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127 O BLOCO DE CONSTITUCIONALI- DADE COMO PARÂMETRO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDA- MENTAIS CONSTITUTIONAL BLOCKS AS PARAMETERS TO THE PROTECTION OF HUMAN RIGHTS LE BLOC DE CONSTITUTIONNALITÉ COMME PARAMÈTRE DE PROTECTION DES DROITS FONDAMENTAUX Vitor Tadeu Carramão Mello* RESUMO: A tendência à criação de blocos econômicos se reproduz no âmbito do direito como reforço da teoria do bloco de constitucionalidade. Inicialmente originária do direito francês, tal formulação adqüiriu uma dimensão supranacional, principalmente na União Européia, tendo em vista a criação de um direito comunitário. A noção de bloco remete à de um todo incindível e sólido, contribuindo para a ampliação da proteção dos direitos fundamentais, já que o parâmetro de controle de constitucionalidade é ampliado. No direito brasileiro, a aceitação desta teoria ainda é embrionária, mas desempenha * Procurador da Fazenda Nacional. Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho/UGF. Professor da Universidade OMNI.

Le Bloc de Constitucionallité

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O BLOCO DECONSTITUCIONALI-DADE COMOPARÂMETRO DE PROTEÇÃO DOSDIREITOS FUNDA-MENTAISConstitutional BloCks as Parameters to the ProteCtion of human rightsLe BLoc de constitutionnaLité comme Paramètre de Protection des droits Fondamentaux

Vitor Tadeu Carramão Mello*

resumo: A tendência à criação de blocos econômicos se reproduz no âmbito do direito como reforço da teoria do bloco de constitucionalidade. Inicialmente originária do direito francês, tal formulação adqüiriu uma dimensão supranacional, principalmente na União Européia, tendo em vista a criação de um direito comunitário. A noção de bloco remete à de um todo incindível e sólido, contribuindo para a ampliação da proteção dos direitos fundamentais, já que o parâmetro de controle de constitucionalidade é ampliado. No direito brasileiro, a aceitação desta teoria ainda é embrionária, mas desempenha

* Procurador da Fazenda Nacional. Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho/UGF. Professor da Universidade OMNI.

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um papel importante na recepção dos tratados internacionais de direitos humanos como norma constitucional. Palavras-Chave: Bloco de constitucionalidade, direitos fundamentais, Direito Constitucional Comparado.

aBstraCt: The tendency to the creation of economic blocks has its reflects in law field as the theory of constitutional block`s reinforcement. Initially developed in French Law, such theory has acquired a supranational dimension mainly in European Union, due to the creation of a community`s law. The block`s idea evokes something indivisible and solid, in a way that it produces a broader protection of human rights, as the parameter of constitutionality’s control is enlarged. Although in Brazilian Law the acceptance of such theory is still embryonic, it leads an important role on the reception of international human rights as constitutional norm. key-Words: Block of constitucionalitty, human rights, Comparative Constitucional Law.

résumé: La tendence à la production des blocs économiques se reproduit dans l’ambience du Droit comme renforcement de la théorie dubloc de constitutionnalité. D’abord d’origine dans le Droit Français, cette formulation acquit une dimension supranational, surtout dans la Union Européenne, envisageant la création d’un Droit Communautaire. La notion de bloc remet à celle d’un tout incassable et solide, et contribue avec l’ampliation de la protection des droits fondamentaux, car le paramètre de contrôle de constitutionnalité est amplié. Dans le Droit Brésilien l’acceptation de cette théorie est encore embryonnaire, mais joue un rôle important dans la reception des traités internationaux des droits de l’homme comme norme constitutionnelle.mots-Clés: Bloc de constitutionnalité ; Droits fondamentaux ; Droit Constitutionnel Comparé

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1. introdução:

O presente artigo tem por escopo proceder a um estudo sobre a teoria do bloco de constitucionalidade, originária do direito francês, e sua contribuição para uma proteção mais efetiva dos direitos fundamentais, bem como suas possíveis aplicações ao direito brasileiro, tanto pela doutrina como pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Como ponto de partida, utilizar-se-á o Direito Comparado, em especial o direito francês e o da União Européia, de onde, respectivamente, surgiram os contornos e houve um aprofundamento desta construção doutrinária. Dentro dessa estruturação, inicialmente analisar-se-ão as origens do bloco de constitucionalidade no direito francês. Logo em seguida, será estudado como a respectiva teoria ganhou uma dimensão supranacional com a União Européia, na medida em que objetiva resguardar os direitos fundamentais no âmbito desta Comunidade Econômica. Também serão analisadas as críticas à supranacionalização do bloco constitucional, dentro de uma visão que procura resguardar a autonomia dos Estados. Por derradeiro, buscar-se-á demonstrar de que formas a doutrina e a jurisprudência brasileiras, ainda que pontualmente, vêm recepcionando e adaptando tal entendimento. Proceder-se-á a um breve estudo sobre os tratados internacionais de direitos humanos, e em que medida estes, por força do bloco de constitucionalidade, podem ser recepcionados como norma constitucional.

Assim sendo, intenta-se demonstrar de que modo o bloco de constitucionalidade pode corroborar a proteção dos direitos fundamentais, em seus três sistemas de proteção: nacional, regional e internacional.1

2. BloCo de ConstituCionalidade

O bloco de constitucionalidade na França

De forma a bem compreender uma teoria, faz-se mister que se conheça o contexto em que ela foi criada, o que, em nosso caso, inicialmente, se refere ao

1 O sistema internacional de proteção dos direitos humanos encontra-se bem explanado na obra Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Flávia Piovesan, Ed. Saraiva, 2005, em sua Terceira Parte, cuja leitura sugerimos para aprofundamento, uma vez que o tema não será abordado com profundidade, por fugir ao âmbito do presente estudo.

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direito francês. Tal direito sempre demonstrou uma reverência muito grande pela figura da lei. Montesquieu considerava o juiz como “a boca que pronuncia as palavras da lei”, e Rousseau dizia que o contrato social legitima o legislador.2 Fato é que a França sempre teve uma tradição legicêntrica muito marcante.

A reverência à lei na França é tão grande, que o controle de constitucionalidade nesse país é realizado previamente por um órgão político, o Conselho Constitucional. Uma vez promulgada a lei, não mais se admite a declaração de sua inconstitucionalidade posterior.3 Dominique Turpin4, na obra Contentieux Constitutionnel, aduz que, durante mais de um século e meio, o direito público francês foi dominado pelo mito rousseauniano da “lei expressão da vontade geral”, cuja consequência foi a ausência de qualquer controle sobre as leis elaboradas pelo Parlamento. Outra consequência da reverência ao legislador é que as decisões judiciais na França são, em geral, muito pouco fundamentadas, se comparadas com às de outros sistemas judiciais, em especial aos de common law, mas até mesmo ao brasileiro. Ou seja, como, via de regra, a lei já diz tudo ou quase tudo, não há necessidade de descer às minúcias nas decisões judiciais.

Alguns juristas franceses criticam a parca fundamentação das decisões judiciais. André Tunc afirma que a Cour de Cassation, órgão supremo do Judiciário na França, procede por afirmação de princípios cujo âmbito de aplicação ela nada faz para esclarecer.5 E prossegue, aduzindo que uma fundamentação mais explícita das decisões contribuiria para um melhor esclarecimento dos princípios, bem como para uma melhor aplicação às peculiaridades de cada caso concreto.

Ao lado da reverência do legislador, são peculiaridades do direito francês a independência da jurisdição administrativa e a distinção entre o domínio da lei e o domínio do regulamento.6 O art. 34 da Constituição francesa enumera as matérias que são próprias do domínio da lei do Parlamento, enquanto que o art. 37 estabelece, por seu turno, em sua alínea 1ª, que as demais matérias não enumeradas no art. 34 possuem caráter regulamentar e que “os textos de forma legislativa referentes

2 ROUSSEAU Jean Jacques. O Contrato Social – Princípios de Direito Político. 19 ed. (Local): Ediouro, (Data).

3 Para maiores referências, recomenda-se a consulta ao sítio conseil-consitutionnel.fr

4 TURPIN, 1986, p. 13.5 TUNC, 1974, p..6 Para uma melhor compreensão da distinção entre lei e regulamento na

França, consulte-se: a obra de CYRINO, 2005, p. 115-128.

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a tais matérias poderão ser modificados por decretos promulgados após consulta ao Conselho de Estado”. Em virtude desta distinção entre o domínio da lei e o do regulamento, o Direito Administrativo na França possui um contencioso próprio, separado dos tribunais judiciais. Tanto que um dos princípios integrantes do bloco de constitucionalidade é, justamente, a competência exclusiva da autoridade administrativa em matéria de anulação de atos da autoridade pública, como se verá adiante.

A noção de bloco de constitucionalidade

A noção de bloco surge inicialmente no Direito Administrativo francês. Com efeito, Maurice Hauriou utilizou a expressão bloc legal7 para designar o conjunto de regras a que a Administração Pública está adstrita, em virtude do princípio da legalidade. Posteriormente, essa idéia ganha uma dimensão constitucional. A idéia de bloco remete à de solidez e unidade, noções fundamentais para a proteção dos direitos fundamentais.8

Louis Favoreu defende que esta noção, na França, é eminentemente doutrinária, sem embargo de ter havido também uma evolução jurisprudencial. Com base nas decisões do Conselho Constitucional, o referido autor considera que existem quatro categorias de normas incluídas no bloco de constitucionalidade: a Constituição de 1958, a Declaração e Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o Preâmbulo da Constituição, de 1946 (elementos essenciais), bem como os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República (elementos marginais). Dentre tais princípios, podem ser citados, exemplificativamente, os princípios de liberdade de associação, de ensino, a independência da jurisdição administrativa e a competência exclusiva da autoridade administrativa em matéria de anulação de atos da autoridade pública. A seguir, passa-se à análise de cada um dos elementos que integram o bloco de constitucionalidade francês.

7 Apud FAVOREU, Louis & RUBIO LLORENTE, Francisco. El bloque de la constitucionalidad. Madri: Cuadernos Civstas I, 1991, onde é feita referência à obra de Hauriou como marco inicial no surgimento da teoria do bloco constitucional.

8 A construção da teoria do bloco de constitucionalidade encontra-se no trabalho citado na nota imediatamente anterior a esta, que fundamenta o desenvolvimento da exposição que segue. Para um aprofundamento da questão, também foi consultada a obra Contentieux Constitutionnel, de Dominique Turpin, publicada por Presses Universitaires de France, em 1986.

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A Constituição de 1958

O ponto de partida é, evidentemente, a Lei Maior da França, promulgada em 1958. Segundo Favoreu9, trata-se das disposições contidas nos Artigos de 1 a 92 da Constituição. Todos os dispositivos constitucionais têm a mesma força. No entanto, deve-se ressaltar que os artigos 77 a 78 – relativos à Comunidade que desapareceu em 1960, com a conquista da independência dos antigos territórios da África – já não são aplicáveis.

Estas disposições referem-se, especialmente, aos poderes públicos, a sua posição e atribuições, bem como às relações entre elas, mas também há muitas que afetam os direitos e as garantias fundamentais, como o Art. 2 (a laicidade, a liberdade de consciência, a não discriminação por razão da origem, raça ou religião), o Art. 4 (partidos políticos) e o Art. 66 (liberdade individual e proteção pela autoridade judicial), a título exemplificativo.

As disposições da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789

O conjunto das disposições (Artigos 1 a 17) da Declaração de 1789 é aplicável como parâmetro de controle da constitucionalidade. Num primeiro momento, alguns autores sustentaram que unicamente algumas tinham valor de direito positivo e eram suscetíveis de receber aplicação. Sem embargo, o Conselho Constitucional, não estabelece nenhuma distinção entre elas e, ademais, aceitou decidir praticamente sobre a base de todas elas.

A título exemplificativo, transcreve-se trecho da decisão n° 77-87, de 23 de novembro de 1977, do Conselho Constitucional, na qual se declarou conforme à Constituição a lei que regulava a liberdade de ensino10:

5. Considérant, d’autre part, qu’aux termes de l’article 10 de la Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789 ‘Nul ne doit être inquiete pour ses opinions, même religieuses, pourvu que leus manifestationa ne trouble pás l’ordre public établi par la loi’; que lê Préambule de

9 Op. Cit. p. 2610 A íntegra desta decisão pode ser obtida no endereço http://www.conseil-

constitutionnel.fr/decision/1977/7787dc.htm

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la Constitution de 1946 rappelle que “Nul ne peut être lese dans son travail ou son emploi em raison de ses origines, de ses opinions ou de ses croyances”; que la liberte de conscience doit donc être regardée comme l’um des pricipes fondamentaux reconnus par lês lois de la Republique.11

Na parte da decisão transcrita, além da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, é feita menção a dois outros elementos integrantes do bloco de constitucionalidade, a saber, o Preâmbulo da Constituição de 1946 e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República. Passa-se, a seguir, à análise desses elementos.

O Preâmbulo da Constituição de 1946

Consideradas parte integrante das normas constitucionais e, por isso, do direito positivo pela decisão de 16 de julho de 1971, as disposições do Preâmbulo da Constituição de 1946 foram aplicadas pela primeira vez pelo Conselho Constitucional em sua decisão de 15 de janeiro de 1975, na qual se discutia a constitucionalidade de uma lei sobre o aborto. O seguinte trecho da decisão é elucidativo quanto à aplicação do preâmbulo12:

Considérant qu’aucune des dérogations prévues par cette loi n’ est, em l’état, contraire à l’um desprincipes fondamentaux reconnus par lês lois de la Republique ni ne méconnaít lê príncipe énoncé dans lê préambule de la Constitution du

11 Em tradução livre, o trecho da decisão faz as seguintes observações: “Considerando, por outro lado, que nos termos do art. 10 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 ninguém deve ser perturbado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que sua manifestação não afete a ordem pública estabelecida por lei; que o Preâmbulo da Constituição de 1946 aduz que “ninguém pode ser molestado em seu trabalho ou seu emprego em razão de suas origens, de suas opiniões ou crenças”, que a liberdade de consciência deve, portanto, ser vista como um dos princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República.

12 Íntegra da decisão disponível em: http://www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1974/7454dc.htm

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27 octobre 1946, selon lequel la nation garatit à l’enfant la protection de la santé, non plus qu’aucune des autres dispositions ayant valeur constitutionnelle édictées par le même texte.13

Tal Preâmbulo, como tem sido aplicado pelo Conselho Constitucional, é uma declaração de direitos econômicos e sociais que completa a Declaração de Direitos da primeira geração de 1789. O texto designa, por outro lado, os princípios, que enumera com o título de “princípios políticos, econômicos e sociais particularmente necessários em nosso tempo.”

Os princípios fundamentais reconhecidos pela lei da República

Louis Favoreu refere-se a este elemento do bloco de constitucionalidade como marginal14, uma vez que representa, quantitativamente, muito pouco em matéria de decisões judiciais: aproximadamente 3,7 % das normas invocadas pelo Conselho Constitucional e 4% dos casos de anulação.

As condições exigidas para que se estabeleça a existência de um princípio fundamental reconhecido pelas leis da República são cada vez mais precisas. Podem ser enumeradas as seguintes:

a) Deve-se tratar de uma legislação republicana (244 DC, § 12), o que descarta a produzida sob outros regimes;

b) Esta legislação republicana é a aprovada antes da entrada em vigor do Preâmbulo de 1946 (ou seja, antes de 27 de outubro de 1946);

c) Não deve haver nenhuma exceção à tradição instaurada ao longo das diversas leis aprovadas, posto que se uma só se desviasse da dita tradição, não podia

13 Em tradução livre: Considerando que nenhuma das derrogações previstas por esta lei não é, com efeito, contrária a um dos princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República nem contradizem o princípio enunciado no preâmbulo da Constituição de 27 de outubro de 1946, segundo o qual a nação garante à criança a proteção da saúde, não mais que nenhum das outras disposições com valor constitucional editadas pelo mesmo texto.”

14 Op. Cit. p. 30-31.

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contemplar-se como geradora de um princípio fundamental reconhecido pelas leis da República no sentido do parágrafo 1° da Constituição de 1946.

Dentro destes parâmetros, Favoreu aponta os cinco princípios reconhecidos pelas leis da República que são aplicáveis como normas constitucionais no estado atual do Direito positivo: a liberdade de associação, os direitos de defesa, a liberdade de ensino, a competência exclusiva da jurisdição administrativa em matéria de anulação de atos da autoridade pública e, por fim, a autoridade judicial guardiã da propriedade privada.

Exemplificativamente, transcreve-se trecho da decisão do Conselho Constitucional de 16 de julho de 1971, relativa à liberdade de associação. Convém ressaltar que tal decisão é apontada como marco inicial da doutrina do bloco de constitucionalidade:

2. Considérant qu’au nombre des principes fondamentaux reconnus par lês lois de la Republique et solennellement réaffirmés par lê préambule de la Constitution il y a lieu de ranger lê príncipe de la liberte d’association; qu’em vertu de ce príncipe lês associations se constituent librement et peuvent être rendues publiques sous la seule reserve du dépôt d’une déclaration préalable; (...)15

A idéia de bloco como todo incindível

Observa-se que os quatro elementos integrantes do conceito de bloco de constitucionalidade na França encontram-se mutuamente interligados, de forma que, nas decisões citadas, são mencionados simultaneamente, um atuando como reforço do outro.

15 Íntegra da decisão pode ser encontrada em: http://www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1971/7144dc.htm, em tradução livre: “Considerando que ao número de princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República e solenemente reafirmados pelo preâmbulo da Constituição tem lugar de destaque o princípio da liberdade de associação, que em virtude deste princípio as associações se constituem livremente e podem ser tornadas públicas sob a única reserva do depósito de uma declaração prévia.”

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A idéia de bloco remete, por sua vez, a um todo incindível e sólido. Consoante Louis Favoreu16, as consequências da harmonização, ou da unificação das diferentes categorias de normas constitucionais no seio do bloco de constitucionalidade, são que as diferentes peças do bloque tendem a soldar-se e a constituir um conjunto que nada deixa a desejar a Constituições modernas do pós-guerra. O juiz constitucional conseguiu, em menos de 20 anos, realizar o que cerca de dois séculos de história não levaram a cabo: um conjunto constitucional suficientemente harmonioso e coerente, que combina a modernidade e as tradições e em que, sobretudo, os direitos fundamentais foram finalmente integrados.

Percebe-se aqui, portanto, a importância da noção de bloco de constitucionalidade como elemento de proteção dos direitos fundamentais, uma vez que estes estão nele integrados e são alçados à categoria de parâmetro do controle de constitucionalidade. Essa idéia será mais bem desenvolvida no último capítulo da monografia, onde proceder-se-á a um estudo sobre o alargamento da cidadania e a constitucionalização das declarações.

3. o BloCo euroPeu de juridiCidade e de legalidade

Conceito

Com a União Européia e a consequente criação de um direito comunitário nos países dela participantes, a noção de bloco de constitucionalidade ganhou uma dimensão regional e, por conseguinte, supranacional.

O Prof. Gomes Canotilho17 o define como “o complexo de regras e princípios positivado nos tratados e noutras normas comunitárias. Estas regras e princípios comunitários constituem basicamente o direito comunitário, cujo respeito e garantia são assegurados pelo Tribunal de Justiça da Comunidade (Tratado de Roma, art. 220). Duas notas a propósito desse direito aqui são importantes: ele é dotado de aplicabilidade imediata na ordem jurídica dos Estados-membros e beneficia-se de primazia de aplicação. Sem embargo, o constitucionalista português reconhece ser necessária uma seletividade normativa das normas comunitárias, pois seria inaceitável que todos os regulamentos e todas as diretivas se transformassem em parâmetro superior.

16 Op. cit. p. 4117 Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina,

p. 929-930.

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A presente questão remete a uma discussão política mais abrangente, a oposição entre os defensores de uma integração ampla e irrestrita entre os países membros da União Europeia e os que buscam frear este processo, preservando as peculiaridades e autonomias dos Estados. No presente estudo, a discussão será tratada em termos predominantemente jurídicos, com vistas à conceituação e análise do bloco europeu de juridicidade.

Histórico da Comunidade Econômica Européia – A expansão do ordenamento comunitário:

O Art. 2° do Tratado da Comunidade Econômica Europeia, firmado em Roma em 25 de março de 1957, assim dispôs:

Art. 2°. A Comunidade tem por missão, promover mediante o estabelecimento de um Mercado Comum e a progressiva aproximação das políticas econômicas dos Estados membros, promover um desenvolvimento harmonioso das atividades econômicas no conjunto da Comunidade, uma expansão contínua e equilibrada, uma estabilidade crescente, uma elevação acelerada do nível de vida e relações mais estreitas entre os Estados que a integram.

Por seu turno, o Art. 3° deste mesmo tratado traça os objetivos a serem alcançados pela Comunidade Econômica. A saber:

Aos fins enunciados no artigo anterior, a ação da Comunidade levará consigo, nas condições e segundo o ritmo previsto no presente Tratado:a) a supressão, entre os Estados-membros, dos direitos de

aduana e das restrições quantitativas à entrada e saída de mercadorias, assim como de quaisquer outras medidas de efeito equivalente;

b) o estabelecimento de uma união aduaneira comum e de uma política comercial comum em respeito aos terceiros Estados;

c) a supressão, entre os Estados-membros, dos obstáculos à livre circulação de pessoas, serviços e capitais;

d) o estabelecimento de uma política comum no setor da agricultura;

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e) o estabelecimento de uma política comum no setor de transportes;

f) o estabelecimento de um regime que garanta que a competência não será falseada no mercado comum;

g) a aplicação de procedimentos que permitam coordenar as políticas econômicas dos Estados e superar os desequilíbrios em suas balanças comerciais;

h) a aproximação das legislações nacionais na medida necessária para o funcionamento do mercado comum;

i) a criação de um Fundo Social Europeu, com objetivo de melhorar as possibilidades de emprego dos trabalhadores e contribuir com a elevação de seu nível de vida;

j) a constituição de um Banco Europeu de Inversões, destinado a facilitar a expansão econômica da Comunidade mediante a criação de novos recursos;

k) a associação dos países e territórios de Ultramar, a fim de incrementar os intercâmbios e promover em comum o desenvolvimento econômico e social.

Depreende-se que os objetivos iniciais da constituição de uma Comunidade na Europa eram eminentemente econômicos. Não havia, inicialmente, uma idéia de proteção dos direitos fundamentais.

Com o passar do tempo, foram sendo criadas regras comunitárias com o objetivo proteger os trabalhadores de um Estado que se deslocam para outro, objetivando a prestação de serviços ou o desenvolvimento permanente de alguma atividade, dentro do espírito de integração econômica que norteia a comunidade. Houve a necessidade de criar uma espécie de Estatuto do Estrangeiro da Comunidade Econômica Europeia, de forma a evitar que um Estado dispense a um cidadão de outro país membro da comunidade tratamento que não dispensaria ao seu nacional.

Os principais direitos assegurados foram aqueles referentes à livre circulação dos trabalhadores, ao direito ao estabelecimento e à livre prestação de serviços, bem como à igualdade de prestação laboral entre homem e mulher. Em suma, os direitos comunitários podem ser sintetizados como o princípio da não discriminação entre membros da Comunidade Europeia.18

18 Para um aprofundamento do tema, consulte-se: LOPEZ GARRIDO. Diego. Libertades económicas en el Derecho Comunitário Europeu. Madri: Tecnos, 1986.

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No curso deste processo, a expansão do ordenamento comunitário foi tamanha, que houve a necessidade de uma demarcação entre o direito nacional e o ordenamento supranacional. É importante ressaltar que essa demarcação ocorre por competência, e não por hierarquia, ou seja, dentro das funções do ordenamento comunitário, que são: atribuir e executar as competências próprias das instituições comunitárias e formar um ordenamento autônomo, com um próprio sistema de fontes.

Essa expansão do ordenamento comunitário suscita críticas de autores que temem uma excessiva invasão nas autonomias dos Estados nacionais. Paulo de Pitta e Cunha, em obra na qual analisa o projeto de Constituição européia sob uma visão crítica, formula objeções que podem ser vazadas nestes termos19:

Contrariamente ao que por vezes parece supor-se, a integração européia não é um fim em si mesmo. Nem o é a união cada vez mais estreita, várias vezes exaltada no Preâmbulo dos Tratados. Os Estados sacrificam poderes de acção próprios em proveito de órgãos supranacionais, porque sabem que nos tempos de hoje há problemas que ultrapassam sua capacidade. Mas não estão interessados em perder a essência de verdadeiros Estados, sujeitos directos das relações internacionais. Daí que a integração deva ser conduzida como um meio em proporção ao fim prosseguido, que é o desenvolvimento econômico e social, a melhoria das qualidades de vida, o estreitamento de relações pacíficas entre os povos, já não a formação de um Super-estado que subalternize os Estados participantes.

Sem embargo desta reação crítica, fato é que o direito europeu possui uma dimensão de supranacionalidade que se reflete na proteção dos direitos fundamentais, ainda que se procure restringi-la.

Elementos do bloco de supralegalidade europeu

Segundo Diego Lopez Garrido, cinco são os elementos do bloco de supralegalidade europeu, que vêm sendo invocados pelo Tribunal de Justiça de Luxemburgo20:

19 PITTA E CUNHA, Paulo. A Constituição européia – um olhar crítico sobre o projecto. 2 ed. Coimbra: Almedina, 2004.

20 LOPEZ GARRIDO, Op. cit. p. 141-145.

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a) o direito escrito, personificado no Tratado da Comunidade Econômica Europeia;

b) os princípios gerais do direito, como os da proporcionalidade, boa-fé, non bis in idem e da segurança jurídica;

c) as disposições constitucionais comuns aos Estados-membros;

d) o Direito Internacional dos Direitos do Homem.

A proteção dos direitos fundamentais no âmbito da União Europeia

No âmbito da União Europeia, existe um Tribunal, sediado em Estrasburgo, que se encarrega formalmente da proteção dos direitos humanos.21 As principais atribuições desse tribunal são: a interpretação e aplicação da Convenção Europeia, a atribuição de uma reparação razoável ao lesado e a emissão de pareceres a pedido do Comitê de Ministros sobre questões que não caibam na competência da Comissão. Para a efetivação destas atribuições, o Tribunal possui as seguintes competências: julgar em ordem a solução dos casos que lhe são submetidos pela Comissão ou pelo Estado interessado; apreciar os danos e prejuízos sofridos e fixar as reparações razoáveis ao lesado ou lesados; e exercer função consultiva, emitindo pareceres, se entender serem eles de sua competência.

A União Europeia também possui um Tribunal encarregado de julgar os direitos e liberdades de conteúdo econômico, sediado em Luxemburgo. Esta Corte teve, nos últimos anos, uma notável expansão de sua atividade, uma vez que foi chamada cada vez mais a julgar causas envolvendo direitos fundamentais. A título ilustrativo, citar-se-á o caso Hauer (sentença de 13 de dezembro de 1979, no qual o Tribunal utilizou, pela primeira vez, disposições concretas do Convênio Europeu de Proteção dos Direitos Humanos de 1950, no qual ficou assentado que22:

Al asegurar la proteción de estos derechos, el Tribunal debe inspirarse em las tradiciones constitucionales comunes

21 Considerações sobre o Tribunal de Estrasburgo foram extraídas de: FARIA, Miguel José. Direitos Fundamentais e Direitos do Homem Lisboa: Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, vol. 1, 2001.

22 Extraído da obra de Garrido, p. 129.

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a los Estados miembros y no podría, por tanto, admitir medidas incompatibles com los derechos fundamentales reconocidos y garantizados por las constituciones de esos Estados; (...) los instrumentos internacionales concernientes a la protección de los derechos Del hombre que los Estados miembros han firmado o em los que han cooperado pueden igualmente ofrecer indicaciones que conviene tener em cuenta em el marco Del Derecho comunitário.

Verifica-se, então, que a metodologia do Tribunal de Luxemburgo se aproxima da metodologia do Tribunal de Estrasburgo e é ainda mais acurada no aspecto garantista, dado que o Tribunal de Luxemburgo persegue um fim integrado mediante a aplicação de um direito comum de maneira uniforme, enquanto que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos procura manter um patamar mínimo de proteção desses direitos.

4. a aPliCação do BloCo de ConstituCionalidade Pela jurisPrudênCia e doutrina Brasileiras

Ao pesquisar a aplicação da teoria do bloco constitucional no direito brasileiro, verificou-se que ela não logrou grande recepção, em grande parte pelo fato de nossa Carta Constitucional já ser por demais extensa e prolixa, e talvez, por isso mesmo, não comportasse tanto espaço para uma ampliação em outras normas integrantes de um bloco.

Esta explicação que, em princípio, pode parecer bastante plausível, não resiste a uma análise mais profunda. Com efeito, a Constituição de 1988 tem como um de seus maiores pilares, senão o maior, o princípio da dignidade da pessoa humana, que se espraia em toda a proteção dos direitos fundamentais. Assim sendo, o bloco de constitucionalidade é uma teoria que desempenha papel importante quando se trata da questão dos tratados de direitos humanos que envolvam normas mais favoráveis.

A jurisprudência do Excelso Pretório, de início, utilizou a noção de bloco de constitucionalidade como parâmetro de controle constitucional, salientando que este deve ser atual, sem adentrar nos elementos integrantes deste bloco. A este respeito, é de transcrever-se o entendimento consubstanciado na Adin n595, de relatoria do Min. Celso de Mello, publicada no Diário Oficial de 16/02/2002:

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ADIn 595-ES* RELATOR: MIN. CELSO DE M E L L O E M E N T A : A Ç Ã O D I R E T A D E INCONSTITUCIONALIDADE. INSTRUMENTO D E A F I R M A Ç Ã O DA S U P R E M AC I A DA O R D E M C O N S T I T U C I O N A L . O PA P E L D O S U P R E M O T R I B U N A L F E D E R A L C O M O L E G I S L A D O R N E G A T I V O . A NOÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE/INCONSTITUCIONALIDADE COMO CONCEITO DE RELAÇÃO. A QUESTÃO PERTINENTE AO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS DIVERGENTES EM TORNO DO SEU CONTEÚDO. O SIGNIFICADO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FATOR DETERMINANTE DO CARÁTER CONSTITUCIONAL, OU NÃO, DOS ATOS ESTATAIS. NECESSIDADE DA VIGÊNCIA ATUAL, EM SEDE DE CONTROLE ABSTRATO, DO PARADIGMA C O N S T I T U C I O N A L A L E G A DA M E N T E VIOLADO. SUPERVENIENTE MODIFICAÇÃO/SUPRESSÃO DO PARÂMETRO DE CONFRONTO. PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO DIRETA. - A definição do significado de bloco de constitucionalidade - independentemente da abrangência material que se lhe reconheça - reveste-se de fundamental importância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determinante do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da Carta Política. – A superveniente alteração/supressão das normas, valores e princípios que se subsumem à noção conceitual de bloco de constitucionalidade, por importar em descaracterização do parâmetro constitucional de confronto, faz instaurar, em sede de controle abstrato, situação configuradora de prejudicialidade da ação direta, legitimando, desse modo - ainda que mediante decisão monocrática do Relator da causa (RTJ 139/67) - a extinção anômala do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade. Doutrina. Precedentes. DECISÃO: A douta Procuradoria-Geral da República propõe o reconhecimento, na espécie, da ocorrência de situação caracterizadora de prejudicialidade deste processo de controle normativo abstrato, eis que, após o ajuizamento da presente ação direta, registrou-se modificação de paradigma, derivada da superveniência da EC n. 19/98, que introduziu substancial

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alteração nas cláusulas de parâmetro alegadamente desrespeitadas pelo ato normativo ora impugnado (fls. 65/67). (...)Sendo assim, e quaisquer que possam ser os parâmetros de controle que se adotem - a Constituição escrita, de um lado, ou a ordem constitucional global, de outro (LOUIS FAVOREU/FRANCISCO RUBIO LLORENTE, “El bloque de la constitucionalidad”, p. 95/109, itens ns. I e II, 1991, Civitas; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 712, 4ª ed., 1987, Almedina, Coimbra, v.g.) - torna-se essencial, para fins de viabilização do processo de controle normativo abstrato, que tais referências paradigmáticas encontrem-se, ainda, em regime de plena vigência, pois, como precedentemente assinalado, o controle de constitucionalidade, em sede concentrada, não se instaura, em nosso sistema jurídico, em função de paradigmas históricos, consubstanciados em normas que já não mais se acham em vigor. É por tal razão que, em havendo a revogação superveniente da norma de confronto, não mais se justificará a tramitação da ação direta, que, anteriormente ajuizada, fundava-se na suposta violação do parâmetro constitucional cujo texto veio a ser suprimido ou substancialmente alterado. Bem por isso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desde o regime constitucional anterior, tem proclamado que tanto a superveniente revogação global da Constituição da República (RTJ 128/515 - RTJ 130/68 - RTJ 130/1002 - RTJ 135/515 - RTJ 141/786), quanto a posterior derrogação da norma constitucional (RTJ 168/436 - RTJ 169/834 - RTJ 169/920 - RTJ 171/114 - RTJ 172/54 - ADI 296-DF - ADI 512-PB - ADI 1.137-RS - ADI 1.143-AP - ADI 1.300-AP - ADI 1.885-DF-Questão de Ordem - ADI 1.907-DF-Questão de Ordem), por afetarem o paradigma de confronto, invocado no processo de controle concentrado de constitucionalidade, configuram hipóteses caracterizadoras de prejudicialidade da ação direta, em virtude da evidente perda de seu objeto: “II - Controle direto de constitucionalidade: prejuízo. Julga-se prejudicada, total ou parcialmente, a ação direta de inconstitucionalidade no ponto em que, depois de seu ajuizamento, emenda à Constituição haja abrogado ou derrogado norma de Lei Fundamental que constituísse

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paradigma necessário à verificação da procedência ou improcedência dela ou de algum de seus fundamentos, respectivamente: orientação de aplicar-se no caso, no tocante à alegação de inconstitucionalidade material, dada a revogação primitiva do art. 39, § 1º, CF 88, pela EC 19/98.” (RTJ 172/789-790, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei) Cumpre ressaltar, por necessário, que essa orientação jurisprudencial reflete-se no próprio magistério da doutrina (CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 225, item n. 3.2.6, 2ª ed., 2000, RT; OSWALDO LUIZ PALU, “Controle de Constitucionalidade - Conceitos, Sistemas e Efeitos”, p. 219, item n. 9.9.17, 2ª ed., 2001, RT; GILMAR FERREIRA MENDES, “Jurisdição Constitucional”, p. 176/177, 2ª ed., 1998, Saraiva), cuja percepção do tema ora em exame põe em destaque, em casos como o destes autos, que a superveniente alteração da norma constitucional, revestida de parametricidade, importa na configuração de prejudicialidade do processo de controle abstrato de constitucionalidade, eis que, como enfatizado, o objeto da ação direta resume-se, em essência, à fiscalização da ordem constitucional vigente. Todas as considerações que vêm de ser expostas justificam-se em face da circunstância de que, posteriormente à instauração deste processo de controle normativo abstrato, sobreveio a Emenda Constitucional n. 19/98, que suprimiu e/ou alterou, substancialmente, as cláusulas de parâmetro, cuja suposta ofensa motivou o ajuizamento da presente ação direta. A circunstância caracterizadora da prejudicialidade desta ação direta, em decorrência da razão mencionada na presente decisão, autoriza uma última observação: no exercício dos poderes processuais de que dispõe, assiste, ao Ministro-Relator, competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos a esta Corte, legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar. Cumpre acentuar, neste ponto, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inteira validade constitucional da norma legal que inclui, na esfera de atribuições do Relator, a competência para negar trânsito, em decisão monocrática, a recursos, pedidos

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ou ações, quando incabíveis, estranhos à competência desta Corte, intempestivos, sem objeto ou que veiculem pretensão incompatível com a jurisprudência predominante do Tribunal (RTJ 139/53 - RTJ 168/174-175). Nem se alegue que esse preceito legal implicaria transgressão ao princípio da colegialidade, eis que o postulado em questão sempre restará preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao controle recursal dos órgãos colegiados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem reiteradamente proclamado (Ag 159.892-SP (AgRg), Rel. Min. CELSO DE MELLO). Cabe enfatizar, por necessário, que esse entendimento jurisprudencial é também aplicável aos processos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 563-DF, Rel. Min. PAULO BROSSARD - ADI 593-GO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - ADI 2.060-RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.207-AL, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.215-PE, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), eis que, tal como já assentou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, o ordenamento positivo brasileiro “não subtrai, ao Relator da causa, o poder de efetuar - enquanto responsável pela ordenação e direção do processo (RISTF, art. 21, I) - o controle prévio dos requisitos formais da fiscalização normativa abstrata, o que inclui, dentre outras atribuições, o exame dos pressupostos processuais e das condições da própria ação direta” (RTJ 139/67, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Sendo assim, pelas razões expostas, e acolhendo, ainda, como razão de decidir, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, julgo prejudicada a presente ação direta, por perda superveniente de objeto. Arquivem-se os presentes autos. Publique-se – grifos acrescentados.

Percebe-se que a nossa Corte Excelsa não se posicionou expressamente sobre a extensão e abrangência do bloco constitucional, apenas salientando sua importância como parâmetro de controle atual de constitucionalidade das leis.

Sem embargo, a doutrina de cunho mais internacionalista utiliza o bloco de constitucionalidade como instrumento de ampliação dos direitos fundamentais, mormente no que concerne aos direitos humanos. A Prof. Flávia Piovesan (2007, p. 43-79) defende a aplicação do bloco constitucional à Emenda Constitucional 45,

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sustentando que os tratados de direitos humanos anteriores à promulgação desta emenda são normas materialmente constitucionais, independente de passarem pelo processo de aprovação de emenda constitucional, integrando o bloco de constitucionalidade. Quanto aos tratados posteriores à emenda, a autora defende que, para serem normas formalmente constitucionais, devem submeter-se ao processo de votação de emenda constitucional, sem embargo de já possuírem o status de normas materialmente constitucionais. Fundamenta a autora seu entendimento no princípio da norma mais favorável à vítima, que deve ser invocado sempre em caso de violação de direitos humanos.

Com efeito, a autora paulista discorda do entendimento assentado no RE 80.004, decidido em 1977, no qual o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento que, em havendo conflito entre tratado internacional e lei ordinária, aplica-se a regra do lex posterior derrogat priori. Nas palavras da autora23:

Esta obra, no entanto, defende posição diversa. Acredita-se, ao revés, que conferir hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos, com a observância do princípio da norma mais favorável, é interpretação que se situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988, bem com sua racionalidade e principiologia. Trata-se de interpretação que está em harmonia com os valores prestigiados pelo sistema jurídico de 1988, em especial com o valor da dignidade humana – que é valor fundante do sistema constitucional.

Bernardo Leôncio de Moura Coelho24, em estudo no qual analisa a proteção à criança, defende que existe um bloco de constitucionalidade que densifica o princípio de proteção do interesse da criança, constituído pelos princípios da Constituição de 1937, dos tratados internacionais que se referem à proteção à da criança, ratificados pelo Brasil e pelas decisões judiciais que decidem pela prevalência dos interesses da criança.25

23 Ob. cit. p. 6424 Ob. cit. p. 43-9525 Bernardo Leôncio de Moura Coelho, O bloco de constitucionalidade

e a proteção à criança, in Revista de Informação Legislativa n° 123, p.259-266.

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Com a devida vênia ao estudo desenvolvido por este autor, não nos parece que a teoria do bloco de constitucionalidade possa ser aplicada de forma específica, a um princípio, dado, seu caráter de generalidade e amplitude. De todo modo, já representa um avanço doutrinário no reconhecimento da possibilidade de aplicação dessa teoria, já reconhecida pela nossa Corte Excelsa.

Percebe-se que a doutrina brasileira ainda não construiu uma base sólida do que venha a ser o bloco de constitucionalidade, limitando-se a defendê-lo em aplicações pontuais a temas determinados, quer como reforço de uma teoria, quer como elemento de proteção de algum direito fundamental. Sem embargo desta inicipiente noção, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel, vem acenando com a possibilidade de aplicação imediata do Pacto de San José da Costa Rica. É o que se verifica do julgamento do Recurso Extraordinário n. 466343, de relatoria do Min. Cezar Peluso, onde se assentou a inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel:

O Min. Celso de Mello, entretanto, também considerou, na linha do que exposto no voto do Min. Gilmar Mendes, que, desde a ratificação, pelo Brasil, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos- Pacto de San José da Costa Rica (art. 7°, 7), não haveria mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. Contrapondo-se, por outro lado, ao Min, Gilmar Mendes no que respeita à atribuição de status supralegal aos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, afirmou terem estes hierarquia constitucional. No ponto, destacou a existência de três distintas situações relativas a estes tratados: 1) os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CF/88, revestir-se-ia de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nesta condição pelo §2° do art. 5°da CF; 2) os que vierem a ser celebrados por nosso País (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o iter procedimental do §3° do art. 5° da CF; 3) aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso país aderiu) entre a promulgação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade. - grifo acrescentado.

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5. ConClusões:

Ao término deste trabalho, é possível enumerar algumas conclusões, sem a pretensão, naturalmente, de esgotar o que foi desenvolvido:

a) A idéia de bloco de constitucionalidade remonta ao Direito Administrativo francês, no qual foi utilizado o termo bloco de legalidade para designar o conjunto de leis e regulamentos utilizados pelo Conselho de Estado francês no controle de legalidade dos atos administrativos.

b) Essa teoria migrou do Direito Administrativo para o Direito Constitucional, sendo utilizada pelo Conselho Constitucional francês para designar o conjunto de normas utilizadas como parâmetro de controle de constitucionalidade, englobando a Constituição de 1958, o Preâmbulo da Constituição de 1946, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República.

c) Com o advento da União Europeia, a noção de bloco ganhou uma dimensão supranacional, formando-se o bloco europeu de legalidade e suprajuridicidade, que pode ser definido como o conjunto de regras e princípios positivado nos tratados e regras comunitárias.

d) Esse bloco de supralegalidade vem sendo amplamente aplicado pelo Tribunal da Comunidade Européia, com sede em Luxemburgo, quando do julgamento de casos que envolvam proteção a cidadãos da União Europeia.

e) Embora a proteção dos direitos humanos no âmbito da União Europeia seja formalmente conferida ao Tribunal de Estrasburgo, o Tribunal de Luxemburgo vem corroborando tal proteção, com espeque na teoria do bloco supralegal.

f) Esta supranacionalização do direito, no entanto, não é infensa a críticas de autores que buscam preservar a autonomia dos Estados nacionais, bem como a competência de seus tribunais.

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g) No âmbito do direito brasileiro, a teoria do bloco de constitucionalidade vem sendo recepcionada de forma um pouco tímida pela doutrina e jurisprudência, mas revela-se importante principalmente como parâmetro de proteção aos direitos fundamentais, no tocante aos tratados internacionais de direitos humanos.

h) Ao aplicar-se tal teoria, os tratados de direitos humanos têm força de norma constitucional, por força do art. 5°, § 2° da Constituição de 1988, devendo prevalecer sempre que for mais favorável à vítima. O Supremo Tribunal Federal vem acenando com esta possibilidade, ao analisar a posição em nosso ordenamento jurídico do Pacto de San José da Costa Rica, que proíbe a prisão civil do depositário infiel.

i) O bloco de constitucionalidade constitui elemento importante na proteção dos direitos fundamentais e no alargamento da cidadania, na medida em que personifica a idéia da constitucionalização das declarações e da existência de várias cidadanias em níveis nacional, regional e internacional.

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