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LAW REVIEW REVISTA JURÍDICA DO INSTITUTO SUPERIOR MANUEL TEIXEIRA GOMES 2016 Nº08

LAW REVIEW - ismat.pt · 8500-508 Portimão PORTUGAL ... Correspondência: [email protected] Data: Maio 2016 Tiragem: 100 exemplares ISSN ... o STJ já chegou a reconhecer o efeito

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LAWREVIEWREVISTA JURÍDICA DO INSTITUTO SUPERIOR MANUEL TEIXEIRA GOMES

2016Nº08

JURISMAT

Revista Jurídica do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

N.º 8 – PORTIMÃO – MAIO 2016

Ficha Técnica

Título: JURISMAT – Revista Jurídica – N.º 8

Director: Lúcio Augusto Pimentel Lourenço

Edição: Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

Avenida Miguel Bombarda, 15

8500-508 Portimão

PORTUGAL

Edição on-line: http://www.ismat.pt/investigacao/70-investigacao-direito

Catalogação: Latindex – folio 24241

Correspondência: [email protected]

Data: Maio 2016

Tiragem: 100 exemplares

ISSN: 2182-6900

JURISMAT – REVISTA JURÍDICA DO ISMAT

COMISSÃO CIENTÍFICA

Alexandre Lopez Lopez | Universidad Complutense de Madrid

Ana Yábar Sterling | Universidad Complutense de Madrid

Antonio Fernández Jeri | Coordinación de los Fiscales Ambientales de Perú

Cástor Diaz Barrado | Universidad Rey Juan Carlos de Madrid

Dino Bellorio Clabot | Universidade Autonoma y Belgrano de Buenos Aires

& Universidad de Belgrano, Buenos Aires

Fernando dos Reis Condesso | Presidente da Comissão Científica

Universidade de Lisboa & ISMAT

Isabel de los Rios | Universidad Central de Venezuela

Jean Paul Carriére | Université de Tours

Jonás Figueroa Salas | Universidad de Santiago de Chile

Jorge Bacelar Gouveia | Universidade Nova de Lisboa

Jorge Trindade | Universidade Luterana do Brasil

José Eugénio Soriano | Universidad Complutense de Madrid

José Lebre de Freitas | Universidade Nova de Lisboa

Julian Mora Aliseda | Universidad de Extremadura, Cáceres

Luiz Cabral de Moncada | ULHT & ISMAT

María Leoba Castañeda Rivas | Universidad Nacional Autónoma de México

Maria Serrano Fernandez | Universidad Pablo de Olavide, Sevilha

Mario Peña Chacón | Unión Internacional de la Conservación de la Naturaleza, Costa Rica

Miruam Velazco Mugarra | Universidad de La Habana

Paulo Ferreira da Cunha | Universidade do Porto

Pedro Trovão do Rosário | Universidade Autónoma de Lisboa

Pilar Blanco-Morales Limones | Universidad de Extremadura, Cáceres

Rafael Mata Olmo | Universidad de Alcalá

Santiago Rosado Pacheco | Universidad Rey Juan Carlos de Madrid

Stela Marcos de Almeida Neves | Universidade Autónoma de Lisboa & ISMAT

Vladimiro Passos de Freitas | Universidade Pontifícia do Paraná

ÍNDICE

NOTA PRÉVIA .................................................................................................................... 9

PALAVRAS DE ABERTURA .................................................................................................. 11

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO

Palavras de Abertura .......................................................................................................... 13

ARTIGOS ............................................................................................................................ 15

JOSÉ GOMES CORREIA

Que Rumo para a Justiça em Portugal? O papel da Justiça na construção do

Portugal Democrático e na defesa dos direitos fundamentais ............................................ 17

SANTIAGO ROSADO PACHECO

Crisis Económica y Derecho Administrativo Español ....................................................... 39

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ

La II República Española: Cambio de Régimen Político, Función Social

de la Propiedad, Reforma Agraria y Guerra Civil .............................................................. 69

PAULO FERREIRA DA CUNHA

Estado, Povo e Território: Sentido, Implicações, Historicidade ......................................... 91

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO

Política de Solos. Administração Pública do Território e

seus Instrumentos de Gestão Física ................................................................................... 113

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO

Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais Irregulares ......................................... 153

NOTA PRÉVIA

A JURISMAT – revista jurídica do Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

(ISMAT) – configura um projecto editorial inovador, que a partir do Algarve tem

dado contributos importantes para a divulgação de investigação na área das Ciências

Jurídicas. A JURISMAT, lançada pela primeira vez em Outubro de 2012, veio dar

difusão pública ao trabalho de investigação desenvolvido por docentes e por estu-

dantes do ISMAT no âmbito do curso de licenciatura em Direito. O ISMAT sempre

entendeu que um projecto universitário não poderia prescindir uma forte componen-

te investigativa, que encontre expressão em publicações de qualidade. Entretanto, a

revista desde a primeira hora abriu as suas páginas a especialistas de outras institui-

ções académicas, tanto em Portugal como no estrangeiro. Hoje, a JURISMAT

impôs-se já como uma publicação académica de elevado nível científico, conseguin-

do ademais o feito de manter uma rigorosa periodicidade semestral.

No decorrer do ano lectivo de 2015-2016, a JURISMAT sofreu algumas alterações

orgânicas, que passaram pela mudança de director da revista, pela revisão das nor-

mas de funcionamento e publicação, e também pelo alargamento da sua Comissão

Científica. Estas razões explicam o excepcional atraso com que este número da

JURISMAT sai a público. Como forma de compensar tal atraso, e de modo a repor a

normal periodicidade, publicam-se simultaneamente dois números da revista, a

JURISMAT n.º 8 (referente a Maio de 2016) e a JURISMAT n.º 9 (referente a

Novembro de 2016). Nesta nova fase de vida da revista, editor e director envidarão

todos os esforços para que seja viável manter os mesmos níveis de qualidade cientí-

fica e de periodicidade que foram alcançados na anterior fase da JURISMAT.

PALAVRAS DE ABERTURA

Palavras de Abertura

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO *

A Revista JURISMAT, enquadra-se no Centro de Estudos de Direito do Curso de

Direito do ISMAT, e tem vindo a ser publicada com a periodicidade semestral a qual

se vai manter.

A nova Direção, de acordo com o Ex. mo Diretor Cientifico e Pedagógico e com o

acolhimento da Ex. ma Administração, está a promover todos os esforços no senti-

do de incrementar os níveis de investigação cientifica, em cooperação com Professo-

res de outros estabelecimentos de ensino superior universitário, público e privado,

nacionais e estrangeiros.

A comunidade académica e científica do ISMAT, bem como a da região do Algarve

e ainda a nível nacional e internacional, podem continuar a contar com a publicação

e divulgação dos seus trabalhos científicos na área do Direito e das Ciências Sociais.

A Comissão Cientifica foi naturalmente reajustada, contando agora com mais pro-

fessores catedráticos de Portugal, Espanha e França, sendo que a investigação e

publicação de trabalhos, se mantém alargada a toda a comunidade académica univer-

sitária, docentes e discentes.

À luz do novo Regulamento, à Revista é dada uma nova imagem formal de capa e de

apresentação dos trabalhos, mantendo o elevado grau de exigência científica, uma

vez que todos eles serão sempre submetidos a um processo de dupla revisão cega,

JURISMAT, Portimão, 2016, n.º 8, pp. 13-14.

* Diretor do Curso de Direito e da Revista JURISMAT.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 14

por pares da respetiva área e membros da Comissão Cientifica (double blind peer

review).

A JURISMAT manter-se-á como pólo e instrumento de investigação e divulgação da

ciência do Direito no ISMAT, renovando-se os convites a todos os membros do

corpo docente do Curso de Direito e discentes, a participarem mais ativamente.

ARTIGOS

Que Rumo para a Justiça em Portugal?

O papel da Justiça na construção do Portugal

Democrático e na defesa dos direitos fundamentais

JOSÉ GOMES CORREIA *

Resumo: Os Direitos Fundamentais são aqueles direitos atribuídos a todos os

cidadãos em comum, de todas as sociedades espalhadas pelo globo terrestre,

que têm como finalidade assinalar as condições mínimas com as quais cada

ser humano deve dispor de modo a conduzir sua vida de modo pleno e sadio.

A trajectória dos direitos considerados fundamentais na História da humani-

dade é longa e tem as suas origens mais ou menos localizadas na composição

do Código de Hamurabi, um grande progresso para a época, pois, pela primei-

ra vez na História o homem resolveu registar uma série de disposições que

regulariam a vida social da sua comunidade, nele se encontrando a defesa da

vida e o direito à propriedade, além de contemplar a honra, dignidade, a uni-

dade familiar, bem como o respeito das leis por todos os cidadãos, incluindo-

se aí os governantes. Na Idade Média, encontraremos esboços das primeiras

declarações de direitos nos "forais" e "cartas de franquia", pois esses docu-

mentos continham enumerações de direitos de interesse do indivíduo. A Revo-

lução Francesa foi um marco maior no progresso da normatização e concep-

ção dos direitos fundamentais, que terão cada vez mais prioridade na doutrina

em que assenta a elaboração das constituições nacionais, o que traduz uma

crescente preocupação pelo respeito da integridade e desenvolvimento huma-

JURISMAT, Portimão, 2016, n.º 8, pp. 17-38.

* Juiz Desembargador Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul.

JOSÉ GOMES CORREIA 18

nos, alcançando a sua primeira e máxima expressão na legislação norte-

americana, totalmente inovadora na sua época e que promoveu uma verdadei-

ra revolução na concepção dos direitos fundamentais. Na busca de uma maior

humanização dos sistemas legais, o ponto culminante da evolução da questão

encontra-se na composição da Declaração Universal dos Direitos do Homem,

que foi assinada em Paris a 10/12/1948, radicando a sua importância na tenta-

tiva inédita de estabelecer regras válidas universalmente para todo o ser

humano, independente de sua origem, raça, religião ou cultura. As Nações

Unidas aprovaram o seu conteúdo através da Resolução 217, uma conquista

de todo ser humano, sendo hoje inadmissível considerar-se civilizada a socie-

dade que não respeite os princípios contidos em tal documento. Nesse docu-

mento estão consagrados quatro tipos de direitos fundamentais, a saber: (i)

direitos pessoais (direito à vida, liberdade e segurança; (ii) direitos do indiví-

duo em face da colectividade (direito à nacionalidade, asilo, livre circulação e

residência, tanto no interior como no exterior e direito à propriedade); (iii)

liberdades e direitos públicos (liberdade de pensamento, consciência, religião,

opinião, expressão, reunião e associação); (iv) direitos económicos e sociais

(direito ao trabalho, sindicalização, repouso e educação). Cabe lembrar que a

Constituição Portuguesa é fortemente influenciada pelas ideias contidas na

Declaração Universal dos Direitos do Homem pois, nela, os direitos funda-

mentais, todos aqueles direitos são reconhecidos e positivados. Mas, como se

demonstra no presente artigo, diferem dos direitos humanos - com os quais

são frequentemente confundidos - na medida em que os direitos humanos

aspiram à validade universal, ou seja, são inerentes a todo ser humano como

tal e a todos os povos em todos os tempos, sendo reconhecidos pelo Direito

Internacional por meio de tratados e tendo, portanto, validade independente-

mente de sua positivação em uma determinada ordem constitucional (carácter

supranacional). Em regra, não existe hierarquia entre as diversas normas cons-

titucionais, pelo que não existe conflito entre as normas constitucionais no

plano normativo, designadamente, não há conflito entre as normas que garan-

tem o direito à liberdade de imprensa e o direito à intimidade. O que ocorre

cada vez mais frequentemente é que a incidência delas sobre uma dada situa-

ção gere uma colisão entre os direitos fundamentais. Na esteira de Gomes

Canotilho, J.J. in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª edição,

Almedina, 1999, p. 1191."considera-se existir uma colisão autêntica de direi-

tos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do

seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro

titular." Tendo em conta o objecto do presente artigo, devemos assentar em

que não existem direitos fundamentais absolutos, como o melhor modo (senão

o único) para resolver uma eventual colisão entre direitos fundamentais: é,

como se sustenta no presente trabalho, a compatibilização entre os mesmos,

através da aplicação do princípio da proporcionalidade e da concordância prá-

tica, no sentido de que pode ocorrer o exercício conjugado dos direitos fun-

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

19

damentais com a redução do âmbito de aplicação de ambos (colisão com

redução bilateral) ou, caso não seja possível a aplicação da primeira técnica, o

também exercício conjugado destes através da relativização de apenas um

deles (colisão com redução unilateral). Pode acontecer ainda que a realização

concomitante dos direitos em colisão se torne impossível, pois o exercício de

um deles exclui o de outro, ocorrendo então a colisão excludente. Por outro

lado e como também emerge deste trabalho, os direitos fundamentais são à

partida direitos subjectivos perante o Estado e, como tal, têm efeitos directos

apenas na relação particular-Estado, enquanto nas relações entre particulares

teriam efeitos apenas indirectos. A teoria da eficácia horizontal dos direitos

fundamentais (em alemão: Drittwirkung) propugna a incidência destes nas

relações entre particulares também de maneira directa. Portanto, a palavra efi-

cácia é empregada no sentido de “âmbito”, “extensão”, “alcance”. Apesar da

controvérsia dessa solução, como também se sustenta e demonstra no presente

artigo, em Portugal, o STJ já chegou a reconhecer o efeito directo dos direitos

fundamentais nas relações privadas. Ora, é o papel da justiça na construção do

Estado social e de direito democrático assente e tendo como referencial os

direitos fundamentais (e universais) e a sua intransigente defesa, tendo como

guias os princípios infra constitucionais da separação de poderes, independên-

cia, juiz natural e tutela judicial efectiva (cfr. artº 20 da CRP), eivados de uma

concepção assumidamente jusnaturalista, e, como tela de fundo a situação de

cise e de ruptura dos valores da justiça, igualdade, liberdade e solidariedade

fraterna em vista da evolução para uma sociedade mais evoluída sob o ponto

de vista humano, que nos propomos tratar numa visão, apesar de tudo, opti-

mistada “redenção” do Estado democrático social e humanistaque está perto

do estertor.

Evocando Fernando Pessoa, o valor das coisas não está no tempo em que elas

duram, mas na intensidade com que acontecem, por isso existem momentos inesque-

cíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis; por isso, também, e num Tem-

po em que a todos domina um grande “Desassossego” mas que também é (tem de

ser!) de grandes esperanças, temos de intervir em todos os fóruns centrados na sal-

vaguarda dos direitos fundamentais e do Estado Social e Democrático, na construção

do qual a Justiça teve e continuará a ter um papel crucial.

O sentido de “Justiça” aqui glosado reconduz-se ao sistema de composição de lití-

gios, à “Justiça Pública”, a qual funciona deste modo: dá-se aos particulares que

queiram fazer valer as suas pretensões o direito de recorrer à autoridade judicial

formulando os correspondentes pedidos. A este direito chama-se o direito de acção

judicial, acção judicial, ou simplesmente acção. Este tipo de justiça confia o venci-

JOSÉ GOMES CORREIA 20

mento da resistência a uma força ou autoridade estranha à das partes em conflito, à

de ambas, portanto imparcial e capaz de impor a aceitação da hierarquização de

interesses quando tal aceitação não seja voluntária.

Neste plano, chamam-se a terreiro o direito a um processo equitativo (ínsito no direi-

to de acesso aos tribunais, proclamado pelo artigo 20º, nº 1, da Constituição), de que

é elemento incindível o princípio da igualdade de armas, manifestação do princípio

mais geral da igualdade das partes. Princípio não expressamente formulado na Cons-

tituição para o processo civil, mas que não pode deixar de ser exigência cons-

titucional, pois tal decorre da própria ideia de Estado de Direito.

Assim, nos litígios sobre interesses sejam entre particulares, sejam entre estes e os

entes públicos, a igualdade de armas implica a obrigação de oferecer a cada parte a

possibilidade de apresentar a sua causa, incluindo as suas provas, em condições que

a não coloquem em situação de nítida desvantagem em relação ao seu adversário"

(Ireneu Cabral Barreto, "A Convenção Europeia dos Direitos do Homem", Aequitas,

1995, p. 95).

Segundo José Lebre de Freitas ("Introdução ao Processo Civil" – Conceito e Princí-

pios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, pp. 105-106), o princípio da igualdade

de armas impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspec-

tiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respec-

tivas teses: não implicando uma identidade formal absoluta de todos os meios, que a

diversidade das posições das partes impossibilita, exige, porém, a identidade de

faculdades e meios de defesa processuais das partes e a sua sujeição a ónus e comi-

nações idênticas, sendo que a sua posição perante o processo é equiparável a um

jogo de compensações gerador do equilíbrio global do processo, quando a desigual-

dade objectiva intrínseca de certas posições processuais leva a atribuir a uma parte

meios processuais não atribuíveis à outra.

Mas, nem sempre é viável assegurar a igualdade substancial entre as partes, não

sendo possível, nuns casos, ultrapassar certas diferenças substanciais na posição

processual das partes, e noutras hipóteses afastar certas igualdades formais impostas

pela lei – assim, a igualdade das partes, não pode postergar os vários regimes impe-

rativos definidos na lei, que originam desigualdades substanciais ou que se bastam

com igualdades formais.

Revertendo ao plano constitucional, a questão resume-se em saber se existe na

actuação da Justiça um modo injustificado, intolerável, irrazoável e arbitrário, um

regime discriminatório para uma das partes da acção, de molde a tornar a posição

processual de uma desvantajosa em relação à outra no tocante ao gozo dos meios

adjectivos postos à sua disposição.

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

21

Enfim, o princípio da igualdade das partes consagrado nos artigos 13º e 20º da CRP,

consiste em estas serem postas no processo em perfeita paridade de condições, des-

frutando, portanto, idênticas probabilidades de obter a justiça que lhes seja devida.

O outro pilar fundamental da realização da Justiça hodierna, é o princípio do juiz

natural que se analisa na proibição da designação arbitrária de um juiz ou tribunal

para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão impar-

cial e isenta.

O legislador, no respeito pelos direitos das partes consagrou como princípio funda-

mental o princípio do juiz natural, que pressupõe que intervirá na causa o juiz que o

deva ser segundo as regras da competência legalmente estabelecidas para o efeito.

Mas a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos desse princípio

levou à necessidade de os acautelar através de mecanismos que garantam a impar-

cialidade e isenção do juiz também garantidos constitucionalmente (artigos 203º e

216º da CRP), quer como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão, mas

também, como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e

que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas.

O juiz natural é aquele que está previamente encarregado do julgamento de causas

abstractamente previstas, sendo a respectiva competência para o julgamento dessas

causas antecipadamente atribuída. Este princípio decorre da exigência de um julga-

mento imparcial e independente, que assegure a isenção do julgador, impondo-se

que a sua designação seja previamente prevista de forma desvinculada de qualquer

acontecimento concreto ocorrido ou a ocorrer.

Ora, perante e a situação histórica que abaixo retrataremos, pode afirmar-se desde já,

e com a necessária segurança, que o aludido princípio constitucional não pode ser

violado na aplicação do direito ao caso concreto, seja no âmbito de uma relação

juscivil, seja por referência a uma relação jurídico-pública.

Na verdade, o princípio contido no artº31º, nº 9 da CRP tem ínsita a ideia de que o

direito a um julgamento justo e equitativo pressupõe que não haja possibilidade de

"escolher " ou "afastar " o juiz a quem coube ou "calhou " julgar a causa.

Ora, os dois pilares em que assenta o nosso sistema de justiça e cuja estruturação

acabamos de dissecar, constituem direitos fundamentais cuja protecção é crucial para

alcançar a justiça material na presente realidade política, social e económica e tor-

nam a missão do Juiz, bem como as dos demais colaboradores da administração da

Justiça (advogados e MP), complexa mas decisiva para a manutenção do Estado de

Direito Democrático e os direitos sociais, económicos e políticos dos cidadãos, numa

palavra, os direitos fundamentais destes.

JOSÉ GOMES CORREIA 22

É que existem indagações que se colocam ao Julgador susceptíveis de esclarecerem

quem são e o que fazem aqui e agora como peritos operadores da Ciência Jurídica.

Pense-se, por exemplo, na sentença. Procuremos agora saber se ela deve ser tal como

se apresenta à luz do valor que por ela se realiza: - a sentença diz respeito a uma

conduta que, do ponto de vista ontológico, corresponde a um valor, sendo a Justiça o

valor máximo que mais lhe importa.

Como quer que seja, essa questão não tem significado especial para o Jurista vulgar.

Como cientista, ele interroga sempre por aquilo que é e não vai além disso, na medi-

da em que aquilo que deverá ser não faz parte da esfera do seu conhecimento.

Quem deseje ser um mero perito operador será assim que terá de se conduzir.

Ao juiz de rosto humano e a todos os que com ele colaboram na administração da

justiça, tem de interessar o que deverá ser e ainda não é; com efeito, ao contrário do

homem comum e mesmo do Jurista, que procuram viver a justiça, ao julgador

impõe-se, hoje mais do que nunca, conhecê-la também como mero espectador e não

como simples actor do drama judiciário.

Acerca da sentença pode ainda indagar-se, que é ela, enquanto tem um ser?

Esta outra pergunta não ilude sobre a sua natureza metafísica que, como tal, tem

pretensões totalitárias, anseia abranger tanto o que é como o que deverá ser. Não é

difícil acreditar também que esta pergunta não vai ocupar muito o jurista /operador –

este preocupa-se com os fenómenos e a questão do ser não é fenómeno.

Ao julgador de rosto humano, já importa a resposta à questão formulada.

Podem até referir-se várias respostas que historicamente foram dadas a esta indaga-

ção metafísica e que, ainda hoje, de forma mais ou menos consciente, são seguidas

pelos “operadores”:

Assim, a Escolástica deu resposta concebendo o Direito como Inteligência ou Von-

tade de Deus, como réplica aos sistemas metafísicos da natureza que precederam

Kant. Nela, não se vislumbra nenhuma referência ao direito positivo. Mas é clara a

referência ao direito natural.

Com o iluminismo surge uma nova resposta ao problema metafísico, considerando-

se como Direito a vontade geral.

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

23

No decurso do século XIX, a ciência jurídica volta-se para os fenómenos e defende

que o único Direito real e efectivo é o positivo.

Tal formulação teve grande influência nas respostas dadas posteriormente e o direito

natural que hoje ressurge, tornou-se até imanente ao direito positivo, o ideal deste o

que, como veremos adiante, a presente realidade histórica parece infirmar.

Em consequência disso, Savigny vai considerá-lo um produto do espírito do Povo;

Hegel, um momento dialéctico do espírito objectivo; o marxismo, super estrutura da

organização da produção económica e o positivismo, condição de existência e evo-

lução da sociedade.

Note-se, que as respostas que admitimos como possíveis da parte do “perito opera-

dor” se baseiam no concreto e nos dados empíricos que dele obtém.

Porém, diferente será a reacção do julgador de rosto humano se, colocado perante

uma dada experiência concreta, procura interrogar-se sobre alguma estrutura que

condiciona aquela. Concretizando: o julgador de rosto humano tende a perguntar

quem é o sujeito de direito em vez de que é o sujeito de direito. Certo que para saber

quem é o sujeito de direito, é necessário saber antes disso o que é o sujeito de direito.

Nisto consiste a indagação epistemológica, que se liga à necessidade de conceptuali-

zação das estruturas que condicionam a experiência jurídica.

Conceptualização e não intuição – esta pode conduzir-nos a erros absurdos mas

possíveis, quando nos diz ser sujeito de direito aquele a quem não é aplicável esse

conceito, como quando se afirmou que o cavalo de Calígula era senador do império.

O que se disse é demonstração bastante da natureza científica ou filosófica da activi-

dade do jurista, e esclarecimento suficiente sobre as relações da ciência do Direito

com a Filosofia do Direito. Isso para sustentar que, hoje mais do que nunca e pelas

razões infra aduzidas, o Juiz e os demais colaboradores da administração da Justiça,

devem ser filósofos, questionar a realidade, sair da caverna, deixarem de ser autó-

matos, acreditar em e sustentar valores que a inteligência artificial, que hegemoniza

a vida humana, tende inapelavelmente a esmagar qual cibernauta que, em fenómeno

edipiano, aniquila o criador cumprindo a antevisão do 2001, Odisseia no Espaço,

rumo ao computador Hal, uma máquina hiperinteligente que tomava decisões sozi-

nha e dialogava sobre qualquer tema...

Sejamos claros: - o cientismo é um vício grave que constitui autêntico erro metodo-

lógico e conduz ao dogma da plenitude hermética da ordem Jurídica; por ele, muitos

persistem em conceber as normas Jurídicas como dados que não podem ser trans-

cendidos.

JOSÉ GOMES CORREIA 24

Todavia e racionalmente, não podemos deixar de reconhecer que a modernidade é

tributária da comunicação linguística para cujo desenvolvimento a inteligência artifi-

cial serviu de alavanca.

Foi Claude Lévy-Strauss que começou por deduzir a hipótese de que a sociedade

pode ser considerada como um sistema de comunicações e por isso abordável

segundo os métodos da comunicação linguística.

Este método exclui radicalmente as explicações dos fenómenos sociais pelo recurso

à história, à causalidade, a um inconsciente colectivo à maneira de Jung, a um Volk-

geist ou a uma qualquer ideologia. Os fenómenos sociais presentes e observáveis no

presente são os únicos dados de que temos de analisar no sistema de relações.

Todos os sistemas assim obtidos deixam transparecer uma estrutura formal não

consciente (o que significa que a história e os lugares estão completamente cheios de

conteúdos variáveis) que dá um sentido a esses conteúdos, que quando são tomados

como termos absolutos levam o investigador a cair em erro.

Por isso Lévy-Strauss conclui que "... A estrutura dos factos históricos, dos factos

sociológicos e dos conteúdos actuais da consciência individual permanecem desco-

nhecidos da testemunha ou do sujeito que os vive até à chegada de uma ciência des-

ses dados, conhecimento que descobre a subjectividade essencial desses conteúdos e

desprende para lá deles as estruturas ao mesmo tempo objectivas e inconscientes que

os modelam constantemente." (Antropologia Cultural).

Como escreveu Bataille "há na natureza e subsiste nos homens um movimento que

sempre excede os limites", pretendendo afirmar que a natureza é excessiva e irracio-

nal. Ora, a vida social implica a existência de um conjunto de interdições com as

suas normas e as suas hierarquizações que marcam os pontos de ruptura entre o

homem e o animal. Neste contexto, é a transgressão que define o homem, não no

sentido do seu regresso à natureza mas no da manutenção das interdições transgredi-

das, ideia que se traduz na afirmação da existência de "uma cumplicidade profunda

da lei e da sua violação". Portanto, Ser e Transgressão unem-se, sendo aquele o

próprio fim absoluto da transgressão.

Na verdade, o que mais define o homem é a sua capacidade para transgredir, pelo

que a transgressão anda ligada à subversão duma ordem. Nesse sentido, existem

várias formas de existência inautêntica que, em última análise, são aquelas que se

reconduzem à alienação nas suas múltiplas manifestações e são fruto da anunciada

“morte de Deus”, do niilismo, da total ausência de espiritualidade. Duma maneira

geral, a existência inautêntica é susceptível de subordinação à lei, mas existe tam-

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

25

bém uma transgressão ilimitada que anula de vez todas as leis e é característica da

ideologia libertária, maxime, da anarquia e da aniquilação total.

Mas onde residirá a existência autêntica?

Ela está na pulsão, na transgressão aliada à interdição, pois como que a lei existe

para ser violada, ideia que Sade exprimia afirmando que o verdadeiro modo de alar-

gar e multiplicar os nossos desejos consiste em impor-lhes limites.

Mas, como salienta Philippe Sollers, haverá que distinguir entre a transgressão

autêntica e a pseudo-transgressão a que a civilização nos acostumou, pois uma tal

libertação é apenas a máscara de uma repressão redobrada. Ou seja, também as

transgressões são codificadas sendo esse código determinado pelas próprias institui-

ções que a elas se opõem.

Neste ponto e para descrever a realidade actual que é, nada mais, nada menos, aquela

donde emergem os litígios que cumpre à Justiça dirimir, evoca-se a caracterização da

mesma a partir da clarividência de José Gil revelada no texto “O roubo do pre-

sente”:

Há pelo menos uma década e meia está a ser planeada e experi-

mentada quer a nível do nosso país, quer na Europa e no mundo uma

nova ditadura – não tem armas, não tem aparência de assalto, não

tem bombas, mas tem terror e opressão e domesticação social e se

deixarmos andar, é também um golpe de estado e terá um só partido e

um só governo – ditadura psicológica.

Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não

ter futuro, não ter perspectivas de vida social, cultural, económica, e

não ter passado porque nem as competências nem a experiência

adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo

da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nos-

so presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.

O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida,

porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O

passado de nada serve e o futuro entupiu. O poder destrói o presente

individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de

trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diá-

rio com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a

capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender,

criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou

reduzindo a zero o seu trabalho. O Governo utiliza as duas maneiras

com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os

JOSÉ GOMES CORREIA 26

professores com horas suplementares, imperativos burocráticos

excessivos e incessantes: stress, depressões, patologias, border-line,

enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre

dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos,

do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente

de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens). O presen-

te não é uma dimensão abstracta do tempo, mas o que permite a con-

sistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a

intensificação das forças vivas do passado e do futuro – para que pos-

sam irradiar no presente em múltiplas direcções. Tiraram-nos os

meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a

afirmação da nossa presença no presente do espaço público. Actual-

mente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto

seres sociais. O empobrecimento sistemático da sociedade está a pro-

duzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um

por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade

esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em

si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos -

porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não

há tempo (real e mental) para o convívio. A solidariedade efectiva

não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está

a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil.

Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o

buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos

ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros,

as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles

nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permane-

ce, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu pró-

prio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um

zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas for-

ças - em vias de me transformar num ser espectral. Sou dois: o que

cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de

vida para os seus, para os filhos, para si. Sem presente, os portugue-

ses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver

a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão

espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo

português. Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-

nos, paralisa-nos, desapropria-nos do nosso poder de acção. É este

que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nos-

sa potência própria e o nosso país."

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

27

É neste cenário criado e deixado pelo “resgate” que cabe determinar qual o papel da

Justiça na construção do Portugal Democrático e na defesa dos direitos funda-

mentais.

A vida social está globalmente institucionalizada pelo que podemos dizer que, regu-

lando o Direito a vida social, no plano teleológico ele se dirige a um comportamento

e a uma acção humana, de modo a conseguir um objectivo idealizado através dos

meios adequados.

É na administração da justiça e na execução das decisões judiciais que mais se revela

a institucionalização da ordem jurídica. Na verdade, o estabelecimento da jurisdição

como complexo de funções sociais distintas da administração no aspecto institucio-

nal, dá origem não só à formação de um genuíno processo, como também a uma

execução fundada em regras (funcionalismo judicial com uma ética e uma técnica

profissional especifica).

Assim, a jurisdição exerce um monopólio de reacção que é, ao mesmo tempo, um

monopólio de imposição (significa que não é legalmente permitida uma reacção

jurídica se não houver uma sentença) e um monopólio de execução (se a reacção

jurídica determinada pela sentença for uma questão da exclusividade da instância de

jurisdição).

É ainda a jurisdição que deve determinar a sanção quando a norma não estabelece a

extensão ou a espécie de castigo ou de indemnização de danos.

A importância da institucionalização do poder judicial operante sobre o “cenário”

post-troika, deriva da necessidade de existir uma justiça independente das interven-

ções arbitrárias dos governantes, como garantia de que a vida social e o seu processo

estão juridicamente regulados, aspiração a que corresponde a instituição de tribunais

especiais (ou a uma jurisdição separada) destinados a controlar todos os órgãos do

Estado na medida em que o exercício do poder político deve estar abrangido pela

esfera do Direito.

Por assim ser, o Tribunal Constitucional e os Tribunais Administrativos, são o gran-

de baluarte dos direitos fundamentais transgredidos em geral e pelo regime de

excepção criado pelo “resgate”, em especial, sendo ingente a necessidade de existi-

rem julgadores de rosto humano que cumpram de forma zelosa e dedicada a função

legalmente vinculada que, no plano do relacionamento institucional, traça a linha

divisória em relação a outros poderes cujo exercício não escapa à interdi-

ção/transgressão e podem, por vezes, tentar subverter os soberanos princípios da

separação e independência com compressão intolerável, senão mesmo postergação,

dos direitos fundamentais dos cidadãos, guiados pelos quais aqueles Tribunais cons-

tituirão o último reduto da justiça democrática e a maior reserva moral da Nação.

JOSÉ GOMES CORREIA 28

Não obstante, esmagados pelas avalanchas de processos, os Juízes e os demais cola-

boradores da administração da Justiça, confrontam-se com múltiplas restrições de

tempo e de apetrechamento e actualização de recursos, que os impedem de aceder a

novas experiências, situação agravada, muitas vezes, pelo que alguns denominam de

“princípio de Peter”.

Por banda da “Justiça”, sucede muitas vezes, que as experiências, i. é, as soluções

jurídicas encontradas para o caso concreto, são fruto da aplicação maquinal de uma

das possíveis, ficando sem se saber as consequências de acções diferentes por falta

de tempo ou de abertura para sobre elas reflectir e/ou para investigar novos e desco-

nhecidos rumos.

É que, a nosso ver, o sistema capitalista que domina o mundo, guindou-se ao ciclo

que eu apodo de “diabólico”, no sentido de que a política (não esquecer que esta é,

segundo a concepção de Clausewitz e que, na perfeição, está a ser cumprida agora, a

continuação da guerra por outros meios) tende para a destruição do estado social,

impondo o empobrecimento de alguns países para a felicidade de um punhado dou-

tros, sem que se saiba quem define e impõe as regras… transformando os cidadãos

em servos e escravos enquanto o velho império decai. Há um poder invisível que nos

tenta convencer de que são os nossos salvadores mas que, na realidade, nos obrigam

a pedir para, através da usura, nos tornarem mendigos, para, pedindo, nos darem

uma esmola quando, é certo e sabido, as crises do capitalismo são sempre de super-

produção, não faltando bens para satisfazer as necessidades de todos os seres huma-

nos a níveis dignos, mas a que há que imolar para satisfação do sacralizado mer-

cado…Este, é um truque sofisticado: tal como o do diabo, o poder invisível que

domina o mundo e a humanidade presentes, convence-nos que não existe!

E é esse poder que a Justiça tem hoje de enfrentar. Mas com que armas?!

As ideias em si não são boas ou más, tudo depende da utilidade que lhes dermos; só

as acções podem causar muito mal ou muito bem!

Isso porque urge perspectivar os grandes desafios que se colocam para centrar a

Justiça no seu papel essencial e nuclear num Estado de direito democrático, atento,

sobremodo, o paradigma de “contencioso pleno” que se introduziu no sistema, em

que a subordinação da Administração à lei passa pelo controle judicial, ao nível do

caso individual e concreto pelos Tribunais Administrativos os quais, em caso de não

serem cumpridos os ditames legais da actuação dos vários poderes político-adminis-

trativos ou de esta ser contrária à lei, se atribui à Justiça Administrativa o poder de

condenação na prática do acto que legalmente seja devido, cabendo à Justiça Cons-

titucional, o papel de subordinar o Estado quando este tenta crescentemente e sem

desistências, pôr em causa a Lex Fundamentalis.

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

29

Contudo, evocando aqui o poeta vate Luís Vaz:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Muda-se o ser, muda-se a confiança

Todo o mundo é composto de mudança

Tomando, cada dia, novas qualidades.

É neste conspecto que cabe deixar cair uma palavra especialmente para a chamada

“jovem magistratura” que começa também a “empobrecer” e a “funcionalizar-se”

perigosamente o que é produto de um novo sistema de formação que pode recrutar

os juízes do amanhã com base não no mérito profissional, mas na “dependência” não

ao princípio da legalidade, mas ao da conveniência.

Quando eu era “jovem magistrado”, produto da formação de um dos primeiros cur-

sos do CEJ, intervim no 2º Congresso dos Juízes Portugueses com uma alocução

intitulada “Entropia da Jovem Magistratura” e, a propósito, repristino o que afirmei

sobre as profecias da desgraça que a “velha magistratura” lançava sobre a nova.

Discreteava então:

Só a crença redutora em princípios superiores que de cima se impu-

nham à existência humana, e se resolviam, na antítese natureza-nor-

mas, fosse fundamentada a partir do direito divino/direito humano ou

do direito positivo/razão individual, explicavam que a administração

da justiça antes do estado de direito afirmado com a Constituição de

1976 fosse produto do labor da "elite".

É em relação a este estado de coisas que acreditamos que o novo sis-

tema de formação produziu uma verdadeira entropia. Esta, na acep-

ção considerada, reconduz-se à crença optimista da evolução episte-

mológica do sistema impulsionada pelo desenvolvimento interdis-

ciplinar das ciências sociais e das tensões doutrinais que erigem a

filosofia, agora associada aos avanços da sociologia jurídica, num

genuíno "prius" da actividade judicial.

Ora, com a chegada dos representantes da “nova vaga” de juízes,

espera-se o surgimento de uma nova síntese que contribua para valo-

rizar a jurisprudência que aqui se elabora, vivificando-a. E este é o

maior desafio da Justiça de hoje.

Como dizia HECK: “O juiz só pode cumprir as altas tarefas a ele

confiadas, se conhece o direito, a vida e a conexão que existe entre o

JOSÉ GOMES CORREIA 30

direito e a vida…um meio auxiliar indispensável são os exemplos e as

decisões da jurisprudência…só ela torna vivo o direito.

Para tal, tem de ser regulado o “relógio” da Justiça porque, embora funcione, atrasa-

se não em muitas horas, mas em anos intoleravelmente excessivos, o que requer não

só mais meios humanos, mas, também, a fiscalização pelos órgãos de gestão e disci-

plina e a responsabilização dos operadores judiciários pelos atrasos injustificados na

administração da Justiça reclamada pelos cidadãos.

É que, em cada processo, seja de que natureza for, está em causa a vida das pessoas

que é sobremodo atormentada num penoso calvário. Dá até vontade de rogar pragas

aos julgadores para que sejam partes em processo idêntico, para sentirem o sofri-

mento dos destinatários das decisões proferidas, às vezes, uma a duas décadas depois

sobre a ablação dos direitos e a introdução do feito em juízo.

Alguns cidadãos ainda vociferam junto dos Conselhos Superiores pedindo a acelera-

ção processual, mas estes pouco ou nada podem ante as montanhas de processos que

o juiz responsável tem a seu cargo…embora, verdade seja dita, muitos processos

disciplinares sejam instaurados aos prevaricadores, alguns sendo mesmo réus de

acções indemnizatórias!

A questão da justiça lenta já remonta a Voltaire, que vulgarizou o aforismo romano

da Justiça “rápida”: “sentença pronta, raro é justa”!

E, contrariando a ideia da “Justiça que tarda”, como preconizava D. Pedro I, “o

Cruel”: “aqueles que tarde vencem ficam vencidos”.

Muitos cidadãos desesperam, como aquele que peticionou a condenação de um

Município e do Ministério do Ambiente pelo atentado ambiental decorrente da ins-

talação de lagoas com dejectos de 4000 suínos a cerca de 30 metros da sua habita-

ção.

Decorridos 9 anos após a introdução do feito em juízo, depois de várias vicissitudes,

com recursos pelo meio, lá obteve uma sentença condenatória transitada.

Não obstante, clama agora para que o Município condenado cumpra a decisão judi-

cial e recomeça novo calvário, com novo processo, este, executivo.

E lança um lamento lancinante ao órgão de disciplina e ao Presidente do Tribunal:

Enquanto “a roda da Justiça não avança”, o Autor vai respirando cheiros nausea-

bundos, convivendo todos os dias com moscas, pulgas, 4000 porcos, detritos e céu

aberto num “paraíso” que faz inveja a lixeiras mais “perfumadas”… Em dias de

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

31

calor/humidade asfixiante, que são frequentes, o Autor questiona o estado do pro-

cesso e nada sabe, a não ser que tem de esperar…

Mas, aqui chegados, há que enfatizar a questão dos perigos que, a par da funcionali-

zação do juiz, acarreta a desmaterialização do processo, muito adorada por alguns

operadores judiciários.

Sendo certo que “sem alma e coração” os homens não passarão de máquinas, certo

também que o “admirável mundo novo” orwelliano está aí, pondo em causa a pes-

soa humana e colocando no seu lugar outro tipo de inteligência.

Há dias fiquei petrificado ao ler um artigo sobre Ciência publicado no jornal Expres-

so e que tinha como título de caixa alta “Revolução. Aproxima-se um momento

histórico na ciência, em que as regras morais vão ser introduzidas na programação

dos computadores. Mas há cientistas que falam numa ameaça ao nosso modo de

vida.”

Aí se refere que as regras praticadas pelas máquinas poderão servir para “Com-

preender melhor os seres humanos” pois “Reproduzir comportamentos em máqui-

nas vai ter a vantagem de nos ajudar a entender melhor como nós próprios funcio-

namos”.

No entanto, Manuel Curado, Especialista nas questões éticas da tecnologia e profes-

sor de Lógica do Departamento de Filosofia da Universidade do Minho perguntado

sobre se considerava que o mundo da comutação vai ser capaz de simular todas as

valências da mente humana, respondeu: “Estou convencido de que vai, no cálculo

matemático, na percepção visual, na atenção visual na decisão moral. Estamos a

assistir ao momento da história da ciência em que isso vai acontecer.” E, questio-

nado sobre se estava “preocupado com esta evolução da ciência”, afirmou perempto-

riamente: “Estou ao mesmo tempo fascinado e preocupado, como académico. Estou

fascinado porque há hoje arquitecturas computacionais que imitam o que pensáva-

mos impossível, como a cooperação e o altruísmo, por exemplo. Tudo se joga na

capacidade de a investigação computacional conseguir simular o cérebro humano e

tudo indica que este tem uma estrutura computacional. Mas estou preocupado com

as consequências, para a sociedade, da introdução da componente moral na compu-

tação. Imagine uma máquina com livre arbítrio, com capacidade de decisão diferente

da nossa, com valores e prioridades diferentes dos nossos.”

Isto para dizer que a desmaterialização do processo obtida por sistemas como o

CITIUS, o SITAF e – nome curioso! – o HABILLUS, sendo uma ferramenta essen-

cial para aperfeiçoar racionalmente a administração da Justiça, não pode ser a ante-

câmara do Juiz robot, à semelhança do computador Hal que atirou o homem para o

vazio cósmico por dele se ter tornado inimigo… a premonição kubrickiana não pode

JOSÉ GOMES CORREIA 32

cumprir-se nunca na administração da Justiça já que, nesta, primeiro, estão as pes-

soas e só as pessoas humanas a devem administrar com humanidade!

Do que vem dito, deveremos com toda a pertinência tirar a seguinte conclusão:

Perante a sociedade ou, mais restritamente, o meio social, o magistrado, como

homem, é parcial, pois cada um é parte do todo, porque deste participa.

Claro que com esta afirmação não se põe em causa uma outra imparcialidade do juiz,

que, como vimos, se resolve na equidistância das partes. Não.

Como escreveu o já clássico e ecuménico Carnelluti

Basta reflectir que ser imparcial significa não ser parte; mas o juiz,

pois não é mais de que um homem, não pode deixar de ser parte. E

isto quer dizer, em termos menos abstractos que ele é alguém com

as suas simpatias e antipatias, as suas relações, os seus interesses, e

com aquele modo misterioso de ser que se constitui das predilec-

ções. Pretender a imparcialidade do juiz é, portanto, qualquer coisa

como buscar a quadratura do círculo. Seria necessário fazê-lo viver

dentro de uma campânula de vidro; e talvez, afinal, tal não bastasse

porque isso fá-lo-ia perder a humanidade, logo, a compreensão, a

qual lhe vem de saber viver a vida dos outros.

E o novo rumo da Justiça, em vista da realização dos direitos fundamentais no cená-

rio criado e deixado pelo “resgate”, passa ainda e necessariamente pela imputação às

entidades e seus agentes, com funções administrativas, dos danos gerados em virtude

da prática de faltas a qual deriva não só de imperativo constitucional (artigo 22° da

CRP), mas também é imposta pelos princípios do Estado de Direito, da dignidade da

pessoa humana, da protecção dos direitos fundamentais pessoais, sociais e patrimo-

niais.

Cabe neste âmbito referir que embora o artigo 9° nº 1 do RRCEE, não inclua a refe-

rência a disposições de Direito Comunitário, isso não inibe a Administração de aten-

der ao conteúdo regulatório de regulamentos comunitários em vigor incidentes sobre

os direitos fundamentais, seja promovendo a necessária concretização através da

emissão dos necessários regulamentos de execução, seja retirando do seu conteúdo a

normação de conformação de direitos dos particulares.

Na verdade, o Direito Comunitário tem uma vocação de aplicação uniforme em

todos os Estados-membros, por força do princípio da solidariedade (artigo 10° do

TCE), a que Portugal está adstrito (cfr. os artigos 7° nº 6 e 8° nº 3 e 4 da CRP e 249,

§2° do TCE).

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

33

Para o caso que nos ocupa importam as normas portadoras de características de lei -

medida ou leis self executing, podendo ter gerado prejuízos relevantes aos cidadãos,

mais concretamente, as normas do direito comunitário com aquela natureza, impon-

do-se, acima de tudo, saber se as normas comunitárias em causa revestem essa natu-

reza.

Na verdade, os chamados regulamentos previstos no art. 189° do tratado da CEE

constituem direito self executing, o que significa que são direito imediatamente apli-

cável, sem necessidade de qualquer acto interno (lei, decreto) de transformação.

À questão da responsabilidade, assim enquadrada, liga-se umbilicalmente a emer-

gência e ética financeira.

Portugal é como um adolescente que tem um golpe de sorte e entra

numa volúpia gastadora sem saber exactamente porquê. Gasta só

pelo gozo de fazer pelo menos uma vez na vida aquilo que nunca fez.

Esta é uma asserção vertida por Rentes de Carvalho no seu livro, recentemente edi-

tado, considerado o livro maldito do 25 de Abril e que dá pelo título: “Portugal, a

Flor e a Foice” por isso, tendencialmente premonitório da situação a que chegámos.

A ética é criada, construída socialmente no colectivo e o problema ético deriva da

dificuldade em definir-se bem e mal da vida em grupo. Ilustrando: um exemplar do

homo sapiens que tivesse todo o planeta à sua disposição por ser o único da sua

espécie a habitá-lo, a questão ética seria facilmente resolvida; tudo o que esse indi-

víduo considerasse bom para si, seria bom e, logo, ético. Ora, é a existência de

outros membros da mesma espécie compartilhando o mesmo espaço que explica e

legitima a existência de uma ética a ser seguida e aplicável a toda a sociedade ou

apenas a um determinado grupo dentro de dada sociedade.

Nesse pendor, a ética representa antes de tudo uma restrição à liberdade individual e,

ao mesmo tempo, garante um nível mínimo de liberdade, externando-se essa ética

nas normas sociais em geral e sendo as leis que neste contexto determinam o padrão

ético mínimo esperado.

O certo é que não existem garantias absolutas de que certas leis não sejam discrimi-

natórias, injustas ou sirvam os interesses de uns poucos membros da sociedade sem

embargo de, numa sociedade democrática de facto e de direito como é a nossa, ser

de esperar que as leis representem a média daquilo que a sociedade considera míni-

mo para uma convivência pacífica.

JOSÉ GOMES CORREIA 34

Porém, a ética vai muito além da norma jurídica pelo que, se o comportamento ético

além do que a lei estabelece não é obrigatório e representa, em última análise, uma

restrição à liberdade, como explicar que determinados indivíduos ou grupos de indi-

víduos estabeleçam padrões acima daqueles que a lei determina?

A revolução da informática, concomitante com a queda do sistema de Bretton

Woods (1973), no último quartil do século passado, veio corroborar um nível de

integração inesperado e deu azo ao que ficou conhecido como capital errante;

dinheiro especulativo (e extremamente volátil) que circula pelo mundo em busca das

melhores oportunidades de ganho.

Visto que o capital deixou de ter pátria, o risco de uma quebra do sistema financeiro

global tornou-se inevitável sobretudo porque a velocidade com que a informação

circula através desses mercados é surpreendente e pode ser melhor expressa através

de exemplos recentes como a crise desencadeada nos mercados asiáticos e, ante-

riormente, a crise mexicana (efeito tequila), que tiveram consequências sobre diver-

sos países numa velocidade sem precedentes.

Tendo como pano de fundo o estado em que o “resgate” deixou o nosso país, o cená-

rio traçado pelo clarividente José Gil, dir-se-á que a Constituição só admite a redu-

ção dos direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente nela previstos (art.

18.º, n.º 2) e a emergência financeira, que legitimadora daquele cenário, não é um

deles. Aliás, de acordo com o art. 19.º, n.º 1, da Constituição, "os órgãos de sobera-

nia não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos,

liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência,

declarados na forma prevista na Constituição". Enquanto nenhuma dessas declara-

ções ocorrer, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses estão ple-

namente vigentes e não podem ser afectados.

Não obstante, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar relevante um pre-

tenso "estado de emergência financeira" não declarado pela forma constitucional.

Tal já aconteceu no Acórdão 399/2010, onde o Tribunal Constitucional fez tábua

rasa da proibição constitucional da retroactividade fiscal com fundamento em que

aquelas leis fiscais retroactivas "têm carácter urgente e premente no contexto de

anúncio das medidas conjuntas de combate ao défice e à dívida pública acumulada".

Ora ressalvado o respeito devido, este tipo de retórica constitui uma verdadeira sus-

pensão de vigência das normas constitucionais, decretada pelo Tribunal Constitu-

cional durante o estado de crise financeira, sem que um estado de emergência seja

declarado pela forma constitucional. Esta forma de suspender a vigência da Consti-

tuição tem muitos precedentes históricos. O que não é normal é que venha de um

Tribunal Constitucional.

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

35

Diga-se, no entanto e em abono da verdade, que, no decurso do resgate, o Tribunal

Constitucional tem imposto barreiras de protecção dos direitos sociais que, não obs-

tante, o discurso e a acção políticos, não têm pejo em violentar.

Com efeito, a jurisprudência constitucional produzida a propósito dos pedidos de

fiscalização dos orçamentos do Estado relativos aos anos em que tem vigorado a

emergência financeira e incidentes sobre esse tipo de direitos, vem afirmando que os

direitos sociais valem tanto como os tradicionais apodados de “liberdade” na medida

em que a Constituição portuguesa estabelece uma relação recíproca de direitos

sociais e económicos que reforçam a estrutura da liberdade e se sobrepõem ou, no

mínimo, constituem limites impostos pelos princípios gerais da igualdade, da pro-

porcionalidade ou da protecção da confiança, às medidas redutoras por condiciona-

mentos financeiros ou opções decorrentes de orientação política.

Por outro lado, tem que se questionar até que ponto o exercício da justiça adminis-

trativa, ainda que involuntariamente, tem contribuído para a impunidade que nos vai

corroendo, sem que valha a velha desculpabilidade de que há que alterar a lei para

ser melhor aplicada, num lavar de mãos em que o aplicador é o mal menor e o legis-

lador é o maior culpado. É tudo relativo mas nunca será um bom aplicador aquele

que esconde ou distorce normas da lei e as razões das leis para proferir uma senten-

ça. No que à responsabilidade civil e à emergência e ética financeira diz respeito,

normalmente as infracções em que os nossos administradores constantemente incor-

rem, em regra não são considerados ilícitos de perigo sem necessidade de provar o

resultado traduzido no erro cometido com violação dolosa das leis administrativas.

Mas a globalização económica e a vigorante emergência financeira torna exigível

que o sistema financeiro seja perspectivado como um bem público comum, o que

implica que, moral e eticamente, se institua e accione a responsabilização das insti-

tuições não só nacionais, mas, porque não, as internacionais, mormente as que têm

como objecto o assessoramento dos Estados de forma a garantir-lhes financiamento

em situação de emergência ou de crise.

Dito de outro modo: poderão ser responsabilizadas tais instituições pelos danos

causados aos Estados e às populações pois, na nossa lei, concretamente no artigo

485º, nº 2, do Código Civil, existe a consagração de um princípio geral de direito

que pode e deve ser aplicado neste tipo de situações, ao estabelecer a responsabili-

dade nos casos em que havia o dever jurídico de dar conselho, recomendação ou

informação e se tenha procedido com negligência ou intenção de prejudicar.

É manifesto que existe uma tendência para restringir o campo da imunidade, se não

mesmo da impunidade mas, quando se chega a admitir o erro que justifica tal res-

ponsabilização tornam-se questionáveis as razões da não chamada à responsabili-

JOSÉ GOMES CORREIA 36

dade seja das instituições nacionais pelos danos de diferente natureza causados ao

bem público comum, seja mesmo das instituições internacionais, como o FMI, quan-

to aos desastrosos resultados da aplicação do memorando da Troika. É que, não

obstante os estatutos do FMI consagrarem uma cláusula de imunidade, o certo é que

o nosso Supremo Tribunal de Justiça vem perfilhando uma interpretação restritiva da

imunidade soberana dos Estados e organizações internacionais, circunscrita aos

actos de gestão pública, sendo essa a doutrina dominante no nosso sistema judicial.

Porque será que nunca ninguém se lembrou desta possibilidade e de accionar os

mecanismos legais de uma tal responsabilização? A resposta só pode ser esta: per-

demos, de forma indelével, a nossa soberania e permitimos a compressão (ou esma-

gamento?) dos direitos fundamentais e a destruição do Estado democrático e social

que difícil ou impossivelmente reconstruiremos…apesar de gritos “ipiranguentos”

que muitos soltaram quando viram a troika pelas costas (será que ela saiu mesmo?).

Todavia, face ao estado da nação e dos resultados eleitorais das últimas eleições

europeias, que apontam claramente para o ressurgimento dos nacionalismos, cabe

então equacionar até que ponto estão em causa na sociedade democrática ocidental,

que é aquela em que vivemos, os valores que legitimam o sistema dos direitos, liber-

dades e garantias.

Na apregoada crise, que motivou as medidas do resgate, é unicamente e sempre a

questão material que está em causa, estando o poder imaterial e/ou os valores, a

concepção de legitimidade ou a noção de bem, arredada da discussão, quando é certo

que se sente a forte pulsão cultural que alimenta e faz crescer a visão do mundo

nacionalista e reaccionária, visando pôr em causa o sistema democrático das liberda-

des e dos direitos e destruir a visão da democracia como um fim e não como um

meio, por muitos considerado o sistema menos imperfeito de todos para alcançar a

felicidade e o progresso humanos.

O recrudescimento dos nacionalismos só se justifica como forma de preencher o

vazio, o desencanto gerado pela crise do sistema democrático dos partidos e da ten-

dência destes para, mediante a destruição do estado social, dos direitos adquiridos,

seguindo um putativa linha liberal, imporem uma forma de pensar anti-iluminista e

anti-direito natural aproveitada pelos nacionalistas xenófobos e chauvinistas, criti-

cistas do que dizem ser o vazio espiritual do ocidente materialista.

A trave-mestra dos inimigos do sistema democrático e dos direitos fundamentais

radica na afirmação de que estes direitos não podem ser universais pois o indivíduo

só ganha sentido como parte de um todo orgânico – a nação que é defendida pelo

Estado que é o único valor absoluto (nada contra o Estado, tudo pelo Estado, tudo

dentro do Estado). Não por acaso, esta concepção dos direitos humanos está mais

próxima do Islão do que do Ocidente pois ambos rejeitam o individualismo e mate-

QUE RUMO PARA A JUSTIÇA EM PORTUGAL?

37

rialismo extremados que vêm dominando as sociedades ocidentais; rejeitam a eman-

cipação da mulher, da liberdade… mas também é certo que algumas razões de quei-

xa são consistentes, como seja a hostilidade, o desrespeito pelos mais velhos, a des-

confiança, confrontação, comportamentos predatórios próprios de uma competição

desenfreada e egocêntrica.

Do que vem dito, decorre que os nacionalistas emergentes, tal como os islamitas, são

inimigos dos conceitos ocidentais de sociedade civil, liberdade, direitos humanos,

sendo a dignidade do Estado (ou da religião) mais importante do que a liberdade

individual, radicando a sua base jurídica e moral não no indivíduo, mas na nação, a

qual é a verdadeira detentora de personalidade jurídica e a do indivíduo mais não é

do que uma parte desse todo, que é o colectivo nacional.

Dito de outro modo: contrariamente ao que acontece na tradição ocidental agora

perigosamente posta em causa, o indivíduo não é portador daqueles direitos inalie-

náveis que são independentes do direito positivo do Estado, sabido que no ocidente,

o Estado só tem de reconhecer os direitos naturais que são anteriores à própria cria-

ção do Estado – este não cria direitos, só protege direitos preexistentes; já para os

nacionalismos emergentes (e, se não erramos, para aqueles que nos pretendem res-

gatar e a outros países que escolheram para esse efeito, em completa e paradoxal

negação do que se diz seguirem, que é uma visão liberal), é o Estado que cria os

direitos dos indivíduos, o que vale por dizer que o direito positivo derroga o direito

natural. Enfim, é o contraponto entre o Estado de Direito para os cidadãos e um

Estado autoritário para súbditos, é a diferença entre comunidade (gemeinschaft) e

sociedade (Gesellschaft).

Veja-se, por exemplo, que a Igreja Ortodoxa russa organizou em 2006 a reunião que

promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Dignidade, como

antítese da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ali se consagrando o

relativismo cultural do nacionalismo contra o universalismo do direito natural. Em

última análise, pretende-se pôr em causa a democracia constitucional tal como foi

construída no ocidente ao ponto de se afirmar que existe uma democracia oriental

em que não cabem a separação de poderes e as liberdades e garantias, ou seja, o

direito natural, deslocando a noção de Bem centrada no indivíduo e no direito natu-

ral, para o Estado construído a partir de laços culturais, raciais e linguísticos, a

comunidade de irmãos unidos em redor de hinos, marchas e bandeiras, a comuni-

dade que mergulha sempre na barbárie do jus sanguinis e odeia ferozmente a socie-

dade de cidadãos (que não de irmãos) ocidental e que se implanta no jus soli.

Ora, tudo isto, a nosso ver, atenta contra as bases fundamentais do nosso sistema

democrático erigido nos direitos fundamentais e universais, o que pode gerar um

verdadeiro terramoto semelhante ao que vitimou a Atlântida, cujos abanões têm

vindo a acentuar-se com as políticas de austeridade e de empobrecimento, justifica-

JOSÉ GOMES CORREIA 38

das, sobretudo, pelo declínio económico da Europa derivado da ascensão da China,

Índia e Brasil.

Tal como no mito de Sísifo relatado por Albert Camus na obra com o mesmo nome,

parece que continuamos a ser dominados pelo mito do eterno retorno: o gigante

Sisifo carrega o mundo até um pouco mais acima na encosta do Atlas, mas a fatali-

dade obrigá-lo-á sempre a deixar rolá-lo, de novo e sempre, até ao sopé, onde retor-

nará para iniciar nova viagem!

Em sinopse geral e conclusiva: cumpre à Justiça de hoje, como último reduto da

sociedade democrática, fazer cumprir, de forma inabalável, independente, imparcial

e corajosa os direitos fundamentais dos cidadãos, combatendo o Grande Ditador que

se oculta, forjando uma possessão jamais vista, com as vestes modernas de Satã!

Esse é um bom combate que tem de ser vencido para acabar com a fatalidade sisi-

fiana, resistência que está na linha dos valores da liberdade, igualdade e fraternidade

de que quem os perfilha terá de ser guerreiro, podendo e devendo proclamar-se que:

-o que é, é;

-o que não é, não pode ser e,

- o que pode ser, será.

Crisis Económica y Derecho Administrativo Español

SANTIAGO ROSADO PACHECO *

Sumário: 1. El inicio de la crisis económica. 2. El abuso del Decreto-Ley. 3.

La reforma del artículo 135 de la Constitución Española. 4. El artículo 135 de

la Constitución Española y su incidencia en el Régimen Local. 5. Crisis

económica y regulación sectorial: el sector financiero. 6. Crisis económica y

eficiencia de la Administración pública. 7. Otras regulaciones de importante

interés.

Resumen: El presente trabajo realiza un recorrido por algunos de los hechos

más significativos que han sucedido en los últimos ocho años en España, co-

mo consecuencia de los efectos de la conocida crisis económica, y que han te-

nido una incidencia significativa en el Derecho Administrativo nacional. Al

mismo tiempo, se ha intentado poner de manifiesto la tensión entre la búsque-

da de la eficiencia en el mundo del Derecho público (consecuencia de la pre-

sión del Derecho de la Unión Europea) y la reafirmación de las técnicas de

Derecho público (Constitucional, Presupuestario y Administrativo) que han

JURISMAT, Portimão, 2016, n.º 8, pp. 39-67.

* Profesor Catedrático de Derecho Administrativo de la Universidad Rey Juan Carlos.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 40

vuelto a irrumpir de manera muy caracterizada en el panorama del derecho

nacional.

Palabras clave: Crisis Económica, Decreto-Ley, Reforma Constitucional,

Sector Financiero, Eficiencia, Reforma, Administración Pública.

Abstract: The present paper analyzes some of the most significant events that

have occurred in the last eight years in Spain, as a consequence of the effects

of the known economic crisis, which have had a significant impact on national

administrative law. At the same time, an attempt has been made to highlight

the tension between the search for efficiency in the world of public law (as a

result of the pressure of European Union law) and the reaffirmation of public

law techniques (Constitutional, Budgetary and Administrative) which have

once again broken down in a very characteristic way in the national legal

landscape.

Key words: Economic Crisis, Decree-Law, Constitutional Reform, Financial

Sector, Efficiency, Reform.

1. El inicio de la crisis económica

La aparición de la crisis económica en nuestro país ha tenido una incidencia clara en

el Derecho Administrativo o, al menos, ha proporcionado un supuesto donde, a mo-

do de laboratorio, pueden comprobarse algunas tensiones en relación con las técni-

cas propias de nuestro derecho público.

En un primer momento la reacción del Estado ante la crisis tuvo una respuesta de

marcado carácter político, en el sentido de que se elaboraron documentos cuya ca-

racterística consistía en que éstos carecían de relevancia jurídica o, si se quiere, sin

vinculación jurídica. La referencia inicial fue la “Estrategia Española de Desarrollo

Sostenible” de noviembre de 2007, a la que le siguió el “Plan Español de Estímulo a

la Economía y al Empleo” (Plan E) de noviembre de 2008, con medidas de fomento

sobre el empleo y el apoyo a las empresas con recursos públicos. Más tarde, se edita

la “Estrategia para la Economía Sostenible” de diciembre de 2009, que contiene

algunas medidas de naturaleza estructural y de reducción directa del gasto público, y

es el origen de la Ley posterior de Economía Sostenible (Ley 2/2011).

Desde el punto de vista económico, se aprobó al “Programa de Estabilidad 2009-

2013”, sustituido, poco después, por el “Programa de Estabilidad 2011-2014”, la

edición del “Plan de Austeridad de la Administración General del Estado 2010-2013,

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

41

hasta la aprobación del “Programa Nacional de Reformas 2011”. Con el cambio de

Gobierno, en noviembre de 2011, se siguió en esta línea con el “Programa Nacional

de Reformas 2012” y la actualización del “Programa de Estabilidad 2012-2015” y la

“Estrategia española de política económica” de septiembre de 2012.

2. El abuso del Decreto-Ley

En segundo lugar, se debe dar cuenta de que desde el año 2008 se adoptan un in-

gente número de Reales Decretos-Ley que ponen de manifiesto la necesidad de

adoptar medidas jurídicas urgentes, de naturaleza excepcional.1 No obstante, tal

1 En 2008 se adoptaron: RD-Ley 2/2008, de 21 de abril, de medidas de impulso de la actividad

económica: R.D.-Ley 6/2008, de 10 de octubre, de creación del fondo de Adquisición de Acti-

vos financieros; R.D.-Ley 7/2008, de 13 de octubre, de medidas urgentes del plan de acción

concertada de la zona euro; R.D.-Ley 9/2008, de 28 de noviembre, de creación del Fondo esta-

tal de Inversión Local y el Empleo; y el R.D.-Ley 10/2008, de 12 de diciembre, de medidas fi-

nancieras para la mejora de la liquidez de las pequeñas y medianas empresas y otras medidas

complementarias. En 2009, se adoptaron, entre otros: RD-Ley 2/2009, de 6 de marzo, de medi-

das urgentes para el mantenimiento y el fomento del empleo y la protección de personas des-

empleadas (tramitado luego como la ley 27/2009); R.D.-Ley 4/2009, de 27 de marzo, de autori-

zación de las garantías que el Banco de España concede a la Caja de Ahorros de Castilla-La

Mancha; R.D.-Ley 5/2009, de 24 de abril, de medidas extraordinarias y urgentes para facilitar a

las entidades locales el saneamiento de deudas pendientes con empresas y autónomos; RD.-Ley

6/2009, de 30 de abril, de medidas en el sector energético y el bono social; R.D.-Ley 9/2009, de

26 de junio, sobre reestructuración bancaria y reforzamiento de recursos propios de las entida-

des de crédito; y el R.D. Ley 13/2009, de 26 de octubre, por el que se crea al Fondo estatal para

el Empleo y la Sostenibilidad Local (declarado parcialmente inconstitucional por STC nº

150/2012). En 2010, entre otros, se dictaron: RD. 4/2010, de 26 de marzo, de racionalización

del gasto farmacéutico con cargo al SNS; el R:D.-Ley 5/2010, de 31 de marzo, ampliando me-

didas económicas; R.D.-Ley 6/2010, de 9 de abril, para el impulso de la recuperación econó-

mica y el empleo; RD.-Ley 8/2010, de 20 de mayo, de medidas extraordinarias para la reduc-

ción del déficit público; el RD-Ley 9/2010, de 28 de mayo, autorizando a la Administración

General del estado a otorgar avales a operaciones de financiación en el marco del Mecanismo

Europeo de Estabilidad Financiera de los Estados miembros de la zona euro; el RD-Ley

11/2010, de 9 de julio, de órganos de gobierno y otros aspectos del régimen jurídico de las Ca-

jas de Ahorro; el RD-Ley 13/2010, de 3 de diciembre, de actuaciones en el ámbito fiscal, labo-

ral y liberalizadoras para fomentar la inversión y creación de empleo; y el RD-Ley 14/2010, de

23 de diciembre, de medidas urgentes para la corrección del déficit tarifario del sector eléctrico.

En 2011 se dictaron, entre otros, los siguientes: el RD-Ley 2/2011, de 18 de febrero, para el re-

forzamiento del sistema financiero; el RD-Ley 5/2011, de 29 de abril, de medidas para la regu-

larización del empleo sumergido y la rehabilitación de viviendas; el RD-Ley 8/2011, de 1 de ju-

lio, de medidas de apoyo a los deudores hipotecarios , de control del gasto público y cancela-

ción de deudas con empresas y autónomos contraídas por las entidades locales, de fomento de

la actividad empresarial e impulso de la rehabilitación y de simplificación administrativa; el

RD-Ley 9/2011, de medidas para la cohesión del sistema nacional de salud, contribución a la

consolidación fiscal y elevación del importe máximo de los avales del Estado para 2011; el RD-

Ley 16/2011, de 14 de octubre, de creación del Fondo de Garantía de Depósitos de Entidades

de Crédito; RD-Ley 20/2011, de 30 de diciembre, de medidas urgentes en materia presupuesta-

SANTIAGO ROSADO PACHECO 42

ria, tributaria y financiera para la corrección del déficit.. En el año 2012: Real Decreto-ley

1/2012, de 27 de enero, por el que se procede a la suspensión de los procedimientos de preasig-

nación de retribución y a la supresión de los incentivos económicos para nuevas instalaciones

de producción de energía eléctrica a partir de cogeneración, fuentes de energía renovables y re-

siduos; Real Decreto-ley 2/2012, de 3 de febrero, de saneamiento del sector financiero; Real

Decreto-ley 4/2012, de 24 de febrero, por el que se determinan obligaciones de información y

procedimientos necesarios para establecer un mecanismo de financiación para el pago a los

proveedores de las entidades locales; Real Decreto-ley 6/2012, de 9 de marzo, de medidas ur-

gentes de protección de deudores hipotecarios sin recursos, Real Decreto-ley 7/2012, de 9 de

marzo, por el que se crea el Fondo para la financiación de los pagos a proveedores; Real De-

creto-ley 9/2012, de 16 de marzo, de simplificación de las obligaciones de información y do-

cumentación de fusiones y escisiones de sociedades de capital; Real Decreto-ley 10/2012, de 23

de marzo, por el que se modifican determinadas normas financieras en relación con las faculta-

des de las Autoridades Europeas de Supervisión; Real Decreto-ley 12/2012, de 30 de marzo,

por el que se introducen diversas medidas tributarias y administrativas dirigidas a la reducción

del déficit público; Real Decreto-ley 13/2012, de 30 de marzo, por el que se transponen directi-

vas en materia de mercados interiores de electricidad y gas y en materia de comunicaciones

electrónicas, y por el que se adoptan medidas para la corrección de las desviaciones por des-

ajustes entre los costes e ingresos de los sectores eléctrico y gasista; Real Decreto-ley 14/2012,

de 20 de abril, de medidas urgentes de racionalización del gasto público en el ámbito educativo;

Real Decreto-ley 15/2012, de 20 de abril, de modificación del régimen de administración de la

Corporación RTVE, previsto en la Ley 17/2006, de 5 de junio; Real Decreto-ley 16/2012, de 20

de abril, de medidas urgentes para garantizar la sostenibilidad del Sistema Nacional de Salud y

mejorar la calidad y seguridad de sus prestaciones.; Real Decreto-ley 17/2012, de 4 de mayo,

de medidas urgentes en materia de medio ambiente, Real Decreto-ley 18/2012, de 11 de mayo,

sobre saneamiento y venta de los activos inmobiliarios del sector financiero; Real Decreto-ley

19/2012, de 25 de mayo, de medidas urgentes de liberalización del comercio y de determinados

servicios; Real Decreto-ley 20/2012, de 13 de julio, de medidas para garantizar la estabilidad

presupuestaria y de fomento de la competitividad Real Decreto-ley 21/2012, de 13 de julio, de

medidas de liquidez de las Administraciones públicas; Real Decreto-ley 22/2012, de 20 de ju-

lio, por el que se adoptan medidas en materia de infraestructuras y servicios ferroviarios; Real

Decreto-ley 24/2012, de 31 de agosto, de reestructuración y resolución de entidades de crédito;

Real Decreto-ley 27/2012, de 15 de noviembre, de medidas urgentes para reforzar la protección

a los deudores hipotecarios; Real Decreto-ley 28/2012, de 30 de noviembre, de medidas de

consolidación y garantía del sistema de la Seguridad Social. En el año 2013: Real Decreto-ley

2/2013, de 1 de febrero, de medidas urgentes en el sistema eléctrico y en el sector financiero;

Real Decreto-ley 3/2013, de 22 de febrero, por el que se modifica el régimen de las tasas en el

ámbito de la Administración de Justicia y el sistema de asistencia jurídica gratuita; Real De-

creto-ley 6/2013, de 22 de marzo, de protección a los titulares de determinados productos de

ahorro e inversión y otras medidas de carácter financiero; Real Decreto-ley 7/2013, de 28 de

junio, de medidas urgentes de naturaleza tributaria, presupuestaria y de fomento de la investi-

gación, el desarrollo y la innovación; Real Decreto-ley 8/2013, de 28 de junio, de medidas ur-

gentes contra la morosidad de las administraciones públicas y de apoyo a entidades locales con

problemas financieros; Real Decreto-ley 9/2013, de 12 de julio, por el que se adoptan medidas

urgentes para garantizar la estabilidad financiera del sistema eléctrico; Real Decreto-ley

10/2013, de 26 de julio, por el que se conceden créditos extraordinarios en los presupuestos de

los Ministerios de Industria, Energía y Turismo y de Defensa y suplementos de crédito para

atender obligaciones del Servicio Público de Empleo Estatal; Real Decreto-ley 11/2013, de 2 de

agosto, para la protección de los trabajadores a tiempo parcial y otras medidas urgentes en el

orden económico y social. Real Decreto-ley 12/2013, de 18 de octubre, por el que se conceden

suplementos de crédito por importe de 70.000.000 de euros en el presupuesto del Ministerio de

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

43

cantidad de Reales Decretos Leyes impone una reflexión sobre la propia estructura

Economía y Competitividad para atender necesidades de financiación de la Agencia Estatal

Consejo Superior de Investigaciones Científicas; Real Decreto-ley 13/2013, de 25 de octubre,

por el que se conceden créditos extraordinarios por importe total de 17.421.238.125 de euros,

para la concesión de un préstamo al Fondo para la Financiación de los Pagos a Proveedores, pa-

ra financiar al Servicio Público de Empleo Estatal la aportación al IV Plan Integral de Empleo

en Canarias, para dotar la participación de España en la Facilidad Financiera Internacional para

la Inmunización y para la cuarta convocatoria de ayudas al Programa de Incentivos al Vehículo

Eficiente; Real Decreto-ley 14/2013, de 29 de noviembre, de medidas urgentes para la adapta-

ción del derecho español a la normativa de la Unión Europea en materia de supervisión y sol-

vencia de entidades financieras; Real Decreto-ley 15/2013, de 13 de diciembre, sobre rees-

tructuración de la entidad pública empresarial "Administrador de Infraestructuras Ferroviarias"

(ADIF) y otras medidas urgentes en el orden económico; Real Decreto-ley 17/2013, de 27 de

diciembre, por el que se determina el precio de la energía eléctrica en los contratos sujetos al

precio voluntario para el pequeño consumidor en el primer trimestre de 2014. En el año 2014:

Real Decreto-ley 1/2014, de 24 de enero, de reforma en materia de infraestructuras y transporte,

y otras medidas económicas; Real Decreto-ley 5/2014, de 4 de abril, por el que se prevé una

oferta de empleo público extraordinaria y adicional para el impulso de la lucha contra el fraude

fiscal y la aplicación de las medidas previstas en la Ley 27/2013, de 27 de diciembre, de racio-

nalización y sostenibilidad de la Administración Local; Real Decreto-ley 6/2014, de 11 de abril,

por el que se regula el otorgamiento de la explotación de los recursos mineros de la zona deno-

minada "Aznalcóllar"; Real Decreto-ley 8/2014, de 4 de julio, de aprobación de medidas ur-

gentes para el crecimiento, la competitividad y la eficiencia; Real Decreto-ley 11/2014, de 5 de

septiembre, de medidas urgentes en materia concursal; Real Decreto-ley 13/2014, de 3 de oc-

tubre, por el que se adoptan medidas urgentes en relación con el sistema gasista y la titularidad

de centrales nucleares; Real Decreto-ley 15/2014, de 19 de diciembre, de modificación del

Régimen Económico y Fiscal de Canarias; Real Decreto-ley 16/2014, de 19 de diciembre, por

el que se regula el Programa de Activación para el Empleo; Real Decreto-ley 17/2014, de 26 de

diciembre, de medidas de sostenibilidad financiera de las comunidades autónomas y entidades

locales y otras de carácter económico. En el año 2015: Real Decreto-ley 1/2015, de 27 de fe-

brero, de mecanismo de segunda oportunidad, reducción de carga financiera y otras medidas de

orden social; Real Decreto-ley 3/2015, de 22 de marzo, por el que se prevé una oferta de em-

pleo público extraordinaria y adicional para luchar contra el fraude en los servicios públicos,

para el impulso del funcionamiento de la Administración de Justicia y en aplicación de las me-

didas previstas en la Ley 27/2013, de 27 de diciembre, de racionalización y sostenibilidad de la

Administración Local; Real Decreto-ley 4/2015, de 22 de marzo, para la reforma urgente del

Sistema de Formación Profesional para el Empleo en el ámbito laboral; Real Decreto-ley

5/2015, de 30 de abril, de medidas urgentes en relación con la comercialización de los derechos

de explotación de contenidos audiovisuales de las competiciones de fútbol profesional; Real

Decreto-ley 6/2015, de 14 de mayo, por el que se modifica la Ley 55/2007, de 28 de diciembre,

del Cine, se conceden varios créditos extraordinarios y suplementos de créditos en el presu-

puesto del Estado y se adoptan otras medidas de carácter tributario; Real Decreto-ley 8/2015,

de 26 de junio, de medidas de apoyo para la continuidad de Barcelona como "Mobile World

Capital" para el período 2019-2023. Real Decreto-ley 9/2015, de 10 de julio, de medidas ur-

gentes para reducir la carga tributaria soportada por los contribuyentes del Impuesto sobre la

Renta de las Personas Físicas y otras medidas de carácter económico; Real Decreto-ley

10/2015, de 11 de septiembre, por el que se conceden créditos extraordinarios y suplementos de

crédito en el presupuesto del Estado y se adoptan otras medidas en materia de empleo público y

de estímulo a la economía. Real Decreto-ley 11/2015, de 2 de octubre, para regular las comi-

siones por la retirada de efectivo en los cajeros automáticos

SANTIAGO ROSADO PACHECO 44

del Estado, ya que, en realidad coloca al órgano constitucional “Gobierno” en el

centro y arriba de todo el sistema institucional, aunque con cobertura en la Constitu-

ción de 1978, su papel parece que a todas luces desborda el encargo del art. 97 de la

propia constitución. Esta situación crea algunos problemas, desde el punto de vista

de las garantías, toda vez que la complejidad, entrecruzamiento de medidas, regula-

ción de detalles sectoriales, etc., que incluyen tales Reales Decretos Leyes pueden

suponer, primero, una clara sustracción de competencias a la jurisdicción ordinaria,

quedando vedada la posibilidad de acudir a la misma por el rango jurídico formal del

Decreto-Ley y, en segundo lugar, porque el control constitucional efectivo (recurso

de inconstitucionalidad o cuestión de inconstitucionalidad) sobre las medidas que se

toman, en muchos casos de forma fugaz y a corto plazo, está sometida al enorme

plazo de resolución del mismo, lo que hace que la justicia constitucional sea mera-

mente prospectiva.2

3. La Reforma del artículo 135 de la Constitución española

En tercer lugar, todo el Derecho ya denominado de “urgencia” o, quizás, mejor de

“emergencia” que representó la primera etapa de Reales Decretos Leyes se cierra

con la “Reforma Constitucional de 2011” del artículo 135, incorporándose “el prin-

cipio de estabilidad presupuestaria de las Administraciones Públicas” y, en conse-

cuencia, la limitación del déficit estructural. Esta modificación constitucional luego

ha sido desarrollada por la Ley Orgánica 2/2012, de 27 de abril, de Estabilidad Pre-

supuestaria y Sostenibilidad Financiera, donde se regula el déficit estructural en su

art. 11, la regla del gasto en el art. 12 y el límite de endeudamiento en los arts. 13 y

14. La Exposición de Motivos de la reforma del art. 135 de la Constitución decla-

raba que:

La estabilidad presupuestaria adquiere un valor verdaderamente es-

tructural y condicionante de la capacidad de actuación del Estado,

del mantenimiento y desarrollo del estado Social que proclama el art.

1.1 de la propia Ley Fundamental.

Pero, además, afirmaba que:

2 En el mismo sentido, VILLAR ROJAS: “Crisis económica-financiera; crisis de la Administra-

ción pública”, en VVAA “El Derecho ante la crisis: nuevas reglas de juego”, 2013, pág.75.

Véase también, JORDANO FRAGA: El Derecho Administrativo de la Crisis”, XIX Congreso

Italo Español de Profesores de Derecho Administrativo (Madrid 18, 19 y 20 de octubre de

2012, donde pone de manifiesto que la fuente del Derecho característica de la crisis económica

es el “Decreto-Ley”, entre otras consideraciones, pág. 76.

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

45

La presente reforma del artículo 135 de la Constitución española per-

sigue, por tanto, garantizar el principio de estabilidad presupuestaria,

vinculando a todas las Administraciones públicas en su consecución,

reforzar el compromiso de España con la Unión Europea y, al mismo

tiempo, garantizar la sostenibilidad económica y social de nuestro

país.

En cierto sentido, esta reforma encuentra una cierta cobertura en el propio Tratado

de Funcionamiento de la Unión Europea, sobre todo al referirse al” compromiso con

la Unión Europea”, ya que la Tercera Parte del mismo al ir regulando las “Políticas y

acciones internas de la Unión”, en el Título VIII sobre “Política Económica y mo-

netaria” se incluyen numerosas disposiciones vinculantes que han de respetar los

Estados incluidos en la zona euro, así, el art. 136 se dice que las autoridades euro-

peas pueden imponer a los Estados miembros tanto la coordinación y supervisión de

su disciplina presupuestaria, como orientaciones de política económica.

La consecuencia, quizás, más clara de la reforma del art. 135 de la Constitución y de

la Ley Orgánica 2/2012, de 27 de abril, de Estabilidad Presupuestaria y Sostenibili-

dad Financiera, sobre el fundamento de la cláusula “bases y coordinación de la pla-

nificación general de la economía” (ex art. 148. 1. 13ª CE), sea que el Estado Central

(y por ello, la Administración General del Estado) ha asumido una función directiva

y de tutela dentro de la descentralización en que España está constituida. Así, pueden

comprobarse las facultades que ejerce con toda claridad en nuestros días: “establece

límites de gasto”, “autoriza las operaciones de endeudamiento”, “aprueba planes

económico-financieros”, “aprueba planes de reequilibrio presupuestario o de ajuste

de las distintas Administraciones públicas, y, por ello, los efectos sobre la actividad

y organización de las mismas.

Baste traer aquí el supuesto de los Reales Decretos-Ley 4/2012 y 7/2012 sobre el

mecanismo de financiación para el pago a proveedores de las entidades locales, con

la creación del “Fondo para la Financiación de los Pagos a proveedores” (como

entidad de derecho público) y del Real Decreto-Ley 21/2012 sobre medidas de liqui-

dez de las Administraciones públicas, ideado para financiar a las CCAA con pro-

blemas de liquidez, con la creación del “Fondo de Liquidez Autonómico” (sin per-

sonalidad jurídica), que se cierran con el Real Decreto-Ley 17/2014, de 26 de

diciembre, de medidas de sostenibilidad financiera de las comunidades autónomas y

entidades locales y otras de carácter económico, que remodela los Fondos de Finan-

ciación diferenciados para CCAA y Entidades Locales (ya sin personalidad jurídica

ambos) que impone la obtención de recursos a la elaboración y aprobación por el

Ministerio de Hacienda y Administraciones Públicas de los correspondientes planes

de ajuste con los contenidos establecidos en este Real Decreto Ley de 2014. Aquí los

mecanismos de control y tutela financiera a favor de la Administración General del

SANTIAGO ROSADO PACHECO 46

Estado claramente limitan la autonomía y la capacidad de gestión de las Administra-

ciones territoriales.

4. El art. 135 de la Constitución y su incidencia en el Régimen Local

El ejemplo más caracterizado de esta orientación lo constituye La Ley 27/2013, de

27 de diciembre, de racionalización y sostenibilidad de la Administración Local.

Esta norma efectúa una profunda revisión del conjunto de disposiciones relativas al

estatuto jurídico de la Administración local, con varios objetivos básicos:

a) aclarar las competencias municipales para evitar duplicidades con las competen-

cias de otras Administraciones de forma que se haga efectivo el principio «una Ad-

ministración una competencia»; b) racionalizar la estructura organizativa de la

Administración local de acuerdo con los principios de eficiencia, estabilidad y soste-

nibilidad financiera; c) garantizar un control financiero y presupuestario más rigu-

roso y d) favorecer la iniciativa económica privada evitando intervenciones admi-

nistrativas desproporcionadas.

1. Para aclarar las competencias locales y avanzar en el principio «una Administra-

ción una competencia», se trata de evitar los problemas de solapamientos competen-

ciales entre Administraciones hasta ahora existentes, se trata de definir con precisión

las competencias que deben ser desarrolladas por la Administración local, diferen-

ciándolas de las competencias estatales y autonómicas. En este sentido se deben

señalar las siguientes líneas:

a) se enumera un listado de materias en que los municipios han de ejercer, en todo

caso, competencias propias, estableciéndose una reserva formal de ley para su de-

terminación, así como una serie de garantías para su concreción y ejercicio:

1. Las Entidades Locales no deben volver a asumir competencias que no les

atribuye la ley y para las que no cuenten con la financiación adecuada. Por

tanto, solo podrán ejercer competencias distintas de las propias o de las

atribuidas por delegación cuando no se ponga en riesgo la sostenibilidad fi-

nanciera del conjunto de la Hacienda municipal, y no se incurra en un su-

puesto de ejecución simultánea del mismo servicio público con otra Admi-

nistración Pública.

2. De igual modo, la estabilidad presupuestaria vincula de una forma directa la

celebración de convenios entre administraciones y la eliminación de dupli-

cidades administrativas.

3. Por otra parte, la delegación de competencias estatales o autonómicas en los

Municipios debe ir acompañada de la correspondiente dotación presupues-

taria, su duración no será inferior a los 5 años y la Administración que de-

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

47

lega se reservará los mecanismos de control precisos para asegurar la ade-

cuada prestación del servicio delegado.3

b) Se refuerza el papel de las Diputaciones Provinciales, Cabildos, Consejos insula-

res o entidades equivalentes.

Esto se lleva a cabo mediante la coordinación por las Diputaciones de determinados

servicios mínimos en los municipios con población inferior a 20.000 habitantes o la

atribución a éstas de nuevas funciones como la prestación de servicios de recauda-

ción tributaria, administración electrónica o contratación centralizada en los munici-

pios con población inferior a 20.000 habitantes, su participación activa en la elabo-

ración y seguimiento en los planes económico-financieros o las labores de

coordinación y supervisión, en colaboración con las Comunidades Autónomas, de

los procesos de fusión de Municipios.

c) Se introducen medidas concretas para fomentar la fusión voluntaria de municipios

de forma que se potencie a los municipios que se fusionan ya que contribuyen a

racionalizar sus estructuras y superar la atomización del mapa municipal. Entre ellas

se deben destacar:

1. el incremento de su financiación,

2. la preferencia en la asignación de planes de cooperación local o de subven-

ciones,

3. la dispensa en la prestación de nuevos servicios obligatorios como conse-

cuencia del aumento poblacional.

4. Además, si se acordara entre los municipios fusionados alguno de ellos

podría funcionar como forma de organización desconcentrada, lo que per-

mitiría conservar la identidad territorial y denominación de los municipios

fusionados aunque pierdan su personalidad jurídica.

5. los municipios fusionados percibirán un aumento de la financiación en la

medida en que los municipios de menor población recibirán menos finan-

ciación.

d) Se incluye una revisión del conjunto de las entidades instrumentales que confor-

man el sector público local, una racionalización de sus órganos de gobierno y una

ordenación responsable de las retribuciones del personal al servicio de las Corpora-

3 Debe verse en relación con esta nueva regulación de competencias VELASCO CABALLERO,

F.: “El nuevo régimen local general y su aplicación diferenciada en la distintas Comunidades

Autónomas”, Revista Catalana de dret públic, nº 48 (2014), pp. 1-23. También VVAA: “La

Planta del Gobierno Local” en Actas del VIII Congreso de la Asociación Española de Profeso-

res de Derecho Administrativo, Alicante 2013.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 48

ciones locales, cualquiera que sea la naturaleza jurídica de su relación con la Admi-

nistración.

Debe destacarse que:

1. Se trata de impedir la participación o constitución de entidades instrumenta-

les por las Entidades Locales cuando estén sujetas a un plan económico-fi-

nanciero o a un plan de ajuste. En cuanto a las existentes que se encuentren

en situación deficitaria se les exige su saneamiento, y, si éste no se produce,

se deberá proceder a su disolución.

2. Se prohíbe, en todo caso, la creación de entidades instrumentales de se-

gundo nivel, es decir unidades controladas por otras, que, a su vez, lo estén

por las Entidades Locales. Esta prohibición, motivada por razones de efi-

ciencia y de racionalidad económica, obliga a la disolución de aquellas que

ya existan a la entrada en vigor de la presente norma en el plazo previsto.

2. Medidas dirigidas a la racionalización organizativa e integración coordinada de

servicios que, junto a las ya previstas en el artículo 21 de la Ley Orgánica de 2/2012,

de 27 de abril, deberán incluirse en los planes económico-financieros de las Entida-

des Locales.

Se establece la obligación de determinar el coste efectivo de los servicios que pre-

stan las Entidades Locales, de acuerdo con criterios comunes, y se dispone su remi-

sión al Ministerio de Hacienda y Administraciones Públicas para su publicación.

3. Para lograr un control económico-presupuestario más riguroso, se refuerza el

papel de la función interventora en las Entidades Locales.

A partir de ahora el Gobierno fijará las normas sobre los procedimientos de control,

metodología de aplicación, criterios de actuación, así como derechos y deberes en el

desarrollo de las funciones públicas necesarias en todas las Corporaciones locales.

Con ello, se viene a cubrir un vacío legal y se hace posible la aplicación generalizada

de técnicas, como la auditoría en sus diversas vertientes, a las Entidades Locales en

términos homogéneos a los desarrollados en otros ámbitos del sector público. Para

ello, se contará con la participación de la Intervención General de la Administración

del Estado.

Asimismo, con el objeto de reforzar su independencia con respecto a las Entidades

Locales en las que prestan sus servicios los funcionarios con habilitación de carácter

nacional, corresponde al Estado su selección, formación y habilitación así como la

potestad sancionadora en los casos de las infracciones más graves.

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

49

Se aclara y deslinda el diferente ámbito de actuación que es consustancial a unas y

otras funciones. Así, mientras que las propias del régimen de intervención y fiscali-

zación quedan sujetas a parámetros de control y fiscalización interna de la gestión

económico-financiera y presupuestaria, las correspondientes a la actuación del cargo

electo quedan basadas necesariamente en aspectos de oportunidad o conveniencia.

3. Finalmente, para favorecer la iniciativa económica privada, evitando inter-

venciones administrativas desproporcionadas, se limita el uso de auto-

rizaciones administrativas para iniciar una actividad económica a casos en

los que su necesidad y proporcionalidad queden claramente justificadas.

Asimismo, se suprimen monopolios municipales que venían heredados del

pasado y que recaen sobre sectores económicos pujantes en la actualidad.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 50

5. Crisis económica y regulación de sectores: el sector financiero4

A pesar de que como viene siendo habitual se centra la recuperación económica,

frente a la crisis, en favorecer “la competencia y la eficiencia de los mercados”,

como expresamente declaró el artículo 3.1 de la Ley de Economía Sostenible, nos

encontramos con una regulación económica que en ciertos supuestos irrumpe con

técnicas muy caracterizadas de Derecho público. Esto sucede de manera paradigmá-

tica con el sector financiero.

Desde la entrada en vigor de la Ley 9/2012, de 14 de noviembre, de reestructuración

y resolución de entidades de crédito y creación del FROB (consecuencia del Real

Decreto-Ley 24/2012, de 31 de agosto), se han sucedido un serie de hitos jurídicos,5

4 El FROB es una entidad de Derecho público con personalidad jurídica propia y plena capacidad

pública y privada para el desarrollo de sus fines que tiene por objeto gestionar los procesos de

resolución de las entidades en su fase ejecutiva.

El régimen jurídico bajo el que el FROB desarrolla su actividad es el contenido en la Ley

11/2015, de 18 de junio de 2015, de recuperación y resolución de entidades de crédito y empre-

sas de servicios de inversión.

El FROB está sometido al ordenamiento jurídico privado, salvo que actúe en el ejercicio de las

potestades administrativas conferidas por la citada Ley, el Derecho de la Unión Europea u otras

normas con rango de ley.

Las medidas de resolución de entidades que adopte el FROB se comunicarán, en su caso, a la

Comisión Europea o a la Comisión Nacional de los Mercados y la Competencia, a efectos de lo

establecido en la normativa en materia de ayudas de Estado y defensa de la competencia.

El FROB no está sometido a:

-las previsiones contenidas en la Ley 6/1997, de 14 de abril, de Organización y Funcionamiento

de la Administración General del Estado en el ejercicio de sus funciones como autoridad de re-

solución, siéndole de aplicación en lo demás lo dispuesto en su disposición adicional décima.

-las disposiciones de la Ley 33/2003, de 3 de noviembre, del Patrimonio de las Administracio-

nes Públicas, en el ejercicio de sus funciones de resolución. En todo caso, el FROB no estará

sometido a las previsiones contenidas en su Título VII, referido al patrimonio empresarial de la

Administración General del Estado.

No formarán parte del Patrimonio de las Administraciones Públicas las participaciones, accio-

nes, títulos y demás instrumentos que el FROB pudiera adquirir en el ejercicio de sus facultades

de resolución.

A efectos de su régimen presupuestario, el FROB aplicará en lo no previsto en la citada Ley

11/2015, lo dispuesto en los artículos 64 a 68 de la Ley 47/2003, de 26 de noviembre, General

Presupuestaria.

No obstante lo anterior, el FROB no estará sujeto a las normas generales que regulan las nor-

mas generales que regulan el régimen económico-financiero, contable y de control de los orga-

nismos públicos dependientes o vinculados a la Administración General del Estado, salvo por

lo que respecta a la fiscalización externa del Tribunal de Cuentas y al sometimiento del régimen

interno de su gestión en el ámbito económico-financiero al control financiero permanente de la

Intervención General de la Administración del Estado.

A efectos fiscales, el FROB tendrá el mismo tratamiento que el Fondo de Garantía de Depósi-

tos de Entidades de Crédito. 5 Significativamente, La Directiva 2014/59/UE del Parlamento Europeo y del Consejo de 15 de

mayo, por la que se establece un marco para la reestructuración y la resolución de entidades de

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

51

entre los que se encuentra el propio debate doctrinal sobre si es necesaria “más re-

gulación” o “menos regulación”,6 que han desembocado en la publicación de la Ley

11/2015, de 18 de junio, de recuperación y resolución de entidades de crédito y em-

presas de servicios de inversión, conteniendo una importante regulación del sector,

con medidas y métodos muy caracterizados en el Derecho público.

La propia Exposición de Motivos de la Ley, con fundamento en la complejidad del

sistema financiero, recurre constantemente a expresiones que ponen de manifiesto la

irrupción del Derecho público en este sector. Declara que se “…exige a los poderes

públicos que cuenten con mecanismos y poderes reforzados para afrontar la poten-

cial situación d dificultad…para evitar todo impacto a los recursos de los contribu-

yentes”; se asegura que “…es necesario incluir en los ordenamientos jurídicos po-

testades específicas que permitan a las autoridades públicas gestionar un proceso,

el de resolución de la entidad, de una manera enérgica y ágil…”; parece que la ley

responde a la idea de “la concreción de esta nueva rama de la regulación finan-

ciera…”, y se establece la necesidad de “…articular un procedimiento especial,

riguroso y flexible, que permita a las autoridades públicas dotarse de poderes ex-

traordinarios en relación con la entidad fallida y sus accionistas y acreedores”; y,

declara, también que: “la resolución de una entidad financiera es un proceso singu-

lar, de carácter administrativo…por razones de interés público y estabilidad finan-

ciera”. En definitiva, la Ley viene a regular “un procedimiento administrativo,

especial y completo”.

Este procedimiento administrativo especial, por razones de interés público y estabi-

lidad financiera, se fundamenta en la distinción entre “la liquidación” y “la resolu-

ción” de una entidad financiera, quedando el primero circunscrito al campo de un

proceso judicial ordinario, es decir, la finalización de actividades de la entidad fi-

nanciera que por su reducido tamaño y complejidad sea susceptible de ser tratada

bajo ese régimen, sin menoscabo del interés público.

También la Ley se articula sobre una separación entre las funciones clásicas de su-

pervisión (asegurar el cumplimiento de la normativa que regula la actividad de las

entidades de crédito y su solvencia) y las funciones de resolución (tras el fracaso de

la regulación y la supervisión tradicionales, el cierre de la entidad financiera se pro-

ducirá con las mínimas distorsiones sobre el conjunto del sistema financiero y sin

impacto en las finanzas públicas). El modelo de la resolución de entidades financie-

crédito y empresas de servicios de inversión, el Reglamento (UE) nº 806/2014 del Parlamento

Europeo y del Consejo, de 15 de julio, constituyendo el Mecanismo Único de Resolución y un

Fondo único de Resolución. 6 Véase por ejemplo en NOGEIRA LÓPEZ: “Crisis económica y cambios estructurales en el

régimen de ejercicio de actividades”, en VVAA: “El Derecho Público de la Crisis Económica”,

Actas del VI Congreso de la Asociación Española de Profesores de Derecho Administrativo”,

Palma 2011, pág.124.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 52

ras que impone la Ley distingue, a la vez entre las funciones de resolución en fase

preventiva que se encomiendan al Banco de España y a la Comisión Nacional del

Mercado de Valores y la Competencia, y se ejercen a través de órganos internos que

funcionen con independencia operativa, y las funciones de resolución en fase ejecu-

tiva, que se otorgan al FROB (aunque queda abierta la revisión de este modelo a las

experiencias actuales y a la experiencia del Mecanismo único de Resolución).

Como dice el preámbulo de la Ley los extraordinarios poderes puestos en manos de

las autoridades públicas constituye:

…un conjunto verdaderamente amplio y contundente de medidas pre-

ventivas tales como los planes de recuperación y resolución, las me-

didas de actuación temprana o el análisis de la resolubilidad, que in-

cluso alcanza la posibilidad de que la autoridad de resolución

imponga a entidades perfectamente solventes la adopción de modifi-

caciones estructurales, organizativas, en su línea de negocio, o de

otro tipo, si fuese necesario para garantizar que en el caso de que la

entidad devenga inviable, su resolución pueda hacerse de manera or-

denada y sin costes para el contribuyente.

Finalmente, y como cuarto principio que sustenta la ley, se afronta la

necesidad de que todo el esquema de resolución de entidades des-

canse de manera creíble en una asunción de costes que no sobrepase

los límites de la propia industria financiera. Es decir, los recursos

públicos y de los ciudadanos no pueden verse afectados durante el

proceso de resolución de una entidad, sino que son los accionistas y

acreedores, o en su caso la industria, quienes deben asumir las pérdi-

das. Para ello es imprescindible definir los recursos que se utilizarán

para financiar los costes de un procedimiento de resolución, que en

ocasiones son enormemente elevados. Esta Ley, en línea con lo esta-

blecido en los países de nuestro entorno, diseña tanto los mecanismos

internos de absorción de pérdidas por los accionistas y acreedores de

la entidad en resolución, como, alternativamente, la constitución de

un fondo de resolución financiado por la propia industria financiera.

Merece una mención especial el instrumento de recapitalización in-

terna, traducción legal del término inglés «bail in», que dibuja el

esquema de absorción de pérdidas por parte de los accionistas y

acreedores de la entidad. Su finalidad última es internalizar el coste

de la resolución en la propia entidad financiera, de modo que, con

la máxima seguridad jurídica, sus acreedores conozcan el impacto

que sobre ellos tendría la inviabilidad de la entidad.

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

53

Esta Ley 11/2015, de resolución de entidades de crédito, como ejemplo de legisla-

ción económica de la crisis, pone sobre el tapete la idea de que nos encontramos

frente a un sistema de “competencia regulada”, y de acuerdo con la inercia de la

intervención pública directa, desde los primeros años de la crisis económico-finan-

ciera, incluso han aparecido opiniones que señalaban una cierta vuelta al “Estado-

Gestor” a costa del “Estado-Regulador y garantizador”,7 todo ello al amparo de los

fallos del propio mercado.

6. Crisis y Eficiencia de la Administración Pública

En plena crisis económica se ha producido un hecho curioso de importante repercu-

sión en el Derecho Administrativo que ha consistido en la transposición al Derecho

español, mediante la Ley “paraguas” 17/2009 y la Ley “ómnibus” 25/20098, de la

denominada Directiva de Servicios (Directiva 2006/123/CE), que habiendo sido

concebida en una época de bonanza, sin embargo, se ha presentado como un instru-

mento decisivo para remontar la crisis económica, así, al menos, lo presentaba la

Ley de Economía Sostenible de 2011, en su Preámbulo, al declarar:

Paralelamente, el Ejecutivo ha elaborado una Estrategia de recupe-

ración de la economía española que descansa en la convicción, re-

afirmada por la propia incidencia de la crisis en nuestro país, de que

es necesario acelerar la renovación del modelo productivo que se pu-

so en marcha en 2004…La Estrategia para una Economía Sostenible,

aprobada por el Consejo de Ministros en noviembre de 2009, articula,

así, un ambicioso y exigente programa de reformas, que profundiza en

la dirección de algunas de las opciones estratégicas adoptadas desde

la anterior Legislatura, como la prioridad otorgada al incremento en

la inversión en investigación, desarrollo e innovación, o al fomento de

las actividades relacionadas con las energías limpias y el ahorro

7 Puede verse en MUÑOZ MACHADO: “Fundamentos e instrumentos jurídicos de la regulación

económica”, en VVAA: Derecho de la regulación Económica (I. Fundamentos e Instituciones

de la Regulación), Madrid 2009, págs. 62 y ss. 8 Ya el Preámbulo de esta ley declaraba que: “En este contexto, el objetivo de la presente Ley es

doble. En primer lugar, adapta la normativa estatal de rango legal a lo dispuesto en la Ley

17/2009, de 23 de noviembre, sobre el libre acceso a las actividades de servicios y su ejercicio,

en virtud del mandato contenido en su Disposición final quinta. En segundo lugar, con objeto

de dinamizar en mayor medida el sector servicios y de alcanzar ganancias de competitividad

en relación con nuestros socios europeos, extiende los principios de buena regulación a secto-

res no afectados por la Directiva, siguiendo un enfoque ambicioso que permitirá contribuir de

manera notable a la mejora del entorno regulatorio del sector servicios y a la supresión efec-

tiva de requisitos o trabas no justificados o desproporcionados. El entorno regulatorio resul-

tante de la misma, más eficiente, transparente, simplificado y predecible para los agentes

económicos, supondrá un significativo impulso a la actividad económica”.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 54

energético; o ya en esta Legislatura, dentro del propio Plan E, a la

trasposición rigurosa de la Directiva de Servicios…de este modo, la

Ley de Economía sostenible viene a continuar el esfuerzo de remoción

de obstáculos administrativos iniciado con las normas de transposi-

ción de la Directiva de Servicios, pero, además, asume la necesidad

de incidir en otros aspectos que resultan en la actualidad negativos

para la situación de nuestra economía o que son susceptibles de sim-

plificación y agilización.

La Ley ómnibus 25/2009, de 22 de diciembre, de modificación de diversas leyes

para su adaptación a la Ley sobre el libre acceso a las actividades de servicios y su

ejercicio, modificó el artículo 84 de la Ley 7/1985, de 2 de abril, Reguladora de las

Bases del Régimen Local, al objeto de someter los actos de control preventivo de

ámbito municipal a sus principios cuando se trate del acceso y ejercicio de activida-

des de servicios. Posteriormente, la Ley 2/2011, de 4 de marzo, de Economía Soste-

nible, incorporó a la citada Ley 7/1985, de 2 de abril, los artículos 84 bis y 84 ter,

estableciendo con carácter general la inexigibilidad de licencia u otros medios de

control preventivos para el ejercicio de actividades, salvo que resultase necesario

para la protección de la salud o seguridad públicas, el medioambiente o el patrimo-

nio histórico-artístico, o cuando requiriesen de un uso privativo y ocupación del

dominio público pero, en todo caso, condicionando su exigibilidad a un juicio de

necesidad y proporcionalidad.

Además, la Ley 12/2012, de 26 de diciembre, de medidas urgentes de liberalización

del comercio y de determinados servicios, avanza un paso más eliminando todos los

supuestos de autorización o licencia municipal previa, motivados en la protección

del medio ambiente, de la seguridad o de la salud públicas, ligados a establecimien-

tos comerciales con una superficie de hasta 300 metros cuadrados. Se considera, tras

realizar el juicio de necesidad y proporcionalidad, que no son necesarios controles

previos por tratarse de actividades que, por su naturaleza, por las instalaciones que

requieren y por la dimensión del establecimiento, no tienen un impacto susceptible

de control a través de la técnica autorizatoria, la cual se sustituye por un régimen de

control “ex post” basado en una declaración responsable. La flexibilización se ex-

tiende también más allá del ámbito de aplicación de la reforma de la Ley 2/2011, de

4 de marzo, y afecta también a todas las obras ligadas al acondicionamiento de estos

locales que no requieran de la redacción de un proyecto de obra de conformidad con

la Ley 38/1999, de 5 de noviembre, de Ordenación de la Edificación. De esta ma-

nera, se podrá iniciar la ejecución de obras e instalaciones y el ejercicio de la activi-

dad comercial y de servicios con la presentación de una declaración responsable o

comunicación previa, según el caso, en la que el empresario declara cumplir los

requisitos exigidos por la normativa vigente y disponer de los documentos que se

exijan, además de estar en posesión del justificante del pago del tributo correspon-

diente cuando sea preceptivo.

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

55

A partir de estas regulaciones, la idea de “simplificación de los procedimientos ad-

ministrativos” y de “reducción de cargas administrativas a los ciudadanos y empre-

sas” se ha convertido en un auténtico vector que amplia y desborda el propio ámbito

de la Directiva de Servicios, y se ha intentado constituir en uno de los instrumentos

claves de la recuperación económica. La idea es que los ahora denominados títulos

habilitantes, desde la óptica de la libertad de establecimiento, se constituyan en torno

a la “comunicación previa” y a la “declaración responsable”, dejando en un segundo

lugar la técnica de la “autorización administrativa” que se liga a razones de interés

general o medioambiental; pero, también, se aplica a los “servicios de interés

económico general” e incluso a la industria, afectando tanto a la Administración

General del Estado como a la de las CCAA y Administración Local.9 Ante el cues-

tionamiento de si nuestras Administraciones públicas tienen la estructura adecuada

para realizar con eficacia los controles “ex post” de esos títulos habilitantes (distintos

a la autorización), esta Ley, en su artículo 20, pretende darle respuesta, abriendo tal

función de forma generalizada a las “entidades colaboradoras con la Administración

pública”,10

lo que constituye un buen supuesto para poder fundamentar un concepto

funcionalista del Derecho administrativo y de la Administración pública.

Todavía la Ley 20/2013, de 9 de diciembre, de garantía de la unidad de mercado,

viene a establecer el marco de estos títulos habilitantes en su capítulo IV “garantías

al libre establecimiento y circulación”, regulando la instrumentación del principio de

necesidad (necesidad de motivar en la salvaguarda de alguna razón imperiosa de

interés general11

) y proporcionalidad de las autoridades competentes (cualquier lími-

te o requisito deberá ser proporcionado a la razón imperiosa de interés general invo-

cada, y habrá de ser tal que no exista otro medio menos restrictivo o distorsionador

para la actividad económica). La propia Ley 20/2013, respetando el principio de

elección de las autoridades administrativas entre autorización, comunicación previa

y declaración responsable, califica la autorización como el medio de intervención

que más limita el acceso a una actividad económica y su ejercicio, y por ello anuda a

esa opción la consideración de los motivos que la pueden justificar:

9 Véase sobre el efecto expansivo de la transposición de la directiva de servicios y la regulación

mimética en el plano autonómico, NOGUEIRA LÓPEZ: ob. cit. págs.128 y ss. 10

Vid. CANALS AMETLLER: “El ejercicio por particulares de funciones de autoridad: control,

inspección y certificación”, Granada 2003. 11

Art. 3. 11 de la Ley paraguas 17/2009: Razón imperiosa de interés general: razón definida e

interpretada por la jurisprudencia del Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas, limi-

tadas a las siguientes: el orden público, la seguridad pública, la protección civil, la salud públi-

ca, la preservación del equilibrio financiero del régimen de seguridad social, la protección de

los derechos, la seguridad y la salud de los consumidores, de los destinatarios de servicios y de

los trabajadores, las exigencias de la buena fe en las transacciones comerciales, la lucha contra

el fraude, la protección del medio ambiente y del entorno urbano, la sanidad animal, la propie-

dad intelectual e industrial, la conservación del patrimonio histórico y artístico nacional y los

objetivos de la política social y cultural.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 56

la existencia de razones de seguridad pública, salud pública, protec-

ción del medio ambiente en el lugar concreto donde se realiza la acti-

vidad y el orden público, dentro del cual se incluyen, entre otras, la

prudencia y la garantía de la estabilidad financieras. Pero aunque

exista alguno de esos motivos, siempre deberá valorarse que la exi-

gencia de, o bien una declaración responsable o bien una comunica-

ción, no sea suficiente para garantizar el objetivo perseguido, de

acuerdo con el principio de proporcionalidad (Preámbulo de la Ley).

Por otro lado, la Ley 20/2013, también, establece el criterio, en relación con la nece-

sidad de autorización, para los supuestos en que ha de garantizarse “la concurrencia

competitiva” en los casos donde existe una limitación del número de operadores en

el mercado por la escasez de recursos naturales, el uso del dominio público, las limi-

taciones técnicas de esa actividad o por la prestación de servicios públicos sometidos

a tarifas reguladas.

La Ley 20/2013 anuda a todos estos títulos habilitantes la “eficacia (jurídica) en todo

el territorio nacional, como dice su Exposición de Motivos” para evitar o minimizar

“…las distorsiones que puedan derivarse de nuestra organización administrativa

territorial”, aunque lo exceptúa para determinadas actuaciones relacionadas con las

instalaciones o infraestructuras físicas, con la ocupación del dominio público o con

la prestación de servicios públicos sometidos a tarifas reguladas que, por su propia

naturaleza, resultan vinculados con un ámbito territorial determinado. Este principio

de eficacia recibe, por parte de la Ley un refuerzo desde las técnicas del Derecho de

Organización, en concreto, de los sistemas de cooperación entre el estado, las CCAA

y las Entidades Locales, y además se regula un “Consejo para la Unidad de Mer-

cado” para el seguimiento de aplicación de la Ley. Por lo demás, la Ley establece un

innovador mecanismo de reclamación, paralelo al sistema de recursos administrati-

vos, ante la Secretaría del Consejo que cubre cualquier actuación administrativa, con

un procedimiento administrativo novedoso de actuación y cooperación que se sus-

tancia a través de la “red de puntos de contacto” para la unidad de mercado y solu-

ción de diferencias, además, se establece la legitimación de la Comisión Nacional de

los Mercados y la Competencia para la interposición del recurso contencioso admi-

nistrativo para cualquier actuación jurídica o de hecho que se considere contraria a la

libertad de establecimiento o de circulación procedente de cualquier autoridad com-

petente.

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

57

7. Otras regulaciones de importante interés

A) La Ley 39/2015

Como consecuencia del Informe de junio de 2013 de la Comisión de Reforma de las

Administraciones Públicas (CORA) y del Programa nacional de reformas de España

para 2014, se dicta la Ley 39/2015, de 1 de octubre, del Procedimiento Administra-

tivo Común de las Administraciones públicas, con un horizonte de entrada en vigor

de un año.

Esta Ley tiene la consideración de ley básica conforme a lo dispuesto por los artícu-

los 149, 1ª, 18ª y 149, 1ª, 13ª y 14ª, y pretende establecer la regulación completa y

sistemática, en expresión de la Exposición de Motivos, de “las relaciones ad extra

entre las Administraciones y los administrados, tanto en lo referente al ejercicio de

la potestad de autotutela y en cuya virtud se dictan actos administrativos que inci-

den directamente en la esfera jurídica de los interesados, como en lo relativo al

ejercicio de la potestad reglamentaria y la iniciativa legislativa”, por oposición al

régimen jurídico o relaciones “ad intra” de las Administraciones públicas, objeto de

la Ley 40/2015, de 1 de octubre, de Régimen Jurídico del Sector Público.

Además, la ley reconoce expresamente que pretende poner cierto orden en la disper-

sión normativa y superposición de regímenes jurídicos (no siempre coherentes entre

sí) que han supuesto la entrada en vigor de la Ley paraguas 17/2009, de la Ley

2/2011, de Economía Sostenible, de la Ley 19/2013 de transparencia, acceso a la

información pública y buen gobierno, y la Ley 20/2013, de garantía de la unidad de

mercado.

Desde el punto de vista de lo que la ley denomina “autotuela”, es decir, procedi-

miento administrativo y resolución o acto administrativo pueden destacarse algunas

novedades:

-el establecimiento de una reserva legal impropia consistente en que sólo me-

diante ley puedan establecerse trámites adicionales o distintos a los regulados en la

propia Ley 39/2015, además de reducir el ámbito de desarrollo reglamentario a de-

terminados aspectos (identificación de los órganos competentes, plazos, formas de

iniciación y terminación, publicación e informes a recabar), eso sí, dejando a salvo

los trámites especiales ya regulados en otras leyes sectoriales;

-Se amplía la capacidad de obrar en el ámbito del Derecho Administrativo a los

grupos de afectados, las uniones y entidades sin personalidad jurídica y los patrimo-

nios independientes o autónomos cuando la Ley así lo declare expresamente,

-Se introducen nuevos sistemas para acreditar la representación ante las Admi-

nistraciones, destacando el apoderamiento “apud acta” presencial o electrónica, y la

acreditación de su inscripción en el registro electrónico de apoderamientos;

SANTIAGO ROSADO PACHECO 58

-Se establece la separación entre la identificación del interesado y la firma

electrónica del mismo, de manera que, con carácter general, sólo será necesaria la

primera, y se exigirá la segunda cuando deba acreditarse la voluntad y el consenti-

miento del interesado. Además, bajo la idea de que la tramitación electrónica, debe

constituir la actuación habitual de las Administraciones (con el precedente de la Ley

11/2007, de 22 de junio, de acceso electrónico), se introducen un conjunto mínimo

de de categorías de medios de identificación y firma a utilizar por todas las Admi-

nistraciones, dándose así respuesta a lo dispuesto por el Reglamento UE 910/2014,

del Parlamento Europeo y del Consejo, de 23 de julio;

-Se establece la obligación de todas las Administraciones públicas de contar

con un registro electrónico general o, en su caso, adherirse al de la Administración

General del Estado, y, además, de contar con un archivo electrónico único con los

documentos de los procedimientos finalizados;

-Se aclara el régimen de las copias de los documentos, estableciendo su validez

y eficacia (con definición de la digitalización de documentos y la inclusión de meta-

datos);

-Se introduce el cómputo de plazos por horas y la declaración de los sábados

como días inhábiles, quedando unificado así el régimen en el ámbito judicial y ad-

ministrativo;

-Se introduce un concepto jurídico de “Expediente Administrativo” (que sí

existía en el ámbito local ROFRJEELL) entendido como “el conjunto ordenado de

documentos y actuaciones que sirven de antecedente y fundamento a la resolución

administrativa, así como las diligencias encaminadas a ejecutarla;

-Se generaliza la utilización, en el procedimiento administrativo común, de los

medios electrónicos en todas las fases;

-Se regula la tramitación simplificada del procedimiento administrativo común,

donde se establece su ámbito objetivo de aplicación, el plazo máximo de resolución

que será de treinta días y los trámites de que constará;

-Se incorpora la posibilidad de que cuando una Administración deba resolver

una pluralidad de recursos administrativos que traigan causa de un mismo acto

administrativo y se hubiera interpuesto un recurso judicial contra una resolución

administrativa o contra el correspondiente acto presunto desestimatorio, el órgano

administrativo podrá acordar la suspensión del plazo para resolver hasta que re-

caiga la resolución judicial. Además, la Ley suprime las reclamaciones previas en

vía civil y laboral;

-Novedad muy destacable que incorpora la Ley es la regulación del procedi-

miento sobre iniciativa legislativa y potestad normativa de las Administraciones

públicas que se someten a los principios de necesidad, eficacia, proporcionalidad,

seguridad jurídica, transparencia y eficiencia. De la regulación contenida en el art.

128 (potestad reglamentaria) con una referencia explícita a la aportación jurispru-

dencial del Tribunal Constitucional de “sin perjuicio de su función de desarrollo o

colaboración con respecto a la ley…” y del art. 129. 4 (Principios de buena regula-

ción) dentro del principio de seguridad jurídica, donde se hace referencia explícita a

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

59

que “Las habilitaciones para el desarrollo reglamentario de una ley serán conferi-

das, con carácter general, al Gobierno o Consejo de Gobierno respectivo. La atri-

bución directa a los titulares de los departamentos ministeriales o de las consejerías

del Gobierno, o a otros órganos dependientes o subordinados a ellos, tendrá carác-

ter excepcional y deberá justificarse en la ley habilitante”, solo podrá entenderse en

relación con los “Reglamentos ejecutivos”, pero, por lógica jurídica, nunca en rela-

ción con los independientes. Por cierto que la propia Ley 39/2015, ha olvidado justi-

ficar la “habilitación” contenida en la Disposición Final Sexta a favor del Ministro

de Hacienda y Administraciones Públicas”.12

B) La Ley 40/2015

Con los mismos fundamentos de la Ley anterior, es decir, el informe CORA de junio

de 2014 y el Programa de Reformas, se dicta la Ley 40/2015, de 1 de octubre, de

Régimen Jurídico del Sector Público, con el objeto de regular “ad intra” el funcio-

namiento interno de cada Administración y de las relaciones entre ellas.

Este hecho permite, en primer lugar, calificar la ley como el centro estructural del

Derecho positivo para construir el Derecho General de Organización, aunque como

veremos, la Ley ha ido más allá, incorporando modificaciones a otras regulaciones,

como la Ley 50/1997, del Gobierno y de forma destacada la “Contratación del Sec-

tor Público”.

Entre los principios generales, que deberán respetar todas las Administraciones

Públicas en su actuación y en sus relaciones recíprocas, además de encontrarse los

ya tradicionales, mencionados en la Constitución Española, de eficacia, jerarquía,

descentralización, desconcentración, coordinación, y sometimiento pleno a la Ley y

al Derecho, destaca la incorporación de los principios de trasparencia y de planifi-

cación y dirección por objetivos, como exponentes de los nuevos criterios que han

de guiar la actuación de todas las unidades administrativas. Se recogen así, con las

necesarias adaptaciones, las normas de la Ley 11/2007 sobre funcionamiento

electrónico de la Administración, añadiéndose un nuevo principio de actuación, la

interoperabilidad de los medios electrónicos y sistemas y la prestación conjunta de

servicios a los ciudadanos.

La enumeración de los principios de funcionamiento y actuación de las Administra-

ciones Públicas se completa con los ya contemplados en la normativa vigente de

responsabilidad, calidad, seguridad, accesibilidad, proporcionalidad, neutralidad y

servicio a los ciudadanos.

12

Sobre el tema debe verse GALLEGO ANABITARTE: “Potestad Reglamentaria Constitucional

y Legal” en ROSADO PACHECO (Coord.): “Derecho Europeo Comparado sobre Ley y Re-

glamento”, Madrid 2003, pág. 11 y ss.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 60

El Título Preliminar regula pormenorizadamente el régimen de los órganos adminis-

trativos, imponiendo como novedad que la creación de órganos solo podrá hacerse

previa comprobación de que no exista ninguna duplicidad con los existentes.

Debemos destacar la generalización del uso de medios electrónicos para que los

órganos colegiados puedan constituirse, celebrar sus sesiones, adoptar acuerdos,

elaborar y remitir las actas de sus reuniones.

También se incorporan en este Título los principios relativos al ejercicio de la po-

testad sancionadora y los que rigen la responsabilidad patrimonial de las Adminis-

traciones Públicas. Entre las novedades más destacables en este ámbito, merecen

especial mención los cambios introducidos en la regulación de la denominada «res-

ponsabilidad patrimonial del Estado Legislador» por las lesiones que sufran los

particulares en sus bienes y derechos derivadas de leyes declaradas inconstituciona-

les o contrarias al Derecho de la Unión Europea, concretándose las condiciones que

deben darse para que se pueda proceder, en su caso, a la indemnización que corres-

ponda.

Por último, se regulan en el Título Preliminar los convenios administrativos, en la

línea prevista en el Dictamen 878 del Tribunal de Cuentas, de 30 de noviembre, de

2010, que recomendaba sistematizar su marco legal y tipología, establecer los requi-

sitos para su validez, e imponer la obligación de remitirlos al propio Tribunal.

La Ley establece dos normas básicas para todas las Administraciones Públicas:

– Por un lado, la obligatoriedad de inscribir la creación, transformación o extinción

de cualquier entidad integrante del sector público institucional en el nuevo Inventa-

rio de Entidades del Sector Público Estatal, Autonómico y Local. Esta inscripción

será requisito necesario para obtener el número de identificación fiscal definitivo de

la Agencia Estatal de Administración Tributaria. Este Registro permitirá contar con

información completa, fiable y pública del número y los tipos de organismos públi-

cos y entidades existentes en cada momento.

– Y por otro lado, se obliga a todas las Administraciones a disponer de un sistema

de supervisión continua de sus entidades dependientes, que conlleve la formulación

periódica de propuestas de transformación, mantenimiento o extinción.

Ya en el ámbito de la Administración General del Estado, se establece una nueva

clasificación del sector público estatal para los organismos y entidades que se creen

a partir de la entrada en vigor de la Ley.

Se mantiene el concepto de sociedades mercantiles estatales actualmente vigente en

la Ley 33/2003, de 3 de noviembre, respecto de las cuales se incluye como novedad

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

61

que la responsabilidad aplicable a los miembros de sus consejos de administración

designados por la Administración General del Estado será asumida directamente

por la Administración designante. Todo ello, sin perjuicio de que pueda exigirse de

oficio la responsabilidad del administrador por los daños y perjuicios causados

cuando hubiera concurrido dolo, o culpa o negligencia graves.

La Ley establece con carácter básico el régimen jurídico de los consorcios, al tra-

tarse de un régimen que, por definición, afectará a todas las Administraciones Públi-

cas, siguiendo la línea de las modificaciones efectuadas por la Ley 15/2014, de 16 de

septiembre, de racionalización del Sector Público y otras medidas de reforma admi-

nistrativa. La creación de un consorcio en el que participe la Administración General

del Estado ha de estar prevista en una ley e ir precedida de la autorización del Con-

sejo de Ministros. El consorcio se constituye mediante el correspondiente convenio,

al que habrán de acompañarse los estatutos, un plan de actuación de igual contenido

que el de los organismos públicos y el informe preceptivo favorable del departa-

mento competente en la Hacienda Pública o la intervención general que corresponda.

Las entidades consorciadas podrán acordar, con la mayoría que se establezca en los

estatutos, o a falta de previsión estatutaria, por unanimidad, la cesión global de acti-

vos y pasivos a otra entidad jurídicamente adecuada con la finalidad de mantener la

continuidad de la actividad y alcanzar los objetivos del consorcio que se liquida. Su

disolución es automática mediante acuerdo del máximo órgano de gobierno del

consorcio, que nombrará a un órgano o entidad como liquidador. La responsabilidad

del empleado público que sea nombrado liquidador será asumida por la entidad o la

Administración que lo designó, sin perjuicio de las acciones que esta pueda ejercer

para, en su caso, repetir la responsabilidad que corresponda. Finalmente, cabe desta-

car que se avanza en el rigor presupuestario de los consorcios que estarán sujetos al

régimen de presupuestación, contabilidad y control de la Administración Pública a la

que estén adscritos y por tanto se integrarán o, en su caso, acompañarán a los presu-

puestos de la Administración de adscripción en los términos previstos en su norma-

tiva.

El Título III establece un régimen completo de las relaciones entre las distintas Ad-

ministraciones Públicas, que deberán sujetarse a nuevos principios rectores cuya

última ratio se halla en los artículos 2, 14 y 138 de la Constitución, como la adecua-

ción al sistema de distribución de competencias, la solidaridad interterritorial, la

programación y evaluación de resultados y el respeto a la igualdad de derechos de

todos los ciudadanos.

Siguiendo la jurisprudencia constitucional, se definen y diferencian dos principios

clave de las relaciones entre Administraciones: la cooperación, que es voluntaria y la

coordinación, que es obligatoria. Sobre esta base se regulan los diferentes órganos y

formas de cooperar y coordinar.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 62

Dentro del deber de colaboración se acotan los supuestos en los que la asistencia y

cooperación puede negarse por parte de la Administración requerida, y se concretan

las técnicas de colaboración: la creación y mantenimiento de sistemas integrados de

información; el deber de asistencia y auxilio para atender las solicitudes formuladas

por otras Administraciones para el mejor ejercicio de sus competencias y cualquier

otra prevista en la Ley. No obstante, el deber de colaboración al que están sometidas

las Administraciones Públicas se ejercerá con sometimiento a lo establecido en la

normativa específica aplicable. Se crea un Registro Electrónico estatal de Órganos e

Instrumentos de Cooperación, con efecto constitutivo, de forma que pueda ser de

general conocimiento, de forma fiable, la información relativa a los órganos de co-

operación y coordinación en los que participa la Administración General del Estado

y sus organismos públicos y entidades vinculados o dependientes, y qué convenios

hay en vigor en cada momento.

Es significativo tener en cuenta que esta Ley de Régimen Jurídico del Sector Públi-

co, al igual que la 39/2015, también de 1 de octubre, del Procedimiento Admi-

nistrativo Común de las Administraciones Públicas, entrará en vigor, en la mayor

parte, al año de su publicación, es decir el 2 de octubre de 2016.

La disposición final novena modifica el Real Decreto Legislativo 3/2011, de 14 de

noviembre, por el que se aprueba el Texto Refundido de la Ley de Contratos del

Sector Público. Las modificaciones del TRLCSP se centran en dos ámbitos:

A. Los contratos de concesión de obra pública y de gestión de servicios públi-

cos, de los que se modifica una cuestión concreta del procedimiento de ad-

judicación (artículo 150.2 del TRLCSP), y se introducen reformas impor-

tantes en su régimen económico mediante la modificación de los artículos

254, 256, 271 y 288 del TRLCSP, y la introducción de dos nuevos artículos

(271.bis y 271.ter).

B. La regulación de las prohibiciones de contratar, en relación con las cuales

se modifican los artículos 60 y 61 del TRLCSP, y se añaden el artículo

61.bis y la nueva disposición transitoria décima.

Estas modificaciones entran en vigor a los veinte días de su publicación en el BOE

(esto es, el 22 de octubre de 2015), salvo las previsiones sobre la nueva Oficina

Nacional de Evaluación, que entrarán en vigor el 2 de abril de 2016, y la nueva dis-

posición transitoria décima del TRLCSP, que entrará en vigor el 22 de octubre de

2016.

En cuanto a su aplicación temporal, la disposición transitoria cuarta de la LRJSP

aclara que las modificaciones del TRLCSP solo serán de aplicación a los expedien-

tes de contratación iniciados con posterioridad a su entrada en vigor; es decir, a los

expedientes de contratación iniciados después del 22 de octubre de 2015. Se enten-

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

63

derá que un expediente de contratación ha sido iniciado si se hubiera publicado la

correspondiente convocatoria del procedimiento de adjudicación o, en el caso de

procedimientos negociados, si se hubieran aprobado los pliegos.

8. Modificación del régimen económico del contrato de concesión de obras

públicas y del contrato de gestión de servicio público

A. Modificaciones en el régimen de aportaciones públicas a la construcción y ex-

plotación, y garantías a la financiación:

Tanto las aportaciones públicas como cualquier tipo de garantía, avales y otras me-

didas de apoyo a la financiación del concesionario tienen que estar necesariamente

previstas en los pliegos y su cuantía determinada en el procedimiento de adjudica-

ción. Desaparece la posibilidad de que las aportaciones se realicen al término de la

concesión y de incrementar su cuantía con posterioridad a la adjudicación. No obs-

tante, la nueva redacción del artículo 256 del TRLCSP mantiene a salvo la posibili-

dad de utilizar estas aportaciones públicas como mecanismo de reequilibrio y dis-

pone que estas aportaciones “no podrán incrementarse con posterioridad a la

adjudicación del contrato, sin perjuicio del reequilibrio previsto en el artículo 258”.

Serán los licitadores quienes, dentro de los máximos fijados en los pliegos, determi-

nen el importe exacto de la aportación pública. En esta materia, la disposición final

novena de la LRJSP modifica el artículo 150 del TRLCSP, para prever como criterio

imperativo de adjudicación evaluable automáticamente (tanto para concesiones de

obra pública como para contratos de gestión de servicio público) la rebaja que los

licitadores oferten sobre las aportaciones públicas previstas en el expediente de con-

tratación para la construcción o explotación.

B. Previsión expresa de la pignoración de derechos derivados de la resolución y de

las aportaciones públicas:

Se introduce un nuevo apartado 3 en el artículo 261. Este apartado recoge expresa-

mente la posibilidad de pignorar los derechos derivados de la resolución del contrato

de concesión de obra o de gestión de servicio público, así como los derivados de las

aportaciones y ejecución de garantías públicas. Esta posibilidad está sujeta al cum-

plimiento de dos requisitos: (a) que la pignoración lo sea en garantía de deudas que

guarden relación con la concesión o el contrato; y (b)que exista previa autorización

del órgano de contratación publicada en el BOE o en los diarios oficiales autonómi-

cos o provinciales.

SANTIAGO ROSADO PACHECO 64

C. Modificaciones en los efectos económicos de la resolución:

La principal novedad introducida por la LRJSP se centra en los efectos de la resolu-

ción de ambos contratos (concesión de obra pública y gestión de servicio público).

Las modificaciones se recogen en los artículos 271 y 288, así como en los nuevos

artículos 271.bis y 271.ter:

(1º) Se separa la regulación de los conceptos mínimos indemnizables en todo caso

(valor patrimonial de la inversión, o “responsabilidad patrimonial de la Administra-

ción”), distinguiendo según se trate de una resolución imputable o no a la Adminis-

tración.

En ambos casos se mantiene la indemnización de la expropiación de terrenos, ejecu-

ción de obras de construcción y adquisición de bienes necesarios para la explotación.

Sin embargo, en el caso de que la resolución no sea imputable a la Administración el

importe se determinará por el nuevo procedimiento de licitación previsto en el artí-

culo 271.bis.

En los casos de resolución por causa imputable a la Administración se modifica la

previsión existente sobre el grado de amortización para aclarar que se aplicará un

criterio de amortización lineal.

(2º) Tanto para el contrato de concesión de obra pública como para el de gestión de

servicio público, se añaden los supuestos tasados en los que, en todo caso, se consi-

derará que la resolución no es imputable a la Administración:

Para las concesiones de obra pública, el nuevo artículo 271.1 del TRLCSP

determina que en todo caso se entenderá que la resolución de la concesión

no es imputable a la Administración cuando: (i) obedezca a la extinción de

la concesionaria; (ii) la declaración de concurso o de insolvencia en cual-

quier otro procedimiento; (iii) la ejecución hipotecaria declarada desierta o

la imposibilidad de iniciar el procedimiento de ejecución hipotecaria por

falta de interesados autorizados; (iv) el secuestro de la concesión por un

plazo superior al establecido como máximo sin que el contratista haya ga-

rantizado la asunción completa de sus obligaciones; y (v) el abandono, re-

nuncia unilateral o incumplimiento por el concesionario de sus obligaciones

esenciales.

Para el contrato de gestión de servicio público, el nuevo artículo 288.1 del

TRLCSP dispone como causas de resolución que en todo caso se conside-

rarán no imputables a la Administración: (i) la extinción del contratita; y

(ii) la declaración de concurso o equivalente.

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

65

(3º) Se mantienen los supuestos en los que la Administración ha de dejar plenamente

indemne al concesionario (rescate, supresión o imposibilidad de la explotación de la

obra pública como consecuencia de acuerdos de la Administración), y los conceptos

indemnizables (beneficios futuros y pérdida de valor).

No obstante, se modifica el método de cuantificación de los beneficios futuros que el

concesionario dejará de percibir, que ya no se calculan por referencia a los resulta-

dos de explotación en el último quinquenio, sino como la “media aritmética de los

beneficios antes de impuestos obtenidos durante un período de tiempo equivalente a

los años que restan hasta la terminación de la concesión. En caso de que el tiempo

restante fuese superior al transcurrido, se tomará como referencia este último. La

tasa de descuento aplicable será la que resulte del coste de capital medio ponderado

correspondiente a las últimas cuentas anuales del concesionario”.

(4º) Los nuevos artículos 271.bis y 271.ter establecen el procedimiento para la de-

terminación del valor de la concesión en los casos en que la resolución de la conce-

sión o del contrato de gestión de servicio público no sea imputable a la Administra-

ción. Como se ha expuesto, de acuerdo con la nueva redacción de los artículos 271.1

y 288.1, será ese valor el que será objeto de indemnización en los casos de resolu-

ción no imputable a la Administración.

El valor de la concesión será el que resulte de la nueva adjudicación del contrato

resuelto. La adjudicación se realizará mediante subasta al alza que partirá del tipo de

licitación calculado en los términos del artículo 271.ter, pero que se reducirá a la

mitad en caso de que la primera licitación resulte desierta.

Para el supuesto de que la segunda licitación resulte también desierta, el valor de la

concesión será en todo caso el 50% del tipo de licitación inicial pero con la posibili-

dad de que el concesionario originario o los acreedores titulares al menos de un 5%

del pasivo exigible de la concesionaria presenten un nuevo comprador que abone al

menos el tipo de licitación de la segunda convocatoria, en cuyo caso el valor de la

concesión será el importe abonado por el nuevo comprador.

El legislador no ha previsto un plazo global entre la resolución del contrato y el

abono de la compensación al concesionario. Únicamente se regulan algunos plazos

intermedios como el de tres meses para la apertura de las ofertas desde la resolución

de la concesión, o también tres meses para el pago del valor de la concesión desde

que se realice la adjudicación de la licitación o quede desierta la segunda licitación.

(5º) El nuevo artículo 271.ter fija las reglas de determinación del tipo de licitación

para la subasta que se celebrará en los casos de resolución no imputable a la Admi-

nistración. Resumidamente, esas reglas son:

SANTIAGO ROSADO PACHECO 66

La determinación del tipo se realizará en función de los flujos futuros de ca-

ja que se prevea obtener por la explotación en el período que resta desde la

resolución hasta su reversión, actualizados al tipo de descuento del interés

de las obligaciones del Tesoro a diez años incrementado en 300 puntos

básicos.

El instrumento de deuda que sirve de base al cálculo de la rentabilidad razo-

nable y el diferencial podrán ser modificados por el Gobierno, previo in-

forme de la Oficina Nacional de Evaluación.

Los flujos netos de caja futuros se cuantificarán en la media aritmética de

los flujos de caja obtenidos por la entidad durante un período de tiempo

equivalente a los años que restan hasta la determinación. En caso de que el

tiempo restante fuese superior al transcurrido, se tomará como referencia

esta última.

El valor de los flujos no incluirá los pagos y cobros de intereses, los cobros

de dividendos y los cobros o pagos por impuesto sobre beneficios.

Cuando la resolución se produzca antes de la terminación de la construc-

ción de la infraestructura, el tipo de la licitación será el 70% del importe

equivalente a la inversión ejecutada. Por inversión ejecutada se entenderá el

importe que figure en las últimas cuentas anuales aprobadas incrementadas

en la cantidad de las certificaciones cursadas hasta el momento de la reso-

lución, deduciendo el importe de las subvenciones de capital percibidas por

el beneficiario, cuya finalidad no se haya cumplido.

Por otro lado, el apartado doce de la Disposición final novena de la LRJSP crea la

Oficina Nacional de Evaluación mediante la introducción de una Disposición adi-

cional trigésimo sexta en el TRLCSP. Las previsiones sobre esta Oficina entrarán en

vigor el próximo 2 de abril de 2016 y, en todo caso, será necesario el desarrollo

reglamentario para determinar el alcance de sus funciones.

A. La finalidad de este nuevo órgano es analizar la sostenibilidad financiera de los

contratos de concesiones de obras y contratos de concesión de servicios públi-

cos, para lo que se prevé la evacuación de informe preceptivo no vinculante en

los siguientes casos:

(1º) Con carácter previo a la licitación de los contratos de la Administración

General del Estado y de las Corporaciones Locales:

-En los que se prevea cualquier aportación pública o medida de apoyo

a la financiación del concesionario; o

-En los que la tarifa sea asumida total o parcialmente por el poder ad-

judicador concedente y el importe de las obras o los gastos de primer

establecimiento supere el millón de euros.

(2º) En los casos de reequilibrio de los contratos informados con carácter

previo a la licitación según lo resumido en el apartado (1º), o cuando, como

consecuencia del reequilibrio, se incorporen algunos de esos dos elementos

CRISIS ECONÓMICA Y DERECHO ADMINISTRATIVO ESPAÑOL

67

(aportaciones públicas o medidas de apoyo a la financiación, o tarifa asu-

mida total o parcialmente por el poder adjudicador).

B. En cuanto al fondo, el apartado 4 de la Disposición adicional trigésimo sexta

prevé que los informes evaluarán:

(1º) Si la rentabilidad del proyecto es razonable atendiendo al riesgo de de-

manda que asuma el concesionario, y teniendo en cuenta la mitigación que

las ayudas otorgadas puedan suponer sobre otros riesgos distintos del de

demanda que habitualmente deban ser soportados por los operadores

económicos;

(2º) En los contratos de concesión de obra en los que el abono de la tarifa

concesional se realice por el poder adjudicador, la transferencia del riesgo

de demanda al concesionario; y

(3º) En los casos de reequilibrio, si las compensaciones financieras estable-

cidas mantienen una rentabilidad razonable.

La II República Española:

Cambio de Régimen Político, Función Social de la

Propiedad, Reforma Agraria y Guerra Civil

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ *

Sumário: Introducción; II Las Desamortizaciones del Siglo XIX; III Real

Academia de Ciências Morales y Politicas; IV Primeros Proyetos de Reforma

Agrária; V Las Reformas Agrárias Europeas de la Posguerra 1018-1929; VI

El Mito de la Reforma Agrária; VII La Función Social de la Propriedad; VIII

El Camino hacia da Guerra Civil; IX Conclusiones; X Bibliografia.

Resumen: La Ley de Reforma Agraria se constituyó en la manzana de la dis-

cordia, sus esperanzas y sus temores producen la decantación de la sociedad

española de los años 30 del siglo XX, que se escindió en dos bloques antagó-

nicos. Las dos Españas se encaminan por este motivo territorial y social hacia

su propia destrucción. Los caminos recorridos pueden simplificarse en el ale-

jamiento de la opinión pública de los Gobiernos de la nación y del Congreso

de los Diputados (1931-1939), el intento de golpe de Estado del General San-

jurjo (10 de agosto de 1932), la violencia verbal, escrita, física y armada que

desembocó en la Guerra Civil el 18 de julio de 1936 y que destruyó a los

hombres del solar hispano hasta el 1 de abril de 1939 dando al traste con el

JURISMAT, Portimão, 2016, n.º 8, pp. 69-90.

* Sociólogo y Politólogo. Profesor Catedrático de la Universidad Complutense de Madrid.

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 70

proyecto reformista, europeo y social republicano; y entrando en el túnel del

tiempo de la Dictadura hasta el 22 de noviembre de 1975.

Palabras Clave: Parlamentarismo, territorio, Reforma Agraria, conflicto so-

cial y Guerra Civil.

Abstract: The Law of Agrarian Reform was constituted in the block of

discord, its hopes and fears produce the decanting of the Spanish society of

the 30s of the 20th century, which split into two antagonistic blocks. The two

Spains are heading for this territorial and social motive towards their own

destruction. The paths traveled can be simplified in the distance of the public

opinion of the governments of the nation and the Congress of the Deputies

(1931-1939), the attempt of coup d'etat of General Sanjurjo (10 of August of

1932), the verbal violence , Written, physical and armed that led to the Civil

War on July 18, 1936 and destroyed the men of the Hispanic site until April 1,

1939 disrupting the reformist project, European and social Republican, And

entering the time tunnel of the Dictatorship until November 22, 1975.

Key Words: Parliamentarism, territory, Agrarian Reform, social conflict and

Civil War.

I. Introducción

El problema territorial de España ha estado presente en la vida política, social y

económica desde las Cortes de Cádiz de 19 de marzo de 1812 hasta la actualidad con

el final de la transición política (22 de noviembre de 1975-20 de diciembre de 2015),

agudizándose los últimos años con la “cuestión catalana” y el embate del separatis-

mo de casi el 50% de los votantes en las elecciones autonómicas que tuvieron lugar

en Cataluña el 27 de septiembre de 2015.

Las Cortes de Cádiz significaron la demostración no sólo del protagonismo del “es-

tamento burgués” sino también el inicio de un programa de reformas que cristalizar-

ían más tarde en una nueva y definitiva organización territorial-administrativa y en

una regulación y mejora de los servicios públicos urbanos en tanto sedes naturales de

la clase burguesa.

Los aciertos y desaciertos de la creación de las provincias españolas mediante De-

creto de 30 de noviembre de 1833 de la que todavía hoy vivimos, así como el Decre-

to de 1834 por el que se crean los partidos judiciales, constituyen elementos funcio-

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

71

nales acompañados de algunos conflictos en los dos siglos de vigencia de nuestro

modelo territorial.

II. Las Desamortizaciones del Siglo XIX

Siguiendo el acertado diagnóstico de Gonzalo ANES en Las crisis agrarias en la

España Moderna. Taurus Ediciones, Madrid, 1974, “el trasfondo inmediato de la

desamortización era: la desaparición del régimen señorial, la supresión de los diez-

mos y la reforma de la Hacienda”.

Como apostilló VICENS VIVES “Nos hallamos ante un caso típico de industrializa-

ción en un área mediterránea, con escasa densidad demográfica, defectuoso reparto

del suelo agrícola, débil capacidad de consumo, bajo nivel técnico y notoria defi-

ciencia del sentido económico moderno, en gran parte del pueblo y en las altas esfe-

ras de la Administración”.

Cuadro nº 1: Distribución de la propiedad de la tierra antes de las Desamortizaciones

A Nobleza 28.306.700 fanegas

Iglesia 9.093.400 fanegas

Clase plebeya 17.599.000 fanegas

B Porcentajes

Nobleza 51,5% del total

Iglesia 16,5%

Plebeyos 32 %

Nobleza e Iglesia juntas, el 5,3% de la población, poseían el 68% del patrimonio

nacional.1

Se promulgaron 9 Reales Cédulas de 16-I-1794 con el Gobierno de Godoy hasta la

de 21 de febrero de 1807, interviniendo en los bienes eclesiásticos para rematar la

Desamortización eclesiástica en el período 1844-1856, con la previa ruptura de

relaciones diplomáticas con el Vaticano el 27 de octubre de 1836 (véase la Tesis

Doctoral de Vicente CÁRCEL ORTI: Política española desde 1830 hasta 1840).

La valoración de Don Claudio SÁNCHEZ ALBORNOZ fue contundente: “Con los

carlistas ante las tapias del Retiro de Madrid surgió la burguesía liberal del siglo

XIX, sustentáculo firme y único de la Monarquía constitucional. Otra Reforma

1 Fuente: MAURÍN, Joaquín: Revolución y Contrarrevolución en España. Ed. Ruedo Ibérico,

1966, pág.5.

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 72

Agraria había cambiado la faz de nuestra nación; otra gigantesca expropiación había

incorporado España al conjunto de los pueblos de Occidente” (La Reforma Agraria

ante la Historia, Madrid, 1932).

La Desamortización civil del Estado y de las Corporaciones tuvo lugar desde el

Decreto de 1836, como en la eclesiástica, hasta 1856.

La evaluación de semejantes operaciones territoriales y económicas fue bastante

lapidaria por parte de Joaquín COSTA: “El Banco de España de las clases desvalidas

y trabajadoras ha sido asaltado por las clases gobernantes”.

Igualmente Don Pascual CARRIÓN dejó constancia en la página 12 de Los latifun-

dios en España (1932): “El liberalismo extremado tal vez con la mejor intención,

realizó la obra de la desamortizadora en tal forma (en favor de los ricos) que ha

resultado funesta desde el punto de vista social y económico”.

III. Real Academia de Ciencias Morales y Políticas (creada por Real Decreto de

30 de septiembre de 1857). Concursos y Memorias sobre la Agricultura española.

Cfr. Ver Tesis Doctoral ALL págs. 153-155.

Fermín CABALLERO vio premiada su Memoria sobre el fomento de la población

rural (Madrid, 1863), en ella propone: “Una ley agraria o código rural, en que se

fijen los puntos cardinales del problema” y los medios de progreso: “1º Cultivo in-

tensivo, 2º Guardia rural, 3º Escuelas prácticas de agricultura, 4º Que la ley civil

señale el tipo proporcionado de una labranza, 5º Declarar porciones indivisibles e

inacumulables el coto tipo:

- Aumentando los estímulos para las ventas y trueques.

- Apelando a los medios legales coercitivos.

- Rebajando el porcentaje:

· Del registro de hipotecas

· Del papel para contratos y diligencias

· Los derechos de escrituras y judiciales

- Conseguir una subvención del fondo destinado a mejoras agrícolas.

- Recargar el porcentaje a las fincas mayores y menores que el tipo coto”

Francisco de UHAGON Y GUARDAMINO (Madrid, 1873, publicó en la imprenta

y librería de Eduardo Martínez, c/ Príncipe, 1876): Sobre la influencia que la acumu-

lación o división excesiva de la propiedad territorial ejercen en la prosperidad o

decadencia de la agricultura en España.

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

73

Vicente SANTAMARÍA DE PAREDES (Madrid, 16/III/1872) La defensa del dere-

cho de Propiedad y sus relaciones con el trabajo, publicada en la Tipografía del

Colegio Nacional de Sordomudos y de Ciegos, Madrid, 1874.

Enrique ALLER, publicó más tarde su famosa obra: Las Grandes Propiedades Rústi-

cas en España, efectos que producen y problemas jurídicos, económicos y sociales

que plantean, Establecimiento tipográfico de Jaime Ratés, Madrid, 1912, cita otras

tantas obras premiadas por la Academia: El absentismo en España (1885) de

GÓMEZ PIZARRO, G; La vida del campo de RODRIGÁÑEZ y El absentismo y el

espíritu rural (1889).

Espigando sobre las aportaciones de Domingo Enrique ALLER no podemos soslayar

el siguiente texto: “La utilidad de la explotación forzosa para neutralizar los efectos

de la acumulación de la propiedad territorial, en los casos en que constituyan un

obstáculo insuperable para el progreso de la Agricultura… Será el bienestar nacional

el interés supremo de la comunidad, que vive a expensas de lo que produce el suelo

de la nación misma, y le asiste un derecho perfectísimo a que se explote en condi-

ciones adecuadas al fin para el que está destinado. ¿Qué significa, en fin, todo esto?

Que si bien el sentimiento de la propiedad “es innato en el hombre”, ha recibido su

bautismo de la ley civil; y si ésta la ha arreglado y modificado en todos los tiempos

conforme a las exigencias del estado social de cada pueblo, continuará en adelante

arreglándola y modificándola, aquí como en los demás países, sin detenerse ante el

temido fantasma de la expropiación forzosa, cuando no encuentre otro medio de

evitar o disminuir los males que lamentamos, derivados de nuestra actual situación

agraria”.

IV. Primeros Proyectos de Reforma Agraria

a) Proyectos y leyes de reforma agraria en España (1900-1936)

1. Ley de 1907 de colonización interior, ministro de Fomento Augusto

González Besada.

2. Proyecto de Ley Antonio Monedero, presidente de la Confederación Na-

cional Católica Agraria (CONCA).

3. Proyecto Canalejas, 1911. (Véase Diario Sesiones de las Cortes, 5 de ju-

nio).

4. Proyecto Romanones 1912. (Véase Diario de Sesiones, número 196, apén-

dice 5º, 6 de diciembre).

5. Proyecto Dato 1914. (Véase Diario de Sesiones, número 85, Apéndice 2º,

13 de noviembre).

6. Proyecto Alba 1916. (Véase Diario de Sesiones, número 55, Apéndice 6 y

7, 30 de septiembre).

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 74

7. Proyecto del Vizconde de Eza 1917.

8. Proposición Villalobos. (Véase Diario de Sesiones, número 28, Apéndice

1º de 26 de abril), 1918.

9. Proposición Zancada. (Véase Diario de Sesiones, número 33, Apéndice 23,

3 de mayo), 1918.

10. Proyecto de Ángel Ossorio y Gallardo (11 de julio), 1919.

11. Proposición de los Diputados de la minoría socialista. (Véase Diario de

Sesiones, número 56, Apéndice 1º, 22 de enero), 1920.

12. Proyecto Lizárraga. (Véase Diario de Sesiones correspondiente al 13 de

mayo) 1921.

13. Proyecto Maura. (Diario de Sesiones correspondiente al 2 de marzo),

1922.

14. Creación de la Dirección General de Acción, Social Agraria con fines de

Reforma agraria, quedando suprimida la Junta de la Ley González Besada de

1907), 1926.

15. Proyecto de Ley de Bases para la Reforma agraria, aprobado definitiva-

mente. (Diario de Sesiones de las Cortes número 233, Apéndice 2º, 9 de sep-

tiembre), 1932.

16. Ley de arrendamientos rústicos de 15 de marzo de 1935, siendo Ministro

de Agricultura Giménez Fernández.

17. Nueva Ley de Reforma Agraria de 10 de agosto de 1935 (Diario de Se-

siones nº 231, Apéndice 26).

Fuente: LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro, “Introducción a la reforma agraria en la

España del siglo XX”. En Revista EXPLOTACIÓN AGRARIA Nº 104, junio

1977, Vol. 11, nº6, página 48.

b) Programa agrario del PSOE (1918) y de la Unión General de Trabajadores de

España.

La aspiración fundamental del socialismo de convertir la propiedad privada de los

medios de producción y cambio en propiedad colectiva o común, se concreta, en

orden a los trabajadores de la tierra, en desaparición de esta forma del salariado.

La expropiación de la tierra no alcanza a los pequeños propietarios que por sí o por

su familia cultiven la tierra.

Para el logro de dicho fin se considera necesaria la adopción de las siguientes dispo-

siciones:

- Relativas a los obreros

1. Jornada máxima legal de ocho horas para los obreros adultos. Prohibi-

ción del trabajo para los menores de catorce años y deducción de la

jornada para los de catorce a dieciocho años. En casos de urgencia

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

75

podrá prolongarse la duración de la jornada, pagando un salario extra-

ordinario doble del jornal.

2. Salario mínimo legal. –Salario igual para el varón y la mujer.-

Prohibición a las mujeres de aquellas labores que sean nocivas a su sa-

lud.

3. Descanso de un día por semana.

4. Prohibición del trabajo a destajo y de los contratos de aparcería, como

forma encubierta del mismo.

5. Prohibición de retribuir el trabajo en especie.

6. Leyes que garanticen las condiciones higiénicas de las habitaciones y

albergues destinados a los obreros y asalariados.

7. Regulación del trabajo ambulante de los obreros del campo.

8. Seguro obligatorio de accidentes, enfermedades, invalidez, vejez y pa-

ro forzoso de los obreros agrícolas.

9. Ley de Accidentes de Trabajo en el campo.

- Relativas a la ley agrícola

10. Prohibición de desahuciar al terrateniente, siempre que cumpla las

condiciones del contrato convenido.

11. La renta no excederá en ningún caso del líquido imponible que figure

en el amillaramiento de la Hacienda.

12. Indemnización al arrendatario del valor de las mejoras hechas en la

propiedad al terminar el plazo del arriendo.

13. Descuento en la renta del importe de las pérdidas que sufra el arrenda-

tario por causas independientes a su voluntad (helada, granizo, incen-

dio, inundaciones, etc)

14. En los contratos de arrendamiento no podrá convenirse ninguna condi-

ción contraria a la adecuada explotación de la tierra (no emplear abo-

nos, imponer el barbecho, etc.)

15. Los ingenieros agrónomos dictaminarán acerca del cultivo a que deben

dedicarse las tierras.

16. Las contribuciones serán siempre de cuenta del propietario.

17. Leyes favorables a la concentración parcelaria.

18. No serán renunciables por el colono las indemnizaciones por pérdida

de cosechas y mejoras de la tierra, ni será legal la clausura de contratos

de arriendo por la que se comprometa a pagar los impuestos tributivos

de la tierra.

19. Creación de Tribunales rurales que entiendan en los litigios entre obre-

ros y propietarios para que regulen el tanto de los arriendos.

20. Leyes que favorezcan la formación de Sociedades agrícolas cuyo fin

será, ya la compra de semillas, abonos, aperos, máquinas, etc… ya la

venta de productos, ya el crédito.

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 76

21. Institución por el Estado de Cajas rurales de crédito.

22. Organización del seguro obligatorio contra las calamidades y plagas

del campo. Así mismo contra la epizootia del ganado.

23. Impuesto sobre la tierra, no por lo que produce, sino por cuanto debe

producir técnicamente cultivada, a fin de que desaparezcan los terrenos

incultos, pastizales, cercados de reses bravas, cotos de caza, y otras

formas nulas o deficientes de explotación agrícola.

24. Modificación de la Ley de Expropiación pública en el sentido de no in-

demnizar a propietarios cuando la reforma que se hace acrece el valor

de las fincas.

25. Incautación por el Estado del mayor valor adquirido de las tierras por

causas ajenas a su voluntad.

26. Revisión de los títulos de propiedad, individuales o colectivos, de tie-

rras que fueron del Estado o de los Municipios, y prohibición de ven-

der tierras nacionales o comunales.

27. Las tierras de que se incaute la Hacienda por falta de pago de los tribu-

tos, los terrenos pantanosos y saladares saneados, los montes públicos

aptos para el cultivo y los latifundios que no fuesen cultivados según la

técnica moderna determinada para las grandes explotaciones, serán en-

tregados a las Sociedades obreras y agrícolas para que las cultiven. El

Estado y los Municipios facilitarán la adquisición de maquinaria, semi-

llas, abonos, etc. que dichas sociedades necesiten (sic).

28. Reconstitución de la destruida propiedad comunal de los Municipios,

entregándola para su explotación a las Sociedades obreras agrícolas.

- Relativas al proceso agrario

29. Formación, lo más rápida posible, del catastro de la riqueza agrícola.

30. Repoblación forestal y prohibición de las talas de arbolado con perjui-

cio de la riqueza forestal del país.

31. Nacionalización de los bosques.

32. Nacionalización de la fuerza hidráulica.

33. Nacionalización de los servicios terrestres y marítimos con la triple in-

tervención gubernativa, técnica y de las Sociedades obreras.

34. Construcción de canales y pantanos para el regadío y fomento de la na-

vegación fluvial.

35. Información agrario-social en toda reforma del servicio de Transportes

terrestres y marítimos.

36. Fomento de las industrias derivadas de la agricultura.

37. Creación de granjas modelos. Laboratorios agrícolas y estaciones zo-

otécnicas de sementales.

38. Organización de la enseñanza agrícola con carácter gratuito.

39. Fundación de una Facultad de Agronomía en las Universidades.

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

77

Programa Agrario del Partido Socialista Obrero Español y de la Unión

General de Trabajadores de España. Madrid, 1918. Los párrafos no apa-

recen numerados en el original.2

V. Las Reformas Agrarias Europeas de la Postguerra (1918-1929)

Con este título y su contenido Juan DÍAZ DEL MORAL, miembro destacado de la

Comisión Técnica para la Reforma Agraria de la Segunda República, publicó en la

Editorial de Derecho Privado de Madrid, un estudio comparado entre los nuevos

Estados miembros del antiguo Imperio Austrohúngaro tras la 1ª Guerra Mundial

(1914-1918).

En los nuevos Estados que surgen como consecuencia de la guerra europea: Austria,

Estonia, Letonia, Polonia, Checoeslovaquia; sus Gobiernos deciden Decretos para

realzar la Reforma Agraria como solución a la deficiente situación económica del

campesinado obrero y como estrategia para consolidar el nuevo régimen político,

dotando de un valor patriótico a la función social de la propiedad.

Este cambio jurídico y económico llegó a tal punto que hasta es recogido y tipificado

en la Constitución de Weimar de la derrotada Alemania.

El rápido desarrollo de la demografía en medio país hunde las estructuras hasta en-

tonces vigentes y precipitó los cambios económicos y políticos en una atmósfera de

gran tensión a causa de la pobreza de las masas trabajadoras: proletarios en las ciu-

dades y jornaleros en el campo.

Como consecuencia de ello, en las comunidades rurales latifundistas existe una es-

tructura social caracterizada por fuertes desigualdades sociales que llevan a una

lucha de clases y a una continua conflictividad traducido del fenómeno del latifundio

como unidad de cultivo de más de 500 hectáreas en un país como España según el

criterio de Pascual Carrión en una magna obra publicada en 1932: Los latifundios en

España. Así pues, la Reforma Agraria consiste en trasladarse coactivamente de

unas manos a otras la propiedad del suelo.

Como puso de manifiesto Edward MALEFAKIS (véase la Bibliografía del presente

artículo), “La esencia de la reforma agraria social se encuentra en la redistribución

de la propiedad de la tierra por medios políticos en un espacio de tiempo relativa-

mente corto”.

2 Fuente: BIGLINO, Palma: El socialismo español y la cuestión agraria (1840-1936). Op. Cit.

Págs. 519-522.

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 78

Finalmente, como diagnosticó la FAO en la Conferencia Mundial sobre reforma

agraria y desarrollo rural (Roma, julio de 1979): “La finalidad de la Reforma agraria

y el desarrollo rural es la transformación de la vida y de las actividades rurales en

todos sus aspectos: económicos, sociales, culturales, institucionales, ambientales y

humanos.”

VI. El Mito de la Reforma Agraria

El calendario republicano que se inicia el 14 de abril de 1931 se inaugura entre la

incertidumbre y la esperanza en torno a la Reforma agraria que unos piden, otros

anuncian y otros deseamos. Pero nuestra Península ofrece casos muy distintos -y se

advierte- que deben resolverse de muy distinta manera (Rev. Agricultura nº28, abril

1931, págs. 259-260).

El 15 de abril de 1931: El Estatuto jurídico del Gobierno Provsional que había sido

preparado por Alejandro LERROUX, Este Gobierno adopta como norma de su ac-

tuación el reconocimiento de que el Derecho agrario debe responder a la función

social de la propiedad. (Diario EL SOL, año 15, nº4266, 15 de abril 1931, pág. 12).

EL SOL y el SOCIALISTA hablaban de Nacionalización de la tierra, etc., y ya los

propietarios de las grandes explotaciones agrícolas decían: “La República debe dar-

les de comer” (AHORA, 8 mayo 1931).

Se creó una Comisión Interministerial “en esta ocasión quizá única para remediar de

una vez y para siempre ese mal endémico en Andalucía y Extremadura” (declaracio-

nes de Miguel Maura a EL SOL, 28 de mayo 1931).

Por fin, la Comisión Técnica de 21 de mayo de 1931 proyectó su Ley de Bases para

la Reforma Agraria, presentado por el señor Presidente del Gobierno el 25 de agosto

de 1931. Los Diputados socialistas presentaron una proposición al Palacio del Con-

greso el 13 de agosto de 1931 de 5 puntos, exigiendo la máxima celeridad de la

reforma agraria, sobre todo para Extremadura y Andalucía.

Tengamos en cuenta las declaraciones de Manuel AZAÑA: “La Reforma Agraria es

lo más urgente (…) y esta obra debería implementarse inmediatamente a reserva de

dar cuenta a Las Cortes para su aprobación definitiva”. EL SOL, 18 de julio de 1931

El Anteproyecto de la Comisión Técnica agraria del 21 de mayo de 1931 proponía

que la reforma se limitara a Extremadura y Andalucía y a las provincias de Ciudad

Real y Toledo, en vez de hacerse extensiva a toda la nación (…) como equivocada-

mente se hizo en la Ley de 9 de septiembre de 1932, aumentando en 80.000 peque-

ños propietarios los enemigos de la República. Se habrían hecho 50.000 ocupaciones

temporales de fincas sin indemnización inmediata de las tierras, evitando posible-

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

79

mente la violencia que se desató en Sevilla, Córdoba, Castilblanco, Casas Viejas

(Cádiz) y Villa de Don Fabrique en Toledo.

La responsabilidad histórica del fracaso de la reforma agraria hay que buscarla en la

minoría agraria, en la CEDA, Partido Radical de Lerroux, a los Radical Socialistas,

al PSOE, y lo que es más grave, a don Manuel Azaña, que no sentía ni conocía los

problemas económicos y sociales del agro español.

No olvidemos que entre los 30 miembros de la Comisión Técnica Agraria estaban:

Pascual Carrión, Sánchez Román, Flores de Lemus, Blas Infante, Díaz del Moral,

Bernaldo de Quirós, y Lucio Martínez Gil, como representante de los obreros agríco-

las este último. Véase LÓPEZ LÓPEZ Alejandro: Entrevista a Pascual Carrión” en

Revista Extensión Agraria nº 96, octubre 1976, Vol. X, págs. 31-36.

La expresión más cruda y violenta quedó plasmada en las muertes que tuvieron lugar

en Casas Viejas (Cádiz), a tal efecto reproduzco el artículo publicado en el diario EL

PAÍS el 21 de febrero de 2016:

Destruida la choza, asesinado también con las esposas puestas Manuel Quijada y

golpeada bárbaramente su mujer, Encarnación Barberán, que quiso protestar, los

guardias bajaron en una columna disforme hacia la plaza y formaron en el centro.

Pero la represión, la destrucción de la choza de Seisdedos, los asesinatos de Francis-

ca Lago y de su padre cuando intentaban huir con las ropas ardiendo, todo aquel

estruendo de bombas y fusilería al que estuvieron atentos los campesinos desde sus

camastros; el recuerdo de Manuel Quijada, esposado, que caía bajo los culatazos de

los guardias y era levantado a puntapiés para morir, por fin, ametrallado frente a la

choza; los asesinatos de otros tres detenidos, muertos a bocajarro junto a las cercas;

la muerte del septuagenario Barberán al lado de la cama que acababa de abandonar,

esos acontecimientos eran conocidos rápidamente en todo el pueblo.

Por la tierra, por la superficie cultivable, todavía virgen, habían intentado implantar

el “comunismo libertario”. En la conquista del campo empeñaban la vida. La habían

dado ya muchos campesinos.

VII. La Función Social de la Propiedad

El modelo político europeo está presente casi al pie de la letra en la Constitución

Española de 1931, homologado con los países europeos al menos en 25 artículos,

desde “el pueblo como fuente de poder de todos los órganos del Estado” (Art. 51

CE) hasta las finanzas (Título VIII) y sobre todo por “la función social de la propie-

dad”, adoptado de México (Art. 27 CM), de Weimar (Arts. 153, 155, 156 y 163) que

la Constitución Republicana Española de 9 de diciembre de 1931 tipifica en el Art.

44, aspecto fundamental que es analizado a continuación.

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 80

Artículo 44. Toda la riqueza del país, sea quien fuere su dueño, está

subordinada a los intereses de la economía nacional y afecta al soste-

nimiento de las cargas públicas, con arreglo a la Constitución y a las

leyes.

La propiedad de toda clase de bienes podrá ser objeto de expropia-

ción forzosa por causa de utilidad social mediante adecuada indemni-

zación, a menos que disponga otra cosa una ley aprobada por los vo-

tos de la mayoría absoluta de las Cortes.

Con los mismos requisitos la propiedad podrá ser socializada.

Los servicios públicos y las explotaciones que afecten al interés

común pueden ser nacionalizados en los casos en que la necesidad

social así lo exija.

El Estado podrá intervenir por ley la explotación y coordinación de

industrias y empresas cuando así lo exigieran la racionalización de la

producción y los intereses de la economía nacional.

En ningún caso se impondrá la pena de confiscación de bienes.

A través de la Prensa, en los mítines y sobre todo en el Congreso de los Diputados,

se manifestó un consenso casi total en relación a la función social de la propiedad, y

máxime con la propiedad agraria. Tal fue el caso de la UGT, como el PSOE, el par-

tido de Alcalá Zamora, el Partido Republicano Radical Socialista, y la candidatura a

las elecciones generales de julio de 1931, denominada República de Andalucía

Autónoma y Libre (Blas Infante y Pascual Carrión).

Los órganos de sociabilidad que Ortega y Gasset estimaba de absoluta necesidad no

podían prescindir del nervio común: la función social de la propiedad, ni de los me-

canismos de su puesta en práctica: la nacionalización de algunos medios de produc-

ción, la socialización de la propiedad en otros casos, y, la reforma agraria como

sucedió en la mayoría de los nuevos Estados europeos surgidos del Imperio austro-

húngaro.

La reacción contra la función social de la propiedad encontró su primer vocero en el

agrario GÓMEZ ROJI, quien después de reconocer el absentismo rural, el lujo y el

capitalismo, dijo: “Nosotros rechazamos el “jus abutendi” de los romanos; no tiene

nadie derecho a abusar de su riqueza. Pero nosotros no podemos hacer una ecuación

entre estos dos conceptos: propiedad y función social. Esta función social no puede

engrandecerse exageradamente, porque si la engrandecemos la extendemos y vamos

haciendo que se restrinja el derecho de propiedad, llegará un momento en que

habremos anulado, aniquilado a la propiedad en su esencia y en su derecho”. SÁINZ

RODRÍGUEZ reforzaba la posición agraria sobre la propiedad: “La propiedad tiene

en esta Constitución muy escasas garantías, casi ninguna. Pudiéramos decir que la

parte relativa a la propiedad en esta Constitución, no es más que un tratado doctrinal

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

81

en que se habla de la actuación futura del Estado, pero tenéis que pensar también en

la realidad política del momento. Si los socialistas son una minoría y los primeros

años van a ser de régimen capitalista republicano, ¿no comprenden los primeros

Gobiernos de la República que van a tropezar con la dificultad insuperable de que el

texto constitucional, en vez de ser una garantía para el capital es una amenaza, que

en vez de ser una garantía de derechos, es la espada de Damocles suspendida sobre

el derecho de propiedad. No me opongo a que España se estructure en una República

socialista; lo que es incongruente es utilizar el régimen capitalista y hacer que en la

Constitución se ahuyente de manera definitiva la colaboración del capital nacional”.

La gran fuerza del primer bienio: “El Partido Socialista Obrero Español, siguió un

camino equívoco. Considerado como uno de los más unificados y mejor disciplina-

dos partidos socialistas europeos, se descompuso en el conflicto entre ideología y

realidad. La “bolchevización” del socialismo español fue, en parte una respuesta al

ejemplo y a las presiones rusas, aunque reflejase también el esfuerzo por permanecer

leal al verdadero marxismo. La preocupación por no seguir el camino revisionista de

la Socialdemocracia alemana no salvó al socialismo revolucionario, sino que tuvo el

efecto de provocar una reacción que acabó con él” (PAYNE, Stanley G., La Revolu-

ción española, Ed. Ariel, Barcelona, 1971, pág. 316).

Los resultados de la nueva fórmula jurídica de la propiedad no se aproximaron ni

remotamente al apasionamiento verbal que se desplegó, la República en el terreno

económico no fue otra cosa que un deseo sin realizar, la Constitución suponía un

cambio social en el que apoyarse pero ella desde la Gaceta no podía por sí misma

producirlo.

Quiero destacar por encima de todo el régimen democrático, principio y fin de los

éxitos y fracasos de la Segunda República española: “Sin duda el régimen parlamen-

tario no ha traído la igualdad de la riqueza, ni la igual y equitativa participación de

todos en la dirección de los negocios públicos, no ha suprimido la lucha de los inter-

eses de clases ni lo nocivo de las apetencias individuales.

Pero es necesario no olvidar que el parlamentarismo es en cierto sentido el lugar

geométrico de todas las instituciones que garantizan la libertad individual, que es un

régimen en el que el liberalismo no se presta a ninguna exclusión y admite a todos

los ciudadanos cualquiera que sea su origen, que el control del gobierno por la opi-

nión pública, la prensa y el Parlamento es posible, que la protección del individuo es

elevada a rango de principio constitucional y en el que cada uno está seguro de no

tener nada que temer de la autoridad pública mientras respeta las leyes”.

La Constitución de 1931 tuvo la gloria y la tragedia de ser una Constitución para el

cambio y el progreso a los que hoy aspiramos la mayoría de los españoles; la fórmu-

la de convivencia tenía sus riesgos como todo lo humano y lo político. Pero la aler-

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 82

gia generalizada al cambio, el miedo a la libertad y los intereses económicos de unas

minorías darían al traste con el proyecto socioeconómico que la Superley constitu-

cional sancionaba políticamente, la sociedad democrática española sólo tuvo cinco

años de balbuciente niñez en el siglo XX, la inexperiencia, la espada y sus aliados, la

asesinaron.

VIII. El Caminho hacia la Guerra Civil

La Guerra Civil fue incubándose desde los primeros días de la República, la Refor-

ma Agraria no amortiguó el proceso, sino que lo aceleró fomentando un estado de

opinión que en julio de 1936 resultó imparable.

Dicho proceso constituye un modelo histórico a tener presente en cualquier proyecto

de Reforma Agraria que pretenda ser viable desde el régimen democrático del par-

lamentarismo y desde estructuras económico-sociales de subdesarrollo.

A través de la discusión del Proyecto de Reforma Agraria las amenazas del enfren-

tamiento fueron manipuladas una y mil veces -casi siempre- por los defensores del

orden, la Patria y la propiedad; el Diario de Sesiones de las Cortes, tan extenso como

poco utilizado por los investigadores, es la fuente de primera mano que utilizo para

demostrar la interdependencia entre la Reforma Agraria de 1932 y la Guerra Civil de

1936.

El movimiento organizativo de las derechas desde el 12 de abril del 31 iba en au-

mento, y paralelamente la afirmación autoritaria de su presencia, el “caso europeo”

de las Reformas llevadas a cabo no era válido para España.

(…) Esta obra no es obra de un día, ni de un año, que es obra de generaciones; que

realizarla con precipitación es dar un salto en el vacío, una pirueta trágica, cuyas

consecuencias pagará España. Todas estas razones, señores Diputados, y muchas

más, que mis compañeros irán exponiendo en días sucesivos, hacen que la minoría

agraria se oponga al proyecto, por considerarlo perjudicial para la patria (El agrario

Casanueva, 18 de mayo de 1932).

Sr. Balbontín y señores Diputados de la izquierda revolucionaria, en esa propaganda,

en toda esa tragedia, y en todo ese dolor de Sevilla, una buena parte tenéis vosotros

con vuestras campañas cobardes, vais a los mítines gritando: obreros, encended las

teas, afilad las hoces, matad a la burguesía, matad a la Guardia Civil. Otra causa es

la concurrencia allí de todos los líderes de las tácticas revolucionarias y de muchos

profesionales del atentado, la venalidad o la cobardía del Jurado que de 25 juicios en

21 el veredicto ha sido inculpabilidad, la actuación de muchos alcaldes entregados a

los viejos caciques, a sus impulsos demagógicos y a las sociedades obreras.

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

83

Según el Ministro de Agricultura (Marcelino Domingo) la Reforma tenía un fin

prioritario: que la tierra sea un instrumento de producción; y unas finalidades anejas:

“Primera, remedia el paro campesino. Segunda, redistribuye la tierra. Tercera, racio-

naliza la economía agraria. Marcelino Domingo intentó dar a los Diputados y a la

opinión pública las verdaderas dimensiones que de hecho iba a tener la Reforma

Agraria española, posiblemente para frenar la impaciencia de unos sectores y la

oposición de otros grupos conservadores.

D. Santiago Guallar, de la Minoría Agraria, estaba de acuerdo con que el Estado

realice la Reforma Agraria “pero de aquí ya no paso, y ya sólo no paso, sino que a

mí me parece tan deplorable ese proyecto, tal y como está concebido, que creo que

su aplicación será una catástrofe, una especie de apisonadora que destruirá la gran

propiedad y la pequeña propiedad, que no traerá bienestar al obrero, que condenará a

una enfermedad crónica financiera al Estado y, sin producir resultados beneficiosos

visibles, traerá perturbaciones muy hondas, será fuente y semillero de odios y de

disturbios, una especie de espada siempre suspendida sobre la propiedad, la ruina de

la producción, un colapso que pondrá en peligro de muerte la riqueza y la produc-

ción (D.S. nº190, 28 de junio de 1932).

Apenas quedaba lugar para la esperanza, el mito y la crisis de la Reforma Agraria no

lo despejaba el debate parlamentario, sino todo lo contrario. Igualmente lo denuncia-

ba Roma Rubies, destacado agrarista y socialista del primer tercio del siglo XX.

Asimismo, entre una gran parte del proletariado agrícola existe un gran pesimismo

por dos razones: 1º porque una gran parte del proletariado agrícola entiende que la

Reforma Agraria ha debido aprobarse hace ya mucho tiempo, y segunda, porque esta

reforma no satisface las aspiraciones mínimas de una gran parte del proletariado

agrícola. El citado Sr. Balbontín afirmaba: “estoy convencido que si la Segunda

República española no puede o no quiere hacer una Reforma Agraria radical y pro-

funda, la Segunda República española se hunde sin remedio”.

Los sucesos en el pueblo manchego de Villa de Don Fabrique (el 9 de julio de 1932

tuvieron el desenlace de varios muertos y heridos, quema de mieses y de aperos de

labranza) le sirvió para atacar al Partido Socialista y para incitar a la violencia: “Por-

que la promesa socialista reformista, se va convirtiendo en una cosa muy parecida al

cielo de la religión cristiana, que ya no consuela a los campesinos, como tampoco

consuela vuestra promesa de que dentro de dos siglos comerán sus nietos, los cam-

pesinos quieren comer ahora… no quieren esperar dos siglos, prefieren luchar, pre-

fieren morir en la batalla a morir tirados en la charca como perros hambrientos (…),

se explota a 200 niños trabajando 13 horas al día por una peseta de jornal, y yo digo

que eso es monstruoso Sr. Morán (miembro de la Comisión) y que eso justifica todas

las violencias, absolutamente todas.” Asimismo, Ossorio y Gallardo advertía: “hab-

éis destruido una economía tan deficiente como se quiera, pero una economía, para

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 84

no asentar en su lugar a otra, sino una bondadosa quimera, sufriré desolado por vues-

tro fracaso, que será el fracaso de toda España, porque a toda España le alcanzaría

las consecuencias del mismo”.

El Sr. Del Río afirmaba que la cuestión de los pequeños propietarios sería decisiva al

provocar la hostilidad innecesaria de 80.000 labradores. De otro lado, al no tener en

cuenta las peculiaridades regionales de las respectivas agriculturas del Estado espa-

ñol quedaba desarticulado el sistema de arrendamientos rústicos fundamento de la

prosperidad agraria y social de los cultivadores de la cornisa cantábrica.

El intento de golpe de Estado que el general Sanjurjo protagonizó en Sevilla, Madrid

y otras localidades, recorrió España entre la sorpresa y la satisfacción de los que

esperaban el golpe desde mayo del 31; el proyecto de Reforma agraria tuvo un peso

específico como originante y precipitante de la intervención militar. El general, que

desde la Jefatura de la Guardia Civil no se opuso al resultado de la votación popular

del 12 de abril, ahora se alineaba al frente de una minoría que bajo el pretexto de

corregir el rumbo de la República atentaba contra ella por satisfacer las justas reivin-

dicaciones obreras y especialmente campesinas.

El efecto político de Sanjurjo era este: pretendiendo salvar a la República, hundirla;

pretendiendo restablecer un orden, que ellos son los primeros en infringir, abrir el

camino a una restauración monárquica o a algo todavía peor, a una Dictadura de la

espada.

El Sr. Presidente (Besteiro) contribuyó con su moderación y sencillez a desmoronar

el fallido Golpe de Estado: “En España hay bastante gente que está habituada a des-

encadenar la tragedia sobre la nación. Es natural que sienta la nostalgia de la trage-

dia; es natural que quiera volverla a desencadenar. Lo que creo yo que no tienen en

cuenta es que en el pueblo español hay muchos hombres sencillos pero que saben

mirar cara a cara a la tragedia y hacerla frente, y esos hombres sencillos están repre-

sentados por los Diputados que se sientan en los escaños rojos y por los Ministros

que se sientan en el banco azul, y saben que frente a la tragedia hacen falta tres co-

sas: serenidad, valor sencillo y perseverancia en el trabajo”.

La suspensión de un centenar de periódicos por orden gubernativa planteó graves

problemas a las organizaciones derechistas, particularmente al partido de Acción

Popular, obligándole a definirse en la cuestión del régimen político: “La polémica

más aguda y apasionada cada vez, alcanzó su punto culminante con motivo de los

tristes sucesos del golpe militar del 10 de agosto de 1932.

La interdependencia entre la sublevación de Sanjurjo y el problema agrario no ofrec-

ía lugar a dudas, la tesis mantenida a través de este trabajo encuentra una nueva

prueba a su favor en el manifiesto del general Sanjurjo: “Ni los braceros del campo,

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

85

ni los propietarios de la tierra, ni los patronos, ni los obreros, ni los capitalistas, ni

los trabajadores ocupados o en huelga forzosa, ni el productor, ni el contribuyente.

En año y medio de sectarismo titánico la economía nacional ha sufrido el quebranto

de miles de millones; se ha hecho mofa y escarnio de los sentimientos más frecuen-

temente arraigados en la mayoría de los españoles… el paro forzoso, extendido en

proporciones aterradoras, tiene en la miseria a muchos cientos de civiles de obreros;

no se ha tenido en varios meses un solo día de sosiego y tranquilidad, con el sobre-

salto constante de incendios, huelgas, revoluciones, robos, atracos y amenazas. Las

leyes de excepción nos privan más que nunca de los derechos ciudadanos, y por si

esto y otros males cada día más agudizados fueran pocos, se han alentado impruden-

temente los sentimientos de varias regiones y envenenando aspiraciones que pueden

ser legítimas en su origen, poniendo en peligro inminente la integridad de España.

Las Cortes que eran ilegítimas en su origen por el régimen de terror en que fueron

convocadas, y son facciosas por la prorrogación de sus funciones a extremos ni si-

quiera consignados en su propia convocatoria, han quedado disueltas” (Arrarás,

Joaquín. Historia de la Segunda República Española. Editora Nacional, 4ª ed., Ma-

drid, 1969, vol. I, págs. 506-507).

No obstante, sintetizamos el capítulo sobre la tragedia de España que Jackson en

pocas y valiosas páginas atribuye –igual que nosotros- a la cuestión agraria. De los

principales problemas con que tropezó la República, a mí me parece que el único

para el que era verdaderamente imposible hallar una solución moderada y legislativa

era el de la reforma agraria. La enorme variedad de condiciones geográficas y socia-

les, la ignorancia técnica de los campesinos, las cuestiones del pago de las tierras y

las inversiones para el mejor uso de ellas, la primitiva conciencia política y los odios

largo tiempo reprimidos del campesinado, el sabotaje de los terratenientes y de la

Guardia Civil de cualquier esfuerzo en favor de ellos, todos estos factores se interpu-

sieron y se interponen aún hoy día en la solución del problema de la tierra.

La opinión pública española en 1935 estaba dominada por dos emociones comple-

tamente negativas: el terror al fascismo y el terror al comunismo. En presencia de la

continuada censura y de la esterilidad parlamentaria, los grupos de acción directa de

las derechas y de las izquierdas prepararon el terreno para una prueba de fuerza.

La Guerra Civil vino como la suelta climática de las pasiones políticas de un siglo; el

18 de julio de 1936 estalló el Golpe de Estado contra la República y empezó la Gue-

rra Civil 1936-1939.

IX. Conclusiones

El mito de la reforma agraria y el cuento de nunca acabar.

En consonancia con la línea argumental de los autores anglosajones Gerald

BRENAN (El laberinto español. Antecedentes sociales y políticos de la Guerra

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 86

Civil. Ediciones Ruedo Ibérico, París, 1962) y de Gabriel JACKSON (La tragedia

de España), atribuyo como ellos la Guerra Civil española 1936-1939 a la cuestión

agraria. A continuación expongo las conclusiones de esta investigación:

1º. El mito español del pasado era invocado con nostalgia: “En la mayor parte de los

pueblos de Castilla, cuando menos, había una paz octaviana (Risas y rumores). Las

familias vivían espléndidamente en el orden espiritual, aunque en lo económico

hubiera duelos y quebranto, ajenas por completo a todas estas luchas presentes entre

obreros y patronos. Encubriendo los intereses creados del sacrosanto derecho de

propiedad privada se utilizaban los conceptos de la familia, la paz y la religión. Los

agricultores se ayudaban mutuamente en sus faenas, y los obreros estaban de muy

buen acuerdo con todos los propietarios productores; pero es llegado ese decreto del

laboreo forzoso, siembra el malestar y la discordia en los pueblos, y hoy los pueblos

están en una lucha sumamente grave, lucha de clases, de odios y de ira no reprimida.

Ese proyecto reforma de reforma agraria va a ser un volcán colocado a los pies de

España”.

2º. El error político de querer hacer la Ley de Reforma Agraria por vía parlamenta-

ria, en vez de por Decreto Ley como había sugerido la Comisión Técnica.

3º. El querer abarcar con maximalismo la Reforma extendiéndola a toda la Península

en vez de circunscribirse a Andalucía, Extremadura y las provincias de Ciudad Real

y Toledo en la actual Castilla-La Mancha, que era donde se encontraban los latifun-

dios.

4º. La combinación destructiva de la violencia campesina y la represión guberna-

mental a través de la Guardia Civil.

5º. La ceguera presupuestaria que dotó al Instituto de Reforma Agraria (IRA) en el

presupuesto con la ridícula cifra de 50 millones de pesetas, y acabó gastando algo

más de la mitad sin invertir la otra mitad en reformas urgentes en la agricultura es-

pañola.

6º. La influencia negativa para la economía española de la Crisis económica mundial

de 1929.

7º. La desacertada política exterior con una miope restricción de las relaciones inter-

nacionales de la España republicana.

8º. La falta de apoyo de las democracias francesa, inglesa y norteamericana.

9º. La retirada de los créditos otorgados antes del 14 de abril de 1931, por ejemplo,

por la Banca Nacional francesa o por la inglesa Morgan.

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

87

10º. Propiedades de los 65 Grandes de España, con más de 1000Has de superficie

agraria.

Duque de Medinaceli 79.147 Has

Marqués de Comillas 23.720 Has

Marqués de Riscal 9.310 Has

Duque de Alcudia y Sueca 5.080 Has

Marqués de Albuideres 1.052 Has

El total de los 65 propietarios era de 562.528 Has.3

11º. Los Ministros de Agricultura de la Segunda República (1931-1939): el número

excesivo de 13 ministros en 8 años, verdadero desbarajuste.

- El que más tiempo dirigió el Ministerio de Agricultura fue el último, Vicen-

te URIBE GALDEANO, desde el 4 de septiembre de 1936 al 1 de abril de

1939.

- El Ministro que menos tiempo estuvo fue Ramón FECED GRESA, 12 de

septiembre de 1933 a 8 de octubre de 1933, es decir, menos de un mes.

- El Ministro Marcelino DOMINGO SANJUÁN, el que más tiempo realizó

la labor del Gobierno, de 16 de diciembre de 1931 a 12 de septiembre de

1933.

La mayoría de ellos fueron Licenciados en Derecho, y ninguno era economista ni

ingeniero agrónomo, ni sociólogo rural. Solo uno era obrero metalúrgico, el comu-

nista URIBE (36-39).

12º. El sistema político de 1931 fue democrático y parlamentario, pero el sistema

social fue en gran medida alérgico al cambio, el miedo a la libertad y los intereses

económicos de la minoría dieron al traste con el proyecto político, económico y

social de la Constitución, deudora en gran medida al contexto democrático europeo

de esa coyuntura histórica.

13º. La Reforma Agraria, a pesar de tantos proyectos, fue como “alma de Garibay” y

sin casi efectos sustantivos de realización. El argumento más evidente es que inició

semejante proceso equivocado desde el 15 de abril de 1931 (con el Gobierno provi-

sional). Hasta tal punto esto es demostrable que se siguió “hablando y hablando”

3 Fuente: Pascual CARRIÓN: La Reforma Agraria de la Segunda República. Prólogo de Juan

Velarde Fuertes. Ed. Ariel, Barcelona, 1973, págs. 121-123.

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 88

sobre la Reforma Agraria hasta la última sesión del Congreso de los Diputados el 17

de julio de 1936 a pocas horas del Golpe de Estado contra la República.

14º. Todavía hoy, en marzo de 2016, se manifiesta el error económico, político y

social tan negativo para algunos territorios por el fracaso de la Reforma Agraria de

la Segunda República. En efecto, la tozudez y la contundencia de los hechos nos han

demostrado a través del Instituto Nacional de Estadística (INE) que existiendo un

20% de paro a nivel nacional (aspecto claramente preocupante) sin embargo, en

Sanlúcar de Barrameda (Cádiz), Jerez y la Línea de la Concepción (municipios de la

misma provincia), el paro supera la cifra del 40% de la población potencialmente

activa. Ahí tenemos un botón de muestra de la continuidad histórica de deficiencia

económica, cultural y tecnológica de un territorio donde se abortó la Reforma Agra-

ria.

15º. Aquí se detalla el papel jugado por la minoría agraria parlamentaria, opuesta

decididamente al proyecto reformista, hostil a la Constitución y gran responsable del

naufragio de la Reforma Agraria. Constituyó, además, un peso considerable en la

creación de los dos bloques antagónicos de la sociedad española, apeló a la Guerra

Civil y contribuyó descaradamente a la creación del movimiento nacional franquista.

X. Bibliografia

1. ARTOLA, Miguel: El Latifundio. Propiedad y explotación, siglos XVIII y XIX. Serie Estu-

dios, SGT del Ministerio de Agricultura. Madrid, 1978.

2. BORRELL MERLÍN, María Dolores, y LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: “Agricultura y socie-

dad en la España de los Austrias”. Vol. I, págs. 301-318, en Homenaje a José Antonio

MARAVALL, Ed. Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS), Madrid, 1985, 520

págs.

3. CARRIÓN, Pascual: “La Reforma Agraria”, en Revista Sociedad de Estudios Políticos,

Sociales y Económicos nº14, Madrid, 1931.

4. CARRIÓN, Pascual: Los Latifundios en España. Ed. Gráficas Reunidas, Madrid, 1932.

5. CARRIÓN, Pascual: La Reforma Agraria de la Segunda República y la situación actual de

la agricultura española. Prólogo de Juan VELARDE FUERTES. Ed. Ariel, Barcelo-

na, 1973.

6. CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA ESPAÑOLA, 1931. Palacio de las Cortes Consti-

tuyentes, a 9 de diciembre de 1931, Madrid, Sucesores de Rivadeneyra, S.A.

7. DIARIO DE SESIONES del Congreso de los Diputados: 14 de julio 1931-9 de septiembre

1932.

LA II REPÚBLICA ESPAÑOLA

89

8. DOS REIS CONDESSO, Fernando: Ordenamento do Territorio. ISCSP, Lisboa, 2005, 949

págs.

9. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro, y miembros del Grupo Agrario del PSOE: Agricultura y Socia-

lismo. Ed. Cuadernos para el Diálogo, S.A. Madrid, 1977, 122 págs.

10. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro:

“Revolución y Contrarrevolución agraria en la Segunda República Española” Tesina

de Licenciatura en Ciencias Sociales Pontificia Gregoriana de Roma, mayo 1972, 120

páginas.

11. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: “Constitución, Reforma Agraria y Guerra Civil en la Segunda

República (La Minoría Agraria 14/04/1931-15/09/1932)”. Tesis Doctoral, Facultad de

Ciencias Políticas y Sociología, Universidad Complutense de Madrid, 20 de julio de

1977, 741 págs. Edición de la UCM, Servicio de reprografía, Madrid, 1983.

12. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: El boicot de la derecha a las reformas de la Segunda Re-

pública. La minoría agraria, el rechazo constitucional y la cuestión de la tierra. Serie

Estudios. Instituto de Estudios agrarios, pesqueros y alimentarios. MAPA, Madrid,

1984, 450 págs.

13. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: “El reformismo agrario de Pascual Carrión”. Revista ANIA

(Asociación Nacional de Ingenieros Agrónomos) nº11. Madrid, 1976.

14. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: “El Socialismo democrático agrario de Lucio Martínez Gil en

el contexto del regeneracionismo y el reformismo”. Estudio Preliminar (págs. 19-42)

en: BORRELL MERLÍN, María Dolores: Lucio Martínez Gil: Representación políti-

ca y liderazgo sindical (FTT-UGT), Alustante 1885-México DF 1957. Ed. Junta de

Comunidades de Castilla-La Mancha, Federación de Trabajadores de la Tierra (UGT)

y Fundación Ramón Rubial-Españoles en el Mundo. Madrid, 2002, 575 páginas.

15. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: “Ordenación del Territorio y Medio Ambiente en la Constitu-

ción de Cádiz de 1812”, en Revista Parlamentaria Iberoamericana nº4, 1988. Publica-

ciones de las Cortes Generales, Madrid, págs. 223-246.

16. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: “Blas Infante: Notario, agrarista y andalucista”, en Rev. de

Derecho Agrario y Alimentario, Segunda Época, Año XXVI, nº 57, julio-diciembre

2010, págs. 165-175.

17. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: Invitación a la Educación Ambiental: Recursos hídricos,

Desarrollo Sostenible y Gestión Compartida. Ed. Asociación Española de Educación

Ambiental. Granada-Madrid, 2011, 36 págs.

18. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro: La Comunidad Europea y la Conservación de la Naturaleza.

Ed. Universidad Complutense de Madrid (UCM) e Instituto Nacional de Conservación

de la Naturaleza (ICONA), Madrid, 1990, 248 págs.

19. LÓPEZ LÓPEZ, Alejandro (Dirección) y BORRELL MERLÍN, María Dolores (Coordi-

nación): Medio Ambiente y Desarrollo Sostenible en los países mediterráneos de la

Unión Europea. Ed. Fundación Biodiversidad-Instituto Universitario de Ciencias

Ambientales (IUCA-UCM). Madrid, 2005, 392 págs.

20. MALEFAKIS, Edward: Reforma Agraria y Revolución Campesina en la España del siglo

XX. Ediciones Ariel, Barcelona, 1971.

ALEJANDRO LÓPEZ LÓPEZ 90

21. PROYECTO DE LEY DE BASES PARA LA REFORMA AGRARIA, Aprobado defini-

tivamente. Palacio de las Cortes, 9 de septiembre de 1932.

22. ROBLEDO, Ricardo: Los Ministros de Agricultura de la Segunda República (1931-1939).

Ed. Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación. Madrid, 2006, 94 págs.

23. SENDER, R.J.: “La matanza que hundió a Azaña”, Diario EL PAÍS, domingo 21 de febre-

ro de 2016, pág. 11, Cuaderno de ideas.

24. SENDER, R.J.: Viaje a la aldea del crimen. 1934. Reeditado por LIBROS del

ASTEROIDE.

25. VELARDE FUERTES, Juan: “La influencia del Krausismo en la política económica

española. El caso de Adolfo ÁLVAREZ BUYLLA”. Conferencia en la Real Acade-

mia de Ciencias Morales y Políticas, Madrid, 2016, págs. 1-24.

Estado, Povo e Território:

Sentido, Implicações, Historicidade

PAULO FERREIRA DA CUNHA *

Algumas vêzes é proveitoso que o nosso exa-

me e as nossas faculdades pensantes se dirijam

e repousem no evidente, no respeitado e no

que está claro como água.

Lima Barreto1

Mais notre rôle n’est pas de répondre. Nous ne

bâtissons pas ici de système, parce que Dieu

nous garde des systémes. Nous constatons un

fait.

Victor Hugo2

Sumário: I. Para uma História Crítica dos Elementos do Estado. II. Do Ele-

mento “Povo”. III. Do Território: um terreno de reflexão interdisciplinar. IV.

Qual o Território de um Estado? Uma questão plena de historicidade.

JURISMAT, Portimão, 2016, n.º 8, pp. 91-112.

* Catedrático de Direito. UAM (Laureate International Universities), bols. Funadesp na Fadisp.

Fundador do IJI, Universidade do Porto, Portugal. Do Comité ad hoc para a Corte Constitucio-

nal Internacional. 1 BARRETO, Lima. Reflexões e Contradições à Margem de um Livro. In Impressões de Leitura.

Prefácio de M. Cavalcanti Proença. São Paulo: Editôra Brasiliense, 1956, p. 79. 2 HUGO, Victor. Prefácio a Cromwell. Ed com cronologia e introdução de Annie Ubersfeld.

Paris: Garnier-Flammarion, 1968, p. 70.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 92

Resumo: Todos conhecem o “dogma trinitário” dos chamados elementos do

Estado. Sempre teem sido apresentadas como sendo povo, território e poder

político, ou expressões análogas. Propomo-nos aqui começar uma indagação

sobre a evolução conceitual e histórica da importância desses elementos,

remetendo um pouco para todo o caráter mítico e de discurso legitimador que

parece também representarem. E detendo-nos especialmente sobre os elemen-

tos “Povo” e “Território”.

Palavras-Chave: Estado, Elementos do Estado, Povo, Território, Poder Polí-

tico.

Abstract: We all know the “trinitarian” dogma of the so-called “state ele-

ments”. They have been always presented as being people, territory and polit-

ical power, or similar expressions. We propose here to begin an inquiry on the

conceptual and historical evolution of the importance of these elements, refer-

ring rather to all the mythical character and legitimizing discourse that they

seem to represent, too. The second and third parts of this article deal with the

State “elements” People and Territory.

Key words: State, State elements, People, Territory, Political Power.

I. Para uma História Crítica dos Elementos do Estado

Em alguns círculos dir-se-ia que já é um mantra,3 ou que produz uma egrégora.

4 Há

um elemento ritualístico na sua invocação, pelo menos. Povo, Território, Poder

político ou expressões afins, sinónimas ou quase. Que estudante de Teoria Geral do

Estado, Ciência Política, Direito Constitucional, os não conhece e recita de cor?

Com o rodar dos tempos, porém, parece que os diversos elementos singulares da

tríade se sucederão na prevalência, na relevância.

3 Embora a noção de mantra (e o seu prestígio) se tenha alargado muito, nomeadamente no

âmbito ocidental. Cf., já classicamente, nesse domínio, MAIN, John, OSB. Christian Medita-

tion. Canadá: The Benedictine Priory of Montreal, 1982. 4 Contudo, v. contra este conceito, ou pelo menos o seu abuso (mesmo em contexto latamente

classificável como esotérico ou afim), in « Influences spirituelles et ´´egregores´, artigo reco-

lhido in GUÉNON. René. Initiation et réalisation spirituelle. Prefácio de Jean Reyor. Paris: Les

Éditions traditionnelles, 1952, p. 53 ss..

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

93

Primeiro terá certamente prevalecido o elemento pessoal. Não será necessário recuar

às hordas primitivas, ou às grandes migrações célticas na Europa Antiga. Lem-

bremo-nos apenas dos vínculos feudais, num período que ainda é pré-estadual (na

medida em que Estado propriamente dito só o teremos na Idade Moderna – apesar de

haver vários autores que o negam, identificando qualquer forma política mais elabo-

rada, a partir por exemplo da Pólis, com Estado5). Esses vínculos eram sobretudo

pessoais.

Por exemplo: mesmo que se considere não ter havido feudalismo propriamente dito

em Portugal,6 mas simples senhorialismo, recorde-se que Afonso Henriques, já rei

soberano de Portugal, era ao mesmo tempo vassalo de seu primo rei de Leão, Afonso

VII, por via de ser senhor de Astorga, território situado em terras leonesas (que já

pertencera ao seu pai, D. Henrique, e fora de novo dado para selar a vassalagem do

português, segundo Alexandre Herculano).

Do mesmo modo, nos estados africanos em que o Estado é fraco, com estruturas

incipientes, funções exíguas e aderência escassa ao imaginário das pessoas, a base da

comunidade política é, naturalmente, pessoal, e, no caso, de base étnica7.

Em Estados com a forma política de reinos em que a base de ligação, o cimento

unitivo, seja sobretudo pessoal (ou se pretenda que o seja, como ainda hoje na Bél-

gica de hoje), o rei tende a ser apresentado no seu próprio título como dos nacionais

desse país: “rei dos belgas” (roi des Belges).

Mas a evolução histórica parece ter sido de uma fase pessoal, em que o elemento

pessoal do Estado avultava, portanto, para uma etapa menos pessoal, e mais territo-

rial: rei de Espanha, de Inglaterra, da Escócia, etc.

No caso de Portugal, em que, a partir da aventura de Ceuta em 1415, o império colo-

nial foi crescendo e abarcava uma multiplicidade de povos de origem, sublinhava-se

já a magnitude do Estado, e o título tradicional era uma enumeração de territórios:

dizia-se em documentos oficias Dom Fulano (nome do rei), pela “Graça de Deus Rei

de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e

5 Cf., v.g., MAAMARI, Adriana Mattar. O Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2014, desde logo

considerando “O Estado na Antiguidade” (p. 13 ss..). Uma útil síntese das várias posições sobre

o surgimentos histórico do Estado e os critérios para que uma sociedade política assim seja

classificada in DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 33.a ed.,

São Paulo: Saraiva, 2016, p. 60 ss.. 6 MERÊA, Paulo. Introdução ao problema do Feudalismo em Portugal : Origens do feudalismo

e caracterização deste regimen. Coimbra : França Amado, 1912. CASTRO, Armando de. Teo-

ria do sistema Feudal e transição para o capitalismo em Portugal. Lisboa: Caminho, 1987. 7 DJALO, Tcherno. Da Identidade à Etnicidade. Lisboa : “Africanologia”, Lisboa, 2009, n.º 1, p.

217.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 94

da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. E porém as

teorias explicativas da História comportam quase sempre algumas fragilidades, por-

que nos inícios da nacionalidade Portuguesa, no séc. XII, não são raros os autores

que reclamam uma importância vital para o povo, e não para a simples vontade polí-

tica do príncipe8 que talhou a independência, ou para as diferenças geográficas que

em nada difeririam do conjunto ibérico.9 Já o clássico Herculano coloca o problema

com saborosa prosa e interessantes conjeturas: a breve trecho ter-se-ia consolidado

uma ideia de nacionalidade, e a palavra “estrangeiro” passou a marcar uma clivagem

irreversível.10

Rousseau teorizou sobre a questão (o que também foi notado por Zippellius), assi-

nalando a diferença de títulos dos reis da antiguidade para os do seu tempo:

Concebe-se como as terras dos particulares, reunidas e contíguas, se

tornam território público, e como o direito de soberania, estendendo-

se dos súditos ao terreno por eles ocupado, se torna ao mesmo tempo

real e pessoal, o que coloca os possuidores numa dependência ainda

maior e faz de suas próprias forças a garantia de sua fidelidade. Essa

vantagem não parece ter sido bem compreendida pelos antigos monar-

cas que, intitulando-se simplesmente rei dos persas, dos citas, dos

macedônios, pareciam considerar-se mais como chefes dos homens

que como senhores do país. Os monarcas de hoje, mais hábeis, cha-

mam-se a si mesmos reis da França, da Espanha, da Inglaterra, etc.

Dominando assim o território, sentem-se mais seguros de dominar os

habitantes.11

Mas depois de Rousseau (que viria a falecer em 1778), o caso francês acabaria por

se revelar um tanto distinto: porque entre 1791-92 e 1830-1848, o chefe do Estado

francês (primeiro, Luís XVI entre 1791 e 1792, período da monarquia constitucional,

e depois Luís-Filipe, antigo duque de Orleães) chamou-se “rei dos franceses” (roi

des français). A ideia desta modificação no título (que fora, evidentemente “rei de

França” (roi de France) anteriormente, era atenuar o poder do monarca, retirando-

lhe qualquer origem de poder de natureza divina, e acentuando o caráter doravante

exclusivamente popular da soberania (uma fórmula mais antiga dizia que o poder

8 HERMANO SARAIVA, José. História Concisa de Portugal. Mem Martins: Europa-América,

1978, p. 38 ss.. 9 OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Breve História de Portugal. Lisboa: Presença, 1995, p. 11.

10 HERCULANO, Alexandre. História de Portugal. Desde o começo da monarquia até o fim do

reinado de Afonso III, tomo II. Ed. Lisboa: Bertrand, 1980, p. 16 ss.. 11

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du Contrat Social, I, 9. Versão online: https://www.passeidireto.

com/arquivo/10990564/rousseau-jean-jaques-o-contrato-social/4 (consultada em 8 de fevereiro

de 2016).

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

95

vinha de Deus pelo povo – per populum omnis potestas a Deo12

–, mas agora vem só

do povo mesmo). Está no cerne dos problemas conceituais (e não só) da “soberania”

o facto de ter sido cunhada para um regime e depois usada para outro. E mesmo

utilizada como bandeira de luta do último contra o primeiro: designadamente, em

França, a soberania, enquanto princípio, foi palavra de ordem da Revolução Fran-

cesa contra a monarquia absoluta.13

Em certo sentido, esta modificação constitucional (pelo menos materialmente cons-

titucional) acabaria por ser um retorno. O Absolutismo, nas suas diferentes facetas14

,

havia concentrado e despersonalizado o poder, retirando qualquer veleidade de que

residisse no povo, nas pessoas, e passando-o para o Estado (representado pelo

monarca, na verdade nele encarnado na sua versão mais dilatada: L’État c’est moi –

“o Estado sou eu”, teria dito Luís XIV). Agora, para o superar, o liberalismo nas-

cente (não confundir com o recente neoliberalismo) volta a centrar o simbolismo do

lugar cimeiro do Estado no Povo. Mas evidentemente que o Absolutismo, com a sua

perspetiva de territorialização do Estado (transitando a tónica do Povo e população

para o território), deixou muitas marcas, que não se podem apagar facilmente. Por

exemplo, deixou o legado da soberania à maneira soberanista, que em grande medi-

da se funda sobre o território, embora esse poder se alargue e transmita a quem está

nele. E por isso é que o território passa em grande medida a conformar a nacio-

nalidade e os direitos, e mesmo no mais íntimo das convicções, e do próprio rei: se

cada rei começa por ditar a religião dos seus súbditos (Cuius regio, eius religio),

ocorre que, para o monarca, acabará por ser natural de Paris (um território) bem

12

Aliás, lema do município de Contagem, em Minas Gerais. 13

Desenvolvendo esta ideia, v.g., BAKER, Keith Michael. “Souveraineté”. In Dictionnaire Cri-

tique de la Révolution Française. Dir. de François Furet / Mona Ozouf. Paris: Flammarion,

1988, p. 888 ss.. 14

Infelizmente, há cada vez mais um maior desconhecimento e confusão sobre épocas e períodos

históricos, movimentos, correntes, estilos, ideologias, grandes divisões, enfim, conceitos estru-

turantes para o conhecimento histórico, político, jurídico (e não só). Tal tem consequências

gravíssimas e chega a afetar estudiosos sérios, mas que se não apercebram das suas deficiên-

cias culturais de base (por assim dizer). Conjuntamente com as dificuldades linguísticas e de

exposição (retóricas) são estas, nas nossas áreas humanísticas e sociais, das principais respon-

sáveis pelo insucesso efetivo (nem sempre académico) de muitas dissertações e teses. As quais

podem mesmo ficar prejudicadas no que têm de bom por este tipo de deficiências. Sobre Abso-

lutismo, nas suas diferentes modalidades, v. MACEDO, Jorge Borges de. Absolutismo, in

“Dicionário de História de Portugal“, dir. de Joel Serrão, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1963,

vol. I, pp. 8-14. Sobre o seu devir, PILLORGET, René. Del Absolutismo a las Revoluciones, in

“História Universal“, vol IX, 2.ª reimp.. Pamplona: EUNSA, 1989. Em geral, BONNEY,

Richard O Absolutismo, trad. port. de Maria do Anjo Figueiredo. Lisboa: Publicações Europa-

América, 1991. Discorrendo sobre os problemas periodológicos e afina, os nossos artigos Retó-

ricas do Iluminismo, Direito e Política, “Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico

moderno”, XLIV (2015), pp. 103-129 e Dividir a História: Da Epistemologia à Política?, in

“História. Revista da FLUP”, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, IV série,

vol. V, 2015, pp. 167-174.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 96

valha uma missa (e uma conversão): Paris vaut bien une messe! Tal teria sido dita,

como se sabe, por Henrique IV, conhecido em França, pela sua tolerância, como “o

bom rei Henrique”, mas tendo acabado por perecer assassinado por um fanático.

Evidentemente que a questão territorial começou por ser perturbada pelos moldes

privatistas do Direito Romano, interrogando-nos nós se a soberania tal como cunha-

da por Jean Bodin não terá uma reminiscência dos velhos poderes de usar, fruir e

abusar (jus utendi, fruendi et abutendi), de uma propriedade plena, plena in re potes-

tas. Não terá sido por acaso que pela Europa fora os reinos se foram retalhando

numa perspetiva patrimonialista do monarca, que os ia deixando aos pedaços em

testamento aos seus descendentes (o que não aconteceu em poucos casos, como o

português). Mas levou tempo e transformação de mentalidades para a passagem da

liderança pessoal à chefia estadual, com base territorial, nem sempre tendo sido um

processo linear.

Cabe perguntar se as transformações do poder sob o impacto das multinacionais, das

agências de notação, dos vetores tecnológicos e económicos globalizadores, dos

novos polos de poder gerados pelas integrações (políticas, jurídicas, económicas)

regionais, etc., terão deslocado ou estarão em vias de deslocar o poder. A primeira

tentação seria pensar que o novo protagonista de entre os elementos do Estado seria

o próprio poder político, e não já nem a população, nem o território. Mas pode ocor-

rer que uma transformação muito mais profunda esteja em curso: a do próprio des-

centramento do poder, que poderá estar a transferir-se dos Estados para entidades

muito menos conhecidas e de modo algum permeáveis ao escutíneo democrático.

Não falamos de sinistras teorias da conspiração, de grupos que na sombra ou na

penumbra maquinariam os destinos do mundo, mas de realidades opacas, mas visí-

veis, de nível financeiro e económico, sobretudo, ou pelo menos na sua ação. Nunca,

como nos tempos atuais de crise mundial persistente, se viu tão claramente visto

como essas infraestruturas do domínio material determinam todos os demais ele-

mentos. E se “o capital não tem pátria”, os Estados podem acabar por ser reminis-

cências mais ou menos decorativas e úteis num mundo globalizado em que o poder

político acaba por ser um simples poder condicionado pelas determinações da eco-

nomia e da finança. Dir-se-á que sempre terá sido assim. Mesmo que o tenha sido,

ao menos os fenómenos da alienação terá poupado muitos à visão da realidade, quiçá

a começar pelos próprios atores políticos, que durante milénios terão vivido na ilu-

são de serem verdadeiros construtores da História.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

97

II. Do Elemento “Povo”

1. Um Estado sem Cidadãos?

É difícil conceber-se um Estado vazio de pessoas.15

A total ausência delas, que

podemos ficcionar por absurdo, levaria a que nem poder político (governo, em sen-

tido lato, Government) existisse. Há uma utopia (sob a forma de “ficção científica”

ou afim, em City16

), na qual parece terem desaparecido os Homens da cena social, e

em que são os cães os protagonistas. Mas certamente aí seriam eles considerados

pessoas. E então sim, finalmente e por uma vez haveria razão no bordão de lingua-

gem que hoje insiste em falar em “pessoa humana”, porque nesse outro caso esta-

ríamos perante “pessoas animais”, “pessoas caninas”. Acabaria então por ter razão a

distinção.

Quando um antigo ministro da Cultura de França como Luc Ferry parece dar a

entender em mais que uma obra que a máquina dos Estados como que anda sozi-

nha,17

havendo, por isso, concluímos nós, uma muito relativa participação da von-

tade humana na marcha dos negócios públicos, periga a dimensão do elemento pes-

soal, como que dando razão às ideias da auto-alimentação de uma estrutura, mais ou

menos monstruosa, em marcha imparável (eventualmente devoradora, eventual-

mente suicida) depois da “morte do Homem” que se teria seguido, segundo alguns

filósofos à também ela catastrófica (embora igualmente talvez “a prazo”) “morte de

Deus”. E do mesmo modo poderemos pensar no alheamento de cada vez mais pes-

soas (sobretudo nos países – e são a esmagadora maioria – em que o voto, a nosso

ver infelizmente, não é obrigatório) da coisa pública, mesmo no singelo gesto de

votar. Já há quem se pergunte (embora creiamos que se trata de uma interrogação

sobretudo retórica e com o fito de nos levar a pensar – e eventualmente a agir) em

que medida este elemento pessoal deve ser o ponto de Arquimedes sobre que con-

truir o poder:

Com elevadas taxas de abstencionismo em praticamente todas as

democracias representativas18

e uma grande descrença dos cidadãos

nos seus governantes e nas instituições de representação política

democrática, é urgente entender com clareza não apenas os pressu-

postos jusfilosóficos da relação entre governantes e governados, como

15

Sobre Estado, Pessoa e Povo, Idem, Ibidem, p. 82 ss.. Sobre Democracia e Povo, Idem, Ibidem,

p. 126 ss.. 16

SIMAK, Clifford D. City. trad. port., A Cidade no Tempo. Lisboa: Europa-América, 1955. 17

Logo no início de FERRY, Luc / CAPELIER, Claude. La plus belle histoire de la Philosophie.

Paris: Robert Laffont, 2014, e já en passant em FERRY, Luc. Aprendre à vivre. Traité de phi-

losophie à l’usage des jeunes générations. Paris: Plon, 2006 (há trad. port. Objectiva). 18

KOCH, Luther Allen. As the World Turns Out: Economic Growth and Voter Turnout from a

Global Perspective. Graduate College of Bowling Green State University, 2007, p. 2.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 98

também as consequências práticas de uma rede de incentivos que têm

levado o modelo para longe dos seus pontos óptimos.19

Perguntando-se mais adiante: “É e/ou deve ser o povo o referencial do poder e da

vontade política?”20

Aparentemente, se o Povo ou outro elemento pessoal não fosse um dos pilares do

Estado (não esqueçamos que, para além das teorizações em tríade “população, poder

e território” ou afins, há quem encare o estado como complexo normativo, ordena-

mento de normas, por exemplo21

), haveria de procurar-se uma outra realidade, exte-

rior, como é óbvio, à própria dimensão estatal. Mas não. Podem efabular-se outras

possibilidades, ao menos em teoria.

Com efeito, não se pode esquecer a provocatória identificação nietzschiana entre

Estado e Povo. Mentindo, o Estado diria, na sua monstruosa e impostora frieza de

gélida hipocrisia: “Ich, der Staat, bin das Volk”22

(“Eu, o Estado, sou o Povo”).

Atente-se, assim, na inversão de entidades: não é o Povo um elemento constitutivo e

requisito do Estado, mas o Estado que se substituiria ao Povo. Um povo ausente,

indiferente, abstencionista no voto ou na participação cívica ou em ambas acaba por

ser substituído por pseudo-povo: por funcionários, pela máquina do Estado, ou por

ativistas (até, em alguns casos, com grupos de lóbi que simulam e induzem pseudo-

participação cidadã, mais ou menos real: por exemplo, fazendo chover cartas na

secretária de um senador nos EUA, assinadas por pessoas existentes ou inexistentes).

E porque se afasta o povo? Porque deixa de ser protagonista? Porque macerado,

cauterizado, cansado de ser objeto de propaganda, mentira, manipulação? Ou porque

sem tempo e sem forças depois de um quotidiano massacrante de luta pela sobrevi-

vência? Ou meramente porque alienado na sociedade do espetáculo, do consumo, do

hedonismo? Ou por partes desiguais, conforme as pessoas, de cada uma destas coi-

sas?

Seja como for, o Povo, ou algum substituto pessoal dele (embora tal seja um empo-

brecimento, desde logo da Democracia), ainda parece ser necessário ao Estado para

a perfeição, ao menos teórica, da sua composição. E trata-se de pessoas singular-

19

FERREIRA DA CUNHA, Ary. Divórcio entre Soberania e Poder. Contributos da Teoria da

Agência aplicados à relação entre governados e governantes. Separata da “Revista da Facul-

dade de Direito da Universidade do Porto”. Ano VIII, 2011, pp. 363-364. 20

Idem, ibidem, p. 364. 21

Cf. esta e outras perspetivas nem sempre muito divulgadas in ZIPPELIUS, Reinhold. Allgemei-

ne Staatslehre. 3.ª ed., Munique: Beck, 1971, trad. port. de António Cabral de Moncada, Teo-

ria Geral do Estado. 2.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 23 ss. máx. p. 29

ss.. 22

NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra. Ein Buch für Alle und Keinen, I., “Vom

neuen Götzen”, Berlim: Walter de Gruyter, ed. de 1963, p. 57.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

99

mente e coletivamente consideradas. Por exemplo, atentemos nesta reflexão, da área

da Teoria Geral do Estado, que é evidentemente vizinha, solidária e dialogante com

a nossa :

Grande ou pequena, no entanto, a população do Estado não é a sim-

ples justaposição de indivíduos. Estes pertencem a várias associações,

como a família, os grupos profissionais, etc. Formam um todo orgâ-

nico, têm os seus interesses e as suas actividades enquadradas dentro

de sociedades de naturezas diversas, não se encontram isolados, sin-

gularizados diante do Estado. Indivíduo e sociedade são termos de um

binómio indestrutível: não é possível conceber um sem o outro.23

Um Estado sem pessoas não pode conceber-se (a menos que façam o seu lugar,

ficcionalmente, utopicamente, cachorros ou robots…). Mas um Estado sem cida-

dãos, embora se possa imaginar (e possamos estar caminhando em alguns casos para

tal situação), não será um Estado em que certamente a maioria das pessoas realmente

gostaria de viver.

2. Nacionalidade: uma relectio brevíssima

Há alguns vetores importantes a considerar no que respeita à componente pessoal do

Estado. O primeiro é a questão da nacionalidade. No fundo, trata-se de enfatizar a

importância da pertença a uma “Nação”, ou da vontade de com ela conviver (ou de

algum modo passar a “pertencer”?).24

A nacionalidade, antes de ser um conceito jurídico, é uma dimensão antropológica,

sociológica (por isso se fala e se procura tanto de ethos nacional,25

especialmente em

23

AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4.ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora

Globo, 2008, pp. 35-36. 24

Sobre Nação e Povo, por todos, MOREIRA, Adriano. Teoria das Relações Internacionais. 3.ª

ed., Coimbra: Almedina, 1999, p. 312 ss.. 25

Para o Brasil, v. obras de perspetivas tão diversas quanto, por exemplo, RIBEIRO, Darcy. O

Povo Brasileiro. 2.ª ed., 20.ª reimp.. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; HOLANDA,

Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 4.ª ed. (1.ª portuguesa). Lisboa: Gradiva, 2000 e a

pequena seleção preciosa O Homem Cordial. São Paulo: Penguin Classics / Companhia das

Letras, 2012; VIANNA, Oliveira. Evolução do Povo Brasileiro. 4.ª ed.. Rio de Janeiro: José

Olímpio, 1956; FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira

sob o Regime Patriarcal. nova ed., Lisboa: Livros do Brasil, 2001; Idem. Interpretação do

Brasil. Aspectos da Formação Social Brasileira como Processo de Amalgamento de Raças e

Culturas. Organização de Omar Ribeiro Thomaz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001;

SALDANHA, Nelson. O Conceito de Nação e a Imagem do Brasil. “Revista Brasileira”, Fase

VII, Janeiro-Fevereiro-Março 2006, ano XII, n.º 46, p. 213 ss.; CASTRO, Therezinha de.

História da Civilização Brasileira. vol. I, Rio de Janeiro / São Paulo, s/d. MARTINS, Wilson.

História da Inteligência Brasileira (1550-1960), 7 vols.. São Paulo: Cultrix, 1976-1979; PAIM,

António. A Filosofia Brasileira. Lisboa: ICALP, 1991; MORAES, Rubens Borba de /

PAULO FERREIRA DA CUNHA 100

épocas de crise), com raízes históricas e espirituais (ou histórico-espirituais, como se

diria, à alemã) profundas. Tem-se insistido sobretudo na relação de pertença (que

tanto pode ser belonging como membership26

) ou de comunidade com um país, uma

nação, um estado... Temos, portanto, um dificilmente definível e analisável vínculo

político e cultural original ou de adoção (porque há quem, sem nenhum laço de san-

gue ou nascimento, se sinta nacional de até nações longínquas, como o cidadão

japonês que se sentia celta…).

Regulado pela lei, o fenómeno encontra-se, pois, baseado em elementos culturais,

lato sensu. Em rigor, não deveria haver nacionalidade de conveniência (por razões

BERRIEN, William (coord.). Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro,

Gráfica Editora Souza, 1949; interessantes visões de estrangeiros são as de SARCINELLA,

Luigi. O Gigante Brasileiro. São Paulo: Editora Alfa Omega, 1998 e LAPOUGE, Gilles. Dic-

tionnaire amoureaux du Brésil. Paris: Plon, 2011. trad. port. de Maria Idalina Ferreira Lopes.

Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil. Barueri, SP: Manole, 2014. E ainda LOURENÇO,

Eduardo. Do Brasil. Fascínio e Miragem. Lisboa: Gradiva, 2015. A lista seria muito vasta…

Para Portugal, nomeadamente, PEREIRA MARQUES, Fernando. Sobre as Causas do Atraso

Nacional. Lisboa: Coisas de Ler, Dezembro de 2010; LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da

Saudade. Psicanálise Mítica do destino Português. Lisboa: Dom Quixote, 1978; PASCOAES,

Teixeira de. Arte de Ser Português, nova ed. com prefácio de Miguel Esteves Cardoso. Lisboa:

Assírio & Alvim, 1991. Mais recentemente, REAL, Miguel. Introdução à Cultura Portuguesa,

com Prefácio de Guilherme D’Oliveira Martins. Lisboa: Planeta, 2011. E o nosso livro Myste-

ria Ivris. Raízes Mitosóficas do Pensamento Jurídico-Político Português. Porto: Legis, 1999.

Para ambos os países, DURAND, Gilbert. Imagens e Reflexos do Imaginário Português.

Prefácio de Lima de Freitas. Lisboa: Hugin, 2000, e o nosso livro Lusofilias. Identidade Portu-

guesa e Relações Internacionais, Porto, Caixotim, 2005 e o nosso artigo: Identidades,

Etnocentrismos e Romance Histórico – Encontros e Desencontros no Brasil Nascente e nas

Raízes de Portugal, in “Videtur”, n.º 25, 2004: http://www.hottopos.com/videtur25/pfc.htm.

Neste âmbito geral se encontram, para realidades de língua castelhana, obras como

MADARIAGA, Salvador de. Presente y Porvenir de Hispanoamérica, Buenos Aires: Sudame-

ricana, Buenos Aires, 1959 ou FRANCO, Dolores. España como preocupación, Barcelona:

Editorial Argos Vergara, 1980 e SUÁREZ, Luis. Lo que el mundo le debe a España. Barcelo-

na: Ariel, 2009. Ou para a compreensão do Japão: NAKAGAWA, Hisayasu. Introduction à la

culture japonaise: essai d’anthropologie réciproque, trad. port. de Estela dos Santos Abreu.

Introdução à Cultura Japonesa. Ensaio de Antropologia Recíproca. São Paulo: Martins Fontes,

2008. Mas uma coisa são tentativas de divulgação histórica, cultural, de costumes, etc.. Outra

coisa são ensaios mais profundos de captar as essências, o ethos, ou mesmo um “sentido” ou

uma “missão” de um povo, uma nação, um país… Evidentemente que há muitos preconceitos

de vária índole nesta questão. Cf., recentemente, GLYKOFRYDI-LEONTSINI, Athanasia. Da-

vid Hume on National Characters and National Self. “Philoso-phia”. Atenas: Academia de

Atenas, vol. 44. 2014, pp. 311-328. Cada país vai forjando, por vezes diferentemente segundo

os regimes políticos, uma narrativa, uma mitologia, do seu ethos nacional. E por vezes mesmo

um ethos transnacional, por exemplo cultural-linguístico. A título de exemplo, recorde-se que

André Malraux considerou, em Niamey, em 1970, “le contenu de la fracophonie dans la

‘culture de la fraternité”, conforme nos informa SALON, Albert. « Fraternité », in Vocabulaire

critique des relations culturelles internationales. p. 68. 26

Discutindo a possível tradução portuguesa de “membership”, v. WALZER, Michael. Spheres of

Justice. Basic Books, 1983. Trad. port. de Nuno Valadas. As Esferas da Justiça. Em Defesa do

Pluralismo e da Igualdade. Lisboa: Presença, 1999, p. 46, nota do tradutor.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

101

profissionais, para se jogar no clube de futebol de certo país, ou para fugir a impos-

tos no seu, etc.), mas apenas por algum laço (desde logo parentesco, mas também

parentesco espiritual, de alma).

Há assim Nacionalidades de vários tipos: desde logo a originária ou primária e, por

contraposição a ela, a nacionalidade secundária ou adquirida (por naturalização...).

Os temas da nacionalidade, hospitalidade, xenofobia, racismo, migrações e refugia-

dos estão na ordem do dia. E são problemas com dimensão filosófico-política e filo-

sófico-jurídica.27

E para grande surpresa (e escândalo) dos que, como nós, acreditam

na fraternidade humana universal, e julgavam que alguns preconceitos estavam em

grande medida ultrapassados, sobretudo depois do advento do Cristianismo, do

Século das Luzes, da Revolução Francesa e das Democracias, temos de reconhecer a

nossa ingenuidade e que voltam a galope muitas teias de aranha (e revanchismos

sem complexos e sem piedade) e certamente vultuosos e pouco confessáveis interes-

ses a coberto de distinções superficiais (e absurdas) na grande família humana. São

realmente temas que, associados à crise económica, social, etc., acabam por arreba-

tar demagogicamente alguns pobres contra outros pobres que nasceram de um outro

lado (normalmente convencional, até simplesmente convencionado) de uma imagi-

nária barricada: desempregados contra estrangeiros, pobres contra judeus, ocidentais

contra árabes e muçulmanos (que obviamente se não identificam sempre). O bode

expiatório internacional, ou como quinta coluna nacional é uma das debilidades e

máculas recorrentes, como, além de outros o mostrou Umberto Eco,28

aliás por vezes

com uma ironia a que cada vez menos pessoas têm acesso, por deficiência formativa,

educativa, numa civilização de fanerismo e facilidade intelectual.

Ninguém ponderado e culto jamais pensaria que ser estrangeiro se confunde com ser

turista. Além de complexas questões culturais e psicológicas do próprio e da sua

interação social, naturalmente o Direito não poderia deixar de interessar-se pelas

relações jurídicas e pelo próprio estatuto jurídico dos nacionais de outros Estados

num país, e sobre a própria questão da atribuição da nacionalidade, que tudo parece

preceder.29

27

Cf., v.g., WALZER, Michael. Spheres of Justice. Basic Books, 1983. Trad. port. de Nuno

Valadas. As Esferas da Justiça. Em Defesa do Pluralismo e da Igualdade, p. 46 ss.. 28

ECO, Umberto. Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais. trad. port., Lisboa: Gradiva,

2011, e, em ficção, Idem. O Cemitério de Praga, trad. port., Lisboa: Gradiva, 2011. Sobre o

ressurgir atual desse argumento estigmatizador, o nosso artigos Os Perigosos Sábios do Sião, I

e II, “As Artes entre as Letras”, Porto, n.º 70 e n.º 72 (2012). 29

Sobre a condição jurídica do estrangeiro e nacionalidade no Brasil, cf. recentemente

CARVALHO RAMOS, André de (org.). Direito Internacional Privado. Questões Controverti-

das. Belo Horizonte: Arraes, 2016, p. 150 ss..

PAULO FERREIRA DA CUNHA 102

Os critérios de atribuição (e reconhecimento) de nacionalidade diferem consoante os

países, e centram-se sobretudo nos chamados direito territorial, do solo (ius soli), ou

no direito do sangue (ius sanguinis), privilegiando respetivamente o local do nasci-

mento, ou a nacionalidade dos ascendentes diretos: Ius soli – sobretudo em países de

imigração e Ius sanguinis – sobretudo em países de emigração.

Evidentemente que não é normal a preferência exclusiva por um dos critérios, mas

apenas a preponderância de um deles.

O Direito dos estrangeiros é direito interno de cada país, e não Direito Internacional

Público (embora possa ser tratado de muitas perspetivas e incluído sistematicamente

em várias categorias30

). Mas tem atinências com ele, e interseções, nomeadamente

quando dois países reciprocamente convencionam, por tratado, tratamento especial

para os seus nacionais no outro país. E ainda aqui, em geral, por motivos de qualquer

afinidade cultural ou histórica… É o que ocorre entre o Brasil e Portugal, por exem-

plo. No caso da União Europeia, por exemplo, a questão é ainda mais complexa,

num paralelogramo de conceitos e forças que vão do esboroamento de pelo menos

algumas soberanias nacionais, à pressão migratória, ao pânico terrorista e conse-

quente xenofobia ao menos latente, de um lado, e, de outro, realidades e/ou aspira-

ções como a cidadania europeia, a não discriminação, a livre circulação, etc.31

Ocorrerá perguntar, por vezes se “há estrangeiros mais iguais que outros?”. A dife-

renciação de tratamento verifica-se em várias ordens jurídicas (e pode ser estudada

no Direito Comparado, Comparação de Direitos e áreas afins), por exemplo, em

Portugal ou em Espanha, em que alguns estrangeiros, por razões de afinidade lin-

guística e cultural, são tratados de forma mais favorável em alguns casos. E podem

com bastante facilidade adquirir as respetivas nacionalidades, por exemplo. No Bra-

sil, também os Portugueses têm um Estatuto particular, em grande medida optativo

(podendo ou não fazer uso dos direitos que potencialmente têm).32

No âmbito do Direito dos Estrangeiros, motivados por problemas jurídicos que

impossibilitam de algum modo permanência num Estado, há mecanismos centrípetos

30

Cf., por exemplo, o tratamento do tema in TIBURCIO, Carmen / BARROSO, Luís Roberto.

Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 287 ss.. 31

Cf. PATAUT, Étienne. La Nationalité en déclin. Paris: Odile Jacob, 2014. 32

Para bem se compreender o sistema de direito dos estrangeiros no Brasil há muitos normativos

a ter em consideração. Uns constitucionais e outros infraconstitucionais. E alguns, naturalmen-

te, de fonte convencional (tratados, em geral). Vejamos alguns: Art. 12 Constituição Federal

cura dos brasileiros natos. V. Emenda n. 3, de 1994; Estatuto do estrangeiro, Lei 6 815, de 19.8.

980. Art. 5 da Constituição Federal; Refugiados – Lei 9 474, de 22.7.1997. Há contudo cargos

privativos de brasileiros natos, como é natural: Constituição Federal, art. 12, parágrafo 13. Para

mais desenvolvimentos, v.g. a obra coletiva de FREITAS, Vladimir Passos de (coord.). Comen-

tários ao Estatuto do Estrangeiro e Opção de Nacionalidade. Campinas, SP: Millennium,

2006.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

103

e centrífugos regulados pelo Direito. Podem ter maior ou menos “pathos” social, e

ser usados de formas diferentes, conforme os países. Uma análise sociológica da

questão (e dos problemas conexos) pode lançar diversa luz sobre alguns institutos.33

De todo o modo, não deixa de ser interessante que os capítulos sobre o Povo em

manuais e tratados de Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Direito Inter-

nacional Público não terão mudado muito ao longo dos tempos. Contudo, novos

horizontes se vão rasgando, sobretudo na consideração das Pessoas como sujeitos de

Direito internacional, além do reconhecimento do grande peso de discurso legitima-

dor das clássicas teorizações sobre os elementos do Estado.34

III. Do Território: um terreno de reflexão interdisciplinar

1. Território em Interdisciplinaridade

Como se sabe (até à exaustão), a clássica Teoria Geral do Estado considera como

elementos do Estado o Povo, o poder político (ou soberania, para alguns) e o territó-

rio. Aparentemente, este último tópico não colocaria questões académicas de maior

polémica, sendo que é até por vezes taxativamente enunciado nas constituições

nacionais. Contudo, sabe-se que não só hoje como historicamente boa parte dos

conflitos mundiais são disputas por território. Será que a uma certa placidez teórica

corresponderá um agonismo na prática? Tentemos agora algum recuo de perspetiva

relativamente ao assunto, sem deixar de fazer um breve balanço normativo do tema.

Os etólogos ou etologistas incluem entre os traços essenciais comuns aos homens e

aos animais uma espécie de “instituto” (grosso modo) de territorialidade. A ideia terá

passado já de algum modo para o senso comum, se é que não ocorreu de algum

modo o contrário (de uma vox populi se cria depois ciência), não o sabemos. Somos

seres de espaço, que precisam de espaço, e que determinam fronteiras, mesmo na

simples aproximação entre pessoas (dependendo do contexto, das culturas, e da

intimidade entre os agentes, como é óbvio). Numa sociedade muito confundida no

que se pode ou não pode fazer (em grande medida por falta de educação familiar que

a escola não pode colmatar), quiçá mesmo com traços já de anomia, está de novo até

a recuperar-se a ideia de limites, em vários aspetos, até o simples espaço entre as

pessoas (nos aeroportos, já há anúncios institucionais para em certos países se ter

33

É o caso do estudo do açoreano BRILHANTE, Miguel. The Social Representations of the

Deportee. Lisboa: Salamandra, 2001. Seria interessante alargar com mais bibliografia o espetro

das representações sobre o problema. É um campo de análise muito interessante, a requerer

várias perspetivas, sociológicas e outras... 34

Cf., por todos, FERREIRA DA CUNHA. Nova Teoria do Estado. Prefácio de Paulo Bonavides.

São Paulo: Malheiros, 2013.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 104

cuidado com demasiadas efusões de afeto, cordialidade, ou camaradagem impli-

cando excessiva aproximação física).35

Que sentido terá hoje o preceito bíblico “Não

mudes os marcos do teu próximo, que os antigos fixaram na tua herança, na terra que

o Senhor, teu Deus, te dá para a possuíres.”?36

E com tudo isto, entretanto, é curioso como muitas fronteiras caem... nomeadamente

tal ocorreu na União Europeia.

Poderia inicialmente pensar-se que o menos polémico dos elementos da tríade mítica

dos elementos do Estado seria o elemento territorial, o território, mas afinal é um

assunto que pode levantar muitas questões… Além de ter implicações de monta no

xadrez internacional.

Basta olhar um mapa mundi para se verificar o peso da dimensão territorial na pró-

pria imagem que dos países se faz (conta-se que os Portugueses só foram convidados

a sair da Etiópia depois de os padres jesuítas, ao ensinarem aí Geografia, revelaram o

segredo inconfessável do colonizador: a distância a que ficava e a dimensão do terri-

tório que ocupava na Europa).

Além de que o virar simplesmente o mapa ao contrário propicia toda uma diferente

visão do mundo. E uma outra cosmovisão, certamente (Weltanschauung).

O mesmo olhar para um planisfério ou um globo terrestre permitirá ainda verificar

um dado muito importante: a vizinhança, elemento vital na geopolítica, que tem uma

dimensão multidimensional37

e não meramente estratégica, embora o seja clássica e

primacialmente. Fica clara, pelo simples olhar da representação geográfica do Mun-

do, a existência a função de amortecedor de conflitos dos chamados “estados-

tampão”, por exemplo… E nunca esqueçamos o título do grande geógrafo Yves

Lacoste: “A Geografia, isso serve antes de mais para fazer a guerra”.38

A territorialidade (ou dimensão ou mesmo, pura e simplesmente, “existência” terri-

torial) tem sido um ponto fundamental para o entendimento do Estado, dos Estados.

35

Cf., v.g., GRUEN, Anselm / ROBBEN, Ramona. Grenzen setzen – Grezen achten. 3.a ed.,

Freiburg: Herder, 2005, trad. port. de Lorena Richter. Estabelecer Limites. Respeitar Limites.

6.a ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 36

Deut. XIX, 14. 37

Veja-se, por exemplo, e desde logo, a relação da História Diplomática com a Geopolítica,

MACEDO, Jorge Borges de. História Diplomática Portuguesa. Constantes e Linhas de Força.

Estudo de Geopolítica. Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, s/d. Mas também estudos

como CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1946, nova ed., no

Rio de Janeiro: Gryphus, 1992 (a obra foi Prémio José Veríssimo da Academia Brasileira de

Letras). 38

LACOSTE, Yves. La géographique, ça sert d'abord à faire la guerre, reed., Paris: La Décou-

verte, 2012.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

105

Do Estado se diz ser um fenómeno essencialmente espacial (relativo ao espaço) –

atesta-o Maurice Hauriou.39

Também, por exemplo, Chales de Visscher chama a

atenção para que o significado grandemente simbólico do espaço territorial leva a

que frequentemente se identifique mesmo Estado e território, fronteiras e sobera-

nia.40

Quem não entendeu já essa identificação frequente no discurso dos políticos

ou da comunicação social?

Contudo, há quem negue o caráter geográfico da noção de território. Precisamos do

maior cuidado na interpretação destas teorizações, porque os ideoletos em presença

parecem diversos. Não estão todos a falar exatamente da mesma coisa. Assim,

podemos ler em Celso D. de Albuquerque Mello:

O Estado tem como um dos seus elementos o território. O território é

onde o Estado exerce a sua soberania, dentro dos limites estabelecidos

pelo Direito Internacional… a noção de território não é geográfica,

mas jurídica, tendo em vista que ele é o domínio de validade da ordem

jurídica de um determinado Estado soberano. (grifámos).41

Mas pode certamente dizer-se que há um movimento pendular na consideração da

relação entre território e Estado (e forças e movimentações internacionais). Ora vai

prevalecendo o territorialismo, ora o juridismo. Assim, por exemplo, em tempos em

que já se ouvem rufar ainda que ao longe tambores de guerra, Sandro Mendonça

(aludindo a uma obra de Tim Marshall42

) afirma:

O argumento é que a geografia modula as forças das relações entre os

povos, favorece uns acontecimentos em vez de outros, acelera o passo

da história numas áreas em vez de outras.43

Apesar de as vicissitudes políticas da existência de um Estado poderem fazer perigar

ou mesmo desaparecer esse território das mãos de um poder político. Mesmo o

poder político pode desaparecer, em tempo de anarquia.

E por isso há quem pense que o mais perene elemento do Estado seria o Povo (v.

Francisco Rezek44

). O Estado Islâmico, por exemplo, parece estar a investir na cria-

39

Apud ZARKA, Jean-Claude. Droit international public. Paris: Ellipses, 2011. p. 33. 40

VISSCHER, Charles de. Théories et réalités en droit international public. Paris: Pedone, 1970,

p. 220. 41

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro:

Renovar, 1992, vol. II, p. 795. 42

MARSHALL. Tim. Prisoners of Geography: Ten Maps that tell you everything you need to

know about Global Politics. Londres: Elliot & Thompson, 2015. 43

MENDONÇA, Sandro. Real Geographik. In “UP”, novembro de 2015, p. 130.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 106

ção de um povo cosmopolita45

... transcendendo assim um território que se projeta

sobre o território de outros Estados...

Mas não se esqueça nunca que há mais que isso. Há como que um princípio da con-

tinuidade do Estado, mesmo em caso de severas limitações demográficas, territoriais

e mesmo dificuldades de exercício do poder político. É aliás este aspeto um dos

grandes argumentos para a prevalência do Direito Internacional Público.46

Valerá certamente ainda ponderar o erudito e belo ensaio de Arthur J. Almeida

Diniz, “Território: O Espaço privilegiado do paradigma da dominação”.47

A relação do território com o sagrado não é dos menores aspetos deste interessante

estudo. Atente-se neste trecho do referido autor:

O espaço integra também o imaginário jurídico, provindo este de uma

noção de sagrado. Inicialmente, relatam os historiadores, não havia

nem o tempo nem o espaço dos homens, porque tudo pertencia aos

deuses. Mircea Eliade descreve todas as coisas como que possuindo

um duplo aspecto. Há um céu visível e um céu invisível. A nossa ter-

ra, isto é, nosso espaço, corresponde a uma terra celeste. O templo,

lugar sagrado por excelência, é um protótipo celeste (…) A ciência do

epaço, isto é, a geografia, é sobretudo uma projeção antropomórfica.

(…) O Direito de guerra entre os antigos era regulamentado por uma

Teologia. As palavras, para os antigos, possuíam um significado

mágico e sobretudo designavam um ato de posse, consequentemente,

influenciaram definitivamente a Geografia.48

Outro aspeto relevante sublinhado pelo autor é a dimensão económica do território, e

naturalmente das fronteiras.49

A dimensão histórico-simbólica não pode deixar de ser convocada aqui, e não por

simples erudição. Estes saberes esquecidos são todavia profundamente formativos,

ajudando-nos a compreender as raízes, os arquétipos e até os mistérios dos nossos

44

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. Curso Elementar. 15.a ed., revista e atuali-

zada, 3.a tiragem, São Paulo: Saraiva, 2015, p. 199 ss.. 45

BYMANN, Daniel. ISIS goes global. «Foreign Affairs», março / abril 2016, pp. 76-85. 46

V. CANÇADO TRINDADE, António Augusto. O Direito Internacional em um Mundo em

Transformação. Rio de Janeiro / São Paulo: Renovar, 2002, p. 1045. 47

ALMEIDA-DINIZ, Arthur J. Almeida Diniz, “Território: O Espaço privilegiado do paradigma

da dominação”. In Novos Paradigmas em Direito Internacional Público. Porto Alegre: SAFE,

1995, p. 139 ss.. 48

Idem, ibidem, pp. 139-141. 49

Idem, ibidem, p. 145.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

107

atuais problemas, que continuam a ser muito territoriais e territorialistas... sobretudo

quando se chega aos limites... Et pour cause.

Do mesmo modo que os pactos são sagrados desde tempos imemoriais (em Roma, a

deusa Fides residia na palma da mão dos contraentes que celebravam os seus pactos

com um aperto de mão), também divindades tutelares presidem e protegem os limi-

tes. Janus, deus das portas da Cidade, olha afora e adentro, com seu rosto bifronte. E

se os gregos tinham regras para as distâncias e as medidas para plantações, poços,

etc., os romanos instituíram mesmo a festa sagrada da Terminália, expressão que

deriva das pedras, elas também sagradas, que marcavam as divisas, os termos, e

tinham por nome termini.50

O limes por seu turno, era também nome para as frontei-

ras do Império. Para além dele, reinava a barbárie, expressão que os gregos haviam

cunhado para os que não falavam a sua língua. Ou seja, com quem se não podia (ao

menos facilmente) comunicar, que é palavra irmã de comungar, estar em comunhão.

Importa ainda recordar e compreender simbolicamente como os Romanos, ao cria-

rem uma cidade nova (e para isso os áuspices a consagravam), traçavam a estrutura

viária e urbanística fundamentais da mesma com dois eixos cruzados e perpendicula-

res (numa cruz), o cardus maximus e o decumanus maximus. O primeiro no sentido

norte-sul e o segundo no sentido este-oeste. A expressão “pontos cardeais” tem cer-

tamente esta origem... E cardeais são as quatro virtudes clássicas: Justiça, Prudência,

Temperança e Fortaleza, que também estruturam e como que endireitam a vida das

pessoas.51

Os Romanos são ainda convocados nas suas conceções territorialistas a propósito do

terrorismo.52

Parece estranho, mas não é tanto assim, se pensarmos que toda esta

perspetiva se contextualiza na cosmovisão romana.

Vejamos. Em Pomponio, e naturalmente no Digesto de Justiniano, encontra-se a

ideia de jus terrendi, que parece começar por ser um direito de inspirar ao criminoso

um “terror salutar” (naturalmente para a sociedade) para que ele, atemorizado, res-

peite a lei. Mas há mais que isso: há uma ligação desse terror com a terra e o territó-

rio. Para os Romanos, a utilização dessa estratégia de terror é um mecanismo de

impor e assegurar a própria “soberania”, contra os intrusos, que se repelem do terri-

tório cujas leis não querem respeitar. Haveria assim no Jus terrendi uma dimensão

estatal, mas naturalmente também ética: para defesa da comunidade e das suas leis,

impõe-se um terror que expulse os fora-da-lei. Para Philippe-Joseph Salazar, o Cali-

fado ou estado Islâmico está a reeditar a tese e o método romanos, e só se compreen-

50

GRUEN, Anselm / ROBBEN, Ramona. Estabelecer Limites. Respeitar Limites. p. 36. 51

FERREIRA DA CUNHA, Paulo. O Tímpano das Virtudes. Coimbra: Almedina, 2004. 52

Inspiramo-nos aqui em SALAZAR, Philippe-Joseph. Le Communiqué du Califat a une dimen-

sion cachée. “Philosophie magazine”, Paris, dezembro 2015 / janeiro 216, n. 95, p. 51.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 108

deria o seu terrorismo à luz dessa doutrina estadualista e ética, agora com vista à

islamização do mundo.

IV. Qual o Território de um Estado? Uma questão plena de historicidade

Existem no Direito Constitucional Comparado (na verdade, comparando as diferen-

tes constituições) diversas formas constitucionais de enunciar os limites territoriais,

ou de proclamar as possessões:

A) Enunciação de todos os territórios que compõem um Estado (por exemplo,

na Constituição Portuguesa de 1933).

B) Declaração remetendo para a factualidade e a história (por exemplo, na

Constituição da República Portuguesa de 1976).

Não parece entretanto que, por exemplo, os hinos nacionais (ou outras expressões

simbólicas, como as bandeiras) possam valer como elemento de reivindicação terri-

torial.

Há várias divisões possíveis, diferentes classificações a considerar. Toda a malha

terminológico-conceitual cria, ao fim de contas, uma cosmovisão sobre o território e

os territórios.

Por exemplo, o território de um Estado pode ser contínuo ou descontínuo (Alasca

separado dos EUA pelo Canadá, p. ex.) e da mais variada dimensão (do mais peque-

no, como o Vaticano ao maior, como a Rússia). De vez em quando, em alguns países

grandes projeta-se sobre o mapa do seu território os mapas de outros, mais pequenos.

Ou países de metrópole de dimensões mais pequenas como que se alargam simboli-

camente ao território dos seus vizinhos projetando sobre o mapa os contornos das

suas colónias de além-mar...

O mar passa a ter lugar nesta situação. O território compreende o espaço terrestre, os

espaços aquáticos internos (sempre haverá um ou outro), o espaço aéreo e o espaço

marítimo no caso dos estados junto ao mar. A Convenção das Nações Unidas sobre

o direito do mar, de 10.XII. 1982, estabeleceu 12 milhas marítimas (c. 22 km). Mas

existem outras dimensões pelas quais o território de um Estado pode avançar para

além da terra... Aliás, motivo para grandes controvérsias.

Há vários conceitos a ter em atenção, com regulamentação até pela Convenção de

Montego Bay, de 1982, que entrou en vigor em 16 de novembro de1984. De entre

eles, avultam a Plataforma Continental e a Zona Económica Exclusiva.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

109

A plataforma continental é formada, obviamente no caso de estados costeiros, “(…)

pelo leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territo-

rial e toda a extensão do prolongamento natural do seu território terrestre (…)”,

segundo o texto da convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Art. 76.º,

n. 1). Mas não há como ver todo o pormenor que ao assunto é consagrado pela Con-

venção (arts. 76.º e 77.º).

A plataforma continental é normalmente apresentada como uma conquista dos esta-

dos costeiros, que em geral se considera ter tido como precursor o Presidente Tru-

man, dos EUA. Assim como, na Europa, foi Portugal o primeiro país a legislar sobre

a matéria.53

Ainda hoje, aliás, a atenção portuguesa às questões marítimas parece

permanecer, depois de ratificada em 3 de novembro de 1997 a referida convenção. E

não deixa de haver divergências sobre a extensão territorial, evidentemente. Por

exemplo, entre Portugal e Espanha, a propósito sobretudo das ilhas Selvagens, onde

um Presidente da República chegou a pernoitar, num gesto que poderá eventual-

mente ser interpretado como de simbolismo especial de posse territorial.54

Segundo o Art. 55.º da Convenção referida, que regula o Regime jurídico específico

da zona económica exclusiva, “A zona económica exclusiva é uma zona situada

além do mar territorial e a este adjacente, sujeita ao regime jurídico específico esta-

belecido na presente parte, segundo o qual os direitos e a jurisdição do Estado cos-

teiro e os direitos e liberdades dos demais Estados são regidos pelas disposições

pertinentes da presente Convenção”, o que não auxilia, evidentemente, na delimita-

ção concreta da mesma. O que é feito pelo art. 57.º: “A zona económica exclusiva

não se estenderá além de 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais

se mede a largura do mar territorial.”.

A partir do seu Art. 17.º regula a passagem inofensiva pelo mar territorial, a partir do

Art. 27.º estabelece as normas aplicáveis a navios mercantis e navios de Estado utili-

zados para fins comerciais, seguidas (logo no Art. 29.º e seguintes) das normas apli-

cáveis a navios de guerra e a outros navios de Estado utilizados para fins não comer-

ciais, dedicando-se à passagem em trânsito a partir do Art.º 37.º, etc. A partir do Art.

90.º estipula-se sobre nacionalidade, estatuto dos navios, etc. O art. 99.º proíbe o

transporte de escravos e a partir do 100.º cura-se da pirataria. É, na verdade, um

grande Código de Direito do Mar…

53

Lei 2080 / 1956, de 21 de março. 54

Cf., por todos, CÂNDIDO, António Manuel de Carvalho Coelho. A Convenção de Montego

Bay e Portugal – Delimitação das Zonas Marítimas da Madeira. IESM Boletim Ensino / Inves-

tigação, n.º 12, maio 2012, ed online: http://www.iesm.pt/cisdi/boletim/Artigos/art_7.pdf (con-

sultado a 10 de fevereiro de 2016).

PAULO FERREIRA DA CUNHA 110

Também já se podem ver mapas não oficiais na Internet em que os Estados são apre-

sentados (normalmente um único Estado, do autor ou divulgador do mapa) com-

preendendo a “parte de mar” mais vasta que lhe competiria pela aplicação mais

generosa das regras nesta matéria.

Já o espaço aéreo não tem limite superior. Mas, segundo a Convenção de Chicago de

1944, é meramente o espaço atmosférico (afinal uma projeção do espaço terrestre

respetivo). Já o espaço extra-atmosférico tem outras regras... O regime internacional

de regimes e aeronaves encontra-se pormenorizadamente descrito na Convenção de

Montego Bay. As questões relativas a aeronaves, aproveitam da analogia com os

navios. Tendo começado por ser alvo da Convenção de Paris de 1919, tiveram

depois marco importante na Convenção de Chicago de 1944.

De há muito que a utopia se põe problemas sobre questões territoriais no espaço

aéreo.55

Ora a utopia e a literatura de ficção científica em muitos casos antecipam

problemas que um dia virão a realmente ocorrer.56

Há elementos que mudam e elementos que permanecem, nas andanças territoriais,

que por vezes também o são de gentes. Um texto que valeria ponderar e ler em sin-

tonia com o Direito Internacional Público é esta passagem de Italo Calvino:

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no

mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhe-

cer, incomunicáveis entre si. Às vezes os nomes dos habitantes per-

manecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos ros-

tos; mas os deuses que vivem com os nommes e nos solos foram

embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estra-

nhos. É inútil querer saber se estes serão melhores do que os antigos,

dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que

os velhos cartões-postais não representam a Manólia do passado mas

uma outra cidade que por acaso também se chamava Manólia.57

Talvez por esta ordem de ideias nunca nenhuma nova situação ou enquadramento

político de um território permitisse a permanência da entidade por assim dizer essen-

cial (espiritual, telúrica, eventualmente “nacional”) anterior. É uma perspetiva que,

com essas implicações, seria muito radical. Mas nela pode pairar ao menos um

55

É o caso do texto ALLAIS, Alphonse. Un point de Droit aéro-foncier. "Le Sourrire", n. 12,

julho de 1902. 56

Cf., v.g., FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-

Constitucional nas Utopias Políticas. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra, Studia

Ivridica, Coimbra Editora, 1996. 57

CALVINO, Italo. “As Cidades e a Memória”. As Cidades Invisíveis. trad. de Diogo Mainardi

de Le Città invisibile. 9.a reimp., São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 30-31.

ESTADO, POVO E TERRITÓRIO

111

fumus de razão. Já houve mesmo quem dissesse, por exemplo, que o Portugal restau-

rado em 1640 já não seria o mesmo que entrara antes em (forçada) união com Espa-

nha, em 1580. Teria o mesmo nome, mas seria já outra realidade. Matéria para mais

meditações…

Por forma pacífica, os Estados podem alterar a sua composição territorial, designa-

damente por retificação de fronteiras, cessão, transferência convencional, etc.

Há alguns exemplos quase “de escola”. Em 1821, o México aceita o território de

futuros cinco estados que viriam efemeramente no meio tempo a formar a Federação

Centro-Americana: Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua,

após a sua separação de Espanha. Em 1867, os EUA compram o Alasca à Rússia.

Em 1903, o Brasil, através de uma já qualificada de “operação complexa”,58

compra

o Acre à Bolívia.

Devemos comparar estas situações com outras, também clássicas, como a sucessão

de estados (fusão ou agregação vs. secessão ou desmembramento). Colocam-se mui-

tas questões nem sempre pacíficas. Imagine-se, por exemplo, que a Catalunha se

separava (por forma consensual, ou menos consensual) da Coroa espanhola. Como

ficavam as suas obrigações internacionais (nomeadamente a “dívida”?) E como seria

a questão da sua ligação (ou não) com a União Europeia?

Por forma violenta, pode também ocorrer alteração das fronteiras de um Estado:

como por conquista ou situação análoga. O que é contrário aos grandes princípios

hodiernos do Direito Internacional Público. Exemplificando, também com casos

clássicos: Em 1867, a Alsácia-Lorena passa da França à Alemanha. Em 1919, volta

esse território para a França, em consequência da derrota germânica na I Guerra

Mundial.

Evidentemente que a questão territorial tem um papel único no imaginário simbólico

coletivo dos Estados, e a sua tradução em elementos de uma “religião civil” ou

“cívica”, sobretudo em tempos de conflito (armado ou “guerra fria”) pode ser deve-

ras importante. Para isso contribuirá, em muitos casos, a propaganda, o marketing

político, e mesmo a criação poética, musical, teatral, etc.59

Como se sabe, não é de agora que se têm vindo a acumular as manifestações, mais

ou menos solenes, de condenação e proscrição da intervenção armada, e mais ainda

para anexação territorial ou forma de resolução de conflitos. Recorde-se o Pacto

58

A expressão é de REZEK, Francisco. Op. cit.. 59

ANTUNES, Acácio. O Estudante Asaciano (Apud http://www.blocosonline.com.br/literatura/

poesia/pi01/pi210548.htm). Deve atentar-se, evidentemente, que o poema é fruto das paixões

da época.

PAULO FERREIRA DA CUNHA 112

Briand-Kellog, de proscrição da guerra, já em 1928, ou a doutrina Stimson, de não

reconhecimento internacional de situações fundadas na força, de 1932.60

E evidente-

mente, a Carta da ONU, nomeadamente no seu

Art. 2, parágrafo 4, da Carta das Nações Unidas:

Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de

recorrer à ameaça ou uso da força, quer seja contra a integridade ter-

ritorial ou a independência política de um Estado (...).

Continua a ser esta a grande estrela que ilumina o caminho para a Paz, sempre tão

distante, e por isso sempre tão mais necessária.

Como ocorre com outros elementos do Estado, também o território coloca hoje pro-

blemas mesmo em sede teórica61

. Mas cremos que só se poderá compreender bem a

questão, tirando os olhos do chão dos solos pátrios, e olhando mais em volta. Desde

logo num alargamento de vistas epistemológicas a outros territórios do saber.

Em conclusão, pode tranquilamente afirmar-se que nenhum dos tão clássicos ele-

mentos do Estado está isento de problemas, de polémicas. Mas não deveria realmen-

te ser assim? Alguma vez o próprio Estado (tout court) foi uma realidade pacífica e

plácida, pronto a ser consumido teoricamente, num discurso legitimador soporífero?

Mais ainda se poriam e põem questões sobre o elemento poder político ou soberania,

mas isso será tema para outras pesquisas.

60

V. v.g. BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 1997. 61

Para mais desenvolvimentos, cf. FERREIRA DA CUNHA. Paulo. Nova Teoria do Estado.

Prefácio de Paulo Bonavides, Apresentação de Carmela Gruene. São Paulo: Malheiros, 2013.

Política de Solos. Administração Pública do Teritório e

seus Instrumentos de Gestão Física

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO *

Sumário: 1.Política geral de solos, ordenamento do território e urbanismo.-

2.Programação e planeamento para a administração territorial.-2.1.Conside-

rações iniciais sobre ordenamento do território.- 2.2.Sistema de gestão territo-

rial. Âmbitos de ordenamento. Invalidade de normas e sanções jurídicas. Ga-

rantias dos particulares.-3.Conteúdos dos diferentes planos de ordenamento

territorial. Normas de programação e de planeamento de natureza ambiental.-

4.Articulação relacional dos conteúdos dos IGT 5. Princípio da estabilidade e

da reformabilidade dos planos 6.Situaçoes de suspensão de IGT e de procedi-

mentos. Regime de recurso a medidas cautelares no âmbito do ordenamento

do território 7. Avaliação da adequação e concretização dos planos 8.Am-

biente, programação geral e planeamento.

Resumo: Este texto trata do enquadramento da política geral de solos, orde-

namento do território e urbanismo, expondo a programação e o planeamento

para a administração territorial. Começa por considerações iniciais sobre o

ordenamento do território, e seguidamente analisa o nosso sistema de gestão

territorial, os âmbitos de ordenamento, apresenta a teoria invalidade de

normas e as diferentes sanções jurídicas, e ainda as garantias dos particulares

face ao dispositivo legal. Realça os conteúdos dos diferentes planos de orde-

namento territorial e especialmente as normas de programação e de planea-

JURISMAT, Portimão, 2016, n.º 8, pp. 113-152.

* Doutor em Administração Pública.

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 114

mento de natureza ambiental, efectivando a devida articulação relacional dos

conteúdos dos IGT e referindo a importância dos princípio da estabilidade e

da reformabilidade dos planos, além de, no fim, tratar as situações de suspen-

são de IGT e dos procedimentos, do regime de recurso a medidas cautelares

no âmbito do ordenamento do território, da avaliação da adequação e concre-

tização dos planos e da problemática relacional do ambiente, programação

geral e planeamento.

Palavras-chave: política, solos, planeamento, gestão, ilegalidade.

Abstract: This text deals with the framework of the general policy of land,

land use planning and urbanism, exposing planning and planning for territorial

administration. It begins with initial considerations on spatial planning, and

then analyzes our territorial management system, the planning scopes,

presents the theory invalidity of norms and the different legal sanctions, as

well as the guarantees of individuals against the legal provision. It emphasizes

the contents of the different territorial planning plans and, in particular, the

planning and environmental planning rules, effecting the proper relational

articulation of the contents of the IGT and referring to the importance of the

principle of stability and the reformability of the plans. , Dealing with

situations of suspension of IGT and procedures, the system of recourse to

precautionary measures in the area of spatial planning, assessment of

adequacy and implementation of plans and relational environmental problems,

general programming and planning.

Key words: politics, land, planning, management, illegality.

1. Política geral de solos, ordenamento do território e urbanismo

O objectivo deste texto é efectivar uma análise sucinta do conteúdo da lei das bases

gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo e do

novo regime da programação e planeamento territorial, constante do Decreto-Lei

n.º80/2015, de 14 de maio.

Começamos por traçar o enquadramento geral efectivado na nova “lei dos solos”

(LPSOTU), Lei n.º31/2014, de 30 de Maio, que, independentemente das soluções

concretas resultantes dos extensos contributos externos, pretende integrar a matéria

tradicional da Lei de Solos (anterior Decreto-Lei n.º 794/76, de 5 de Novembro) e a

matéria referente à Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de

POLÍTICA DE SOLOS

115

Urbanismo (Lei n.º48/98, de 11 de agosto, alterada pela Lei n.º54/2007, de 31 de

agosto).1

A nova LPSOTU parte da avaliação da situação nacional existente e vem redefinir

os instrumentos para “disciplinar, reconduzir e induzir a correta distribuição do solo

rústico e urbano e a execução eficiente dos planos territoriais”, com uma afirmada

preocupação de evitar o “aumento excessivo e irracional dos perímetros urbanos”, e

de melhor garantir a “salvaguarda dos valores naturais”, apostando na promoção

mais eficaz da “exploração dos recursos florestais e agrícolas”, e num melhor

“aproveitamento dos recursos do solo urbano”. Em geral, procura recentrar o direito

do urbanismo, não na extensão quantitativa, de operações urbanizadoras, loteadoras

e construtivas, mas na necessária reabilitação dos prédios existentes e regeneração

de áreas do território carentes disso.

1 A nova Lei de Bases da Política de Solos, do Ordenamento do Território e do Urbanismo (não

aplicável ao ordenamento e à gestão do espaço marítimo nacional, que conta com legislação

específica, mas sem prejuízo da coerência, articulação e compatibilização da política de solos e

de ordenamento do território com a política do ordenamento e da gestão do espaço marítimo

nacional), pretende propiciar uma nova reforma dos diplomas que regulam todo o planeamento

do território, o urbanismo e edificação, ou seja, os Decretos-Lei n.º380/99 e n.º555/99, cujos

regimes já foram alterados em conformidade (tendo o primeiro sido mesmo revogado e publi-

cado o Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio). Esta lei de bases tem, portanto, como novidade

proceder à integração num só diploma das matérias respeitantes a todas as políticas nestas

áreas, lançando assim as bases para uma “nova fase” da afirmação destas políticas. Está em

causa, na justificação governamental, transformar o solo a assumir como “factor decisivo de

competitividade, associando positivamente a conservação e o aproveitamento eficiente dos

recursos, a qualidade ambiental e a criação de boas condições para o desenvolvimento econó-

mico e social”, reforçando a integração de políticas no território, a eficácia dos mecanismos de

execução dos planos, a sustentabilidade económica e financeira dos processos de desenvolvi-

mento urbano, simplificando as condições de realização das operações urbanísticas e promo-

vendo uma maior equidade e coesão social e territorial.

Esta LBPSOTU vem consagrar um direito geral “ao ordenamento do território”, numa postura

semelhante ao texto constitucional em relação ao ambiente (“a um ordenamento do território

racional, proporcional e equilibrado), através de um intervencionismo público em matéria de

solos, ordenamento do território e urbanismo com respeito pelos direitos e interesses legal-

mente protegidos (art.º5.º).

Os fins da LBPSOTU são: a)- no domínio dos solos em geral: o aproveitamento racional e efi-

ciente do solo, com a a devida valorização das suas potencialidades, quer em relação às áreas

agrícolas, florestais e silvo-pastoris quer à orla costeira, margens dos rios e albufeiras, quer ao

património natural, cultural e paisagístico (garantindo adequadamente as suas funções ambien-

tais, económicas, sociais e culturais); b)- no âmbito da economia situada: o desenvolvimento

sustentável (compatível com a economia territorial) e avanço para a correção das assimetrias

regionais1; c)- No plano do ordenamento físico e urbanístico: a reabilitação dos centros urbanos

e dos aglomerados rurais, a requalificação de áreas degradadas e a reconversão de áreas urbanas

de génese ilegal; a limitação da expansão urbana e da edificação dispersa; d)- no campo especí-

fico do ambiente: a potenciação da resiliência do território e o combate à contaminação dos

solos (face aos fatores agressivos do ambiente e da saúde humana).

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 116

Em causa está, pois, a intenção de uma reorientação de políticas públicas para pro-

mover sobretudo a reabilitação, a regeneração e a utilização adequada do solo

rústico e urbano.

Alarga o âmbito das definições de reabilitação (como forma de intervenção territo-

rial integrada que visa a valorização do suporte físico de um território) e de regene-

ração urbanas (como forma de intervenção territorial integrada combinando acções

de reabilitação com obras de demolição e de construção nova, associando formas

adequadas de revitalização económica, social e cultural e de reforço da coesão terri-

torial).

Articula o ordenamento do território com os instrumentos fiscais como objectivo de

tornar a tributação mais justa e adequada ao objectivo de aproveitamento dos recur-

sos do solo. Visa reforçar os mecanismos de perequação (prevendo-se a transferên-

cia de aproveitamento como forma de flexibilização das finalidades de planeamento

territorial, promovendo a justa distribuição dos encargos e benefícios).

Quanto ao estatuto jurídico do solo, a classificação do solo faz-se em duas classes:

solo urbano e solo rústico, conforme as suas situações e finalidades atribuídas no

planeamento físico. Como solo urbano podem ser classificados os terrenos indispen-

sáveis para a urbanização e edificação, constituídos por espaços total ou parcial-

mente edificados, infra-estruturados e dotados de equipamentos colectivos. Como

rústicos, os restantes (desde logo, os destinados ao aproveitamento agrícola, pecuá-

rio, florestal, tal como à conservação, valorização e exploração de recursos naturais,

de recursos geológicos ou de recursos energéticos, e ainda os que se destinem a

espaços naturais, culturais, de turismo, recreio e lazer e protecção de riscos).

A passagem de solo rústico como urbano traduz uma classificação e reclassificação

de planeamento, sujeita ao princípio da necessidade, devidamente comprovado no

plano da indispensabilidade e adequação para o desenvolvimento económico-social

(segundo o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial), em termos

quantitativos e qualitativos, face à execução e avaliação do plano. Em causa, está

disciplinar os processos de criação de solo urbano, associando a aquisição de facul-

dades urbanísticas ao cumprimento dos deveres associados no âmbito da execução

dos planos territoriais. E, “dentro do princípio do existente”, dos direitos adquiridos

e mesmo sem prejuízo das legítimas expectativas dos proprietários, evitar ou con-

trolar os fenómenos de edificação dispersa.

As entidades públicas podem proceder à venda forçada de prédios urbanos, se os

proprietários não cumprirem os ónus e deveres a que estão sujeitos por plano territo-

rial, quando haja razoes de utilidade pública que o justifique, sem prejuízo do res-

peito pelo princípio da garantia patrimonial (justa indemnização), e pelo princípio da

proporcionalidade e outros constitucionais aplicáveis.

POLÍTICA DE SOLOS

117

Reforça-se a cooperação intermunicipal para viabilizar uma adequada articulação

entre os diversos municípios. Admite-se que os municípios vizinhos se associem

para definirem, de modo coordenado, quer a estratégia de desenvolvimento e o

modelo territorial sub-regional, quer as opções de localização e gestão de equipa-

mentos públicos e infra-estruturas, aprovando conjuntamente programas e planos

territoriais de âmbito intermunicipal ou municipal. As novas orientações políticas

são definidas e desenvolvida por meio de instrumentos territoriais, materializados

em programas. Estes estabelecem o quadro estratégico de desenvolvimento territo-

rial e as directrizes a considerar em cada nível de planeamento. E são consignadas

em planos com as opções concretas de planeamento definidoras do uso do solo.

Promove-se a flexibilidade do sistema de gestão territorial e a concertação de inte-

resses na gestão do território, articulando a integração das orientações dos programas

de âmbito nacional e regional nos planos territoriais de âmbito intermunicipal e

municipal, sem prejuízo da possibilidade de ratificação, pelo Governo, a pedido dos

municípios ou associações de municípios, de planos territoriais que impliquem a

alteração de programas sectoriais ou regionais preexistentes.

Promove-se a simplificação, a segurança jurídica e a protecção da confiança. De

modo a simplificar o sistema de gestão territorial, estabelece-se que os programas

apenas vinculam as entidades públicas (sem prejuízo do “aviso” alterativo dado urbi

et orbi para as alterações nos IGT sub-ordenados, que com eles se deverão obrigato-

riamente conformar ou, pelo menos, compatibilizar) e os planos territoriais de âmbi-

to intermunicipal e municipal vinculam as entidades públicas e, directa e ime-

diatamente, os particulares. Os programas territoriais não podem estabelecer usos do

solo, o que traduz maior responsabilidade das autarquias locais em matéria de pla-

neamento.

Os planos territoriais vinculam também os particulares e neles são consagrados

parâmetros e indicadores de acompanhamento, avaliação e monitorização, que

permitam o controlo sistemático e estatístico da respetiva estratégia, dos seus objec-

tivos e da sua execução. Reforça-se a importância do plano director municipal e, na

medida em que exista, do plano director intermunicipal, ambos agora instrumentos

de planeamento vinculativos dos particulares. Nesta medida, o particular interessado

só fica obrigado a consultar um único plano para conhecer da viabilidade legal de

uma qualquer operação urbanística (PIMOT, PMOT).

Em geral, consagra-se o dever de os municípios integrarem nos planos territoriais as

normas com impacte no uso do solo, resultantes de programas de âmbito nacional ou

regional, restrições de utilidade pública ou servidões administrativas e os conteúdos

dos planos especiais de ordenamento do território. Tratando-se da protecção de inte-

resses de âmbito nacional e regional, estabelecem-se mecanismos de salvaguarda

adequados, com respeito pela autonomia local em matéria de planeamento urbanísti-

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 118

co. A valorização do território torna-se um factor de competitividade nacional,

visando a coesão territorial e a eficiência da gestão territorial, agilizando o fun-

cionamento do sistema de planeamento e garantindo a sua plena operatividade.

Em simultâneo com o desenvolvimento dos mecanismos de execução dos planos

territoriais e das formas de contratualização, e na linha das orientações da UE e da

legislação mais recente, visa-se potenciar a capacidade de resposta, a segurança e a

previsibilidade dos processos de urbanização e edificação, prevendo condições para

a adopção de procedimentos de controlo prévio expeditos, sempre que as condições

de realização da operação urbanística se encontrem suficientemente definidas, tendo

por contrapartida o reforço dos mecanismos de responsabilização dos técnicos e de

controlo sucessivo, como resulta já do regime jurídico da urbanização e edificação.

Criam-se novos mecanismos de regularização de operações urbanísticas, para des-

bloquear as imensas e negativas situações de impasse, com prejuízo para o interesse

público urbanístico e ambiental, aliás desproporcionadamente gravosas para os par-

ticulares. Em geral, estas orientações implicaram ainda a revisão do regime jurídico

dos instrumentos de gestão territorial2 e do regime jurídico da urbanização e edifica-

ção,3 e a elaboração de um novo regime jurídico aplicável ao registo cadastral (para

harmonizar o fundamental sistema de registo da propriedade e promover a conclusão

do levantamento cadastral do território nacional).

2. Programação e planeamento para a administração territorial

2.1. Considerações iniciais sobre ordenamento do território

Na linha da orientação da política de gestão física traçada pelas novas bases gerais

de política pública de solos (que o legislador afirmou como uma “reforma estrutu-

rante, tanto do ponto de vista dos conteúdos, no sentido de definir um conjunto de

normas relativas à disciplina do uso do solo, como do ponto do vista do seu sistema

jurídico, com o objectivo de traduzir uma visão conjunta do sistema de planeamento

e dos instrumentos de política de solos, entendidos como os instrumentos por exce-

lência de execução dos planos territoriais), constante da recente Lei n.º 31/2014, de

30 de maio, veio exigir adaptações ao regime dos IGT, constante do DL 380/99. De

22 de Setembro, tendo o legislador optado por criar um novo diploma, o DL n.º

80/2015, de 14 de maio.

2 Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio

3 O Decreto-Lei n.º136/2014, de 9.9, com rectificação n.º 46-A/2014, de 10.11, e depois o Decre-

to-Lei n.º214-G/2015, de 2.10, vieram alterar o diploma que se mantém vigente, o Decreto-Lei

n.º555/99, de 16.12.

POLÍTICA DE SOLOS

119

A inovação maior passa pela distinção regimental entre programas e planos, com

clara diferenciação material entre programas veiculando as intervenções de natureza

estratégica da administração central, dirigidas às AP (devem ser integradas no plano

director municipal ou intermunicipal e aí adaptadas as orientações de desenvolvi-

mento territorial decorrentes dos programas de âmbito nacional, regional e sub-

regional) e não inaplicável aos particulares, desde logo não só os instrumentos secto-

riais da área do ambiente como os próprios instrumentos de planeamento especial de

directa natureza ambiental que deixam de ser plurisubjectivos e portanto já não vin-

culam os particulares, mesmo supletivamente, nem prevalecem operativamente

sobre os PIMOT e PMOT (“todas as normas relativas à ocupação, uso e transforma-

ção dos solos, para poderem ser impostas aos particulares, devem estar previstas no

mesmo regulamento”), só estes legitimando intervenções da administração, designa-

damente no âmbito da gestão local, face ao DL n.º555/99, de 16 de Dezembro, de

carácter dispositivo e vinculativo dos particulares.

No entanto, o plano director municipal mantém-se como um “instrumento de defini-

ção da estratégia municipal ou intermunicipal, estabelecendo o quadro estratégico

de desenvolvimento territorial ao nível local ou sub-regional” e os “planos territo-

riais passam a ser os únicos instrumentos passíveis de determinar a classificação e

qualificação do uso do solo, bem como a respectiva execução e programação”.

Inova-se com a possibilidade prevista na lei de bases de as entidades municipais e

intermunicipais, “por vontade conjunta dos municípios constituintes destas, e de

municípios vizinhos, se associarem para definirem, de modo coordenado, a estraté-

gia de desenvolvimento e o modelo territorial, as opções de localização e de gestão

de equipamentos públicos e infra-estruturas, aprovando conjuntamente programas

intermunicipais de ordenamento e desenvolvimento, planos directores, planos de

urbanização ou planos de pormenor”.

Institui-se a obrigatoriedade da demonstração da sustentabilidade económica e

financeira da transformação do solo rústico em urbano, através de indicadores

demográficos e dos níveis de oferta e procura do solo urbano. A reclassificação do

solo como urbano implica a fixação, por via contratual, dos encargos urbanísticos

da operação e do respetivo prazo de execução e a redistribuição de benefícios e

encargos. o princípio da sustentabilidade financeira e o princípio da incorporação

dos custos. E demonstrada a viabilidade económica na transformação do solo rústico

em solo urbano, o direito de construir apenas se adquire com a aprovação da pro-

gramação e com o cumprimento dos ónus urbanísticos fixados no contrato. Desta-

que-se a matéria sobre reserva de solo e a venda e o arrendamento forçado de pré-

dios urbanos, cujos proprietários não cumpram os ónus e os deveres a que estão

obrigados por um plano territorial

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 120

Clarifica-se o âmbito das relações entre os diversos níveis de planeamento, estabele-

cendo-se um “princípio de prevalência cronológica uniforme”, com obrigatoriedade

de actualização e adaptação dos instrumentos anteriores.

É criado um novo organismo, a Comissão Nacional do Território, que sucede nas

competências da extinta Comissão Nacional de Reserva Ecológica Nacional e que

passa a articular e avaliar a política nacional do ordenamento do território, pro-

pondo a aprovação de normas técnicas no âmbito do planeamento, emitindo parece-

res e recomendações sobre todas as questões relativas ao ordenamento do território e

à articulação com os instrumentos de ordenamento do espaço marítimo.4

No âmbito da defesa dos valores ambientais, no que se reporta à defesa da reserva

ecológica nacional, Comissão Nacional do Território5 tem um papel central, desde a

elaboração e actualização das orientações estratégicas de âmbito nacional desta

Reserva, emissão de recomendações técnicas e guias de apoio adequados ao exercí-

cio das competências pelas entidades responsáveis nesta matéria, dar parecer sobre a

aplicação dos critérios da sua delimitação e em caso de divergência entre as entida-

des com competências na aprovação de delimitação da REN a nível municipal, ela-

borar o enquadramento geral para a celebração dos contratos de parceria entre as

comissões de coordenação e desenvolvimento regional e os municípios, gestão da

informação sobre a REN, nomeadamente publicitando-a no seu sítio na Internet. Os

pareceres que devam ser solicitados à Comissão Nacional do Território, nos casos

previstos no presente decreto-lei, são vinculativos para as entidades responsáveis

pela elaboração dos programas.

Este regime dos IGT mantém-se, naturalmente, numa linha de orientação que vem

do passado, com o ambiente a aparecer no ordenamento do território como um bem

primordial a acautelar e a justificá-lo. Com efeito, aos programas e planos territo-

riais, que devem conter os indicadores qualitativos e quantitativos para a sua elabo-

ração e para efeitos de avaliação, cabe explicitar claramente nos fundamentos das

suas previsões, indicações e determinações, os elementos (com base no conheci-

mento sistematicamente adquirido) referentes às características físicas, morfológi-

cas e ecológicas do território, aos recursos naturais e do património arquitectónico

e arqueológico, às transformações ambientais, económicas, sociais e culturais, além

naturalmente dos referentes à dinâmica demográfica natural e migratória e às assi-

metrias regionais e condições de acesso às infra-estruturas, aos equipamentos, aos

4 A Comissão Nacional do Território coordena a execução da política nacional do ordenamento

do território, sustentada em indicadores qualitativos e quantitativos dos instrumentos de gestão

territorial, restrições de utilidade pública e servidões administrativas, funcionando na depen-

dência do membro do Governo responsável pela área do ordenamento do território (…): artigos

184.º a 186.º. 5 (artigo 184.º).

POLÍTICA DE SOLOS

121

serviços e às funções urbanas (artigo 4.º). Eles devem identificar os recursos e valo-

res naturais e os sistemas indispensáveis à utilização sustentável do território, e esta-

belecer as medidas e os limiares mínimos e máximos de utilização, que possam

garantir a renovação e a valorização do património natural, assim como proceder à

identificação de recursos e valores naturais com relevância estratégica para a sus-

tentabilidade ambiental e a solidariedade inter-geracional, designadamente no que

se reporta à orla costeira e zonas ribeirinhas, albufeiras de águas públicas, áreas

protegidas e zonas únicas que as integram, rede hidrográfica e outros recursos

territoriais relevantes para a conservação da natureza e da biodiversidade.

Em geral, logo os programas territoriais devem definir os princípios e apontam as

directrizes que concretizam as orientações políticas relativas à protecção e à valori-

zação dos recursos e valores naturais

Entre os valores a proteger, destacam-se directamente os ambientais, desde os recur-

sos e valores naturais e sistemas indispensáveis à utilização sustentável do território

(com medidas e limiares mínimos e máximos de utilização, que garantem a renova-

ção e valorização do património natural) e que tenham relevância estratégica para a

sustentabilidade ambiental e a solidariedade intergeracional (rede hidrográfica, zonas

ribeirinhas e estuários, albufeiras de águas públicas, orla costeira, áreas protegidas e

zonas únicas que integram, em geral recursos territoriais relevantes para a conserva-

ção da natureza e da biodiversidade), impondo-se a definição dos princípios e direc-

trizes que concretizam orientações políticas relativas à protecção e à valorização

destes recursos e valores naturais, parâmetros urbanísticos de ocupação e de utiliza-

ção do solo adequados à sua salvaguarda e valorização e construção de regimes de

salvaguarda, determinados por critérios de protecção e valorização dos sistemas e

valores naturais, por forma a compatibilizá-los com a fruição pelas populações (arti-

go 12.º).

No que concerne à estrutura ecológica dos territórios, impõe-se a identificação das

áreas, valores e sistemas fundamentais para a protecção e valorização ambiental dos

espaços rústicos e urbanos, designadamente as áreas de reserva ecológica e as redes

de protecção e valorização ambiental, regionais e municipais, que incluem as áreas

de risco de desequilíbrio ambiental, a definição nos diferentes programas, designa-

damente os sectoriais relevantes, de princípios, directrizes e medidas que concreti-

zem as orientações políticas relativas às áreas de protecção e valorização ambiental

de modo a garantir a salvaguarda e valorização dos ecossistemas e o estabelecimento

(planos intermunicipais e municipais estabelecer, no quadro definido pelos instru-

mentos de gestão territorial supra-ordenadores, cuja eficácia condicione o seu con-

teúdo) dos parâmetros e condições de ocupação e de utilização do solo, de modo a

assegurar a compatibilização das funções de protecção, regulação e enquadramento

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 122

com os usos produtivos, recreio e lazer e bem-estar das populações.6 Impõe medidas

indispensáveis à protecção e à valorização do património arquitectónico, arqueoló-

gico e paisagístico (parâmetros urbanísticos aplicáveis e delimitação de zonas de

protecção, acautelando o uso dos espaços envolventes7).

No que se reporta a áreas de exploração de recursos energéticos e geológicos, devem

ser delimitadas e regulamentadas de modo a minimizar os impactes ambientais e a

compatibilização de usos.8 E, mesmo no âmbito da defesa do mundo rural, apesar

dos objectivos serem directamente económicos, manda-se que se identificam as

áreas afectas a usos agrícolas e florestais, designadamente as áreas de reserva agrí-

cola, de obras de aproveitamento hidroagrícola e de regime florestal, impondo-se

que uma utilização diversa possa apenas ter carácter excepcional, ao não ser admi-

tida quando não for comprovadamente necessária face a outros valores públicos com

relativa primazia.9

Em conclusão, à função pública do ordenamento do território cabe a realização efi-

caz da protecção do ambiente através do planeamento em geral, que deve identificar

(para além das áreas afectas à defesa nacional, segurança e protecção civil e das

redes de acessibilidades, de infra-estruturas e de equipamentos colectivos), os recur-

sos e valores naturais, as áreas agrícolas e florestais, a estrutura ecológica, o

património arquitectónicos e arqueológico, o sistema urbano e a localização e dis-

tribuição das actividades económicas, em ordem ao estabelecimento das medidas

básicas e dos limiares de utilização que garantam a renovação e valorização do

património natural.

2.2. Sistema de gestão territorial. Âmbitos de ordenamento. Invalidade de nor-

mas e sanções jurídicas. Garantias dos particulares

O “sistema de gestão territorial”, em que assenta a política de ordenamento do terri-

tório e de urbanismo, é organizado em três âmbitos de interacção coordenada,10

através de programas e planos de ordenamento do território.

O âmbito nacional, constituído pelo programa nacional da política de ordenamento

do território, programas sectoriais e programas especiais, todos eles com fortes preo-

cupações e implicações em matéria ambiental.

6 Artigo 16.º.

7 Artigo 17.º

8 Artigo 15.º.

9 Artigo 14.º.

10 Artigo 2.º.

POLÍTICA DE SOLOS

123

Há uma linha de programas, os especiais, que se dedica dominantemente à proble-

mática ambiental. Os programas especiais, elaborados pela administração central,

embora hoje tenham perdido a sua característica de aplicabilidade directa aos parti-

culares, visam directamente a prossecução de objectivos considerados indispensáveis

à tutela de interesses públicos e de recursos de relevância nacional com repercussão

territorial, estabelecendo, exclusivamente, regimes de salvaguarda de recursos e

valores naturais.

Têm como objecto quatro áreas territoriais de especial sensibilidade ambiental,

devendo visar salvaguardar (com base em determinados por critérios de protecção e

de valorização) os sistemas e valores naturais, para poder compatibilizá-los com a

fruição pelas populações: a orla costeira (POOC), as áreas protegidas (POAP), as

albufeiras de águas públicas (POAAP) e os estuários (POE), embora se considerem

também como tal os planos de ordenamento dos parques arqueológicos (POPA)11

.

O âmbito regional é concretizado através dos Programas Regionais de Ordenamento

do Território (PROT).

No âmbito local, o de exercício intermunicipal abrange programas intermunicipais,

planos diretores intermunicipais, planos de urbanização intermunicipais e planos de

pormenor intermunicipais. No âmbito municipal temos os Planos Municipais de

Ordenamento do Território, que compreendem os Planos Diretores Municipais

(PDM), os Planos de Urbanização (PU) e os Planos de Pormenor (PP).

Os planos intermunicipais ou os planos municipais estabelecem, no quadro definido

pelos programas e pelos planos territoriais cuja eficácia condicione o seu conteúdo,

os parâmetros urbanísticos de ocupação e de utilização do solo adequados à salva-

guarda e à valorização dos recursos e valores naturais.

Em geral, quanto às matérias reguladas pela actual legislação, refira-se que as nor-

mas que a orientam podem agregar-se em grandes princípios, regimes normativos e

regulação de instrumentos, que se mantêm e se passam a citar:

a)-a definição do regime de coordenação dos âmbitos nacional, regional e muni-

cipal do sistema;

b)- o regime de elaboração, aprovação, execução e avaliação dos instrumentos

de gestão territorial;

c)-o estabelecimento dos instrumentos operacionais necessários à programação

da execução dos planos;

d)- o regime geral de uso do solo e a regulamentação da política de solos;

e)- regulamentação dos instrumentos de transformação da estrutura fundiária;

11

Vide Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro, Decreto-Lei n.º 131/2002, de 11 de maio.

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 124

f)- os mecanismos de perequação compensatória, realizadores do princípio da

igualdade, ou seja, técnicas de compensação de benefícios e encargos entre pro-

prietários afectados pela execução dos planos municipais.

Quanto à definição do regime de coordenação destes âmbitos do sistema, a legisla-

ção efectiva a definição do regime aplicável aos diferentes instrumentos de gestão

territorial, criados ou reconduzidos ao sistema por força da lei de bases dos solos, e

a revisão dos regimes dos instrumentos já existentes, atribuindo novo valor aos PIM

e ampliando os instrumentos que cabem nesta categoria resultante da colaboração

intermunicipal.

Quanto à defesa da legalidade, sanções jurídicas e à garantística graciosa e conten-

ciosa dos particulares, importa dizer que, em termos gerais, em face da intervenção

programadora e planificadora da Administração, são reconhecidas aos interessados,

todas as garantias gerais consagradas no Código do Procedimento Administrativo e

no regime de participação procedimental,12

nomeadamente o direito de acção popu-

lar, assim como direito de apresentação de queixa por ilegalidade, quer ao Provedor

de Justiça, quer ao Ministério Público, e os direitos processuais nos tribunais com-

petentes.

No âmbito dos instrumentos de ordenamento do território que possam ter implica-

ções directas para os particulares é, ainda, reconhecido o direito de promoverem a

sua impugnação directa, por ilegalidade ofensiva de direitos e interesses legalmente

protegidos.

E o cumprimento das normas dos planos territoriais intermunicipais e municipais

ficam sujeitas à fiscalização das câmaras municipais territorialmente competentes e

de outras entidades estaduais e regionais legalmente competentes para o efeito.13

Neste aspecto, importa destacar que as acções de inspecção e em geral a fiscalização

(no cumprimento geral do dever de vigilância ou pontualmente, em função das quei-

xas e denúncias) das normas de gestão das áreas abrangidas pelos vários programas

ambientais de natureza especial (PEOT), que decorrem dos regulamentos relaciona-

dos com programas especiais de ordenamento do território, que são ambientais,14

12

Artigo 7.°. 13

Artigo 131.º. 14

N.º 3 e 4 do artigo 44.º. Nomeadamente, as relativas à circulação de pessoas, veículos ou ani-

mais, à prática de actividades desportivas ou a quaisquer comportamentos susceptíveis de afec-

tar ou comprometer os recursos ou valores naturais a salvaguardar podem ser desenvolvidas em

regulamento próprio (nas situações e nos termos que o programa admitir), sujeito a discussão

pública (no prazo de 30 dias a contar da data da publicação deste, sendo publicitado no seu sítio

na Internet e no dos municípios abrangidos) e aprovado pela entidade responsável pela elabora-

ção desse programa.

POLÍTICA DE SOLOS

125

cabe às entidades que legalmente são competentes em matéria de protecção e salva-

guarda de recursos e valores naturais.

A isto, importa juntar quer o regime de embargo e demolição15

quer o das contra-

ordenações.

Com efeito, sem prejuízo da coima aplicável e das atribuições de outras entidades,

pode ser determinado o embargo de trabalhos ou a demolição de obras em várias

situações irregulares,16

desde a violação dos planos intermunicipais e municipais

(pelo presidente da câmara municipal), até aos casos em que esteja em causa a pros-

secução de objectivos de interesse nacional ou regional (inspector-geral da agricul-

tura, do mar, do ambiente e do ordenamento do território ou presidente da comissão

de coordenação e desenvolvimento regional territorialmente competente, respecti-

vamente). Sendo certo que a continuação dos trabalhos embargados constitui um

crime de desobediência.17

No plano da vinculatividade dos planos, só os planos municipais de ordenamento do

território e os planos especiais de ordenamento do território vinculam não só as

entidades públicas, como também, directa e imediatamente, os particulares18

, pois os

outros só valerão indirectamente para estes, face às suas orientações, na medida em

que estejam transpostas para os PMOT ou PEOT.

Os programas territoriais vinculam as entidades públicas. Só indirectamente, após

transcrição em planos, virão a vincular nas suas orientações. Ou seja, apenas na

medida em que as suas normas estejam transpostas para os PIMOT e PMOT.

Já os planos territoriais vinculam não só as entidades públicas como também, directa

e imediatamente, os particulares. Sem prejuízo de esta norma impositiva do DL

n.º80/2015 não prejudicar a vinculação directa e imediata dos particulares relativa-

mente às normas de intervenção sobre a ocupação e utilização dos espaços flores-

tais.

15

Artigo 157.º RJIGT: “A demolição de edifícios deve ser autorizada: a) Quando for necessária

para a execução de plano de urbanização ou plano de pormenor; b) Quando for integrada em

operação de reabilitação urbana, prevista no quadro de uma unidade de execução ou de plano

intermunicipal ou de plano municipal; c) Quando os edifícios careçam de condições de segu-

rança ou de salubridade indispensáveis ao fim a que se destinam e a respectiva beneficiação ou

reparação for técnica ou economicamente inviável; d) Quando as características arquitectónicas

dos edifícios ou a sua integração urbanística revelem falta de qualidade ou desadequação.” 16

Artigo 132.º. 17

Alínea b), n.º 1, artigo 348.º do Código Penal; artigo 133.º RJIGT.) 18

Artigo 3º, n.º2.

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 126

Portanto, quanto à sua vinculação jurídica, o programa nacional da política de orde-

namento do território, os programas sectoriais com incidência territorial, os progra-

mas regionais mas, agora também, os programas especiais vinculam apenas as enti-

dades públicas,19

que estão obrigados a transcrevê-los para os planos territoriais,

enquanto só as normas do planos podem ser invocadas face aos particulares como

fundamento para a viabilização ou não das suas operações nos solos.

Ou seja, as normas que, em função da sua incidência territorial urbanística, condicio-

nem a ocupação, uso e transformação do solo, constantes de programas territoriais,

em nenhum caso têm primazia sobre os planos, devendo, para o efeito da sua apli-

cabilidade aos particulares, ser obrigatoriamente integradas nos planos territo-

riais.20

Com efeito, só os actos praticados em violação de uma norma de um plano de âmbi-

to intermunicipal ou municipal aplicável são inválidos (nulos21

), sendo-lhes aplicá-

vel o regime jurídico da invalidade da pertinente legislação sobre e urbanização e

edificação22

).

Quanto à invalidade das normas dos planos e programas,23

elas são nulas se viola-

rem qualquer programa ou plano territorial com o qual devessem ser compatíveis ou

conformes. Em geral, as orientações e as normas dos programas e dos planos territo-

riais que extravasem o âmbito material são nulas, tal como o são as normas de regu-

lamentos do sistema de IGT que desrespeitem as normas legais ou outras regula-

mentares com que devam conformar-se ou com elas sejam incompatíveis. E os

programas e os planos territoriais aprovados em violação de instrumentos de orde-

namento do espaço marítimo também são nulos se não tiverem previsto as necessá-

rias medidas de compatibilização.24

O regime a declaração de nulidade não prejudica os efeitos dos actos administrativos

anteriormente praticados com base no plano, salvo disposição expressa em contrário,

acompanhada da necessária comunicação do dever de indemnizar.

No domínio da violação dos programas e planos territoriais, o princípio geral é o de

que a compatibilidade ou a conformidade entre os diversos programas e planos ter-

ritoriais é condição da sua validade.25

Sendo eles, desde logo, obrigados a aplicar os

conceitos técnicos e as definições nos domínios do ordenamento do território e do

19

Artigo 3.º, n.º1. 20

Artigo 3.º. 21

Segundo o artigo 130.º 22

Artigos 68.º e 69.º do RJUE 23

Artigo 129.º 24

Artigo 25.º 25

N.º1, artigo 128.º

POLÍTICA DE SOLOS

127

urbanismo fixados por decreto regulamentar, sem que sejam admissíveis outros

conceitos, designações, definições ou abreviaturas para o mesmo conteúdo e finali-

dade.

Os regulamentos dos IGT ficam também sujeitos à aplicação do regime da anulabili-

dade dos planos, por invocação do desrespeito de princípios gerais da actividade

administrativa, tais como o da falta de (justa) ponderação dos interesses públicos e

privados relevantes, etc..

No plano da invalidade do licenciamento ou comunicação prévia, comina-se a nuli-

dade dos actos administrativos que decidam pedidos de licenciamento ou admitam

comunicações prévias, com inobservância das proibições ou limitações decorrentes

do estabelecimento de medidas preventivas e de normas provisórias, que violem os

pareceres vinculativos emitidos ou que tenham sido praticados sem prévia solicita-

ção dos pareceres vinculativos devidos.26

As obras e os trabalhos efectuados com desrespeito das proibições, condicionantes

ou pareceres vinculativos decorrentes das medidas preventivas e das normas provi-

sórias, mesmo que licenciados ou objecto de comunicação prévia, podem ser embar-

gados, demolidos e, no caso de terrenos, pode ser imposta (pelo presidente da câma-

ra municipal ou, quando se trate de medidas preventivas estabelecidas pelo Governo,

pelo membro do Governo responsável pela área do ordenamento do território) a

reposição da configuração do terreno e recuperação do coberto vegetal, segundo

projecto a aprovar pelas referidas entidades. Mas o embargo ou a demolição de obras

e trabalhos ficam sujeitos ao dever de indemnização.27

Quanto às situações de desconformidade com planos, o princípio geral que vigora

em termos de condições de validade dos diferentes planos e dos actos de decisão

concreta de gestão territorial é o da exigência de compatibilidade entre os diversos

instrumentos de gestão territorial e da exigência de conformidade dos actos pratica-

dos com os instrumentos de gestão territorial aplicáveis.28

Assim, o legislador declara que são nulos os planos e os actos administrativos elabo-

rados e aprovados em violação de qualquer instrumento de gestão territorial com o

qual devessem ser compatíveis29

ou que os não respeitem.

Tal como são nulos os actos administrativos que decidam pedidos de licenciamento

com inobservância das proibições ou limitações constantes do estabelecimento de

26

Artigo 143.º 27

Artigo 142.º, artigo 144.º 28

N.º 1 do artigo 101.º 29

Art.º 102.º

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 128

medidas preventivas ou que violem os pareceres vinculativos nelas previstos,30

quando expressamente negativos, e emitidos nos prazos legalmente previstos.

No entanto, a declaração de nulidade de um plano ou norma de um plano, a ocorrer,

não prejudica os efeitos dos actos administrativos entretanto praticados com base no

plano, excepto se houver menção expressa em contrário, a qual só é válida quando

acompanhada da comunicação do dever de indemnizar.

3. Conteúdos dos diferentes planos de ordenamento territorial. Normas de pro-

gramação e de planeamento de natureza ambiental.

O legislador estabelece com precisão nos diferentes tipos de programas e planos a

sua abrangência espacial e objectivos genéricos.

Quanto ao programa nacional de ordenamento do território, ele tem a natureza de

referência estratégica global, dado que é um instrumento essencial articulador das

políticas de ordenamento do território e de desenvolvimento económico e social

territorializado (situado).

Os seus objectivos são o estabelecimento das grandes opções com relevância para a

organização do território nacional,31

tendo presente os compromissos de cooperação

com os outros Estados europeus, especialmente o EDEC/ETE, consubstanciando o

enquadramento geral a ter em conta na elaboração de todos os programas e planos

territoriais.32

No sentido de promover a “coesão territorial” de todo o País em ordem a se ir ultra-

passando as assimetrias regionais e a desigualdade de oportunidades dos cidadãos

das diferentes regiões, ele define os princípios orientadores da disciplina de ocupa-

ção do território ao mesmo tempo que aponta no espaço nacional as estratégias de

desenvolvimento económico e social, definindo elementos de base para o desenvol-

vimento territorial integrado, harmonioso e sustentável de todo o território nacional,

sem prejuízo do respeito da identidade própria das suas diversas parcelas e da inser-

ção global no espaço da União Europeia,33

articulando as políticas sectoriais com

30

Artigo 115.º 31

Artigo 30.º e ss. 32

CONDESSO, F. - «Situación actual de la ordenación del territorio en la península ibérica». In V

Congreso Internacional sobre Fronteras del desarrollo y desarrollo de fronteras». Facultad de

Filosofía y Letras, Universidad de Extremadura. Cáceres, 30 y 31 de Octubre 2000-10-21, p.

10. 33

CONDESSO, F. - «Situación actual de la ordenación del territorio en la península ibérica». In V

Congreso Internacional sobre Fronteras del desarrollo y desarrollo de fronteras». Facultad de

POLÍTICA DE SOLOS

129

incidência na ordenação do território, racionalizando o crescimento da população, a

implantação de equipamentos estruturantes e a definição das redes, estabelecendo os

parâmetros de acesso às funções urbanas e às formas de mobilidade

Os seus objectivos concretos consistem na fixação das opções e as directrizes relati-

vas à configuração do sistema urbano, das redes, das infra-estruturas e equipamen-

tos de interesse nacional, bem como à salvaguarda e valorização das áreas de inte-

resse nacional em termos ambientais, patrimoniais e de desenvolvimento rural e

imposição dos princípios e finalidades assumidas pelo Estado, quer quanto à locali-

zação de actividades, serviços e investimentos públicos, quer em matéria de quali-

dade de vida e efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais,

em ordem à promoção de uma efectiva equidade a nível territorial.

Dele consta um relatório e um programa de acção. O relatório é um documento

prospectivo, onde aparece consignada a definição dos cenários de desenvolvimento

territorial, a elaborar com base em cenários contrastados, e no já referido programa

de acção que define os objectivos a atingir numa perspectiva de médio e longo pra-

zo.34

Os programas regionais e sub-regionais de ordenamento do território definem a

estratégia regional ou sub-regional de desenvolvimento territorial, integrando as

opções estabelecidas a nível nacional e considerando as estratégias sub-regionais e

municipais de desenvolvimento local.

Podem existir estruturações de planeamento territorial através de unidades de pla-

neamento de espaços sub-regionais, por proposta das comissões de coordenação e

desenvolvimento regional ao Governo (designadamente, correspondentes às áreas

geográficas das entidades intermunicipais e integrados em áreas de actuação e sus-

ceptíveis de elaboração e de aprovação faseadas).

Eles são os instrumentos de definição do quadro estratégico subjacente ao ordena-

mento do espaço regional e servem de referência, territorialmente próxima, para a

elaboração dos planos intermunicipais e municipais.

Filosofía y Letras, Universidad de Extremadura. Cáceres, 30 y 31 de Octubre 2000-10-21, p.

10. 34

Este programa de acção traduz o compromisso do Governo, responsável pelo respectivo desen-

volvimento e concretização, em matéria de acção legislativa, investimentos públicos e outros

instrumentos de natureza fiscal ou financeira para a concretização da política de desenvolvi-

mento territorial, bem como de coordenação (designadamente através da articulação entre pro-

gramas sectoriais e regionais) entre sectores da administração central e desta com a administra-

ção local e as entidades privadas, estabelecendo propostas de cooperação.

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 130

A configuração destes planos concretiza-se na definição dos seus objectivos, nomea-

damente explicitando-se a sua articulação com a estratégia regional de desenvolvi-

mento económico e social, constante dos correspondentes planos de desenvolvi-

mento regional, desde logo os instrumentos plurianuais de desenvolvimento regional

ligados à UE, cujos objectivos o programa regional deverá traduzir territorialmente,

equacionando ainda as medidas tendentes à atenuação das assimetrias de desenvol-

vimento que se verifiquem no âmbito do espaço regional.35

Entre os seus objectivos,36

cabe-lhe a definição da política ambiental a nível regio-

nal, designadamente a estrutura ecológica regional de protecção e valorização

ambiental e a recepção, neste âmbito territorial, das políticas e das medidas estabele-

cidas nos programas sectoriais e especiais.

Com especial importância no âmbito da protecção dos valores ambientais, temos os

PIMOT, PMOT, PEOT e PSOT ligados a matérias de defesa ambiental

Vejamos esses planos.

Os planos intermunicipais e municipais de ordenamento do território têm natureza

regulamentar, cabendo-lhes em geral concretizar o regime de uso do solo (regras de

ocupação, transformação e utilização do solo), definindo modelos de ocupação ter-

ritorial e da organização de redes e sistemas urbanos e os parâmetros de aproveita-

mento do solo, tal como garantir a sustentabilidade socioeconómica e financeira e a

qualidade ambiental da zona abrangida.37

Fica interditada na mesma área de abrangência, a existência de um plano director, de

um plano de urbanização ou de um plano de pormenor de âmbito municipal quando

já exista m aí planos intermunicipais do mesmo tipo, sem prejuízo das regras relati-

vas à dinâmica de planos territoriais,38

passando o plano director intermunicipal, a

existir, a definir o quadro estratégico de desenvolvimento territorial do município,

em termos de elaboração dos seus planos, substituindo assim o papel do PDM.

35

Em conformidade com o resultado do referendo realizado em 8 de Novembro de 1998, prevê-se

que até à instituição em concreto das regiões administrativas, as competências relativas aos

planos regionais sejam exercidas pelas comissões de coordenação regional, permitindo-se ainda

a possibilidade de, ouvido o conselho da região, proporem ao Governo a estruturação do plano

regional em unidades de planeamento susceptíveis de elaboração e aprovação faseadas, corres-

pondentes a espaços sub-regionais integrados na respectiva área de actuação. 36

Artigo 55.º 37

Artigo 69.º 38

N.º4 do artigo 27.º

POLÍTICA DE SOLOS

131

O uso do solo é definido nestes planos, através da classificação do solo (destino

básico dos terrenos, assentando na distinção fundamental entre solo urbano e solo

rústico) e da qualificação do solo.

O solo deve considerar-se como urbano se está total ou parcialmente urbanizado ou

edificado, e, como tal, afectado em plano territorial à urbanização ou edificação. O

solo considera-se rústico se não está classificado como urbano e se, tendo aptidão

para isso, se destine o outros fins diferentes da urbanização, designadamente para o

aproveitamento agrícola, pecuário, florestal ou a conservação, a valorização e a

exploração de recursos naturais, de recursos geológicos ou de recursos energéticos,

ou ainda se destine para espaços naturais, culturais, de turismo, de recreio e de lazer

ou vise a protecção de riscos, independentemente de ser ocupado por infra-estrutu-

ras.

Pode ocorrer sempre a reclassificação de solo urbano em solo rústico, mas não é

livre, antes excepcional, a reclassificação do solo rústico para solo urbano.39

Esta só

deve ocorrer se inequivocamente puder contribuir para o desenvolvimento sustentá-

vel do território.

Tal apenas deve ocorre nos casos de inexistência de áreas urbanas disponíveis e

comprovadamente necessárias para o desenvolvimento económico e social e tal seja

indispensabilidade de qualificação urbanística, desde que traduza uma opção de

planeamento sustentável em termos ambientais, patrimoniais, económicos e sociais.

A invocação da sustentabilidade económica e financeira exige a demonstração da

indisponibilidade de solo urbano na área urbana existente para a finalidade em con-

creto (v.g., face aos níveis de oferta e procura de solo urbano, com diferenciação

tipológica quanto ao uso, e dos fluxos demográficos); do impacto da carga urbanís-

tica proposta, no sistema de infra-estruturas existente, e da previsão dos encargos

necessários ao seu reforço à execução de novas infra-estruturas e à respectiva manu-

tenção (obrigando à fixação contratual dos encargos urbanísticos das operações,

prazo de execução e condições de redistribuição de benefícios e encargos, conside-

rando todos os custos urbanísticos envolvidos) e da viabilidade económico-

financeira da proposta (com identificação dos sujeitos responsáveis pelo financia-

mento, demonstração das fontes de financiamento contratualizadas e de investimento

público).40

Findo o prazo fixado sem a realização das operações urbanísticas em

39

Artigo 72.º 40

Esta reclassificação do solo processa-se nos termos previstos no decreto regulamentar que

estabelece os critérios uniformes de classificação e reclassificação do solo, através dos proce-

dimentos de elaboração, de revisão ou de alteração de planos de pormenor, com efeitos regis-

tais, acompanhado do respectivo contrato (n.º4 do artigo 72.º). se se destinar apenas à execução

de infra-estruturas e de equipamentos de utilização colectiva processa-se através dos procedi-

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 132

causa ocorre automaticamente a caducidade, total ou parcial, da classificação do solo

como urbano (sem prejuízo das faculdades urbanísticas adquiridas, mediante título

urbanístico nos termos da lei), situação em que a câmara municipal deve, no prazo

de 60 dias, iniciar o procedimento de alteração ou de revisão do plano, em ordem a

garantir a coerência do modelo territorial.41

Quanto à qualificação do solo,42

esta, sem pôr em causa a sua classificação, visa

definir o conteúdo do seu aproveitamento, face às suas concretas potencialidades no

âmbito dos objectivos de desenvolvimento do território, fixando os usos dominantes

e, quando admissível, a sua edificabilidade e processa-se através da sua integração

em categorias de que vai depender a susceptibilidade de urbanização ou de edifica-

ção, obedecendo a critérios uniformes regulamentados e aplicáveis a todo o território

nacional.

Estas categorias podem ser, designadamente, espaços agrícolas ou florestais, de

exploração de recursos energéticos e geológicos; afectos a actividades industriais

directamente ligadas às utilizações antes enunciadas, espaços naturais e de valor

cultural e paisagístico, espaços destinados a infra-estruturas ou a outros tipos de

ocupação humana que não impliquem a classificação como solo urbano, designada-

mente permitindo usos múltiplos em actividades compatíveis com espaços agrícolas,

florestais ou naturais (turismo, etc.).

Quanto aos planos municipais de ordenamento do território, temos, essencialmente,

os Planos Directores Municipais, os Planos de Urbanização e os Planos de Porme-

nor4. A nova configuração do acompanhamento da elaboração destes planos munici-

pais, quer na vertente da intervenção dos diversos sectores da Administração, quer

na previsão da submissão da proposta de plano director municipal a parecer final da

Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional, conta com a colaboração

entre as distintas Administrações públicas territoriais. Neste âmbito do Município.

Trata-se em geral de instrumentos de natureza regulamentar, aprovados pelos muni-

cípios, integrando preocupações com a qualidade ambiental,43

definindo a estrutura

ecológica municipal (REN, REDE NATURA) para efeitos de protecção e de valori-

zação ambiental municipal e os princípios e as regras de garantia da qualidade

ambiental, da integridade paisagística e da preservação do património cultural.

mentos de elaboração, de revisão ou de alteração de planos territoriais, nos quais é fixado o

prazo de execução (n.º6). 41

N.º8). 42

Artigo 74.º 43

Artigo 69.º

POLÍTICA DE SOLOS

133

Se forem susceptíveis de provocar efeitos significativos no ambiente ou se constituí-

rem enquadramento para a aprovação de projectos sujeitos a avaliação de impacto

ambiental ou a avaliação de incidências ambientais, os planos de urbanização de

localidades e os planos de pormenor têm de ser objecto de avaliação ambiental.44

Esta “qualificação” (que pode ser precedida de consulta das entidades com respon-

sabilidades ambientais específicas, face aos possíveis efeitos ambientais resultantes

da aplicação do plano), cabe à câmara municipal à base dos critérios legais em

vigor.45

A câmara municipal, logo que delibere a elaboração de um destes planos,

deve solicitar parecer sobre o âmbito da avaliação ambiental e sobre o alcance da

informação a incluir no relatório ambiental.46

Os PMOT, em geral, estabelecem indicadores relevantes para a elaboração dos

demais programas e planos territoriais, destacando-se como objectivos directos a

definição do regime de uso do solo e dos espaços públicos (parâmetros de uso e

aproveitamento do solo e parâmetros de uso e fruição do espaço público), e dos

modelos de evolução previsível da ocupação humana e da organização de redes e

sistemas urbanos.

Com efeito, a estes planos cabe47

estabelecer a base de gestão programada do territó-

rio municipal e exprimir a estratégia de desenvolvimento local (PEL), adequando ao

âmbito do município o quadro de desenvolvimento do território constante dos pro-

gramas, enquanto instrumentos de natureza estratégica de âmbito supramunicipal

(desde logo, PNPOT,PSOT, PEOT, PROT), transcrevendo as normas condicionado-

ras de intervenção nos solos constantes dos programas especiais e articulando as

opções de política sectorial que tenham implicações locais (PSOT). Devem estabele-

cer os princípios e os critérios subjacentes a opções de localização de infra-estrutu-

44

Artigo 78.º 45

Anexo ao Decreto-Lei n.º232/2007, de 15 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 58/2011, de 4

de maio. 46

Artigo 5.º da lei anterior (Conteúdo da avaliação ambiental): “1 - Compete à entidade responsá-

vel pela elaboração do plano ou programa determinar o âmbito da avaliação ambiental a reali-

zar, bem como determinar o alcance e nível de pormenorização da informação a incluir no rela-

tório ambiental. 2 - Ficam excluídos do âmbito da avaliação ambiental de um plano ou pro-

grama integrado num sistema de planos ou programas os eventuais efeitos ambientais que

sejam susceptíveis de ser mais adequadamente avaliados a propósito da avaliação ambiental de

planos ou programas situados em níveis diferentes desse sistema. 3 - A entidade responsável

pela elaboração do plano ou programa solicita parecer sobre o âmbito da avaliação ambiental e

sobre o alcance da informação a incluir no relatório ambiental às entidades às quais, em virtude

das suas responsabilidades ambientais específicas, possam interessar os efeitos ambientais

resultantes da aplicação do plano ou programa. 4 -Os pareceres solicitados ao abrigo do número

anterior são emitidos no prazo de 20 dias. 5 - Sempre que a entidade responsável pelo plano ou

programa solicite parecer nos termos do n.º 3 do artigo 3.º, esse parecer deve também conter a

pronúncia sobre o âmbito da avaliação ambiental e sobre o alcance da informação a incluir no

relatório ambiental.” 47

Artigo 75.º

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 134

ras, equipamentos, serviços e funções, os critérios de localização e distribuição das

actividades industriais, de armazenagem e logística, turísticas, comerciais e de servi-

ços decorrentes da estratégia de desenvolvimento local.

Os planos municipais podem ter um prazo de vigência máximo previamente fixado.

Mas, enquanto instrumento concretizadores de normação legal, de que depende a sua

aplicação, permanecem eficazes enquanto não ocorrer a entrada em vigor do instru-

mento regulamentar de revisão ou alteração do mesmo. De qualquer modo, indepen-

dentemente da eventual data pré-fixada, todos os planos municipais têm de ser revis-

tos quando a sua monitorização e avaliação, traduzida em relatórios de estado do

ordenamento do território, revelarem níveis de execução e evolução das condições

ambientais, económicas, sociais e culturais que exijam a modificação do modelo

territorial.48

Quanto ao Plano Director Municipal,49

que é um plano da autoria do Município, ele

cobre todo território e é considerado ainda como instrumento não só de urbanismo

mas também de ordenamento do território e de desenvolvimento local50

. É o único

plano objectivamente pan-municipal (para todo o concelho) e a quem cabe já direc-

tamente a protecção e a salvaguarda de recursos e de valores naturais que condicio-

nem a ocupação, uso e transformação do solo.

Hoje, o território nacional (com excepção de Lagos, cuja reelaboração do anterior

plano declarado nulo pela jurisdição competente) está ordenado por estes planos,

pois a sua vigência leva à cobertura de todo o território nacional. Sendo, por isso, o

mais importante IGT existente, na prática, em Portugal. Estabelece, embora numa

lógica de interdependência coerente com os municípios vizinhos, o modelo territorial

municipal, o modelo de estrutura espacial do território municipal.

48

Artigo 93.º. 49

Artigo 95.º e ss. 50

Os outros são “estritamente” urbanísticos. O Plano de Urbanização define a organização espa-

cial de parte determinada do território municipal, integrada no perímetro urbano, que exija una

intervenção integrada do planeamento. Quanto ao plano de pormenor tem carácter operativo.

Na regulamentação do plano de pormenor, procura-se clarificar e desenvolver o seu carácter

operativo, designadamente acrescentando-se o seu conteúdo material, entre outros elementos, a

definição da situação do terreno da área de aplicação, prevendo-se a possibilidade de, por deli-

beração da Câmara Municipal, adoptar-se modalidades simplificadas. Este plano tem por objec-

to, desenvolver e concretizar propostas de organização espacial de qualquer área específica do

território municipal, definindo com detalhe a concepção da forma de ocupação e servindo de

base aos projectos de execução das infra-estruturas, da arquitectura dos edifícios e dos espaços

exteriores, de acordo com as prioridades estabelecidas nos programas de execução, constantes

do Plano Director Municipal e do Plano de Urbanização. O Plano de Pormenor pode ainda

desenvolver e concretizar programas de acção territorial.

POLÍTICA DE SOLOS

135

Constitui uma síntese da estratégia de desenvolvimento e de ordenamento local, com

as opções de localização e de gestão de equipamentos de utilização colectiva, inte-

grando as opções de âmbito nacional, sectoriais, regionais e intermunicipais, com

incidência na respectiva área de intervenção. Mas neste aspecto, tanto é documento

de referência para a elaboração dos outros planos municipais, como, face ao princí-

pio ordenamental da coordenação das estratégias de ordenamento territorial global,

para o desenvolvimento das intervenções sectoriais da administração do Estado no

território do município. Não pode deixar de efectivar a articulação do modelo de

organização municipal do território com a disciplina consagrada nos vários instru-

mentos de gestão territorial aplicáveis.

O modelo de estrutura espacial do território municipal (representado na planta de

ordenamento) assenta na classificação do solo e desenvolve-se através da sua quali-

ficação. Ora, o regime de uso do solo é definido nos planos intermunicipais e muni-

cipais de ordenamento do território, através da sua classificação e qualificação.

O Plano Director Municipal já não é sempre de elaboração obrigatória, na medida

em que exista um plano intermunicipal.

A sua planta de ordenamento representa o modelo de estrutura espacial do território

municipal de acordo com a classificação e a qualificação dos solos, bem como com

as unidades operativas de planeamento e gestão definidas, cabendo à planta de con-

dicionantes identificar as servidões e restrições de utilidade pública em vigor que

possam constituir limitações ou impedimentos a qualquer forma específica de apro-

veitamento.

O PDM, além destas plantas e do seu regulamento, deve, entre outros elementos, ser

também acompanhado de uma Relatório ambiental e de um Mapa de ruído.

A função do PDM em concreto é estabelecer a caracterização económica, social e

biofísica (incluindo a estrutura fundiária da área de intervenção); a definição dos

sistemas de proteção dos valores e recursos naturais, culturais, agrícolas e florestais

(identificando a estrutura ecológica municipal); a definição e caracterização da área

de intervenção (identificando as redes urbana, viária, de transportes e de equipa-

mentos de educação, de saúde, de abastecimento público e de segurança, os sistemas

de telecomunicações, de abastecimento de energia, de captação, de tratamento e

abastecimento de água, de drenagem e tratamento de efluentes e de recolha, depó-

sito e tratamento de resíduos); a referenciação espacial dos usos e das actividades,

nomeadamente através da definição das classes e categorias de espaços; a identifica-

ção das áreas e a definição de estratégias de localização, distribuição e desenvolvi-

mento das actividades industriais, turísticas, comerciais e de serviços; a definição de

estratégias para o espaço rural (identificando aptidões, potencialidades e referências

aos usos múltiplos possíveis); a identificação e a delimitação dos perímetros urbanos

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 136

(com a definição do sistema urbano municipal); a definição de programas na área

habitacional; a especificação qualitativa e quantitativa dos índices, indicadores e

parâmetros de referência, urbanísticos ou de ordenamento (a estabelecer em plano de

urbanização e plano de pormenor, e nos de natureza supletiva, aplicáveis na ausência

destes); a definição de unidades operativas de planeamento e gestão, para efeitos de

programação da execução do plano (estabelecendo para cada uma das mesmas os

objectivos, os termos de referência para a necessária elaboração de planos de urbani-

zação e de pormenor); a programação da execução das opções de ordenamento esta-

belecidas; a identificação de condicionantes (designadamente reservas e zonas de

protecção e as necessárias à concretização dos planos de protecção civil de carácter

permanente); as condições de actuação sobre áreas críticas, situações de emergência

ou de excepção, sobre áreas degradadas em geral; as condições de reconversão das

áreas urbanas de génese ilegal (AUGI); a identificação das áreas de interesse públi-

co para efeitos de expropriação (a definição das regras de gestão); os critérios para a

definição das áreas de cedência (a definição das regras de gestão); os critérios de

perequação compensatória de benefícios e encargos decorrentes da gestão urbanísti-

ca (a concretizar nos instrumentos de planeamento previstos nas unidades operativas

de planeamento e gestão).

O plano de urbanização desenvolve e concretiza o plano director municipal e estru-

tura a ocupação do solo e o seu aproveitamento (mas o regime do uso do solo deve

constar, preferencialmente, de plano de urbanização municipal, quer nas sedes de

concelho quer noutras áreas urbanas com mais de 25.000 mil habitantes), fornecendo

o quadro de referência para a aplicação das políticas urbanas e definindo a localiza-

ção das infra-estruturas e dos equipamentos colectivos principais. Contendo, além do

mais, o regulamento e o seu relatório explicativo, também um relatório ambiental,

cabe-lhe a definição do zonamento para localização das diversas funções urbanas

(planta de zonamento), dispondo sobre a organização urbana, a partir da qualificação

do solo, definindo a rede viária estruturante, a localização de equipamentos de uso e

interesse colectivo, a estrutura ecológica, bem como o sistema urbano de circulação,

de transporte público e privado e de estacionamento (planta de enquadramento, plan-

tas de identificação de traçados e mapa de ruído), em ordem à devida adequação do

perímetro urbano e sobre a delimitação e objetivos das unidades ou subunidades

operativas de planeamento e gestão, estruturando as acções de compensação e redis-

tribuição de benefícios e encargos e identificando os sistemas de execução do plano.

O plano de pormenor, que abrange áreas de intervenção contínuas do território

municipal (correspondendo ou não a uma unidade ou subunidade operativa de pla-

neamento e gestão ou a parte delas, procedendo à identificação e delimitação dos

valores culturais e à informação arqueológica contida no solo e no subsolo, valores

paisagísticos e naturais e todas as infra-estruturas relevantes), prevê detalhada-

POLÍTICA DE SOLOS

137

mente51

sobre as operações de transformação fundiária (com a identificação dos

sistemas de execução do plano e soluções de perequação) e sobre a ocupação de

qualquer área do território municipal (com distribuição de funções, definição de

parâmetros urbanísticos, designadamente, densidade máxima de fogos, número de

pisos e altura total das edificações ou altura das fachadas, operações de demolição,

conservação e reabilitação das construções existentes), em geral, com regulamenta-

ção da edificação e regras sobre a implantação das infra-estruturas e desenho dos

espaços de utilização colectiva, assim como a implantação, a volumetria e as regras

para a edificação e a disciplina da sua integração na paisagem, a localização e a

inserção urbanística dos equipamentos de utilização colectiva e a organização espa-

cial de todas as actividades de interesse geral ou seja, o desenho urbano (espaços

públicos, incluindo os espaços de circulação viária e pedonal e de estacionamento,

bem como o respectivo tratamento, a localização de equipamentos e zonas verdes, os

alinhamentos, as implantações, a modelação do terreno e a distribuição volumétrica).

No caso de planos de pormenor em área ainda sem plano de urbanização, eles devem

incluir as intervenções em solo rústico, procedendo à “prévia explicitação do zona-

mento”, dos fundamentos e dos efeitos da alteração do zonamento, tendo por base o

disposto no plano director municipal e plano director intermunicipal.

Existem várias modalidades específicas de PP citadas no artigo 103.º do Decreto-Lei

n.º80/2015, desde os planos de intervenção no espaço rústico (que regula directa-

mente no essencial) aos planos de reabilitação urbana (solo urbano correspondente à

totalidade ou a parte de centro histórico delimitado em plano director ou plano de

urbanização eficaz ou área de reabilitação urbana legalmente constituída), e aos

planos de salvaguarda do património cultural (cuja disciplina remete para diplomas

próprios).

O plano de intervenção no espaço rústico, que não pode promover a reclassificação

do solo rústico em urbano, é um plano que se reporta a solo rústico, devendo esta-

belecer regras sobre a construção de novas edificações e a reconstrução, alteração,

ampliação ou demolição das edificações existentes (se necessárias ao exercício das

actividades autorizadas no solo rústico), implantação de novas infra-estruturas de

circulação de veículos, de animais e de pessoas, e novos equipamentos, públicos ou

privados, de utilização colectiva, assim como remodelação, ampliação ou alteração

dos existentes; a criação ou beneficiação de espaços de utilização colectiva, públicos

ou privados, e respectivos acessos e áreas de estacionamento; a criação de condições

para a prestação de serviços complementares das actividades autorizadas no solo

rústico e operações de protecção, valorização e requalificação da paisagem natural

e cultural.52

51

Artigo 101.º 52

Artigo 104.º

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 138

Os planos de pormenor são compostos de um regulamento, uma planta de implanta-

ção (desenho urbano e parcelas, alinhamentos e polígono-base para a implantação de

edificações, altura total das edificações ou altura das fachadas, número de pisos,

número máximo de fogos, área de construção e seus usos, demolição e manutenção

ou reabilitação das edificações existentes e natureza e localização dos equipamentos,

dos espaços verdes e de outros espaços de utilização colectiva), planta de condicio-

nantes (servidões administrativas e restrições de utilidade pública implicando limita-

ções ou impedimentos a qualquer forma específica de aproveitamento), plantas e

quadros da operação de transformação fundiária (novos prédios, bens do domínio

público, etc.) e de áreas a ceder para o domínio municipal e planta de localização

(enquadramento do plano no território municipal envolvente, indicando principais

vias de comunicação e outras infra-estruturas relevantes, estrutura ecológica e gran-

des equipamentos, existentes e previstos e demais elementos considerados relevan-

tes).

O relatório ambiental, existente quando justificado pela necessária avaliação de

efeitos significativos no ambiente, resultantes da aplicação do plano, deve identifi-

car, descrever e avaliar as alternativas razoáveis, face aos objectivos e ao seu âmbito

de aplicação territorial).

Elemento importante de controlo da aplicação do princípio da justa ponderação dos

interesses relevantes, públicos e privados, é a exigência da junção das participações

recebidas durante a discussão pública e o relatório da sua ponderação.53

Quanto aos planos intermunicipais e metropolitanos, estes são de elaboração facul-

tativa, obedecendo ao mesmo regime dos PMOT e visando os mesmos objectivos e

com a mesma natureza destes. Com efeito, por força de alteração na recente Lei dos

Solos, os seus regulamentos são, hoje, de aplicabilidade directa aos particulares, o

que agora de regula. Os planos directores intermunicipais designar-se-ão por plano

metropolitano de ordenamento do território se cobrirem todos os municípios de uma

área metropolitana.

Em geral, os planos directores intermunicipais, a existirem, substituem os planos

directores municipais na definição da disciplina territorial dos mesmos e servirão

como instrumentos de referência para a elaboração dos outros planos intermunicipais

e municipais e para o desenvolvimento das intervenções sectoriais da Administração,

em concretização do princípio da coordenação das estratégias de ordenamento terri-

torial.

53

Alínea f, n.º4, artigo 107.º

POLÍTICA DE SOLOS

139

Caber-lhes-á definir a classificação e a qualificação do solo que servem de base à

definição do modelo de organização espacial dos territórios municipais abrangidos,

assegurando a articulação entre o programa regional e os planos intermunicipais e

municipais, no caso de áreas territoriais que, pela interdependência estrutural ou

funcional ou pela existência de áreas homogéneas de risco, necessitem de uma acção

integrada de planeamento. Tanto pode abranger uma área geográfica cobrindo a

totalidade de uma entidade intermunicipal, como uma área geográfica de dois ou

mais municípios territorialmente contíguos integrados na mesma entidade intermu-

nicipal. Em causa, áreas territoriais que, pela interdependência de seus elementos

estruturantes, necessitem de uma coordenação municipal integrada.

Na prática, estes planos podem servir especialmente para articular as estratégias de

desenvolvimento económico e social dos municípios envolvidos, designadamente

em termos de estratégia intermunicipal de protecção da natureza e de garantia da

qualidade ambiental; coordenação da incidência intermunicipal dos projectos de

redes, equipamentos, infra-estruturas e distribuição das actividades industriais, turís-

ticas, comerciais e de serviços constantes do programa nacional da política de orde-

namento do território, dos planos regionais de ordenamento do território e dos pla-

nos sectoriais aplicáveis; estabelecimento de objectivos, a médio e longo prazo, de

racionalização do povoamento; definição de objectivos em matéria de acesso a equi-

pamentos e serviços públicos.54

Portanto, estes planos abarcam a totalidade ou parte

das áreas territoriais pertencentes a dois ou mais municípios vizinhos.

Os seus objectivos podem, pois, passar pela integração de directrizes para o uso

integrado do território de vários municípios vizinhos e servir à definição de redes

intermunicipais de infra-estruturas, equipamentos, transportes e serviços e dos

padrões mínimos e objectivos a atingir em matéria de qualidade ambiental55.

4. Articulação relacional dos conteúdos dos IGT

No que diz respeito aos programas de âmbito nacional e regional, o programa nacio-

nal da política de ordenamento do território, os programas sectoriais, os programas

especiais de ordenamento do território e os programas regionais de ordenamento do

território exige-se que eles traduzam um compromisso recíproco de compatibiliza-

ção das respectivas opções.

O programa nacional da política de ordenamento do território, os sectoriais e os

especiais estabelecem os princípios e as regras orientadoras para os programas

54

Artigo 62.º 55

Quanto aos novos planos de urbanização e de pormenor intermunicipais, são-lhes aplicáveis as

regras adaptadas dos planos de urbanização e de pormenor municipais.

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 140

regionais de ordenamento do território, sendo que o nacional condiciona os secto-

riais e especiais, cujas orientações desenvolvem e concretizam.

Os programas sucessivos, que incidam sobre um mesmo território, devem-se res-

peito segundo a procedência cronológica.

Quando procedam à alteração de programa ou de plano territorial preexistente, os

novos programas e planos territoriais devem indicar expressamente as normas

incompatíveis que determinam a sua alteração.56

No caso de não haver actualização

tempestiva (prazo fixado pelo programa) dos planos de âmbito intermunicipal ou

municipal pré-existentes, tal implica a suspensão das normas dos planos que deviam

ter sido alteradas (declaração da comissão de coordenação e desenvolvimento regio-

nal territorialmente competente), que vigora até à actualização dessas normas. Nesse

período, não pode praticar-se nenhum ato ou operação administrativa que implique a

ocupação, uso e transformação do solo na área abrangida.

No que diz respeito à relação entre os instrumentos de autoria estadual ou regional e

os autárquicos, cabe aos regionais definir o quadro estratégico a desenvolver pelos

programas e pelos planos intermunicipais e municipais, que devem assegurar a pro-

gramação e a concretização das políticas com incidência territorial, que, como tal,

estejam assumidas pelos programas territoriais de âmbito nacional e regional.57

A vigência superveniente de um programa territorial de âmbito nacional e regional

ou de normas legais e regulamentares obriga à alteração ou actualização das normas

desconformes ou incompatíveis dos planos territoriais intermunicipais e municipais

subordinados.

O programa nacional da política de ordenamento do território e os planos regionais

definem o quadro estratégico a desenvolver pelos planos municipais de ordenamento

do território e, quando existam, pelos planos intermunicipais de ordenamento do

território.Com os de âmbito municipal a terem de atender às orientações definidas

nos programas intermunicipais preexistentes.

Os planos municipais de ordenamento do território definem a política municipal de

gestão territorial de acordo com as directrizes estabelecidas pelos pertinentes pro-

gramas de ordenamento do território (nacional de política de ordenamento do territó-

rio, especiais e regionais) e, sempre que existam, pelos planos intermunicipais (e

metropolitanos) de ordenamento do território.

56

N.º5 do artigo 28.º 57

Artigo 27.º

POLÍTICA DE SOLOS

141

Os planos municipais de ordenamento do território e, quando existam, os planos

intermunicipais de ordenamento do território, devem acautelar a programação e a

concretização das políticas de desenvolvimento económico e social e de ambiente,

com incidência espacial, promovidas pela administração central, através dos planos

sectoriais. E os seus próprios planos estratégicos locais, quando elaborados, só têm

sentido se transcritos atempadamente para os PMOT.

Os planos especiais de ordenamento do território prevalecem sobre os planos inter-

municipais de ordenamento do território, quando existam, e sobre os planos munici-

pais de ordenamento do território, que significa não só que têm de ser transcritos

nestes, quando aprovados ou alterados, como que servem dos seus parâmetros inter-

pretativos e, mesmo que não transcritos levam a sua aplicação às operações urbanís-

ticas, inaplicando-se as normas não conformes dos PIM e PMOT, nas unidades ori-

ginária ou superveniente.

5. Princípio da estabilidade e da reformabilidade dos planos

O legislador consagra o princípio da estabilidade do conteúdo dos planos. Atenta a

natureza da vinculação plurisubjectiva dos planos intermunicipais e municipais e o

consequente acréscimo da relevância da salvaguarda dos princípios da estabilidade

do planeamento e da segurança jurídica, estabelece-se um período de três anos após

a respectiva entrada em vigor, durante o qual apenas poderão ser objecto de altera-

ção em circunstâncias excepcionais, por força da entrada em vigor de leis ou regu-

lamentos ou para introdução de meros ajustamentos de natureza técnica, estando, nos

dois últimos casos, sujeita a um procedimento simplificado e célere, igualmente

sujeito a publicidade.

Os instrumentos de gestão territorial podem ser objecto de alteração e de revisão.

A dinâmica dos instrumentos de gestão territorial estrutura-se em torno do conceito

central de alteração, estabelecendo-se que a mesma pode decorrer, para além da

entrada em vigor de leis ou regulamentos que colidam com as respectivas disposi-

ções ou estabeleçam servidões administrativas ou restrições de utilidade pública que

as afectem, da evolução das perspectivas de desenvolvimento económico e social

que lhes estão subjacentes e, nos casos de plano regional, sectorial e intermunicipal,

ainda da ratificação de planos municipais ou aprovação de planos especiais que com

eles não se conformem.

O conceito de revisão é reservado para os planos especiais e municipais, isto é, para

os de aplicabilidade directa às operações urbanísticas, estabelecendo-se que a mesma

pode decorrer da necessidade de adequação à evolução, a médio e longo prazos, das

condições que determinaram a respectiva elaboração tendo em conta os relatórios de

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 142

avaliação da sua execução, ou ainda da respectiva suspensão e consequente necessi-

dade de adequação à prossecução dos interesses públicos que a determinaram, a qual

apenas poderá ocorrer, à excepção da decorrente de situações de suspensão, após o

referido período de três anos. Mas vejamos mais detalhadamente o seu regime.

Como se enquadram as alterações consequentes de planos e revisão?

Os programas e planos territoriais podem ser objecto de alteração quer na sua regu-

lamentação quer na parte da respectiva área de intervenção, face à evolução não só

das condições económicas, sociais e culturais subjacentes como das condições

ambientais, em que se fundamentam as suas opções.58

E pode sempre verificar-se a

sua suspensão se existirem circunstâncias excepcionais que se repercutam no orde-

namento do território, de modo a colocar em causa a prossecução de interesses

públicos relevantes, tais como os ambientais.

No entanto, o legislador veio dispensar da avaliação ambiental as “pequenas altera-

ções” aos programas e aos planos territoriais (redefinição do uso do solo, determi-

nada pela cessação de servidões administrativas e de restrições de utilidade pública

ou pela desafectação de bens imóveis do domínio público ou dos fins de utilidade

pública a que se encontravam adstritos, designadamente os do domínio privado

indisponível do Estado) desde que a entidade competente para a sua alteração assu-

ma a responsabilidade de determinar que elas não são susceptíveis de ter efeitos

significativos no ambiente.59

No que concerne à revisão dos IGT, tendo em conta o relatório sobre o estado do

ordenamento do território,60

deve proceder-se à revisão dos programas sempre que

ela se imponha face à necessidade de adequação das opções estratégicas que deter-

minaram a sua elaboração e à dos planos caso exista a necessidade de adequação à

evolução, a médio e longo prazo, das condições ambientais, económicas, sociais e

culturais, que estiveram presentes na sua origem (revisão admitida apenas decorri-

dos três anos desde a entrada em vigor do plano), assim como situações de suspen-

são do plano e necessidade da sua adequação à prossecução dos interesses públicos

58

Al. a, n.º2 do artigo 115.º 59

Artigo 120.º.A deliberação das entidades competentes é tomada no prazo de 60 dias a contar da

data da verificação da desafectação e deve conter a proposta integradora, devendo proceder-se à

publicitação e divulgação da proposta, estabelecendo um prazo, que não deve ser inferior a 10

dias, para a apresentação de reclamações, observações ou sugestões, findo o qual e ponderadas

as participações, são reformulados os elementos do plano na parte afectada, dependendo as alte-

rações aos planos locais de parecer (não vinculativo) da CCDR, quanto à conformidade com as

disposições legais e regulamentares vigentes e à compatibilidade ou conformidade com os pro-

gramas e os planos territoriais eficazes, o qual deve ser proferido no prazo de 10 dias a contar

da data do envio da proposta. As alterações simplificadas são aprovadas pelas assembleias

locais (capítulo VIII, artigo 123.º). 60

N.º 2 do artigo 189.º

POLÍTICA DE SOLOS

143

que a determinaram. Esta disciplina é também aplicável aos programas sectoriais e

especiais (com as necessárias adaptações), enquanto a revisão do programa nacional

de política de ordenamento do território fica dependente do resultado da avaliação

do seu programa de acção.61

6. Situaçoes de suspensão de IGT e de procedimentos. Regime de recurso a

medidas cautelares no âmbito do ordenamento do território

Em geral a suspensão dos IGT ou é preventiva face a processos de revisão ou face a

procedimento de concessão de licenças ou autorizações ou obedece a razoes de

excepcionalidade da suspensão, por circunstâncias supervenientes (em princípio,

circunstâncias excepcionais, que se repercutam no ordenamento do território, pondo

em causa a prossecução de interesses públicos relevantes, na medida em que tradu-

zam uma alteração significativa das perspectivas de desenvolvimento económico-

social incompatíveis com a concretização das opções estabelecidas no plano).

Os procedimentos de informação prévia, de comunicação prévia e de licenciamento,

nas áreas a abranger por novas regras urbanísticas constantes de planos intermunici-

pais ou municipais ou da sua revisão, ficam suspensos a partir da data fixada para o

início do período de discussão pública e até à data da entrada em vigor daqueles

planos. E cessando a suspensão do procedimento, ele é decidido de acordo com as

novas regras urbanísticas em vigor. Caso as novas regras urbanísticas não entrem em

vigor no prazo de 180 dias desde a data do início da respectiva discussão pública,

cessa a suspensão do procedimento, devendo neste caso prosseguir a apreciação do

pedido até à decisão final de acordo com as regras urbanísticas em vigor à data da

sua prática.

Não se suspende o procedimento nos termos do presente artigo, quando o pedido

seja feito ao abrigo de normas provisórias ou tenha por objecto obras de reconstru-

ção ou de alteração em edificações existentes, desde que tais obras não originem ou

agravem desconformidade com as normas em vigor ou tenham como resultado a

melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação.

Quando haja lugar à suspensão do procedimento nos termos do presente artigo, os

interessados podem apresentar novo requerimento com referência às regras do plano

colocado à discussão pública, mas a respectiva decisão final fica condicionada à

entrada em vigor das regras urbanísticas que conformam a pretensão.

Caso a versão final do plano aprovado implique alterações ao projeto a que se refere

o número anterior, os interessados podem, querendo, reformular a sua pretensão,

61

Artigo 124.º

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 144

dispondo de idêntica possibilidade aqueles que não tenham feito uso da faculdade

prevista no mesmo número.62

Em situações em que se imponha a elaboração, alteração ou revisão de um plano de

âmbito intermunicipal, municipal ou programa especial (neste caso, só a título

excepcional63

) podem ser estabelecidas medidas preventivas ou normas provisórias,

que têm a natureza de regulamentos administrativos.64

As medidas preventivas visam prevenir alterações concomitantes das circunstâncias

e condições de facto existentes na altura quer com o objetivo de vir a limitar a liber-

dade de planeamento quer de comprometer ou de tornar mais onerosa a execução do

programa ou do plano. Estas medidas provocam a suspensão da eficácia do plano na

área abrangida e pode também levar à suspensão de outros programas e planos ter-

ritoriais na área.

Com excepção das acções validamente autorizadas antes da sua entrada destas medi-

das e aquelas em que exista já informação prévia favorável ou aprovação do projecto

de arquitectura válidas, tal ato precautivo leva à aplicação de medidas preventivas65

que implica, sejam interdições de actuação, seja a limitação ou a sujeição a parecer

vinculativo de certas operações e acções,66

desde as operações de loteamento e obras

de urbanização, construção, ampliação, alteração e reconstrução (com excepção das

que estejam isentas de controlo administrativo prévio), demolição (não regulamen-

tarmente dispensadas de controlo administrativo prévio), trabalhos de remodelação

de terrenos, ou derrube de árvores em maciço ou destruição do solo vivo e do cober-

to vegetal.

O legislador prevê que o Governo possa também, segundo o mesmo regime substan-

tivo, estabelecer medidas preventivas visando salvaguardar situações excepcionais

de reconhecido interesse nacional ou regional (execução de empreendimentos de

relevante interesse público, situações de calamidade pública ou outras situações de

risco) ou para garantir a elaboração, alteração ou revisão de programas especiais.

Quando a acção em causa prejudique de forma grave e irreversível a finalidade do

plano, as excepções à aplicação destas medidas podem, nesses casos excepcionais

devidamente fundamentados, ser afastadas, o que implica a devida indemnização.

62

Artigo 145.º 63

N.º8, artigo 134.º 64

Artigo 136.º 65

N.º 7 do artigo 126.º 66

Neste caso, cabe ao órgão competente para o seu estabelecimento das medidas preventivas

determinar quais as entidades a consultar.

POLÍTICA DE SOLOS

145

Se a imposição de proibições e limitações a prever nessas medidas se revelar desa-

dequada ou excessiva e se se verificar cumulativamente a existência de opções de

planeamento suficientemente densificadas e documentadas no âmbito do procedi-

mento de elaboração, revisão ou alteração do plano territorial em causa e a necessi-

dade dessas medidas para a salvaguarda de interesses públicos inerentes à elabora-

ção, revisão ou alteração do plano em causa,67

ponderados os vários interesses

públicos em causa, poderá optar-se por normas provisórias que definam de forma

positiva o regime transitoriamente aplicável a uma determinada área do território.68

Há um limite material das medidas cautelares.69

A imposição de medidas preventi-

vas ou de normas provisórias só é possível nos casos em que fundadamente se pre-

veja ou receie que os prejuízos resultantes da possível alteração das características

do local sejam socialmente mais gravosas do que os inerentes à sua adopção, tendo,

por isso, de ser demonstrada a necessidade e clarificadas as vantagens e os inconve-

nientes económicos, técnicos, sociais e ambientais derivados dessa adopção. A

extensão da área70

sujeita a medidas deve ser apenas a que se demonstre adequada à

consecução dos fins protetivos em causa.71

E devem ainda ser enunciadas as normas

do futuro plano que ficariam comprometidas na sua execução caso essas medidas e

normas não sejam tomadas, se o estado dos trabalhos de elaboração ou de revisão o

permitir.

O prazo da sua vigência não pode ser superior a dois anos, sem prejuízo de poder ser

prorrogado por mais um, quando se demonstre essa necessidade. Deve ser fixado no

ato que as decrete, mas na falta dessa fixação, elas regem apenas pelo prazo de um

ano, prorrogável por seis meses. As prorrogações processam-se nos mesmos termos

do seu estabelecimento, devendo o parecer da CCDR, para ser considerado, ser emi-

tido no prazo de 10 dias.72

67

Artigo 135.º 68

No caso de plano municipal compete à assembleia municipal aprovar as medidas preventivas e

as normas provisórias, sob proposta da câmara municipal. No caso de programa ou plano

intermunicipal compete ao conselho metropolitano ou à assembleia intermunicipal ou às

assembleias municipais dos municípios associados aprovar as medidas preventivas e as normas

provisórias, mediante proposta, respectivamente, da comissão executiva metropolitana, do con-

selho metropolitano ou das câmaras municipais dos municípios associados. Nos casos previstos

no n.º 8 do artigo 134.º, as medidas preventivas são aprovadas por resolução do Conselho de

Ministros, salvo norma especial que determine a sua aprovação por decreto-lei ou decreto regu-

lamentar (artigo 137.º). 69

(artigo 139.º). 70

Na delimitação dessa área a abranger, os limites, quando não possam coincidir, no todo ou em

parte, com as divisões administrativas, devem ser definidos, sempre que possível, por referên-

cia a elementos físicos facilmente identificáveis, designadamente vias públicas e linhas de

água. 71

Artigo 140.º 72

Artigo 141.º

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 146

E não só deixam de vigorar se forem revogadas ou tiver decorrido o prazo fixado,

como caducam se entrar em vigor o plano que motivou a sua adoção (caso em que os

planos devem referir tal facto expressamente), se a entidade competente desistir da

elaboração do plano que as motivara ou se cessar o interesse na salvaguarda das

situações excepcionais de reconhecido interesse público.

As medidas preventivas devem ser total ou parcialmente revogadas quando se reve-

lem desnecessárias no decorrer dos trabalhos de elaboração ou de revisão do plano.

E, a menos que ocorram casos excepcionais fundamentados, uma área só pode voltar

a ser abrangida de novo por medidas preventivas ou normas provisórias quatro anos

depois da data da sua anterior caducidade.

Por fim, refira-se que a adopção de tais medidas e normas cautelares implica o dever

de indemnizar nos casos em que delas resulte sacrifício de direitos preexistentes e

juridicamente consolidados.73

7. Avaliação da adequação e concretização dos planos

Quanto à avaliação da adequação e concretização das normas consagradas nos

instrumentos de gestão territorial, impõe-se que as entidades responsáveis pela sua

elaboração promovam a sua avaliação permanente.

Para este efeito, impõe-se a recolha e tratamento da informação de carácter estatís-

tico, técnico e científico relevante, e a elaboração de relatórios periódicos de avalia-

ção, incidindo nomeadamente sobre o desenvolvimento das orientações fundamen-

tais do programa nacional da política de ordenamento do território e em especial

sobre a articulação entre as acções sectoriais, recomendando, quando necessário, a

respectiva revisão ou alteração.

Estes relatórios, articulando as vertentes técnica e política da avaliação do sistema,

devem efectivar o balanço da execução dos instrumentos e os níveis de coordenação

interna e externa obtidos.

Cabe à Comissão Nacional do Território74

recomendar a elaboração, alteração ou

revisão dos relatórios periódicos de avaliação sobre o desenvolvimento das orienta-

ções fundamentais do programa nacional da política de ordenamento do território,

em especial sobre a articulação das estratégias sectoriais e orientações estratégicas

de âmbito regional, acompanhar e monitorizar a elaboração do relatório nacional

sobre o estado do ordenamento do território e publicar relatórios, pareceres e outros

73

Artigo 142.º, artigo 171.º 74

Artigo 184.º

POLÍTICA DE SOLOS

147

trabalhos emitidos ou realizados no âmbito das suas competências, além de, em

geral, dever acompanhar a aplicação e o desenvolvimento das dinâmicas de ordena-

mento do território e urbanismo, designadamente emitindo pareceres e recomenda-

ções sobre questões relativas ao ordenamento do território, propor normas técnicas e

procedimentos uniformes para todo o território nacional e apresentar à Direcção-

Geral do Território propostas de elaboração de manuais técnicos de boas práticas em

política de ordenamento do território. Para o efeito, pode promover as consultas

necessárias aos diversos serviços da administração central, regional e local, deve

facultar a informação por estes solicitada e assegurar os contactos necessários com a

comunidade científica e a participação dos cidadãos.

Os Relatórios sobre o Estado do Ordenamento do Território são da responsabilidade

do Governo, com a periodicidade bianual, e devem ser submetidos à apreciação da

Assembleia da República,75

sem prejuízo da elaboração pela CCDR, de quatro em

quatro anos, de um relatório ordenamental do território a nível regional, a apresentar

também ao governo.

As entidades locais implicadas nos planos devem elaborar, também de quatro em

quatro anos, um relatório a submeter às respectivas assembleias.

Todos estes devem traduzir o balanço da execução dos programas e dos planos

territoriais, que são objecto de avaliação e os níveis de coordenação interna e exter-

na obtidos, fundamentando, sendo o caso, a necessidade de uma revisão. A aprova-

ção dos relatórios é precedida de um período de discussão pública não inferior a 30

dias. Fica interdita a revisão dos e dos planos sem a elaboração destes relatórios, que

devem ser revistos no prazo de quatro anos,76

sem prejuízo de, durante esse período,

poder ser objecto de revisão qualquer IGT, através de uma ponderação assente num

relatório de avaliação ad hoc, desde que ele permita comprovar existir a sua necessi-

dade que não apareça fundamentada em Relatório normal sobre o estado do ordena-

mento do território.

Portanto, em matéria de avaliação dos instrumentos de gestão territorial, prevêem-

se formas de acompanhamento permanente, com a criação e o desenvolvimento de

um sistema nacional de dados sobre o território e a elaboração de relatórios periódi-

cos sobre a concretização das orientações dos programas e planos e, desde logo,

sobre a articulação entre as acções sectoriais e ainda a possibilidade de recurso à

avaliação por entidades independentes, relacionando-se a dinâmica dos instrumentos

de gestão com a sua prévia avaliação, de que pode resultar a fundamentação de pro-

postas de alteração, quer do plano, quer dos mecanismos de execução.

75

Artigo 189.º 76

Artigo 202.º

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 148

8. Ambiente, programação geral e planeamento

Os elementos a identificar no planeamento em geral são, desde logo, todos os recur-

sos e valores naturais, os sistemas indispensáveis à utilização sustentável do territó-

rio e as medidas básicas e limiares de utilização que garantem a renovação e valori-

zação do património natural. Em causa, portanto, entre os recursos fundamentais

importa destacar os naturais, ligados ao ambiente. Os IGT devem identificar os

recursos territoriais com relevância estratégica para a sustentabilidade ambiental e a

solidariedade intergeracional, designadamente a orla costeira e zonas ribeirinhas,

albufeiras de águas públicas, áreas protegidas, rede hidrográfica e outros recursos

territoriais relevantes para a conservação da natureza e da biodiversidade. O legis-

lador manda que todos os tipos de planos, incluindo os que destituídos de aplicabili-

dade directa aos cidadãos, desde o PNPOT, aos PROT, PIMOT e PSIT, definam os

princípios e directrizes que concretizam as orientações políticas relativas à protec-

ção dos recursos e valores naturais. Os PMOT têm de estabelecer, no quadro defi-

nido pelo sistema de IGT, cuja eficácia condicione o respectivo conteúdo, os parâ-

metros de ocupação e de utilização do solo adequados à salvaguarda e valorização

dos recursos e valores naturais, designadamente os parâmetros urbanísticos aplicá-

veis e a delimitação de zonas de protecção de elementos e conjuntos construídos que

representam testemunhos da história da ocupação e do uso do território e assumem

interesse relevante para a memória e a identidade das comunidades).

Mas a maior densidade registadora e protectiva, enquanto tais valores não estiverem

devidamente acautelados nos PMOT, encontra-se nos PEOT, a quem cabe especial-

mente estabelecer os usos preferenciais, condicionados e interditos estritamente por

razoes ambientais.

Eles desdobram-se em planos de ordenamento de áreas protegidas, planos de orde-

namento de albufeiras de águas públicas, planos de ordenamento da orla costeira e

planos de ordenamento dos estuários.

Os PEOT, sendo um meio meramente supletivo de intervenção governamental, têm

como objectivo a defesa de valores de interesse nacional com incidência territorial

delimitada bem como a tutela de princípios fundamentais consagrados no programa

nacional da política de ordenamento do território; nesse âmbito, estabelecendo regi-

mes de salvaguarda de recursos e valores naturais e assegurando a permanência dos

sistemas indispensáveis à utilização sustentável do território.

Em termos de hierarquia e articulação jurídica interplanificadora, importa referir

que, quando sobre a mesma área territorial incidir mais do que um PSIT ou mais do

que um PEOT, o plano posterior deve indicar expressamente quais as normas do

plano preexistente que revoga, sob pena de invalidade por violação deste. Os planos

POLÍTICA DE SOLOS

149

especiais de ordenamento do território prevalecem sobre os planos intermunicipais

de ordenamento do território, quando existam, e sobre os planos municipais de orde-

namento do território.

No que se refere aos programas sectoriais com incidência no território e importân-

cia ambiental, eles são instrumentos de programação ou de concretização das diver-

sas políticas com incidência na organização do território. Além dos programas espe-

ciais, há também programas sectoriais do Ministério do Ambiente, com ou sem

incidência territorial (enquadrados em diplomas específicos) que têm forte interesse

no plano ambiental.

Aqui, neste tipo de programas, temos os chamados cenários de desenvolvimento

referentes aos sectores da Administração geral, v.g. nos distintos domínios materiais

das atribuições do Estado, desde os transportes, comunicações, energia e recursos

geológicos, habitação, economia (turismo, agricultura, comércio, indústria, florestas)

e ambiente, até à educação, formação, cultura ou saúde. São sectoriais aqueles pla-

nos que traduzem decisões de localização e realização de grandes iniciativas públi-

cas com incidência territorial. E o sistema admite ainda o carácter de sectorial para

os planos de ordenamento sectorial e os regimes territoriais definidos como tais por

lei especial.

Estes planos tratam de definir, desde logo, as opções sectoriais e os objectivos a

alcançar no quadro das directrizes nacionais aplicáveis, as actuações de fixação de

objectivos sectoriais, a expressão territorial da política sectorial definida e a articula-

ção da política sectorial com a disciplina consagrada nos demais instrumentos de

gestão territorial aplicáveis.

Quando se decide a elaboração de um plano sectorial, há que identificar e ponderar,

nos diversos âmbitos, os “planos”, programas e projectos, designadamente da inicia-

tiva da Administração Pública, com incidência na área abrangida, considerando os já

existentes e os em elaboração, para garantir a sua compatibilidade. Aplicam-se-lhes

as mesmas normas referentes à avaliação ambiental que são aplicadas aos PEOT77

.

Os planos sectoriais resultantes do sector administrativo governamental do ambiente

contêm em geral importantes normas desta natureza, mesmo que sem as implicações

exigências directas dos designados planos especiais (v.g., planos de bacias hidrográ-

ficas, planos de resíduos, de incineração de resíduos perigosos, de prevenção do

ruído, tal como outros com origem sectorial distinta, mas com relevância ambiental,

tais como os florestais e agrícolas, etc.).

77

V.g., n.º4 do artigo41.º).

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 150

Quanto aos programas especiais de ordenamento do território, eles são instrumen-

tos ambientais específicos. Actualmente, existem vários tipos de PEOT, tendo por

objecto a orla costeira, as áreas protegidas, as albufeiras de águas públicas, os estuá-

rios78

e os parques arqueológicos.79/80

Os programas especiais de ordenamento do território, à semelhança do estabelecido

em matéria de planos sectoriais, são elaborados aprovados pelo governo. Estabele-

cem as directivas para a protecção e valorização de recursos e valores naturais e

definem normas de execução. Portanto, visam a prossecução de objectivos conside-

rados indispensáveis à tutela de interesses públicos nacionais com incidência territo-

rial delimitada, designadamente recursos de relevância nacional com repercussão

territorial, estabelecendo, exclusivamente, regimes de salvaguarda desses recursos e

valores naturais e garantindo as condições de permanência dos sistemas indispensá-

veis à utilização sustentável do território. Neste aspecto, cabe-lhes caso a caso expli-

citar a sua finalidade, com menção expressa dos interesses públicos prosseguidos, a

especificação dos objectivos a atingir, a indicação da entidade publica responsável

pela respectiva elaboração e o respectivo âmbito territorial, com menção expressa

das autarquias locais envolvidas.

Estão proibidas normas que procedam à classificação ou à qualificação do uso do

solo, que são nulas. Até aqui tínhamos os planos especiais com directa vinculação

dos particulares, pelo que a sua disciplina de elaboração exigia a discussão pública

nos termos previstos para o planeamento municipal. Agora, transformados em pro-

gramas, impõe-se apenas que as normas que estabelecem acções permitidas, condi-

cionadas ou interditas, relativas à ocupação, uso e transformação do solo, devam ser

integradas nos planos territoriais, O que já era obrigação prevista na legislação ante-

rior, embora, enquanto não ocorresse, como instrumento de supletiva aplicação

directa, fossem vinculativos dos particulares em geral. De qualquer modo, a sua

função preventiva geral do ambiente implica por princípio o estabelecimento dessas

“acções permitidas, condicionadas ou interditas”, de acordo com os diferentes objec-

tivos, pelo que, no fundo vem antecipar estas em ordem à sua obrigatória trans-

crição.81

78

A elaboração dos POE é uma competência das Administrações de Região Hidrográfica. Os seus

objectivos gerais são a protecção e valorização das características ambientais dos estuários,

garantindo a utilização sustentável dos recursos hídricos, assim como dos valores naturais asso-

ciados; assegurar a gestão integrada das águas de transição com as águas interiores e costeiras

confinantes, bem como dos respectivos sedimentos; assegurar o funcionamento sustentável dos

ecossistemas estuarinos;

Preservar e recuperar as espécies aquáticas e ribeirinhas protegidas ou ameaçadas e os respecti-

vos habitats e garantir a articulação com os instrumentos de gestão territorial, planos e progra-

mas de interesse local, regional e nacional, aplicáveis na área abrangida. 79

Artigo 42.º 80

Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro e o Decreto-Lei n.º 131/2002, de 11 de maio. 81

N.º2 do artigo 44.º e n.º 5 do artigo 3.º

POLÍTICA DE SOLOS

151

As normas de gestão das suas áreas abrangidas, designadamente as relativas à circu-

lação de pessoas, veículos ou animais, à prática de actividades desportivas ou a

quaisquer comportamentos susceptíveis de afectar ou comprometer os recursos ou

valores naturais a salvaguardar podem ser desenvolvidas em regulamento próprio,

nas situações e nos termos que o programa admitir, a aprovar pela entidade que

elabora o programa e que fica sujeito a discussão pública, no prazo de 30 dias a

contar da data da sua publicação (a publicitar no seu sítio na Internet e no dos muni-

cípios abrangidos).

Os programas especiais devem identificar o instrumento de ordenamento do espaço

marítimo e as medidas de articulação e de coordenação de usos e actividades, se

incidirem sobre a mesma área ou sobre áreas que, pela interdependência estrutural

ou funcional dos seus elementos, necessitem de uma coordenação integrada. Deles

constam o Relatório do programa (diagnóstico da situação territorial sobre a qual

intervém e à fundamentação técnica das opções e objectivos estabelecidos) e o Rela-

tório ambiental (identificação, descrição e avaliação dos efeitos significativos no

ambiente resultantes da aplicação do programa e alternativas razoáveis), o Programa

de execução, o plano de financiamento e os Indicadores qualitativos e quantitativos

que suportem a sua avaliação.82

No que se reporta aos diferentes instrumentos consagrados no regime da programa-

ção ambiental de natureza territorial, importa referir aspetos essenciais quer substan-

tivos quer procedimentos, por serem aqueles que especificamente ordenam, a mon-

tante, a normação que o sistema de planeamento de origem autárquica ter de

reproduzir.

Os programas considerados especiais e sectoriais pelo regime jurídico dos IGT

ficam sujeitos a avaliação ambiental, a menos que se justifique a sua desnecessi-

dade,83

a qual pode ser precedida de pedidos de pareceres (a emitir no prazo de 20

dias), que devem conter, também, a pronúncia sobre o âmbito da avaliação ambiental

e sobre o alcance da informação a incluir no relatório ambiental.84

82

Artigo 45.º e capítulo VIII. 83

Alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º 84

Artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 232/2007, de 15 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 58/2011,

de 4 de maio.

RICARDO ALEXANDRE AZEVEDO CONDESSO 152

Bibliografia:

CONDESSO, Ricardo -As Estruturas de Governação em Portugal perante as Assimetrias de

Desenvolvimento Territorial. Que Modelo Seguir? FFL-UNEX, 2012.

CONDESSO, Ricardo e Fernando -“Las asimetrías de desarrollo económico-social en Portu-

gal y la urgente reforma de las estructuras de gobernación territorial”. Em VVAA: Revista

Monfragüe, Espanha, n.º3, 2013. Disponível em http://monfragueresiliente.com/numero1/

indice1.html. [Em linha]. (Consultado em 30.11.2013);

–“Ordenamento Territorial e Desenvolvimento Resiliente: Políticas e Direito. Princípios

Gerais de Intervenção Pública“. Revista Científica Monfragüe, Volumen III Número 1, Junho

2014, Pp. 1-36;

-“Public administration and social economic development, plan¬ning and environment man-

agement: asymmetries development in Portugal and the reform of territorial governance struc-

tures”. Revista Monfragüe. Espanha, n.º 3, 2013;

– “Características e Princípios gerais da Política e direito do Planeamento Territorial em

Portugal”. Portimão: Jurismat n.º 5, 2014, Pp. 225-269.

A Personalidade Juridica

das Sociedades Comerciais Irregulares *

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO **

Sumário: 1. Apresentação e Justificação do Tema.2. Da Personalidade Juridi-

ca.3.Da Personalidade Tributária em Geral.3.1.Noção da Personalidade Tribu-

tária. 3.2.A Vontade e a Personalidade.3.3.O Interesse e a Personalida-

de.3.4.Aspectos da Personalidade Tributária.4.A Personalidade Tributária

Activa.4.1.Os Titulares da Personalidade Activa.5.A Personalidade Passiva

em Geral. 5.1.Fundamentos da Personalidade Tributária Passiva.5.2.A Perso-

nalidade Passiva em Especial.5.3.Situações Especiais de Personalidade.5.4.A

Personalidade e a Capacidade Tributária. Conclusões. Bibliografia

1. Apresentação e Justificação do Tema

O comércio entre os países da península ibérica (Portugal e Espanha) na Europa e os

países da América do Sul, sempre foi privilegiado pela língua comum, a cultura, a

complementaridade dos produtos e ainda pela identificação dos princípios e regimes

JURISMAT, Portimão, 2016, n.º 8, pp. 153-180.

* O texto é sem observância do acordo ortográfico, por opção, de forma a melhor definir os

conceitos jurídicos.

** Doutor Europeu em Direito Tributário pela Universidade de Salamanca; Professor no ISMAT;

Advogado; Diretor do Curso de Direito do ISMAT.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 154

jurídicos vigentes nesses territórios, em especial o regime das sociedades e o aplicá-

vel aos actos de comércio.

Para um melhor desenvolvimento das relações económicas e independentemente da

globalização, é importante o conhecimento da natureza e tipo de agentes macro-eco-

nómicos, nomeadamente a natureza jurídica das sociedades comerciais irregulares.

Nesse sentido, coloca-se a questão de saber se as referidas sociedades têm ou não

personalidade e capacidade jurídica para serem reconhecidos como normais agentes

ou praticantes de actos de comércio, ou seja se podem ser sujeitos de direitos e deve-

res e os podem exercer.

Assim, a questão da natureza jurídica das sociedades comerciais irregulares, ou seja

o problema do reconhecimento de tais “entes” de facto, face ao direito, em obediên-

cia a princípios jurídicos gerais estruturantes do sistema, nomeadamente o principio

da certeza e da segurança do direito, é cada vez mais premente e importante, dado o

comércio, as relações entre sujeitos do direito e a necessidade do direito tutelar cada

vez mais novas relações, sem as quais não haverá Direito e sem ele não teremos

direitos nem obrigações ou deveres.

À face da legislação portuguesa, é pacífico que as sociedades com um fim comercial

que não estejam registadas e consequentemente não se tenham constituído segundo

os trâmites, formalismos e contrato previsto no Código Comercial, são irregulares,

para se diferenciarem das sociedades regulares, respeitadoras dos formalismos e

normas do Código Comercial, pelo que podem e devem ser registadas na Conserva-

tória do Registo Comercial.

Tal critério diferenciador da natureza jurídica das sociedades comerciais, regulares e

irregulares, é subscrito pela doutrina e pela jurisprudência, salvo raras excepções.

Ainda que a sociedade seja comercial,1 porque tem por objecto a prática de actos de

comércio e é considerado acto de comércio2 todo aquele que se achar especialmente

regulado no Código Comercial, e, não for de natureza exclusivamente civil, se o

contrário do próprio acto não resultar, pode ter natureza regular ou irregular.

Daí, se poder concluir que a lei reconhece a existência de sociedades comerciais

ditas irregulares, pelo que lhes atribui personalidade jurídica.

1 C.S.C. – artº 1º nº 2.

2 C.Comercial – artº 2º.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

155

Não obstante esse olhar para com a existência das sociedades comerciais irregulares,

lembramos que o contrato de sociedade3 se encontra tipificado na lei civil, reconhe-

cendo como tal aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com

bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não

seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade.

É evidente que, tratando-se de contrato especial, a lei não pode deixar de tutelar em

especial as relações contratuais entre os sócios, as relações da sociedade para com

terceiros, a morte das sociedade, a exoneração ou exclusão de sócios, a dissolução,

liquidação e partilha da sociedade que toda a vida da sociedade seja regulada pela lei

das sociedades comerciais e, tal tutela não pode existir se os membros de uma socie-

dade nem derem a esta a forma que a lei prevê e regula, o que ocasiona a existência

de “entes” com actividade comercial à margem dessa lei, em nada desejável para a

tutela dos interesses públicos e privados.

As sociedades serão comerciais quando:

-tenham por objecto a prática de actos de comércio,e,

-adoptem o tipo de sociedade prevista na lei, devendo fazê-lo.

Fica assim e desde já colocada a questão de saber como encara a lei, as sociedades

comerciais que não optem por um dos tipos legais, ou seja, as sociedades comerciais

irregulares.

Os interesses públicos exigem a tutela de todos os “entes” ou pessoas do comércio

em geral e dos legítimos interesses das pessoas que contratam com as sociedades

comerciais irregulares.

A identificação ou atribuição da natureza jurídica das sociedades comerciais irregu-

lares é pois do maior interesse, para se dirimirem os interesses entre os membros,

destes para com terceiros e dos membros e a própria sociedade para com o direito

público e do tributário de forma muito especial, dada a concorrência, actividade e

resultados que podem gerar.

Não faria sentido ignorar tais sociedades à face do direito e a legislação portuguesa à

semelhança do enquadramento que tem vindo a ser feito pela legislação dos Países

membros da União Europeia e Itália de forma especial, no seu Código Comercial,

onde no dizer de VIVANTE4 “a legislação se reconheceu impotente para evitar o

reconhecimento da existência das sociedades comerciais irregulares”.

3 C.C. – artº 980º.

4 VIVANTE, Trattato di diritto commerciale, II.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 156

O presente trabalho tem por base de investigação a doutrina nesta matéria, sem pre-

juízo das referências legais que a sustentam, sem atender a eventuais posições da

jurisprudência no conceito, figura ou regime das sociedades irregulares, porquanto

não são abundantes nem uniformes, antes e tão só são pontuais em virtude do litigio

a dirimir em cada processo judicial.

A nossa preocupação e motivação vai no sentido de discutir e tentar encontrar uni-

formidade na doutrina que sirva de base e sustentabilidade às fundamentações em

sentenças e acórdãos judiciais, para além da preocupação de uniformização nas posi-

ções administrativas, no âmbito do direito público (Administrativo, financeiro e

tributário) e também do direito privado em especial o direito comercial e empresa-

rial.

2. Da Personalidade Jurídica

A magna questão de saber se às sociedades comerciais irregulares o direito reco-

nhece ou não personalidade jurídica não se alarga às sociedades civis, uma vez que

não há de facto nem de direito sociedades civis irregulares.

O disposto no artigo 13º do Código Comercial consagra que podem ser comercian-

tes,

-As pessoas, e,

-As sociedades comerciais.

Na verdade, quando a lei se refere às sociedades comerciais, não discrimina as

sociedades regularmente constituídas e as sociedades irregulares, que, não respei-

tando a forma, nem as exigências de substância no contrato societário, não podem

ser registadas na respectiva Conservatória do Registo Comercial, sem prejuízo de

serem comerciantes.

O disposto no artigo 13º do Código Comercial tem dado origem a divergentes posi-

ções doutrinárias, porquanto se pode interpretar no sentido de que, o que a lei não

discrimina, não pode o intérprete fazê-lo, pelo que se a lei refere tão só “sociedades

comerciais”, para as considerar comerciantes, inclui as sociedades comerciais regu-

lares e irregulares.

Não perfilhamos tal interpretação e posição doutrinária nesta matéria, porquanto se a

lei ignora e não regula as sociedades comerciais irregulares, deve-se ao facto de não

as reconhecer expressamente enquanto tais.

É consabido que a personalidade jurídica, é antes de mais, um conceito jurídico,

construído pelo e para o Direito, atendendo aos interesses que a lei deve tutelar, de

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

157

âmbito pessoal privado, público e mesmo social e de inicio, inerente à pessoa huma-

na, que se foi alargando às pessoas colectivas, de forma societária ou outra e ainda,

criando a figura jurídica de “pessoa equiparada às pessoas colectivas”, como aconte-

ce para efeitos de tributação do rendimento, do consumo e quanto à atribuição do

número de contribuinte, nomeadamente às sociedades comerciais irregulares.

Não podemos olvidar que se o conceito de personalidade é inerente à pessoa huma-

na, o próprio conceito de pessoa nem sempre aceitou que pessoas de facto o fossem

de direito, como acontecia com os escravos, independentemente da diferenciação

quanto aos direitos da personalidade e direitos cívicos onde é notória.

Se o conceito de personalidade é do tipo aberto, não podemos estranhar nem deixar

de aceitar a sua evolução no Direito e a atribuição de “pessoa” às sociedades comer-

ciais irregulares, uma vez que pelos interesses que encerram e representam, não

podem ser ignoradas pelo Direito sob pena de termos de aceitar as consequências

negativas inerentes a essa posição de exclusão de tais pessoas, do ordenamento jurí-

dico.

O direito privado e o direito público, atendendo às realidades de facto, têm vindo a

reconhecer a personalidade às sociedades comerciais irregulares e ampliando a sua

regulamentação, ou melhor, aceitando a sua existência e regulando os seus actos, a

sua actividade em si e para com terceiros, privados e públicos.

“As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data

do registo definitivo do contrato pelo qual se constituíram”.5

Numa interpretação literal declarativa, poderá entender-se que o registo é uma con-

dição da sua existência, da sua validade e, a contrario, uma sociedade comercial

irregular, porque não pode ser registada, não existirá, não se lhe podendo reconhecer

personalidade, sendo por isso nula, sem qualquer validade ou produção de efeitos

jurídicos.

Autores6 houve que sustentaram a nulidade das sociedades comerciais irregulares,

sendo essa nulidade absoluta, radical e de ordem pública, não existindo face ao

Direito, entre os sócios nem para com terceiros.

Para CUNHA GONÇALVES, a sociedade comercial irregular só existia para efeitos

de liquidação, ou seja, só existia depois de ser judicialmente declarada inexistente,

pelo que estas posições doutrinárias não tiveram seguidores, apoiantes nem relevân-

cia na jurisprudência.

5 C. Comercial – artigo 5º.

6 CUNHA GONÇALVES; Comentários ao Código Comercial I, Pág. 222.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 158

A tese de que as sociedades comerciais irregulares representam uma simples comu-

nhão de facto, regulada pelas disposições do Código Civil, foi defendida por

ABRANCHES FERRÃO,7 reconhecendo que embora constituída irregularmente a

sociedade e por isso inexistente face ao Direito Comercial pode funcionar e praticar

actos de comércio, contrair obrigações ou assumir a titularidade de direitos não

registáveis.

Pese muito embora a leitura atenta da realidade societária feita por Abranches Fer-

rão, não a podemos aceitar à luz do Direito, uma vez que reconhecer a um “ente” a

susceptibilidade de ser titular de direitos e deveres, é, imperativamente reconhecer-

lhe a personalidade activa e passiva, ser sujeito activo e passivo de qualquer relação

jurídica, sem a qual não há direito.

Salvo melhor, a questão da regularidade ou irregularidade da sociedade comercial

deve centrar-se na existência ou na não formalização do contrato societário.

Na verdade, se o contrato estiver formalizado, poderá ser objecto de registo e tornar

regular a sociedade composta por sócios, accionistas, membros ou cooperantes,

dependendo do tipo legal escolhido. Se o contrato, ainda que existente entre os

sócios, não for formalizado, já a sociedade será irregular.

Daí que, atentando no contrato de sociedade, devemos verificar se é ou não exis-

tente, independentemente da forma ou registo e para isso, dissequemos os seus ele-

mentos:

- O elemento pessoal para que haja um “ente” com vontade própria e inde-

pendente de cada sócio,

-O elemento patrimonial composto por bens, activos, contribuições ou mes-

mo disponibilidade pessoal para prestar serviços, e,

-O elemento teleológico que consiste na intenção dos seus sócios em repartir

entre si os interesses, resultados ou mesmo prejuízos.

Com a verificação de todos esses elementos estaremos perante a existência de um

contrato de sociedade, formalizado ou não e neste caso, há uma sociedade comercial

irregular. Com a existência formal de um contrato, estaremos perante a criação de

uma pessoa jurídica, uma sociedade.

Tal como defendeu e concluiu VIVANTE:8

7 ABRANCHES FERRÃO; Lições de direito comercial português, coligidas por Bessone Abreu.

8 VIVANTE, Tratatto di Diritto Commerciale, II, pág. 331.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

159

O contrato e a pessoa jurídica nascem ao mesmo tempo e sofrem as

mesmas vicissitudes. É neste sentido que se dirige a vontade dos

sócios, que querem dar à sociedade comercial, desde o seu nasci-

mento, o poder de constituir um centro de negócios, dotado de perso-

nalidade própria e distinta para a sua prática.

3. Da Personalidade Tributária em Geral

3.1. Noção de Personalidade Tributária

A Lei Geral Tributária identifica a personalidade tributária com a qualidade de um

sujeito da relação jurídica, quando no artigo 15º consagra que, “a personalidade

tributária consiste na susceptibilidade de ser sujeito de relações jurídicas tributárias”.

O conceito de personalidade tributária afasta-se ampliando a personalidade jurídica

em geral,9 uma vez que para esta a personalidade é inerente à pessoa humana e

adquire-se no momento do nascimento completo e com vida, sem embargo dos direi-

tos que a lei reconhece aos nascituros os quais também dependem do seu nascimento

– quanto às pessoas singulares.

As pessoas colectivas adquirem a personalidade com a escritura pública no caso das

associações;10

pelo reconhecimento, no caso das fundações,11

ou mesmo só através

do registo na Conservatória do Registo Comercial, no caso das sociedades comer-

ciais regulares em geral.

Para alguns autores, a personalidade tributária é uma característica dos sujeitos da

relação jurídica12

e por isso, não fará sentido diferenciar os conceitos de acordo com

os ramos do direito e afirmar que o conceito da personalidade tributária é diferente

da personalidade jurídica em geral.13

Outros autores, tais como ALBERTO XAVIER14

ou mesmo NUNO SÁ GOMES,15

defendem a diferença conceitual da personalidade em geral, da tributária, pelo inte-

resse que visam tutelar.

9 C.C. – artigo 66º.

10 C.C. – artigo 158º nº 1.

11 C.C. – artigo 158º nº 2.

12 BRAZ TEIXEIRA, António – Princípios de Direito Fiscal, obra citada, pág. 161.

13 BRAZ TEIXEIRA, António – Princípios de Direito Fiscal, obra citada, pág. 161.

14 XAVIER, Alberto – Manual, obra citada pág. 364.

15 SÁ GOMES, Nuno – Os Sujeitos Passivos da O. Tributária, in C.T.F. nº 196/198.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 160

A teoria da personalidade jurídica tem assim encontrado sérias dificuldades quando

em torno do conceito jurídico surge uma diversidade de pontos de vista, um dos

quais é o de aferir da sua autonomia em face dos diversos ramos do direito, dos quais

o Direito Tributário não é excepção.

É pacifico que o conceito de personalidade tributária deve ser um conceito jurídico-

tributário não confundível com o conceito de pessoa natural que resulta da lei civil.

O Direito Tributário acolhe o conceito civilista de pessoa e amplia-o segundo novos

valores, novos interesses que a lei fiscal visa tutelar.

Os fins da lei fiscal são a satisfação das necessidades financeiras do Estado, a pro-

moção da justiça social, a igualdade de oportunidades e a necessária correcção das

desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento.16

O conceito civil da personalidade foi concebido a partir da pessoa física, singular,

sendo ampliado posteriormente às pessoas colectivas.

Nesse sentido, o direito civil recusou a qualificação de pessoa jurídica a seres huma-

nos dotados de personalidade física, como por exemplo aos escravos, partindo do

fundamento de que reconhecer aos escravos personalidade jurídica era criar uma

qualidade jurídica sem fim social.17

As categorias jurídicas contêm sempre algo de subjectivo, de configuração de reali-

dades, como acontece na qualificação de filho que pode não corresponder ao con-

ceito biológico e de imobiliário que inclui bens móveis e não só imóveis.

Também,

a atribuição de personalidade jurídica a um certo tipo de associações é

tão fictícia como o reconhecimento da personalidade jurídica a todos

os homens, pelo facto de o serem.18

Cada ordem jurídica tutela um interesse próprio e tem necessidade de criar o desti-

natário desse interesse.

Nesse sentido, pronunciou-se SOARES MARTINEZ,19

afirmando que: “só podem

ser pessoas de direito, realidades a que corresponda um centro de imputação de inte-

resses que a sociedade se disponha a garantir”.

16

L.G.T. – artigo 5 nº 1. 17

SOARES MARTINEZ, Pedro – Da Personalidade. Obra citada, pág. 207. 18

SOARES MARTINEZ, Pedro – Da Personalidade, obra citada, pág.207. 19

SOARES MARTINEZ, Pedro – Da Personalidade, obra citada, pág. 208.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

161

De igual modo, FERRARA20

defende que, o “reconhecimento da personalidade pelo

Direito deve ser colocado apenas num plano de técnica jurídica”, em respeito aos

princípios que regem a própria sociedade.

MICHOUD21

não duvida que, “o interesse é o elemento fundamental do direito sub-

jectivo e o objectivo da própria regulamentação jurídica”.

Esse interesse tem de ser humano; mas pode não incluir-se na esfera jurídica de

determinadas pessoas em termos singulares, podendo situar-se no âmbito de um

conjunto de pessoas ou mesmo pessoas colectivas.

A noção jurídica de personalidade tributária, da qual se partirá para a construção do

respectivo conceito, há-de ser encontrada segundo a teoria da vontade psicológica,

pela teoria do interesse ou mesmo no âmbito e simbiose destas duas teorias.

3.2. A Vontade e a Personalidade

Segundo a teoria da vontade psicológica, poderemos verificar que sendo pacífica a

ideia de que quem quer, tem vontade e é titular de personalidade jurídica; já não é

pacífica a conclusão de que quem não tem vontade psicológica não seja detentor da

qualidade jurídica da personalidade.

O direito subjectivo foi construído partindo da ideia de vontade, do poder de querer,

as quais sendo diferentes, são inerentes à personalidade física, uma vez que a von-

tade não se pode desligar da pessoa e ser entendida como faculdade humana e o

titular do direito será sempre um homem, um ser humano física e juridicamente.

A personalidade jurídica é a transposição pelo legislador do humano natural para o

jurídico, podendo por isso afastar-se para mais ou para menos da realidade natural,

humana.

Nesse sentido, o legislador não reconheceu vontade nem poder de querer a seres

humanos na qualidade de escravos, quando, como humanos tinham efectivamente

vontade natural, física; mas não o poder de querer em face da ordem jurídica defen-

sora de interesses próprios que excluíam a essas pessoas a faculdade ou caracterís-

tica da personalidade.

20

FARRARA, Francesco – La Persona Giuridiche, Turim, 1938, pág. 29 a 33. 21

MICHOUD, Léon – Theorie de la Personnalité Moral, I, pág. 105.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 162

O escravo, não sendo pessoa jurídica porque a norma jurídica não lhe reconhecia

personalidade, era equiparado a uma coisa “rés”, susceptível de ser apropriada e

usada segundo o interesse do seu proprietário, titular desse bem.

No sentido de ampliar a personalidade jurídica em face da ideia de pessoa física, foi

a doutrina alemã que criou o direito subjectivo partindo do conceito de vontade

individual para a vontade colectiva, como que comparando a vontade psicológica ao

comportamento de um conjunto de homens que emanam uma vontade colectiva,

social.

A comparação da vontade colectiva à vontade psicológica, individual, tem obstácu-

los que a doutrina não ultrapassou,22

pelo que a aceitação daquela, é ainda uma

ampliação da vontade individual, pessoal, ou mesmo uma ficção.23

A vontade jurídica não corresponde a uma vontade psicológica, nem tem obrigato-

riamente que corresponder, uma vez que os conceitos jurídicos se desenvolvem com

independência das ideias naturais.

Não obstante tal constatação, não podemos desligar totalmente a vontade colectiva

da vontade psicológica, a menos que a lei tenha necessidade imperiosa, para defen-

der o interesse que a ordem jurídica pretende tutelar, crie e consagre as presunções

jurídicas da vontade.

A vontade colectiva não exclui a vontade psicológica, antes parte dela, reconhe-

cendo-a e ampliando-a, ficando a dúvida de como se deve formar, em face da com-

plexidade dos grupos de pessoas, das sociedades, das comunidades e do tipo de

vontade que o direito pode e deve reconhecer como válido e eficaz.

Perante tais constatações, não é na vontade que reside o fundamento da personali-

dade e consequentemente do direito subjectivo, ou seja, não é a vontade psicológica

que cria a personalidade jurídica; mas é esta que permite a manifestação da vontade

com relevância e força jurídica.

3.3. O Interesse e a Personalidade

A teoria do interesse não exclui a teoria da vontade psicológica para construir a

noção de personalidade; antes a aceita, pois para haver interesse tem de ser aceite a

existência do seu titular que à face da lei lhe é reconhecida personalidade jurídica.

22

MOREIRA, Guilherme – Da Personalidade Colectiva, Rev.Leg. e Jur., ano 40, pág. 451. 23

SOARES MARTINEZ, Pedro – Da Personalidade Tributária, obra citada, pág. 215.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

163

A teoria da vontade psicológica nem sempre se mostra compatível com os princípios

que defende o direito moderno, procurando-se com a teoria do interesse tal deside-

rato.

As teses individualistas que assentam na vontade individual, psicológica, não têm

hoje plena aceitação em face do Estado Moderno, democrático, onde prevalece a

vontade colectiva que pressupõe a existência e a defesa de interesses comuns, colec-

tivos e se sobrepõe à vontade psicológica, individual.

Os Estados e o Direito moderno, baseiam-se na dignidade da pessoa humana, na

vontade popular, com o conceito de soberania, una e indivisível de que é titular o

povo e sempre no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades

fundamentais subjectivas, nos termos dos artigos 1º,2º e 3º da C.R.P.

O Direito moderno só atribui personalidade a entidades que representem interesses

legítimos e legais, imputando-lhe obrigações e reconhecendo-lhe direitos, qualifi-

cando tais entidades de pessoas jurídicas.

A personalidade tributária é pois a susceptibilidade de ser titular de direitos e deve-

res de natureza tributária o que é doutrinariamente aceite, sendo discutível se deter-

minadas entidades ou seres gozam de personalidade jurídica e quais os direitos e

deveres.

3.4. Aspectos da Personalidade Tributária

“A personalidade tributária é um dos aspectos da personalidade jurídica”24

e consiste

no facto de ser um centro de imputação de deveres e direitos de natureza tributária.

Não há uma correspondência entre direitos e deveres, já que a obrigação tributária é

unilateral e de direito público.

Há, porém, direitos e deveres tributários de diversos tipos, nomeadamente de sobe-

rania, de âmbito constitucional e de natureza exclusivamente tributária.

A cada um dos tipos de direitos e deveres, há-de corresponder uma espécie de perso-

nalidade tributária, pois esta varia em função do interesse que a norma tutela.

Nesse sentido, SOARES MARTINEZ25

agrupa os diversos tipos de deveres e direi-

tos em três classes:

24

SOARES MARTINEZ, Pedro – Da Personalidade Tributária, obra citada, pág. 225. 25

SOARES MARTINEZ, Pedro – Da Personalidade tributária, obra citada, pág. 226.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 164

-A soberania tributária e a personalidade tributária enquanto titular do pólo

activo ou passivo da relação jurídica tributária.

-Os direitos e deveres decorrentes da soberania podem ser invocados e exigi-

dos a qualquer dos sujeitos da relação jurídico tributária, sujeito activo ou

passivo.

-Os direitos inerentes ao sujeito activo, são poderes soberanos e por isso se

encontram em plano mais elevado que os poderes ou direitos do sujeito pas-

sivo, podendo a este ser exigidos mesmo contra a sua vontade, como decorre

do poder de tributar que emana do princípio da legalidade e do âmbito da

soberania popular.

A posição sustentada por BERLIRI,26

ao fazer equivaler os direitos do sujeito activo

com poderes soberanos não tem pleno acolhimento na ordem jurídica tributária por-

tuguesa, em especial no artigo 18º da L.G.T., uma vez que o sujeito activo não será o

titular da soberania nem de poderes que dela emanam; mas sim da competência

tributária em matéria de gestão de impostos, pois, o sujeito activo da relação jurídico

tributária será a pessoa de direito público titular do direito de exigir o cumprimento

das obrigações tributárias, por si ou por representante.

Em boa verdade, o sujeito activo não será o titular de direitos; mas tão só de obriga-

ções e competências de natureza tributária que lhe permitem impor tais obrigações

aos sujeitos passivos, contribuintes ou meramente obrigados tributários.

O conceito de personalidade activa e passiva não se afere pelos direitos nem pelos

deveres; mas sim pelo lugar que a pessoa ocupe em cada um dos polos, activo ou

passivo da relação jurídico tributária.

Resulta assim que o sujeito activo não tem só direitos, nem ao sujeito passivo são

impostos exclusivamente deveres de natureza tributária em face dos princípios e

normas ordinárias de natureza tributária.

A cada um dos sujeitos, a lei impõe direitos e deveres que não sendo corresponden-

tes estão em conexão com os fins que o direito tributário se propõe e deve atingir,

em especial a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades

públicas e a promoção da justiça social, a igualdade de oportunidades e a necessária

correcção das desigualdades na redistribuição da riqueza e do rendimento.

26

BERLIRI, António – Principi di Diritto Tributário,I,Milão, 1952, pág. 109.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

165

4. A Personalidade Tributária Activa

O sujeito, a quem a lei tributária atribui personalidade activa é o titular do direito de

exigir o cumprimento das obrigações.27

Exclui-se assim qualquer um dos outros critérios que a doutrina vem defendendo

para identificar o sujeito do polo activo da relação jurídica.

O poder de tributar que emana da Constituição e de forma especial do poder de sobe-

rania, para além do princípio da separação de poderes e do princípio da legalidade

tributária, não é o determinante para a definição ou criação do conceito de personali-

dade activa, sendo certo que será a pessoa em quem são delegados poderes de gestão

administrativa tributária.

O sujeito titular da personalidade activa – Autoridade Tributária –, não tem poderes

próprios, autónomos de tributação; antes e tão só detém poderes delegados para

administrar ou gerir a execução dos créditos tributários ou seja o sujeito activo é

sempre o Estado na sua vertente de administrador e nunca de legislador.

BRAZ TEIXEIRA28

defende que a qualidade de sujeito activo da relação jurídico-

tributária é independente da soberania tributária, podendo a característica de perso-

nalidade activa ser atribuída a entidades diversas do Estado, partindo da ideia de que

o sujeito activo é o titular do direito à prestação, fundamento este que aceitável sob o

ponto de vista doutrinário não tem enquadramento hoje no conceito que decorre do

artigo 18º nº 1 da L.G.T.

O sujeito activo, a quem a Lei Geral Tributária reconhece personalidade não é o

titular de interesse de crédito, antes e tão só o administrador do crédito tributário no

sentido da prossecução de interesses colectivos.

Se o Estado na sua função e poderes legislativos é livre para atribuir personalidade

activa, tal liberdade não dispensa o respeito pelos princípios constitucionais estrutu-

rantes, em especial o da separação de poderes e de que a personalidade só pode ser

reconhecida a entes públicos, dada a natureza pública de relação jurídico-tributária e

em geral do Direito Tributário.

A natureza pública de uma entidade resulta do grau de intervenção do Estado na

prossecução dos seus fins, conforme defende MICHOUD,29

substituindo assim o

27

L.G-.T. – artigo 18º nº 1. 28

BRAZ TEIXEIRA, António – Princípios de Direito Fiscal, obra citada, pág. 166. 29

MICHOUD, Léon – Theorie de la Personnalité Moral, Paris, 1932.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 166

conceito de personalidade de Direito Público pela ligação à manutenção de um ser-

viço público, ou mesmo ao fim da satisfação de interesses públicos e ao reconheci-

mento de que a satisfação desses interesses públicos realiza os fins do próprio Esta-

do, como defende RANELLETTI.30

No âmbito dos princípios, é essencial o exercício de funções públicas para que a essa

entidade seja reconhecida personalidade jurídico tributária activa e, consequente-

mente, a susceptibilidade de lhe ser atribuída competência para administrar e gerir

princípios e preceitos legais, constitucionais e de legislação ordinária de natureza

tributária.

A titularidade activa da relação jurídica comporta diversas situações, nomeadamente

o poder de tributar, a competência tributária, a capacidade tributária activa e a titula-

ridade de receita fiscal,31

sendo que o conceito de sujeito activo e por isso titular

activo com personalidade será a entidade com capacidade tributária activa, por força

do artigo 18º nº 1 da L.G.T.

4.1. Os Titulares da Personalidade Tributária Activa

As entidades com titularidade activa dos impostos podem ser ou não estatais, entes

públicos territoriais tais como as Regiões Autónomas, as Autarquias Locais ou

mesmo entes públicos não territoriais como por exemplo quanto à gestão dos impos-

tos parafiscais os quais são reconduzidos às contribuições para a Segurança Social,

para além dos impostos comunitários, directos e indirectos; ou mesmo entidades

públicas internacionais extra-comunitárias como acontece com o imposto sobre a

produção resultante dos fundos marinhos, nos termos do artigo 13º, anexo III à Con-

venção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

O Estado, na sua função de administrador e não de legislador, é o sujeito activo

tributário, não só por excelência;32

mas o único, uma vez que só ele pode ter capaci-

dade tributária activa ou seja, exercer os direitos emergentes da relação jurídico-

tributária.

Para os autores que doutrinariamente entendem ser sujeito activo e por isso com

personalidade tributária activa as entidades ou pessoas titulares do crédito tributário

ou mesmo titulares do poder de tributar, classificam os sujeitos activos em organiza-

ções internacionais, a União Europeia ou Comunidade Económica Europeia, o Esta-

30

RANELLETTI, Oreste – Institucioni di Diritto Público, 1932, Pádua, pág. 503. 31

CASALTA NABAIS, José – Direito Fiscal, obra citada, pág. 210. 32

Alguns autores, tal como BRAZ TEIXEIRA definem o sujeito activo como o titular do crédito

tributário.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

167

do através dos seus órgãos, as Regiões Autónomas, as Autarquias Locais e ainda os

institutos públicos.

O Estado, titular indiscutível de personalidade tributária activa, procede à adminis-

tração dos tributos desde a liquidação à cobrança, com as inerentes competências de

controlo e fiscalização das normas, através da Autoridade Tributária e Aduaneira,

com as principais atribuições de:

-Assegurar a liquidação dos impostos,

-Exercer a acção de prevenção, informação e fiscalização das normas tributá-

rias,

-Exercer a acção de justiça tributária,

-Assegurar a boa cobrança dos tributos e créditos tributários

-Cumprir os acordos internacionais em matéria fiscal,

-Estudar e propor medidas fiscais de carácter normativo,

-Informar os resultados e objectivos da execução das leis,

-Promover todos os procedimentos nomeadamente de sanções fiscais.

As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, são hoje já titulares indiscutíveis

de personalidade tributária activa, não só pelo facto de terem competências legislati-

vas com poder de tributar;33

mas também por serem titulares com créditos tributá-

rios;34

e fundamentalmente por serem titulares de direito de exigir o cumprimento

das obrigações tributárias, com respeito conceitual pelo que está consagrado no

artigo 18º nº 1 da L.G.T.

As Autarquias Locais, municípios e as freguesias, são também titulares de personali-

dade tributária activa, ainda que de reduzido valor, uma vez que podem administrar

os impostos sobre incêndios e de turismo, para além de serem titulares de outros

créditos tributários por força da Lei das Finanças Locais,35

nomeadamente o imposto

sobre veículos, o I M I e o I M T e ainda serem titulares de créditos tributários

provenientes de impostos directos segundo a dotação orçamental36

em face de diver-

sos factores, em especial a dimensão do território e o seu número de habitantes.

As autarquias freguesias tinham o único caso de sujeito activo nas relações jurídico-

-tributárias que resultam da faculdade de lançar derramas sobre colectas, nomeada-

mente quanto à contribuição sobre o património imobiliário urbano, o que hoje não

acontece, tendo sido transferida tal competência para as Assembleias Municipais,37

33

C.R.P. – artigo 227º nº 1 alínea i). 34

D.L. 22/77 de 18/1, artigo 3º. 35

C.R.P. – artigo 238º nº1. 36

C.R.P. – artigo 254º. 37

CIMI –artigo 112º.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 168

independentemente da lei poder reconhecer poderes tributários às autarquias locais

em geral.38

5. A Personalidade Passiva em Geral

A personalidade passiva tributária em geral, pode ser entendida como um dos pres-

supostos genéricos subjectivos da relação jurídico tributária e consequentemente da

obrigação, a par da soberania, da personalidade activa e da matéria tributável.

Por pressuposto genérico tributário, entendemos toda a condição sem a qual o direito

não se concretiza, não só pela constituição da relação jurídico-tributária; mas tam-

bém pela prestação tributária, obrigação principal.

A toda a norma tributária, direito formal, hão-de corresponder direitos e deveres das

partes e sem estas a relação jurídica é inexistente, também sendo inexistente se faltar

um ente destinatário das imposições tributárias, sujeito passivo, contribuinte ou tão

só obrigado tributário.

A personalidade tributária é pois e assim um pressuposto tributário genérico subjec-

tivo, sendo o pressuposto objectivo a matéria tributável ou o resultado económico

anual susceptível de produzir rendimento liquido, matéria colectável e consequente-

mente prestação de forma a que o direito tributário realize os fins financeiros e de

redistribuição da riqueza em obediência ao princípio da igualdade tributária.

O “ente” de facto ou de direito a quem seja reconhecida personalidade tributária

passiva fica legalmente obrigado ao pagamento da prestação que resulta do acto

tributário, antecedido de procedimento de liquidação e como tal se encontra previsto

nas regras da incidência, a par da incidência objectiva ou factos tributários e das

regras que definem o princípio da territorialidade ou do domínio espacial.

A personalidade passiva em geral pertencerá a pessoa singular ou colectiva, ao

património ou organização de facto ou de direito que, nos termos da lei tributária

fique vinculado ao cumprimento da prestação, independentemente de ser contri-

buinte directo, substituto ou tão só responsável, legal ou voluntário.

Para SOARES MARTINEZ,39

a personalidade tributária genérica é, “a capacidade

para assumir a posição de devedor num vínculo tributário, em geral”, diferenciando-

se de outros tipos de personalidade específica que caracterizam cada uma das rela-

ções jurídicas tributárias de cada imposto em especial.

38

C.R.P. – artigo 238º nº 4. 39

SOARES MARTINEZ, Pedro – Da Personalidade tributária, obra citada, pág.327.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

169

A personalidade tributária é pois um pressuposto tributário genérico; mas também

um pressuposto tributário específico quando em presença e análise de cada uma das

relações tributárias em particular de cada imposto, do rendimento, património ou

mesmo do consumo.

É comum afirmar-se que o direito fiscal tributa situações de facto.

Na verdade, o direito fiscal não ignora nem deixa de tributar as situações de direito,

sendo que não se limita a estas, seleccionando também inúmeras situações de facto

para as sujeitar a imposto, passando assim a ser também de direito.

Exemplo do que foi afirmado, é o conceito de transmissão, porquanto a transmissão

é um facto tributário constitutivo da relação jurídico-tributária.

Para efeitos de tributação do rendimento, em particular apurar os ganhos enquadrá-

veis na categoria “G” do C I R S e com a natureza de incrementos patrimoniais, o

conceito de transmissão fiscal identifica-se com o conceito civil, sendo por isso

necessário que o bem imobiliário mude de titular do direito patrimonial, direito real

e com o registo feito na Conservatória do Registo Predial.

No âmbito da tributação do património, podemos diferenciar duas situações, sendo

uma delas quando haja transmissão de posse, ou mesmo cessão de posição contratual

em contrato de promessa de compra e venda de bens imóveis40

e outra, quando seja

tão só emitida procuração que confira poderes de alienação de bem imóvel ou de

partes sociais em que, por renúncia ao direito de revogação ou cláusula semelhante,

o representado deixe de poder revogar a procuração.

Ainda e quanto à tributação do consumo, a transmissão de mercadorias verifica-se

quando houver mudança do fim e forem introduzidas no circuito comercial para o

consumo, situação em que não há alteração de posse, de titular; tão só do fim.

Exemplo ainda da tributação das situações de facto e não exclusivamente de direito,

é a sujeição a imposto dos factos e rendimentos de natureza ilícita41

ou ilegal, nos

mesmos termos e condições em que se tributam as actividades, factos e rendimentos

legais e lícitos.

Nas situações de facto, o direito fiscal juridifica-as e atribui a qualidade de pessoa

com personalidade aos titulares do interesse ou realizadores de factos tributários,

40

C I M T – artigo 2º. 41

PIMENTEL,Lúcio; A Tributação dos Factos Ilicitos em Portugal, Rev. Jurismat nº 3, Portimão,

2013.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 170

imputando-lhe a posição de sujeitos passivos e consequentemente de todas as obri-

gações fiscais, principal e acessórias.

Quando a doutrina defende que o direito fiscal atende às situações de facto, igno-

rando as de direito, deve entender-se e interpretar-se tal máxima com algumas cau-

telas, porquanto todo o direito deve atender aos factos da vida real para os enquadrar

e aplicar o direito, motivo porque de factos da vida real se transformam em factos

tributários que dão origem à relação jurídica tributária.

O direito fiscal, com princípios, fins, normas e técnicas próprias, autónomos, ainda

que não independentes, atende aos factos segundo regras e princípios seus, afas-

tando-se dos outros ramos do direito, pelo que juridifica tais factos e situações

segundo o seu interesse e os fins a prosseguir.

O reconhecimento da personalidade tributária a “entes” que os demais ramos do

direito não reconhecem com personalidade, é uma necessidade de criação do con-

ceito, sob pena de não ser possível a constituição da relação jurídica tributária e a

realização da prestação, imprescindível para a obtenção de créditos tributários com o

fim da realização das despesas públicas e semi-públicas e a concretização do princí-

pio da igualdade.

Deste modo, o direito fiscal não atende só às situações de facto, antes as interpreta e

juridifica, passando a serem também situações de direito e não só de facto, por se

encontrarem previstas e reguladas na lei fiscal.

A personalidade tributária não é uma construção de mero alcance teórico; mas sim

um instrumento jurídico de conveniência prática para servir a realização dos fins do

imposto, da Autoridade Tributária, ao individualizar o contribuinte e reconhecer que

é um centro de imputação de direitos e principalmente deveres tributários.

O problema dos “entes” de facto tem-se colocado essencialmente a propósito das

sociedades irregulares, não só pelo número; mas também pelo que elas representam

em termos económicos, sem esquecer todas as demais organizações de pessoas e

bens desprovidos de personalidade jurídica.

Se as normas de direito fiscal em Portugal são reduzidas e não explicam todo o

fenómeno, tem sido a doutrina a tomar a vanguarda da situação ilustrada pela posi-

ção de Ruben de Carvalho e Rodrigues Pardal, ao afirmarem que “ onde existe um

centro de imputação de relações ou actividades económicas tributárias aí deverá

haver lugar ao reconhecimento de uma personalidade tributária”.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

171

5.1. Fundamentos da Personalidade Tributária Passiva

Não havendo unanimidade na doutrina quanto a todos os fundamentos para a atri-

buição da personalidade passiva, é pacífico que ela radica em vínculos de carácter

económico, político e social.

Nesse sentido, VANONI42

afirma que a atribuição de personalidade passiva pelo

direito tributário depende de vínculos de carácter politico, económico, social e cor-

porativo.

Negando autonomia aos vínculos social e corporativo, TESORO,43

tal como

SOARES MARTINEZ,44

reconhecem por fundamentos da personalidade tributária

os vínculos político e económico.

Na verdade, é o factor político na sua génese e continuado pela função legislativa,

que fixa os limites da tributação, em obediência aos princípios constitucionais e nos

termos do princípio da legalidade tributária.

O poder de tributar que reside no povo e emana da soberania, é limitado por ele-

mentos políticos, como por exemplo a cidadania, o domicílio, a residência, a perma-

nência em território nacional e a localização dos bens ou interesses.

O factor económico é o vínculo ou fundamento de maior relevo na atribuição da

personalidade tributária, que surge por alargamento do conceito em função do inte-

resse que se pretende tutelar.

O direito fiscal surge para realização dos fins próprios, financeiros e sociais, pelo

que tais fins só serão atingidos com a tributação, ainda que por vezes de situações

jurídicas que nem sempre revelam capacidade económica ou contributiva

O conceito de personalidade tributária é pois um conceito aberto, aceitando a sua

ampliação a novas situações ou entes, desde que os fins da tributação o justifiquem

de forma a poder defender e realizar o interesse tributário.

O vínculo social não é de menor importância que qualquer outro, podendo até

defender-se que é o de maior valor e os demais, são raramente instrumentais.

42

VANONI, Ézio – Natura ed Interpretazioni delle leggi Tributarie, Pádua, 1932, pág.2. 43

TESORO, Giorgio – Principii di Diritto tributário, Bari, 1938, pág.652. 44

SOARES MARTTINEZ, Pedro – Da Personalidade tributária, obra citada, pág. 339.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 172

Os vínculos políticos e económicos só se justificam quando em função do interesse

social que ambos pretendem realizar, utilizando os meios legislativos.

Em boa verdade, os fins financeiros e de redistribuição da riqueza radicam no vín-

culo e fundamento social por terem o fim de realização das despesas públicas e

semi-públicas além do de redistribuição da riqueza no âmbito do princípio da igual-

dade.

5.2. A Personalidade Passiva em Especial

Não será suficiente que alguém, pessoa ou “ente” de facto ou de direito detenha a

característica da personalidade passiva em geral para que seja sujeito passivo de uma

relação jurídico tributária e consequentemente sujeito de obrigações.

Cada tributo ou imposto é o que, nas regras de incidência, irá definir a quem a lei

impõe o interesse ou a realização dos factos tributários aí tipificados para lhe atribuir

a personalidade tributária passiva e consequentemente ser sujeito passivo.

Não obstante a tipificação em cada código do sujeito passivo, poderemos encontrar

factores determinantes especiais, tais como:

- A qualidade de pessoa física necessária para o enquadramento nos sujeitos

passivos em IRS.

- A qualidade de pessoa colectiva, necessária para o enquadramento nos

sujeitos passivos em IRC.

- O parentesco, que influi na capacidade de suceder nos bens deixados pelo

“de cujus” e onde o cabeça de casal deve cumprir as obrigações fiscais ine-

rentes à situação e no âmbito do Imposto de Selo.

- A forma de exercer a actividade, para se inferir se o regime é de trabalho

dependente, independente ou empresarial.

-A profissão que é exercida para se saber quais as deduções específicas que

serão consideradas reduzindo nessa medida o rendimento bruto ou proveitos.

As isenções pessoais funcionam como requisitos negativos da personalidade tributá-

ria específica, no entender de SOARES MARTINEZ, ainda que, em bom rigor, as

isenções subjectivas ou pessoais na tributação do rendimento e do património sejam

uma segunda afirmação legal da personalidade tributária passiva especial.

Quando a lei afasta alguém da tributação, criando uma isenção pessoal é porque

anteriormente e nas regras de incidência lhe havia sido reconhecida especialmente a

personalidade tributária. Exemplos podem ser retirados de todos os códigos, nomea-

damente do artigo 2º do CIRC, onde, quanto às regras de incidência subjectiva se

pode verificar serem sujeitos passivos:

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

173

“ a) As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as coope-

rativas, as empresas públicas e as demais pessoas colectivas de direito

público ou privado, com sede ou direcção efectiva em território portu-

guês.

b)As entidades desprovidas de personalidade jurídica, com sede ou

direcção efectiva em território português, cujos rendimentos não

sejam tributáveis em imposto sobre o rendimento das pessoas singula-

res (IRS), ou em sede de IRC directamente na titularidade de pessoas

singulares ou colectivas;

c)As entidades, com ou sem personalidade jurídica, que não tenham

sede nem direcção efectiva em território português e cujos rendimen-

tos nele obtidos não estejam sujeitos a IRS.”

Não obstante tal regra de sujeição, o artigo 10º do C I R C isenta pessoas, nomea-

damente:

“1. a) As pessoas colectivas de utilidade pública administrativa;

b)As instituições particulares de solidariedade social e entidades ane-

xas, bem como as pessoas colectivas àquelas legalmente equiparadas;

c)As pessoas colectivas de mera utilidade pública que prossigam,

exclusivamente ou predominantemente, fins científicos ou culturais,

de caridade, assistência, beneficência, solidariedade social ou defesa

do meio ambiente”.

A personalidade passiva em especial é reconhecida:

- No CIRS, às pessoas singulares que tenham o domicilio em território portu-

guês e pratiquem ou seja praticado no seu interesse, qualquer facto tributário

constitutivo tipicamente previsto em qualquer das categorias.

-No CIRC, às pessoas colectivas ou a elas equiparadas, que tenham a sede ou

direcção efectiva em território nacional ou nele obtenham rendimentos, ainda

que de actos ilícitos.

-No CIMI, aos titulares do direito de propriedade, usufrutuários, titulares do

direito de superfície ou às pessoas que tenham o uso e fruição do prédio no

caso de propriedade resolúvel e sempre em 31 de Dezembro do respectivo

ano civil.

No CIMT, às pessoas, singulares ou colectivas adquirentes de bens imóveis, para

além de situações particulares que têm um regime especial, como no caso de divisão

e partilha, nos contratos de pessoa a nomear, nos contratos de permuta, nos contratos

de promessa de troca e permuta e outros de igual natureza.45

45

CIMT – artigo 4º.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 174

5.3. Situações Especiais de Personalidade

O conceito legal de personalidade, quando se resume à susceptibilidade de ser sujei-

to de relações jurídicas tributárias, é meramente formal e não reflecte o valor mate-

rial que o mesmo encerra.

A personalidade passiva tributária não se adquire sempre em face ou por força de

factos tributários constitutivos da relação jurídica tributária, podendo resultar de

solidariedade obrigacional, sucessão, responsabilidades legais ou voluntárias e mes-

mo por força de substituição.

O facto tributário constitutivo previsto nas regras da incidência, é a fonte de maior

importância na qualificação e identificação do sujeito passivo, a quem a lei atribui

personalidade jurídico-tributária passiva.

Os factos constitutivos de obrigações tributárias, tais como por exemplo o paga-

mento de rendimentos onde a lei impõe que o pagador deva reter por conta ou na

totalidade o valor da prestação devida, ao titular do rendimento; ou mesmo o respon-

sável subsidiário, gestor ou membro do conselho fiscal, em relação a dívidas de que

era responsável originária a sociedade.

O facto constitutivo da obrigação é pois diferente do facto tributário constitutivo da

relação jurídico-tributária, encontrando-se este sempre tipificado nas regras da inci-

dência, ou seja, constitui a incidência objectiva.

O facto constitutivo da relação jurídica tributária exige que o realizador ou a pessoa

que é constituída sujeito passivo, cumpra obrigações fiscais acessórias, formais e

principais.

O facto constitutivo da obrigação não faz nascer outras obrigações que não sejam

formais ou acessórias, nunca origina obrigação principal, um sujeito passivo; antes e

tão só obrigado tributário.

O sujeito passivo da relação jurídica será sempre o devedor originário da prestação

tributária, enquanto o obrigado tributário na relação de obrigação é responsável

originário pelos valores retidos e não entregues e subsidiariamente responsável pelos

valores não retidos, quando do pagamento dos rendimentos.

As entidades devedoras de rendimento de trabalho dependente, são obrigadas a reter

aos titulares respectivos um valor que, depositado nos cofres do Estado, vai ser

tomado como pagamentos antecipados do valor da prestação devida, situação que

ilustra o tipo de relação jurídica de natureza tributária que impõe ao pagador de

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

175

rendimentos uma obrigação e cujo facto de pagar os rendimentos não dá origem a

uma relação jurídica tributária.

A entidade pagadora de rendimentos é obrigado tributário e não sujeito passivo da

relação jurídico tributária, sendo-lhe reconhecida personalidade tributária, ainda que

não seja pessoa nos termos gerais de direito, como acontece por exemplo quando a

entidade pagadora é uma sociedade irregular ou um ente de facto que também o será

de direito pelo facto do direito fiscal lhe reconhecer personalidade, sem a qual não

lhe é legalmente possível imputar responsabilidades.

“A personalidade tributária é normalmente concedida para a realização dum direito

originário”, conforme reconheceu Soares Martinez; porém, deve também ser reco-

nhecida sempre que o interesse público tributário o justifique, por exemplo quando e

por força da atribuição de responsabilidades. A doutrina tem-se preocupado com a

diversidade de posições do sujeito passivo da obrigação e procurou agrupar em clas-

ses as diversas situações para melhor as estudar e regulamentar. Nesse sentido, os

conceitos de sujeito passivo são diferentes quando é exigível a prestação tributária, a

imposição de obrigações fiscais acessórias e a imposição de prestação a terceiros.

TESORO46

dividiu as situações passivas tributárias em quatro grupos:

- Os sujeitos passivos em sentido formal e material, onde se incluem os con-

tribuintes devedores originários da prestação e os sucessores do devedor, os

quais assumem a responsabilidade originariamente,

- Os sujeitos passivos só em sentido formal, considerando como tais os sujei-

tos a quem é imposta a figura da substituição tributária que, não sendo origi-

nariamente titulares passivos da relação tributária, são-no da relação obriga-

cional tributária.,

- Os sujeitos passivos só em sentido material, incluindo neste grupo as pes-

soas que foram substituídas na imposição da prestação tributária, e,

- Os responsáveis tributários, ou sejam as pessoas chamadas ao pagamento de

um débito alheio, por força de vínculos familiares, profissionais, funcionais,

aquisição de posse de imóveis ou outros.

PUGLIESE47

classificou os sujeitos passivos da relação jurídica tributária e da rela-

ção obrigacional tributária, em grupos de número superior à classificação de

TESORO,48

ou seja:

46

TESORO, Georgio – Principii di Diritto Tributário, Bari, 1938, pág. 94. 47

PUGLIESE,Mário, obra citada. 48

TESORO, Georgio – Principii di Diritto Tributário, Bari, 1938, pág. 94.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 176

- Os sujeitos passivos por débito próprio com responsabilidade directa, são os

sujeitos passivos contribuintes e sucessores, aos quais é exigido o cumpri-

mento de obrigações fiscais acessórias e principais, originariamente e sem

direito de regresso sobre outras pessoas.

- Os sujeitos passivos por débito de carácter misto com responsabilidade

directa, no caso da tributação dos membros do agregado familiar, onde só

serão chamados ao cumprimento das obrigações fiscais acessórias e principal,

as pessoas a quem incumbe a direcção, não sendo chamados a pagamento os

outros membros, ainda que tenham rendimentos e bens penhoráveis,

- Os sujeitos passivos em parte por débito próprio e em parte por débito

alheio com responsabilidade em parte directa e em parte conjunta, situações

que resultam da responsabilidade solidária para com o credor Estado e entre

os diversos responsáveis vigora a responsabilidade conjunta, podendo conci-

liar-se tais regimes pela consagração do direito de regresso de quem suportou

a prestação em excesso e contra as pessoas também eram responsáveis.

- Os sujeitos passivos por débito alheio com responsabilidade substitutiva,

cuja responsabilidade resulta da figura jurídica da substituição e económico-

juridica da retenção.

- Os sujeitos passivos por débito alheio com responsabilidade conjunta, o que

acontece quando a obrigação reverte contra funcionários, notários e outros

intervenientes oficiais no facto tributário e por motivo e consequência de falta

disciplinar.

- Os sujeitos passivos por débito alheio com responsabilidade objectiva, em

regra possuidores de imóveis e cuja obrigação, não cumprida por possuidores

e proprietários anteriores, goza do direito de sequela, o que acontece por

dívida de impostos sobre a transmissão de bens imobiliários – CIMT.

Também a doutrina espanhola se tem preocupado com a classificação dos sujeitos

obrigados tributários, sendo disso exemplo ALBIÑANA,49

que os divide em função

das responsabilidades serem imediatas ou mediatas, sendo estas subsidiárias, solidá-

rias e objectivas.

5.4. A Personalidade e a Capacidade Tributária

A personalidade é a capacidade de direito de gozo, diferenciando-se da capacidade

de agir ou de exercício, uma vez que a uma pessoa pode ser-lhe reconhecida perso-

nalidade tributária e não ter capacidade de, por si, praticar actos jurídicos de natureza

tributária, como por exemplo os incapazes, cuja falta de capacidade de exercício é

suprida pelos representantes legais.

49

ALBIÑANA, Garcia Quintana; Responsabilidades Patrimoniais Tributárias, Madrid, 1961, pág.

139.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

177

Não se pode ter personalidade e ser-se totalmente desprovido de capacidade de exer-

cício. O que pode acontecer é haver o reconhecimento da personalidade e não se

reconhecer capacidade plena de agir ou de exercício, por força da idade, da limitação

da capacidade física ou em função do acto que se pretende praticar.

Deste modo, os menores, sendo pessoas e tendo por isso plena personalidade, não

podendo por si exercer os direitos emergentes da sua personalidade, devem ser

representados pelos seus pais ou seus tutores.50

Os ausentes, sem que deles se saiba o paradeiro e que não tenham deixado legítimo

representante voluntário, serão representados por curadores deferindo-se essa capa-

cidade ao cônjuge, algum dos herdeiros presumidos ou a algum dos interessados na

conservação dos bens.51

As pessoas julgadas inabilitadas por anomalia psíquica, surdez-mudez, cegueira, ou

que se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património, serão assis-

tidas por curador, sem o qual não poderão exercer os seus direitos por não terem

capacidade de agir, por si só.52

As pessoas julgadas interditas do exercício dos seus direitos, por anomalia psíquica,

surdez-mudez ou cegueira e mostrem incapacidade para governar pessoas e bens,

ainda que de maioridade, só podem exercer os seus direitos através de tutor, podendo

este recair no pai ou na mãe e tendo estes o cuidado especial da saúde do interdito.53

Ao falar-se de representantes legais dos incapazes, devemos diferenciá-los dos

representantes legais das pessoas colectivas as quais sendo pessoas e como tal deten-

toras de personalidade jurídica e tributária, só podem exercer os seus direitos e ter

capacidade de exercício através das manifestações de vontade e defesa dos seus

interesses, pelos órgãos próprios de gestão e em função do que se encontre consa-

grado nos respectivos estatutos, ou na falta destes à administração ou a quem por ela

for designado.

Em matéria da capacidade tributária, prevalece o princípio de que dela é detentora a

pessoa a quem o direito fiscal reconheça personalidade tributária,54

só assim não será

quando lei expressa e especial regule o contrário, como acontece no caso dos inca-

pazes e das entidades sem personalidade jurídica, caso em que os direitos e os deve-

50

C.C. – Artigo 124º. 51

C.C. – Artigo 92º. 52

C.C. – Artigo 152º e ss. 53

C.C. – Artigo 138º e ss. 54

L.G.T. – artigo 16º nº 2.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 178

res deverão ser exercidos pelos representantes legais e pelas pessoas que adminis-

trem os respectivos interesses.

Por casos especiais de representação legal, podemos referir:

- A pessoa colectiva dissolvida cuja representação cabe ao respectivo liqui-

datário,

- Os patrimónios autónomos que não dispondo de personalidade jurídica; mas

tendo personalidade tributária, são representados pelos seus administrado-

res.55

- As sociedades e associações que careçam de personalidade jurídica, bem

como as suas agências, filiais, sucursais, representações permanentes, são

representadas pelas pessoas que de facto e de direito actuem como directores,

gerentes ou administradores.56

- A herança indivisa que é representada pelo cabeça de casal nos termos da lei

civil e a quem incumbem as obrigações fiscais acessórias, nos termos do dis-

posto no artigo 26º do C.I. de Selo.57

A representação voluntária será obrigatória para o exercício de direitos e deveres

tributários e só pode ser conferida a advogados, advogados estagiários e solicitado-

res, nos termos consagrados nos artigos 5º,6º, e seguintes do C.P.P.T.

Tanto na representação legal como na representação voluntária, os actos praticados

pelo representante em nome do representado, repercutem-se na esfera jurídica deste,

dentro dos limites dos poderes que foram conferidos por lei ou por mandato.

Se o representante praticou actos para além dos poderes que lhe foram conferidos,

ainda que em nome do representado, caem no âmbito da figura de gestão de negó-

cios, desde que tais actos não sejam de natureza pessoal, porque a serem actos de

natureza pessoal, ainda que em nome do representado, caem no âmbito da figura de

gestão de negócios, desde que tais actos não sejam de natureza pessoal, porque a

serem de natureza pessoal , praticados sem representação e não venham a ser ratifi-

cados, são actos que só obrigam quem os praticou.

Conclusões

1. O ordenamento jurídico português reconhece às sociedades comerciais irregulares,

personalidade jurídica e capacidade de gozo e judiciária em geral e tributária em

55

C.P.P.T. –artigo 8º. 56

C.P.P.T. –artigo 8º. 57

Código do Imposto de Selo aprovado pelo D.L. 287/03 de 12/11.

A PERSONALIDADE JURIDICA DAS SOCIEDADES COMERCIAIS IRREGULARES

179

particular no âmbito da tributação do rendimento e do consumo, atendendo à von-

tade e interesses próprios e aos que dela resultam, com limitação de âmbito; mas nos

mesmos termos e regimes aplicáveis às sociedades comerciais regulares e como tal

registadas na Conservatória do Registo Comercial.

2. A sociedade comercial irregular pode ser titular activo de direitos de crédito e

outros direitos incorpórios e, sobre bens móveis sem registo, pelo que será sujeito

activo de relações jurídicas.

3. A sociedade comercial irregular pode ser sujeito passivo de relações jurídicas e

titular de obrigações e deveres.

4. A sociedade comercial irregular é típica e expressamente contribuinte tributário –

Autoridade Tributária e Segurança Social –, pelo que é sujeito passivo da relação

jurídica tributária.

5. As sociedades comerciais irregulares podem ser donatárias de bens e direitos sem

registo, nomeadamente direitos de crédito.

6. Porque as sociedades irregulares são sujeitos passivos da relação tributária, é-lhes

reconhecida capacidade de exercício para defesa dos direitos que a lei lhe reconhe-

cer.

7. A sociedade comercial irregular pode ser arguida em processo de contra-ordena-

ção tributária.

8. A sociedade comercial irregular pode ser parte em contratos de natureza laboral.

9. A sociedade comercial irregular pode ser titular de direitos e como tal ser execu-

tada em autos de execução.

10. A sociedade comercial irregular pode ser reclamante ou impugnante em proce-

dimentos de reclamação ou em processos de impugnação.

11. A sociedade comercial irregular é mais uma categoria de sociedades, a acrescer

às previstas no Código das Sociedades Comerciais e como sujeitos activos e passi-

vos dos actos de comércio em geral.

LÚCIO AUGUSTO PIMENTEL LOURENÇO 180

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Legislação

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Código Comercial

Código do Imposto Municipal sobre Imóveis

Código do Imposto Municipal sobre Transmissão de Imóveis

Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas

Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

Código do Imposto de Selo

Código do Procedimento e do Processo Tributário

Código das Sociedades Comerciais

Constituição da República Portuguesa

Lei Geral Tributária