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1 JURISPRUDENCIALISMO : UMA RESPOSTA POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE DIFERENÇA? JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra «The birds fly home to these great trees, Here too I am at home…» (Myfanwy PIPER, after Henry JAMES, The Turn of the Screw, Act I, scene IV- The Tour) Permitam-me que comece por ousar um registo quase confessional. Por um lado para, na pessoa do Senhor Doutor Nuno Santos Coelho, agradecer à Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete, à Universidade Presidente Antônio Carlos e à Universidade Federal de Ouro Preto o privilégio de regressar a Vila Rica de Albuquerque (e à praça de Coimbra… com a sua Pousada do Mondego). E de regressar sentindo-me em casa (here too I am at home)… Já no ano passado estive aqui mesmo, à porta da rota dos Diamantes... e não posso deixar de renovar a minha profunda gratidão ao meu Bom Amigo, Senhor Doutor Nuno Manuel Santos Coelho, pela oportunidade que então me proporcionou de, por três ou quatro dias inesquecíveis sempre com encontros muito enriquecedores com jovens mestrandos e doutorandos! , me transformar num viandante (deslumbrado!) dos córregos e cerrados, dos planaltos e montanhas da Estrada Real… ou do seu caminho novo. Como se se tratasse de seguir o percurso (os rastos do percurso) projectado em 1698 pelo bandeirante Garcia Rodrigues… e de assim subir do Rio de Janeiro até Ouro Preto… passando por Petrópolis, Juiz de Fora, Barbacena e Conselheiro Lafaiete. Com uma pequena mas significativa incursão pelo caminho velho... para me deslumbrar com o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas (e as operáticas criações do Mestre Aleijadinho). Por outro lado para manifestar a honra e o gosto imensos mas também o reconhecimento e a emoção que sinto em intervir neste encontro, que se quer expressamente em homenagem ao meu Professor, o Senhor Doutor Castanheira Neves. Com o benefício de retomar a reflexão que tem estado presente em todo o meu percurso (here too I am at home)… mas sobretudo com o privilégio de participar — com queridíssimos Amigos das

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JURISPRUDENCIALISMO : UMA RESPOSTA

POSSÍVEL EM TEMPO(S) DE PLURALIDADE E DE

DIFERENÇA?

JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

«The birds fly home to these great trees,

Here too I am at home…»

(Myfanwy PIPER, after Henry JAMES,

The Turn of the Screw,

Act I, scene IV- The Tour)

Permitam-me que comece por ousar um registo quase confessional. Por um lado para, na pessoa do Senhor

Doutor Nuno Santos Coelho, agradecer à Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete, à Universidade Presidente

Antônio Carlos e à Universidade Federal de Ouro Preto o privilégio de regressar a Vila Rica de Albuquerque (e à

praça de Coimbra… com a sua Pousada do Mondego). E de regressar sentindo-me em casa (here too I am at

home)…

Já no ano passado estive aqui mesmo, à porta da rota dos Diamantes... e não posso deixar de renovar a

minha profunda gratidão ao meu Bom Amigo, Senhor Doutor Nuno Manuel Santos Coelho, pela oportunidade que então

me proporcionou de, por três ou quatro dias inesquecíveis — sempre com encontros muito enriquecedores com jovens

mestrandos e doutorandos! — , me transformar num viandante (deslumbrado!) dos córregos e cerrados, dos planaltos e

montanhas da Estrada Real… ou do seu caminho novo. Como se se tratasse de seguir o percurso (os rastos do

percurso) projectado em 1698 pelo bandeirante Garcia Rodrigues… e de assim subir do Rio de Janeiro até Ouro

Preto… passando por Petrópolis, Juiz de Fora, Barbacena e Conselheiro Lafaiete. Com uma pequena mas significativa

incursão pelo caminho velho... para me deslumbrar com o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos de Congonhas (e as

operáticas criações do Mestre Aleijadinho).

Por outro lado para manifestar a honra e o gosto imensos — mas também o reconhecimento e a

emoção — que sinto em intervir neste encontro, que se quer expressamente em homenagem ao meu Professor, o

Senhor Doutor Castanheira Neves. Com o benefício de retomar a reflexão que tem estado presente em todo o meu

percurso (here too I am at home)… mas sobretudo com o privilégio de participar — com queridíssimos Amigos das

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duas margens do Atlântico! — naquela que (com Derrida) poderíamos dizer uma «comunidade» (uma «cidade»-

refúgio?) de perguntas e responsabilidades. Como se se tratasse assim de visitar (-construir) um «lugar de

hospitalidade soberana» (communauté de la question sur la possibilité de la question1) : aquele lugar privilegiado que,

não pondo em causa a liberdade reflexiva de cada um — antes a estimulando! —, nos une em torno dos desafios

e das exigências (se não da urgência prático-cultural) da «aposta» jurisprudencialista2.

As breves reflexões que se seguem concentram-nos numa das exigências capitais

do discurso jurisprudencialista ou do caminhar-procura com que este nos responsabiliza

(il faut parier (…) et (…)cela n’est pas volontaire, vous êtes embarqué3)

. Refiro-me à

pressuposição de uma validade trans-subjectiva… ou mais rigorosamente à exigência

de vincular esta pressuposição (e o seu compromisso material) a uma experiência de

realização e à praxis que a consuma (dominada pela perspectiva da controvérsia-caso).

Mais do que invocar aquela pressuposição (enfrentando-isolando o discurso de

fundamentação que a sustenta4), trata-se com efeito de considerar a circularidade

constitutiva que — para além do modus operandi de uma simples dialéctica entre duas

dimensões ou dois interlocutores irredutíveis) — alimenta (prático-culturalmente) esta

1 Derrida, L’écriture et la différence, Paris, Éditions du Seuil, 1967, p. 118.

2 Trata-se evidentemente de, já com Castanheira Neves,

invocar a lição do pari de Pascal… para

assim mesmo reconhecer que, prosseguindo este caminho, podemos não ganhar nada... ou tudo ganhar:

veja-se desde logo O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, Lisboa,

edições Piaget, 2002, pp. 51-52, agora também em Digesta. Escritos acerca do direito, do Pensamento

jurídico, da sua Metodologia e outros, vol. 3º, Coimbra Editora, 2008, p.61. 3

Pascal, Les pensées, ed. 1671, VII («Qu‘il est plus avantageux de croire que de ne pas croire ce

qu‘enseigne la Réligion Chrétienne»).

4 E este como núcleo do problema capital dirigido ao quê do direito, um dos três grandes

problemas que a reflexão recuperadora do originarium do direito hoje nos impõe. «O ―quê‖ do direito —

qual o fundamento material que o seu sentido exige constitutivamente a sustentar a sua concreta

normatividade? Se a fundamentação jusnaturalista invocava uma acrítica referência já ontológico-

metafísica, já antropológica que se revelou insustentável, e a fundamentação racionalista, sob os diversos

modelos de auto-constituídas racionalidades procedimentais, implicava afinal pressuposições que a

invalidam nesse sentido, não fica excluído que se reconheça na experiência (poderá dizer-se, humano-

hermenêutica) da histórico-cultural prática humana e da corresponsabilizante coexistência uma específica

intencionalidade à validade em resposta ao problema vital do sentido, e estruturalmente constituída pela

distinção entre o humano e o inumano, o válido e o inválido, o justo e o injusto, intencionalidade que se

refere sempre e convoca constitutivamente na sua normatividade certos valores e certos princípios

normativos que pertencem ao ethos fundamental ou ao episteme prático de uma certa cultura numa certa

época…» (Castanheira Neves, A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da

filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p.

146). Ver também agora muito especialmente «Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está

a crescer...‖ ou a recuperação da filosofia do direito?», Digesta, vol. 3º, cit., pp. 93-94. Sem esquecer

«Pensar o direito num tempo de perplexidade», texto da conferência de abertura das I Jornadas da

Associação de Teoria do Direito, Filosofia do Direito e Filosofia Social (Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa, 9 de Janeiro de 2009), in João Lopes Alves et al., Liber Amicorum de José de

Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário. Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra, Almedina,

2009, pp. 4-5 (1.2. «Uma Ursituation e os problemas implicados»).

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exigência: uma circularidade que há-de estar em condições de assumir a validade em

causa responsabilizando-a (simultânea e incindivelmente) como um contexto-horizonte

de sentido (normativamente condutor) e como um correlato (permanentemente

reconstruído ou reinventado) de uma praxis de realização… mas então também uma

circularidade que nos obrigue a reconhecer nesta praxis — e no «pensamento» que a

«pensa»5 ou na auto-reflexão que este lhe proporciona (as a heightened degree of

attention while performing in the practice6)… e muito especialmente no discurso

metodológico que (como patamar destes pensamento) criticamente a reconstrói7 — uma

dimensão constitutiva da primeira (e da vocação integradora que a onera, se não mesmo

já do o sentido de juridicidade que esta fundamenta)8.

Que outra exigência (de vinculação recíproca) senão aquela que Castanheira

Neves assume ao convocar uma filosofia do direito problemática — a reflexão que a

«hora» da nossa «realidade-existência» (humanamente significativa) está em condições

de nos impor9? Convocar (exigir) esta filosofia como auto-reflexão — defendendo que

esta encontre o seu ponto de partida (ou o seu problema inicial, dito do por-quê) no

«transcender interrogante» de uma prática10

— é com efeito pedir-lhe que se nos exponha

sob uma dupla face: aquela em que a recuperação do originarium do jurídico se

5 «[A] uma ―teoria do direito‖ compreendêmo-la hoje sobretudo como a determinação crítico-

reflexivamente metanormativa do direito, i. é, das concepções e das práticas constitutivas da juridicidade

(…) e dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…) [P]ois só na unidade histórico-cultural entre

aquelas e estes o direito vem à sua existência, à sua objectivação real e pode, já por isso, ser ―objecto‖ de

uma reflexão teórica que nessa objectivação o queira compreender…» [Castanheira Neves, Teoria do

direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998, (versão em

fascículos) pp. 50-51, (versão em A4) p. 28]. 6 Para o dizermos com a ajuda insuspeita de Fish: «Insofar as one is ever critically reflective, one

is critically reflective within the routines of a practice. (…) What most people want from critical

reflectiveness is precisely a distance on the practice rather than what we might call a heightened degree of

attention while performing in the practice. (…) Insofar as critical self-consciousness is a possible human

achievement, it requires no special ability and cannot be cultivated as an independent value apart from

particular situations: it‘s simply being normally reflective. It‘s not an abnormal, special – that is,

theoretical - capacity…» [«Fish Tales: A Conversation with ―The Contemporary Sophist‖» (entrevista

concedida por Stanley Fish a Gary Olson), JAC Online (12-02-1992), http://www.cas.usf.edu/

JAC/122/olson.html (extraído em 11-04-2003)]. 7 Ver muito especialmente Castanheira Neves, Metodologia jurídica. Problemas fundamentais,

Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp. 9 e ss. («O problema metodológico-jurídico»). 8 Cfr. a síntese proposta em «Pensar o direito em tempo de perplexidade», cit., pp.18-22.

9 E que deverá começar por perguntar pelo «sentido do direito na realidade-existência e na

prática humanas»: ver «Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a

recuperação da filosofia do direito?»,, Digesta, vol 3º, cit., pp. 91-199 (4. e 5.). 10

Ver muito especialmente «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito

— ou as condições da emergência do direito como direito», in Estudos em homenagem à Professora

Doutora Isabel de Magalhães Colaço, vol. II, Coimbra, 2002, pp. 837 e ss., agora também nos Digesta,

vol 3º, cit., pp. 9 e ss..

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compreende especificando (autonomizando) uma «intencionalidade ao fundamento»11

e a

autodisponibilidade que lhe corresponde12

… e aquela em que esta mesma recuperação se

realiza identificando (distinguindo) um modelo inconfundível de pensamento jurídico13

e

o tipo de racionalidade que este cumpre. Como se se tratasse afinal de articular dois

momentos ou duas «dimensões» (estruturantes) da «emergência constitutiva da

juridicidade»: a dimensão da validade e a dimensão metodológica14

. Bastando-nos aqui

ter presente… que a primeira destas dimensões (através da auto-reflexão que a

intensifica) se cumpre ela própria numa (ou como uma) interpelação (prático-

culturalmente contextualizada) de um «sentido» (também ele «civilizacionalmente

específico») de «universalidade» — uma interpelação assim mesmo indissociável do

modus operandi de uma reflexão interna e do contraponto crise /crítica que a

alimenta15

… indissociável se quisermos também da compreensão-experiência de uma

criação humano-cultural e do «contexto» a que «constitutivamente» esta se refere (e que

assim mesmo a torna possível ou que assegura a sua identidade-continuidade)16

. E que a

segunda nos incita a considerar uma compreensão específica do problema metodológico.

Uma compreensão que liberte este da demarcação (estanque) de territórios imposta pelo

discurso moderno dos Métodos17

… e que assim mesmo —sem deixar de confrontar a sua

11

«Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da

filosofia do direito?», Digesta, vol 3º, cit., p. 98. 12

Uma intencionalidade à validade precipitada numa perspectiva, num sentido, numa estrutura,

numa normatividade: para um desenvolvimento, ver «O direito interrogado pelo tempo presente na

perspectiva do futuro», in Avelãs Nunes / Miranda Coutinho (ed.), O direito e o futuro. O futuro do

direito, Coimbra, Almedina, 2008, pp.56-65 (3. a)). 13

Dito jurisprudencialista stricto sensu: ibidem, pp. 58 e 66-67 (3.b)). 14

Dimensões que Castanheira Neves faz de resto explicitamente corresponder às duas partes-

núcleos de um curso sobre O actual problema do direito: assim no «programa temático» da disciplina de

Filosofia do Direito e Metodologia Jurídica cumprido na Universidade Lusófona do Porto no ano lectivo

de 2005 /2006 (programa que desde então tem sustentado o percurso desta disciplina) [Primeira Parte – A

validade (I. A crise/ II. A crítica) / Segunda Parte – A metodologia (o sentido da dimensão metodológica

enquanto uma segunda dimensão da emergência constitutiva da juridicidade)]. 15

Já assim exemplarmente em Questão-de-facto — questão-de-direito ou o problema

metodológico da juridicidade (ensaio de uma reposição crítica) – I. A crise, Coimbra, Almedina, 1967,

passim [ver muito especialmente pp. 63-84 (§ 3.º «O processo que conduz da ―crise‖ à ―crítica‖ e § 4.º «O

objecttivo: a crítica»)].Vejam-se também as páginas iniciais de O problema actual do direito. Um curso

de filosofia do direito, policop., terceira versão, Coimbra-Lisboa, 1997, pp. 3-9 (2. «A crise e a crítica» e

2.1. «Conceitualização prévia: o conceito de crise e a sua relação com a exigência crítica»). 16

Para compreender a especificidade desta «particular criação cultural» e do seu contexto

enquanto continuidade (projectado na experiência do tempo da «nossa civilização greco-romana, judaico-

cristã e europeia»), ver muito especialmente a síntese proposta em «O problema da universalidade do

direito – ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», Digesta, vol. 3º,

cit., pp. 111 e ss. (III). Ver também «Pensar o direito em tempo de perplexidade», cit., 7-10 (II.«O

contexto histórico-cultural civilizacionalmente global. As polaridades histórico-culturais») 17

Uma demarcação que nos obrigaria a tematizar o Método como uma operatória (se não como

uma técnica) e então e assim não só a determiná-lo prescritivamente mas também a atribuir-lhe o

território (analitica e cronologicamente) estanque de um posterus: como se se tratasse de reconhecer a

técnica que vem depois da ciência... ou pelo menos de autonomizar-isolar um conjunto de cânones (ou de

regras de correcto proceder) que pressuporiam a (que viriam depois da) estabilização dogmática

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perspectiva e as opções do seu campo temático, mas sobretudo o seu discurso (o seu tipo

de racionalidade), com aqueles que são propostos por modelos de realização

alternativos18

— esteja em condições de o assumir como um problema normativo

(sustentado numa perspectiva noeticamente judicativa e na auto-reflexão crítica que a

leva a sério)19

. O que é ainda, et pour cause, responsabilizá-lo como uma dimensão

constitutiva do próprio sentido da juridicidade. Como a «auto-compreensão de algo — o

direito — que no modo por que realiza o seu sentido específico já em si mesmo se releva

como acto, como o processo prescrutante (fundamentante) de um logos — algo que no

seu próprio ser é meta-odos-logos...»20

Se, à luz da reflexão que nos ocupa, insisto na irredutibilidade e na

interdependência constitutiva destas duas «dimensões» de «emergência», é no entanto

também para sublinhar que não se trata tanto de as convocar como dimensões

autónomas — para depois as responsabilizar por uma dialéctica — quanto de identificar

cada uma delas a partir da dinâmica em que ambas indissociavelmente participam ou do

movimento comum que sustentam. É com este alcance — para exprimir uma certa

unidade intencional de determinantes e determinados e a textura de relações recíprocas

que a torna possível (e que assegura um recomeço permanente... na mesma medida em

que constrói uma perspectiva institucionalmente inconfundível!) — que me socorro da

representação do círculo... ou das possibilidades do pensar em círculo. Como me

poderia afinal socorrer doutras…

Outras representações seriam certamente mobilizáveis... e com contributos

relevantes (e as acentuações diferenciadas que estes permitem). Se não porventura a da

sobreposição-trama de bottom-up e top-down programming — a impor-nos uma

(eventualmente, também depois da objectivação-especificação da validade que esta traduz ou pode

traduzir). 18

Confronto que Castanheira Neves defende como uma das tarefas nucleares da teoria do direito

de que hoje precisamos (uma teoria que diz precisamente crítico-reflexiva). Para além da Teoria do

direito. cit, passim, vejam-se também as sínteses propostas em O problema actual do direito. Um curso

de filosofia do direito, policop., terceira versão, cit., pp.65-86, e muito especialmente em «Entre o

‗legislador‘, a ‗sociedade‘ e o ‗juiz‘ ou entre ‗sistema‘, ‗função‘ e ‗problema‘ – os modelos actualmente

alternativos da realização jurisdicional do direito», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 1 e ss., agora também nos Digesta, vol. 3º, cit., pp. 161 e ss.

Como é sabido, trata-se de assumir uma proposta de diferenciação (e de «explicitação sistemática») das

perspectivas (se não «paradigmas») de compreensão «pelas quais se oferece hoje a juridicidade»: uma

proposta que nos autoriza precisamente a contrapor normativismo, funcionalismo e jurisprudencialismo,

mas também a distribuir o segundo pelas modalidades principais do funcionalismo material e do

funcionalismo sistémico. 19

Ver supra, nota 7. 20

Já assim na Questão-de-facto ― questão-de-direito ou o problema metodológico da

juridicidade, cit., p. XI da Introdução.

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suspensão epistemológica iluminada pelos discursos da informação e pela sua

perturbadora inteligibilidade sistémica —, seguramente a da espiral sem fim (Ricoeur) e a

do percurso do arado que sulca persistentemente um único terreno (Weinrib, Fish): a

primeira a identificar um processo de passagens sucessivas pelo mesmo ponto cumpridas

a altitudes distintas… e então e assim a acentuar uma dinâmica de transformação e de

irrepetibilidade, que é também de crescimento ou de adequação progressiva (a cet égard,

j’aimerais parler plutôt d’une spirale sans fin qui fait passer la méditation plusieurs fois

par le même point, mais à une altitude différente21

), a segunda a evocar um traçado que

deixa (que vai deixando) sempre rastos diferentes e mais profundos... e então e assim a

mostrar-nos que o problema a ter em conta é antes de mais o de uma certa perspectiva

interna e o das práticas que a constituem-cumprem ou o do contexto a que estas se

referem as doing what come naturally (inasmuch as [this](...) account of law does not

strive for any standing point beyond law, the most that it can do is plough over thesame

ground in ever deeper furrows22

)

Dizer que cada uma destas dimensões constitutivas deve ser identificada na

perspectiva da dinâmica em que participam… não significa no entanto invocar uma

conformação pré-determinada deste movimento (e muito menos garantir

aproblematicamente o seu êxito). É (será) de resto antes como um desafio explícito —

permanentemente assumido on the edge e sob o fogo de interrogações radicais — que

me proponho acentuar aqui esta experiência de irredutibilidade (e a conclusion-claim de

interdependência que lhe corresponde).

Como um desafio… e como um desafio situado. Um desafio que só estaremos

em condições de invocar (e de levar a sério) vivendo-experimentando o pathos de

«perdição» e de «autocriação» de uma hora de «abalo»23

. E que hora de «abalo»

(enquanto representação-experiência de uma circunstância prático-cultural irrepetível)

senão aquela em que nos reconhecemos feridos pela crise de uma certa ideia da Europa

21

Ricoeur, Temps et récit, tome I, Paris, Éditions du Seuil, 1983, p. 111. 22

Ernest J. Weinrib, «Legal Formalism: On the Immanent Rationality of Law», The Yale Law

Journal, vol.97, nº 6, 1988, p. 974. «Law‘s justification (…) cannot properly be truncated. It must be

allowed to expand completely into the pace that it naturally fills…» (Ibidem, p. 971, itálico nosso). Ver

também Fish, Professional Correctness. Literary Studies and Political Change (Oxford Clarendon

Lectures, 1993), Harvard, 1999, p. 22. 23

Jaspers, Einführung in die Philosophie, cit. na trad. portuguesa Iniciação filosófica, 6ª ed.,

Guimarães Editores, Lisboa, pp. 26-27.

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e da civilização de direito que esta construiu... se não já também «comovidos» pelas

possibilidades-promessas de uma pós-filosofia e de um pós-direito24

?

Uma «hora» que — mais de um século depois da especificação programática da

Allgemeine Rechtslehre (e do seu exemplar tempo de teoria do direito) — nos obriga a

discutir outra vez a plausibilidade de uma perspectiva interna? Podemos dizê-lo. Sem

esquecer que a discussão daquele primeiro tempo — como uma oportunidade de justificar

metadogmaticamente a relação juridicidade / cientificidade / Método — obedeceu a um

traçado circunscrito — capaz de descobrir possibilidades (ou pelo menos alternativas de

solução-assimilação) predeterminadas25

—… e que esta (a presente!) só pode ser levada a

sério se nos expuser aos riscos (imprevisíveis) de uma interrogação radical. Ao ponto de

devermos reconhecer que discutir a possibilidade de uma perspectiva interna passa a ser

agora interpelar (não poder deixar de interpelar) a inteligibilidade-continuidade de uma

certa criação cultural e do projecto de demarcação humano/ inumano que lhe

corresponde... ou porventura mais do que isso, arriscar na renovação recuperadora de um

certo contexto (e do mundo humano que este constrói, condiciona e determina).

Que desafio é este... que se cumpre, como acabámos de ver, em nome da

reciprocidade constitutiva da dimensão intencional e da dimensão da realização? Na

nossa circunstância presente não será já só nem principalmente aquele que nos incita a

rejeitar em bloco a frente de reinvenção jusnaturalista (e os seus rastos, mais ou menos

persuasivamente defendidos)...

Isto na medida em que nos impede de conceber a validade pressuposta como um

núcleo de significações pré-determináveis em abstracto, reconduzíveis a uma

«universalidade intencional» auto-subsistente — uma universalidade que pudesse

(re)conhecer-se antes (ou pelo menos independentemente) da sua realização concreta (e

como um «modelo absoluto» desta realização)26

24

«Em termos de estar inclusivamente a ser ultrapassado o que se houvesse de entender por

―crise‖, naquele excesso problemático que a esta exactamente caracteriza...» (Castanheira Neves, «Pensar

o direito num tempo de perplexidade», cit., p. 3.) 25

Acentuar esta predeterminação não significa evidentemente ignorar as «feridas» que a frente

da Allgemeine Rechtslehre abriu e a produtividade com que tais feridas vieram a ser assimiladas! Uma

dimensão esta que procurei explorar em «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de

teoria do direito reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria», in João Lopes

Alves et al., Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário, cit., pp. 261

e ss. 26

Ver muito especialmente Castanheira Neves, A crise actual da filosofia do direito no contexto

da crise global da filosofia, cit., pp. 37-52.

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8

Porque é antes e sobretudo aquele a que a exigência de um pensamento

integralmente prático — livre do primado de um qualquer discurso teorético… e então e

assim apto a habitar um palco dominado pela tensão irredutível entre pretensões de

pluralidade discursiva e de unidade intencional27

— explicitamente nos submete.

Tensão ou tensões estas que nos obrigam a enfrentar o círculo validade /realização

acentuando (hipertrofiando!) factores e representações que o tornam particularmente

vulnerável? Podemos concluir que sim. Não tanto porque se trate de admitir que os

problemas a ter em conta se nos exponham iluminados (amplificados) pela vertigem de

uma configuração patológica (e pelo traço grosso que esta exige) quanto porque se trata

de reconhecer que a tensão ou tensões em causa só nos atingem (e só se tornam

enquanto tal experimentáveis) se levarmos a sério uma situação-limite. Ora uma

situação-limite de interpenetração e de incorporação recíproca, se não mesmo já de

«oposição em ninho» (a nested opposition is a conceptual opposition where the

opposed terms «contain each other»28

). Uma situação na qual o sofrimento-solidão

provocado pela fragmentação e pela incomensurabilidade — eventualmente também

pelo abismo sedutor de uma discursividade em degraus, infinitamente prosseguida (e

pela vertigem de incomunicabilidade que esta agrava) — se torne indissociável da

procura de uma «intercompreensão na existência»29

(de uma exigência de comunicação

que não seja apenas de «entendimento para entendimento» ou de «espírito para espírito»

...mas de «existência para existência»30

). Ou se quisermos, uma situação-limite na qual

a celebração (-consagração) prescritivamente feliz da pluralidade (por uma vez livre da

nostalgia da unidade perdida) se deixe permanentemente (mas nem por isso menos

paradoxalmente!) ferir pela urgência de uma cooperação (material!) entre experiências e

27

Num outro texto, complementar deste [«Validade comunitária e contextos de realização.

Anotações em espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema» (a publicar em breve)]—

apresentado também num encontro em torno de Castanheira Neves (Porto, Universidade Lusófona, 5 de

Novembro de 2009) —, a consideração dos problemas do mundo e do pensamento prático (no seu

contexto global) alarga-se a outras tensões (de aqui não tratamos directamente): refiro-me ao contraponto

dogmático / crítico (ao problema de uma normatividade crítica), mas também ao contraponto

juridicidade / moralidade. 28

Estamos evidentemente a mobilizar Balkin, «Nested Oppositions», Yale Law Journal, vol. 99,

1990, pp. 1669 e ss. Para um esclarecimento da categoria, ver infra, nota 112. 29

A expressão (convocada embora explicitamente a propósito de Habermas) é de Castanheira

Neves, «Uma reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da

filosofia do direito?», Digesta, vol 3º, p. 90. 30

Jaspers, ob cit., p. 26.

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9

formas racionais31

. Uma situação-limite que — já mergulhando no universo específico

do direito — nos autorize a mobilizar a vocação integradora da intenção à validade (e a

força condutora da sua perspectiva normativa) na mesma medida em que reconhecemos

que as resistências à univocidade de uma coordenação material se tornaram dimensão

constitutiva tanto das práticas de realização juridicamente relevantes quanto das práticas

que exteriormente as condicionam. O que é ainda e significativamente perguntar —

arriscarmo-nos a perguntar — se (e até que ponto é que) assumir um diagnóstico-

experiência de pluralidade não nos condena à celebração regulativa correspondente

(obrigando-nos a aceitar diversos caminhos e as auto-reflexões que os orientam e que

simultaneamente estes constróem).

Acentuação que nos basta para esboçar um percurso reflexivo: um percurso que

nos obriga a frequentar uma espécie de território-pagus — partilhado por um espectro

diversificado de diagnósticos e (ou) pela experiência que os concerta [1.] —... antes de o

submeter o contraponto pluralidade/ unidade a dois exercícios de contextualização

distintos: o primeiro a remeter-nos para uma compreensão global da praxis e do mundo

prático, que o é também já explicitamente da communitas ou do regresso desta [2.]; o

segundo a concentrar-nos no mundo prático do direito e na abordagem interna que a

sua renovação exige [3.].

1. O primeiro passo cumpre-se recolhendo (acumulando) os sinais de

fragmentação (de perda de unidade) que afectam as práticas juridicamente relevantes....

mas sobretudo permitindo que estes sinais se distribuam (se decomponham) em três

grandes núcleos de emergência. Sendo certo que se trata menos de identificar três

desafios de organização diferenciados do que de reconhecer (e isolar analiticamente)

três veios temáticos imprescindíveis e as resistências que estes geram.

1.1. Que sinais? Os primeiros a ter em conta são seguramente aqueles que

recolhemos quando nos concentramos na experiência da reflexão académica… — e nas

«situações institucionais» (e modos de fazer sentido) que a cumprem32

: sinais que nos

31

No sentido do processo de «cooperação material» entre «formas vitais» que a transversale

Vernunft (Vernunft als transversale Vernunft, Vernunft als Dimension der materiale Übergänge) de

Welsch nos incita a descobrir: ver exemplarmente Unsere postmoderne Moderne (1987), Weinheim, Acta

Humaniora, 31991, pp. 315-318 («Transversale Vernunft und postmoderne Lebensform»).

32 Estamos evidentemente a dizê-lo com Fish... e então e assim a identificar a reflexão em causa

com uma «teoria» ou cálculo teorético (theoretical calculus): entenda-se — no sentido (amplíssimo) que

o Autor de Doing What Comes Naturally nos incita a reconhecer —, como uma prática discursiva ou

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10

confrontam com a impossibilidade de uma linguagem única — se não com a perda de

uma linguagem-centro —, na mesma medida em que testemunham esta

impossibilidade ou este descentramento invocando o processo de erosão-Detruktion de

um certo paradigma33

... ou a circunstância prático-cultural que declara esta superação

irreversível34

.

α) Aqueles que identificamos «ouvindo» — mobilizando, na sua imediata

inteligibilidade semântica (mas também na sua integridade) — cada um dos

testemunhos que a academic house (tanto no plano dogmático como nas diversas

instâncias meta-normativas), está (estará) em condições de produzir.

Como se enfrentar o processo de «descentramento» do formalismo normativista

— a recondução deste à condição de uma perspectiva entre outras possíveis —

significasse antes de mais recolher os «sinais» que os seus interlocutores-oponentes

iluminam… e estes indissociados das decisões de relevância que os seleccionam35

e dos

«códigos» que os decifram e hierarquizam — se não também já das concepções do direito

que explicita ou implicitamente os sustentam como testemunhos36

.

como um projecto interpretativo que, invocando o significante direito ou as expectativas que o

determinam (dizendo-se dogmática ou metodologia jurídicas, teoria ou filosofia do direito), tem por

objectivo (e por horizonte de relevância) dirigir-se a outra prática ou acervo de práticas (também elas

iluminadas por uma pretensão de juridicidade). Para uma consideração do problema do cálculo teorético

em Fish (com as indicações bibliográficas indispensáveis), veja-se o nosso Constelação de discursos ou

sobreposição de comunidades interpretativas? A caixa negra do pensamento jurídico contemporâneo,

Porto, edição do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, 2007, pp.16-21 (1). 33

Identificado com a naturhistorische Anschauungsweise des Rechts e com a operatória

(Handwerkzeug) que o sustenta e que se diz Método Jurídico... mas também (evidentemente) com outros

formalisms (e rule conceptualisms) anglo-saxónicos... e então e assim, se quisermos, com um grande eixo

iluminado pelas sínteses fecundas da Theorie der juristischen Technik de Jhering e do system of

classification de Langdell. 34

Trata-se de partir da circunstância de um pensamento que — sendo discurso e prática (acervo

de discursos e de práticas) — perdeu (superou) o seu modelo (sem o ter substituído por outro). Sendo

certo que a experiência a ter em conta é menos a da consumação de um discurso dominante do que a da

reacção-resposta a esta perda: uma reacção que terá multiplicado as propostas de compreensão do direito

(e os projectos interpretativos que as especificam), enquanto permite que as práticas-labours dos juristas e

das comunidades dos juristas — e as situações institucionais que as estabilizam — sejam disputadas por

um espectro sem precedentes de possibilidades (com horizontes intencionais e processos de

racionalização inconfundíveis, se não incomensuráveis). 35

Que os reconstroem como condições-constrangimentos a ter em conta (entre outras condições-

-constrangimentos)… ou que os responsabilizam como materiais-recursos de um diagnóstico autónomo… 36

E então e assim acumular distintas «representações» do interlocutor-oponente «formalismo

jurídico»: perceber que a máscara deste interlocutor convocada pelo Rückgriff auf «Werte» de Esser

(enquanto defende uma perspectiva sistémico-dogmática dos Wertkonzense juridicamente relevantes)

acentua traços completamente distintos daqueles que o «programa construtivo» de Unger (ao defender um

uso puramente instrumental, politicamente comprometido, do jurídico) nos estimula a reconhecer —

percebendo também que são ainda outros traços (no limite do incomensurável!) aqueles que o

teleologismo tecnológico de Hans Albert e que a realistic pragmatic indeterminicy thesis de Anthony

D‘Amato desenham quando pretendem identificar tal interlocutor.

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Com um resultado global que nos atinge como uma justaposição ou como uma

soma (eventualmente como uma sobreposição-overlapping) de experiências auto-

reflectidas — cada uma delas a procurar reagir à ausência de uma linguagem comum…

e neste sentido também a escolher um caminho37

β) E aquele que reconhece os sinais da fragmentação-divisão (e os rastos com

que estes nos ferem) considerando exclusivamente a pragmática destes testemunhos —

ou esta enquanto pressupõe, mas também enquanto reproduz, a experiência incon-

fundível de um confronto (entre testemunhos rivais).

Não um confronto qualquer — que nos surpreenda apenas pela frequência e

intensidade dos seus lances e pelos «resultados» devastadores que estes provocam (the

loth of faith concerning the availability of objective criteria, the intensification of the

conflict among the community of legal actors, the dissolution of any genuine consensus

over important values38

) —, mas um confronto que acaba por condicionar as respostas (e

por interferir nas principled solutions que estas propõem). Enquanto e na medida em que

ameaça perverter o cálculo teorético: um cálculo que tenderá assim a esquecer a prática-

alvo a que naturalmente se dirige… para a substituir por outra — precisamente aquela

que sustenta os testemunhos rivais (e estes como outras tantas principled solutions). O

que não é senão correr o risco de mobilizar discursos (e intenções conformadoras)… que

se alimentam menos dos problemas que pretendem enfrentar (ou converter) do que das

críticas que dirigem aos outros discursos.

O risco de condenar a reflexão académica à confidencialidade (se não

privacidade acroamática) de uma comunidade de vanguarda (e à experimentação

da pluralidade que esta está em condições de prosseguir)? Antes o de a fechar

sobre si própria, sem que esta clausura nos poupe no entanto ao ruído intenso que

a dinâmica do seu conflito interno provoca. O risco de a entregar a uma vertigem

auto-referencial? Também o de a incitar a produzir a cadeia de discursos e

37

Experiência paradoxal esta, enquanto nos condena a recolher-decifrar os sinais de

fragmentação ou de perda de unidade nas vozes que pretendem assimilar-superar tais sinais e constituir-

se como alternativas totalizantes. É este um paradoxo que considerei menos esquematicamente em

«Jurisdição, diferendo e ―área aberta‖. A caminho de uma ―teoria‖ do direito como moldura?» (a publicar

em breve nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias). 38

Michel Rosenfeld, «Deconstruction and Legal Interpretation: Conflict, Indeterminicy and the

Temptations of the New Legal Formalism», in Drucilla Cornell / Michel Rosenfeld/ David Gray Carlson

(ed.), Deconstruction and the Possibility of Justice, New York/London, Routledge, 1992, p.152.

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metadiscursos que alimenta esta vertigem39

: como outras tantas pretensões de

racionalização que, dirigindo-se (as conclusions-claims) às práticas (de realização) do

direito, só conseguem, no entanto, enfrentar-assimilar os problemas dessas práticas

indirectamente, enquanto se interpelam umas às outras como discursos ou enquanto

desconstroem reciprocamente os argumentos que as sustentam (enquanto renunciam,

mais ou menos explicitamente, à vocação-destino de uma reflexão prático-normativa).

Como se se tratasse afinal de preservar uma intenção conformadora ou de optar por uma

das modalidades de determinação (normativa ou desconstrutiva) que esta oferece, sem

descobrir no entanto o caminho que a(s) possa projectar directamente nas práticas-alvo (e

na law in action que lhes corresponde). Ao ponto de o sucesso obtido por este espectro de

vozes inconciliáveis se reduzir paradoxalmente a um efeito de multiplicação de

possibilidades equivalentes40

Como se se tratasse por um lado de descobrir os «sinais»-problemas a ter em

conta nas — e através das (e de cada uma das) — reacções-respostas que se lhes

dirigem (ou no diagnóstico que explícita ou implicitamente estas pressupõem e

constroem)[α]… e de por outro lado reconhecer como problema o contraponto-

-confronto destas respostas e o diferendo que estas geram [β].

1.2. O núcleo que se segue continua a confrontar-nos com a impossibilidade de

uma linguagem única. A pluralidade com que nos atinge é no entanto outra, como

39

Com o alcance que o diagnóstico (conjunto) de Levinson e de Balkin nos permite reconhecer:

«[There is an] increasing amount of scholarship, especially in the elite journals, that is about other legal

scholarship, rather than about primary legal materials like statutes and cases. Legal scholarship becomes

an increasingly self-contained, self-referential discipline, which is "about itself" as much as it is about the

legal world outside, either law on the books or law in action. As interdisciplinary movements like law and

economics or law and literature spring up, they begin to focus not on their relationship to the work of

lawyers and judges, but to their own internal coherence and justification. Legal interpretation is replaced

by legal theory, which is replaced by meta-theory, which is replaced by meta-meta theory, and so on…»

(Sanford Levinson,/Jack Balkin, «Law, Music and Other Performing Arts» (1991), University of

Pennsylvania. Law Review, vol. 139, 1991, p. 1652). 40

Um efeito que nos expõe aos riscos do esoterismo (e da incomunicabilidade, se não

impotência) dos discursos teoréticos, na mesma medida em que entrega estes — enquanto desfazem e

refazem a urdidura-trama que os outros engendram — a um implacável jogo de Penélope. O jogo que

Duncan Kennedy denuncia enquanto surpreende o movimento perpétuo dos discursos que recriam

(positivamente) a pretensão de neutralidade do julgador (how judges can and should be neutral). « There

is no extant theory that threatens to end the current ideological conflict abut method by compelling a

consensus about how judges can and should be neutral. Indeed, the current multiplicity of contradictory

theories of neutrality seems a powerful, though of course not conclusive refutation of all of them. I am an

admirer of their work of mutual critique. I endorse Dworkin‘s critique of Richard Posner along with

Andrew Altman‘s critique of Dworkin and Fiss‘s doubtless forthcoming critique of Altman, and Posner‘s

critique of Fiss (if there is one) and on around the circle. This is not musical chairs but more like a game

of ―Penelope‖, in which each writer simultaneously weaves his own and unweaves other‘s work…»

[Duncan Kennedy, A Critique of Adjudication (fin de siècle), Cambridge Mass., Harvard University

Press, 1997, p. 91, itálicos nossos].

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outros são de resto os seus sinais. Se o percurso anterior nos expôs a uma pluralidade

de linguagens enquanto contraponto-confronto (semântica e pragmaticamente relevante)

de vozes possíveis… — e de vozes que (conduzidas por uma reflexão metanormativa)

assumiam como tarefa procurar-prescrever exigências de sentido e de realização (se

não modelos de racionalidade… e esquemas metódicos) comuns a todo o território do

direito (que todos os discursos-práticas que mobilizam o significante direito pudessem

ou devessem partilhar)41

… —, o plano que agora nos importa descobre essa pluralidade

distinguindo (separando) grupos ou pequenas comunidades (experimentando um

imediato processo de separação-distribuição)… e então e assim permitindo que cada

uma daquelas práticas-discursos (sem excluir as que a academic house reúne) nos

apareça — enquanto tarefa e na imanência desta (ou da auto-reflexão que a conduz) —

vinculada a uma (determinada) experiência colectiva.

Experiência colectiva que as noções de grupo semiótico e de comunidade

interpretativa (comprometidas embora com horizontes de compreensão

inconfundíveis42

) nos ajudam a reconhecer. A primeira enquanto identifica um

«sociolecto»-território e a institucionalização de «correspondências» e «semelhanças»

que este defende — na mesma medida em que responsabiliza estas por uma «rede

limitada de comunicação» e pela construção interna (inconfundível) de uma pretensão

de juridicidade (The sense of the expression the ―law‖ is constructed internally, and

separately, within the discourse system of each group: what is common is the signifier,

the expression, not the signified, its meaning. Each semiotic group operates with its own

system of semantic values, its own system of meanings43

). A segunda enquanto

especifica tais correspondências ou as actualizações contínuas de significado que estas

prosseguem: por um lado para as comprometer como critérios (mais ou menos

explícitos) de «correcção profissional» e com as rotinas que estes (enquanto projectos

41

Vozes que assumiam esta procura enquanto discutiam a possibilidade-

impossibilidade de um paradigma-centro… ou pelo menos, a oportunidade de reconstruir-propor (de

determinar prescritiva e empiricamente) uma canonicidade profunda (the background strucures of «law-

talk» that shape conversation within and concerning the law (…) including (…) characteristic forms of

legal argument, characteristic approaches to problems, underlying narrative structures, unconscious

forms of categorization, and the use of canonical examples): assim em «Legal Canons: an Introduction»,

in Balkin/ Levinson, (ed.), Legal Canons, New York, 2000, pp. 5, 14-24 («Deep Canonicity»). 42

A primeira associada à gramática narrativa de um semiotic turn (susutentado na teoria do

significado de Greimas), a segunda vinculada ao convencionalismo pragmático de Fish. 43

Bernard s. Jackson, Making Sense in Jurisprudence, Liverpool, Deborah Charles Publications,

1996, p. 346. Para uma consideração do problema da especificidade dos grupos semióticos juridicamente

relevantes (num diálogo com Greimas, Landowski e muito especialmente Jackson) , veja-se o nosso Entre

a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, Coimbra, Coimbra

Editora, 2001, pp. 582 e ss., 592 e ss., 610 e ss.

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interpretativos) estabilizam; por outro lado para acentuar a dinâmica de continuidade e

de transformação que distingue (que autonomiza) estes projectos — uma autonomia-

distinctiveness que só a inteligibilidade retórica, internamente assumida, de um

exercício profissional, na persistência exemplar do território-círculo que suas tarefas

constroem, está (estará) em condições de sustentar (as if ploughing over the same

ground in ever deeper furrows44

).

Seja como for, uma pluralidade de linguagens — melhor dizendo, de códigos

linguísticos e extralinguísticos — que corresponde a uma multiplicação de «situações

institucionais», de projectos de realização, de materiais canónicos, de processos de

textualização-retextualização, deregarasde procedimento, de intenções de leitura, de

destinatários e auditórios potenciais (se não de temas-problemas, de materiais-objecto,

de canais expressivos)… e ao cruzamento inevitável destes, em todas as arenas da

praxis — com expectativas e soluções de equilíbrio distintas, elas próprias em

conflito.45

.

Uma multiplicação-separação que nunca terá deixado de condicionar a expe-

riência dos juristas46

… e que no entanto atinge especialmente a nossa circunstância.

Como uma intensificação das divergências provocada pela opacidade crescente dos

grupos e das comunidades envolvidas… se não potenciada pelos diagnósticos que se lhe

dirigem e pelos meios-recursos que este mobilizam (no limite também por um horizonte

compreensivo sensível à pluralidade dos contextos e das convenções performativas, se

não mesmo à multiplicação dos usos… e dos usos que constroem sentidos)? Não será

difícil reconhecê-lo. Sem esquecer no entanto um outro problema. O das ameaças que

hoje se dirigem à integridade destes grupos e micro-grupos. Ameaças que

comprometem a unidade dos sociolectos e dos cânones profissionalmente mobilizáveis

e a plausibilidade das situações institucionais que estes garantem (se não a clausura que

sustenta os respectivos instrumentos de persuasão e a relação com os auditórios que

estes pressupõem). Antes porventura de imporem a fragmentação do projecto

44

Ver supra, nota 22. 45

«[An] increasing divergence in canon construction among (…) sociolegal (…) groups may be

a sympton of an increasing differentiation in purposes among academics, lawyers, and judges (in addition

to the professional differentiation that has always existed between lawyers and citizens). Each

interpretative community may have its own canon (or set of canons), and although these canons surely

overlap, they may also diverge in particular respects…» (Balkin/ Levinson, «Legal Canons: an

Introduction», cit., p. 11). 46

E que continuaria a condicionar-nos na sua insuperabilidade… ainda que admitíssemos que

uma das vozes em diferendo na academic house conseguiu finalmente impor-se às outras (e preparar o

terreno para um novo discurso dominante).

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interpretativo e das finalidades que o iluminam47

. Ameaças que, como vemos, tornam

esta experimentação da pluralidade vulnerável à primeira. Como se os grupos e micro-

grupos em causa, preservando embora a identidade que os fecha uns perante os outros,

se nos expusessem enfim atingidos pela impossibilidade de reconstruir (teoreticamente)

um projecto integrante e pelo contraponto-confronto das vozes que pretendem reagir a

esta impossibilidade — vozes que, como sabemos, partem exclusivamente de um destes

grupos…

Acentuação no entanto que não nos obriga a reconhecer um fogo unilateral —

desencadeado-desferido apenas pela academic house —, que antes nos incita a explorar

um círculo de experiências partilhado por esta (enquanto feixe de discursos «dirigidos»

a outros discursos) e por todas as suas potenciais práticas-alvo. Na mesma medida em

que justifica a autonomização de um último núcleo.

1.3. Um último núcleo… no qual a pluralidade emerge directamente deste

círculo de experiências interdiscursivas e da reciprocidade constitutiva que as estimula?

Importa admiti-lo. E desde logo porque os «sinais» que este núcleo aglutina,

interferindo directamente com os dois núcleos anteriores (ou com uma dimensão que

47

Como se tivesse deixado de fazer sentido falar por exemplo do modus operandi e dos

procedimentos canónicos que distinguem (em bloco) a comunidade ou o grupo semiótico dos advogados,

impondo-se-nos antes reconhecer que as situações de leitura e que os processos de racionalização

permitidos devem ser hoje distribuídos (divididos) por um espectro de concepções possíveis e pelas

«imagens» que lhes correspondem. Imagens que nos expõem à(s) herança(s) do bad man de Holmes e às

possibilidades (pluralmente assumidas) de reconstituir empírico-explicativamente a sua estratégia-jogo (e

a situação de incerteza competitiva que o justifica)… na mesma medida em que — numa zona de

fronteira alimentada pelas seduções contrapostas das frentes law as science e law as politics (dos

Progressive Legal Realists e dos Radical Legal Realists, da Law and Economics Scholarship e dos

critical scholars) — nos oferecem modelos de escolha racional mais ou menos determinados (e a

projecção operatória que os assimila). Imagens ainda que nos obrigam a mergulhar no debate

individualismo/ comunitarismo: porventura para (com James Boyd White) reconhecermos as «situações

de leitura» (se não mesmo as formas de vida) dos advogados Euerges e Euphémios — o primeiro

comprometido com um certo pluralismo individualista («liberal» latissimo sensu), o segundo a assumir

uma explícita vocação comunitária (e a «cultura retórica do argumento» que a torna possível).

Imagens que se multiplicam… se quisermos considerar as «situações institucionais» do julgador,

exigindo agora que (entre muitos outros exemplos possíveis) se reconheçam (se demarquem) os

territórios-projectos do juiz administrador (consagrado pelo Estado Providência) e do juiz-«centro do

sistema» (justificado pela reprocessualização pós-instrumental), do juiz político do grande consenso

constitucional (táctico comprometido com uma grande estratégia material) e do juiz (ou juízes) da

comunidade dos princípios… sem esquecer decerto aqueles que vinculam o julgador a um critério de

maximização da riqueza ou que o responsabilizam por uma estratégia política alternativa… mas também

aqueles que o incitam a convocar o exemplum da ética da alteridade (se não a mergulhar num continuum

«prático-poiético»). Para uma reconstituição deste espectro com um número muito mais alargado de

interlocutores, vejam-se os nossos «A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz : o

―testemunho‖ crítico de um ―diferendo‖?» e «Jurisdição, diferendo e ―área aberta‖. A caminho de uma

―teoria‖ do direito como moldura?», , cit., passim.

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lhes é comum e que até agora silenciámos), atingem significativamente — como outras

tantas ameaças-desafios — todos os discursos justificados por uma pretensão de

juridicidade e (ou) os territórios que estes defendem (e isto independentemente de os

podermos ou devermos isolar como discursos teoréticos ou como discursos-alvo48

).

Como ameças–desafios? Antes como uma frente pluridimensional de hetero-

-referências — com arenas propulsoras que poderão ir da política à filosofia, passando

pela economia, pela ciência e pela ética (e por uma ética que, ora submetida a um

esforço de «trivialização» e «tecnicização»49

, ora ocupada com a reinvenção de um

novo horizonte de sentido, se impõe cada vez mais como uma «alternativa» ao

direito50

). As hetero-referências que se impõem às decisões institucionalizadas nas

periferias (do legislador e da autonomia privada)51

… mas também aquelas que

48

Mantendo-se a distribuição de Fish apenas como um meio expressivo (sem as implicações que

o Autor lhes atribui). 49

Neste sentido, cfr. Fernando Araújo, «Pontos de interrogação na filosofia do direito», Revista

de Direito e de Estudos Sociais, ano XLVIII (XXI da 2ª Série), nºs 1-2, 2007, pp. 148-149 (34.). 50

A ética suportada por uma política, se não por um processo de politicização permanente (e a

exigir uma espécie de continuum prático): neste sentido (invocando o problema das alternativas ao

direito assumido por Castanheira Neves e sustentando a possibilidade de reconhecermos uma quarta

alternativa, precisamente a da ética, com frentes de reinvenção muito distintas, que poderão ir da ética

das virtudes comunitarista à ética da alteridade da Desconstrução, passando pela(s) ética(s) do

continuum das espécies), cfr. o nosso «O dito do direito e o dizer da justiça. Diálogos com Levinas e

Derrida», in Themis - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, VIII, nº 14,

2007, p. 50, nota 165 [remetendo para «A ética do continuum das espécies e a resposta civilizacional do

direito. Breves reflexões», Boletim da Faculdade de Direito LXXIX, Coimbra, 2003, pp. 197 ss., 214-215

e «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos. Da convergência com a literatura

(law as literature, literature as law) à analogia com uma poiesis-techné de realização (law as

performance)», Boletim da Faculdade de Direito LXXX, Coimbra, 2004,, cit., pp. 65-66, 132-135]. Para

uma consideração do problema (acentuando a importância de reconhecermos limites ao direito como

«corolário» do «sentido da sua autonomia»), ver muito especialmente Castanheira Neves, «O direito

interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 69-81 (III., 1.) e «Pensar o direito

num tempo de perplexidade», cit., pp.27-28 (V.2. «Os limites do direito»). 51

Com o sentido que Luhmann sustenta, enquanto nos ensina a descobrir a «forma de

diferenciação interna» (autopoieticamente construída e assim livre de qualquer «conotação hierárquica ou

orgânica») que convoca o sub-sistema judicial para o centro do sistema. Uma forma de diferenciação que,

mobilizando a proibição da denegação da justiça e reconhecendo nesta um operador decisivo (no qual

todo o sistema aparece afinal implicado), garante às decisões judiciais — em confronto com as decisões

dos legisladores e com as decisões da autonomia privada — um muito maior «isolamento cognitivo» (o

isolamento que as impede de reconhecer nos «efeitos sociais» critérios juridicamente relevantes). «In der

Peripherie werden Irritationen in Rechtsform gebracht ― oder auch nicht. Hier garantiert das System

seine Autonomie durch Nicht-entscheiden-Müssen. Hier wird sichergestellt, daß das Recht nicht einfach

als willenlose Fortsetzung rechtsexterner Operationen fungiert. Das Zentrum bedarf dieses Schutzes ―

gerade weil es unter der entgegengesetzten Prämisse operiert. Deshalb arbeiten Gerichte, verglichen mit

Gesetzgebern und Vertragschlieβenden, unter viel stärkerer kognitiven Selbstisolation…» (Das Recht

der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1993, p. 322). Para uma consideração deste modelo centro

/ periferia, na sua relação decisiva com o paradoxo constitutivo do sistema jurídico — um sistema

jurídico que só poderá garantir a sua autonomia se contiver (se incluir, se fizer sua), ou se pelo menos não

excluir a negação desta autonomia (e com esta também a negação das convenções que a protegem)

[Ibidem, p. 545] —, vejam-se os nossos «A ―abertura ao futuro‖ como dimensão do problema do direito.

Um correlato do pretensão de autonomia?», in Avelãs Nunes / Miranda Coutinho (ed.), O direito e o

futuro. O futuro do direito, cit., pp. 397-412, e «Rechtsdogmatik, Autonomie und Reduktion der

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condenam a dogmática (se não todo o Juristenrecht) a assimilar teleologias alheias

(acompanhando assim um direito que, no seu ímpeto regulatório, se pulveriza em

muitos direitos52

). Ou ainda aquelas que — independentemente dos movimentos

académicos que as mobilizam — se expõem nas práticas dos movimentos sociais e nas

identidades narrativas que as sustentam (o género, a raça, a orientação sexual, a

militância religiosa, a construção de uma identidade ambientalista). Sem esquecer

aquelas que são favorecidas (quando não construídas) por dinâmicas internas (a

começar certamente pela hipertrofia normativa da constitucionalização). Ou ainda

aquelas que (no plano já da teoria do direito) nos obrigam a discutir verdadeiros

problemas de fronteira(s)53

: bastando-nos aqui e agora convocar os percursos

exemplares (e exemplares também pelo espectro que os distingue) do narrativismo

comunitarista, da Law & Economics Scholarship e dos Crits da «terceira geração»54

(incluindo a(s) Feminist Jurisprudence(s), a Critical Race Theory, os Lesbian, Gay and

Transgender Legal Studies… mas também a Internal Network for Labor Law, a

Postcolonial Law Theory, as Third World Approaches of International Legal

Studies…55

).

Mais uma vez o problema parece ser o do paradigma perdido. Já não porventura

apenas nem principalmente enquanto ausência de uma linguagem-centro (com a

Komplexität. Brauchen die Gerichte ein Sicherheitsnetz?», in Schweighofer et alii (Hg.),

Komplexitätsgrenzen der Rechtsinformatik. Tagungsband des 11. Internationalen Rechtsinformatik

Symposions IRIS 2008, Boorberg Verlag, Stuttgart, 2008, pp. 464-467 (1.). 52

É um dos factores do diagnóstico de crise desenvolvido por Castanheira Neves em «Uma

reflexão filosófica sobre o direito — ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da filosofia do

direito?», cit., pp.78-79 . 53

Com o alcance que David Howarth (insitindo nos mesmos exemplos de base) nos ajuda a

reconhecer: ver «On the Question ―What Is Law?‖», Res Publica, nº 6, 2000, pp.264-275 («Boundary

Disputes and Concepts of Law»). 54

A «geração» da fragmentação (concentrada nas identidades narrativas da perspectiva

interrogante) que Minda propõe como terceira geração [Gary Minda, Postmodern Legal Movements. Law

and Jurisprudence at Century’s End, New York /London, New York University Press, 1995, pp. 106 e

ss., 123-127 («Late-1980s Critical Legal Studies»)]. Uma sistematização-divisão esta que sempre

seguimos no nosso programa de Teoria do direito [ver Sumários Desenvolvidos (A), «As alternativas da

―violência mística‖ e da ―escolha racional‖ – I. A Correcção Situada das Injustiças ou a Procura Frustrada

de uma Violência Mística?», Coimbra, 2001-2002, polic., pp. 3 e ss.], que vemos também assumida por

Ana Margarida Gaudêncio [Entre o centro e a periferia : a perspectivação ideológico-política da

dogmática jurídica e da decisão judicial no Critical Legal Studies Movement (Dissertação de Mestrado

em Ciências Jurídico-Filosóficas), Coimbra, polic., 2004 (a publicar em breve), pp. 3 e ss., 6 e ss. (Parte

I) ] — e que não obstante se distingue daquela que Günter Frankenberg propõe em «Partisanen der

Rechtskritik: Critical Legal Studies, etc», in Buckel/Christensen /Fischer-Lescano (Hrsg.), Neue Theorien

des Rechts, Stuttgart, Lucius & Lucius, 2006, pp. 96 e ss. [autonomizando uma primeira geração mais

próxima da teoria do direito neomarxista, uma segunda a superar esta sob a influência de Foucault (mas

também já da crítica feminista) e uma terceira (que corresponde à segunda autonomizada por Minda!) a

assumir o literary turn desconstrucionista… sem esquecer depois (como que num quarto tempo!) a

fragmentação e os Post-Critical Legal Studies que esta abre…]. 55

Ibidem, pp. 101-102.

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18

renúncia ao modelo de unidade que esta constituiria) mas como superação

(desagregação) de uma pretensão de autonomia — ou de uma pretensão de autonomia

que, traduzindo-se numa perspectiva interior, pudesse assegurar uma autêntica

demarcação de fronteiras (unânime ou pelo menos dominantemente reconhecida).

Avaliação esta que se cumpre em três passos:

(a) pressupondo uma experimentação da autonomia vinculada ao discurso

jurídico iluminista e aos diversos fluxos que este alimenta, se não já concentrada na

«representação»-paradigma do Método Jurídico — uma experimentação que

circunscreva tal pretensão a uma defesa explícita de atributos formais (implicados na

auto-subsistência estrutural do texto-norma e na reconstituição dogmática ou

dogmático-sistémica da unidade destes);

(b) associando a plausibilidade desta pretensão ao destino deste paradigma

(tornando-a componente indissociável deste)… e então e assim apresentando-no-la

como elemento-núcleo de uma concepção do direito entre outras possíveis (aquela que

os normativismos do nosso tempo estão em condições de assumir);

(c) admitindo que o «descentramento» irreversível daquele Método e de outros

rule formalisms nos condena a uma explosão de modelos (e de filtros de relevância)

alimentados por arenas exteriores56

1.4. Admitido este diagnóstico-testemunho, urge voltar à pergunta que o

suscitou: como é que podemos compreender a vocação integradora da intenção à

validade (e a força da sua perspectiva normativa)... num momento (numa circunstância)

em que a experiência das práticas de realização juridicamente relevantes parece opor-

se à univocidade de uma auto-reflexão condutora?

Mais do que repetir esta pergunta, trata-se porém de a reformular. E de a

reformular sem romper o continuum com o diagnóstico anterior: antes confirmando a

resistência efectiva que a fragmentação dos discursos exerce... e ao ponto de admitir

que o problema que assim nos atinge possa ser directamente confrontado com as

intenções e exigências de unidade (se não integridade) da resposta jurisprudencialista.

Reformular a pergunta nestes termos será por exemplo querer saber se (e até que

ponto é que) a nossa circunstância nos permite reconhecer um commune de intenções

56

Será inevitavelmente assim no entanto? Até que ponto com efeito (e com que necessidade) é

que os passos desta avaliação se nos impõem? Não dependerá a sucessão que constroem ainda

integralmente da compreensão da autonomia (do direito e do pensamento jurídico) que é assumida pelo

formalismo normativista... uma compreensão que a avaliação em causa pretende rejeitar (cuja rejeição

pelo menos diagnostica como irreversível)?

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19

autónomas às quais (a cujo horizonte de inteligibilidade) possamos referir as práticas

discursivas juridicamente relevantes — sendo certo que, para evitar um ponto de partida

comprometido com a antecipação de um qualquer commune, se entendem por tais

práticas aquelas nas quais o significante direito é invocado com uma pretensão (pelo

menos) identificadora. De uma forma mais clara e rigorosa, tratar-se-á no fundo de

perguntar se (e até que ponto é que) estamos em condições de invocar um tal horizonte-

referente e de o experimentar — com alguma univocidade! —… quando é certo que o

testemunho global de que podemos (e devemos!) partir reconhece ao fim e ao cabo que

tais práticas — independentemente de as vermos reunidas no seu território partilhado

[1.1.] ou separadas em pequenos territórios e outras tantas redes limitadas de

comunicação [1.2.] — se nos expõem invariavelmente disputadas por projectos de

integração inconciliáveis… ou mais do que isso, mergulhadas num (feridas por um)

contexto prático hostil — um contexto no qual as pretensões de identidade e de

continuidade (mas também de autonomia) do projecto cultural do direito se tornaram

dificilmente compreensíveis (e como tal insusceptíveis de serem univocamente

mobilizadas57

) [1.3.].

Formulação que, no seu deliberado nominalismo (aquele que o continuum com o

testemunho-diagnóstico lhe exige), está longe de ser neutra… porque nos aponta já um

caminho. Não se tratando tanto de reforçar o paradoxo que atrás reconhecemos — o de

um encontro com a pluralidade (e mesmo com a fragmentação) justificado como uma

sucessão-acumulação de reacções-respostas integradoras (orientadas pela intenção de

esquecer ou pelo menos de domesticar essa pluralidade) — quanto de o tratar como um

falso paradoxo e de assim mesmo reafirmar a solução organizatória que leva

pressuposta.

Que solução organizatória? Aquela que, ao condenar-nos ao patamar de um

diferendo entre vozes equivalentes — ao reconhecer-identificar o diferendo (e a

incomensurabilidade que o alimenta) nas vozes que admitem tê-lo superado e nas

respostas que estas propõem (e que encontram nos testemunhos rivais uma prática-alvo

privilegiada) —, nos leva a tratar a resposta jurisprudencialista como uma resposta

entre outras possíveis... — uma resposta com uma frente de conclusions-claims

selectivamente construída … e que como tal só faz sentido à luz de determinadas opções

57

A não ser porventura quando se trata de, pela negativa, identificar o programa de autonomia-

Isolierung do normativismo e outros formalismos…

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20

ou códigos (mobilizando o sistema de valores semânticos e o modelo de antecipação

pragmática que estes pressupõem)58

...

Uma solução organizatória também que, em nome do mesmo continuum com a

celebração descritiva e prescritiva da pluralidade, nos obriga a tratar a exigência de

unidade intencional assumida pela resposta jurisprudencialista e a sua compreensão

(integrada) do projecto humano do direito — bem como o propósito de uma renovação

recuperadora do sentido originário deste — como outras tantas manifestações de uma

pretensão-aspiração de inter-semioticidade: uma pretensão que, em nome de uma

intenção de unidade ou de coerência normativa, se descobre assim constitutivamente

repetida... e isto enquanto e na medida em que se dirige (com expectativas diversas

embora) a todas as práticas que o significante direito identifica (ou a todas que ela

reconhece enquanto tal)59

.

Uma pretensão de inter-semioticidade entre outras possíveis? Importa

acrescentar. Sem esquecer que as outras a ter em conta são precisamente aquelas que as

outras vozes em diferendo (enquanto alternativas de compreensão da juridicidade)

efectivamente manifestam, sempre que explicita ou implicitamente convoquem a

categoria de inteligibilidade sistema jurídico (e esta como especificação de uma

representação ou de um projecto de unidade ou de coerência). Mas sem esquecer

também por fim que reconduzir estas intenções a meras aspirações de inter-

semioticidade significa ainda — perante a ausência de um significado univocamente

(consensualmente) determinável, no limite também perante a impossibilidade de invocar

um referente exterior (objectivamente reconhecível) — estar em condições de as

tematizar (entenda-se, de as comparar e de as distinguir)… apenas no plano dos

significantes (ou da teia argumentativa que os articula)…

2. É só quando rompemos o continuum com o testemunho da pluralidade —

menos porventura para reconhecer a impossibilidade de uma perspectiva equidistante

(metadiscursivamente legitimada) do que para resistir, com este reconhecimento, às

seduções de um pluralismo nomológico (e no limite também ao abismo de uma

indiferenciação hipertélica) — que conseguimos pensar uma alternativa às

interrogações anteriores (e às dificuldades em que estas nos aprisionam) [1.4].

58

Mas então também hipertrofiando factores-elementos em detrimento de outros (e submetendo

as práticas em causa a equilíbrios diferenciados). 59

Para o dizermos ainda com Jackson: ver supra, texto cit. na nota 43.

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A primeira etapa para levar a sério a relação de compossibilidade entre

pretensões de unidade intencional e de pluralidade discursiva, vamos cumpri-la, com

efeito, introduzindo um filtro de relevância… e reduzindo (circunscrevendo) assim o

círculo das vozes protagonistas. Trata-se na verdade de mobilizar-experimentar já uma

certa concepção da praxis e do pensamento prático — não certamente por acaso aquela

que a aposta jurisprudencialista (uma destas vozes!) assume como um dos eixos

determinantes do seu corpus (e dos pressupostos culturais que o constituem)60

... —, na

mesma medida no entanto em que também se trata de admitir que esta experimentação,

ao deter-se num patamar de representação global, possa ainda (et pour cause!) abstrair

dos problemas de sentido e das exigências de institucionalização que o mundo prático

do direito especificamente suscita (ou pode suscitar).

Abstrair do modo como os diferentes discursos que se dirigem a este mundo

específico — ou que encontram neste (ou numa organização deste) a sua prática-alvo

(entre os quais certamente aquele que corresponde à abordagem jurisprudencialista) — se

relacionam com o referido horizonte. Abstrair, se quisermos, das diferenças que, logo

aqui, as referidas vozes nos impõem61

.

Mas então e assim… de mobilizar-experimentar já uma certa concepção da

praxis e do pensamento prático… convocando ainda (sobretudo) o horizonte de

inteligibilidade global (aberto pela segunda metade do século XX) que a torna

reflexivamente possível (se não exigível). Ora um horizonte que se constrói assumindo a

indissociabilidade desta praxis e do seu discurso. Uma indissociabilidade que só a

mediação reflexivamente autónoma de um mundo-referente — enquanto contexto-

ordinans dos sentidos culturais mobilizados e construídos pela praxis — nos autorizará

decerto a compreender e (ou) a experimentar.

60

Para uma exploração deste corpus da compreensão jurisprudencialista (enquanto núcleo de

«pressupostos fundamentantes»), ver Castanheira Neves, Apontamentos complementares de teoria do

direito – Sumários e Textos, policop., Coimbra, 1998, (versão em fascículos) pp. 71-86, (versão em A4)

40-47. 61

Diferenças inevitáveis e imediatas… não só porque as referidas vozes pressupõem diferentes

especificações deste horizonte global, mas também porque, como veremos, lhe atribuem um papel ou um

contributo distintos: num espectro de possibilidades que poderá ir da assimilação pura e simples (no

limite de uma transposição-projecção aproblematicamente unilateral do mundo prático global para o

mundo prático do direito) até à construção de uma conversação responsável, na qual o referido horizonte

seja tratado como o interlocutor indispensável de um diálogo possível (sendo o outro interlocutor

precisamente aquele que assume as preocupações e a identidade institucionalmente específica do universo

do direito). Importando antecipar que é nas oportunidades deste último pólo que se inscreve a resposta

jurisprudencialista…

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22

Tratando-se por um lado de iluminar uma praxis que, sendo nuclearmente

energeia — enquanto estabelece um parentesco constitutivo com as coisas que mudam,

mas também enquanto se nos expõe indissociável das acções e dos juízos em que se

consuma… —, só se nos revela intencionalmente (só se especifica como interacção

humanamente significativa) ao assumir-realizar esse mundo e ao experimentar-construir

este como um contexto-correlato plausível — um contexto assim mesmo inevitavelmente

limitado e aberto, disponível e indisponível (ou com diversos degraus de

autodisponibilidade).

Tratando-se por outro lado de insistir no desafio de um pensamento integral e

auto-subsistente problemático… ou se quisermos na oportunidade (circunstancialmente

única) de o levar a sério. Que desafio? O de um discurso que, oferecendo-se-nos como

teia-contraponto e como dinâmica de logoi, possa não obstante continuar a orientar-nos (e

a ferir-nos!) como resolução antecipante (vorlaufende Entschlossenheit62

). Por outras

palavras (capazes de abranger outras respostas), o de um pensamento que esteja em

condições de acolher a situação-problema sem a diluir no processo reflexivo ou

deliberativo (sem a domesticar como etapa-componente do seu iter) … antes exigindo

que esta (na sua irrepetibilidade) o atinja como prius metódico ou perspectiva-visée de

uma analítica plena (de uma analítica que se quer e se diz quase sempre interpretação

existencial63

). Que oportunidade? A de retomar o curso de autonomização da praxis-

prattein aberto pela secularização aristotélica… ou mais rigorosamente, a de reconhecer

que, se o ciclo moderno-iluminista interrompeu (mais ou menos drasticamente) o curso

principal dessa autonomização, a possibilidade-urgência de o retomar (ou de engrossar

alguns dos seus fluxos subterrâneos) cumpre-se hoje — tem vindo a cumprir-se desde a

segunda metade do século XX! — como uma exigência única de desafiar-recusar o

predomínio do teorético64

e de assim nos expor a um pensamento de «imanência

62

Heidegger, Sein und Zeit, 18ª edição (reimpressão da 15ª), Max Niemeyer Verlag Tübingen,

2001, p. 310. 63

Ver infra, 2.2.3.1.1. 64

Decerto do teorético especulativo que fora alimentado pela virtude intelectual da sophia (e pela

institucionalização pré-moderna da conexão telos / êthos) — aquele que «neutralizava» as coisas da

prática como objectos. Mas também do teorético científico justificado pela hipertrofia da episteme… e

pela sua apropriação irreversível da technê — hipertrofia aquela e apropriação esta (diria Heidegger!)

consumadas, se não convertidas em metafísica, pela experiência da modernidade. Sem esquecer por fim

aquele outro teorético filosófico que, ao dizer-se dialéctica ou ao obrigar esta a esquecer a sua

«proveniência»-Herkunft e a romper assim o vínculo constitutivo com a tópica (para invocarmos o

diagnóstico de Bubner!), se apropriou da história para a dizer racional e se pré-determinar como método

ou discurso do método (Rüdiger Bubner, Dialektik als Topik. Bausteine zu einer lebensweltlichen Theorie

der Rationalität, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1990, p.9, 79 e ss., 88-96).

Para uma exploração do sentido desta filosofia prática em geral e da sua recusa do primado do

teorético em particular, «tanto do teorético filosófico como do teorético puramente científico», ver

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23

constitutiva»65

. O que sem qualquer paradoxo significa superar a tradição galilaica…

sem ter que voltar à tradição aristotélica (ou à «teleologia virtualmente necessária» que a

sustenta)66

.

Importando ainda acrescentar que, se o nosso percurso nos leva a encontrar-

reconhecer um território comum… — «livre» da ameaça do diferendo (e assim

construído ou dinamizado por verdadeiros litígios67

)68

—, se trata menos de o descobrir

como convergência empiricamente corroborável69

do que de o reconstruir (e explicitar

Castanheira Neves, O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., primeira

versão, Coimbra-Lisboa, 1982-1983, I. Prolegómenos, 2ª lição, 2.a), pp. 22 e ss., 24-27. 65

Oportunidade que é assim a de construir um discurso ou um pensamento integral e auto-

subsistentemente práticos. Um pensamento «de imanência constitutiva» (digamo-lo ainda com

Castanheira Neves) [ibidem, pp. 23-24] que, ao expor-se-nos como «filosofia prática», possa, numa

intenção «comprometidamente ―ascritiva‖ ou normativa», corresponder a uma «reflexão crítica»

(imanente) sobre os «momentos fundamentantes, regulativos e constitutivos» da praxis, na mesma

medida em que, explicita ou implicitamente, reconhece que o núcleo dessa reflexão imanente (na

autocompreensão e na autodeterminação que esta mobiliza ou na autotranscendência que intenciona)

convoca como problema maior (explícita ou implicitamente assumido embora) o da validade dessa

prática: o de uma validade que, sem poder contar com uma pré-determinação auto-subsistente das suas

significações normativas, se mostre no entanto em condições de superar a singularidade aleatória e a

contingência. 66

«A compreensão da praxis até aos nossos dias tem sido dominada pelas ―duas tradições‖ – na

expressão de Wright –, encarnadas respectivamente em Aristóteles e em Galileu. Depois que a praxis foi

por Aristóteles explicitamente diferenciada da theoria e da poiésis, sempre o pensamento clássico

procurou o seu sentido último – não obstante a sua imediata remissão, também por Aristóteles e pela

tradição cultural que sustentou, para a phronesis ou prudentia, que a tópico-retórica devia racionalizar –

numa pressuposta ordo ontológico-metafísica que lhe implicaria uma teleologia inferível de uma

essencial causa finalis e que na polis teria a sua directa mediação prática. Desta compreensão se

alimentou, como se sabe, o jusnaturalismo também clássico. Só que o homem moderno rompeu com ela

em dois pontos decisivos: por um lado, reassumindo-se na sua ―subjectividade‖ (a subjectividade

moderna), fica perante o mundo concebido e experimentado só empiricamente, não perante o mundo de

uma ordem ontologicamente definida e perfeita, que à ciência matemático-experimental, fundada por

Galileu, cabe conhecer e que o racionalismo sistemático-axiomático consequente deverá totalmente

determinar; por outro lado, reivindicando a sua autonomia-liberdade contra ordens metafísico-

transcendentes e integrantes, afirma o seu individualismo acomunitário e dessolidário. (…) Diferente de

ambos estes sentidos deverá ser o sentido actualmente compreensível da praxis. Nem estruturada por uma

integração de transcendência ontológica e actuando uma teleologia virtualmente necessária, nem referida

à mera contingência dos fins da vontade e dos interesses a submeter a um esforço de racionalização que

potencie e controle a eficácia, mas pressupondo e manifestando a intersubjectividade (a interacção)

histórico-social em que se reconhece, simultaneamente, a referência a um contexto comunitário-

culturalmente significante e a abertura de uma dialéctica concretamente problemático-constituinte –

aquela praxis, como inter-acção de sujeitos pessoais, que está sempre em condição comunitária ou em

contextual situação e continuamente supera essa situação…» [Castanheira Neves, Apontamentos

complementares de teoria do direito – sumários e textos, cit., (versão em fascículos) pp. 79-81, (versão

em A4) 43-45]. 67

Para continuarmos a usar os recursos expressivos do binómio de Lyotard. 68

Um território que nos autorizasse antes de mais a reconhecer que a resposta jurisprudencialista

não está isolada e que há outras vozes que, partilhando um certo núcleo de pressupostos e de pretensões

reflexivas (mobilizando desde logo uma certa compreensão global da praxis), se cruzam com ela (ou que

pelo menos desenham traçados paralelos). 69

Invocar a procura deste território partilhado enquanto tal (e reconduzir o discurso de razões a

esta exigência) significaria com efeito permanecer fiel a uma abordagem externa e à contingência a que

esta nos expõe. Como se se tratasse de, em nome das intenções-warrants de um testemunho empírico

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reflexivamente) como pré-compreensão culturalmente significante70

— se não já

mesmo como condição (transcendental) de possibilidade (indissociável da inter-acção

que permite ou do universo de sentidos que inaugura).

Que condição de possibilidade? Aquela que associa a compreensão renovada da

praxis e os seus desafios de institucionalização ao compromisso (se não à

responsabilidade ou à virtude) de um regresso da comunidade... na mesma medida em

que (explícita ou implicitamente) exige que um factor de pluralismo ou de pluralidade

— pluralidade que será já menos a dos interesses, a dos fins da vontade ou a dos

programas ideológicos71

… do que a das situações singulares de escrita e de leitura, a

dos percursos vitais, a dos casos-acontecimentos irrepetíveis, a das perguntas

circunstanciadas, a das narrativas72

…— venha a conformar os pressupostos

constitutivos deste regresso. Ora a conformá-los positivamente. Para que a experiência

desta diversidade — longe de poder (e de dever!) corresponder a um diagnóstico de

limites ou de constrangimentos (que de alguma forma impusesssem resistências àquele

regresso) — se nos ofereça antes, e em contrapartida, como uma das suas dimensões —

e uma dimensão imprescindível! Que dimensão? Aquela que, ao responsabilizar-se por

uma argumentação aberta (e ao admitir o prolongamento metadiscursivo de uma

reflexão crítica), esteja em condições de restituir ao compromisso de identidade

comunitário-culturalmente significante uma dinâmica permanente de renovação. Mas

então também e ainda aquela que, ao assegurar um contraponto logrado com uma não

menos imprescindível (e irredutível) dimensão dogmática (e a sua «lógica» de finitude e

de clausura), nos autorize a compreender que as intenções condutoras da praxis

(intenções que, referindo-se a um commune culturalmente reconhecível, permitem

precisamente experimentá-la como unidade!) se nos exponham enfim constituídas,

explicitadas e transformadas por essa mesma praxis (e pelas suas múltiplas instâncias).

Acentuação esta última que nos restitui às seduções do pensar em círculo… na

mesma medida de resto em que nos autoriza a descobrir nos eixos da communitas e da

societas dois pólos racionalmente irredutíveis de experimentação-assimilação da

(empírico-descritivo, se não empírico-explicativo), isolar como backing os «factos» de um consenso

logrado (e da convergência inter-semiótica que o sustenta)… 70

Uma abordagem que nos permite tratar a convergência empiricamente determinável e os seus

resultados contingentes como manifestações-sinais (mais ou menos explícitos) desta pré-compreensão…

e neste sentido discutir na perspectiva desta (e do commune que antecipa) a plausibilidade e os limites de

tais resultados e dos consensos que estes asseguram. 71

A pluralidade assimilável pelo projecto da societas. 72

Aquela que só o projecto cultural da communitas está em condições de assimilar.

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pluralidade (e então e assim também a distribuir por estes pólos e pelos seus projectos

os diversos sinais, elementos ou factores de uma tal pluralidade).

Acentuação que nos sugere um percurso? Admitamos que sim. Um percurso que

nos autorize a «situar» o regresso (se não regressos) da comunidade e a propor um

esquema de distribuição plausível [2.1.]… antes de exigir que os lugares assim

recriados sejam habitados por outras tantas vozes exemplares… e pelas

«representações» do mundo prático (e do mundo prático na experiência do tempo) —

todas elas de resto (não certamente por acaso) alimentadas pelas possibilidades

luminosas do círculo (ou do pensar em círculo)… — com que o nosso horizonte

prático-cultural mais eloquentemente nos interpela (ou continua a interpelar-nos) [2.2.].

2.1. Falar do regresso da comunidade no contexto desta recompreensão da

praxis significa evidentemente poder (dever) mobilizar o binómio sociedade /

comunidade… e então e assim estabelecer-desenhar um contraponto entre dois projectos

culturais inconfundíveis. Projectos que, correspondendo a dois modos de determinação

da identidade colectiva, representam também afinal duas faces típicas (irredutíveis) de

um certo teleological turn ou da compreensão que este hoje nos exige… mas também (e

muito especialmente) duas tentativas de responder à circunstância presente ou de

enfrentar o pluralismo que a caracteriza.

(α) De tal modo que o projecto da societas seja aquele que, permanecendo fiel à

narrativa de uma criação ex nihilo e ao homem desvinculado («independente de toda e

qualquer tradição»73

) que por ela se responsabiliza — se não mesmo ao status naturalis

e (ou) à original position (universalmente representados) que a tornam possível —, nos

incita a descobrir na emancipação lograda dos interesses e na equivalência (ou mesmo

na comensurabilidade quantitativa) dos fins— mas também na redução dos referentes (e

dos critérios) materiais a um acervo de afirmações de preferência (subjectivamente

experimentadas) — as coordenadas decisivas do seu problema (e da ordem que o

assimila)74

. Mas então também aquele que encontra a resposta instituinte (capaz de

73

«[The] project of founding a form of social order in which individuals could emancipate

themselves from the contingency and particularity of tradition by appealing to genuinely universal,

tradition-independent norms was and is not only, and not principally, a project of philosophers. It was and

is the project of modern liberal, individualist society…» (MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?,

London, Duckworth, 1988, p. 335) 74

«[N]unca até então os interesses, na sua radical expressão económica, se tinham reconhecido

como autónoma dimensão humana — ou melhor, como dimensão humana socialmente autónoma…»

(Castanheira Neves, «A imagem do homem no universo prático», Digesta – escritos acerca do direito, do

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hierarquizar estes interesses, fins ou preferências) num processo-modelo de decisão — e

no artefacto sócio-político que legitima colectivamente esta decisão (e a cadeia de

decisões em que esta se integra).

(β) Para que o projecto da communitas abra a nossa experiência (e as nossas

possibilidades de practical deliberation) à consideração de um horizonte de integração

(justificado pela referência a responsabilidades e compromissos práticos partilhados),

na mesma medida em que defende (e explora) um dualismo insuperável entre objectivos

e bens (subjective goals v. human goods) ou entre fins e valores75

— na medida pelo

menos em que revela a importância de fins incomensuráveis, cada um deles prosseguido

como um fim em si mesmo e a exigir enquanto tal um acervo de especificações

plausíveis (non-commensurable (...) qualitatively distinct and separate (…) ultimate

ends, [each one pursued] for its own sake76

). O que, no plano dos tipos da

racionalidade, significa decerto mais do que resistir ao eixo discursivo da episteme-

technê ou da technê-episteme — e com este à exclusividade e unilateralidade do

projecto da societas (ou à possibilidade de o tratar como uma etapa evolutiva

historicamente insuperável) — , porque significa já vincular a communitas à «tradição»

de uma praxis-prattein autónoma (logistikon bouleuesthain to praktikon dianoètikon)…

e às virtudes intelectuais que a distinguem — à actividade-energeia da phronesis e ao

movimento-kinésis da poiesis-techné77

Que dizer no entanto das respostas que assumem esta segunda frente e os seus

desafios? Mais do que um overlapping de intenções distintas (alimentadas por uma

pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 1º, pp. 327-

328) 75

«Se os valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e

que convoca a prática para o desempenho irrenunciável de ―tarefas‖ (...) em que se projecta essa sua

vinculação ou compromisso, os fins desvinculados pelo ―mecanicismo‖ moderno da teleologia

ontológica, são agora tão-só opções decididas pela subjectividade que programa os seus objectivos (...),

decerto sempre condicionados por um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e

em vista deles – comunga-se nos valores, diverge-se nos fins e nos interesses...» [Castanheira Neves,

Teoria do direito (versão em fascículos), pp. 154-155, (versão em A4), pp.85-86] 76

Martha Nussbaum, «Virtue Ethics: A Misleading Category?», The Journal of Ethics, vol. 3,

1999, pp.179-188 («The Anti-Utilitarians; Expanding Reason‘s Domain»). As formulações citadas no

texto encontram-se nas pp.182-183. Para uma crítica à relativa fragilidade desta construção na proposta

de Martha Nussbaum (em confronto nomeadamente com uma autêntica distinção entre valores e fins),

veja-se o nosso «Imaginação literária e ―justiça poética‖. Um discurso da ―área aberta‖?» (a publicar em

breve), ponto 4.2.1. 77

Não sendo preciso acrescentar que se trata também de libertar estas virtudes (e os discursos

racionais que estas geram) do horizonte de inteligibilidade de uma ordem necessária — daquela ordem

que só a «contemplação» iluminada pela sophia (enquanto exigência de experimentar a articulação telos /

êthos como uma energeia autónoma, cumprida como bios e como mimesis) estaria afinal em condições

de garantir.

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27

herança comum), dir-se-ia com efeito que estas respostas — e os processos de

desenvolvimento que elas asseguram — nos impõem antes um elenco de possibilidades

alternativas (cada uma delas com diversos caminhos). Possibilidades e caminhos que

poderemos distribuir por três eixos principais:

(β)’ O eixo dominado pelas exigências do narrativismo comunitarista e pelo

holismo ético-prático que as sustenta, a impor uma abordagem nuclearmente

macroscópica (pensada na perspectiva da comunidade, ainda que comunidade de

pequena escala). Com caminhos que se dividem78

entre a reinvenção de uma filosofia

sapiencial de inspiração pré-moderna (compossibilitada com as experiências da

historicidade e pluralidade) e a exploração culturalmente reflectida do liberalismo

como tradição — se quisermos, entre comunitarismos tout court e comunitarismos

liberais ou liberalismos comunitaristas79

— ... na mesma medida em que conjugam

distintas interpretações-articulações das exigências (e significações normativas)

imputáveis a uma comunidade de memória e a uma comunidade de ideias (e à dialéctica

que as integra e lhes faz corresponder horizontes antropológico-existenciais

inconfundíveis)80

(β)’’ O eixo vinculado ao sentido mais estrito (e mais genuíno) da reabilitação

da philosophia practica — precisamente aquele que faz corresponder a auto-subsitência

efectiva desta filosofia (emancipada do primado integrador da sophia e da colonização

da episteme-techné) a uma preocupação com a autonomia constitutiva da phronêsis e

com a racionalidade sujeito / sujeito que a distingue (sem esquecer que se trata assim

também de evitar a ameaça de um continuum com a poiesis!). Com caminhos que se

mostram capazes de acolher discursos de fundamentação material e de determinação

78

Cfr.a síntese destas «modalidades» ensaiada por Kurt Seelmann em Rechtsphilosophie,

München, Beck, 3ª edição (ampliada), 2004, pp. 193 e ss. («Kommunitaristische

Gerechtigkeitstheorien»). Sem esquecer as reflexões de Castanheira Neves em A crise actual da filosofia

do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva

reabilitação, cit., pp.92-96 (2)). 79

Para uma consideração de alguns aspectos deste contraponto (concentrado nas vozes

exemplares de MacIntyre por um lado e de Charles Taylor e Michael Walzer por outro lado), veja-se o

nosso «Humanitas, singularidade étnico-genealógica e universalidade cívico-territorial. O ―pormenor‖ do

direito na ―ideia‖ da Europa das nações: um diálogo com o narrativismo comunitarista», Dereito. Revista

xurídica da Universidade de Santiago de Compostela, volume 15, número 1, 2006, pp. 17 e ss., 34-53

(3.4. e 3.5). 80

Para uma síntese deste contraponto (concentrada nas vozes de Boyd White e Martha

Nussbaum), veja-se o nosso «Imaginação literária e ―justiça poética‖. Um discurso da ―área aberta‖»?

cit., ponto 3.2.

Page 28: JOSE MANUEL AROSO LINHARES Jurisprudencialismo Uma Resposta Possivel Num Tempo de Pluralidade e de Diferenca

28

procedimental... e que assim mesmo nos aparecem exemplarmente distribuídos (quando

não fragmentados) pelos pólos–exigências da recontextualização hermenêutica e da

problematização retórico-argumentativa81

.

(β)’’’ O eixo enfim que nos compromete com as exigências de uma comunidade-

promessa e com a experiência microscópica que a determina, se não com a

inevitabilidade de um continuum prático — um continuum prático que sendo energeia

não o seja menos kinésis e aisthesis, e que assim mesmo nos condene a renunciar a uma

phronesis autónoma. Eixo decerto ainda mais (internamente) diversificado do que os

anteriores… e agora porque expõe a representação do sentido (e as possibilidades da

vocação integradora que o alimenta, se não a ordem-ordinans que o traduz) às seduções

(concertadas ou divididas) de uma moralidade política, de uma estética do sublime e de

uma ética da alteridade — a primeira preocupada com o encontro tentacular dos efeitos

de poder e de resistência e com o «entrincheiramento de hierarquias» que suspende (ou

vai suspendendo) o seu movimento perpétuo (mas também e muito especialmente com

a possibilidade de o inverter), a segunda a mobilizar a experiência do juízo ao qual «só o

particular é dado» para reconhecer a singularidade irrepetível de um momento de

sensação-aisthesis e exigir um discurso que liberte a phronesis do pensamento prático

(de um pensamento prático sustentado numa validade normativamente vinculante), a

última a reconhecer que o contexto-correlato da procura da relação singular (na

unicidade e incomparabilidade do seu dizer) se descobre enfim na perspectiva

(determinante) de um «Eu de responsabilidade infinita»82

.

81

Cfr. a síntese proposta por Castanheira Neves na Metodologia Jurídica. Problemas

fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora,1993, pp.70-78. Para uma reconstituição crítica das exigências

da hermenêutica compreensiva como «filosofia prática» e como «método» (nos seus cruzamentos

exemplares com o discurso jurídico), ver ainda O actual problema metodológico da interpretação

juridica, I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 46-107, 362 e ss., 378 e ss. e A crise actual da filosofia

do direito no contexto da crise global da filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva

reabilitação, cit., pp. 58-68. 82

Para uma exploração das principais linhas destas promessas de comunidade, vejam-se os

nossos: Entre a reescrita pós-moderna da juridicidade e o tratamento narrativo da diferença, cit., pp. 92

e ss. e 181-211 (o contributo de Foucault) , 221 e ss. e 462-507 (a estética do sublime de Lyotard); e

«Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita. Os enigmas de Force de loi»

(2004), in Ars Iudicandi. Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Castanheira Neves (Boletim da

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial) volume I, Coimbra, Coimbra

Editora, 2008, pp. 551-667 (a proposta de Derrida) [ver também «O dito do direito e o dizer da justiça.

Diálogos com Levinas e Derrida» (2006), in Themis - Revista da Faculdade de Direito da Universidade

Nova de Lisboa, VIII, nº 14, 2007, pp.5-56 e «Dekonstruktion als philosophische (gegenphilosophische)

Reflexion über das Recht. Betrachtungen zu Derrida» (2005), Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie

(ARSP), Band 93 / 2007, Heft 1, pp. 39-66].

Page 29: JOSE MANUEL AROSO LINHARES Jurisprudencialismo Uma Resposta Possivel Num Tempo de Pluralidade e de Diferenca

29

2.2. Reconhecido este tríptico [(β)’-(β)’’-(β)’’’] de representações-experiências

do mundo prático enquanto comunidade — que o são também indissociavelmente da

dialéctica comunidade /sociedade —, admitamos distribuir pelos painéis assim

esboçados algumas vozes exemplares.

Todas enquanto representações de um mundo-da-vida que se nos oferece

incindivelmente como contexto culturalmente significante e correlato problemático-

constituinte de uma prática. E todas a assumirem a inevitabilidade de uma reflexão

imanente, preocupada com as intenções e os sentidos que essa prática simultaneamente

mobiliza e inventa… e com a exigência de libertar tais exigências e sentidos de uma

vertigem de aleatoridade ou de contingência.

Nem todas porém a reconhecerem que esta libertação (ou que pelo menos a

resistência lograda aos perigos desta vertigem) deva ser procurada na referência

recuperadora a uma dimensão axiológica (e nos sentidos de validade que esta está em

condições de proporcionar ao problema da realização). Algumas a admitirem que só um

discurso contra os valores estará em condições de abrir o caminho (com a mediação

lograda de uma nova perspectiva ontológica)… outras a procurarem a resposta na

superação de uma racionalidade material ou na construção de uma dialéctica horizontal

(determinável numa racionalidade procedimental). Algumas a recuperarem as ambições

integradoras de uma visão unitária e integral da racionalidade humana (justificável

como sophia)… outras a exigirem a superação de toda e qualquer ontologia e a entrega

a uma nova ética.

Mas então e numa palavra, todas a assumirem a inevitabilidade de uma reflexão

imanente… sem prejuízo de pressuporem ou de experimentarem diferentes perspectivas

do que esta possa ou deva ser. Com opções antropológico-existenciais que não se

limitam a exprimir diversos graus de estabilização do mundo prático ou distintas

sensibilidades à transformação... que antes traduzem compreensões e experiências

heterogéneas...

Com as vozes inscritas nos painéis extremos do tríptico [(β)’ e (β)’’’] a

mobilizarem os desafios da pluralidade (ou da relação comunidade / pluralidade) como

um tema expresso. Com o painel central [(β)’’] a diluir este topos no problema da

historicidade (e na experiência prático-existencial de uma historicidade constitutiva)…

mas então também (e não certamente por acaso) a tematizar metadiscursivamente o

sentido positivo do círculo ou do pensar em círculo. Diferenças de acentuação que nos

Page 30: JOSE MANUEL AROSO LINHARES Jurisprudencialismo Uma Resposta Possivel Num Tempo de Pluralidade e de Diferenca

30

bastam para iluminar também distintamente os painéis em causa… sugerindo-nos

(justificando) um caminho possível... e o percurso selectivo (muito selectivo!) com que

agora nos propomos atravessá-lo.

2.2.1. Percurso que nos autoriza a iluminar o primeiro painel [(β)’] ouvindo

apenas MacIntyre e Boyd White.

2.2.1.1. Ouvindo MacIntyre… decerto para reconhecer a dinâmica da tradução e

do exercício de traduzibilidade /intraduzibilidade que lhe corresponde — num

confronto entre possíveis tradições rivais que nos aparece justificadamente privado de

um patamar exterior83

—... mas sobretudo para surpreender o «núcleo duro» de uma

certa compreensão das virtudes (ou da reinvenção recuperadora que esta leva a sério)84

.

É que este núcleo (mobilizado «contra a ideia universalista da virtude no

singular»85

) cumpre-se desvelando três condições contextuais de emergência (tão

irredutíveis quanto inseparáveis). Com a primeira a abrir-nos para uma experiência

situada da communitas enquanto ensemble de práticas particulares86

— com «bens» a

concorrer na sua ineliminável diversidade… — e a exigir assim que as virtudes se nos

exponham como «qualidades da mente e do carácter»87

(as qualities necessary to achieve

the goods internal to practices88

). Com a última a permitir-nos pressupor aquela

communitas enquanto tradição societariamente vigente, estabilizada numa acervo de

padrões de comportamento ou de representações do bem comum (the stage which (...)

relates [the virtues] (...) to the porsuit of a good for human beings, the conception of

which can only be elaborated and possesed within an ongoing social tradition89

). Com a

segunda enfim a garantir a mediação indispensável: a mediação (se não reciprocidade

constitutiva de significações e de sentidos) que só um percurso vital assumido na sua

integridade (as a complete human life) — e como tal narrativamente reconstituível como

unidade (unitary life-story, unity of narrative) — estará por assim dizer em condições de

83

MacIntyre, Whose Justice? Which Rationality?, cit., pp. 349 e ss. («The Rationality of

Traditions»), 370-388 («Tradition and Translation»). 84

After Virtue. A Study in Moral Theory (1981), cit. na segunda edição (com Postscript),

London, Duckworth, 1985, pp. 204-225 («The Virtues, the Unity of a Human Life and the Concept of a

Tradition»), 272 e ss. («The Virtues and the Issue of Relativism»). 85

«Nietzsche ou Aristóteles?», entrevista de Giovanna Borradori a MacIntyre, in Borradori,

Conversazioni americane, 1991, cit. na trad. portuguesa A filosofia americana. Conversações, São Paulo,

Unesp, 1998, p. 203. 86

MacIntyre, After Virtue, cit., pp. 273-274. 87

«Nietzsche ou Aristóteles?», entrevista de Giovanna Borradori a MacIntyre, cit., p. 203. 88

MacIntyre, After Virtue, cit., p. 273. 89

Ibidem.

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31

sustentar90

(the stage which (...) considers [the virtues] (...) as qualities contributing to

the good of a whole life91

).

2.2.1.2. Antes de ouvir de novo MacIntyre… na (ou através da) proposta de

Boyd White… agora numa especificação-projecção particularmente eloquente (já

construída a pensar no mundo prático do direito… ou pelo menos a propósito deste!).

Especificação esta que, não certamente por acaso, retoma todos os núcleos temáticos a

que acabámos de aludir: ora isto enquanto e na medida em que os projecta logradamente

numa certa compreensão-experiência do «continuum» praxis /poiesis92

Como se se tratasse de aplacar as tensões em causa (praxis versus poesis)

assumindo a oportunidade de pensar os mundos normativo e cultural em função do

sujeito que os interioriza…

Um sujeito-intérprete que possa assimilar os critérios e (ou) que responda aos

estímulos de «sentido» (virtual ou efectivamente) neles comunicados, mas também um

sujeito-autor que, ao prescindir das (ou ao desvalorizar as) diferenças que separam os

mundos em causa, reconcilie os respectivos procedimentos (e a «dialéctica» que os

ilumina).

O que, sem qualquer surpresa, há-de cumprir-se nas (ou pela mediação das)

narrativas que alimentam (e que acompanham ou que renovam como memória) um

certo percurso existencial irrepetível. Só que aqui como uma (ou como a antecipação

regulativa de uma) ontogenética totalizante: na qual mais do que a aprendizagem

importe reconhecer o cultus (mais do que o iter de decantação a vis de reconciliação)

das «virtudes intelectuais» envolvidas. Como se se tratasse ainda… de hesitar — e de

hesitar em termos constitutivamente irredutíveis! — entre uma comunidade de histórias

partilhadas (prolongada numa pragmática narrativa também comum) e a comunidade-

praxis de um certo cuidado-Sorge (iluminada pelo compromisso ético da «tradução»).

90

After Virtue, cit., pp. 216 e ss. 91

Ibidem, p. 273. 92

Para uma reconstrução menos esquemática do pensamento de Boyd White (e as indispensáveis

referências bibliográficas), vejam-se os nossos Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o

tratamento narrativo da diferença…, cit., pp. 679 e ss., «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do

ethos e do pathos...», cit., Coimbra, 2004, pp. 66-84, «Humanitas, singularidade étnico-genealógica e

universalidade cívico-territorial», cit., pp. 53-59 (3.6.) e ainda «Imaginação literária e ―justiça poética‖»,

cit., passim.

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32

Ao ponto de, na intensificação reflexiva da compreensão (como atitude

originária), se inscrever já (mas agora como resposta ou solução apaziguadora) a

celebração de uma escolha (que é sobretudo aquisição e aposta) antropológica —

precisamente aquela que transmuta o homem finito em cultor triunfante do argumento, o

«destinatário»-vítima da contingência em «tradutor» circular e fecundamente

autopoiético», o opositor estratégico em Vernunftsperson93

. Perspectiva que nos

autorizará a inscrever os critérios pressupostos e os seus possíveis programas de fins

numa teia argumentativa dominada pelo prius da «situação retórica»... e isto enquanto (e

na medida) em que convoca recursos-armas inconfundíveis:

(a) recursos que nos incitam a descobrir o «arquétipo» performativo da prática e

do pensamento prático na pragmática do texto narrativo … e então e assim a desvendar

um universo-polis94

de «situações institucionais» — um universo que não só é habitado

pela linguagem prática (da interacção e da criação) e pela linguagem cultural do «saber»

(e dos materiais e recursos pressupostos) como impõe a estas linguagens uma assimilação

(se não fusão) irreversível (the community as (…) a group of people who tells a shared

story in a shared language95

, the narrative as the archetypal legal and rhetoric form (…),

as the archetypal form of human thought in ordinary life96

);

(b) recursos que culminam na representação de um contexto de significação-

limite — um contexto de significação que se nos impõe para além das possibilidades que

as diversas comunidades interpretativas nos oferecem… mas então também para além do

horizonte das expectativas civilizacionais.

93

White, Heracles’ Bow. Essays on the Rethoric and Poetics of the Law, Madison, The

University of Wisconsin Press, 1985, pp. 227 e ss, Justice as Translation. An Essay in Cultural and Legal

Criticism, Chicago / London, The University of Chicago Press, 1990, pp. 264-267 «The central image is

that of autopoiesis, the organism making itself in interaction with its environment. In the process both

organism and environment change. There is no one way the universe is constituted, no ultimate ontology

upon which everything can be grounded. All species, all individuals, all languages and cultures and

communities, are engaged alike in a process of reciprocal change» (Ibidem, 266) . 94

«What kind of community shall it be? How will it work? In what language shall it be formed?

These are the great questions of rhetorical analysis. It always has justice and ethics — and politics, in the

best sense of that term — as its ultimate subjects. (…) Like lawyers, literary readers are also members of

community defined by their shared interest in a set of texts, and whether they know it or not, both groups

are always asking and answering the central question: what kind of community shall we be? (…) Many-

voicedness; the integration of thought and feeling; the acknowledgment of the limits of one‘s own mind

and language (and an openness to change them); the insistence upon the reality of the experience of other

people, und upon the importance of their stories, told in their words — these values, implicit in this

kind of reading (…) are all in fact essential to our own best ideas of justice. They are political as well as

intellectual and aesthetic virtues. And they are political virtues not only in the reading and writing of law,

but in the reading and writing of anything …» (Heracles’Bow…, cit., pp. 39, 79, 132, itálicos nossos). 95

Heracles’Bow…, cit., p.172 «The law is a way of creating a rhetorical community over time

(…): it is a culture that makes us members of a common world. This culture is not reducible to rules, but

it is objective, in the sense that it can be found and mastered and in the sense as well that it cannot be

disregarded or unilateraly changed. Like the text produced by a single mind, the text produced by the

culture has a genuine force and reality notwithstanding its irreducibility to rules or to scientific

―knowledge‖…» (Ibidem, p. 98) . 96

Ibidem, p. 175.

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33

Que contexto-limite? Aquele que corresponde à afirmação de uma pragmática

de tolerância? Antes aquele que justifica o cuidado-Sorge com o «diálogo intercultural»

como uma (como a) concepção da justiça hoje possível. E que assim se confunde (e se

quer confundir) com a opção ética do tradutor (justice as translation)97

.

2.2.2. Saltemos depois para o terceiro painel do tríptico [(β)’’’], privilegiando

também uma sequência de vozes… e estas ainda (et pour cause!) como especificações

assumidas umas das outras… num traçado paralelo que, como o anterior, nos vai

aproximando do mundo prático do direito (ainda que não nos aproxime certamente das

especificidades que o autonomizam ou dos problemas que o distinguem). É que se trata

de ouvir Levinas [2.2.2.1.] … antes de o ouvir também (concertado embora com outras

vozes fundadoras) através de Derrida [2.2.2.2.] … antes de redescobrir este último na

proposta correctiva de Balkin [2.2.2.3.]!

2.2.1.1. Com um primeiro patamar a ensinar-nos que a experiência do mundo

prático se abre e se consuma numa interrupção fundadora. Uma «interrupção» que só

se pode oferecer e legitimar como «exposição»-tempo (condição de toda a comunicação

possível) se e na medida em que nos restituir à gratuitidade (à generosidade)

extravagante de um encontro assimétrico com o Outro ao dizer sem dito que o cumpre98

97

Os ensaios decisivos são agora os dois últimos capítulos de Justice as Translation: pp. 229 e

ss. («Translation, Interpretation, and Law»), 257 e ss. («Justice as Translation»). Para uma compreensão

da tradução por um lado como núcleo (metódico) de um interdisciplinary work possível, por outro como

especificidade do humanistic work, ver também From Expectations to Experience. Essays on Law and

Laegal Education, Michigan, The University of Michigan Press, 1999, pp. 69-71 (V), 97-102 (II). «For

whatever the merits of the social sciences as methods for making and informing social policy, they cannot

be applied to what is more distinctive about what lawyers and judges actually do, which is to discover,

determine, interpret and compose legal texts (…). [Scientific] ―methods‖ cannot simply be applied to the

law, any more than its ―findings‖ can. There must be a process of translation (…) [which] is at heart

compositional and literary, in fact a form of writing (…). Humanistic work can thus be seen as a species

of ―translation‖.…» (Ibidem, pp. 70, 102). 98

Trata-se evidentemente de convocar o contraponto Dit/Dire desenvolvido por Levinas em

Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, La Haye, 1978, Paris, edição de bolso Kluwer Academic,

2004, pp. 16-20 («Le Dire et le Dit»), 55 e ss. («Temps et discours»), 78 e ss. («Le Dire et la

subjectivité»), 162 e ss. («La récurrence»), 179 e ss. («La substitution»), 188 ess. («La communication»),

206 segs. («Subjectivité et infini»). Com um dizer que corresponde à sucessão temporal do jogo das

significações — enquanto exposição ao Outro e condição de toda a comunicação (Dire, c’est approcher

le prochain (…) en tant qu’exposition, (…)[une] exposition qui a un sens radicalement différent de la

thématisation) [Ibidem, pp. 81-83]. Com um dito (mas também escrito) que submete aquele dizer a uma

representação temporalmente reversível, justificada pela simultaneidade de uma ―identificação‖ —

entenda-se, de um processo de determinação que possa emprestar aos entes-étants uma «identidade de

sentido» (l’identique n’a de sens que par le kerygme du Dit) [Ibidem, p. 66; cfr. ainda a síntese exemplar

de ―Diachronie et représentation‖ (1985), Entre nous, cit., pp. 165 e ss.]. De tal modo que possamos

reconhecer naquele o tempo da ética da alteridade e neste o da ontologia — mas também, o da prescrição

auto-subsistente e o da tematização-comparação (introduzida pela tertialité do jurídico). Para um

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34

(le Dire (…) qui n’est pas compris comme dialogue mais comme témoignage de l’infini

à celui à qui infiniment je m’ouvre99

).

O que é decerto mais do que procurar o humano — as dimensões

(«probabilidades») humanas do eu — na «realidade excessiva» (tão estranha quanto

vulnerável) do Rosto do Outro-Autrui e da expiação pelo Outro (l’absolument Autre,

l'Etranger qui trouble le chez soi)100

. Porque é já encontrar tais «probabilidades» (dever

encontrá-las) no movimento-continuum de uma resposta ou de um ciclo de respostas

(heteronomamente solicitadas): no des-interesse fundador (sem expectativa e sem

reciprocidade) de um «Eis-me aqui»101

, que se quer «um-para-o-outro» (le mot Je signifie

me voici, répondant de tout et de tous102

)… mas então também (e muito

significativamente) na irredutibilidade constitutiva de uma «relação ética» pura (rapport

non-violent à l’infini comme infiniment-autre, [rapport] à autrui, passage et sortie vers

l’autre103

).

2.2.2.2. Com um segundo patamar a exigir por sua vez que este mundo prático

nos fira na (e através da) convocação (reflexiva) de uma escrita primordial (archi-

écriture ou écriture première)104

e da violência assimétrica (irredutível) que esta gera

(urgence précipitative, violence irruptive, précipitation essentielle105

). Uma violência

desenvolvimento (e outras indicações bibliográficas), ver o nosso «O dito do direito e o dizer da justiça.

Diálogos com Levinas e Derrida», cit., passim. 99

Levinas, «L‘extra-ordinaire de la responsabilité» (1976), Dieu, la mort et le temps, Paris,

edição de bolso Grasset & Pasquelle, 1993, p. 221. «Au Dire sans Dit, il faut une ouverture qui ne cesse

de s‘ouvrir et qui se déclare comme telle. Le Dire est cette déclaration…» [«La sincérité du Dire» (1976),

ibidem, p. 223]. Esclarecimento este que se nos impõe para afastar o misunderstanding de descobrir na

ética de Levinas (ou na tematização que esta admite) uma possível (ainda que especialíssima) filosofia do

diálogo [«Rien ne serait pire que d‘interpréter la pensée de Levinas comme une philosophie du

dialogue…» (Ibidem, p. 221, nota de Jacques Roland)]. 100

―O absolutamente Outro é Outrem-Autrui (…), o Estrangeiro. (…) Não faz número comigo.

(…) Eu (…) sou, tal como ele, sem género. Somos o Mesmo e o Outro…‖ (Totalité et Infini, La Haye

1961, cit. na tradução portuguesa Totalidade e infinito, Lisboa, edições 70, 1988, pp. 26-27) 101

Autrement qu’être, cit., pp. 156 segs. (todo o capítulo IV, intitulado precisamente «La

substitution»). 102

Ibidem, p. 180-181. 103

A fórmula é já de Derrida, no primeiro grande estudo que consagra a Levinas (a partir do qual

passa também ele próprio a assimilar o contraponto Dit / Dire): Derrida ―Violence et métaphysique‖,

L’écriture et la différence, Paris, Éditions du Seuil, 1967, p. 123. 104

Archi-écriture (ou écriture première) que, como se sabe, pretende iluminar as pressuposições

(de repetibilidade-espaçamento e de temporalização-substituição-transferência) que são comuns à palavra

escrita (concept vulgaire d’écriture) e à palavra falada — na mesma medida em que nos ensina a escapar

à hipertrofia da substância fónica e do système du ―s’entendre parler‖ (e a denunciar a máscara-disfarce

imposta pela ―concepção ocidental da linguagem): De la grammatologie, Paris, Minuit, 1967, pp. 15-21,

82 segs. 105

Force de loi. Le ―fondement mystique de l´autorité‖, Paris, Galilée, 1994, pp. 59, 60.

Recordemos que esta é a terceira e a mais completa das versões que Derrida propôs para este ensaio. As

duas anteriores versões (publicadas respectivamente em inglês e alemão) são Force of Law: The

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35

que se impõe a todos os discursos... agora enquanto submete o sujeito descentrado

(humilhado) pela linguagem à condição estruturante de uma cadeia de «citações»

(substituições) — e com esta à prioridade de um jogo de reenvios entre significantes (ao

qual nenhum significado escapa).

À inevitabilidade do contexto ou das práticas de contextualização (there is

nothing outside context 106

) ? Antes à inevitabilidade da «abertura indefinida de todos os

contextos» (the finiteness of a context is never secured or simple, there is an indefinite

opening of every context, an essential nontotalization 107

). Uma abertura que nos entrega

a uma específica ―interpretação da interpretação‖ e à aventura-acontecer a que os seus

exercícios singulares nos submetem: àquela ―interpretação da interpretação‖ que

(enquanto deconstructive (…) pragrammatological (…) way of reading) se mostre capaz

de assumir cada um dos contextos de significação e de realização possíveis, reconhecendo

simultaneamente o pagus de estabilidade-instabilidade que estes especificam — na

mesma medida em que se dá conta do movimento-trama (espacial e temporalmente

indefinido) em que tal contextualização se integra e dos limites (de estabilização e

superação) que a condicionam (deconstruction (…) [as] the effort to take the limitless

context in account, to pay the sharpest and broadest attention possible to context and

thus to an incessant movement of recontextualization 108

).

Numa experiência da pluralidade que se objectiva num espectro de

significações pragmáticas singulares — espacial e temporalmente (mas também

agonisticamente) determinadas — e que assim mesmo, na sua «radicalidade elementar»

(als grundsätzliche Pluralität)109

, nos atinge e nos fere implacavelmente como

diferença: uma diferença que sendo «espaçamento»-espacement constitutivo da

―Mystical Foundations of Authority‖ (1989) e Gesetzeskraft. Der ―mystische Grund der Autorität‖,

(1991). Para uma consideração das especificidades que distinguem estas três versões (e um comentário

desenvolvido à proposta que lhes corresponde»), veja-se o nosso ―Autotranscendentalidade,

desconstrução e responsabilidade infinita‖, cit. 106

Derrida, «Afterword: Toward an Ethic of Discussion», Limited Inc, Northwestern University

Press, 1988, p. 136. 107

Ibidem, p. 137 108

Ibidem, p. 136. ―The ties between words, concepts and things, truth and reference, are not

absolutely and purely guaranteed by some metacontextuality or metadiscursivity. However stabilized,

complex, and overdetermined it may be, there is a context and one that is only relatively firm, neither

absolutely solid (fermeté) nor entirely closed (fermeture), without being purely and simply identical to

itself. In it there is a margin of play, of différence, an opening; in it there is what I have elsewhere called

―supplementarity‖ (…) or ―parergonality‖(…). These concepts come close to blurring or dangerously

complicating the limits between inside and outside, in a word, the framing of a context…‖ (Ibidem, p.

151) 109

Com o alcance que a reconstituição de Welsch nos autoriza a reconhecer: cfr. Unsere

postmoderne Moderne, cit., pp 143 ss. (―Jacques Derrida oder Differenz und Verstreuung‖).

Page 36: JOSE MANUEL AROSO LINHARES Jurisprudencialismo Uma Resposta Possivel Num Tempo de Pluralidade e de Diferenca

36

«exterioridade»-dehors (mas também distância e incomensurabiulidade) não deixe

nunca de se nos impor como temporalização e circulação-devir: como aquela différence

que é infinitamente produzida pelo movimento da différance110.

2.2.2.3. Impondo-se-nos por fim uma brevíssima alusão a Balkin111

. A uma

proposta que, sendo responsável por uma das mais sugestivas interpretações do

processo de pensar em círculo (reflectida na categoria de inteligibilidade nested

opposition112

), parte explicitamente de uma interpelação da validade comunitária e da

autotranscendentalidade que a distingue… — se não mesmo de uma representação

(retoricamente desconstrutiva) do «fosso» ou da solução de continuidade

«normativamente» relevante (as a normative chasm or gap) que separa (que distingue)

110

Contraponto différence / différance que nos remete para a lição capital de «La ―différance‖»

(1968), cit. na tradução alemã ―Die différance‖, in Peter Engelmann (Hrgb.), Postmoderne und

Dekonstruktion, Stuttgart, Reclam, 1990, pp. 76 e ss. «L‘archi-écriture (…) qui est origine de l‘expérience

de l‘espace et du temps (…), première possibilité de la parole, puis de la ―graphie‖ au sens étroit (…),

cette trace est l‘ouverture de la première extériorité en général, l‘énigmatique rapport du vivant à son

autre et d‘un dedans à un dehors : l‘espacement. Le dehors, extériorité ―spatiale‖ et ―objective‖ dont nous

croyons savoir ce qu‘elle est comme la chose la plus familière du monde, comme la familiarité elle-

même, n‘apparaîtrait pas sans le gramme, sans la différance comme temporalisation, sans la non-présence

de l‘autre inscrite dans le sens du présent, sans le rapport à mort comme structure concrète du présent

vivant…» (De la grammatologie, cit., pp. 96, 103, itálicos nossos). 111

Para uma reconstrução menos esquemática do pensamento de Balkin (e outras referências

bibliográficas), vejam-se os nossos «O logos da juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos...»,

cit., pp. 84-135, «Recht als dramatische und musikalische Aufführung: eine fruchtbare Analogie?», in

Schweighofer/ Liebwald / Drachsler, Geist (Hrsg.), E-Staat und e-Wirtschaft aus rechtlicher Sicht.

Aktuelle Fragen der Rechtsinformatik, Tagungsband des 9. Internationalen Rechtsinformatik Symposions

Iris Wien 2006, Stuttgart/ München, Richard Boorberg Verlag, 2006, pp. 468-475

«Autotranscendentalidade, desconstrução e responsabilidade infinita», cit., pp. 651-655, e ainda

«Imaginação literária e ―justiça poética‖», cit., passim. Ver ainda Ana Margarida Gaudêncio, Entre o

centro e a periferia, cit., passim [e a recensão de Cultural Software proposta no Boletim da Faculdade de

Direito LXXIX, Coimbra 2003, pp.847 e ss.]. Sem esquecer Breno Pena Mosso, A assimilação da

desconstrução por Jack Balkin, dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Filosóficas apresentada à

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, policopiado, Coimbra, 2009, passim. 112

«To deconstruct a conceptual opposition is to show that the conceptual opposition is a nested

opposition — in other words, that the two concepts bear relations of mutual dependence as well as mutual

differentiation. (…) [T]he concept of an indefinite, rather than an infinite, responsibility better

corresponds to the very important relationship of mutual differentiation and dependence that must always

exist between law and justice…» [«Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice», Jack Balkin

Home Page, http: /www.yale.edu/lawweb/jbalkin (extraído em 29-11-2000), cit., parte II, «A

Responsibility Without Limits», ps. web 14 e 15]. Para compreender o sentido das nested oppositions e

da teoria-grelha que as sustenta — e desta (teoria) como uma das peças decisivas do tratamento

(«instrumental») da desconstrução (as normative transcendental deconstruction) proposto por Balkin

(every conceptual opposition can be reinterpreted as some form of nested opposition / a nested opposition

is a conceptual opposition where the opposed terms «contain each other» / the deconstructive concepts of

différence and «trace» implicitly rely upon notions of nested opposition /to deconstruct a conceptual

opposition is to show that the conceptual opposition is a nested opposition) —, cfr. (para além do texto

decisivo que acabámos de citar) também «Nested Oppositions», Yale Law Journal, vol. 99, 1990, pp.

1669 e ss., 1683-1687 («Nested Oppositions in Legal Doctrine»), Cultural Software. A Theory of

Ideology, Yale 1998, pp. 221-222 («Mediation, Subcategorization and Nesting»), 226 e ss. («The

Economy of Oppositional Logic»), 230 e ss. («Nested Privileging»), 234–235 («Categories As Nested

Oppositions»), 235 e ss. («Suppression and Projecting»).

Page 37: JOSE MANUEL AROSO LINHARES Jurisprudencialismo Uma Resposta Possivel Num Tempo de Pluralidade e de Diferenca

37

«valores humanos» (as transcendent values in an inchoate sense) e «convenções

culturais» (as immanent cultural articulations)113

Reconhecendo que o «argumento» que defende a «existência de valores

transcendentes» (e destes enquanto «exigências» ou «aspirações indeterminadas») se nos

impõe como uma «condição-pressuposto transcendental» (a necessary transcendental

precondition) da possibilidade (prática) da compreensão moral e política e da retórica

discursiva que a tematiza (ou que justifica o seu continuum) — mas então também da

análise ideológica em que esta tematização culmina (the analysis of ideology as a special

case of the dialogic encounter) 114

Na mesma medida, no entanto, em que defende uma concepção (ou pelo menos

um «tratamento») «instrumental» da desconstrução — por uma vez assumida como

«método»115

. Na mesma medida, sobretudo, em que — recusando o apelo de uma

responsabilidade infinita ou a possibilidade de o testemunhar (as an infinite duty toward

the Other)… e privilegiando o caminho e os recursos de uma political morality (se não

do continuum prático-comunitário que a traduz) — assume a pressuposição

113

É este problema que ilumina «Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice», cit. [ver

muito especialmente a Introdução e o ponto V («Deconstruction as a Normative Chasm»),

respectivamente parte I, ps. web 1-8 e parte III, ps. web 1-4], antes de justificar um dos capítulos centrais

de Cultural Software, cit., pp. 142 e ss. («Transcendence»). 114

«By a transcendental value, I mean (…) a value that is inchoate and indeterminate, which

human beings must articulate through culture but which is never fulfilled (…), a value whose existence is

presupposed by some essential human activity. Thus the argument for the existence of a transcendental

value is transcendental; the existence of the value must be presupposed given the nature of the activity.

Hence we can also speak of transcendent values as ―transcendental‖ values. (…) Transcendent ideals of

truth and justice are presupposed in our understanding of encounters between people as encounters

between subjects of justice — that is, as a sort of entities that can be treated justly or unjustly. (…) We

need them to understand the meaning of human action in encounters with others … (…) Our encounter

wiht the Other causes the transcendent norm magically to spring to life» (Cultural Software…, cit., 144,

146, 147, 150) 115

Um contributo que se nos impõe na série constituída por «Deconstructive Practice and Legal

Theory», Yale Law Journal, vol. 96, 1987, 743 e ss., «The Domestication of Law and Literature», Law

and Social Inquiry, 1989, vol. 14, 787 e ss., «Tradition, Betrayal and the Politics of Deconstruction»,

Cardozo Law Review, vol. 11, 1990, 1623 e ss., «Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice»,

cit., «Being Just With Deconstruction», Social and Legal Studies, vol. 3, 1994, 393 e ss.,

«Deconstruction», in D. Patterson (ed.), A Companion to the Philosophy of Law and Legal Theory,

London, 1996, «Deconstruction's Legal Career» (1998) [o primeiro e os cinco últimos disponíveis na

Jack Balkin Home Page, cit.]. «To be adapted to the needs and concerns of the legal academy, (…) as it

moved from philosophy to literature and then to law (…), deconstruction had to be translated and altered

in significant ways, making it more flexible, practical, and attentive to questions of justice and injustice.

(…) Its transformation eventually produced a deconstructive practice in law that emphasizes a sensitivity

to changes in interpretive context, a pragmatic attitude towards conceptual distinctions, and a careful

attention to the role of ideology and social construction in legal thought» [«Deconstruction's Legal

Career», Jack Balkin Home Page, cit. (extraído em 24-11-2000), parte I, p. web 1].

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38

constitutivamente transcendental de uma exigência indeterminada de justiça (as an

indefinite, but not infinite, demand for justice116

)117

.

2.2.3. Concentremo-nos enfim (não menos rapidamente) no painel central. Já

não para surpreender uma sequência de degraus paralela às duas anteriores (e muitas

seriam possíveis!)... mas para privilegiar duas linhas de acentuação, ambas dirigidas à

tematização (mais ou menos explicitamente metadiscursiva) dos desafios da

circularidade: a primeira dominada pelo pólo da recontextualização hermenêutica

[2.2.3.1.], a segunda construída na perspectiva de uma problematização argumentativa

(e da dialéctica como tópica que a leva a sério) [2.2.3.2.].

2.2.3.1. Invocar a primeira é, com efeito, reconhecer (com Heidegger e com

Gadamer) uma recuperação ontologicamente positiva do círculo e do pensamento de

autotranscendência que este exige.

2.2.3.1.1. Uma tematização do círculo ou do mergulho no círculo que sabemos

inseparável da lição de Sein und Zeit… e da exigência de submeter a conexão-

Zusammenhang118

que vincula «resolução» e «antecipação» (Entschlossenheit e

Vorlaufen) a uma analítica auto-reflexiva lograda (dita methodische Besinnung119

).

Que analítica? Aquela que possa denunciar o desconhecimento-Verkennung a que

as diversas tentativas de «negar», «ocultar» ou «superar o círculo» nos condenam, na

mesma medida em que reconhece nestas tentativas outras tantas consagrações definitivas

desse «desconhecimento». Mas então também aquela que, ao libertar-se de (ao romper, ao

vencer) um tal desconhecimento, experimenta-ilumina a compreensão-Verstehen como

modo fundamental (Grundart) do Ser do estar-aí (Dasein), ao mesmo tempo que (muito

116

«Transcendental Deconstruction, Transcendent Justice», cit., II, A. («The Infinite and the

Indefinite»), cit., parte I, ps. web 12-14, Cultural Software, cit., toda a parte II, pp. 99 e ss. («Ideology»). 117

«The encounter between deconstruction and justice has changed both parties; yet, of the two,

deconstruction appears to be the more transformed. If deconstructive practice is to be of any use to the

question of justice, it must become a transcendental deconstruction. It must exchange the logic of the

infinite for that of the infinite. It must act in the service of human values that go beyond culture,

convention and law. It must recognize the chasm that differentiates human values from articulated

conceptions of it, and it must identify Deconstruction with that chasm…» («Transcendental

Deconstruction, Transcendent Justice», cit., parte III, p. web 5). 118

Martin Heidegger, Sein und Zeit, 18ª edição (reimpressão da 15ª), Max Niemeyer Verlag

Tübingen, 2001, p. 309 119

Ibidem, p. 310.

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39

especialmente) confirma que este Ser se constitui (circularmente) como pré-ocupação ou

cuidado120

.

Mas então uma auto-reflexão que, enquanto analítica da resolução antecipante

(vorlaufende Entschlossenheit121

), nos proporciona um vollen Blick (als vollen Blick auf

das zirkelhafte Sein des Daseins122

) —, adquirindo assim o sentido de uma autêntica

interpretação existencial. A interpretação que poderá explicitar a temporalidade do estar-

aí e do seu poder-ser (no mundo) como totalidade (enquanto ser-todo originário do

Dasein)... na mesma medida em que constrói (em que abre) uma compreensão autêntica

do tempo ontológico (die Zeitlichkeit als der ontologische Sinn der Sorge123

).

Uma tematização então e assim não menos indissociável da lição de Vom Wesen

des Grundes… entenda-se, da exigência de uma reflexão sobre o fundamento que possa

ser procurada no plano da transcendência constitutiva do estar-aí (e neste sentido

também encontrada e determinada com a mediação constitutiva da existência).

Ao ponto de podermos concluir que o discurso a construir (e a renovar

permanentemente) se move iluminado por uma exigência de verdade ontológica, ou mais

rigorosamente, pela consciência de que as verdades ôntica (ontische Wahrheit) e

ontológica (ontologische Wahrheit), ao referirem-se «de modo diverso respectivamente,

ao ente (das Seiende) no seu Ser e ao Ser (das Sein) do ente», devem impor-se-nos como

intenções-exigências nuclearmente «solidárias» (Sie gehören wesenhaft zusammen auf

grund ihres Bezugs zum Unterschied von Sein und Seiendem)124

.

Sem esquecer que se trata assim também de exigir que a transcendência —

enfim livre do esquema de determinação sujeito-objecto125

— se nos imponha ela

própria como liberdade para o fundamento (im Sinne der Freiheit zum Grunde)126

.

2.2.3.1.2. Uma tematização do círculo que nos atinge no entanto sobretudo

através da resposta de Gadamer. Uma resposta que faz corresponder o «esforço» de

«saltar» para o «interior do círculo» (e a interpretação do carácter «originário» e

120

Ibidem, pp. 315-316. 121

Ibidem, p. 310 122

Ibidem, p. 315 123

É a epígrafe do famoso famoso § 65 (pp. 323-331). 124

Vom Wesen des Grundes, 3ª ed., 1949, cit. na versão bilinge A essência do fundamento,

Lisboa, edições 70, 1988, pp.26-27. 125

Ibidem, pp.34-35. 126

Ibidem, pp. 106-107.

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40

«pleno» deste «salto»127

) a uma exigência de tematizar a universalidade do

compreender-Verstehen enquanto forma imediata e principal (originária-ursprünglich)

de realização-consumação (Vollzugsform) do mundo prático-humano e da vida social

que lhe corresponde… vida social por sua vez que não só habita uma comunidade de

linguagem (e de linguagem comum) como em última instância (als letzte

Formalisierung) se constitui enquanto tal — impedindo que qualquer «experiência do

mundo» dela se exclua ou deva excluir-se (Von dieser Gesprächsgemeinschaft ist nichts

ausgenommen) 128

.

O que, como sabemos, significa restituir a compreensão ao modelo privilegiado

da phronesis (aristotélica) e exigir que o processo auto-reflexivo que a assume (enquanto

prima filosofia, capaz de reconstituir as condições transcendentais do compreender) se

nos exponha, sem hesitações, a constituir o território luminoso da filosofia prática e este

como um horizonte-compromisso (decisivo) de integração129

.

De tal modo que o sentido ontológico positivo do círculo se nos exponha já numa

unidade intencional de determinantes e determinados e na textura de relações recíprocas

que o torna possível: aquela que envolve (inextricavelmente!) finitude e transfinitude,

auctoritas e razão, tradição e discurso prático-racional, texto e presente, racionalidade

prático-prudencial e existir situado, logos e ethos, objecto e conteúdo interpretados…

antes de se nos expor com toda a transparência na applicatio e na conversação

responsável com o texto que esta constrói. Uma conversação aberta que, sendo critério

de si própria (garantindo ela própria, na imanência do seu percurso, uma selecção dos

pré-juízos a reter ou a superar), está no entanto longe de se desenvolver para garantir uma

confirmação «selectivamente anestesiante» à pré-compreensão do intérprete — porque

antes, e em contrapartida, submete os seus pré-juízos a riscos permanentes! —, mas

127

Ainda Heidegger, Sein und Zeit, cit., p. 315. 128

Gadamer, «Replik», in Apel, Bormann, Bubner, Gadamer, Giegel, Habermas, Hermeneutik

und Ideologiekritik, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1971, p. 289. Para um desenvolvimento, ver Wahrheit

und Methode, cit., na trad. castelhana da 4º ed. (Tübingen, 1975), Verdad y metodo, Salamanca,

Ediciones Sigueme, 1977, pp. 326 e ss. (14. «El lenguaje como horizonte de una ontología

hermenéutica»). 129

«Am Ende ist die aristotelische Tugend der Vernünftigkeit, die Phronesis, die hermeneutische

Grundtugend selbst. Sie diente mir als Modell für meine eigene Gedankenbildung..So wurde in meinen

Augen die Hermeneutik, diese Theorie der Anwendung, das heisst des Zusammenbringens des

Allgemeinen und des Einzelnen, ein zentrale philosophische Aufgabe...» (Gadamer, «Probleme der

praktischen Vernunft», in Derbolva u. alli (Hrsg.), Sinn und Geschichtlichkeit — Werk und Wirkungen

Theodor Litts, Stuttgart 1980, p. 155). Para além do desenvolvimento indispensável de Wahrheit und

Methode [Verdad y Metodo, cit., pp. 331-458 (nºs 9, 10 e 11)], ver ainda «Die Begründung der

praktischen Philosophie», o posfácio à tradução (proposta por Gadamer em 1998) do Livro VI da Ética a

Nicómaco (Aristoteles, Nikomachische Ethik VI, hrsg. und übers. Von Hans-Georg Gadamer, Frankfurt

am Main, Klostermann, 1998, pp. 61-67).

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então também uma conversação que, ao garantir a unidade de um movimento-kinésis

(capaz de absorver a dualidade dos horizontes do intérprete e do texto sem a

abolir), encontra na consciência do seu próprio inacabamento — e na experiência

do tempo, da tradição e da História (também enquanto Wirkunsgeschichte) que

esta traz consigo… — a sua decisiva condição de possibilidade130

2.2.3.2. Que dizer, também em duas palavras, da acentuação tópico-

argumentativa e do modo como esta experimenta e tematiza o percurso do círculo e o

sentido do mundo prático que este revela?

(a) Que se trata, como em nenhuma outra, de iluminar a experiência do novo…

iluminando simultaneamente uma exigência de tratamento-assimilação131

— uma

exigência capaz de converter (de autonomizar) este novo como problema-controvérsia e

de assim mesmo o inscrever num contexto de referência.

(b) Como se trata ainda de, também como em nenhuma outra — graças

sobretudo à conexão entre argumento inveniendi e solução —, preservar a perspectiva

do problema (impedindo que este se dissolva no iter reflexivo).

Especificações que nos beneficiam com uma representação particularmente

persuasiva do mundo prático e do movimento que o constrói — enquanto referência a

um commune que é sempre também procura desse commune…

Uma procura que só encontra a sua unidade na perspectiva do problema... no

momento culminante em que a trama dos argumentos construídos se articula

logradamente com a tese defendida ou em que, também em nome das exigências da

phronesis, se garante a superação da singularidade por uma certa participação no geral.

E no entanto também especificações que trazem consigo o perigo de perverter

uma tal representação… e de a perverter comprometendo-interrompendo precisamente a

exigência de circularidade: não decerto porque ponham em causa a racionalidade

130

Cfr. o referido nº 11 de Wahrheit und Methode [Verdad y Metodo, cit., pp. 415 e ss., 446 e

ss.(agora explicitamente a propósito do «carácter original da conversação»)]. A fórmula «selectivamente

anestesiante», devêmo-la com alcuna licenza a Dunne (selective sedation) e à sua análise exemplar do

wirkungsgechichtliches Bewußtsein: Joseph Dunne, Back To the Rough Ground. Practical Judgment and

the Lure of Technique, Notre Dame Indiana, University of Notre Dame Press, 1993, p. 117. 131

Ao contrário do que acontece decerto com a celebração da singularidade-irrepetibilidade

justificada pelas linhas desconstrutivistas… na qual a acentuação do novo não é acompanhada por esta

exigência de tratamento.

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sujeito /sujeito (porque persistam em não abandonar o esquema cognitivo sujeito/

objecto132

) ou porque se mostrem relativamente insensíveis (quando não hostis) ao

topos pluralismo133

, antes (e pelo contrário!) porque hipertrofiam o momento da

realização. Uma hipertrofia que, no limite, poderá reconduzir a validade pressuposta a

uma mera contingência (objectivável num consenso a posteriori)... na mesma medida

em que, como já anunciámos, nos condena a superar uma racionalidade material… para

assumir uma racionalidade procedimental134

.

Um perigo enfim que só poderá ser reconhecido e atenuado se se levar a sério

aquela pressuposição-procura do commune... e de tal modo que o novo e o antigo se

fundam na perspectiva da participação (ou da comunidade de comunicação) que

internamente desenvolve uma tal procura (das Neue das Alte ist, aber auf eine Weise, die

nicht nur in der einseitigen Perspective eines dem Zweifel ausgesetzten und nach Verteidigung

suchenden Partners als Verbindung von These und Argument gilt, sondern in der Perspective

aller Teilnehmener diesen Vorzug aufweist135

). Se não para renunciar deliberadamente à

equivalência em abstracto dos topoi — e admitir uma compreensão mínima da

sistematicidade136

(das topische System stammt aus der Rhetorik, bleibt ihr strukturell

verbunden und beschränkt sich darauf ein Argumentationssystem zu sein137

) —, pelo

menos para exigir que, em nome da instituição fundante daquelas exigências de

participação, se recupere o vínculo originário (entretanto perdido) entre dialéctica e

controvérsia... e assim também entre dialéctica e prática quotidiana (Alltag), dialéctica e

disposições existenciais, dialéctica e mundo-da-vida (Lebenswelt). O que — para o

dizermos com Bubner — significa, numa palavra, libertar o discurso dialéctico da

colonização que lhe foi imposta pela episteme moderna (e do discurso do método ou das

132

Crítica decerto insustentável (perante uma perspectiva exemplarmente assumida como trama

de logoi)... e que no entanto vemos dirigida por Kaufmann (com alguma equivocidade embora... e sem

acertar no alvo pretendido!) a todas as chamadas teorias da argumentação jurídica... e depois

recorrentemente glosada por representantes incondicionais da vertente hermenêutica! Ver Kaufmann,

Rechtsphilosophie, München, 1997, cit. na trad. portuguesa Filosofia do direito, Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian, 2004, pp.72-73. 133

Outra das críticas (manifestamente injustas ou pelo menos desadequadas, porque dirigidas

sem discriminação a um amplíssimo common ground) que vemos autonomizadas por Kaufmann: ibidem,

p.73. 134

Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, cit, pp.71-74. 135

Bubner, Dialektik als Topik, cit., p. 64. 136

Alimentada eventualmente (já na sua projecção no universo do direito) pelo horizonte de

inteligibilidade de uma Rhetorische Rechtstheorie, com o alcance que Viehweg nos ensina a reconhecer:

ver neste sentido Rechtsphilosophie und Rhetorische Rechtstheorie. Gesammelte kleine Schriften. Baden-

Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1995, pp. 191 e ss. (III. «Zur Rhetorische Rechtstheorie

insbesondere») 137

Ibidem, p. 106. Ver ainda Castanheira Neves, «A unidade do sistema jurídico…», cit., pp.114-

116.

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pretensões de racionalidade aprioristicamente concebidas que o quiseram aprisionar)…

para assim mesmo (também regressando a Aristóteles) renovar (reinventar) o

compromisso com uma dialéctica enquanto tópica (Die Dialektik in ihrer topischen

Gestalt tut nichts anderes als die lebensweltlich begründete Rationalität auf den Begriff

zu bringen, ohne damit wissenschaftliche Verfassungsweisungen zu imitieren138

).

2.3. Se convoco todos estes «intérpretes» do mundo prático-comunitário e dos

compromissos que o constituem, acentuando a tensão circular entre pluralidade

discursiva e unidade intencional, radicalização hermética da diferença e renovação

dos compromissos de identidade (que o é sempre também implicitamente entre

pressuposição dogmática e reinvenção crítica, disponibilidade e indisponibilidade,

estabilidade e transformação139

)…

… e esta tensão ou a dinâmica que lhe corresponde enquanto nos ensinam a

rejeitar as soluções da pura necessidade ôntica e do puro arbítrio decisório (a primeira

decerto compossível com a comunitas pré-moderna, o segundo a expor-se-nos já como

um resultado-limite da institucionalização da societas140

)…

… não é no entanto decerto para explorar o contraponto que os seus percursos e

pretensões de equilíbrio determinam (ou para testemunhar o espectro de possibilidades

que estes oferecem)141

. É antes para reconhecer que a exigência de enfrentar hoje o

problema do direito e de o enfrentar interrogando a sua procura — discutindo a

plausibilidade-«pontualidade» (se não urgência) prático-culturais da demarcação

humano / inumano que a sua praxis (de acontecimentos-decisões-interpelações) está em

condições de autonomizar — não pode cumprir-se se nos contivermos neste patamar,

entenda-se, se cedermos à tentação (fácil!142

) de admitir que o testemunho da

juridicidade de que hoje precisamos…

138

Bubner, Dialektik als Topik, cit., p. 7. Para um desenvolvimento, ver pp. 79-87 («Dialektik

und Topik») 139

Tensões a que me refiro explicitamente em «Validade comunitária e contextos de realização.

Anotações em espelho sobre a concepção jurisprudencialista do sistema», cit. 140

De uma societas no entanto que, na claridade matinal da sua concepção, encontrara o seu

impulso construtivo principal na pressuposição de uma outra necessidade (a da ratio, onto-

antropologicamente sustentada). 141

Se assim fosse, não poderíamos deixar de convocar outros interlocutores indispensáveis à

tematização do pensar em círculo, a começar por Ricoeur e Jauss! 142

Sempre fácil... embora nos exija quase sempre também um percurso reflexivo eriçado de

dificuldades!

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…e de que hoje precisamos sempre que se trate de, resistindo ao domínio do eixo

episteme-technê/technê-episteme, querer reagir à colonização ameaçadora da

Zweckrationalität (e com esta a uma compreensão inteiramente determinada pelo

horizonte da societas143

)…

…possa (ou deva) construir-se na perspectiva destas representações da

comunitas (e da sua autotranscendentalidade) e como uma assimilação aproblemática

(mais ou menos lograda, mas sempre unilateralmente conduzida) dos pressupostos,

códigos e categorias que estas mobilizam (quando não directamente das situações

institucionais a que estas nos expõem).

Quer se trate de privilegiar (escolher) um destes caminhos (e neste um dos seus

interlocutores-guias!), quer se trate de partir das suas convergências (ou de algumas das

suas convergências mais significativas) para recriar um grande horizonte comum (ou um

grande contexto auto-reflexivo e o consenso que o ilumina).

Expor o testemunho da juridicidade de que hoje precisamos à inevitabilidade

desta assimilação — até ao ponto de confirmar que estamos condenados à mediação de

uma teoria do direito externa puramente assimiladora144

(ou de que precisamos de uma

«filosofia no direito» e não de uma «filosofia do direito»145

!) — significa com efeito

postular já (aproblematicamente) a diluição (irresistível) do jurídico num continuum

prático (se não já prático-poiético).

Como se se tratasse por um lado de reconhecer (mais ou menos explicitamente)

a consumação-cristalização (historicamente insuperável) dos sentidos ou dos contextos

143

Ou pelo menos alimentada pela convicção de que é possível ver na exclusividade deste

horizonte uma etapa evolutiva historicamente insuperável! 144

A expressão é de Castanheira Neves, tendo sido especialmente mobilizada na comunicação de

abertura de um Seminário de teoria de direito do Programa de Doutoramento e Mestrado em Direito da

Universidade Federal do Paraná (Curitiba, 26-29 Setembro de 2007), seminário no qual tive o gosto e a

honra de participar. A sistematização proposta distinguia de resto diversas teorias do direito externas

(assimiladoras, analíticas, redutoras, construtivistas), reservando-se a qualificação assimiladora para a

proposta exemplar da Nova Hermenêutica e para o seu «optimismo» [para uma alusão a esta última

atitude de resposta («a resposta está dada!»), ver «O problema da universalidade do direito ou o direito

hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas», cit., p.118]. 145

Uma exigência especialmente defendida pela proposta de Lénio Streck e que — com um

importante contributo do Autor («Interpretando a Constituição: Sísifo e a tarefa do hermeneuta») —

constitui o núcleo temático do quinto número da Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ),

Porto Alegre, 2007 (número este intitulado precisamente A filosofia no direito e a filosofia do direito).

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45

de significação que a procura do homo humanus autonomizada (isolada) pelo direito

está em condições de garantir…

…e nalguns dos casos mesmo de pressupor, implícita ou explicitamente, que o

padrão de humanidade que a nossa circunstância exige deva ser procurado para além do

direito ou pelo menos renunciando à tértialité que o distingue ou à pretensão de

comparação correspondente (à dialéctica de autonomia e de responsabilidade comunitária

limitada que o constitui).

Como se se tratasse por outro lado de ceder à sedução das hetero-referências…

admitindo sem mais que a exigência de resistir à exclusividade do pragmatismo

empírico-explicativo — e à pretensão de interdisciplinaridade a que este expõe o

jurídico — nos entrega sem alternativas à prioridade condutora de uma outra pretensão

de interdisciplinaridade (iluminada pelas Humanidades)146

Agora com arenas propulsoras que vão (poderão ir) da análise linguística e da

crítica literária à história e à filosofia... mas também com experiências e recursos que, na

sua recriação do mundo prático — ou na sua interpretação do regresso da comunidade,

mas também no seu tratamento da pluralidade e da diferença — se submetem a um

espectro de eixos reflexivos alternativos (e aos modos de organização que estes impõem).

Espectro que, não certamente por acaso, se desenha assumindo os painéis atrás esboçados

[supra, 2.1. (β)‘-(β)‘‘-(β)‘‘‘]: contrapondo as possibilidades da filosofia narrativo-

sapiencial às da ética da alteridade... e invocando como eixo central aquelas que a

tematização ontológico-existencial permite.

Mas então, e numa palavra, como se uma reconsideração hoje possível do

problema do direito só conseguisse resistir à hipertrofia das instrumentally calculating

146

De tal modo que a perspectiva-alvo (a que se resiste) seja aquela que nos aparece a consagrar

o domínio informativo e metódico das ciências sociais empírico-explicativas — se não a confimar-

consumar uma das profecias de Holmes (the man of the future (…) for the rational study of law (…) is the

man of statistics and the master of economics); de tal modo ainda que o exercício de resistência se

cumpra à luz do apelo não menos persuasivo do juiz Learned Hand — exigindo que as práticas e

discursos do direito passem a integrar a «nobre república das Letras»… ou pelo menos reconhecendo que

estas práticas e os pensamentos que as pensam permanecem «inacabados» (feridos na sua integridade ou

entregues a arbítrios incontroláveis) se não forem «alimentados» pelas (ou se não encontrarem «apoio» e

«exemplo»-edification nas) «fontes de conhecimento externo» que «as humanidades» (incluindo a

filosofia e a crítica literária) lhes proporcionam. Para reconstituir este exemplar «tale of two speeches»,

elenquentemente narrado por Balkin e Levison, ver «Law and Humanities: An Uneasy Relationship»,

Yale Journal of Law & the Humanities, vol. 18, pp. 155-160 («Introduction: Is Law Part of the

Humanities? A Tale of Two Speeches»).

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46

forms of reason — e impor-se a estas como uma alternativa lograda (ou como núcleo

polar de uma dialéctica) —… se (e na medida em que), invocando em bloco o projecto

de humanidade do mundo prático (e o continuum em que as suas experiências são

pensáveis), admitisse mais ou menos explicitamente renunciar à especificidade prático-

cultural da juridicidade… ou pelo menos à possibilidade de lhe fazer corresponder uma

pretensão de autonomia (capaz de a distinguir das outras dimensões desse mundo).

Conclusão paradoxal esta — plausível embora… porque alimentada, como ainda

veremos, por uma compreensão redutora daquela pretensão de autonomia! —... e que

para além do mais nos expõe a um desafio particularmente difícil: o de ter que optar por

uma das representações em causa ou por um dos seus veios principais (aqueles que o

nosso tríptico quis identificar) [supra, 2.1. (β)‘-(β)‘‘-(β)‘‘‘], evitando (impedindo) assim

que a antecipação dos problemas do direito ou que a atenção às suas condições

específicas (ou às suas categorias de inteligibilidade) — porventura porque estas se

tornaram irreconhecíveis na nossa circunstância! — intervenha de alguma forma nessa

escolha.

O que é que significa com efeito invocar o prius de uma compreensão global da

praxis ou do seu ethos — e exigir que esta sustente (unilateralmente) uma

recompreensão das práticas juridicamente relevantes — senão reconhecer que, na sua

relação com o mundo prático do direito, todas as interpretações desta compreensão

global (interpretações que entre elas concorrem) devem à partida ser tratadas como

equivalentes? Se assim for, no entanto... a opção passa a depender exclusivamente do

diagnóstico da nossa circunstância que cada uma dos percursos reflexivos assuma (dos

factores ou dimensões que positiva ou negativamente entenda dever sublinhar, em

detrimento de outros também possíveis)... e então e assim da maior ou menor

sensibilidade a exigências de estabilidade ou de abertura, de determinação dogmática ou

de problematização crítica que descritiva e prescritivamente manifeste (ou defenda)...

— sensibilidade que (reflectindo uma compreensão selectivamente construída do

projecto global da humanitas e a aposta correspondente) nos permita concluir que

precisamos hoje sobretudo da concepção do mundo e do homem que o projecto do

comunitarismo sapiencial nos oferece [2.1.(β)‘]... ou daquela que a hermenêutica como

filosofia está em condições de justificar [2.1.(β)‘‘]... ou ainda daquela que só a ética

desconstrutivista pode abrir [2.1.(β)‘‘‘]147

...

147

Podendo quando muito admitir-se que, num segundo plano (analítica e cronologicamente

separado), se procurem eventuais afinidades electivas que favoreçam a projecção no universo do direito

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47

3. É precisamente a oportunidade de escapar a este plano de inteligibilidade

global ou à exclusividade dos seus problemas-perguntas — mas também (et pour

cause!) à equivalência das respostas que nele se multiplicam — que queremos acentuar

convocando o modelo de pensamento jurídico que Castanheira Neves designa por

jurisprudencialimo: ora este modelo enquanto nos expõe a uma assunção recuperadora

do mundo existencialmente humano do direito — se não explicitamente à procura de

um «direito crítico» na «ordem da intencionalidade»148

(entenda-se, à assunção de um

sentido materialmente vinculante, que é também e indissociavelmente um fundamento

axiologicamente crítico) —... mas também e muito especialmente (aqui e agora!)

enquanto enfrenta (faz seus) os desafios da autotranscendentalidade prático-cultural.

A oportunidade de encontrar respostas-soluções para estes desafios e para a

auto-reflexão que os expõe e intensifica? Antes uma oportunidade de procurar-ensaiar

uma resposta diferente, diferente de todas aquelas que as interpretações narrativas,

ontológico-existenciais ou éticas (se não ético-políticas) — e estas separadamente ou a

convergirem num horizonte comum, eventualmente a assegurarem um overlapping

consensus (resta saber qual!) — nos permitem reconhecer. A oportunidade-exigência de

interpelar o mundo prático-comunitário (e a tensão entre estabilização dogmática e

realização transformadora) na perspectiva do direito e dos compromissos que o

distinguem… que é também afinal a de nos pôr perante a possibilidade de uma

perspectiva interna.

Sendo certo que não se trata assim de esquecer as condições de representação-

determinação impostas pelo contexto global — e pela nova compreensão da praxis que

este constrói —, como não se trata de propor especificações que neutralizem aqueles

desafios (e a auto-reflexão que os ilumina) — especificações que em nome de uma

celebração (apologética) da autonomia-Isolierung do jurídico pudessem ocultar-superar

os problemas correspondentes. Porque se trata antes de convocar «o originarium

constitutivo do problema do direito»… para experimentar a continuidade (e se

quisermos, a plausibilidade contextual) da procura que lhe correponde.

Ora experimentar esta continuidade (e a identidade que esta preserva)

submetendo-a a uma provação reflexiva radical. Uma provação reflexiva que devendo

de algumas das interpretações do mundo prático, nomeadamente daquelas em que o eixo da phronesis

apareça mais claramente autonomizado... 148

Castanheira Neves, «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit.,

p. 57.

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apostar na possibilidade-exigência de responsabilizar este direito — enquanto sentido e

enquanto prática-pensamento, enquanto experiência diferenciadora e enquanto ordem

material — como um eixo-interlocutor indispensável da nossa circunstância presente (e

da Erschütterung com que esta nos fere), não deixe no entanto de assumir sem

equívocos a fragilidade prático-cultural do processo de comparação-tematização que o

distingue e das aquisições que este assume (alimentadas pela identidade do problema-

controvérsia e pelo tertium comparationis de uma dialéctica suum/ commune) — na

mesma medida de resto em que reconhece as alternativas que desafiam tais

aquisições149

.

Uma provação iluminada pelo problema da autonomia (ou pela

indissociabilidade constitutiva dos problemas do sentido e da autonomia150

)? Importa

acentuá-lo. E acentuá-lo insistindo em que se trata assim de assumir uma certa

compreensão da autonomia. Não decerto como uma experiência historicamente

circunscrita, que um acultural way of understanding — invocando uma sequência

implacável de futuros presentes — pudesse tratar como um output necessário e

absolutizar como etapa-limite (reivindicada por todo e qualquer processo evolutivo)151

.

Nem como uma concepção (entre outras concepções possíveis), que importasse de

149

Que outro problema senão o que Castanheira Neves nos ensina a descobrir quando reconstitui

as condições de emergência da juridicidade e nos confronta com as «alternativas ao direito» que resultam

da abstracção da chamada condição ética? Trata-se, com efeito, de contrapor a ordem de validade do

direito à ordem de necessidade do poder e à ordem de possibilidade da ciência (tecno-ciência) mas

também à ordem de finalidade da política… reconhecendo nestas outras tantas respostas (culturalmente)

possíveis. Para além dos importantes desenvolvimentos propostos nas lições nºs 7 («O por-quê do

direito») e 8 («As alternativas ao direito») de O problema actual do direito, cit., primeira versão, e muito

especialmente em «Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito — ou as

condições da emergência do direito como direito», cit., passim [este último conjugado com as últimas

páginas de A crise actual da filosofia do direito, cit., pp.140-147 (V)], cfr. ainda «O princípio da

legalidade criminal», Digesta, cit., vol 1º, pp. 413-419, «O direito como alternativa humana. Notas de

reflexão sobre o problema actual do direito», ibidem, pp. 287-310, Metodologia Jurídica. Problemas

fundamentais, cit., pp. 231-234, «Pessoa, direito e responsabilidade», Revista Portuguesa de Ciência

Criminal, nº 6, 1996, pp. 38-40 e O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do

direito, cit., pp. 53 e ss (IV) [ambos também nos Digesta, cit., vol.3º, respectivamente nas pp. 154-155 e

62 e ss.]. Sem esquecer as sínteses mais recentes propostas em ««Uma reflexão filosófica sobre o direito

— ―o deserto está a crescer...‖ ou a recuperação da filosofia do direito?», cit., pp.94-96, «O problema da

universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas»,

cit., pp.118-121, «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp.59-63,

«Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp.11-15. 150

Ver especialmente «O problema da autonomia do direito no actual problema da juridicidade‖,

in J. A. Pinto Ribeiro (coord.), O homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira, Porto,

1999, pp. 87-114. 151

Trata-se de mobilizar a caracterização da «acultural» way of understanding the rise of moder-

nity ─ em contraponto com a «cultural» way ─ que Charles Taylor propõe em «Two Theories of

Modernity» (1993), The International Scope Review, volume 3, nº 5, 2001, disponível em

http://www.social-capitalfoundation.org/journal/volume%202001/issue&205/taylor_presentation.htm

(extraído em Outubro de 2006).

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alguma forma tecer à custa daquelas (de todas aquelas) que se lhe opõem. Antes como

uma preocupação condutora, na qual a autonomia a ter em conta, interpelando-nos

como prática-procura cultural e civilizacionalmente comprometida — pré-ocupada com

um certo exercício de demarcação humano /inumano (e então também, hoje muito

especialmente, com a exigência de denunciar-desmascarar os intérpretes-defensores do

inumano que o desafiam!) —, não nos interpele menos como sentido-exigência

inconfundível e como experiência continuada de realização (mas também e ainda como

discurso culturalmente específico)152

.

Uma preocupação condutora que emerge de um processo historicamente situado

de autonomia-Isolierung… e que encontra neste (e na comunidade-civitas que o

assume) a sua «claridade matinal» (Steiner153

)154

… cujos sinais-rastos —

152

Sem esquecer que as emergências destas três autonomias («filosófica», prático-

-jurisprudencial e cultural) correspondem a três momentos inconfundíveis da aventura civilizacional da

resposta direito (de um direito que se descobre sucessivamente como sentido e como especulação

filosófica, como prática jurisprudencial e como domínio cultural universitariamente reconstituído e

comunicado) — numa conjugação-construção que o discurso medieval (ao assegurar a terceira das

autonomias e ao assimilar-reinventar as outras duas) pôde traduzir na relação sapientia / scientia / pru-

dentia. Cfr. neste sentido o Sumário desenvolvido proposto por Castanheira Neves na primeira sessão do

II Programa de Doutoramento (Faculdade de Direito de Coimbra, ano lectivo de 2001/2002), O actual

problema da autonomia do direito, I) Introdução, 1.a), b) e c) [«Se para os gregos o direito era um

problema filosófico — intencionalidade que se mantém na dimensão teológico-filosófica — e para os

romanos era uma prática, uma experiência socialmente prudencial, volve-se agora numa dogmática

(numa dogmática hermenêutica). Pelo que a autonomia do direito passa a ser uma autonomia cultural: o

direito não se especula apenas, nem se pratica só prudencialmente, estuda-se e reconstitui-se dialéctico-

-culturalmente — o logos jurídico torna-se hermenêutico-dialéctico. O que se manifesta secularmente no

ius commune…» (Ibidem, 4)] — sistematização que vemos retomada e desenvolvida em «O problema da

universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-dialogante das culturas»,

cit., pp. 111-116 (III). 153

A formulação é de Georges Steiner (sendo certo que o autor de The Idea of Europe não se

refere aqui à invenção romana do direito… mas ao «pensamento grego» e à «moral judaica»): The Idea of

Europe, cit. na trad. portuguesa A ideia da Europa, Lisboa, Gradiva, 32006, p. 53.

154 Que outra «claridade matinal» senão aquela que inventa o «nome» humanitas (unter ihrem

Namen wird die Humanitas zum ersten Mal bedacht und erstrebt) [Heidegger, Über den Humanismus,

Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1947, p.19]… e que o inventa como contexto e correlato de uma praxis

de responsa? Enquanto experimenta uma especificação inconfundível da virtude intelectual da phronêsis

— uma especificação que a «secularização» grega da praxis (ao assumir o problema da resolução de

controvérsias relativas a acontecimentos passados em continuum com as projecções éticas, político-

arquitectónicas, político-deliberativas e até económicas dessa virtude) não fora capaz de libertar [Bastará

invocar a lição do Ética a Nicómaco, livro VI, cap. 8 (VI, 8 / 1141b23-1142a11)!] … —, mas sobretudo

enquanto garante que a procura correspondente e que o sentido da humanitas (e do homo humanus) que

esta persegue — alimentados embora pelo «fogo de Prometeu» da cultura grega (e pela sua filosofia da

«justiça») — se cumpram como um processo (permanente) de correcção-especificação da ordem material

pressuposta e da intenção à validade que se lhe dirige (capaz de a reconhecer e de a assumir como ius)…

e então e assim também indissociados (constitutivamente indissociados, prático-culturalmente

indissociáveis) de uma experiência de realização. Daquela experiência que só o juízo-julgamento,

enquanto tratamento prudencial das controvérsias-casos (sustentado num cálculo de tipos e numa

hipostasiação institucional radicalmente nova, mas também num exercício determinante de relativização-

comparação de sujeitos iguais e responsáveis) está (estará) em condições de garantir [Invoque-se sempre

a lição imprescindível do primeiro capítulo de Lombardi, Saggio sul diritto giurisprudenziale, Milano,

Giuffré, 1967, passim]

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permanentemente sulcados e convertidos (mas nem por isso menos indeléveis) — nos

expõem assim (ainda hoje) a uma experiência privilegiada de continuidade. Uma

experiência de continuidade que, partindo daquele initium luminoso, nos remete para o

fogo criador da respublica christiana (e para a conversão axiológico-existencional que

este determina), como nos remete para a reinvenção moderno-iluminista — e para as

aquisições-desafios que a libertação da subjectividade intencional e a institucionalização

da relação direito / poder (iluminadas pela emancipação dos direitos do homem) nos

proporcionam —… remetendo-nos ainda (e indissociavelmente) para os processos de

superação ou de reescrita a que uma tal reinvenção e a sua raison raisonnante

(enfrentando uma celebração assumida da singularidade e da diferença) hoje

exemplarmente se submetem. Mas então uma experiência que, graças ao espectro de

intenções assim convocado e às etapas que o estabilizam e distribuem — como outros

tantos ciclos de procura do homem-pessoa e da luta pelo reconhecimento que lhe

corresponde (os que nos integram no intellegere de um contexto ôntico

comunitariamente indisponível e o(s) que nos compromete(m) com a criação ex nihilo

da societas, mas também o(s) que nos responsabiliza(m) pela inventio de uma intenção

à validade e pela autodisponibilidade que a radicaliza) —, nos aparece vinculada a

uma cera «ideia da Europa» e ao «sentido civilizacionalmente cultural» que nos permite

dizê-la (e continuar a dizê-la) «civilização de direito»155

… — o sentido que quis (e que

quer continuar a ver) no direito uma solução específica para o «problema do histórico-

social encontro, se não desencontro, humano no nosso espaço de coexistência e

convivência156

».

Reconhecida a especificidade-responsabilidade deste compromisso, urge mostrar

em que termos é que a aposta jurisprudencialista, ao reconstituir crítico-reflexivamente

o mundo humano do direito — ao exigir uma reconstituição crítica deste mundo

humano que seja «axiológico-normativa nos fundamentos, prático-normativa na

155

Se não dominada pelos dominada pelos pólos irredutíveis de Atenas e de Jerusalém — e pelos

deveres de fidelidade (aos filósofos e aos profetas) com que estes (e as suas heranças) oneram uma certa

«ideia da Europa». Sem esquecer que é esta mesma polaridade constitutiva (ferida no seu equilíbrio,

porventura já submetida a uma hipertrofia mais ou menos clara do segundo pólo) que nos condena a uma

interrogação radical (ao dever de perguntar se a nossa circunstância presente exige afinal um reencontro

com a humanitas distinto daquele que a resposta direito determina). Uma interrogação radical em que, no

limite, é a própria «ideia da Europa» — para além porventura da possibilidade de continuar a distingui-

la como «civilização de direito» (ou de continuar a ver neste um dos seus «pormenores» decisivos) —,

que claramente se discute (de cuja identidade se duvida). 156

«O problema da universalidade do direito ou o direito hoje, na diferença e no encontro

humano-dialogante das culturas», cit., p. 105.

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intencionalidade e judicativa no modus metodológico»157

—, enfrenta (faz seus) os

desafios do círculo (e do pensar em círculo)… e muito especialmente aqueles que o

binómio unidade /pluralidade especifica158

. Tratando-se de resto de reconhecer (de

acentuar) outras tantas respostas específicas, que só esse mundo prático (condicionado

embora pelas exigências e interpelações de outros mundos práticos) está por assim dizer

em condições de assumir. Respostas com uma identidade mas também com uma

produtividade indissociáveis desse mundo e da sua dimensão normativa… aptas, neste

sentido, a solucionar problemas — ou pelo menos a institucionalizar (a garantir

institucionalmente) a procura de soluções para problemas — que o referido horizonte

global se limita a considerar ou a manifestar-exprimir aporeticamente (a começar

certamente por aquele que confronta pressuposição dogmática e reflexão crítica ou que

nos desafia a procurar-reconhecer os limites de cada um destes pólos159

).

Respostas que não iremos evidentemente desenvolver. Que nos limitaremos a

acentuar (quase sempre a traço grosso), distribuindo-as analiticamente por três eixos

possíveis.

3.1. O primeiro eixo de respostas a ter em conta concentra-nos no processo de

institucionalização internamente assumido pelo mundo prático do direito — ou mais

rigorosamente na inter-relação constitutiva que vincula as oportunidades de

construção-reconstrução dos sentidos comunitários (e da validade fundantemente crítica

que os contextualiza) à exigência de projectar estas numa determinação normativa

plausível (que possa dar conteúdo à validade intencionada).

3.1.1. A primeira das respostas (e primeira também no seu sentido gerador)

temo-la de resto na exigência de tratar os pólos da validade trans-subjectiva e da

controvérsia concreta (do compromisso axiológico assumido pela primeira e da

novidade irredutível introduzida pela segunda) como dimensões da racionalidade

157

Assim expressamente no ponto IV (Finale) da conferência de abertura deste nosso encontro

de Ouro Preto: supra, «O ―jurisprudencialismo‖ — proposta de uma reconstituição crítica do sentido do

direito». 158

A exploração directa de outros binómios levar-nos-ia a privilegiar (ou pelo menos a acentuar)

outras respostas, no mesmo quadro de possibilidades oferecvido pelo pensamento jurisprudencialista:

neste sentido, ver o nosso «Validade comunitária e contextos de realização. Anotações em espelho sobre a

concepção jurisprudencialista do sistema», cit. 159

Problema que vemos exemplarmente acentuado por Joseph W. Singer em «Critical

Normativity», Law and Critique, volume 20 nº 1, 2009, pp. 27 e ss.

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jurídica (da racionalidade que a realização judicativa do direito postula)160

. Mais do que

reconhecer estas duas dimensões (por assim dizer axiológica e problemática), trata-se

com efeito já de lhes associar outras duas: a que estabiliza a primeira numa mediação

dogmática e a que responde à segunda com uma mediação judicativa ou

judicativamente praxística (iluminada por uma dialéctica prudencial)161

. A

possibilidade de compreendermos o discurso problemático construído pelo direito (e o

mundo de interrelação que culturalmente este reproduz) à luz destas quatro dimensões

— e de tal modo que as duas últimas (ditas dogmática e judicativa) possam expor-se-

nos como condições de institucionalização das primeiras ou da identidade prático-

comunicativa que as constitui (se não da dinâmica de objectivação-realização que

situacionalmente as integra) — confere à experiência do círculo e aos sulcos-rastos que

a asseguram uma inteligibilidade inconfundível, que é também a de uma resposta

possível (simultaneamente conclusa e aberta): precisamente aquela que se cumpre na

dialéctica sistema / problema (e no pensamento-prática integralmente problemático que

esta persegue)162

.

3.1.2. Partamos desta resposta, enquanto compreendemos que esta nos incita a

desvelar uma convergência (e no limite também uma sobreposição lograda) de outras

procuras produtivamente circulares, se não já de outras dialécticas (e a

institucionalização de outras tantas possibilidades constitutivas).

3.1.2.1. A começar decerto pela experiência estratificado do sistema aberto, ela

própria também como prática-procura de um compromisso de unidade: um

compromisso que se postula como intenção e que permanentemente se renova e

reconstitui como tarefa, um compromisso que só a determinação auto-reflexiva

(aposterioristicamente compreendida... e assim também sempre permanentemente

recomeçada) de uma totalização ordenadora há-de estar enfim em condições de

160

Ver principalmente: «A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo

com Kelsen)», Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e

outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 2º, pp. 134-155 (2. «Os pressupostos»), «O actual

problema metodológico da realização do direito», ibidem, pp.251-256 (I, 2. e 3.), 272-281 (III 3.),

Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp.78-79, «O direito

interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 59 e ss., 66-67 (b). 161

Assim em «Pensar o direito num tempo de perplexidade», cit., pp.19-20 (IV.1.). 162

As leituras indispensáveis (entre muitas outras possíveis) são agora as de «A unidade do

sistema jurídico…», cit., pp. 165-174.

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reconhecer e de experimentar163

. Acentuação tanto mais significativa quanto é certo que

um dos estratos deste sistema se autonomiza reconhecendo (como uma das suas

dimensões nucleares) a realidade dos problemas–acontecimentos juridicamente

assimilados164

.

3.1.2.2. Sem esquecer que a intenção desta procura encontra a sua condição de

possibilidade (e simultaneamente a sua experiência fundadora) num outro círculo e na

dialéctica que o assume: refiro-me evidentemente àquele ou àqueles que relacionam

valores e princípios (compromissos prático-comunitários e princípios normativos-

fundamentos), inscrevendo esta inter-relação na experiência de especificação-realização

dos primeiros e dos projectos de ser (e de plenitude de ser) que lhes correspondem… e

então e assim também reconhecendo que a emergência dos segundos nos remete para

um insuperável território de fronteira: que não será apenas aquele que nos expõe a uma

conexão-tensão entre experiências de comunidade distintas (e outros tantos contextos,

ditos geral e especificamente jurídico) — se quisermos a uma conexão entre dois

diferentes modos de reivindicar-construir um sentido comunitário165

—, porque é

também e muito especialmente aquele que nos confronta com um processo permanente

de constituição-objectivação-realização: aquele que experimenta as objectivações

normativas (normativamernte materiais) dos princípios enquanto as submete às

exigências simultâneas de uma dimensão axiológica (histórico-problematicamente

aberta) —— dimensão que postulam (cuja experiência os constitui) e que no entanto

não esgotam (porque esta os excede sempre nas suas possibilidades normativas) — e

uma dimensão (vocação) dogmática desoneradora («estabilizadora») — que os absorve

163

Ibidem, pp. 170-171. Ver também O Instituto dos ―assentos‖ e a função jurídica dos

Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, pp. 230 e ss., 251-269 [δδ) «Unidade de

ordenação a posteriori»], sem esquecer evidentemente o Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições

proferidas a um curso do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72,

policop., Coimbra, 1971-1972, pp. 328-330 [δ) «O direito é uma intenção axiológico-normativa que se

manifesta como um sistema aberto de realização histórica»], 331 e ss. [2. «O conteúdo do direito (análise

do sistema jurídico)»] 164

Ibidem, pp. 347-351 [d) A realidade jurídica (as instituições jurídicas)]. 165

Para uma compreensão da relação entre estes dois contextos e uma oportunidade única de

experimentar o «absoluto histórico» dos princípios normativo-jurídicos (e o sentido da

autotranscendentalidade prático-cultural que se leva a sério no mundo do direito), importa ter presente a

analítica da intencionalidade normativa (em três níveis ou degraus) que Castanheira Neves tem

desenvolvido ao invocar uma certa consciência jurídica geral. Analítica que não iremos considerar, para

cujas estações principais no entanto imediatamente nos remetemos. São estas: «A revolução e o direito. A

situação de crise e o sentido do direito no actual processo revolucionário», Digesta, vol. 1º, cit., pp. 207-

222 (11.), «Justiça e direito», ibidem, 273 e ss., «A unidade do sistema jurídico...», cit., pp. 174-179,

«Fontes do direito», Digesta, vol.2º, pp.58-67 («O momento de validade»), Metodologia Jurídica, cit., pp.

278 e ss, «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 63-65.

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54

como seu primeiro estrato e a cujo desenvolvimento (-sistema) garantem por sua vez o

dinamismo constitutivo de um normans166

.

3.1.2.3. Sem esquecer ainda e por fim que a mais explícita das

institucionalizações do círculo é aquela que se cumpre distinguindo os diversos estratos

do sistema (e conferindo-lhes modos de vinculação-vigência institucionalmente

inconfundíveis). Trata-se com efeito de surpreender a regressividade problemático-

constituenda deste sistema… ou de a surpreender reconhecendo um movimento

partilhado (determinado pela prioridade metodologicamente constitutiva do caso-

problema ou pela perspectiva que este assegura): aquele movimento que se cumpre

levando a sério diversos tipos de presunções (ditas de validade, autoridade,

racionalidade e justeza) e inscrevendo nelas (ou na assimilação dos tipos de problemas

experimentáveis) outras tantas possibilidades (metodologicamente diferenciadas) de as

refutar-ilidir (e de assumir os explícitos ou apenas implícitos ónus de contra-

argumentação).

Com os princípios a beneficiarem de uma presunção de validade e a

vincularem-nos enquanto validade, as normas a beneficiarem de uma presunção de

autoridade e a vincularem-nos enquanto autoridade (político-constitucional), o direito

da jurisprudência judicial a beneficiar de uma presunção de justeza e a vincular-nos a

uma realização justa (prático-concretamente adequada) e à casuística que a objectiva, o

direito da jurisprudência doutrinal enfim a beneficiar de uma presunção de racionalidade

e a vincular-nos prático-culturalmente nos limites discursivos da sua concludência ou

fundamentação críticas…

Acentuação que nos autoriza a responder directamente ao contraponto

dogmático / crítico (a encontrar na experiência do direito uma caminho plenamente

institucionalizado para enfrentar este problema)… mas também a assumir um sentido

amplo de vinculação — irredutível ao modus prescritivo-autoritário (político-

166

Ibidem, p. 155 e ss. Sem esquecer o Sumário de uma lição-síntese sobre «Os princípios

jurídicos como dimensão normativa do direito positivo (a superação de positivismo normativista)»,

policop., Coimbra, 1976, sumário este permanentemente retomado e enriquecido em aulas preciosas, às

quais tive o privilégio de assistir.

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55

constitucionalmente institucionalizado) que habitualmente (mas nem por isso menos

aproblematicamente) se postula167

.

3.2. Se o primeiro eixo de respostas nos concentra no processo de

institucionalização interna, o segundo permite-nos já considerar a relação com o

exterior ou com os interlocutores-oponentes que nele se identificam (ou pelo menos

com aqueles que fomos encontrando).

3.2.1. Tratando-se desde logo de reconhecer que a exigência de reagir à

unidimensionalidade de um discurso pragmático e às calculating forms of reason que o

sustentam — exigência de reacção esta que descobrimos no contexto global do

regresso da comunidade e como condição-traço de identidade deste regresso — , longe

de se contentar com uma reafirmação de afinidades electivas — que mais uma vez nos

exporiam às mediações da retórica narrativa, da ontologia hermenêutica ou da ética da

alteridade, se não à convocação explícita do universo das Humanidades e da linguagem

que este garante(law can also be viewed from the inside, by someone who lives on its

terms, and thus seen as a field of life and practice, as a set of intellectual and literary

activities that are far closer to the humanities than we normally imagine168

), está agora

em condições de nos oferecer um percurso autónomo e a institucionalização

correspondente (e esta fixada-experimentada numa sequência de especificações

metódicas) . Refiro-me a uma reinvenção do teleologismo que, superando a ameaça do

instrumentalismo pragmático e outros funcionalismos materiais (assumindo neste plano

a herança da Wertungsjurisprudenz)169

, se cumpre levando a sério a distinção entre fins

e valores… e instalando assim uma polaridade irredutível170

. Sem esquecer que nestes

termos se trata também e principalmente de respeitar um outro equilíbrio e a

167

«Fontes do direito», cit., pp. 82-90 (4) e 5)), Metodologia Jurídica, cit., pp. 154 e ss., «O

direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 66-67(b)). Ver também. o

desenvolvimento desta compreensão jurisprudencialista do sistema em geral e desta tectónica de

presunções em particular assumido por Fernando José Bronze em Lições de Introdução ao direito, 2ª

edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 607-681… e ainda aquele que propus nos Sumários

desenvolvidos de Introdução ao Direito II, Coimbra 2009, disponível no material de apoio da página on

line da respectiva unidade curricular, https://woc.uc.pt/fduc/, pp. 86-123 (e também, autonomizado como

«A compreensão jurisprudencialista do sistema», em https://woc.uc.pt/fduc/class/getmaterial.

do?idclass=282&idyear=6). 168

Boyd White, From Expectation to Experience. Essays on Law and Legal Imagination, cit.,

1999, p. 103. 169

Superação nem sempre lograda nalgumas das concepções que sacrificam a especificidade do

jurídico a um holismo prático-poiético 170

Ver supra, nota 75.

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56

indispensável dialéctica: que outro equilíbrio e outra dialéctica senão aqueles que

convocam simultanea e constitutivamente uma exigência de justeza problemática e uma

intenção de unidade (uma dimensão teleológica ou problemático-teleológica e uma

dimensão dogmática)171

?

3.2.2. Tratando-se depois de mobilizar este mesmo teleologismo (de valores e de

fins) para enfrentar recto itinere o contraponto com a societas (entenda-se o contraponto

da communitas intencionada com a societas-artefacto)... mas então também para

propor uma especificação–institucionalização metodologicamente construída: uma

especificação que possa convocar como contexto imediato a denúncia (se não

desconstrução) de um certo paradoxo — um dos paradoxos que a crise do paradigma

moderno-iluminista nos permite reconhecer (o da procura da autonomia do jurídico no

parâmetro dos quadros constitutivos do Estado172

) — para a projectar no problema da

realização do direito com a mediação da norma… e mais especificamente ainda no

problema da experimentação da norma legal. Como se se tratasse de assumir o desafio

da realização da comunidade (ou da construção de um sentido comunitário) sem

renunciar (sem poder e sem dever renunciar) à relação dialéctica com a societas: antes

reflectindo sobre o modus operandi dessa compossibilidade ou dessa dialéctica.

Ora de assumir esse desafio microscopicamente: levando a sério a perspectiva do

caso para reconhecer na norma legal seleccionada (ou na índole normativa do seu

critério e da presunção de autoridade de que este beneficia) duas faces inconfundíveis e

outras tantas perspectivas de problematização-interrogação. Que faces?

(a) a da norma como «imperativo» e como «decisão impositivo-dogmática»

(como «manifestação optativo-teleológica» de uma voluntas em que se «afirma a sua

171

Ver neste sentido Metodologia Jurídica, cit., pp. 122-123. 172

Um dos paradoxos a que os fluxos da juridicização do poder e da politização do direito ou de

instrumentalização do direito pela política (potenciados pelos equívocos dos neoconstitucionalismos do

nosso tempo) inevitavelmente nos expõem. Para uma consideração (selectiva) de distintas dimensões

deste problema (ou que nele convergem), ver Castanheira Neves, O Instituto dos ―assentos‖ e a função

jurídica dos Supremos Tribunais, cit., pp. 583 e ss. (III a)), O problema actual do direito. Um curso de

filosofia do direito, policop., terceira versão, cit., pp. 15 e ss. [«O sentido moderno (moderno-iluminista) e

pós-moderno da normatividade jurídica»], 62-64 (o problema da «identificação da juridicidade com a

constitucionalidade»), Metodologia Jurídica, cit., pp.195-196 («A interpretação conforme a

Constituição»), Teoria do direito, cit., (versão em fascículos) pp. 224-227,(versão em A 4) pp. 121-124,

«A redução política do pensamento metodológico-jurídico», Digesta, vol 2º, pp. 404-409, «O direito

interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp.51-56 (b)).

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57

dimensão político-programática (...) legitimada pela autoridade que invoca para a sua

prescrição»173

)...

...a suscitar o problema da justificação-legitimação da voluntas... e (ou) do poder

que a exerce... mas também a admitir uma reconstituição racional dos seus «elementos»,

agora não tanto daqueles que correspondem à sua formulação como

Konditionalprogramm, quanto daqueles que envolvem a sua construção (alternativa)

como puro Zweckprogramm (manifesto ou oculto)— a saber, dos fins (que prossegue) e

dos meios (que mobiliza... ou cuja mobilização prevê)... e das alternativas de decisão (que

enquadra ou que tacticamente permite)174

...

(b) e a da norma como critério jurídico (se não mesmo como juízo problemático,

autêntica expressão de um ius-dicere) constituído «no âmbito de um sistema de

normatividade jurídica» (sistema no qual é fundamentantemente constitutiva uma

intenção de validade)175

.

De tal modo que a prescrição legislativa nos apareça a respeitar os limites de

validade impostos pelos princípios normativos (dirigindo-se-nos como uma objectivação

possível, entre outras objectivações possíveis, das intenções destes princípios). O que não

é senão exigir que a «decisão dogmática» que constitui a norma se mostre «assimilável

(ainda que só a posteriori) por um juízo-judicium» singular e concreto (capaz de tratar-

solucionar o problema-caso), juízo decisório no qual «a prescrição» convocada como

critério «revele uma racionalidade de fundamentação normativa (a racionalidade que a

intenção de validade implica)»176

.

Que perspectivas? As da ratio legis e ratio juris. Sendo certo que a

interrogação da ratio legis nos concentra na procura do motivo-fim que determinou a

decisão da norma — na procura da sua justificação político-social e teleológico-

173

Metodologia Jurídica, cit., p.150. 174

Uma reconstituição racional esta última que se situa certamente para além do que

habitualmente se espera do elemento teleológico... Não se trata com efeito apenas de reconstruir a

finalidade prática da norma legal; trata-se também de estar em condições de reconstituir o programa final

explícito ou implícito (na sua maior ou menor intenção transformadora, na sua maior ou menor

vinculação político-ideológica) que a prescrição em causa estabelece ou que partilha com outras

prescrições (programa às vezes oculto sob a máscara do programa condicional!). Como se, numa palavra,

se tratasse de reconhecer a lei na imanência de uma racionalidade instrumental-estratégica... para

experimentar a sua adequação e a sua eficiência ou realizibilidade maximizadora (ou a antecipação em

abstracto que estes problemas permitem)... 175

Metodologia Jurídica, cit., p.150-1. 176

Ibidem, p.150.

Page 58: JOSE MANUEL AROSO LINHARES Jurisprudencialismo Uma Resposta Possivel Num Tempo de Pluralidade e de Diferenca

58

estratégica (se quisermos na reconstiuição do seu argument of policy) —... e que a

problematização da ratio juris nos obriga já a confrontar esta teleologia com a coerência

normativa dos princípios (e dos correspondentes arguments of principle)... na mesma

medida em que nos onera com a responsabilidade constitutiva de «transcender aquela

teleologia por estes fundamentos»177

.

3.3.É a articulação dos dois eixos anteriores e das respostas que estes constroem

— numa última série de anotações indispensáveis — que nos vai permitir voltar ao

desafio da pluralidade. E para além decerto da experiência deste que vemos assimilada

pela prescrição-lex.

Para compreender enfim o modo como o mundo referido e construído pelas

práticas juridicamente relevantes institucionaliza a relação constitutiva unidade

/pluralidade? Antes para considerar o modo como este mundo (revisitado pela

reconstituição jurisprudencialista) pode e deve, na nossa circunstância presente,

institucionalizar uma tal tensão…— isto naturalmente se quiser estar à altura do

projecto-procura que o distingue (o autonomiza) na ordem da intencionalidade.

Institucionalizar esta tensão com que exigências? Sem renunciar à polaridade

que a dinamiza. E sem a reconduzir a uma conformação aporética. Mas também sem

que a reconstituição crítico-reflexiva que daqui resulte esteja condenada a dirigir-se-nos

como uma voz no diferendo com as outras vozes (e ao isolamento apologético que a

impostação-projecção reconhecível desta voz exige).

O que se compreende se tivermos presente que a reconstituição em causa nos

ajuda a resistir a esta fragmentação ou à sua superação unilateral. Mostrando que não

estamos condenados a que o fenómeno da multiplicação dos discursos e metadiscursos

(que se tornou uma dimensão inescapável da nossa circunstância) nos atinja enquanto

juristas — e enquanto juristas integrados numa determinada comunidade de juristas

(comprometidos com um socioleto possível ou com um desempenho profissional

específico e com as «situações institucionais» que o(s) assumem) — apenas como uma

experiência de indeterminação178

. Como não estamos condenados à pragmática de

177

Ibidem, pp. 184-195. Ver também «Fontes do direito», cit., pp.75-79 (o problema dos limites

normativos da lei). 178

A alternativa que esboçamos no texto parte de uma conhecida distinção de Derrida. Trata-se

de permitir que a uma acentuação indiscriminada (e como tal trivial) da indeterminação da linguagem —

que só pode remeter-nos para um exercício de discricionaridade (demitindo-se de explorar este e as

condições de relevância que o singularizam) — se contraponha uma representação da necessidade da

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59

indecidibilidade ou mesmo ao paradigma de decisão que a consagração desta experiência

como palavra última inevitavelmente determinaria179

.

Preocupações que nos reconduzem ao núcleo da institucionalização do sistema

jurídico e muito especialmente ao modo como a procura de unidade que este traduz

(recusando a clausura holística e a auto-suficiência aproblemática justificadas pelo

isolamento normativístico) nos submete a uma dialéctica (permanentemente

recomeçada) entre práticas de estabilização e práticas de realização.

Acentuação que nos impõe uma última sequência de respostas ou pelo menos o

reconhecimento da dinâmica que as articula.

3.3.1. Com um primeiro passo iluminado pela distinção fundamentos / critérios

180[3.3.1.1.] e (ou) pela a exigência de a precipitar numa certa compreensão dos

princípios enquanto jus [3.3.1.2.].

3.3.1.1. Permitam-me que sublinhe a importância da primeira distinção na sua

relevância metodológica181

: aqui e agora (fundamentalmente) como uma distribuição de

possibilidades e experiências que, levada a sério na perspectiva do caso-problema,

contextualização e da abertura infinita de todos os contextos que (enquanto oscilação pragmática entre

sentidos possíveis), Derrida autonomiza precisamente como indecidibilidade: «Afterword: Toward an

Ethic of Discussion», Limited Inc, Evanston- Illinois, Northwestern University Press, 1988, pp. 148-149

(1.). O recurso a esta distinção não implica no entanto que atribuamos à pragmática da indecidibilidade o

alcance assumido por Derrida (um alcance que a torna indissociável da experiência da différance e do

movimento de recontextualização que se diz dissémination). Trata-se muito simplesmente de invocar dois

degraus da experiência da indeterminação, o primeiro radicalmente aberto, o segundo já racionalmente

controlado. 179

Este é um problema que tratei expressamente em ««Jurisdição, diferendo e ―área aberta‖. A

caminho de uma ―teoria‖ do direito como moldura?», , cit., passim. 180

Já assim no Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º

ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., pp.331 e ss («Os ―princípios

normativos‖ não são ―normas‖»). 181

Trata-se de autonomizar no fundamento a racionalização justificativa da inteligibilidade de

um certo domínio ou compromisso prático… e neste sentido de lhe atribuir o papel de um warrant

argumentativo autonomamente pressuposto (o fundamento justifica uma conclusão racionalmente

plausível mas não nos propõe uma solução ou tipo de solução, não nos dispensando assim do esforço

discursivo de a obter). Como se trata ainda de invocar o critério como «operador» («técnico») disponível,

um operador que pode ser imediatamente convocado para resolver um determinado tipo de problemas e

(ou) que pré-esquematiza a solução (exigindo não obstante um esforço discursivo de concretização-

realização). Como se os critérios se nos oferecessem como «objecto(s) da interpretação» e os

fundamentos como os «elementos de concludência racional que possibilitam, condicionam ou sustentam a

própria interpretação». O que nos permite reconhecer que os princípios normativos (prolongados por

algumas explicitações-objectivações da doutrina) se nos ofereçam (e devam ser tratados

metodologicamente) como fundamentos, devendo em contrapartida as normas, os precedentes ou

prejuízos jurisdicionais e a maior parte dos modelos dogmáticos ser assumidos e experimentados como

critérios.

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60

confronta modos distintos de assimilação do binómio unidade / pluralidade (ou se

quisermos já do binómio práticas de estabilização / práticas de realização).

Permitam-me ainda que acentue esta importância construindo parafrasticamente

uma narrativa… e mobilizando para tal recursos exteriores: concertando as imagens do

farol e da bússola propostas respectivamente por Drucilla Cornell e Adela Cortina182

e permitindo que estas nos sirvam de estímulo para simplificar plasticamente o nosso

problema.

Trata-se, com efeito, de comparar os fundamentos (e muito especialmente os

princípios) à luz projectada por um farol ou à orientação determinada por uma bússola.

Como se tratar-solucionar uma controvérsia juridicamente relevante e o problema-caso

em que esta se transforma (ou vai transformando) — ou muito simplesmente considerar

um problema de direito (independentemente do plano de objectivação mais ou menos

abstracto com que este se nos expõe e da urgência reflexivo-decisória com que nos

estimula) — correspondesse afinal à travessia de um território desconhecido... ainda e

sempre por percorrer — com especificidades-novidades que se descobrem

caminhando... e que nos obrigam a enfrentar-inventar um caminho irrepetível.

Travessia que não se poderia cumprir adequadamente se o caminhante (à procura

da decisão-juízo) contasse apenas com a sua inventio... ou se esta inventio (decerto

indispensável!) não beneficiasse de apoios e orientações trans-subjectivamente

(racionalmente) vinculantes — entenda-se, das práticas de estabillização e realização do

sistema jurídico, práticas estas cumpridas, em planos-territórios muito distintos, por

outros caminhantes anteriores (legisladores, juízes, juristas dogmáticos!)... práticas que

assim mesmo constituem (e lhe proporcionam) um património precioso!

Travessia então que não se poderia cumprir adequadamente... se o caminhante

não beneficiasse de dois tipos de apoios-guias. Que tipos de apoios?

α) Aqueles que, sem preverem os problemas (ou tipos de problemas) que ele irá

enfrentar (sem anteciparem as encruzilhadas e os obstáculos, as armadilhas e os

182

A primeira (com um piscar de olhos a Virgínia Woolf!) a considerar globalmente o problema

dos princípios jurídicos, a segunda a referir-se já apenas ao contributo de Kant e à sua construção da «Paz

perpétua» ou aos princípios que esta assume (e então e assim a defender Kant de uma «injusta» crítica de

Hegel). «A principle (...) is not a rule (...). A principle is instead (…) a guiding light. It involves the

appeal to and enrichment of the ―universal‖ within a particular nomos. We can think of a principle as the

light that comes from the lighthouse, a light that guides us and prevents us from going into wrong

direction…» (Drucilla Cornell, The Philosophy of Limit, London, Routledge, 1992, p. 106). «La mejor

aportación (...) consiste en no ofrecer un solo camino (…), sino en ofrecer una brújula, en vez de un mapa

de carreteras.» (Adela Cortina, «Cosmopolitismo y Paz. La brújula de la razón en su uso político»,

Revista Portuguesa de Filosofia, 2005, vol. 61, fasc. 2, p. 390).

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61

atalhos!) lhe proporcionam não obstante uma orientação (constitutiva) fundamental —

comprometendo o seu percurso com a realização de certas exigências (seguir a luz,

caminhar para o Pólo Norte)... e então e assim mostrando-lhe (muitas vezes apenas

pela negativa) que não deverá seguir um percurso que o afaste de tais exigências...

β) E aqueles que lhe proporcionam já itinerários ou mapas mais ou menos

pormenorizados — itinerários ou mapas que, mesmo no seu maior grau de

concretização (o dos critérios jurisprudenciais), não se confundem decerto com o

caminho a percorrer... e que no entanto antecipam (prevêem183

, exemplificam184

ou

reconstroem reflexivamente185

) situações-problemas (tipos186

ou exempla187

ou

modelos188

de situações-problemas), na mesma medida em que propõem

(esquematizam189

, exemplificam em concreto190

ou reconstituem racionalmente191

)

soluções, alternativas ou tipos de soluções plausíveis para estes problemas…

Sendo certo que a travessia deve submeter-se a duas exigências fundamentais e

às advertências que as iluminam:

(1) A de não tratar a orientação oferecida pelos princípios-fundamentos como se

esta correspondesse ao apoio proporcionado pelos critérios-mapas.

Os princípios não são critérios-regras (nem se distinguem destas apenas por

serem mais indeterminados ou abertos)... e neste sentido exigem metodologicamente um

outro tratamento!

(2) A de não se satisfazer com os critérios-mapas.

O nosso caminhante não pode com efeito pretender construir o percurso como se

este fosse uma mera desimplicação dos itinerários ou dos mapas! Mesmo que tenha

seleccionado itinerários ou mapas e os tenha à sua disposição (e o primeiro passo deve

183

As normas legais. 184

As decisões judiciais mobilizadas como critérios (pré-juízos-exempla, precedentes). 185

Os modelos dogmático-doutrinais que se nos oferecem como critérios. 186

Ainda as normas legais. 187

Ainda os critérios judiciais. 188

Ainda os modelos dogmáticos. 189

De novo as normas… 190

… os pré-juízos jurisdicionais… 191

… e os modelos dogmáticos.

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62

sempre o da procura destes!192

), não poderá assim dispensar-se de por um lado os

experimentar no terreno (em dialéctica com as situações-problemas concretos) e de por

outro lado mobilizar inteligentemente as suas instruções — o que, como veremos,

significa sempre atender à luz do farol ou à indicação da bússola... (nunca caminhar em

sentido oposto ao destas, sejam quais forem as indicações dos critérios!).

3.1.2. Mais do que a distribuição de possibilidades em si mesma, importa-nos no

entanto a exigência de submeter o tratamento dos princípios a este contraponto rigoroso.

Ou muito simplesmente a conclusão de que a reabilitação dos princípios falhará se os

tratarmos como critérios mais indeterminados (ainda que façamos corresponder o

tratamento dessa indeterminação a uma pragmática de optimização de comandos).

Ao assumir uma compreensão dos princípios normativos como autêntico direito

vigente (princípios como jus193

)194

, no seu sentido forte e pleno195

— ao reconhecer

192

O passo por assim dizer mais natural: aquele que leva o jurista de um sistema de legislação a

procurar a norma legal e o jurista do common law a procurar o precedente vinculante... que assimilem a

relevância do seu problema-caso! 193

Recorde-se a distinção entre princípios como ratio, como intentio e como jus, na qual

Castanheira Neves tem exemplarmente insistido desde a sua citada lição-síntese… e que aqui e agora

reconstituímos invocando a mediação privilegiada das suas aulas e ensinamentos orais.

As concepções que vêem nos princípios apenas ratio (condições epistemológicas de uma

racionalização cognitivo-sistemática das normas legais) são, na verdade, herdeiras da compreensão

normativística dos princípios gerais de direito (e muito especialmente daquela que o positivismo

conceitual desenvolveu na segunda metade do século XIX) — uma compreensão que reduz o direito ao

estrato das normas para ver nos princípios gerais «normas mais abstractas e mais gerais» obtidas por

abstracção generalizante ou concentração-classificação (se não por indução) a partir das normas vigentes

e com o objectivo claro de conseguir um domínio cognitivo racionalmente mais logrado destas últimas e

da unidade horizontal (por coerência) que estas constituem… — normas que assim mesmo os princípios

gerais não excedem normativamente, às quais nada acrescentam no plano das «soluções» prático-

normativas, com as quais (enquanto axiomas racionalmente imanentes) nunca entram em confronto (às

quais nunca põem exigências de validade!)... cujas significações se limitam a reproduzir-sintetizar...

Outra é a compreensão dos princípios como intenções (intentio). Segundo esta linha de

compreensão (na qual reconhecemos a herança neo-kantiana de Stammler), trata-se de admitir que as

intenções-exigências dos princípios têm já um sentido prático-normativo... excluindo no entanto a

possibilidade de vermos nelas autêntico direito vigente. Para constituirem direito vigente (para adquirirem

juridicidade), estas intenções têm, à luz desta perspectiva, que ser assimiladas pelas normas legais (a

começar pelas leis constituticionais) e (ou) pelos precedentes vinculantes — têm, numa palavra, que se

manifestar em critérios positivos vinculantemente institucionalizados, recebendo destes (ou da

autoridade-potestas que os sustenta) a sua força jurídica (ou a dimensão constitutiva que a traduz). Há

aqui de resto duas possibilidades (que podem ser defendidas em conjunto ou separadamente... se não

concebidas como meras diferenças de grau). (1) A possibilidade de ver nos princípios intenções

regulativas (manifestação de expectativas sociais ou de compromissos comunitários sem carácter

jurídico) capazes de orientar directamente (mas apenas de orientar!) a construção-produção de critérios

jurídicos (especialmente legislativos) [função regulativa para a normativa constituição do direito positivo

(os princípios como intenções regulativas, não constitutivas, que a política legislativa deverá ter em

atenção ou que a poderão orientar na busca de soluções mais adequadas)]. (2) A possibilidade de ver nos

princípios intenções regulativas com um carácter metodológico: intenções que, não constituindo como tal

direito vigente, podemos convocar como apoios-arrimos (se não como cânones ou regras secundárias de

juízo... ou até mesmo como razões argumentativas) quando interpretamos uma norma legal ou um critério

jurisprudencial... e muito especialmente quando temos que enfrentar um caso omisso e resolver um

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63

nestes os fundamentos constitutivos da validade do direito (em todos os planos de

afirmação e experimentação da juridicidade) —, a reconstituição jurisprudencialista não

só nos expõe a uma experimentação permanente do excesso normativo dos princípios

— enquanto intenções constitutivas de um normans (inesgotáveis nos critérios e nas

realizações que fundamentam) — como também exige que ao problema do tratamento

destes warrants corresponda uma experiência de constituição-manifestação-realização

inconfundível.

Acentuação esta última que nos permite reconhecer uma institucionalização

particularmente expressiva da relação entre a pressuposição integradora de um horizonte

de validade e a abertura permanente a uma pluralidade de contextos de realização — se

não já explicitamente do círculo ontologicamente produtivo em que esta

inevitavelmente se inscreve. O que aqui e agora significa testemunhar uma

especialíssima consonância prática entre os princípios que se invocam como

compromissos e projectos de ser ou de ser-com-os-outros (a cuja orientação-condução

nos submetemos) e o «conteúdo normativo-concreto» da realização destes

compromissos (indissociável dos problemas-controvérsias e do novum irredutível que

estes introduzem)196

. Decerto porque os princípios não antecipam problemas ou tipos de

problemas (ainda a imagem do farol ou da bússola!)... na mesma medida em que,

furtando-se a uma qualquer pré-determinação em abstracto das suas exigências, só

fazem sentido (só atingem a sua integridade normativa) realizando-se (e neste sentido

também transformando-se e transformando-se inevitavelmente em cada nova

experimentação concretizadora). Como se, numa palavra, se tratasse de experimentar

um continuum (sem soluções) de constituição-manifestação-realização —

exemplarmente distinto daqueles que os critérios legislativos, jurisprudenciais ou

dogmáticos nos impõem197

—… mas então e assim também de permitir um outro

problema (dito) de integração [função regulativa no direito positivo constituído e na prática de integração

ou desenvolvimento deste]. 194

A preferência pela formulação princípios normativos permite-nos desde logo distinguir esta

concepção (dos princípios como jus) da concepção dos princípios como ratio directamente associável à

expressão princípios gerais do direito. Ver neste sentido Fernando José Bronze, ob. cit., pp. 627-628 e

nota 61. 195

Algumas propostas tratam os princípios como jus mas atribuem-lhes um carácter subsidiário

(estes seriam apenas convocados quando os critérios não nos dão uma resposta!). 196

Metodologia jurídica, cit., pp. 203-204 197

«[A] ausência de hipótese-previsão nos princípios ou a sua indeterminação referencial, já que

essencial para eles é só o seu regulativo compromisso axiológico e prático, não impõe apenas que a sua

normatividade se determine realizando-se, solicita ainda uma compreensão prática (não simplesmente

dogmática ou lógica) dessa sua normatividade só possível de atingir-se mobilizando a dialéctica entre o

seu regulativo, que convoca à realização , e a prática (de acção e judicativa) em que encarne e a manifeste

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tratamento da singularidade…— um tratamento que não fique prisioneiro de uma

assimilação da pluralidade previamente decidida ou experimentada (e da violentação-

domesticação do novum que todos os critérios, em termos mais ou menos drásticos,

representam)198

.

3.2. O segundo passo parte do primeiro e do seu ponto de chegada. Introduz no

entanto uma dinâmica distinta (aparentemente perturbadora). Trata-se, com efeito, de

mobilizar o estrato do sistema no qual as controvérsias se manifestam e o direito se

realiza: o estrato da realidade jurídica que, como sabemos, está longe de poder ser

compreendido como um mero campo de aplicação histórico-social de uma

normatividade dada ou pressuposta199

...

De o mobilizar em que termos? Por um lado para o descobrir como um território

privilegiado de explosão (e de enquadramento prático-normativo) da pluralidade.

realizada. Se as normas são auto-suficientes no critério abstracto que hipoteticamente prescrevem, os

princípios são fundamentos ―para tomar posição perante situações, a priori indeterminadas, que venham a

determinar-se concretamente‖ (Zagrebelski). Em síntese: as normas legais esperam a sua aplicação e em

último termo visam-na, mas podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsistência

abstracta; não assim os princípios, já que o seu verdadeiro sentido não é determinável em abstracto, e só

em concreto, porque só em concreto logram a sua determinação, e se lhes pode atingir o seu autêntico

relevo...» (Castanheira Neves, O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop.,

terceira versão, cit., pp. 59-60). 198 Partindo embora de um horizonte radicalmente distinto (comprometido com a ética da

alteridade e com a desconstrução como filosofia) — e não deixando por isso de preservar com alguma

ambiguidade os topoi da indeterminação e das diversas alternativas de resposta —, Drucilla Cornell chega

a uma exigência de diferenciação paralela (tanto mais exemplar precisamente quanto sustentada em

pressupostos que previsivelmente a levariam a trilhar um outro caminho). Tratando-se muito claramente

de confrontar a pretensão de auto-suficiência e auto-subsistência dos critérios-rules e o modo como esta

legitima uma «violência contra a singularidade» — legitimação que encontrará na compreensão do

positivismo jurídico (latissimo sensu) a sua consagração-forma (ontologicamente totalizante) — com a

pretensão de universalidade dos princípios e com o modo como esta é (ou deve ser) histórico-

pragmaticamente assumida (as for which principles we adopt within the nomos (…) of the law (…), we

are left with the process of pragmatic justification based on the ability of a principle to synchronize the

competing universals embodied in the nomos) [The philosophy of the limit, cit., p. 106]. Princípios que,

não deixando de perturbar a pureza do encontro ético e de «violentar» a diacronia do jogo das

significações (principles inevitably categorize, identify, and in that sense violate différence by creating

analogies between the like and the unlike) [ibidem, 105] nos aparecem não obstante a orientar uma prática

racional de «redução» da violência (e de respeito pelas diferenças). Decerto porque as exigências-

compromissos que os distinguem vão ser experimentadas na perspectiva de cada situação-problema. Sem

impor o «exacto caminho a percorrer», antes assumindo um potencial de fundamentação que supera as

pretensões da resposta única. Mas então e muito simplesmente excluindo as respostas que naquele

contexto pragmaticamente reconhecível — e naquele horizonte historicamente determinado — devam

dizer-se «incompatíveis» com a realização do seu compromisso. We can think of a principle as the light

that comes from the lighthouse, a light that guides us and prevents us from going in the wrong direction

[ibidem, 106]. Ver ainda «From the Lighthouse: the Promise of Redemption and the Possibility of Legal

Interpretation», Cardozo Law Review, 11, 1990, pp. 1689 e ss. 199

Castanheira Neves, Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso

do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., pp. 347-351, ««A

unidade do sistema jurídico…», cit., pp. 172-174, «Fontes do direito», cit., pp. 56-58, Metodologia

Jurídica, cit., pp.149,151 ess, 157 e ss., 176 e ss., 182-184.

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Importando-nos agora menos a dimensão dinâmica (como que

microscopicamente «pontualizada») desta realidade, que até agora privilegiámos —

aquela que se esgota na emergência das controvérsias-casos e no seu tratamento

judicativo-decisório— do que a sua dimensão institucional. A dos institutos de direito

privado e a das instituições de direito público200

que, enquanto tipos de relação-

actuação201

, se nos expõem como manifestações de um autêntico law in action202

?

Também a daqueles «modos concretos de organização e de associação que se impõem na

vida social como entidades a se»203

. Só que também e ainda (permita-se-nos acrescentar!)

uma terceira frente, hoje absolutamente indispensável.

A daquela realidade jurídica que, enquadrando-assimilando o diagnóstico que

começámos por propor (ou um dos seus painéis204

), nos atinge sobretudo como um

ensemble plural de «situações institucionais» e de cânones205

— sustentados pelas

práticas profissionais das distintas comunidades de juristas (advogados, juízes, juristas

dogmáticos, juristas académicos) e então e assim precipitados em experiências colectivas

inconfundíveis… se não já distribuídos por outros tantos grupos semióticos ou

comunidades interpretativas (também eles divididos ou fragmentados). Situações

institucionais e cânones que se nos impõem como outras tantas experiências de

determinação-especificação e de realização do sistema jurídico (capazes de iluminar

diversamente os seus fundamentos e critérios e de reconhecer dimensões e possibilidades

distintas nos compromissos práticos e nos modelos-mapas que os estabilizam)

200

Se as expressões rechtprivatlichen Institute e rechtöffentlichen Institutionen nos remetem para

Carl Schmitt, importa esclarecer que as usamos aqui apenas para distinguir os domínios normativos em

causa e contrapor assim o instituto da propriedade à instituição do habeas corpus, o instituto do

casamento à instituição do contrato administrativo, o instituto do poder paternal às instituições do Estado-

de-Direito (sem as implicações que o konkretes Ordnungsdenken atribui a esta dicotomia). 201

Distintos assim dos «institutos» que, ao lado dos «conceitos», o positivismo científico do

século XIX isolava-construía como puras «individualidades lógicas»... na mesma medida em que

irredutíveis aos princípios ou critérios que normativamente os conformam... ou ao law in the books que os

enquadra ou disciplina. 202

Um law in action assim mesmo conformado por uma precipitação-cruzamento (e

interpenetração reciprocamente constitutiva) de intenções normativas e de factores e experiências e

práticas sociais (política, económica ou culturalmente relevantes)... suficientemente estabilizadas para

poderem ser reconhecidas como realidades («estruturas, esquemas ou tipos jurídico-sociais de actuação e

de relação»): Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º ano da

Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., p. 349. 203

Ibidem, pp. 349-350. Trata-se de identificar as realidades simultaneamente jurídicas e sociais

que correspondem ao exercício da autonomia privada (correlativas por exemplo da consagração pelas

partes A e B de um certo contrato ou cláusula contratual)... ou às práticas de especificação-realização de

um certo estatuto, mais ou menos convencionalmente objectivado (a realidade normativo-social que

descobrimos nas sociedades, associações e outros corpos autónomos ou nas práticas que os constituem). 204

Ver supra, 1.2. 205

Cânones que incluem evidentemente as regras ou bordões procedimentais autonomizadas por

Fernando Bronze como um dos estratos do sistema jurídico (aquelas que, segundo o Autor, beneficiarão

de uma presunção de prestabilidade): Bronze, ob. cit., p.670-671.

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Por outro lado para considerar esta realidade plural na sua relação constitutiva

com os princípios: o que significa interpelá-la circularmente… tanto como aquela

realidade-referente que os princípios, na sua realização-determinação, conformam (e

que por isso mesmo «adquire» um «sentido juridicamente valioso»206

), quanto como

aquela prática de casos-acontecimentos e de decisões judicativas na qual as exigências

dos princípios (frequentemente manifestadas nos critérios, mas nem por isso menos

abertas a uma historicidade constitutiva) se tornam enfim plenamente inteligíveis e

determinadas.

Sendo precisamente da conjugação destas duas vertentes que resulta a

perturbação anunciada. Uma perturbação que podemos concentrar numa pergunta: a de

saber se — e até que ponto é que — a fragmentação (no limite do diferendo) que afecta

hoje as comunidades interpretativas e as suas situações institucionais (os projectos de

realização, os materiais canónicos, os códigos linguísticos e extralinguísticos)… não

ameaça afinal a própria manifestação constitutiva dos princípios — aquela que se

descobre in action na teia destas comunidades restritas e no jogo que, em cada contexto

histórico, as inter-relaciona —… ameaçando também, através dela, a pretensão de

unidade do sistema (e no limite, a inteligibilidade reconhecível do mundo humano do

direito ou do projecto que o ilumina). Se chegarmos à conclusão de que a multiplicação

das situações institucionais (e dos códigos que estas mobilizam) suscita processos de

realização-determinação incompatíveis com um sentido material (ou com a partilha

deste), o compromisso prático pressuposto e o próprio horizonte de validade

comunitária estarão certamente ameaçados. Uma ameaça que já não será certamente

aquela que reconduz tal validade à solução contingente de um puro consenso a

posteriori — a ameaça que associámos a uma possível hipertrofia tópico-problemática

— , porque é já aquela outra que, reconhecendo a impossibilidade deste consenso (ou de

uma sua repetição lograda), apenas preserva a possibilidade-limite de evocar uma tal

validade ou o princípio que a especifica (e que na situação em apreço a representa)

como se de um puro nomen (mais ou menos apelativo) se tratasse.

3.3.3. Pergunta que nos restitui ao último patamar de institucionalização. Aquele

em que tudo se recupera? Aquele pelo menos em que a exigência de uma articulação

206

O problema actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, cit.,

p. 60 (citando Zagrebelsky).

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lograda entre validade comunitária e contextos de realização, entre unidade intencional

e pluralidade discursiva (se não mesmo entre clausura dogmática e problematização

crítica) encontra enfim a oportunidade de uma determinação reflexiva e a consciência

estabilizadora que a torna possível. Que determinação reflexiva? Aquela que a nossa

circunstância exige de uma dogmática doutrinal pratico-normativamente

reinventada207

? Antes aquela que só uma articulação lograda das jurisprudências

judicial e doutrinal — reconduzida à unidade prático-prudencial de um direito de

juristas208

, mas também (e significativamente) amplificada por um encontro com

patamares metadogmáticos (permitida por um diálogo fecundo com a reflexão

universitária209

) — estará em condições de enfrentar.

Para a dogmática em causa, responsabilizada pelo continuum em que se inscreve

ou pela «conjugação» (entre os «tribunais» e a «universidade»)210

que mediatiza, a hora

já não é certamente apenas a de renunciar aos despojos (sobrevivos) de um paradigma

perdido e aos simulacros de autonomia que estes aparentemente lhe garantem — quer se

trate de discutir as pretensões cognitivistas da dogmatische Rechtswissenschaft do

século XIX… ou de reconhecer hoje as suas cicatrizes, nos códigos-rotinas ou nos

sociolectos-territórios das diversas comunidades de juristas —, porque é também a de

resistir a novos apelos e de assumir auto-reflexivamente estas resistências…

A de resistir à conversão que a preserva (no seu cognitivismo categorial-

classificatório) como autêntica «organização das redundâncias» e rede de segurança —

na mesma medida em que a responsabiliza por uma efectiva desparadoxização da

jurisprudência judicial (Luhmann). A de resistir sobretudo aos apelos-programas que a

superam ou substituem: àqueles que a submetem às soluções de uma tradução

marginalista (as free market jurisprudence) [Law & Economics] ou às opções éticas de

uma microfísica de poderes e resistências e à analítica interpretativa (as deviationist

doctrine) que a prossegue (Critical Legal Scholars), quando não a substituem pelas

possibilidades-promessas (já radicalmente exteriores) de uma tecnologia social (social

207

Castanheira Neves, Curso de Introdução ao Estudo do Direito. Lições proferidas a um curso

do 1º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., pp. 343-347, «A unidade

do sistema jurídico…», cit., pp. 172, «Fontes do direito», cit., pp. 89-90, Metodologia Jurídica, cit., pp.

157, 184 e ss. 208

«Fontes do direito», cit., pp.90-93, Metodologia Jurídica, cit., pp. 185-186, O problema

actual do direito. Um curso de Filosofia do Direito, policop., terceira versão, cit., pp. 54-F a 54-Q. 209

O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito, cit., pp. 74-75

(também nos Digesta, cit., vol.3º, pp.71-72.). 210

Ibidem, p. 74 (e 71).

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engineering) ou de uma crítica de ideologia (teorias crítico-dialécticas, postmodern

jurisprudences)211

Sem ficarmos por aqui. Porque é também a hora desta dogmática se debater com

a pluralidade de vozes que (já para além destas grandes opções-modelos) internamente a

fragmentam… vozes que, disputando também a jurisdictio e a academic house que com

ela convergem (e muito especialmente esta última… quando não são directamente

produzidas por ela!), ameaçam ainda a inteligibilidade unitária de um autêntico

Juristenrecht.

A hora, entenda-se, de se debater conscientemente com esta pluralidade. Como

se não pudessemos confiar já apenas na dinâmica que inter-relaciona communis opinio

e fluxos desviantes — no contraponto-ordinans entre as correntes que ocupam o centro

ou que dominam a superfície e os pequenos rios periféricos ou subterrâneos (que se vão

impondo... muitas vezes para ocupar o lugar dos primeiros!) — ou nesta dinâmica

pressuposta (garantida) as doing what comes naturally. Mas então também como se

uma comunicação criticamente lograda com as diversas comunidades interpretativas e

as suas redes limitadas de codificação (ou pelo menos com os problemas que a

pluralidade dos seus diagnósticos nos autoriza a detectar) se tivesse tornado

indispensável para garantir que a dogmática doutrinal possa efectivamente desempenhar

a sua tarefa desoneradora.

Não tanto nem apenas para impedir que as suas dimensões descritivo-empírica e

lógico-analítica (empenhadas respectivamente na descrição reconstitutiva do direito

vigente e no esclarecimento de categorias ou usos linguísticos) possam ser sustentadas

autonomamente (em nome de uma intenção cognitiva ou de uma intenção analítica),

entenda-se, para exigir que todas estas práticas-tarefas sejam levadas a sério na

perspectiva de uma unidade intencional normativo-prática (e assumindo um discurso

sujeito / sujeito) — intencionalidade e discurso estes especialmente visíveis na tarefa que

explicita-constitui princípios ou que constrói modelos-critérios212

. Também e muito

especialmente para garantir que… entre o desempenho desonerador (e o contrôle

sistemático-racional) que a dogmática cumpre dirigindo-se à prática judicativo-decisória

211

Para um confronto esquemático de algumas destas propostas, veja-se o nosso

«Rechtsdogmatik, Autonomie und Reduktion der Komplexität. Brauchen die Gerichte ein

Sicherheitsnetz?», cit., passim. 212

Trata-se, como é evidente, de partir da distribuição de dimensões proposta por Alexy: Theorie

der juristischen Argumentation, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1978, pp. 308 e ss.

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por um lado, e a invenção autónoma (heurístico-antecipante) de fundamentos e critérios

específicos que ela assume fazendo novas perguntas e esboçando respostas também novas

por outro lado, passe a impor-se uma conexão muito mais reflectida (que não se limite a

intensificar discursivamente a natural convergência destas duas tarefas)213

. Ora uma

conexão que se cumpre internamente, desempenhando uma outra (uma terceira) tarefa;

aquela que responsabiliza a dogmática por uma reelaboração estabilizadora do próprio

sistema (pela reconstitução prática das normas, pela explicitação normativa da

experiência constituinte da casuística e da prática judicativa, pela mediação manifestante

e reconstitutiva dos princípios), na mesma medida em que lhe exige que reconheça neste

sistema a unidade-ordinans de uma pluralidade historicamente realizada.

Reconhecimento que exige hoje por sua vez uma tematização crítico-reflexiva (com o

apoio precioso das arenas metadogmáticas da teoria, metodologia e filosofia jurídicas!)...

dependendo desta afinal a possibilidade de corresponder ao desafio de uma intenção que

se possa dizer simultanea e incindivelmente hermenêutico-sistemática, prático-judicativa

e prático-realizanda.

Uma comunicação criticamente lograda (e por isso mesmo muito exigente)…

mas não certamente equidistante… porque comprometida com a procura hoje possível

do projecto humano do direito (se não com a «proclamação» contextualmente

plausivel, mas nem por isso menos «incondicional», de um direito autónomo214

).

O que, como se vê, corresponde a uma institucionalização com condições

específicas. Condições que, permitindo-nos levar a sério uma dialéctica entre unidade e

pluralidade, integração e diferença, não são partilhadas pelos outros mundos práticos,

nem podem ser reconhecidas e experimentadas projectando unilateralmente os

problemas e soluções que estes enfrentam… e muito menos desvelando (sem mais!) o

horizonte compreensivo (e as categorias de inteligibilidade) em que todos estes mundos

participam.

Especificidade que a reconstituição crítica do sentido do direito assumida pelo

pensamento jurisprudencialista nos ensina privilegiadamente a reconhecer e a

experimentar? Importa acentuá-lo. E agora para concluir. Respondendo à pergunta que

nos conduz. Já não só para dizer que a compreensão jurisprudencialista abre uma

213

Trata-se ainda de mobilizar (selectivamente) a especificação das funções da dogmática

proposta por Alexy: ibidem, pp. 326-332 (2.4.5.). 214

Castanheira Neves, O direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do

direito, cit., p. 74 (e 71).

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resposta possível em tempo(s) de pluralidade e de diferença. Mas para afirmar que em

tempos de pluralidade e de diferença como são os nossos, esta corresponde, cada vez

mais claramente, a uma aposta prático-culturalmente indispensável. Il faut parier (…) et

(…) cela n’est pas volontaire, vous êtes embarqué.

Coimbra e Ouro Preto, Outubro de 2008