de uma forma complexa, que ela receber vida e realidade artstica. Abro ao acaso uni livro que est sobre a minha secretria e leio o terno verde de uma jovem btula prosa no muito notvel, certo, mas bom exemplo para demonstrar inteira e claramente qual a diferena que existe entre uma palavra isolada e uma estrutura verbal em que a palavra btula se no reduz a nua sugesto mas participa integral e orgnicamente numa forma literria definida. A palavra morta acordou para a vida atravs da arte. 29

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Eu proclamo que qualquer objecto, cinegrafado de certo ponto de vista e exibido na projeco ao espectador, no passa de um objecto morto mesmo que se haja movido perante a cmara. O movimento objectivo que a cmara observa e regista no ainda movimento no cran ; apenas matria-prima para a futura construo pela montagem do movimento verdadeiro que s a associao organizativa de planos pode criar. S se esse objecto for colocado entre outros objectos, s se for apresentado como parte integrante de uma sntese de diferentes imagens individuais, que ele receber vida flmica. Todo e qualquer objecto tem de ser trazido ao cran, pela montagem, de modo tal que adquira uma natureza cinematogrfica, e no apenas fotogrfica. Compreende-se assim que a significao da montagem e os problemas que ela apresenta ao realizador se no esgotem, de forma nenhuma, com a lgica sucesso temporal dos planos nem com a criao de um ritmo. A montagem o acto basilar da criao artstica, por cujo poder as fotografias inanimadas (os planos) se organizam numa forma cinematogrfica viva. E sintomtico que, para construir esta forma, se possa recorrer a materiais de carcter e origem diversssimos. Seja-me permitido tomar um exemplo do meu recente filme O Fim de S. Petersburgo. No princpio daquela parte do filme que representa a guerra, eu queria mostrar uma terrvel exploso. Para dar ao espectador uma exploso absolutamente verdadeira, fiz enterrar uma boa quantidade de dinamite, fi-la explodir e registei na pelcula o resultado. A expio30

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so foi verdadeiramente colossalmas, filmicamente, nada. Uma to violenta e grandiosa exploso, como ela o foi na realidade, parecia no cran lenta e inanimada. Depois de muitas tentativas e experincias, acabei por montar uma exploso tal como desejava sem utilizar um s fotograma da imagem que obtivera a princpio. Arranjei imagens de um lana-chamas que produzia grandes nuvens de fumo; para criar o efeito de exploso, intercalei-lhe breves relmpagos de uma combusto de magnsio em rtmicas alternncias de claro e escuro; no meio de tudo isto misturei a imagem de um rio, que tomara havia tempos, e que me pareceu apropriada merc da sua especial tonalidade. Assim surgiu gradualmente o efeito visual que eu pretendia. A exploso de uma bomba ali estava, por fim, no cran, mas na realidade os elementos de que ela se compunha eram imagens de tudo menos de urna verdadeira exploso. Novamente, apoiado neste exemplo, repito que a montagem a fora criadora da realidade flmica e que a natureza fornece to-smente a matriaprima que ela elabora. Tal , precisamente, a relao entre o mundo objectivo e o mundo flmico. Estas observaes aplicam-se tambm, em particular, aos actores. A imagem fotogrfica de um ser humano apenas matria-prima para a futura criao, Pela montagem, da sua imagem flmica. - Quando eu tive de mostrar, em O Fim de S. Petersburgo, um magnate industrial, procurei resolver o problema associando, na montagem, a sua imagem da esttua equestre de Pedro-o-Grande. Acho que a 31

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composio resultante eficaz, e que tem uma realidade muito outra que aquela que se obteria pela arte de um actor, que quase sempre resulta teatral. No meu anterior filme A Me, tentei afectar o espectador no com o trabalho psicolgico dos actores, mas utilizando a montagem como instrumento de sntese plstica. O filho est encarcerado, e sbitamente recebe, por vias clandestinas, um bilhete em que se lhe anuncia que ser libertado no dia seguinte. Eu necessitava, aqui, de dar a expresso flmica da sua alegria. Mostrar apenas uma face alterada pela satisfao no alcanaria suficiente efeito. Mostrei portanto o jogo nervoso das suas mos e um grande plano, um plano mximo da metade inferior da face: o sorriso nos cantos dos lbios. Estes dois planos, montei-os ento com material diferente uma torrente primaveril, raios de sol reflectindo-se nas guas, aves banhando-se num charco de aldeia e, por fim, uma criana a rir. Pela juno destes componentes, supus ter dado forma alegria do prisioneiro. No sei como o pblico ter julgado esta experincia, mas, por mim, estou profundamente convicto de que ela resultou A arte cinematogrfica progride rapidamente. As suas possibilidades so inesgotveis. Mas no se deve esquecer que o seu caminho para uma condio realmente artstica s ser encontrado quando ela se tiver

Diz Ernest Lindgren, em The Art of the Film, que esta descrio da cena, feita pelo prprio autor, incompleta e demasiado modesta.

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libertado dos ditames de uma forma de arte que lhe estranha : o teatro. O cinema encontra-se agora no limiar dos seus prprios mtodos. de crucial importncia o esforo que se fizer na arte do cinema para afectar pela montagem os sentimentos e as ideias do pblico, pois esse esforo representa uma renncia aos mtodos teatrais. Estou firmemente em crer que segundo esta linha que a grande arte internacional cinematogrfica far o seu futuro progresso'.

Se j no tempo do mudo Pudovkin, como outros, reclamava que o cinema se libertasse do teatro, que dizer do cinema sonoro, em que a presena cla palavra amarra, por vezes, ainda mais, a forma filmica a razes dramticas? Esta nsia de libertao respeita ~entenote-se no texto aos mtodos: quer dizer, no est em causa a unidade (cultural) da arte, mas apenas a independncia (formal) dos mtodos. O que Pudovkin aqui defende que o cinema desenvolva o seu mtodo narrativo ( montagem) em vez de limitar-se a reproduzir fotogrficamente o mtodo dramtico do teatro. a

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I

O Argumento

A Planificao do geral conhecimento que um filme acabado consiste numa sucesso de mais ou menos breves troos de imagem em ordem cronolgica bem determinada. Ao presenciar o desenrolar da aco, o espectador transportado de um local para outro e, mais ainda, ao ver uma mesma cena, por vezes at uma mesma personagem, ele nem sempre observa o conjunto de uma s vez: mas primeiro um aspecto particular, depoisoutro, ()litro ainda, e assim sucessivamente. EssesitNpee11)1

particulares de uma mesma cena ou de uma mesma ligara humana foram obtidos apontando a cantara agora a unia parte, depois a outra, etc. Dit-se o nome de montagem construtiva a este mtodo de construo do filme, que consiste em analisar o material visual dividindo-o nos seus elementos constitutivos para depois o reconstruir sob forma de um todo cinematogrfico. Faremos deste mtodo o objecto da segunda parte deste estudo. Por agora, temos apenas de assentar cm que ele o mtodo fundamental do trabalho filmico.41

VS1W01,0I) PUDOVKIN

xr

Ao rodar o filme, o realizador no se encontra em condies de registar aqueles troos de imagem pela sita exacta ordem definitiva: no pode comear pelo pi i meiro, passar ao segundo, e ir assim, sucessiva e ordenadamente, at registar afinal o ltimo plano do filme. A razo simples. Suponhamos, por exemplo, que construmos um certo cenrio ; normalmente, as cenas que a devem passar-se estaro distribudas ao longo do filme de tal modo que entre elas haver outras, passadas em locais diferentes. Se ao realizador se lhe metesse na cabea rodar neste cenrio uma cena, e depois outra, passada noutro cenrio, e outra ainda, passada num terceiro, etc., para s voltar ao primeiro cenrio quando a ordem cronolgica da aco lho permitisse, evidentemente que lhe seria necessrio ter simultneamente construdos todos esses cenrios, dispondo de uma quantidade proibitiva de material construtivo e decorativo e ocupando uma superfcie enorme. Simples motivos econmicos e tcnicos tornam impraticvel este mtodo de rodagem. Portanto, nem o realizador nem o actor podem trabalhar de acordo com a ordem cronolgica dos planos que iro constituir o filme. Mas isto compromete a boa continuidade do material rodado : compromete a prpria unidade estilstica do filme, que a sua eficcia. Para salvar essa unidade e essa continuidade, pois essencial dispr de um mtodo de trabalho que neutralize os perigos da atomizao da rodagem e do abandono da verdadeira ordem cronolgica dos planos. Esse mtodo de trabalho baseia-se principalmente num aprofundado e detalhado estudo preliminar do 42

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argumento, que permita ao realizador a prefigurao visual, nos seus mnimos pormenores, de todo o resultado. S assim ele poder depositar confiana nas fases seguintes do seu trabalho e chegar a um resultado significativo: tratando cada plano, cuidadosamente, de acordo com um projecto de antemo estabelecido onde visualizou uma sucesso de imagens para traar uma vez por todas o inteiro decorrer da aco e da evoluo de cada personagem. S por meio desse trabalho preparatrio que o realizador pode criar o estilo, a unidade que condiciona o valor de toda a obra de arte. As diversas colocaes da cmara e o campo por elas abarcado conjunto, meio-conjunto, grande plano, plonge, etc.; todos os recursos tcnicoscomo encadeados, travellings, panormicas que afectam ou condicionam as ligaes e transies de uns planos para_outros ; tudo aquilo, enfim, que exera influncia sobre o valor intrnseco de cada plano, deve ser prviamente ponderado e estabelecido com exactido. De outro modo, rodando os planos ao sabor das circtmstnelas, pude eometer-se erros que mais tarde se revelem ti leniu nveis. A plattilicaao ( nome que se d a esta transfor~ k ilo tio urownento) portanto nem mais nem menos que unta delttuda e definitiva descrio de cada plano do filme, em que se faz meno de todos os elementos e processos tcnicos a utilizar para a obteno do efeito desejado. Claro que o argumentista teria de acumular, com as suas, as capacidades do realizador para poder escrever o argumento nesta linguagem tcnica; mas todo 43

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este trabalho preparatrio tem sempre que ser realizado, e o argumentista, se no pode entregar uma planificaao acabada e pronta para a rodagem, pode ao menos, na medida em que oferece uma seleco de material mais ou menos prximo da forma ideal, dar ao realizador um conjunto de estmulos teis em vez de uma srie de obstculos a transpor. Quanto mais o argumentista tiver considerado e respeitado, no seu trabalho, as particularidades tcnicas da realizao, maiores probabilidades ele se garantir de encontrar no cran uma rplica fiel das imagens que idealizou.

Estruturao do ArgumentoSe quisssemos distinguir tempos sucessivos no trabalho de criao do argumento cinematogrfico, tempos nos quais se passasse gradualmente do geral ao particular, obteramos, esquemticamente, o seguinte: 1) O tema ; 2) O assunto tratamento do terna ; 3) O tratamento cinematogrfico do assunto. Claro que esta diviso esquemtica s pode conceber-se a posteriori, corno resultado da disseco de ' Combino aqui duas fases distintas para efeitos de breve estudo, mas isso no tecnicamente correcto (N. A.).44

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um argumento acabado. Como j fiz notar, o processo criador pode levar outro andamento. Cenas soltas imaginadas a priori podem servir de semente para a imaginao de um tratamento em que viro depois a integrar-se durante o seu processo gestativo. Mas, seja como for, o processo de criao do argumento compreende, idealmente ao menos, estas trs fases por esta ordem '. Atente-se em que o filme, dada a sua natureza especial (a sucesso relativamente rpida de imagens), exige do espectador uma concentrao de ateno verdadeiramente excepcional. O realizadore consequentemente o argumentista conduz despticamente a ateno do espectador, que s v o que ele lhe mostra, sem tempo para reflectir, para duvidar, para criticar. O mnimo erro que afecte a clareza ou a vida do relato criar no espectador uma noo desagradvel de vazio e de confuso. Antes de mais nada, pois necessrio que o argumentista procure manter a mxima clareza e simplieldittle quando resolve cada um dos problemas que lhe ocorrem durante o seu trabalho, seja qual for o momento do processo criador em que os defronte. pt)i convenincia da exposio, vou analisar separadamente, pela urdem enunciada, cada um destes trs tempos em que se pode dividir esquemticamente o processo de criao do argumento.

' V. nota suplementar A, no Apndice.45

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A Montagem como meio de Conduo Psicolgica ( Montagem de Relao)J dissemos, ao tratar da montagem das cenas, que a montagem no se resume ao processo de reunio dos elementos constitutivos do filme, mas que por ela se pode efectuar a conduo psicolgica do espectador. Devemos agora familiarizar-nos com os principais mtodos que servem essa conduo. Contraste : Se nos compete contar a msera situao de um homem esfomeado, a narrativa ser mais impressionante se recorrermos ao contraste entre a sua fome e a desbragada glutonice de algum nababo. Nisto se baseia o mtodo de montagem por contraste, que no cran consegue ainda mais vivo efeito que no papel, pois possvel levar a comparao a efectuar-se no esprito do espectador no s entre as duas cenas, mas mesmo plano a plano. A montagem de contrastes uma das mais eficazes, mas tambm das mais vulgares ; por isso se deve ter o cuidado de a no empregar demasiado. Paralelismo : O mtodo do paralelismo assemelha-se ao do contraste, mas mais amplo. ir conveniente recorrer a um exemplo : um trabalhador, que participou na chefia de uma greve, foi condenado morte : a execuo ter lugar s cinco da madrugada. Vemos o patro saindo, bbedo, de um local nocturno. Olha o relgio : so quatro horas. O ru est a ser preparado para a sada. O industrial toca a urna porta para saber as 90

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horas: quatro e meia. O carro celular conduz o condenado pelas ruas sob pesada escolta. A mulher que veio porta a esposa do trabalhador tem um desmaio sbito. O bbedo ressona, vestido, sobre a cama, com o brao pendente: no relgio de pulso vemos os ponteiros a aproximar-se lentamente das cinco horas. Neste exemplo, temos dois episdios sem conexo narrativa a desenrolar-se ao mesmo tempo, paralelamente. O relgio estabelece a ligao temporal e dramtica entre eles. Eis um mtodo indubitvelmente muito interessante, susceptvel de rico aproveitamento. Semelhana: Nas cenas finais do filme Greve, o massacre dos trabalhadores pontuado pelo abate de um boi no matadouro. O autor como que nos diz, com esta montagem, que os trabalhadores so fria e cruelmente fuzilados como os bois morrem, no matadouro, s mos do magarefe. O interesse deste mtodo de montagem reside na sua possibilidade de implantar um conceito abstracto nu mente do espectador sem recurso a qualquer legenda. Simultaneidade: Em filmes americanos, podemos encontrar exemplos de uma construo final (final Griffith) que se baseia no desenvolvimento em paralelo de duas aces convergentes, dependendo do desenlace de uma o desenlace da outra. Assim se verifica, por exemplo, no caso do filme Intolerance j citado. Todo o fito deste tipo de montagem est em criar no espectador um mximo de excitao emocional por meio da constante preocupao chegaro a tempo?, chegaro a tempo?. um mtodo puramente emocional e, embora praticado hoje em dia at s raias 91

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do insuportvel, no se pode negar que seja talvez o mais eficaz processo de rematar um filme. Estribilho (leit-motif ): O argumentista v-se muitas vezes a braos com a convenincia de repetir explicitamente o seu tema. Recorre para isso ao mtodo de reiterao de um plano-estribilho. Por exemplo: em certo filme anti-religoso onde se procurava mostrar a crueldade e a hipocrisia da Igreja ao servio do regimen do Czar, havia um plano diversas vezes repetido: os sinos de uma igreja, tocando lentamente, com uma legenda sobreimpressa: o som dos sinos lana ao mundo uma mensagem de resignao e amor. Este plano era repetido sempre que o argumentista queria acentuar a estupidez da resignao ou a hipocrisia do amor. O pouco que fica dito sobre a montagem de relao de modo nenhum esgota a abundncia dos respectivos mtodos. Aqui apenas importava mostrar que a montagem de relao, mtodo caracterstico do filme, nas mos do argumentista um importante instrumento de conduo psicolgica do espectador. O seu cuidadoso estudo, combinado com o talento da sua prtica, pode conduzir descoberta de novas possibilidades e, com elas, criao de novas formas 1.

' V. nota suplementar B, no Apndice. 92

2 1 0 Realizador e o Material Flmico

Durante o Vero de 1930, assisti a urna reunio no Palcio do Trabalho, em Moscovo. No final, tivemos de esperar que terminasse uma forte Chuvada. Os glbulos de gua ricocheteavam ligeiramente nas soleiras: ora grandes, ora mais pequenos, at desaparecer. Moviam-se subindo e tombando, descrevendo curvas de formas variadas num ritmo complexo mas definido. Por vezes diversas correntes, influenciadas talvez pelo vento, uniam-se numa s. A gua batia na pedra dividindo-se em transparentes e trmulos leques que logo caam, e de novo as gotculas redondas e rebrilhantes saltavam sobre o rebordo para misturar-se s outras que desciam do cu. Que chuva! Eu estava simplesmente a v-la, mas sentia bem a frescura, a humidade, a generosa plenitude que oferecia. Senti-me embebido nela, como sePalestra escrita, mas no lida, para o Curso de Verto de 1931 da Federao dos Trabalhadores do Filme. Foi publi.. cada pela primeira vez, nesta verso inglesa de Montagu a H. C. Stevens, no The Observer de 31 de Janeiro de 1932. Sobre o valor da experincia, v. nota suplementar E, noApndice. 291

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Ine corresse sobre a cabea e sobre os ombros. Decerto a terra, ensopada, teria h muito deixado de beb-la. Como sucede vulgarmente no Vero, o aguaceiro terminou quase abruptamente, espalhando as ltimas gotas sob os raias de um sol de novo refulgente. Sa do edifcio e, atravessando o jardim, parei para ver um homem que ceifava a relva com uma foice. Estava de tronco nu, os msculos das costas contraam-se e distendiam-se com o ondular ritmado da foice. A lmina humedecida, ao subir nos ares, apanhou os raios do sol e tornou-se por um momento em aguada chama que cegava a vista. Aproximei-me. A foice enterrava-se na relva hmida e rija e esta, ao ser cortada, descia lentamente para o cho mim gracioso movimento impossvel de descrever. Rebrilhando sob os raios do sol, as gotas de chuva tremulavam nas pontas aguadas e pendentes das folhas, baloiavam e caam. O homem ceifava; eu fiquei a olhar. E de novo me senti preso de uma estranha sensao de entusiasmo ao admirar a grandeza do espectculo. Eu nunca vira relva hmida como aquela! Eu nunca vira como as gotas de gua cabriolavam ao longo dos sulcos das estreitas folhas ! Pela primeira vez eu via como os caules tombavam medida que cediam ao movimento ondulante da lmina! E, como sempre, de acordo com o meu hbito invarivel (que sem dvida familiar a todos os realizadores de filmes), tentei imaginar tudo isso no cran. Recordei as cenas de ceifa j rodadas e vezes sem conta includas em filmes numerosos, e senti com nitidez a pobreza dessas mortas fotografias ao p da maravi202

ARGUMENTO E REALIZAO

lhosa e prenhe riqueza que estava admirando. Para compreender em que medida tudo isso era pobre e primitivo, bastaria observar o chato manequim cinzento a manejar compassadamente o longo cabo da foice num ritmo sempre ligeiramente acelerado, bastaria ver a relva de cima, como um tapete cinzento e enrodilhado. Lembrei-me at do tecnicamente magnfico filme de Eisenstein A Linha Geral, onde, numa complexa construo de montagem, se v um concurso de ceifeiros. E nada ficara na minha memria, a no ser homens que manejavam rapidamente umas foices a custo visveis. O problema estava em capturar, em reproduzir aos olhos de outros, esta intensa e profunda sensao com que, duas vezes nesse dia, os processos naturais me haviam surpreendido. Atormentei-me durante todo o caminho para casa, rebuscando as ideias numa procura 'sem sucesso. E por fim encontrei! Quando o realizador roda uma cena, muda a colocao da cmara, ora 'aproximando-a do actor ora afastando-a, conforme os seus desejos de concentrar a ateno do espectador ou nalgum movimento de conjunto ou nalgum aspecto de pormenor por vezes nas feies de uma pessoa. assim que se constri espacialmente a cena. Porque se no h-de fazer precisamente o mesmo com a construo temporal? Porque que um 'determinado pormenor no h-de ser momentneaxnente sublinhado pelo retardador, tornando-se assim especialmente notvel e inteligvel? Ou no era verdade que a minha ateno, concentrada sobre as gotas de chuva ou sobre a relva ceifada, lhes retardava os movimentos? No era graas a esta especial 203

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ateno que eu conseguira perceber tanto mais que at ento? Experimentei imaginar como haveria de rodar e montar a cena da ceifa da relva e cheguei ao seguinte : 1. Um homem est de p, tronco nu, foice nas mos. Pausa. Balana a foice (todo o movimento velocidade normal); 2. O balano da foice prossegue. As costas e os ombros do homem: os msculos trabalham lentamente (registado a alta cadncia com uma cmara de retardador, de modo que tudo no cran resulte invulgarmente lento); 3. A lmina da foice rodando lentamente ao chegar ao ponto mais alto da sua trajectria. Um reflexo do sol rebrilha nela por um momento (retardador) ; 4. A lmina voa para baixo rpidarnente (normal) ; 5. O homem, visto inteiro, ataca de novo a relva com a foice, velocidade normal. Um golpe e atrs. Outro golpe e atrs de novo. Outro golpe... e, no momento em que a lmina da foice toca a relva... 6. ...lentamente (retardador), a relva cortada balana, cai, espalhando gotculas rebrilhantes; 7. Os msculos das costas distendem-se lentamente, os ombros descaem (retardador) ; 8. De novo a relva, lentamente, caindo no solo (retardador) ; 9. A lmina da foice, rpida, levanta-se (normal); 204

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10. O homem, tambm rpidamente, maneja a foice, varrendo e cortando; 11. Tambm velocidade normal, um grupo de homens ceifando, movendo as foices em unisono ; 12. Levantando devagar a sua foice, um homem sai de campo. um esboo muito aproximativo. Depois da rodagem, montei o material de um modo diferente, usando planos tomados a cadncias diversas. Em cada um dos enquadramentos, foram usadas vrias cadncias finamente graduadas. Quando vi o resultado no cran, percebi que a ideia era boa. O novo ritmo, independente do ritmo da realidade, e que resultava da combinao de planos tomados a diferentes cadncias, proporcionava um sentido aprofundado, poderia dizer-se que enriquecido, do facto que se descrevia. Os espectadores de acaso, que no conheciam a natureza do mtodo utilizado, confessaram ter experimentado uma noo quase fsica de humidade, peso e fora. Tentei rodar e montar a chuva pelo mesmo processo. Tomei conjuntos e grandes-planos a diferentes cadncias, usando o retardador. O lento embate das primeiras gotas, pesadas, contra o p seco: caem ricocheteando glbulos escuros. A queda da chuva sobre uma superfcie de gua: o impacto rpido levanta uma coluna transparente que lentamente se abate para formar crculos concntricos, lentos, superfcie. Um aumento da velocidade acompanha o engrossar da 205

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chuva e o alargar do enquadramento. O vasto e macio cordo de fios de gua a cair persistentemente, e depois, sbitamente, a abrupta introduo de um grande-plano do embate de um s desses fios contra uma balaustrada de pedra. A medida que as gotas rebrilhantes vo saltando os seus movimentos so excepcionalmente lentos pode ver-se todo o complexo e maravilhoso jogo das interseces de trajectrias no espao. De novo o movimento se acelera, mas j a chuva enfraquece. A fechar, planos de relva hmida ao sol. O vento f-la ondular e ela balana devagarinho : as gotas de chuva escorregam e caem. Este movimento, tomado com a mais elevada cadncia da cmara, mostrou-me pela primeira vez que se pode registar e reproduzir o ondular da relva ao vento. Em filmes anteriores, eu nada vira seno uma tremura seca e histrica. Estou profundamente convicto tanto da necessidade como da praticabilidade deste novo processo. da mais alta importncia a apreciao que se fizer em profundidade da natureza deste trabalho de retardador; e preciso explor-lo no corno uma habilidade mas como um meio consciente de retardamento ou acelerao, em ocasies determinadas, do movimento, e a um grau determinado. preciso ser-se capaz de explorar todas as possveis cadncias da cmara, desde a mais alta, que d no cran uma excepcional lentido de movimentos, at mais baixa, que oferece uma rapidez incrvel. Por vezes, s um ligeiro retardamento do puro e simples andar de urna pessoa pode dar-lhe um peso e uma significao inatingveis pela arte do actor. Tentei representar urna exploso 206

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de granada montando planos de variadas cadncias: movimento lento a princpio, depois muito rpido, depois um desenvolvimento ligeiramente retardado, depois o cho afundando-se devagar, e ento, sbitamente, fragmentos de terra que voam velozmente para o espectador ; durante uma fraco de segundo esse voo lento, esmagador e terrvel, e logo a velocidade volta ao mximo. Resultou excelente. H muito que tem vindo a fazer-se cinema com o retardador. A desconcertante estranheza do movimento retardado, a possibilidade de percepo de formas ordinariamente imperceptveis e invisveis, mas nsm por isso inexistentes na realidade, exerce no espectador uma impresso ta poderosa que j no invulgar nos filmes a insero de planos tomados ao retardador. Deve aqui notar-me que o encanto de um movimento inteligentemente eapt tirado no desenho se deve muitas vezes no mesmo efeito de retardador s que a o papel da cmara especial desempenhado pelos olhos do artista. Mas todos os realizadores que at hoje exploraram o uso do retardador se esqueceram de fazer aquilo que a mim me parece o fundamental. Esqueceram-se de incorporar o movimento retardado na construo global da montagem no fluir rtmico geral do filme. Se, por exemplo, usaram o retardador para o salto de um cavalo, tomaram o salto todo num s plano e como um todo o inseriram no filme, como se se tratasse de uma sequncia independente, intercalada. Ouvi dizer que Jean Epstein rodou todo um filme ao retardador (creio que era La Chute de la Maison d'Usher, segundo o 207

VSEVOLOD PUDOVKIN

conto de E. A. Poe), empregando o efeito de lentido no intuito de dar urna tonalidade mstica a todas as cenas. Isso no de modo nenhum o que eu quero dizer. O que eu quero dizer que se deve, na construo da frase de montagem, incorporar integralmente no todo os vrios graus de retardamento do movimento. Um plano curto ao retardador pode ser colocado entre dois outros, de velocidade normal, para concentrai sobre um certo momento a ateno do espectador. O retardador, na montagem, no urna distoro da realidade. uma descrio muito mais profunda e exacta, uma conduo consciente da ateno do espectador. E esta conduo a caracterstica eterna do cinema. Experimentei construir do seguinte modo a imagem flmica de uma punhada sobre uma mesa: o punho fechado precipita-se velozmente sobre o tampo da mesa e, no momento em que o atinge, o enquadramento muda para dar planos de um copo, que estava perto, a saltar lentamente, a rodar e a cair. Com esta combinao de planos rpidos e lentos, produziu-se urna impresso quase audvel, nitidamente sentida, da violenta pancada. Os factos mostrados no cran por meio da montagem 'de planos rodados a vrias velocidades parecem dotados de um ritmo especial, como que de uma vida prpria. So factos vivos porque receberam a centelha vital de um conceito avaliador, seleccionador e compreensivo. No passam despercebidos como a paisagem passa por ns atravs das janelas do comboio, 208

ARGUMENTO E REALIZAO

mas desdobram-se e desenvolvem-se como a narrativa de um observador bem dotado que haja percebido perfeitamente a coisa ou o facto, que a haja percebido melhor que ningum antes dele. Creio que este mtodo pode ser estendido e aplicar-se tambm reproduo da figura humana da sua expresso, do seu gesto. J sei por experincia prpria que precioso material se obtm ao rodar ao retardador um sorriso humano. De planos desses, j extra notveis pausas onde s ainda os olhos sorriem o sorriso que os lbios no encetaram. O grande-plano no tempo tem um futuro enorme. Especialmente no cinema sonoro, onde o ritmo recebe novas significaes e nova complexidade pela sua conjugao com o som: a torna ele especialmente importante.se

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