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* EMÍLIO BOSSI * * * * * * * JESUS CRISTO JESUS CRISTO NUNCA EXISTIU NUNCA EXISTIU * * * * * * P UBLICADO UBLICADO ORIGINALMENTE ORIGINALMENTE COM COM O PSEUDÔNIMO PSEUDÔNIMO “M “M ILESBO ILESBO *** ***

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O cristianismo é um nome que serve para legitimar toda a espécie de aberrações. E isto é assim, subjetiva e objetivamente. Subjetivamente, porque usa o nome de um autor que nunca existiu; objetivamente, porque, sob o nome cristão, se deu cabimento às doutrinas mais disparatadas, amalgamando-as em monstruosa confusão.

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* EMÍLIO BOSSI *

* * ** * *

JESUS CRISTOJESUS CRISTO NUNCA EXISTIUNUNCA EXISTIU

* * ** * *PPUBLICADOUBLICADO ORIGINALMENTEORIGINALMENTE COMCOM OO

PSEUDÔNIMOPSEUDÔNIMO “M “MILESBOILESBO ””

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* EMÍLIO BOSSI *

* * ** * *JESUS CRISTOJESUS CRISTO

NUNCA EXISTIUNUNCA EXISTIU

* * ** * *PPUBLICADOUBLICADO ORIGINALMENTEORIGINALMENTE COMCOM OO

PSEUDÔNIMOPSEUDÔNIMO “M “M ILESBOILESBO””

* * ** * *(T(T R ADUÇÃOR ADUÇÃO DEDE A AUGUSTOUGUSTO DEDE C C ASTROASTRO – 1900) – 1900)

EEDITOR ADITOR A J JOÃOOÃO C CAR NEIROAR NEIRO - L - L ISB OAISB OA

(T(TRADUÇÃORADUÇÃO DEDE T T HOM AZHOM AZ DADA F F ONSEC AONSEC A – 1909) – 1909) AALM AN ACHLM AN ACH E E NCYCLOP EDICONCYCLOP EDICO I ILUSTRADOLUSTRADO - L - L ISBOAISBOA

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EMÍLIO BOSSI(1870 - 1920)

Estátua em Bruzella - Suíça

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TEMA

“De Jesus Cristo, pessoa real, ser humano, ahistória não nos conservou documento algum,prova alguma, demonstração alguma”.

Assim começa um dos ensaios mais polêmicose surpreendentes dos anos 1900. O advogado Emí-lio Bossi desmonta minuciosamente, ponto a pon-to, com extrema habilidade e rigor, qualquer vagaideia que a nossa cultura possa ter a respeito deum personagem chamado Jesus Cristo.

Seria ele filho de Deus? Este não é um argu-mento de pesquisa histórica e, consequentemente,nem deste ensaio.

Viveu ele realmente, ainda que somente comopessoa física?

Bossi declara um categórico NÃO demostrandotaxativamente, com provas e mais provas, que nãohá nenhum traço de evidência ou sequer sombrade suspeita da possível existência deste homemchamado Jesus.

Este ensaio mordaz de 1900 (Raramente reim-presso) é uma viagem através dos mecanismosmeméticos da evolução cultural; mostra como asreligiões mais primitivas e os rituais mais antigosevoluíram para o que hoje se chama "verdade re-velada".

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SUMÁRIOTEMA...................................................................................................................................................5PERFIL DO AUTOR........................................................................................................................7INTRODUÇÃO...................................................................................................................................9PRIMEIRA PARTE – CRISTO NA HISTÓRIA.......................................................................14CAPÍTULO I.........................................................................................................................................O SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO.........................15CAPÍTULO II.......................................................................................................................................AS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO........................21CAPÍTULO III.......................................................................................................................................PROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO......................................27CAPÍTULO IV......................................................................................................................................JESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA.....................................................................33SEGUNDA PARTE – CRISTO NA NÉVOA.............................................................................42CAPÍTULO I........................................................................................................................................A BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA..............................................................................43CAPÍTULO II........................................................................................................................................JESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL.................................49CAPÍTULO III......................................................................................................................................A PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE.......................57CAPÍTULO IV.....................................................................................................................................CRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO TESTAMENTO.................................................................................................................................64CAPÍTULO V.......................................................................................................................................CONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO..............................77CAPÍTULO VI......................................................................................................................................ABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO.........................................84CAPÍTULO VII....................................................................................................................................A MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA......................................................................................92TERCEIRA PARTE – CRISTO NA MITOLOGIA................................................................105CAPÍTULO I........................................................................................................................................CRISTO ANTES DE CRISTO...................................................................................................106CAPÍTULO II.......................................................................................................................................A MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL................................115CAPÍTULO III......................................................................................................................................ORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES..............................................124CAPÍTULO IV.....................................................................................................................................CRISTO É UM MITO SOLAR.................................................................................................130QUARTA PARTE – FORMAÇÃO IMPESSOAL DO CRISTIANISMO ..........................139CAPÍTULO I........................................................................................................................................A MORAL CRISTÃ SEM CRISTO..........................................................................................140CAPÍTULO II.......................................................................................................................................A DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO...................................................................................152CAPÍTULO III......................................................................................................................................O CULTO CRISTÃO SEM CRISTO........................................................................................160CAPÍTULO IV.....................................................................................................................................FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO.............................................................167CAPÍTULO V.......................................................................................................................................COMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO.................................................178CONCLUSÃO...............................................................................................................................191

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PERFIL DO AUTOR

Emilio Bossi nasceu em Bru-zella (cidade do Cantão suíço deTicino) em 31 de dezembro de1870, filho de um arquiteto,Francisco, e de Emilia Contesta-bile.

Iniciou seus estudos no Liceude Lugano e bacharelou-se emdireito na cidade de Genebra.

Empreendeu carreira no jorna-lismo e ganhou fama como umgrande polemista com o pseudô-nimo de Milesbo.

Foi adversário inflexível doclericalismo e defensor acérrimoda italianidade de Ticino. Travouduras batalhas contra os "mena-torroni" (desonestos) da vida pú-blica.

Colaborou com o jornal "ODever" desde 1891 e foi seu di-retor em 1920 e editor de 1896 a1902. De 1915 a 1920 dirigiu AGazeta Ticinense. Foi diretor dosemanário Nova Vida em 1893 efundou o jornal Ideia Modernaem 1895. Em 1906 fundou e edi-tou A Ação, órgão do ExtremaRadical.

Foi deputado do Grande Con-selho (1905-1910, 1914-1920),do Conselho Nacional (1914-1920) e do Conselho dos Esta-dos (1920). Como tal, dirigiu o

Departamento do Interior (1910-14). De 1905 a 1910, ocupou ocargo de juiz de instrução substi-tuto.

Liberal radical, foi com Ro-meo Manzoni, o flagelo impla-cável da política "oportunista" edas "transações" de Rinaldo Si-men.

Em 1897 foi um dos fundado-res da União Social Radical Tici-nense, uma associação que, alémdas reformas sociais defendia,propugnava a escola neutra e aseparação entre Igreja e Estado.

Com Manzoni foi o líder ca-rismático da Extrema Radical,fundada em 1902 após uma vio-lenta polêmica com a corrente deSimen.

Em seguida à sua entrada noConselho de Estado, Bossi foiforçado a se adequar à lógica dasnegociações. Em consequência,a Radical Extrema desaparececomo grupo autônomo.

Morreu 27 de novembro de1920, em Lugano.

Jesus Cristo Nunca Existiu foipublicado simultaneamente em1904 em Milão (Milan Editorialda Companhia) e em Bellinzona,Suíça (El. elm. Colombi e C.).

Também em Milão foi reedita-7

do em 1905 e 1906.Revê a luz em 1951 em Bolo-

nha, pela Lida, com um apêndicede Andre Lorulot. Finalmente,em 1976, se encontra publicadoem Ragusa pela La Fiaccola.

Não se conhece outras edi-ções.

Bibliografia1899 - Sobre a Separação Entreo Estado e a Igreja.1900 - Jesus Cristo Nunca Exis-tiu1909 - A Clerezia e a Liberdade1916 - Vinte Meses de HistóriaSuíça

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INTRODUÇÃO

Uma nova primavera agita avida humana: é a primavera daidade positiva, que se inaugurasob um duplo aspecto.

De um lado, o aspecto moral,que jaz sob uma forte camada degelo e trevas invernais. As novasideias, fecundadas pelo saber po-sitivo, encontram obstáculo fatalao seu desenvolvimento no con-junto das falsos conceitos forma-dos pela educação religiosa, quesobrevive na forma inercial,como muito bem diz Haeckel, eestá em contraste com tudo que àciência vem descobrindo, con-traste que se manifesta nas Men-tiras Convencionais da NossaCivilização descritas por MaxNordau, e no Século Hipócrita,descrito por Mantegazza.

E de outro lado, no campo daciência positiva, que demoliu edesfez para sempre a bagagemda superstição, do dogma e doapriorismo escolástico, para fe-cundar com a potente energia doprogresso material as veias docorpo social, o pensamento liber-tado, a autonomia da razão hu-mana, a ciência positiva armadado método experimental.

O que é verdade aqui é erroali; é bem aqui, o que é mal ali; o

que é relativo e progressivo aqui,continua absoluto, necessário eimóvel ali; o que constitui aqui abase do progresso e do conheci-mento, ali está excluído, porqueé a fé que reina soberana; o queaqui alenta os ânimos para o pro-gresso e a liberdade, ali está es-magado, porque é a autoridadeque domina.

Já é tempo de restabelecer aunidade do mundo moral e domundo material, do pensamentoe da ação, do ideal e da realida-de, porque a vida é una, e as leisque governam o mundo físico e omundo moral são idênticas. Bas-ta, para isso, aplicar à ciênciamoral, ainda na infância, os mé-todos que fizeram triunfar a ciên-cia positiva, isto é, a liberdade nainvestigação, o experimentalis-mo como instrumento e o racio-nalismo como sistema.

É preciso desconsiderar todasas crenças tradicionais e aban-doná-las ao seu destino, conser-vando somente as que resistam àcrítica; aquelas que, apenas coma experiência e o exame, traba-lhem na construção de um novoedifício moral, com atividade evoz cada vez mais intensa e fe-bril, e que deve coroar o soberbo,o esplêndido e imortal edifício

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das descobertas positivas de útilaplicação que a ciência vem le-vantando, para que, da uniãodesses dois monumentos, nasçaum novo templo: o Templo daHumanidade.

Animados por essas ideias, di-recionamos esta nossa modestís-sima obra ao exame dos dois milanos de crença em Jesus Cristo,partindo do ponto em que já che-garam a crítica histórica, a exe-gese bíblica, a ciência mitológicae a teoria da evolução aplicada àinvestigação das origens naturaisdo Cristianismo. Deste exame,empreendido unicamente poramor à Verdade e sem qualquerinclinação teológica ou antiteoló-gica, conclui-se que Cristo nuncaexistiu.

A crítica histórica já tinha no-tado o silêncio da História sobreCristo, e assinalava como suspei-tas as passagens dos poucos his-toriadores profanos daquele tem-po sobre a sua existência históri-ca, enquanto que a exegese bíbli-ca já tinha reduzido o AntigoTestamento a uma obra apócrifacomposta pela casta dos sacerdo-tes para edificação dos fieis. Ou-tro tanto vinha fazendo a respeitodo Novo Testamento, ratificandomuito pouco do que se quer fazerpassar por histórico.

Por outro lado, a ciência mito-

lógica, ajudada pela filosofia,pela arqueologia e pelas desco-bertas dos viajantes, tinha afir-mado que as lendas, os mitos, asnarrações e os preceitos do Anti-go e do Novo Testamento nãosão mais do que variações feitassobre as lendas, mitos, narraçõese preceitos da mesma natureza,anteriores ao Cristianismo, so-bretudo da China, Judeia, Pérsia,Mesopotâmia e do Egito.

Estas investigações e esta crí-tica, para não citar as primeirasseitas heréticas nem os protestosda filosofia pagã, especialmentede Celso, que, em parte, abala-ram a Igreja Triunfante, começa-ram com a Renascença italiana,continuaram com a Reforma echegaram ao seu apogeu naFrança com os filósofos do sécu-lo XVII e na Alemanha com oscríticos e os sábios do séculoXIX.

O estudo acerca do Cristianis-mo tinha chegado a este pontoquando a Inglaterra aperfeiçooue estabeleceu cientificamente,com Darwin e Spencer, a Teoriada Evolução, que, levando emconta a evidência das leis da Na-tureza, do pensamento e da histó-ria, se apresentava como o gran-de argumento, a lanterna mágicaque explica e interpreta o cursodas relações humanas e nos faz

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compreender o progressivo de-senvolvimento das instituições eda sociedade. E mesmo quandonão tinha ainda sido reduzida asistema científico, a Teoria daEvolução foi aplicada com muitaantecedência por Vico, Leibnitz eCondorcet, à historia em geral, e,especialmente por Tindall, aopróprio Cristianismo.

Tindall, há dois séculos no seuCristianismo Antigo Como oMundo, tinha precedido já osmais avançados entre os moder-nos, demonstrando que o Cristia-nismo não era produto de nenhu-ma revelação, mas apenas o re-sultado necessário da influênciade um conjunto indecifrável defatores diversos na determinaçãoda essência, extensão e eficáciado sistema religioso cristão; queeste era consequência dos fatosque o precederam e do ambienteem que nasceu, quando a huma-nidade estava ainda subjugadaem suas dores, juízos, aspiraçõese esperanças mais ou menos qui-méricas; que ele, enfim, desapa-receria, quando todas as circuns-tâncias a que devia a existênciafossem totalmente transforma-das.

Porém, só quando a Teoria daEvolução dominou efetivamenteno campo da natureza, é queconseguiu vencer a tradicional e

fetichista veneração ao Sagradoentre os Sagrados, ao Cristianis-mo. Foi então que os espíritospositivos, não podendo mais ad-mitir nada de sobrenatural na ci-ência moral, como tampouco seadmitiu nas ciências físicas, sededicaram a explicar natural-mente a origem e o desenvolvi-mento do Cristianismo. Esta foi aobra primordial de Ernesto Ha-vet.

O resultado da crítica históri-ca, bíblica e mitológica, e o daaplicação da teoria da evoluçãoao Cristianismo, foi reduzir-se ouinutilizar-se a pessoa de Cristo,enquanto, pelos fins do séculoXVIII, Dupuis e Volney, funda-mentados na teologia comparadae na explicação solar do mito dosDeuses Redentores, negavamcom poderosas razões, revelado-ras de uma grande cultura, aexistência humana de Cristo.

Essas razões, porém, não fo-ram aceitas pela crítica, não por-que não fossem justas, mas por-que esta não estava ainda sufici-entemente amadurecida. O mes-mo sucede com os mitólogos quevieram, depois, com todas asprovas, acumuladas, da identida-de mitológica de Cristo comCristna, Buda, Mitra, Horus, etc.,ou seja, com os Deuses Redento-res da antiguidade. Esses mitólo-

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gos não ousaram negar em abso-luto a pessoa de um Jesus he-breu, contentando-se uns com ro-deá-lo com um engrandecimentolendário e uma divinização mito-lógica, e outros com ambas. Ecomo nesse exame todos parti-ram de um ou vários pontos devista parciais e unilaterais, emvez de se apoiarem e completa-rem reciprocamente, destruírama obra comum, criticando-se unsaos outros nos pontos controver-sos, e acabando por se elimina-rem mutuamente.

Enquanto que a interpretaçãoevolucionista baste para explicara origem e a formação do Cristi-anismo, com o aditamento daspreciosas informações postas àsua disposição pela mitologiacomparada, a presença de Jesuscontinua como um último obstá-culo à completa explicação docristianismo segundo o métodocientífico, mesmo que excluindoa sua presença e considerandoque a crítica bíblica e históricatenham reduzido as fontes dacrença em Jesus à sua mais ínfi-ma expressão.

Posto isto, os últimos mistéri-os, únicos pontos obscuros quepermanecem sem explicação nocristianismo - e não são poucos -são os que derivam da pretendidaexistência do Cristo.

Como conciliar, dada a suaexistência, a missão de conservaro mosaísmo, que ele se atribui -ainda que o mosaísmo fosse apó-crifo, bastava que Jesus acredi-tasse nele para que se arrogassetal missão - com a missão opos-ta, de o destruir, o que, por outrolado, se lhe atribui?

Como explicar o fato de Jesus,nascido e criado entre hebreus,filho de um obscuro artista, igno-rando a literatura grega, segundoatestam mesmo os seus pretendi-dos discípulos, conhecer os li-vros de Platão, conforme o pre-tende Celso, em resposta a igualpergunta de Orígenes, que, poroutro lado, não pensa sequer emconciliar o fato da ignorância he-lênica de Cristo com o fato deele, no quarto Evangelho especi-almente, falar como um discípu-lo de Platão, como se fosse umFílon?

Ernesto Renan, o grande ro-mancista de Cristo porém, infun-damentado, perante a observaçãode Celso, não responde melhordo que Orígenes: Reconhecemosno cristianismo - diz ele - umaobra excessivamente complexapara que possa ser trabalho deum só homem. Acreditamos, pelocontrário, que nela tenha cola-borado a humanidade inteira...Jesus ignorava o nome de Buda,

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de Zoroastro, de Platão. Não leunenhum livro grego, nenhum su-tra búdico, e, não obstante, reu-nia em si mais de um elemento,que, sem que ele próprio o sus-peitasse, procedia do budismo,do parsismo e da sabedoria gre-ga - intervenções que se realiza-vam por canais secretos, por es-sas simpatias existentes entre asdiversas partes da humanidade.

Quando homens do valor e dainteligência de Renan se veemobrigados, ante a incompatibili-dade de Jesus com a explicaçãodo Cristianismo, a recorrer aoscitados argumentos só cabíveisnum faquir hindu, num astrólogomedieval ou num médium do es-piritismo ilusionista, e quando sepensa no amor infinito que Re-nan põe no seu personagem, épermitido duvidar de que a pes-soa de Cristo seja histórica.

Esta dúvida que em nós surge,em virtude da absoluta impossi-bilidade de se explicar satisfato-riamente o Cristianismo e os pró-prios Evangelhos, sem lhes tirara pessoa de Cristo - desde quenão se creia na sua divindade,pois à fé nada pode parecer estra-nho ou impossível - reforça asuspeita que nos levou a exami-nar de perto a questão da existên-cia histórica do Cristo e a con-

cluir pela sua negativa.Tal é o fruto da presente obra

que oferecemos a público semnenhuma pretensão literária, como único fim de contribuir para di-vulgar o racionalismo entre opovo em lugar de fazer uma obrade grande erudição. Além disso,este livro não vem dizer nada denovo. É apenas um trabalho desíntese, de integração e de lógi-ca, no qual organizamos os resul-tados obtidos pela crítica e pelaerudição.

E, assim, como os resultadosde uma ciência ou, de uma deter-minada ordem do investigaçõescompletam os resultados obtidospor outra ciência ou por outra or-dem de investigações, aqui tam-bém, do concurso dos diversoselementos da verdade, surge aconclusão lógica de que Cristonunca existiu.

Esta conclusão é, por outrolado, o ponto de partida necessá-rio para os futuros progressos daciência, neste campo.

Seja qual for o juízo emitidosobre o presente trabalho, tenha-se sempre em conta que é obrade um profano que se propôsaplicar o bom senso natural à crí-tica do Cristianismo.

Emílio Bossi - Milesbo

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Primeira Parte

Cristo naHistória

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CAPÍTULO IO SILÊNCIO DA HISTÓRIA ACERCA DA EXISTÊNCIA DE CRISTO

De Jesus Cristo, pessoa real,ser humano, a história não nosconservou documento algum,prova alguma, demonstração al-guma. Cristo nada escreveu1.

É certo que Sócrates tambémnada escreveu, limitando- se aoensino oral. Mas, entre o Cristoe Sócrates, há três diferenças ca-pitais: a primeira consiste nofato de Sócrates não ensinarnada que não fosse racional, hu-mana, ao passo que Cristo poucotem de humano, e esse poucoainda misturado com muita coisamilagrosa; a segunda diferençadeduz-se da circunstância de Só-crates ter passado à história sócomo personagem natural, en-quanto Cristo nasceu e foi co-nhecido apenas como pessoa so-brenatural; a terceira, enfim, ba-seia-se em Sócrates ter por discí-pulos pessoas históricas, cuja1 A pretensa carta ao rei Abgaro provou-se que foi uma piedosa fraude. Orígenese Santo Agostinho, para não irmos maislonge, excluem-na, declarando, por ummodo formal, que Cristo nunca escreve-ra coisa alguma. Além disso, a própriaIgreja em tal ponto concorda, pois não ainclui entre os documentos canônicos,como teria feito, se, porventura, ela ti-vesse alguma aparência de autenticida-de. O mesmo pode dizer-se da carta dePilatos a Tibério.

existência é notória, como Xeno-fonte, Aristipo, Euclides, Fédon,Ésquilo e o divino Platão, aopasso que, dos discípulos deCristo nenhum é conhecido, anão ser se dermos crédito a do-cumentos de pura fé, totalmentesuspeitos.

De sorte que, pelo fato de Só-crates nada escrever, não se podeconcluir que ele não existiu, aopasso que é permitido admitir le-gitimamente, pelo menos a títulode probabilidade, que Cristo, queteria vivido cinco séculos maistarde, nada deixou escrito. Cristonão só nada escreveu, como ne-nhuma linha foi escrita a seu res-peito.

Sem levar em conta a Bíbliaque, além de não dar nenhumaprova sobre a personalidade realdo Cristo, ainda demonstra ocontrário. Dos muitos autoresprofanos que foram contemporâ-neos de Cristo, nenhum nos dei-xou o menor vestígio acercadele.

Os únicos autores leigos quelhe mencionaram o nome – Flá-vio Josefo,Tácito, Suetônio ePlínio – ou foram interpolados efalsificados, como aconteceu aos

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dois primeiros, ou, como os doisrestantes, falaram de Cristo ape-nas etimologicamente para de-signarem seus seguidores e a su-perstição que tomou o seu nome.Escreveram muito tempo depois,sem o terem conhecido, sem da-rem provas da sua existência, eem termos tais que só servempara comprovar que ele nuncaexistiu.

Ernesto Renan, o mais célebredos cristólogos, que cometeu oerro de fazer da Vida de Jesusuma biografia quando não passade uma engenhosa lenda, vê-seobrigado a reconhecer o silêncioda história em volta do seu he-rói. Ele escreve que os paísesgregos e romanos nunca ouvi-ram falar de Cristo. Mesmo comos movimentos sediciosos pro-vocados pela sua doutrina e asperseguições de que foram alvoos seus discípulos, ainda assim oseu nome não aparece nos auto-res profanos durante o primeiroséculo depois da sua morte, se-quer indiretamente.

No judaísmo, Jesus não dei-xou impressão duradoura. Fílon,que morreu no ano 50, nada sabeacerca dele. Josefo, nascido noano 37 e que escreveu até fins doprimeiro século, narra a sua con-denação em algumas linhas2 en2 Que o próprio Renan anota para adver-

passant e, ao enumerar as seitasdo seu tempo, não cita a doscristãos.

A Mishná, diz ainda Renan,nada fala sobre a nova doutrina;os personagens dos dois Gema-ros, como se qualifica o funda-dor do Cristianismo, não nos le-vam além do quarto ou quintoséculo3.

Um escritor hebreu, Justo deTiberíades, que narrou a históriados hebreus desde Moisés atéfins do ano 50 da era cristã, nãocita sequer o nome de Cristo, se-gundo atesta Fócio.

Juvenal, que fustigou com asátira as crenças do seu tempo,fala extensamente dos hebreus,mas não dedica uma única pala-vra aos cristãos como se eles nãoexistissem4.

Plutarco, nascido 50 anos de-pois de Cristo, historiador emi-nente e consciencioso, que de-certo não poderia ignorar a exis-tência de Cristo e dos seus pro-dígios, nem uma só vez alude,em suas numerosas obras, querao chefe da nova fé, quer a seus

tir que a passagem de Josefo foi alteradapor mão cristã. Porque, só alterada?Como veremos, foi interpolada.3Renan, Vida de Jesus, vol. IV, cap. XX-VIII4Stefanoni, Dicionário Filosófico, a vozde Jesus

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discípulos. Césare Cantù, a quem a cren-

ça mais cega e indigna de umhistoriador vedou os olhos, mis-tura fatos históricos com as in-venções mais absurdas do cristi-anismo. Desiludido da sua fépelo silêncio de Plutarco, con-sola-se dizendo que Plutarco ésincero na crença das suas di-vindades e que por isso, em ne-nhuma das obras que escreveusobre moral se refere aos cris-tãos5.

Sêneca, que por seus escritoscheios de máximas perfeitamen-te cristãs faz duvidar se foi cris-tão ou teve relações com os dis-cípulos de Cristo, no seu livrosobre as crenças, extraviado oudestruído, dado a conhecer porSanto Agostinho, não diz umaúnica palavra acerca de Cristo, e,falando dos cristãos, aparecidosjá em muitos pontos da terra,não os distingue dos hebreus, aquem chama de um povo abomi-nável6.

Mas sobretudo expressivo edecisivo é o silencio de Fílonacerca de Cristo.

Fílon, que contaria de 25 a 30

5C. Cantù, História Universal, ÉpocaVI, Parte II6Ernest Havet, O Cristianismo e suasOrigens. O Helenismo, tomo II, Ch.XIV

anos, quando apareceu Cristo, eque morreu alguns anos depoisdeste, nada sabe ou diz acercadele.

Como escritor distintíssimoque foi, ocupou-se especialmen-te de estudos sobre filosofia e re-ligião, e, por certo, não esquece-ria Cristo, seu compatriota deorigem, se Cristo realmente ti-vesse aparecido sobre a face daterra e levado a cabo uma tãogrande revolução do espírito hu-mano.

Uma circunstância de granderelevo torna mais eloquente o si-lêncio de Fílon em torno deCristo: é que todos os ensina-mentos de Fílon podem passarpor cristãos, de tal sorte que Ha-vet não hesitou em chamar a Fí-lon um verdadeiro Padre da Igre-ja.

Por outro lado, Fílon se preo-cupou especialmente em conju-gar o judaísmo com o helenismotomando do Antigo Testamentoas partes mais edificantes, de-pois de distinguir o sentido ale-górico do literal, enxertando naárvore da religião hebraica omisticismo dos neoplatônicosalexandrinos. Deste modo, che-gou a formar uma doutrina pla-tônica do Verbo ou Logos, quetem muita afinidade com a do IVEvangelho, na qual o Logos é

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precisamente o Cristo. Pois bem:não é isto uma granderevelação?

Fílon, que vive no tempo deCristo, que já é célebre antes donascimento dele, e que morreainda alguns anos depois; Fílon,que realiza com o Judaísmo amesma transformação, heleniza-ção e platonização idêntica à queos Evangelhos promovem, so-bretudo o IV; Fílon, que fala doLogos ou do Verbo do mesmomodo que o IV Evangelho, por-que não cita Cristo uma únicavez sequer em suas numerosasobras?

Porventura, não prova estefato eloquentíssimo que Cristonunca foi pessoa histórica e real,mas sim pura invenção ou cria-ção mitológica e metafísica, parao que contribuiu mais do queninguém o próprio Fílon, que es-creveu, como se fosse um cris-tão, sem saber nada de tal nome,que fala do Verbo sem conhecero Cristo, e que ensina a mesmadoutrina atribuída Cristo?

Se Fílon pôde falar do Verbo eescrever como se fosse um cris-tão, antes de Cristo, sem nadasaber e nada dizer acerca dele,não indica isto que o Cristianis-mo se elaborou sem Jesus e porobra precisamente e principal-mente do mesmo Fílon, que não

diz uma única palavra acerca dapessoa humana, da existênciamaterial e histórica de Cristo?

Em suma: se Cristo um diaexistiu, como explicar a incom-preensível anomalia de que Fílonnão fale dele?

Por outro lado, Fílon, o Platãohebreu, alexandrino, contem-porâneo de Cristo fala de todosos acontecimentos e de todos ospersonagens principais do seutempo e do seu país, sem esque-cer Pilatos. Conhece e descreveos essênios estabelecidos juntode Jerusalém nas ribeiras do Jor-dão. Foi como delegado a Romapara defender os hebreus no rei-nado de Calígula, o que faz su-por nele um profundo conhece-dor das coisas e nomes da suaterra. Se Cristo tivesse existido,Fílon certamente ver-se-ia obri-gado a, no mínimo, a referir-se aele.

O silêncio de todos os escrito-res contemporâneos acerca deCristo tem sido, nestes últimostempos, objeto da mais atentaconsideração por parte da verda-de histórica, embora alguns es-critores liberais tenham-no avali-ado de maneira leviana e super-ficial.

Salvador explica o fenômenoapoiando-se em débil vestígiodeixado em Jerusalém pelo filho

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de Maria7. O próprio Stefanoninão pode explicar o fenômenosem reduzir o nascimento deCristo e toda a sua vida a pro-porções demasiadamente mes-quinhas, circunscritas aos limitesde uma ocorrência comum8. Masesta explicação é inadequada.

Nós não conhecemos mais doque um único Jesus: o dos Evan-gelhos e dos Atos dos Apóstolos.Este personagem não deixou ne-nhum vestígio em Jerusalém,contra o que pretende Salvador;sua vida não foi mesquinha, emoposição ao que supõe Stefano-ni, ao contrário, a vida de Cristo,segundo a Bíblia, foi de tal for-ma rumorosa e extraordináriaque nenhum outro Ser Humanoviveu algo semelhante.

Jesus deu causa a alvoroçospúblicos, a prisão, a um proces-so, a um drama judicial seguidode morte trágica. Realizou prodí-gios maravilhosos, desde a visitados anjos até as estrelas quemarchavam para indicar o lugardo seu nascimento aos soberanosvindos da Ásia expressamentepara o visitar; desde a degolaçãodos inocentes às discussões que

7J. Salvador, Jesus Cristo e sua Doutri-na, tomo I, livro II.8Luigi Stefanoni, lugar mencionadotambém na História Crítica das Supers-tições, Vol II , Cap. I.

sustentou aos doze anos com osdoutores; desde a multiplicaçãodo número e a transformação danatureza dos elementos à curados enfermos e à ressurreiçãodos mortos; desde. a dominaçãodos elementos às trevas e terre-motos, que assinalaram a suamorte até à sua própria ressurrei-ção.

Ora, perante um personagemtão extraordinário e aconteci-mentos tais que atrairia a aten-ção das pessoas mais indiferen-tes e excitaria a curiosidade doscronistas, analistas e historiógra-fos, o silêncio da história é abso-lutamente inexplicável. Inveros-símil e singularíssimo, comoacertadamente notou Dide9. Estesilêncio constitui, por irrespon-dível, uma grande presunçãocontra a existência histórica ereal de Cristo. Outros elementoscríticos nos provam que só a ine-xistência de Cristo pode explicaro silêncio da história em voltadele, e que, por sua vez, este si-lêncio demonstra aquela nãoexistência.

O mesmo silêncio da Históriaacerca de Jesus revela-se tam-bém a respeito dos apóstolos, so-bre os quais não existem outrosdocumentos senão os eclesiásti-

9A. Dide, O fim das Religiões, Paris,Flamarion, pag. 55.

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cos, destituídos de todo o valorprovativo, pois que nô-los apre-sentam, não como homens natu-rais, mas como personagens so-brenaturais, ou pelo menos, tau-maturgos, o que vem a dar namesma10.

Os únicos fatos históricos quese atribuem aos apóstolos, taiscomo a viagem de S. Pedro aRoma e as suas disputas com Si-mão Mago, o encontro de S. Pe-dro com Jesus e o famoso Quovadis, Domine?, morte de S. Pe-dro e outros fatos, são narradosexclusivamente em livros decla-

10 Emilio Ferriére, no seu excelente livroOs apóstolos demonstra a impossibili-dade de S. Pedro ter estado em Roma,impossibilidade esta confirmada pelo si-lêncio dos mais antigos escritores daIgreja, até á segunda metade do séculoIV. Porém, o autor comete o equívocode tomar como fonte histórica os Atosdos Apóstolos, escolhendo as poucasnotas que estes nos deixaram, como sefossem notícias verdadeiras. A simplesconsideração de que nada do que nar-ram os Atos está conforme com qual-quer dos autores profanos deveria bastarpara nos pôr em guarda a respeito destafonte, que não pertence de modo algumà Bíblia porque, até na compilação doslivros canônicos da Bíblia, a Igreja teveo astucioso cuidado de se descartar detodos os documentos que falavam deCristo, Maria ou dos Apóstolos que pu-dessem ser facilmente impugnados pelacrítica histórica, evitando, assim, o peri-go de se pô-lo a descoberto desde o seuprincípio.

rados apócrifos pela própriaIgreja. Outro tanto pode afirmar-se de José e de Maria, progenito-res de Cristo, e bem assim deseus irmãos e de toda a sua famí-lia.

Todas estas circunstâncias au-mentam a significação do silên-cio da história em volta de Cris-to, circunstâncias que adquiremmaior valor quando se vê queCristo, Maria e os Apóstolos sãopuras criações místicas.

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CAPÍTULO IIAS SUPOSTAS PROVAS HISTÓRICAS DA EXISTÊNCIA DE CRISTO

Os únicos autores profanosque falaram de Cristo reputadoscomo testemunhas da sua exis-tência foram Tácito, Suetônio eo historiador hebreu Josefo.

Vamos, pois, examinar um aum estes testemunhos para ver-mos que, não só não constituemprova da existência de Cristo,como também são novas de-monstrações do contrário.

De todos os historiadores cita-dos, o único que poderia ter va-lor de prova pela sua qualidadede historiador hebreu é Josefo,ainda que tenha vivido e escritomuitos anos depois do períodoque se considera como sendo oda vida de Cristo.

Josefo fala de Cristo apenascasualmente nestas poucas li-nhas: Naquele mesmo tempo,nasceu Jesus, homem sábio, se éque pode se chamar de homempois realizou obras admiráveis,ensinando aqueles que queriaminspirar-se na Verdade. Não sófoi seguido por muitos hebreus,como também por alguns gre-gos. Era o Cristo. E, tendo sidodenunciado a Pilatos pelos prin-cipais da nossa nação, este fê-locrucificar. Os seus partidários

não o abandonaram nem mesmodepois de morto. Vivo e ressusci-tado, reapareceu no terceiro diada sua morte como o haviampredito os santos profetas, e rea-lizou muitas outras coisas mila-grosas. A sociedade cristã queainda hoje subsiste, tomou deleo seu nome11.

Salvador, Renan, Stefanoni evários outros escritores nada di-zem acerca da possibilidade deterem sido alteradas as palavrasde Josefo, o que se compreendeem autores que, embora nãocreiam na divindade de Jesus,abrigam em si a crença nesseCristo Homem, mais ou menosextraordinário, do qual se origi-nou o Cristianismo.

Porém, uma análise criteriosalevará à convicção de que a pas-sagem de Josefo relativa a Jesusfoi interpolada. O texto está per-dido no meio de um capítulo,sem conexão alguma com o as-sunto que o precede e o que lhesucede, intercalado nos relatosde um castigo militar infligidoao populacho de Jerusalém e dosamores de uma matrona romana

11Josefo, Antiguidades Judaicas, LivroXVIII, cap. III

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com um cavalheiro que obtém osseus favores fazendo-se passarpor uma personificação do DeusAnúbis.

Além do mais, estes doiseventos históricos são rela-cio-nados entre si. Estão interli-gados porque o historiador, aorelatar o segundo, chama-lhe deoutro acidente deplorável, dondese depreende que esse outro aci-dente deplorável só pode estarrelacionado com o primeiro, domotim popular e a consequenterepressão.

A passagem intercalada entreesses dois acontecimentos nãopode ser atribuída a Josefo por-que rompe bruscamente o fio danarração, e o autor revela-se, emtoda a sua obra, mestre na artede colocar cada coisa em seu lu-gar12.

Além disso, na referida passa-gem, Josefo fala de Cristo comoo faria um bom cristão, pois con-sidera-o um ser sobrenatural erelaciona-o com as prediçõesdos profetas.

Como pôde Josefo empregarsemelhante linguagem, isto é,acreditar na divindade de Cristosem ser cristão e continuandohebreu? É tanta a evidência queaté o erudito padre Gillet se vê12 A. Peyrat, História elementar e críti-ca de Jesus. Conclusão.

obrigado a reconhecer que Jose-fo não pôde falar daquele modo,como o faria um cristão, e que,por conseguinte, deve ser consi-derado apócrifo e intercalado otexto referido13

Além disso, constitui-se emprova direta e definitiva desta in-terpolação o fato de S. Justino,S. Cypriano, Tertuliano e Oríge-nes, em suas numerosas e arden-tes polêmicas contra os hebreuse pagãos, não citarem esta passa-gem de Josefo.

Orígenes declara que Josefonão reconhecia Cristo14 na pes-soa de Jesus, o que não diria se opersonagem citado por Josefofosse conhecido no seu tempo.

Em suma: por consenso de to-dos os críticos sensatos e compe-tentes, esta passagem de Josefofoi julgada interpolada por umapiedosa fraude dos cristãos pri-mitivos.

Cita-se, ainda, outra passagemde Josefo (Livr. XX, cap. 9), naqual, falando na condenação deThiago, acrescenta: Irmão de Je-sus, chamado o Cristo. Aqui Jo-sefo se contradiz porque fala deCristo como de um homem qual-quer, demonstrando que não crê13 Larroque, Exame crítico das doutri-nas da religião cristã. Prim. Part. cap.IV.14Contra Celso, livro 1, § 47.

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na sua divindade, ao passo quenoutro lugar mostra acreditarnela.

Esta contradição se esclareceao se considerar interpolada oudesfigurada a passagem anterior-mente relatada.

Mas, na realidade, não há cri-tério fixo para aceitar a primaziade uma ou de outra das duas pas-sagens contraditórias, de formaque, não só uma exclui a outra,como as duas se excluem mutua-mente. Apenas que na última, ainterpolação foi feita com maiorastúcia do que na primeira, poisnela Josefo fala como hebreuque era, o que se explica por seranterior à primeira, já que existiano tempo de Orígenes e exigiumaior prudência.

A última passagem não é enão pode ser considerada autên-tica pela simples, óbvia e inde-clinável razão de que, se Josefohouvesse tido efetivamente notí-cias de Jesus, chamado o Cristo,não teria deixado de se explanarmuito mais sobre a sua vida, tra-tando-se de um homem que to-mara uma parte tão grande, tãonotável, tão extraordinária, tãooriginal e culminante na históriado seu país. Se alguma dúvidaainda restou sobre a prova defi-nitiva de que a passagem de Jo-sefo acerca de Jesus foi interpo-

lada, nada mais nos resta do queler Fócio, que declara formal-mente que nenhum hebreu ja-mais falou de Cristo.

Vejamos, agora, Tácito.A passagem deste historiador,

que pode apresentar-se comotestemunho a favor da existênciade Jesus, é a seguinte:

Nero, sem grande alarde, sub-meteu a processo e a penasanormais aqueles que o vulgochamava cristãos, por causa doódio que lhes votava por suasfeitiçarias. Quem lhes deu onome foi Cristo, a quem PôncioPilatos, no reinado de Tibério,condenou ao suplício. Apenasreprimida, esta perniciosa su-perstição (o cristianismo) feznovamente das suas. Não na Ju-deia, de onde provinha todo omal, mas na própria Roma, paraonde afluíam de toda a parte ossectários, cometendo as açõesmais audaciosas e vergonhosas.Por testemunho dos que os puni-am e pela opinião pública geral,(os cristãos) eram incendiários eprofessavam ódio extremo aogênero humano15.

Nunca se cometeu uma falsifi-cação mais evidente em detri-mento do grande historiador ro-mano, falsificação esta que se

15Tácito, Anais, livro 15, § 44.23

estende a todo o texto. Enquanto Tácito afirma que o

vulgo chamava assim aos cris-tãos porque eram odiados porsuas feitiçarias, o falsificador fá-lo contradizer-se nas linhas quelogo se seguem, e nas quais pre-tende que os cristãos procediamde Cristo.

Tal contradição é impossívelnum escritor da envergadura deTácito, e resulta da interpolaçãodas palavras que se referem aCristo, porque a etimologia dadapor Tácito ao nome dos cristãosé somente a que corresponde àsua opinião favorável dos cris-tãos, expressamente posta emantida em todo o trecho emque ele fala dos mesmos16.

16 Nota da segunda edição. “quos perflagitia invisos vulgus Christianos ap-pellabat”. (que, odiados por seus cri-mes, eram popularmente conhecidoscomo cristãos). Os nossos anticríticoscaíram sobre a tradução desta passagemde Tácito com tanta disposição quanto écerto terem a insânia de crer que, enfra-quecido assim o nosso argumento, fica-va comprometida a seriedade do livro.À falta de melhor juízo, pensaram que,atacando este argumento, feriam o pró-prio calcanhar de Aquiles. Pois bem:queremos deixar na dúvida a questão desaber se Tácito quis dar ao nome doscristãos a origem da aversão que inspi-ravam com suas feitiçarias. Queremosadmitir que não haja relação alguma eti-mológica, pelo menos aparente, entre ohomem e o assunto. Mas, nesse caso,

Outra circunstância, que provaa interpolação, encontra-se napassagem do mesmo Tácito,oportunamente revelada por Ga-neval17 e onde o eminente histo-riador romano (Liv. II, § 85) dizque foram expulsos de Roma oshebreus e os egípcios, que for-mavam uma única superstição.Neste ponto, é evidente que Tá-cito não faz proceder da Judeiaos cristãos, mas do Egito, destru-indo assim a pretendida origemetimológica dos cristãos de Cris-to, origem essa que o obriga adefender na passagem que vimosde examinar. deparamos sempre com o motivo peloqual Tácito colocou naquela passagem oper flagitia invisos, que não teria, em talcaso, relação alguma com o resto dotexto, ao passo que estaria em seu lugarna filípica que dedica, mais à frente, aoscristãos. Pelo contrário, este trecho esta-ria perfeitamente no seu lugar, mesmocomo está porque tem relação com otrecho seguinte, em que Tácito fala doscristãos, admitindo nós a interpolaçãodo período intermédio em que se faz di-zer a Tácito que o nome de Cristãosvem de Cristo. Mas, deixemos na dúvi-da essa questão etimológica: resultariadaí que Tácito deu testemunho históricode Cristo? De modo algum. Ainda nestahipótese, não teria feito mais que citar oque os cristãos diziam, especialmentenos tribunais, para dar a conhecer a pre-tendida origem histórica da sua supersti-ção.

17 Ganeval, Luiz – Jesus, perante ahistória, nunca existiu. Cap. IV – Gene-bra. Livraria Veresoff etc... 1874

24

De maneira que os que falsifi-caram esta passagem esquece-ram-se de falsificar aquela ondeTácito ignora Cristo, absoluta-mente, e onde afirma, como emseu lugar demonstraremos, que oCristianismo não procede deCristo, mas sim da fusão do he-braísmo, do orientalismo e dohelenismo, realizada no Egito.

Mesmo que não se quisesseadmitir esta fraude, o testemu-nho de Tácito não provaria demodo algum a existência deCristo, visto que ele o cita unica-mente para dar a origem etimo-lógica do nome dos cristãos.

Não se pode admitir que Táci-to tenha escrito acerca de Cristoda forma enganosa com que o fi-zeram escrever, pois se Cristo ti-vesse realmente existido, sa-bendo-o ou conhecendo-o, o his-toriador teria falado certamentemuito mais a respeito dele, nun-ca limitando-se a falar de um ho-mem extraordinário, em poucaspalavras, ditas a correr e entreincidentes ocasionais18 .

18 Alfredo Taglialatela, no Rinnovamen-to di Roma de 23 de julho de 1904, n.30, faz saber que Hochart sustentou ainterpolação de Tácito com muito maisveemência do que nós o fizemos. Igno-ramos a crítica de Hochart e lamenta-mos muito. Mas somos gratos ao sr. Ta-glialatela, pela, sua informação, quevem a confirmar que não estamos fora

A passagem de Suetônio éainda mais breve e mais contra-ditória.

Roma – diz ele, falando doreinado de Cláudio – expulsouos judeus que, instigados porCresto, promoviam contínuos tu-multos19.

Ponhamos de lado a diferençaentre Cresto e Cristo20 para ana-lisarmos a dificuldade a que dáorigem a pessoa aludida por Su-etônio.

Se era Cristo, como acreditarque tenha sido expulso de Romaonde nunca esteve? E, se esteveem Roma, como podia ele viverainda no tempo de Cláudio, seTácito nos diz que foi crucifica-do no reinado de Tibério, queprecedera o de Calígula e este ode Cláudio? Em vista disto, for-çoso é reconhecer que os doistestemunhos, de Tácito e Suetô-

do caminho e que outros, mais compe-tentes do que nós, têm apoiado a inter-polação de Tácito. 19Suetônio, Vida de Cláudio, cap. 25. 20 Esta questão etimológica não é tãodesprezível assim, como Larroque e ou-tros consideraram. Ganeval pretendeque o nome de Cristo,empregado peloscristãos nos séculos I e II em Roma, enos livros sybillinos no Egito seja umaderivação do nome de Cresto, aplicadoa Serápis, Bom e Agathos. Ainda, se-gundo ele, Cristo é uma pura e simplestransformação do Deus morto e ressus-citado do Egito.

25

nio, a respeito de Cristo, se ex-cluem e se eliminam mutuamen-te.

O testemunho de Plínio, oMoço, então é quase estranho aodebate. Numa carta enviada aTrajano, fala em Cristo21, nãocomo pessoa de quem se preten-de demonstrar existência histó-ria, mas como divindade simbo-lizadora da adoração dos cris-tãos. Pela mesma razão, teriaaludido a Brahma, falando dosbrahmanes, para indicar o objetodo seu culto, sem com isto que-rer demonstrar a existência deBrahma. Em suma: Plínio faloude Cristo só etimologicamente,sem emitir opinião alguma sobrea sua existência.

Portanto, fora os testemunhosde Suetônio e de Plínio por im-pertinentes à questão, e demons-trada a falsificação do que seatribui a Josefo e a Tácito, o quefica das pretendidas provas his-tóricas da existência de Cristo?

Nada, absolutamente: apenasa prova do contrário. Teriamsido necessárias as falsificaçõespara provar a existência de Cris-to se esta fosse real?

As falsificações só foram fei-21 Todos comigo invocaram os Deuses eofereceram incenso e vinho à tua ima-gem, maldizendo o Cristo. (Plinio Epist.97, liv. X.

tas para ocultar verdade. E comoas falsificações deviam ter sidopraticadas para fazer crer naexistência de Cristo, temos dededuzir, logicamente, que elenunca existiu, pois não seria ne-cessário falsificar a história paranos provarem a sua existência.

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CAPÍTULO IIIPROVAS HISTÓRICAS CONTRA A EXISTÊNCIA DE CRISTO

A história não só ignora Cris-to, não só prova que os autoresprofanos que dele falaram foramneste ponto falsificados, mas até,existem outras provas históricasque demonstram a sua não exis-tência.

Chamamos de históricas a es-tas provas porque são fatos verí-dicos, certos e positivos, porquesão testemunhos concretos e vá-lidos de escritores e de determi-nadas escolas, ao passo que asprovas que apresentaremos a se-guir, ainda que valiosas, não têmo mesmo valor histórico por se-rem deduções exegéticas da bí-blia e da mitologia comparada,extraídas de documentos própri-os da fé cristã e da história dascrenças humanas.

Ganeval reuniu grande núme-ro dessas provas na sua obra Je-sus, Perante a História, Nunca Existiu,excelente pela sua convicção eséria pelo seu propósito, obraque merecia melhor sorte apesardas suas repetições provenientesda falta de sistematização e daunilateralidade da tese que vê emCristo uma transformação pura esimples de Serápis, tese que po-derá ser justa mas, por falta dedocumentação suficiente, pode

não ser correta mas somente pro-vável, muito provável, mesmoporque, Serápis é certamente odeus que tem mais analogiascom Cristo.

No nosso entender, Ganevalnão desenvolveu adequadamentea sua tese. Foi infeliz ao lhe in-troduzir elementos análogos aosda mitologia dos outros povosorientais. Deveria ter percebidoque, apesar de certas expressõessimbólicas referentes à cópula,como Serápis, Cristo não é tantoa encarnação alegórica do Phal-lus como o é do Sol.

Entretanto, façamos-lhe a de-vida justiça, reconhecendo quedescobriu a verdade da lenda deCristo e dos relatos da história,quando é certo que, antes dele,só Dupuis e Volney abordaram atese da mitologia comparada.Entretanto, as provas se acumu-lam, e os recentes trabalhos con-vergem todos para a demonstra-ção definitiva desta verdade.

As provas históricas contra aexistência de Cristo provém doshebreus, dos pagãos e até de al-guns cristãos primitivos e padresda Igreja. Parecerá estranho, masé assim, como veremos.

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O hebreu alexandrino Fílon,no seu livro sobre os terapeutas,relata que estes viviam comoverdadeiros cristãos, que abando-naram bens e família para se de-dicarem ao ascetismo, que ti-nham livros religiosos e seguiamas máximas de seus pais.

Eusébio, na sua História, (liv.II, cap. X e XVII) confirma issoafirmando que os livros de quefala Fílon eram os Evangelhos eos escritos dos Apóstolos, e de-clara que os terapeutas citadospor Fílon são os cristãos solitári-os.22

O que se conclui destes docu-mentos é que o cristianismo émuito anterior a Fílon. Portanto,se os Evangelhos e os escritosdos Apóstolos já existiam antesde Fílon, e se Fílon nasceu 25 ou30 anos antes de Cristo, vê-selogo que a existência dos cristãosé anterior a Cristo.

E isto se confirma pelo fatodos judeus e egípcios, que for-mavam uma única superstição –os cristãos, no dizer de Tácito –terem sido expulsos de Roma22 Alfred Maury, no estudo da história docomeço do cristianismo contido em seulivro Crenças e Lendas da Antiguidade,chama isso de uma má interpretação deEusébio. Mas não explica as razões. En-quanto que ele próprio, algumas linhasantes, cita Filon entre aqueles que têmservido de guia para Eusebio.

duas vezes no tempo de Augustoe uma terceira no tempo de Tibé-rio, no ano 19 da nossa era.

Estas expulsões desmentemimplicitamente a existência deJesus, pois tiveram lugar antes dese falar do nome cristão, refe-rindo-se evidentemente à supers-tição judaico egípcia - que seconfunde com o cristianismo -nascido da fusão do judaísmocom o orientalismo egípcio, comvestígios muito próximos do ne-oplatonismo alexandrino 23.

Outro padre da Igreja, S.Epifânio, confirma as palavrasde Fílon e de Eusébio. Segundoele, os terapeutas do Egito cita-dos por Fílon, que habitavamjunto do lago Mareótides, são oscristãos24 que tinham o seu Evan-gelho e os seus Apóstolos.

Fílon falou dos cristãos, comosendo muito anteriores a si pró-prio, atribuindo-lhes um Evange-lho e vários Apóstolos.

Isto exclui absolutamente aexistência de Cristo, pois este te-ria nascido quando Fílon já con-23 Não é exagero dizer que não existiaainda a palavra cristão quando já existiaa superstição judaico cristã. De fato, ocristianismo existiu algum tempo antesdo seu nome. Este só foi elaborado e cri-ado muito depois, pelo processo de dife-renciação.24S. Epifânio, Cont. er., p.120. In Gane-val.

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tava 25 a 30 anos, e Fílon nãopoderia esquecê-lo já que se ocu-pava dos cristãos.

Além disso, sabe-se que osEvangelhos atuais não aparece-ram senão muito tempo depoisde Cristo, de modo que não podeser a eles que Fílon alude falandodos livros (os Evangelhos, se-gundo Eusébio) e dos terapeutas(os cristãos, segundo Epifânio).O testemunho de Fílon contra aexistência de Cristo é tanto maisformidável quanto o mesmo Fí-lon contribuiu intensamente paraa formação do cristianismo25.

Fócio opina que é dele queprocede a linguagem histórica daEscritura. Ainda mais: Fílon es-crevera um tratado, um verdadei-ro Evangelho acerca do DeusBom (Serápis) – livro que foidestruído – e cujas alegorias de-viam ser tão semelhantes às dos25 Nota da segunda edição. Parece haveraqui uma contradição, visto termos afir-mado que o Cristianismo é anterior a Fí-lon, e dizermos mais adiante que foi eleo seu principal fundador. Se entender-mos que a multiplicidade de crenças queformam uma doutrina, uma fé, um siste-ma complexo de dogmas, máximas e ri-tos é produto da colaboração de variasgerações, de vários séculos e de muitossábios, até que encontre o seu precípuoexpositor, este tem direito a ser conside-rado o seu fundador. Assim, pode di-zer-se que Marx é o fundador do socia-lismo, embora. este já existisse séculosantes, em vias de formação.

Evangelhos que logo se atribuí-ram a Cristo.

Não faltou também um falsifi-cador cristão que ousou dizer aOrígenes que, no seu Evangelhosobre o Deus Bom, Fílon falarade Jesus sem escrever o seunome 26.

E se este Evangelho de Fílonacerca do Deus Serápis, Evange-lho um século anterior ao doscristãos, era essencialmente se-melhante aos que depois vierama ser os Evangelhos cristãos, fi-camos na dúvida sobre se elequis fazer crer, falando de Será-pis, o Deus morto e ressuscitadodo Egito, que se referira a Cristo(ainda que o falsificador diga:sem o nomeá-lo).

Logo, temos de reconhecerque Fílon foi um dos fundadoresdessa crença que depois se con-verteu em cristianismo, que es-creveu um Evangelho mais tardeatribuído a Jesus, que Fílon não26 Eis a passagem de Orígenes interpola-da: "No livro III de sua obra Sobre oDeus Bom, Filon escreve um episódioalegórico sobre Jesus, ainda que não ci-tando seu nome” (Contra Celso). Gane-val demonstra que o nome de Jesus foiinterpolado na obra de Orígenes. Se Fí-lon tivesse escrito sobre Jesus, citaria aele e não a Ágatos, que era o deus Será-pis. A falsificação é tanto mais evidentequanto é certo que Fílon e Orígenes nemconheceram nem nunca falaram de Je-sus.

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conheceu e nem citou em seustrabalhos.

Posto isto, o silêncio de Fílonacerca de Jesus não só prova queeste nunca existiu, como autorizae legitima a hipótese – que nodesenvolver deste trabalho serácorroborada por outras provas27 –de que Fílon foi o principal fun-dador do cristianismo.

Os seus copiadores não fize-ram mais do que introduzir onome de Jesus em lugar do deSerápis, substituindo o DeusBom dos egípcios por outro Deusmorto e ressuscitado, que é Je-sus28.

Em qualquer dos casos, ficaevidente que Fílon escreveu umEvangelho sobre Serápis, o quallogo pôde adaptar-se a Jesus,donde, segundo Fócio, se deriva-ram os Evangelhos posteriores. Éigualmente certo que Fílon des-creveu os Terapeutas como mui-to anteriores a Cristo, tendo já os27Veja-se, Parte IV, Cap. II.28 Um eloquente testemunho citado porGaneval para denunciar a origem egíp-cia dos Evangelhos está nas alegorias dojumento e dos porcos. Especialmentedeve se notar a parábola do filho pródi-go, que se faz guardador de porcos, e omilagre dos demônios arrojados dospossessos para os porcos. Tanto umcomo o outro destes episódios estão to-talmente deslocados na Judeia, mas nãono Egito, onde o porco era a imagem dadissolução e símbolo do demônio.

seus Evangelhos e os seus Após-tolos; que estes Terapeutas eramos cristãos primitivos, e segundoEusébio e Epifânio, existirammuito antes de Cristo e, enfim,que o mesmo Cristo nunca exis-tiu.

Pondo de lado as inúmerasprovas que Fílon nos fornece29,vejamos as que nos dão cristãosautênticos e de valor perante aIgreja – S. Clemente Alexandri-no e Orígenes – cujos testemu-nhos são tanto mais concluden-tes, quanto é certo terem contri-buído poderosamente para a di-fusão do cristianismo.

S. Clemente Alexandrino eOrígenes, este último falecido noano 254, negam a encarnação, e,por conseguinte, a existência deCristo.

Assim se depreende da análisefeita pelo patriarca Fócio que, fa-lando do livro das Disputas de S.

29 Dide, na obra já citada, põe em desta-que um diálogo com Trifon, de Justinomártir, no qual o hebreu Trifon nega aexistência e a aparição de Cristo sobre aterra, dizendo: se Jesus nasceu, em al-gum ponto da terra, esse ponto é com-pletamente desconhecido. Faz notar queCelso, cuja obra foi destruída, não negaa existência de Cristo. Celso, porém, queviveu no século II não cuidou de tal as-sunto, visto que a sua tese era outra, eque esta se limitou a refutar o cristianis-mo, valendo-se para isso dos próprios li-vros da nova religião.

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Clemente, afirma que nele o au-tor declarara que Logos, o Verbo,nunca encarnara (p. 286, in Ga-neval, c. II e III) e, analisando osquatro livros dos Princípios, deOrígenes, mostra-nos que estefalava de Cristo segundo a lendae que, a respeito da encarnaçãodo Salvador, opinava que o mes-mo Espírito se encontrava emMoisés, nos profetas e nos após-tolos, o que leva Fócio a declararescandalizado que neste livroOrígenes escreveu muitas blasfê-mias30.

A nós só importa constatar quea forma pela qual se exprimemS. Clemente e Orígenes, falandodo Verbo, do Cresto e do Salva-dor, exclui absolutamente a exis-tência de Cristo, pois nenhumdeles assim falaria se Cristo ti-vesse sido um homem real e ver-dadeiro. E nem nós poderíamospormenorizar mais, visto que es-ses livros foram todos destruí-dos.

Ganeval cita ainda os testemu-nhos de S. Irineu, Papias e S.Justino, o primeiro dos quaisafirma que o Deus cristão não éhomem nem mulher; o segundocita fragmentos do antigo Evan-gelho egípcio, e o último, falan-do do Logos (Cristo), afirma queé uma emanação de Deus produ-30Fócio, in Ganeval

zida como as projeções dos raiosdo Sol.

Como se vê, as três opiniõesconcordam em negar a existênciade Cristo. E trata-se de santos eteólogos célebres, insuspeitos deaversão contra o cristianismo, doqual foram os principais e maisautorizados propagadores.

Cita ainda Ganeval, apoiando-se em Fócio, as opiniões de Eu-nomius, Agápio, Carmim, Euló-gio e outros cristãos primitivos,que todos eles formaram doCresto um conceito que exclui asua existência material e corpó-rea.

E finalmente lembra o juízodo S. Epifânio acerca das maisantigas seitas heréticas dos Mar-cinitas, Valentinianos, Gnósticos,Simonianos, Saturnilianos, Basi-lidianos, Nicolasianos e outros,dos quais deduz que o Deus Re-dentor dos cristãos é Horus, filhoda Trindade egípcia, convertidomais tarde em Serápis.

A estas seitas mencionadas porGaneval, que negavam a existên-cia do Verbo, deve juntar-se es-pecialmente a dos Docetistas,impugnadores da realidade deCristo, que Salvador31 refuta nolivro Jesus Cristo E A SuaDoutrina, citando o quarto Evan-31 Salvador, Jesus Cristo E A SuaDoutrina, livro II, cap. II.

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gelho que destaca o golpe de lan-ça que fez manar sangue e águado corpo de Cristo, e que istoprovaria a sua realidade.

A existência desta seita é par-ticularmente importante, porqueno dizer de S. Jerônimo32, foicontemporânea dos Apóstolos.

E, caso não fosse bastante oque já foi dito, tínhamos Cerinto,Cerdon, Taciano, e os Ebionitas,todos eles impugnadores da exis-tência de Cristo, e, sobretudo,Saturnino, que segundo o abadePluquet, viveu nos tempos e nasparagens onde Cristo realizou osseus milagres, apesar de ter-lhenegado, ele também, um corponatural.

A negação da existência deCristo por parte dos primeirosheréticos, alguns dos quais vive-ram no tempo e no lugar onde te-riam residido Cristo e os Apósto-los, é prova histórica evidente deque eles nunca existiram. Umtestemunho valiosíssimo, apre-sentado também por Ganeval, é odo imperador Adriano que tendofeito uma viagem a Alexandriano ano 131 declarou que o Deusdos cristãos era Serápis e que osdevotos de Serápis eram aquelesa quem chamavam bispos doscristãos. Sua opinião está de32 Contra os luciferianos, cap. 8, in Es-tefânio, Dicionário Filosófico.

acordo com todos os documentosconhecidos daquela época.

Época em que não existiamainda os atuais Evangelhos, emque Tácito nos revela que os he-breus e os egípcios formavamuma única superstição, em queFílon tinha já escrito sobre oDeus Serápis, de tal fôrma quefacilitava a qualquer falsificadorcristão o ensejo de fazer crer quese referia a Cristo, e em que ha-via já falado acerca dos cristãosprimitivos – os Terapeutas – se-gundo a confissão de Eusébio eEpifânio, apresentando-os comomuito anteriores a ele, que porsua vez, era anterior a Cristo.

Época em que, segundo S.Epifânio e Fócio, muitas seitascristãs continuavam adorando aHorus como Deus Redentor, Fi-lho da Trindade egípcia. Épocaem que S. Clemente de Alexan-dria e Orígenes escreveram ne-gando Jesus e falando de Cristo –nesse tempo Cresto, segundo alenda – tudo isto por confissãodo próprio Fócio33.

33 Ganeval cita, entre as provas Históri-cas contra a existência de Cristo, a lin-guagem de S. Paulo e daquele apóstoloApolo chamado também Cresto, que nosAtos dos Apóstolos prega o cristianismosem ser cristão. Provas graves, sem dú-vida, por emanarem dos próprios docu-mentos da fé, e de que falaremos, quan-do tratarmos da Bíblia.

32

CAPÍTULO IVJESUS CRISTO NÃO É PESSOA HISTÓRICA

Não só a história permanecemuda a respeito da pessoa deCristo; não só se demonstrouque os autores históricos quedele falam foram nesse pontofalsificados; não só existem pro-vas históricas contra a existênciade Cristo, mas até se prova que aHistória nunca o conheceu, nãopodendo sequer conservar-nos asua fisionomia humana.

Cristo não é pessoa histórica;é Deus, somente Deus, mais oumenos antropomorfizado. A pró-pria etimologia nos indica: Jesussignifica Salvador, Cristo signi-fica Ungido.

Na própria Bíblia e no AntigoTestamento, o nome de Messiasou de Cristo aplica-se a certosreis pagãos: a Cyro, segundoIsaías (XLV, 1) e ao rei de Tyro,segundo Ezequiel (XXVIII, 14).Aplica-se, também, a todo opovo e a todos os seus membros,como se vê nos Salmos.

Jesus Cristo quer dizer, pois:O que foi ungido Salvador.

A própria etimologia demons-tra que se não trata de uma pes-soa histórica.

Em que ano, nasceu Cristo?Difícil e tenebrosa questão!

Quase todos os que dela têm seocupado concordam em que oseu nascimento não coincidecom a era vulgar.

Durante os primeiros seis sé-culos, depois da sua pretendidaexistência, um monge, Dionísioo Pequeno, não alude à era cris-tã, fixando o seu princípio, ouseja o nascimento de Cristo, noano 753 da fundação de Roma,data julgada errada em pelo me-nos 6 anos, ainda que este erronão possa ser facilmente de-monstrado. E é compreensível:nada é mais difícil de ser de-monstrado do que aquilo quenão existe. Calvisio e Moestlincontam até 132 variantes e Fa-brício cerca de 200.

Nada há que demonstre exata-mente o dia do seu nascimento.Uns falam em 6 ou 10 de janei-ro; outros dizem 19 ou 20 deabril, 20 ou 25 de março, e al-guns optam por dias e meses in-teiramente diversos. No Orientecelebrou-se o nascimento de 1o a8 de janeiro e no Ocidente, nodia 6 do mesmo mês.

João Crisóstomo, no ano 375,falava em 25 de dezembro comoum uso introduzido no Oriente.

33

Em Roma, fixou-se o nasci-mento de Cristo em 25 de de-zembro. Isto antes do ano 354,segundo se vê num calendário deBucer, daquela época34.

Estas mudanças de datas fo-ram interpretadas no sentido dequerer a Igreja colocar o nasci-mento do novo Deus em relaçãocom os dos Deuses Salvadores eespecialmente com o do DeusInvicto, ou seja Mitra, que emRoma se solenizava com grandepompa, espetáculos e lumináriasno dia 25 de dezembro, tendo oscristãos conferido ao seu Cristoos atributos místicos daqueledeus Sol, cuja ressurreição ospagãos celebravam.

Esta hipótese não excluiria aexistência de Cristo, mas deporiamuito em favor da sua diviniza-ção. Não obstante, fica destruídapelo fato de estar em relaçãocom outras tantas datas mitoló-gicas: por exemplo, a festa doachado de Osíris, que tinha lugara 6 de janeiro (Creuzer, Symbo-lik und Mithologie).

Por aqui se vê que a formaçãodo mito foi laboriosa e longa,pois a Igreja primitiva fez todo opossível para colocar o nasci-mento de Cristo além do solstí-cio do inverno, a fim de afastar34Bianchi-Giovini, Crítica do Evan-gelho, livro II.

toda a suspeita de um novo mitoem nada diferente do dos DeusesRedentores que nasciam somen-te em 25 de dezembro.

E não só se ignora o dia e anoem que Cristo nasceu, comotambém o lugar onde nasceu.

Segundo algumas profecias,deviam ser em Nazaré, e, segun-do outras, em Belém, visto quedevia descender de Davi. O se-gundo e o quarto evangelistasnada dizem a tal respeito. O pri-meiro e o terceiro, se bem quefalem dele, todavia contradizem-se, visto que um faz de Belém asua residência habitual, ao passoque o último, só por casualidade,numa narração de viagem inve-rossímil e impossível, o faz pas-sar por Belém. Além disso, fa-lam do assunto, relacionando-ocom as profecias, o que lhes tiratodo o interesse e seriedade his-tórica, convertendo-se em fontessuspeitas pela sua preocupaçãoapologética que os desqualificaperante a crítica.

Mas, a História, que não co-nhece o nascimento de Cristo,nem a data e nem o local, tam-bém desconhece em absoluto asua vida, a sua morte e todas asdemais circunstâncias que, se-gundo os Evangelhos, acompa-nharam uma e outra.

Assim também a famosa de-34

golação dos inocentes, a não me-nos famosa Estrela dos Magos eos próprios Magos, a morte trá-gica do Cristo e os terremotos etrevas que a acompanharam que,apesar de serem acontecimentosde excepcional importância, nemsequer foram notados pelos con-temporâneos, nem ainda poraqueles que deviam ter sido tes-temunhas oculares dos mesmosfatos.

O silêncio da história sobretais acontecimentos supõe algummotivo mais grave e significati-vo que um simples desconheci-mento histórico: supõe a invali-dação da veracidade dos únicoslivros que narram tais coisas,isto é, dos Evangelhos.

Mas, há mais: Cristo, aindaque relatado pelos Evangelhos,nunca realizou qualquer ato pe-queno ou grande, desses que to-dos os Homens fazem durante avida. Por exemplo: não tomouparte na Política do seu país e doseu tempo; nem uma única vezfoi importunado pela justiça ape-sar da sua vida de vagabundo;não levou a cabo ato ou sacrifí-cio algum do culto.

Nenhum dos homens históri-cos, como Pilatos, Hannaz, Cai-faz e outros, que deviam ter tidorelações com Jesus, deixou al-gum vestígio dessas pretendidas

relações.35

Enfim, não há uma única notí-cia acerca da sua pessoa física.

Cristo foi alto ou baixo? Bar-bado ou imberbe? Moreno ouloiro? Feio ou formoso? Nin-guém o disse, jamais, de ummodo fixo e positivo, porqueninguém nunca o viu.

Tertuliano o descreve comofeio, conforme uma profecia deIsaías, estando nesse ponto deacordo com a Igreja do Oriente.Santo Agostinho, porém, e comele a Igreja Latina, querem queJesus tenha sido formoso. Estasduas opiniões foram a origemdas diversas imagens de Cristo,barbado ou imberbe. As disputas

35 Anatole France, em sua pequena obraprima O Procurador da Judeia, imagi-na, ao tempo de Vitélio, um encontro àsmargens do golfo de Baia entre LélioLâmia, patrício romano exilado por Ti-bério, e Pôncio Pilatos. Lâmia pergun-tou a Pôncio, a quem conhecera em Je-rusalém quando era procurador na Ju-deia, se ele se lembrava de um tauma-turgo da Galileia chamado Jesus. “Pon-tius Pilatus fronça les sourcils et porta lamain à son front comme quelqu'un quicherche dans sa mémoire. Puis, aprèsquelques instants de silence: Jésus?murmu-t-il, Jésus de Nazareth? Je neme rappelle pas”... "Pôncio Pilatosfranziu as sobrancelhas e levou a mão àfronte como alguém que busca em suamemória. Então, após alguns instantesde silêncio, murmurou: Jesus? Jesus deNazaré? Não me recordo” ...

35

duraram até ao século XVII, de-pois do que, prevaleceu o mode-lo atual de Cristo com cabeleiraespessa e barba farta.

O sudário, que deveria ser umretrato da face de Cristo, pois foiestampado pelo contato diretocom o seu rosto, representa-o debarba abundante. O sudário, po-rém, não é documento fidedigno,ou porque existem outros igual-mente autênticos, ou porque osevangelistas não estão de acordosobre este ponto, e mesmo por-que há estátuas e afrescos deCristo em que ele aparece, atéfins do ano 326, completamenteimberbe.

Por isso, o escritor Moy, quetratou este assunto com muitointeresse e consciência, conclui,e com razão: Desde que se quei-ra tocar em alguma coisa realna vida de Jesus, não se encon-tra mais do que contradição eincoerência. Se porém, algumacoisa há de indiscutível é essado aspecto físico de Jesus...Para nós, a ausência total de in-formações precisas sobre suaaparência é uma prova certa deque ninguém jamais o viu36.

E, se ninguém o viu, claroestá que ele nunca existiu.

Tudo o que se pretende saber

36 Moy, Adoradores do Sol.

de Cristo, e não é pouco, provémdas fontes cristãs, isto é, dosEvangelhos que não só não nosfornecem prova alguma da exis-tência histórica de Cristo, comoaté nos confirmam a sua nãoexistência.

Do tudo o que anteriormentese disse deduz-se que nada, ab-solutamente nada se sabe doCristo Homem por meio da His-tória, que é a única fonte incon-testável em que devemos acredi-tar, sempre confirmada pelosmonumentos arqueológicos.

Neste ponto, os que escreve-ram sobre a Vida de Jesus fra-cassaram inteiramente. Apenasum ou dois, como Strauss e Re-nan, conseguiram salvar o seunome, graças ao seu talento e en-genho.

Os cristólogos, ou não fizerammais do que escrever romances,como Renan, ou se fizeram tra-balhos sérios, foi apenas na partecrítica, como Strauss. Estes pu-deram salvar um fragmento, umtraço da pessoa histórica de Cris-to sem que, todavia, critério al-gum de demarcação os fizesseseparar o real do fantástico, esem perceberem que essa preten-dida realidade tinha o mesmo as-pecto evangélico de tudo quantoeles reconheceram antes comofantástico.

36

Por conseguinte, não perdere-mos mais tempo com os cristólo-gos e nem com os críticos que,embora eliminando uma ou ou-tra parte do Novo Testamento,pretendem conservar a pessoahistórica de Cristo.

O nosso trabalho consistirá,pois, cingindo-nos à lógica, eindo até as últimas consequênci-as, em refutar indiretamente osistema ilógico dos cristólogos.

Antes, porém, de prosseguir,recolhamos algumas das con-clusões a que chegaram os críti-cos mais autorizados, que tenta-ram a impossível tarefa de escre-ver a vida de Jesus.

Strauss, depois de ter dito quetudo pode admitir-se como pro-vável na vida de Cristo – coisaimpossível, como veremos –conclui sua obra colossal sobre aVida de Jesus: dizendo – Masesta verossimilhança, vizinha dacerteza (tão pouco deixou desubsistente, da história de Jesus,e mesmo esse pouco se reduz auma verossimilhança vizinha dacerteza) não vai até muito lon-ge... Poucas coisas são devida-mente averiguadas e mesmoaquelas a que de preferência seaferra a ortodoxia – as milagro-sas e sobre humanas – nuncaaconteceram. A pretensão deque a salvação dos homens de-

pende da fé em coisas, das quaisuma parte é absolutamente fictí-cia, a outra incerta e somenteuma parte mínima verdadeira (everemos ainda que essa partemínima não existe) essa preten-são, dizia, é tão absurda quehoje nem vale a pena refutá-la37.

Poucas páginas antes, o mes-mo Strauss dizia: Há quem nãoo queira ouvir nem acreditar,mas todo aquele que se ocuparsincera e seriamente deste as-sunto saberá tão bem como nósque na História, poucos grandeshomens há sobre os quais este-jamos tão mal informados comoa respeito de Jesus38.

Ernesto Havet, confrontando acerteza que se tem da existênciade Sócrates com a incerteza daexistência de Cristo, diz: Sócra-tes é uma pessoa real, Cristo éum personagem ideal. Conhece-mos Sócrates por Xenofonte ePlatão, que o conheceram e es-creveram sobre ele, na própriaAtenas, entre os atenienses comos quais vivera, e logo após asua morte. Ver-se-á pelo contrá-rio, que todos os que falaram deJesus não o conheceram (Havetpoderia ter acrescentado que37 Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad.franc. de Nefftzer e Dolfuss, v. 2, p. 418e 419. 38 Strauss, Nouvelle vie de Jésus , trad.franc., v. 2, p. 415 e 416.

37

nem mesmo estes foram conhe-cidos...), dirigindo-se a homensque ainda o conheciam menos;que escreveram meio século de-pois (esta versão é a ortodoxa,porém, nada garante que osEvangelhos não sejam muitoposteriores à data fixada pelatradição) em países que nãoeram o seu e em língua que nãoera a sua. Esses não escreverammais que uma lenda: Jesus é umpersonagem que não tem histó-ria, não tem biografia. Não sefala de seu aspecto nem se indi-ca a sua idade. Sem dúvida quenão era casado, porquanto per-tença àqueles que se faziam eu-nucos para reino dos céus, o quenão tiveram o cuidado de nosfazer saber em termos bem ex-plícitos. Nada se diz acerca dosseus costumes nem dos detalhesda sua vida. Dele só se contamas suas aparições, em sua bocasó se põem oráculos. Tudo omais fica envolto em trevas, tre-vas que são precisamente asubstância das coisas divinas...Numa palavra, os que os falamde Sócrates são testemunhas; osque nos falam de Jesus não oconhecem, imaginam-no39.

Miron nos, diz, nada conhece-mos da vida de Jesus. Os redato-

39 Ernest Havet, Le Christianisme et sesorigines, tom. I, p. 166-168.

res dos Evangelhos e os primei-ros autores eclesiásticos, reco-lhendo as tradições correntes nacomunidade cristã, poderiamadquirir algum fragmento daverdade; porém, como asse-gurá-lo ante tantos elementosmitológicos e legendários? Umavida de Jesus é, por conseguin-te, impossível40 .

Enfim, Renan, o próprio autorda Vida de Jesus, mesmo sob aimpressão de fantasia do seu ro-mance e depois de reconhecerque há bem pouco o que dizer davida de Cristo, acrescenta: Jesusfoi realmente um homem celesti-al e original, ou um sectário he-breu parecido com JoãoBatista? Queremos acreditarque o personagem real ofereceem si algum traço do persona-gem ideal. A nossa admiraçãonão desapareceria, ainda mes-mo quando a ciência nada pu-desse dizer de certo e chegasseforçosamente às negações.Quem sabe se Jesus aparece ànossa vista disfarçado com hu-manas fraquezas somente por-que o vemos de muito longe,através da névoa da lenda?Quem sabe se aparece na histó-ria como o único homem irre-preensível só porque faltam os

40 Miron, Jésus réduit à sa juste valeur,Genève, 1864, p. XIII.

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meios para o criticar? Ai demim! Creio, com sinceridadeque, se o tocássemos, como nocaso de Sócrates, encontraría-mos também a seus pés um pou-co do lodo terrestre. Quem sabese, neste caso, como nas demaiscriações do espírito humano, oadmirável, o divino, o celestialnão seriam reivindicados comiguais e legítimos direitos pelahumanidade? Em geral, a boacrítica deve desconfiar dos indi-víduos, evitando entregar-se aeles. Quem cria é a massa, por-que a massa possui, num graude espontaneidade eminente-mente superior, os instintos mo-rais da natureza humana. A be-leza de Beatriz pertence a Dantee não a Beatriz; a beleza deCristna corresponde ao gêniohindu e não a Cristna, assimcomo a beleza de Jesus e de Ma-ria é obra do cristianismo e nãode Jesus e de Maria41.

Renan não precisava ter dadomais do que um passo para es-clarecer a sua dúvida. De Cristosó se disse bem porque, comoafirma Havet, não foi pessoa his-tórica, mas ideal. Mais adianteveremos que Renan foi bem su-cedido ao revelar uma intuiçãoadmirável: atribuir o tipo do ho-

41 La liberté de discussion , tomo III, p.468-469.

mem ideal, personificado emCristo, à humanidade e não aCristo, visto ser um ideal huma-no a criação e personificação domesmo. Este ideal, porém, nãose encontra na Bíblia, onde de-veria estar, se Cristo tivesseexistido. Pelo contrário, se Cris-to aparece em nossa cultura, ino-cente e limpo de toda a mancha,não é por obra da Bíblia nem deCristo, criação humana, impes-soal, coletiva, mas pela fantasiada coletividade e do espíritodogmático dos que o criaram42.

Das palavras de Renan deduz-se, além disso, outra consequên-cia, que ninguém ainda notou.Se a beleza de Cristo é criaçãodo espírito humano, como clara-mente ele o deixa compreender,também a sua própria pessoa,pela mesma lógica e pelo mesmocritério, poderia ser, como efeti-vamente é, uma criação do espí-rito humano.

Dide, no seu louvável livroacerca do fim das religiões,

42Aqueles que, tirando de Cristo a quali-dade sobrenatural que nele é tudo, pre-tendem conservá-lo ainda como pessoahumana, fato absolutamente incom-preensível, não só o expõem a um ames-quinhamento histórico, como o levam aabsorver pechas que o tornariam indig-no. Nós, se lhe executamos os funerais,salvamo-lo ao menos da crítica huma-nista fazendo-o subir da terra ao céu.

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atendo-se às tentativas de Chan-ning e dos unitários que negamabsolutamente todo o caráter so-brenatural a Cristo, mas se obsti-nam em considerá-lo como ho-mem, exclama: Mas quem é esteCristo? De que Cristo se trata?Onde se encontra? Sucede comele o mesmo que com todos osentes legendários: quanto maisse procura, menos se encontra.A tentativa de lançar à historiae arrancar das trevas da teolo-gia uma personalidade que, atéa idade de trinta anos, é absolu-tamente desconhecida, e que de-pois dessa idade só nos apareceem milagres, ora absurdos, oraridículos, é uma pretensão tãodifícil que, à priori, pode se di-zer impossível43.

E, mais adiante, o mesmo au-tor, falando da Vida de Jesus, dopadre Didon, faz ver que este au-tor ortodoxo, para escrever a bi-ografia de Jesus, se vê constran-gido a preencher com hipótesesa enorme lacuna da vida do seuDeus, provocando, desse modoaos seus leitores esta reflexão:Então, quase nada se sabe sobrea vida de Cristo? Pergunta quetambém se fez um dos mais no-táveis leitores do livro do padreDidon, o líder socialista francês,

43 Dide, La fin des religions, p. 316.

Jean Jaurés44. E assim, podería-mos continuar aduzindo citaçõesda mesma natureza, até encherpelo menos todo um volume; po-rém, é melhor repetir com Virgí-lio: ab uno disce onmes – porumas coisas tiramos as outras(Em bom português: Uma coisapucha outra).

Não podemos,contudo, esque-cer Labanca, cuja obra – JesusCristo – tem o mérito de reunirtodos os resultados até agora ob-tidos pela crítica a propósito des-te assunto. Labanca impugna apossibilidade de uma biografiacientífica de Jesus, quer pelasmúltiplas questões contra a au-tenticidade de todos os pontosdos Evangelhos, quer pela evi-dência que se observa na falta deum fim qualquer biográfico, massimplesmente de propaganda. Arespeito da vida de Jesus, Laban-ca, omitindo o sobrenatural, ob-serva que nada mais fica do queum resíduo pequeníssimo, quasereduzido a zero45.44 Jean Jaurès, L'action socialiste , p.122. 45 Labanca queria se colocar entre osque clamaram pelo fracasso da interpre-tação lógica do mito de Strauss, mas,adverte Dide, a Vida de Jesus deStrauss, é e continua sendo o livro maiscompleto, o mais arguto e o mais con-sistente dentre todos os que foram pu-blicados sobre o mesmo tema que, semele não existiria ... E ao mesmo tempo,

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Breve demonstraremos quenem mesmo esse resíduo peque-níssimo fica, e que, se algumacoisa resta de Cristo, mesmo naprópria Bíblia, é a prova de quejamais existiu um homem que sechamasse Jesus Cristo. Entretan-to, fechemos esta primeira parte,com a confissão dos próprioscristólogos: Cristo não é pessoahistórica46.

acrescentamos nós, a interpretação mi-tológica de Strauss será a única parteduradoura de sua obra. 46 O último momento da crítica alemãfoi marcada pelo livro de Harnack: AEssência do Cristianismo. Mas, alémdele não dizer nada de essencialmentenovo, comete o erro de fazer uso daapologia e da teologia em seu trabalho,o que tira a objetividade histórica e raci-onalista necessárias numa obra séria decrítica. T. Armani, ocupando-se do livrode Harnac, publicou um opúsculo pelaCooperativa Tipográfica Parmense, noqual distingue com perspicácia, a pessoade Cristo da sua personalidade preexis-tente nas profecias, o que seria suficien-te para explicar o cristianismo sem apessoa mais ou menos histórica de Cris-to.

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Segunda Parte

Cristo na Névoa*

*(As edições antigas citam “nebbia”; as mais recentes, “bibbia”.)

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CAPÍTULO IA BÍBLIA NÃO TEM VALOR DE PROVA

Demonstramos que Cristo nãoé pessoa histórica, porque a His-tória, a verdadeira, não o conhe-ce nem dele fala.

Vamos demonstrar, agora, quea própria Bíblia, única fonte quedele nos fala, nada prova a seufavor, antes confirma a nossatese. Cristo nunca existiu!

Para o nosso propósito, não épreciso refazer a crítica bíblicanem repetir os profundos e in-vencíveis argumentos de umStrauss e de toda a rica constela-ção de teólogos e de sábios, ver-dadeiros especialistas na maté-ria!

Bastar-nos-á fazer coisa diver-sa de uma inútil repetição, de-monstrar que o exame, mesmosuperficial, da Bíblia ou só doNovo Testamento, que se ocupade Jesus, não descobre a fisiono-mia de um homem, mas sim deum Deus.

Não nos ocuparemos do Deus:esse abandonamos aos piedososcuidados dos seus ministros ca-tólicos, que o crucificaram enele martelam a toda a hora.Abandonamo-lo aos cuidadosdos seus ministros protestantesque, para o salvarem das ruínas

que transtornaram o Olimpo, odespojam dos atributos divinospara o conservarem ao menoscomo homem – um homem qua-se divino que justifique o cultoque lhe tributa a Humanidade.

Iremos mais além do que oscríticos que nos precederam, nãoporque tenhamos mais talentos,mas porque a lógica tem, antesque a crítica, as suas justas con-sequências e conclusões a fim deque a verdade triunfe e brilhe.

E, se bem que seja pequeníssi-ma a parte do Cristo históricoque quiseram salvar depois deterem destruído a rica culturamitológica e lendária47, demons-traremos que Cristo não podiater existido, porque a sua exis-tência seria a negação da própriahumanidade.

Por conseguinte, dos Evange-

47 Para uns, Cristo foi pessoa histórica,mas ampliada até as proporções de len-da. Para outros, a lenda foi substituidapor uma pessoa mitológica justaposta àpessoa histórica. Para nós, ele é inteira-mente mítico. A propósito, lenda e mitosão coisas diferentes. A lenda tem sem-pre um fundamento verdadeiro e huma-no, mas exagerado até ao inverossímil,ao sobrenatural. O mito, pelo contrário,não tem origem em fatos verdadeiros: éapenas criado pela imaginação humana.

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lhos, dos Atos e das Epístolasdos Apóstolos escolheremosapenas o que nos for precisopara demonstrar a inconsistênciahistórica de Cristo. Deveríamostalvez começar por pesar a auto-ridade do Novo Testamento, paraver qual valor de prova tem arespeito das coisas que narra.Veremos porém que a Bíblia, an-tes de provar o que nos conta, asi própria deve provar.

Não é nosso objetivo recom-pilar do princípio ao fim tudoquanto a crítica histórica tem es-tabelecido a respeito da autenti-cidade dos referidos livros sa-grados do cristianismo.

Quanto ao Antigo Testamento,basta observar que é tão poucoverídico e autorizado que tornoulegítima a hipótese de ter sidoalguns século anterior à épocaassinalada para o aparecimentodo cristianismo.

Maurice Vernès, numa antevi-são genial e muito convincenteassegura que aquilo que os livrosdo Antigo Testamento narramsão, em geral, de feitura sacerdo-tal e profética, sem caráter al-gum histórico, mas apenas sim-bólico e teológico48.

Se tal é o resultado da exegesebíblica, pelo que respeita ao An-48 Maurice Vernès, Les résultats del'exégèse biblique, Paris, Leroux, 1890.

tigo Testamento, lógico é que talconsequência se aplique tambémao Novo Testamento, pois este,do princípio ao fim se apoia na-quele.

Estamos convencidos de que acrítica chegará um dia a confir-mar esta hipótese, porque é den-tre todas, a mais racional.

Por agora, basta saber que oedifício bíblico se fundamentatodo em terreno duvidoso, incer-to e vago.

De qualquer dos modos, a crí-tica já demonstrou o Novo Testa-mento não apresenta os requisi-tos necessários para autenticar averacidade do que diz.

Todos os livros do Novo Tes-tamento são anônimos. Cin-gindo-nos aos Evangelhos, aspalavras precedidas pelas frasesconsagradas, segundo Mateus,segundo Marcos, etc., não só nãoprovam que foram realmente dosApóstolos ali citados, mas atéindicam que foram redigidos poroutros.

Ignora-se, em absoluto, a épo-ca precisa em que os Evangelhosforam escritos. A referência maisantiga que temos sobre este pon-to é de Papias, bispo de Yerápo-lis, que se supunha martirizadono tempo de Marco Aurélio (161- 180). O seu livro, porém, não

44

chegou até nós49 De seu testemu-nho relativo a Marcos e a Ma-teus, conserva-se apenas algunsfragmentos em Irineu e Eusébio,que demonstram não se referiraos atuais Evangelhos.

Os testemunhos dos Evange-lhos, que datam do III e IV sécu-lo, que fé podem eles merecer?

O que é indiscutível, é que ne-nhum dos Evangelhos foi escritono tempo em que Jesus Cristoviveu; e que nunca se tiveram àmão os pretendidos originais,mas sim e apenas, cópias dosmesmos e cópias das cópias.

Quem nos garante, pois, quetais originais tenham existido?Tudo são trevas nos dois primei-ros séculos do cristianismo.

Maury, em presença de umatão grave circunstância, emiteduas opiniões: a primeira diz queos cristãos primitivos escreve-ram muito pouco; a segunda,que os documentos escritos na-quele tempo se perderam, poruma deplorável fatalidade. Esupõe mais verossímil esta se-gunda hipótese. E nós também

49 Seria casualidade? Seria estratégia?Ganeval insiste tratar-se de uma dasmuitas fraudes habitualmente usadas naformação do cristianismo, de acordocom a sua hipótese a que Pápias aludiureferindo-se às origens egípcias do cris-tianismo

E como sabemos que as seitasnasceram com o cristianismo,que todas elas se esforçavampara que prevalecessem os seusrespectivos pontos de vista, eque, desde o século II, as obrasabundam e com elas as falsifica-ções mais audaciosas50, é lógicosupor-se que todas aquelas queandaram errantes até se perde-rem, representaram opiniõescontrárias às que mais tardetriunfaram no concílio de Niceia(325) e que, convertida em sobe-ranas e despóticas, fizeram desa-parecer os documentos contrári-os. De sorte que os documentoscristãos que prevaleceram emNiceia têm autoridade desde oIV e quando muito desde o IIIséculo.

É evidente que, se não a pre-judicassem, a Igreja não teriadestruído os livros nos quais seconsignavam as controvérsiasdas seitas primitivas e que tãobom serviço podiam prestar àcrítica, quando já Celso no II sé-culo se vangloriava de haver re-futado o cristianismo, ser-vindo-se unicamente dos própri-os livros cristãos.

Em tudo vemos, neste ponto,

50 Não é injúria que se faz, é confis-são do próprio S. Jerônimo. Veja-sePeyrat na sua História Elementar ECrítica De Jesus.

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o anonimato e a falta de certeza,principais características dos li-vros do Novo Testamento, quebastariam para lhes tirar toda aautoridade.

Mas, há mais. Os Evangelhosatuais não foram escolhidos pelaIgreja com critério que revelassemaior autoridade nesses que emoutros muitos Evangelhos queentão andavam em voga: destesforam escolhidos quatro ao aca-so, diz Santo Irineu, porque qua-tro eram as regiões do mundo equatro os ventos.

E não é tudo. Antes do concí-lio de Niceia, a Igreja e os pró-prios Santos Padres serviam-seindiferentemente dos Evange-lhos, que mais tarde foram de-clarados apócrifos, porque eraigual a autoridade de todos.

E mais ainda. A Igreja conser-vou muitas lendas que se encon-tram apenas nos Evangelhosapócrifos.

No Novo Testamento acham-se mesmo passagens que se refe-rem a lendas contidas unicamen-te nos referidos Evangelhos apó-crifos.

Resumindo: anonimato, incer-teza nos originais, seleção aoacaso e falta de critério na pre-tensa autenticidade conferidapela Igreja aos Evangelhos atu-

ais – eis aí ao que se reduz a au-toridade do Novo Testamento!

Como se tudo isto fosse pou-co, outras circunstâncias a dimi-nuem ainda mais. Entre elas, asnumerosas alterações a que esti-veram sujeitos os Evangelhosatuais, devido à inépcia dos co-pistas, e especialmente à falsifi-cação das diversas seitas. Istonos explica, como diz Baur, amanifesta contradição das dou-trinas englobadas no Novo Tes-tamento, em luta contínua entresi.

Temos, por outro lado, a di-versidade dos exemplares sobreos quais se fez a tradução doNovo Testamento em língua lati-na – diversidade tão grande e tãograve, que S. Jerônimo temiapassar por falsário ao consti-tuir-se em árbitro para escolherentre a profusão de tantos e tãodiversos exemplares dispersospelo mundo. E declarava ter-sevisto obrigado a acrescentar,trocar e corrigir.51

Juntemos ainda a demonstra-ção feita já pela crítica, relativa àfalta específica de autenticidadeem não poucas partes do NovoTestamento.

O último argumento contra avalidade dos livros do Novo Tes-

51Praef. In Evang. Ad Damas.46

tamento está no fato das irrepa-ráveis contradições e das dis-cordâncias numerosíssimas queainda hoje contém, para não fa-lar nos seus erros, na sua imora-lidade e absurda puerilidade,apesar de a Igreja ter declaradoque foram inspirados, palavrapor palavra, pelo Espírito Santo!

Isto posto, pode, acaso, umapessoa séria, não obcecada pelafé, admitir, não já a autenticida-de, mas ao menos a veracidade eseriedade do Novo Testamentocomo argumento de prova acercado que ele narra?

Stefanoni, contudo opina quea crítica os deve ter em conta, aomenos porque representam tradi-ções dos tempos em que foramproduzidos, porém admite que,sobre a base de tais livros não sepode reconstituir a vida nem adoutrina de Jesus sem se escrevaum romance, enquanto declaraque os escritos revelados não po-dem fazer fé na história, nemesta pode, em nossos dias, expli-car com verdadeiro critério osprimeiros rudimentos da origemda nossa idade. Observamos,pelo que a nós se refere, que emprimeiro lugar, este não é maisque um dos muitos argumentosque concorrem em favor da nos-sa tese e, em segundo lugar, quenos achamos em face de uma

matéria tão excepcional que, as-sim como na crítica normal po-deria optar-se pelo partido maissensato, isto é, pela dúvida, naquestão que debatemos é precisoir até ao fundo, até a negação detudo quanto afirmam e impõemcomo divino, livros que, taiscomo os Evangelhos, são desti-tuídos do todo o fundamento.

Além disso, os Evangelhossão um milagre contínuo, tantona ordem física, como na ordemmoral, e, tratando-se de coisa so-brenatural, parece lógico queconcorram provas pelo menostão certas autênticas como asque acompanham os fatos co-muns. Porém, nada disso aconte-ce e, em parte alguma deles sur-ge a menor prova.

E, ao passo que estes livros doNovo Testamento nada demons-tram do que afirmam, na históriaprofana não ha um único sinal,um único documento que apoieou venha em auxílio dessas nar-rações evangélicas.

Em tais circunstâncias, quemnão verá que tudo quanto ali seconta é filho da imaginação, paranão dizer da impostura sacerdo-tal, e que nada, absolutamentenada, pode salvar-se do que portantos séculos nos impuserampor modo extraordinário e semautoridade alguma?

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Não censuremos os críticospositivos e os autores que nosprecederam e nos desbravaram oterreno, por não terem chegado àconclusão a que nós chegamos:o preconceito duas vezes mile-nar que tem maltratado nossasmentes, arrastando-as para esseerro com tal força inercial quenem os mais destemidos pude-ram se libertar dele de um sógolpe. Aqui, mais do que em ne-nhum outro campo, comprova-seque natura non facit saltus (anatureza não dá saltos).

Não devemos, porém, negar àcritica o direito de chegar a con-clusões que não são mais do queconsequências necessárias daspróprias premissas.

Portanto, se o fato de seremclandestinos os livros do NovoTestamento não pode bastar, porsi só, para legitimar a conclusãoda não existência de Cristo, acrítica deve, dada a natureza teo-lógica e sobrenatural dos referi-dos livros, ter muita cautela noaceitar qualquer parte, por míni-ma que seja, do que neles seconta.

Em todo o caso, o certo e in-discutível é que a Bíblia, em lu-gar de servir de prova do que re-lata, tem necessidade de com-provar-se a si própria. Esta afir-mação está, de resto, reforçada

com a autoridade de Santo Agos-tinho, que, discutindo com OsManiqueus, faz esta confissãocapital: Não acreditaria nosEvangelhos se a isso não me vis-se obrigado pela autoridade daIgreja52.

52 Citação da Peyrat, História E CríticaElementar De Jesus, pag. 70, 3a edição,Paris, Levy Frères, 1864.

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CAPÍTULO IIJESUS CRISTO É PESSOA ABSOLUTAMENTE SOBRENATURAL

Os milagres de Cristo – eis apedra de toque de todos os teólo-gos. Se Cristo existiu realmente,se foi pessoa humana, como seexplicam esses milagres?

Ainda que hoje os milagres,contanto que não sejam fenôme-nos psicológicos, e a maior partedos de Cristo não o são nem po-dem sê-lo, se negam facilmen-te53.

Ora, na vida de Jesus, tudosão milagres, a ponto de o nãoconhecermos senão através domilagre. A este respeito, os teó-logos e críticos, especialmenteos da sábia Alemanha, começa-ram a fazer distinção entre ostrês primeiros Evangelhos, cha-mados sinópticos, e o quarto, deJoão.

Dizem que este último fala deCristo, como Platão falou do Lo-gos, deduzindo-se daí que a con-cepção de Cristo, segundo oquarto Evangelho, é puramentemetafísica. De modo que se che-gou a supor tal Evangelho comouma tentativa feita, muito tempodepois dos três primeiros, a fim53 Gaetano Negri, com sua pena magis-tral, corta fundo na questão dos mila-gres. Veja sua Crise Religiosa, pp 77-83, Milão, Dumolard, 1878.

de salvar a divindade de Cristo,da crítica dos pagãos, divindadecomprometida com as incongru-ências dos Evangelhos Sinópti-cos em certas passagens em queo elemento humano sobrepuja odivino.

Assim, abandonaram à críticao quarto Evangelho, agar-rando-se aos três primeiros parasalvarem ao menos o homem.

Esta tentativa não é mais doque uma concessão que, desdelogo, se viu ser de mau gosto,pois que se encaminha a um fimmais teológico do que à primeiravista parecia. O protestantismoliberal e o racionalismo espiritu-alista viram a tempo o perigo dacrítica naturalista, isto é, viramque, caídos os milagres, caídaestava toda a concepção divinade Cristo, visto serem os mila-gres a única prova da sua exis-tência.

Eis como se explica a tentati-va de despojar Cristo da divinda-de e dos milagres para podersalvá-lo como homem. Salvar aCristo como homem é o mesmoque salvar o cristianismo, comodisse Hartman, pois que, admi-tindo que Cristo haja realmente

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existido, o cristianismo deveproceder dele. E esta seria a pro-va do cristianismo, como cristia-nismo seria a prova de Cristo.Um salvaria o outro.

Na verdade, que homem po-deria criar toda uma nova civili-zação, a não ser que fosse, emtodos os aspectos um homem ex-traordinário?

Lançado o divino pela portaafora, ei-lo que entraria renova-do pela janela a fim de envolvercom a sua auréola a loira cabeçatradicional do Nazareno.

Assim o compreendeu Renanque, no seu sentimentalismomístico e transcendental pôs aBíblia à prova para dela arrancaruma biografia fantástica de Je-sus, que é um verdadeiro roman-ce, e ainda que ele tenha fugidoda teologia, restituindo Cristo àhumanidade, no fundo não fazmais do que prolongar a vida docristianismo.

De sorte que, em vez da exco-munhão e do vitupério dos cren-tes, merecia ser colocado entreos Padres da Igreja. O sobrena-tural e divino, que na Bíblia ro-deia Jesus em meio dos milagrese que atualmente se reduzem anada assim como Cristo e oCristianismo, foram restituídos aCristo pelo grande professor daSourbonne, fazendo dele um

personagem real e histórico, deuma grandeza sobre-humana.

Para Renan, Cristo não é já oDeus que desce à terra para sefazer homem, mas simplesmenteum homem que da terra sobe aocéu para se endeusar. Em cadapassagem do seu romance, apa-rece esta metamorfose do ho-mem em Deus. As suas própriaspalavras - chamado por Deus -indicam claramente.

Se Cristo, segundo Renan, al-cança o ideal da humanidade,que importa que seja a conse-quência direta de Deus, à manei-ra de uma encarnação, ou queseja um enviado extraordináriode Deus, um homem tão elevadoque até do céu abre as suas por-tas à humanidade ?

Com as concepções dos teólo-gos, Cristo-Deus não podia vivernem reinar nesta idade positiva,mas Renan fez mais e melhorque todos eles: tentou salvarCristo como homem. Mas salvaro homem, e um homem de talnatureza, era salvar cristianismo,era personalizar a adoração daHumanidade por um homem ide-al, era manter o culto da humani-dade pelo Cristo, quer descendodo céu à terra, quer subindo daterra ao céu .

“Fazer do Cristo um sábio,fora de todas as proporções que

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a história fornece, não será isso,de algum modo, substituir ummilagre por outro?54”

Camilie Mauclair, em umacorrespondência de Paris para ojornal italiano Avanti, em 7 desetembro de 1903, escrevia o se-guinte, que confirma a nossatese: “Renan intentou prestar àIgreja um serviço capital. Creioque o teria pensado de antemão,e só pela estupidez crassa damesma Igreja, esse serviço nãofoi agradecido ao escritor.

Não considero a Vida de Je-sus, de Renan, uma obra perfei-ta. Creio mesmo que não é gran-de coisa. Mas, seja corno for, éimpossível concluir pela não re-velação, e portanto, pela não di-vindade de um homem sublime.

Qual foi, de resto, o intentodo escritor? Destruir o dogma, écerto, mas conservar a moralevangélica, que ele consideravaa melhor e a mais conforme coma evolução social de um séculoem que a ciência, segundo a ex-pressão do seu amigo Berthelot,aspira à direção material e mo-ral da sociedade.

Qual era o serviço que Renanpretendia prestar à Igreja Cató-lica? Convencê-la de que deviaabandonar o dogma divino, con-

54Vacherot, A Religião, pag. 100.

siderando-o um simples simbo-lismo, e separar os Testamentos,conservando só a moral cristã,para não andar mais em choqueconstantes com o espírito cientí-fico, apresentando-se, no mun-do, como sendo a depositária deuma moral de justiça.

Não se tratava de um suicídioda Igreja, nem de urna negaçãopública da revelação que equi-valesse a uma bancarrota. Tra-tava-se apenas de uma transfor-mação hábil, que permitiria aIgreja o esquivar-se a um confli-to direto com, a ciência.

Para esta inteligente transfor-mação, Renan apresentava afórmula conveniente, com a suafina inteligência, astuta e insi-nuante. Estava embebido do ca-tolicismo e era um conciliador,infinitamente diplomático entreo dogma e a crítica.

Certamente, Renan esperavaque a Igreja aceitasse esta solu-ção elegante do problema de an-tinomia entre a ciência e a Fé.Toda a vida deplorou que não oquisessem compreender.

Se a Igreja a tivesse o aceito,teria adquirido uma força enor-me. Teria podido conservar assuas cerimônias, com um sorri-so significativo, como quem lhesnão desse senão o mero valorhistórico e alegórico.

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Teria podido aceitar a ciênciae ficar com a moral publica.. E,assim, que grandeza para a mo-ral de Cristo, de quem os mo-dernos anarquistas se dizemcontinuadores, se se tivesse ad-mitido realmente o seu martíriode homem, desembaraçando ocatolicismo de toda o estorvo ju-daico do Antigo Testamento e detoda a insustentável metafísicados livros sagrados.

A Igreja inimiga de Cristo, aIgreja politiqueira não com-preendeu a ocasião que Renanlhe oferecia. No seu empenho derepelir todos os escritores quepodiam servi-la com fé e enge-nhosidade como Lammenais,Vil-liers de l'Isle-Adam, ErnestoHello, Barbey d'Eurevilly e Ver-laine, a Igreja repeliu tambémRenan. Preferiu as banais ima-gens policrômicas às obras pri-mas da arte religiosa.

A Vida de Jesus colocava-aem um dilema difícil, em urnaescabrosa encruzilhada: a Igre-ja negou-se a caminhar pelasenda do futuro encerrando-seno dogmatismo. Perdeu, assim,o último ensejo que teve de semodernizar.

E. Gustave Tery, no Ação, de6 de agosto de 1903, depois decitar várias passagens de Renannas quais ele demonstra sua

grande veneração por Jesus, dis-se o seguinte: Para dizer a ver-dade, se a Igreja não tivesse co-metido a imprudência de protes-tar com uma indignação ultra-jante, e este foi um erro fatal, apiedosa exegese de Renan pode-ria servir prodigiosamente aosinteresses do cristianismo. O ve-tusto poeta soube polir a velhaimagem do Nazareno, escureci-da e manchada por dezoito sé-culos de ignorância, erros ementiras, além de livrá-la dosritos e catecismos, das fórmulase teologia. Ele lavou Jesus dasinjúrias e sujeiras católicas; Enum lance genial, fez o homemsem diminui-lo, uma vez que jáo tinha engrandecido como entesobrenatural. Ao escrever AVida de Jesus Renan devol-veu-lhe a vida e o fez desceruma segunda vez sobre terra ...

O protestantismo liberal, quepretendeu seguir o mesmo cami-nho, não faz obra de destruição,mas sim de conservação religio-sa.

Faz o mesmo que o aeronauta,quando arroja o lastro da nacelapara que esta não caia e o arrasteem sua queda.

Só que esses salvadores doCristo Homem não estão deacordo com a lógica, nem com averdade histórica,.

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Não estão com a lógica por-que, como justamente observaVacherot, a ultima fórmula àqual se agarrou o protestantismoliberal, e nós acrescentaremos oracionalismo espiritualista, é asupressão da personalidade his-tórica de Cristo e de tudo quantodele se conhece, porque é a úni-ca que não pode ser demonstradanem pela filosofia, nem pela crí-tica moderna55.

Não estão de acordo com averdade histórica, porque o Cris-to da Bíblia, de toda a Bíblia, éuma pessoa inteiramente sobre-natural.

O próprio Strauss, o maiordos críticos desta escola, vê-seobrigado a reconhecer que, a in-trusão do princípio sobrenaturale a concepção dogmática doCristo tornam impossível umabiografia de Jesus. Procurou eli-minar todo o sobrenatural davida de Jesus, sacrificando oCristo dogmático para salvar oCristo histórico, partindo doconceito de que, se os antigosencontraram digno do homemnão considerar como estranho àhumanidade tudo quanto é hu-mano, a divisa dos modernosdeve ser eliminar como estranhotudo o que não é humano e natu-ral.55 Obr. cit., pp. 382-383.

Não repetiu o erro de quebrara cabeça e violentar o bom sensopara explicar racionalmente osmilagres de Cristo, irremediavel-mente condenados pela ciência,limitando-se simplesmente a eli-miná-los da parte histórica, con-siderando-os como mitos justa-postos, não contrários, porém, àpessoa histórica de Cristo, paraconservar, este à humanidade e àhistória.

Isto, porém, era faltar aberta-mente à logica e à verdade histó-rica, como o próprio Straussconfessa, sem disso dar conta, aodeixar escapar da sua escrita es-tas palavras, que dizem mais doque um livro inteiro: - Sob esteponto de vista, pode se dizer quea ideia de uma Vida ou de umaBiografia de Jesus foi a fatali-dade de toda a teologia moder-na. Esta continha em gérmentodo o destino e a contradiçãoque lhe pressagiava o resultadonegativo. Ela era a ratoeira emque a teologia do nosso tempotinha necessariamente de cair eperder-se56.

Esta fatalidade da teologia -devida, como vimos, à preocupa-ção de salvar o cristianismo, àqual ele mesmo se mostrou obe-diente, não o salvou da contradi-ção e do resultado negativo. Ain-56 Op.cit., tom. I, p. 4.

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da que a única base para falar deCristo esteja nos Evangelhos eestes, além de serem uma basesuspeita por emanarem da fé,quando não das imposturas sa-cerdotais, nos representam Cris-to apenas como pessoa sobrena-tural.

Além disso, se vão despojarparte do Evangelho do seu cará-ter histórico para o converter empuro mito, porque não aplicar eestender então o mesmo critérioà interpretação de todo o livro?

Como distinguir o que deve setomar ao pé da letra, do quedeve ser tomado no sentido figu-rado?

O real, nesse caso, torna-se in-sustentável, e o livro perde todoo seu valor histórico57 porque,quem quer raciocinar sem pre-conceitos e de boa fé vê-se obri-gado a reconhecer que os Evan-gelhos só nos mostram Cristopelo sobrenatural. E, em Cristo,tudo é sobrenatural: milagres epotência milagrosa, a sua própriapessoa, a sua missão e ainda anatureza e o propósito dos livrosque dele falam.

Os Evangelhos sinópticos e oquarto Evangelho não são de na-tureza diferente senão no seugrau maior ou menor. Se nos si-57 Mirou, Jesus Reduzido Ao Seu JustoValor, pag. 233.

nópticos está mais afirmado oelemento humano de Cristo, esteelemento não é menos fabulosodo que os seus milagres porquenão se referem a um homem de-terminado mas ao Redentor, aum determinado Redentor. Apessoa de Cristo, nos primeiros,é a mesma que nos dão os livroshindus sagrados falando deCristna e de Buda, os persas deMitra, os egípcios de Horus emais tarde de Serápis.

Há sempre, em todos eles, umRedentor.

A única diferença entre osEvangelhos sinópticos e o deJoão está em que a concepção deCristo nos três primeiros é umacópia mais genuína dos DeusesRedentores das religiões orien-tais, onde o elemento antropo-morfo é mais engenhoso, en-quanto que o quarto Evangelhose ressente da influência dogmá-tica e metafísica do helenismo,antes do neoplatonismo alexan-drino.

Mas, tanto nos sinópticos cor-no em João, Cristo é sobrenatu-ral, não já por seus milagres,mas também pela sua mesma es-sência.

Assim como Cristo, tambémMaria, sua mãe é sobrenatural eestá, portanto, fora da Humani-dade, pois o concebeu de modo

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milagroso e o deu à luz, ficandosempre virgem. Têm querido vernos dogmas, relativos à mariola-tria, superstições católicas. E defato, assim é.

O catolicismo - dizemos deuma vez para sempre - não fezmais do que desenvolver logica-mente o Cristianismo, inclusos,claro está, os autos de fé. A vir-gindade de Maria não é tão es-tranha ao cristianismo como asua concepção milagrosa.

Maria é a mãe de um Deus, ea mãe de um Deus não pode sermanchada com as fraquezas danatureza humana. Não podia,portanto, ficar grávida de Cristo,por obra de um homem, assimcomo não podia morrer. As ou-tras virgens, mães dos DeusesRedentores, tinham-na já prece-dido e prefigurado. O sobrenatu-ralismo de Maria confirma, porsua vez, o sobrenaturalismo doCristo.

Todos os Evangelhos dão aconhecer um Cristo, e esse Cris-to é um Deus, mais antropomor-fo nos sinópticos, menos antro-pomorfo em João.

Não é licito escolher dosEvangelhos apenas a parte mila-grosa, para reduzir à sua mais ín-fima expressão a parte que con-tém os elementos humanos e bi-ográficos.

Não! Em Cristo nada há dehumano, excetuando o seu antro-pomorfismo, que não é própriodele mas de todos os Deuses Re-dentores.

Em todos os Evangelhos,Cristo não só faz milagres, masele próprio é um milagre.

Nasce por milagre e morrepara poder realizar o último mi-lagre, ressuscitando.

Veio ao mundo para salvar oshomens: a sua missão é sobrena-tural. Assim, e não de outra ma-neira, falam de Jesus os Evange-lhos. Estes não só se não pres-tam à biografia, como reconheceStrauss, mas nem sequer à elimi-nação do elemento sobrenatural,que cerca a divina pessoa deCristo.

Cristo não é uma pessoa indi-vidual; é uma encarnação divina.Todos os seus feitos são dogmá-ticos. Todas as suas palavras ti-nham já sido escritas antes deleas pronunciar. Não podemos ex-plicar humanamente o sobrena-tural dos Evangelhos, coisa ab-solutamente impossível, nem eli-miná-lo, coisa não menos impos-sível, sem eliminar os própriosEvangelhos, o próprio Cristo eaté o cristianismo.

Limitar-nos-emos, apenas, areconhecer a existência deste so-

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brenatural, inseparável da pessoado Redentor.

Isto basta para a nossa tese.Cristo pertence ao céu. E ao

céu o restituímos.Se Cristo, porém, é pessoa ab-

solutamente sobrenatural, se éDeus, claro está que não é, nãofoi, nem pode ser homem, evi-dentemente.

Não nos ocuparemos, pois,dos seus milagres, nem sequerpara os enviar à mitologia.

Faremos alguma coisa maisdo que até agora se tem feito:de-monstraremos que nada de hu-mano se pode referir a Cristo.

E demonstrá-lo-emos com, aprópria Bíblia na mão.

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CAPÍTULO IIIA PRÓPRIA BÍBLIA FALA DE CRISTO APENAS SIMBOLICAMENTE

O que deveria ter aberto osolhosaos mais precavidos, e de-monstrar a todo o mundo a enor-me mistificação de que a huma-nidade tem sido vítima, durantevinte séculos, julgando que Cris-to realmente existiu, é a lingua-gem que emprega a Bíblia, fa-lando do seu protagonista.

A Bíblia, esta Bíblia, que é oúnico livro que fala de Cristo,pode pretender fazer-nos crerque Jesus tenha existido comohomem, nem mais nem menosque os demais homens? De ne-nhum modo!

A vida, o pensamento, a ação,a palavra, a doutrina de Cristo,não existem sequer nos Evange-lhos, a não ser enquanto são pre-ditos pelos profetas, previstospelo Antigo Testamento e prega-dos pela lei antiga.

Nem um gesto, nem um dito,nem um fato de Cristo se narranos Evangelhos, que não estejamem relação com a Escritura.

De maneira que as própriaspalavras dos Evangelhos o di-zem, com uma ingenuidade ex-tremamente infantil que Cristofez isto porque tal profeta o pre-disse; Cristo fez aquilo para que

se cumprisse a Escritura.A começar pelo seu nascimen-

to milagroso. Os Evangelhos di-zem-nos que tal acontecimentoteve lugar em virtude das pala-vras do profeta (Mat. I, 22).

Se nasce em Belém, é porqueestá também escrito pelo profeta(Mat. II, 5).

Se foge para o Egito, é porquese cumprem as palavras do pro-feta: Chamei meu filho para oEgito. (Mat. II, 14).

Se Herodes ordena a degola-ção dos inocentes, é para que secumpram as palavras do profetaJeremias (Mat. II, 17).

Se volta à Galileia e vive emNazaré, é para que se cumpramas profecias, segundo as quaisdevia chamar-se Nazareno:(Mat. II, 23).

Se Jesus encontra em seu ca-minho a João Batista, é porque oprofeta Isaías o havia predito.(Mat. III, 3).

Se o diabo o tenta, e se Jesusvence a tentação, é porque as Es-crituras o haviam predito. Domesmo modo, o diálogo entreSatanás e Cristo se funda naspróprias palavras dos livros do

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Antigo Testamento (Mat. IV, I-10).

Se Jesus vai a Cafarnaum, épara cumprir uma profecia deIsaías (Mat. IV, 14).

Se prega que não façamos aosoutros o que não queremos quenos façam , é porque assim estaescrito na lei e nos profetas(Mat. IV, 12).

Se cura os endemoninhados, éem cumprimento do que lhe dizo profeta Isaías (Mat. VII, 17).

Se fala de João Batista, é paradizer que é aquele de quem estáescrito: É Elias que devia vir(Mat. XI, 10, 14) .

Se cura as multidões e lhesproíbe que o divulguem, cum-pre-se o que predisse o profetaIsaías (Mat. XII, 17).

Se tem de permanecer sepul-tado três dias, é porque Jonasesteve três dias no ventre da ba-leia (Mat. XII, 40).

Se fala em forma de parábolaspara não ser compreendido,cumpre-se a profecia de Isaías(Mat. XIII, 14).

Se manda buscar um jumentoe um jumentinho, fá-lo paracumprir o que lhe, diz o profeta(Mat. XXI, 4).

Quando Jesus está a ponto deser preso no horto de Getsemani,recusa-se a que o defendam, di-

zendo: Como poderiam cumprir-se as Escrituras, que dizem serconveniente que assim suceda?(Mat. XXVI, 54).

Jesus diz que não foi preso pe-las multidões quando se sentavajunto delas para ensinar no tem-plo, a fim de se cumprirem asEscrituras (Mat. XXVI, 56).

Se Judas o atraiçoa e recebeem paga trinta dinheiros, é paraque se cumpra o que disse oprofeta (Mat. XXVII, 9).

Se, após crucificado, os solda-dos dividem a túnica, isso suce-de em cumprimento do que pre-dissera o profeta (Mat. XXVII,35).

Se manda comprar uma espa-da, é para que se cumpra tam-bém a profecia, segundo a qualseria confundido com os malfei-tores (Luc. XXII, 36, 37).

Cingindo-nos aos seus Após-tolos, Jesus demonstra que tudoo que lhe sucede é por que con-vém que todas as coisas escritasacerca dele na lei de Moisés, nosProfetas e nos Salmos sejamcumpridas. E acrescenta: Comotambém era mister que o Cristopadecesse e ressuscitasse dentreos mortos ao terceiro dia. (Luc.XXIV, 44, 46) .

Até na Cruz, se Jesus pede debeber, é para que se cumpra a

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Escritura (João. XIX, 27) .E, bebido que foi o vinagre,

disse: Tudo se cumpriu. E só en-tão, quando viu que nele se ti-nha realizado a Escritura, incli-nou a cabeça e entregou o espí-rito (João. XIX, 30).

Enfim, se não lhe quebram aspernas na mesma cruz, e se lheabrem o peito com a lança, é,disse João, em cumprimento daEscritura (João. XIX, 32 – 37).

E basta de exemplos, que nãosão os únicos em que os Evange-lhos obrigam a fazer e dizer aCristo apenas o que estava escri-to no Antigo Testamento.

Mais adiante, demonstraremosque tudo é símbolo em Cristo,ainda mesmo que os Evangelhoso não digam explicitamente, eainda que não citem as respecti-vas passagens do Antigo Testa-mento, e que não veio ao mundoe não procedeu senão para exe-cutar o plano teológico precon-cebido no Antigo Testamento.

Neste ponto da nossa obra,apenas quisemos deduzir da lin-guagem dos Evangelistas a con-fissão de uma circunstância ca-pitalíssima: Cristo não disse nemfoi ele próprio mais do que aqui-lo mesmo que Escritura ordenouque fosse e que fizesse.

Não nos dirá nada esta cir-

cunstância essencialíssima ?Não significará isto, clara-

mente, que Cristo nunca existiu,tendo-o inventado os Evange-lhos para cumprimento das Es-crituras?

Pode-se volver e revolver aquestão, mas a única conclusãoplausível a que se chega é a quenós acabamos de indicar.

Despojai Cristo da sua reali-dade histórica, e tereis explicadaa questão das profecias: deixai-asubsistente, e a questão das pro-fecias será humanamente insolú-vel.

Pois bem: como hoje é sim-plesmente absurdo pensar quepossam existir profetas e profe-cias e que possam realizar-seponto por ponto, minuciosamen-te e a distância como devia terocorrido com Cristo, havemosde concluir que: ou as profeciasforam inventadas, ou Cristo foiinventado para o relacionaremcom as profecias.

Estando a primeira hipótesedesmentida pela história e pelacircunstância indeclinável deque, em tal caso, as profecias e asua realização não tivessem dei-xado nada a desejar, resta-nossomente a segunda, a de queCristo foi inventado para a reali-zação em si das profecias, hipó-

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tese que resolve toda a dificulda-de inerente a tal assunto, porquenos fornece a chave para expli-car o fato de tantas profecias se-rem sofísticas a fim de poderemaplicar-se a Jesus, pois não esta-vam devidamente relacionadaspara se conciliarem numa sópessoa.

A mesma hipótese explica ofato, que tantos trabalhos custouaos críticos, das faltas e inexati-dões de não poucas profecias,cuja realização os Evangelhosanunciaram pois pode acontecerque existissem ao princípio elogo fossem extraviadas nas nu-merosas vicissitudes da Bíblia,ou antes fossem alteradas de-pois. Fora disso, bastaria quehouvesse sido essa a crença dosevangelistas, quer dizer, que ti-vessem acreditado que as referi-das profecias, imaginárias ouexatas, existiram e foram talqual eles pensavam, para justifi-car o seu trabalho de adaptação aCristo de tão decantadas profeci-as.

Esta solução elimina tambémradicalmente uma série de outrosabsurdos encontrados na Bíblia,devido a este plano armado paraaplicar Cristo às profecias, por-que demonstra que a causa detantas discordâncias e de tantoscontrassensos se fundamenta no

fato dos evangelistas, preocupa-dos em escrever acerca de umCristo imaginário, estudarem so-mente a forma de o pôr em har-monia com as exigências dog-máticas do assunto, descuidandode adaptá-lo à circunstância danarração e do meio ambiente.

Os positivistas e os racionalis-tas, não podendo aceitar a pre-tensão teológica de que Cristofosse Deus, e que, portanto, asua vida tivesse sido profetizadapor homens inspirados pela von-tade divina, mas, não chegando anegar a existência humana deCristo, esbarravam ainda com oinsuperável obstáculo de expli-car esse Jesus-Homem, sem oconcurso das causas sobrenatu-rais que negavam. Ante este pro-blema tão heterogêneo, tiveramde submeter os seus neurônios averdadeiras torturas, como acon-teceu com Míron, ou de realizarum tours de force, como aconte-ceu com Larroque, ou ainda deserem ilógicos, como aconteceucom Salvador, Strauss e Havet,explicando complicadamenteuma parte do problema sob oponto de vista da concepçãosimbólica e dogmática, e aban-donando a outra ao caos em quese envolveu a pessoa humana deCristo.

Não se atrevendo a saltar o60

fosso, caíram nos contrassensosda própria Bíblia ao passar da te-ologia para o naturalismo,.

Por exemplo: Renan vê nasprofecias de Isaías um raio doolhar de Jesus58 e pensa que estese julgava o espelho no qualtodo o espírito profético de Isra-el tinha lido o futuro59. Só emum ponto adverte que nas últi-mas palavras de Jesus se nota aintenção de manifestar clara-mente o cumprimento das profe-cias60.

Nem vale a pena discutir a hi-pótese de que Cristo acomodassea sua própria vida às prédicas ese exaltasse a ponto de realizar oprofetismo hebraico. Não sóconcorre contra semelhante hi-pótese o fato, já por outros nota-do, de que, para proceder assim,Cristo deveria ter vivido com oAntigo Testamento na mão, mastambém a circunstância da suaadaptação às profecias começarcom o seu nascimento e não aca-bar senão com a sua morte.

Fica excluído completamenteneste caso, qualquer fenômenode autossugestão, tanto mais quese trata de uma vida em absolutomilagrosa, o que nunca deverá

58Vita di Gesù , vol. I, c. IV, trad. it. diDe Boni, Milano, Daelli, 1863. 59 Id., vol. I, c. XVI. 60 Id., vol. IV, c. XXV.

se esquecer. Salvador combate a opinião

dos filósofos, que fazem de Cris-to um reformador religioso e so-cial, dizendo que, para que estaopinião fosse fundada, seria pre-ciso que a sua morte fosse uniaconsequência involuntário e qua-se acidental dos seus esforços,enquanto que esta formava, pelocontrário, o seu princípio e o seufim confessados, os quais eleprocurava com ardor, em um in-teresse dogmático e místico.

Salvador esteve aqui verda-deiramente inspirado e poderiater conhecido toda a verdade senão perdesse o caminho que se-guia, terminando no lugar co-mum de que a vontade de mor-rer, firme em Cristo, provinha deuma ordem de convicções e deum entusiasmo conforme com asideias da sua época e com a in-terpretação oriental dos livrossagrados dos hebreus.

Já vimos contra que obstácu-los vão bater este lugar comum.Mas permanece de pé a preciosaconfissão de Salvador, que segueimediatamente, depois da passa-gem citada, e onde diz que, anão ser pela morte que deseja-va, nada ficaria de Cristo, por-que nem os seus dogmas nem asua moral são frutos da sua ins-piração.

61

Não há termo médio: ou acei-tamos a revelação, em conjunto,ou repelimos a natureza humanado Cristo, entregando-o inteira-mente à teologia. Esta está noseu papel, quando diz que asprofecias provam a existência deCristo, o qual se converte, emvirtude desta afirmativa, em umapersonificação mais ou menoscompleta daquelas.

Assim o compreendeu Scherersem que por isso chegasse à con-sequência lógica que o fatosupõe, quando escreve que Jesusnem é um filósofo, nem o funda-dor de uma nova religião, massim o Messias; que a chave davida de Jesus é o cumprimentodas profecias messiânicas; e queesta ideia messiânica é o centrodos fatos evangélicos, a razãode ser histórica de Jesus61.

Cristo, portanto, não veio aomundo senão para cumprir asprofecias, e, como isto não éuma ação humana, equivale a di-zer que Cristo veio ao mundoapenas como um símbolo, isto é,que Cristo nunca existiu.

Hoje não precisamos mais ne-gar que o Antigo Testamento re-vela o Cristo. O sobrenatural jános não preocupa.

61Mélanges d'histoire religieuse. La viede Jésus, pp. 99 e seg. (in Vacherot, LaReligion ).

Este testemunho da missão deCristo com relação às profecias éa própria razão de ser de Cristopois, caso contrário, este já nãoseria o Messias que os crentespretendem, por não corresponderexatamente aos vaticínios.

Realmente, esta maneira deser de Jesus - assim o diz Dide,com exata ponderação dos tex-tos, ainda que não chegue a con-sequências lógicas - torna o mes-mo Jesus e os seus apóstolos in-diferentes á Humanidade.

Quando lemos com imparcialatenção o Novo Testamento, nãopodemos deixar de reconhecerque o sistema narrativo dos es-critores apostólicos exclui todo ointeresse e toda a emoção. Avida de Jesus e as aventuras dosApóstolos desenrolam-se comose fossem uma cena teatral, emque tudo está apontado, previstoe indicado, antecipadamente.Não é a Humanidade vivendo,pensando, sofrendo, agitando-se.

Se Cristo e os seus realizamisto ou aquilo, executam este ouaquele ato, é porque era precisoque se cumprisse esta ou aquelaprofecia62.

Por isso, temos de escolher,definitivamente: Ou Cristo exis-tiu, e então é Deus, ou não é62A. Dide, La fin des religions, p. 370,Paris, Flammarion, 1902

62

Deus, e então nunca existiu, por-que o Cristo da Bíblia é o únicoCristo conhecido, e porque naprópria Bíblia ele não é mais doque um personagem sobrenaturale simbólico. Impõe-nos a lógicaque o aceitemos tal qual ele é naBíblia, isto é, como Deus, a nãoser que se ponha de parte, semmais considerações, a sua pre-tendida realidade histórica, daqual não se escapa.

Quando se reconhece que Je-sus era o Messias e que não temnenhum outro caráter, não sepode humanizá-lo conservando ahumanidade e deixando que a di-vindade se volatilize: um Messi-as profetizado e um Deus Re-dentor não é e não pode ser umhomem.

Não é licito dividir-lhe a suanatureza em divina e humana ereduzir à expressão mais simplesa sua figura humana para o sal-var do exílio a que os Deuses,hoje mais do que nunca, estãoconfinados, segundo afirmou ogrande profetizador de Epicuro.Do contrário, violentaríamos obom senso, atentando contra ele,e atormentaríamos nossa mentesem resultado algum, por maiorque fosse o valor de quem tal fi-zesse, como sucedeu comStrauss. E nós, atacando cadavez de mais perto os Evange-

lhos, em breve veremos que, donaufrágio de Cristo nada de hu-mano pôde se salvar. Veremosque não é possível escrever a bi-ografia de Cristo, que ele nãopode ter biografia, já que nãoteve existência humana. É claroque não seguiremos passo a pas-so a narração bíblica e nem a li-nha dos doutos especialistas namatéria.

Reuniremos alguns dos ele-mentos essenciais que concor-rem para que qualquer existênciahumana seja real e vital, elemen-tos esses que faltam a Cristo demodo tão contraditório e absurdoque excluem toda a possibilidadede ter existido um homem emtais condições pela contradiçãoque não o permite.

No entanto, completaremos ademonstração de que Cristo estána Bíblia, apesar desta o não di-zer explicitamente, apenas comosendo um personagem puramen-te e completamente simbólico,elaborado com os dados submi-nistrados pelo Antigo Testamen-to: verdadeiro ídolo, combinaçãode materiais preexistentes nastradições e nos textos religiososdo hebraísmo, modificado e ali-mentado com a concepção mito-lógica do Oriente como se foraum mosaico.

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CAPÍTULO IVCRISTO É UM MITO ADAPTADO DAS ALEGORIAS DO ANTIGO

TESTAMENTO

Do exame bíblico que em-preendemos, resultará que Cristoé um mito, como já resulta, im-plicitamente, a demonstração deque é estranho à história. Esteresultado, porém, mais evidentese torna na parte que consagrare-mos à mitologia. Aqui em plenocampo bíblico, provaremos queo mito Cristo foi adaptado, maisou menos felizmente, das alego-rias do Antigo Testamento.

O próprio Evangelho, comoacabamos de ver no capítulo pre-cedente, oferece-nos, a esse res-peito, uma prova evidente, coma linguagem simbólica que em-prega para pôr em relação as pa-lavras e os feitos de Cristo como Antigo Testamento.

Vamos ver agora que, mesmoque os Evangelhos não digamcom toda a clareza, nada há ne-les, e portanto em Cristo, quenão seja decalcado do AntigoTestamento.

Até a denominação de Evan-gelhos é tirada de lá, precisa-mente de uma palavra do profetaIsaías, traduzida em grego63. Asua significação de boa nova é

63Salvador, op. cit., lib. II.

também simbólica, porque aludeà realização das esperanças doIsrael.

O numero dos livros do NovoTestamento, junto ao dos livrosdo Antigo forma segundo afirmaseriamente Cantu, sem atentar àconsequência, o número místicode setenta e dois64.

Jesus nasce de uma virgem,porque este caso se encontra jáem Isaías (VII, 14), e é prenunci-ado por Isaac, José e Sansão. Oanjo Gabriel é já conhecido noAntigo Testamento.

Cristo nasce em Belém, por-que isso foi profetizado por Mi-queias (V, 2) em virtude de tersido aquela terra o berço deDavi.

As genealogias atribuídas aJesus são inteiramente simbóli-cas. Não reproduziremos aqui ademonstração de Strauss, maspara ela remetemos os leitoresque queiram se informar. (NovaVida de Jesus, vol. II, pag. 8 eseg.).

O anjo, que aparece aos pasto-res, anunciando-lhes o nasci-mento do Salvador é tirado de64 C. Cantu Hist. Univ. Ep. VI, cap. 33.

64

Isaías (IX, 2 e VII, 14).A divina sabedoria, o Verbo

divino que se encarna em Jesus,encontra-se nos Provérbios e emSiraco. As próprias palavras dosEvangelhos são tiradas destes li-vros do Antigo Testamento(Strauss, obr. cit. II. 53 e seg.)

A estrela, que dirige os ReisMagos, vindos para adorar Je-sus, corresponde à estrela alegó-rica, mencionada nos livros deMoisés (Num. XXIV, 17.)

Os Reis ou Magos que vêm daÁsia, trazendo ouro e incenso, aglorificar o Eterno, encon-tram-se também em Isaías (LX,1-6).

A degolação dos inocentes,absolutamente fantástica, foiimaginada para justificar a fugada Sagrada Família para o Egito,lendo-se no profeta Oseias que omenino Jesus devia ser chamadopor Deus ao Egito (XI-1) e poroutro lado, a fim de que se veri-ficasse a profecia de Jeremiassobre o pranto de Raquel, peloassassínio de seus filhos (Jer.XXX11-15, 16, 4, 10, 28).

A presença de Jesus no tem-plo, a cena de Simeão e Ana e acircuncisão têm por objeto de-monstrar o cumprimento das leisde Jeová em Cristo e a profeciade Simeão, segundo a qual a

oposição dos hebreus contraCristo fazia parte do plano divi-no (Strauss, ob. cit. 84, 85): Je-sus de volta do Egito, habitouem Nazaré, para que pudessechamar-se o Nazareno, conformetinham vaticinado os profetas.

A cena do menino Jesus, dis-putando no templo com os dou-tores, foi criada por analogiacom Moisés e Samuel, assimcomo o restante da adolescênciade Jesus. A propósito das pala-vras deste a sua mãe, ditadaspelo coração, Strauss observaoutra reminiscência do AntigoTestamento, como a do cap. II, v.19 de Lucas; o mesmo fizera Ja-cob com José (Strauss, obr. cit.Pag. 90 e seg.).

João Batista foi criado segun-do as profecias de Malaquias(III,1,5, 18 e IV, 2, 5) e de Isaías(XL, 1,10, 27, 31 e XLI, 1).

A anunciação e o nascimentodo precursor, João Batista, foicopiado do Antigo Testamento(Strauss, obr. cit. vol. II pag. 43).

A natureza simbólica de Cris-to provém também de João Ba-tista, que o apresenta como umcordeiro que assume os pecadosdo mundo65 e afirma que Jesus,vindo depois dele, existia já an-tes dele (João, I, 29, 26, 15, 30).

65Isaia LIII, 4 e seg. 65

Já vimos que a história dastentações de Jesus remete expli-citamente ao Antigo Testamento.Também o número de dias (40),que Jesus passou no deserto eratradicional e sagrado entre os he-breus. Assim: o dilúvio durou 40dias; empregaram-se 40 diaspara embalsamar o corpo de Ja-cob; Moisés viveu 40 anos nacorte de Faraó, 40 anos no deser-to de Madian e 40 anos gover-nou o povo de Israel; os ninivi-tas jejuaram 40 dias e os hebreusandaram 40 anos errantes no de-serto; Moisés e Elias tinham je-juado 40 dias. Além disso, Eliastinha viajado pelo espaço e o Es-pírito transportara Ezequiel deum ponto para outro. Temos,portanto, que à maneira deles,obrigaram Jesus a jejuar 40 dias;como a Abraão, fizeram-no ten-tar no deserto e, como a Elias e aEzequiel, obrigaram-no a andarpelo espaço.

Abandonado Jesus em Naza-ré, ei-lo que parte para Cafar-naum, a fim de cumprir o anun-ciado pelo profeta (Mat. IV, 13,14) e (Luc. IV, 23, 31).

Cafarnaum ficava na Galileia,cuja região o evangelista descre-ve com as mesmas palavras doprofeta Isaías: Como um paísque jazia nas trevas (Mat. IV,16).

Quando os Evangelistas nosdizem que Jesus escolheu dozeapóstolos não fazem mais do quecumprir à risca o consignado nolivro dos Números (I, 4,16), cor-respondendo os doze apóstolosàs cabeças das doze tribos.

E quando atribuem aos dozeapóstolos outros 72 discípulos,não fazem senão copiar a sele-ção de 72 homens, feita porMoisés entre os anciãos dopovo.

O modo por que os apóstolosseguem Jesus imediatamente esem o conhecerem é por demaissimbólico, e a sua significaçãoexplica-se desde logo. O mesmonumero de 153 peixes, tiradosmilagrosamente da água pelosapóstolos, pode entender-se, se-gundo S. Jerônimo, em relaçãocom as 153 espécies de peixesque então conhecidas, e signifi-ca, segundo este padre da Igreja,que todas as classes de homenssão pescados para a sua salva-ção66.

O nome de Pedro, dado aochefe dos Apóstolos, simboliza-va no hebraísmo a fé inabalávele indestrutível, tanto que Moiséshavia feito da pedra o sinal ale-górico de Jeová67.66Com. in Ezequiel, 47. 67Deut. XXXII, 4, 15, 18, 30, 31. Samu-el e II Reis XXII, 2, 3; XXIII, 3.

66

A mesma ideia simbólica, re-presentada pelas chaves confia-das ao chefe dos Apóstolos, seencontra no Antigo Testamen-to68.

Finalmente, a companhia depessoas de má fama que rodeiamJesus para escândalo dos Escri-bas e Fariseus, (Marc. II, 16) foicopiada da figura de Davi que ti-nha se colocado à frente de umaturba de 400 desgraçados (IReis, cap. XXII, 2).

Os milagres de Cristo fazemparte do programa profético:Então, serão abertos os olhosaos cegos e abertos os ouvidosdos surdo. Então, o coxo69 salta-rá como um cervo e a língua dosmudos cantará70.

É verdade que em Isaías nãofiguram as narrações dos lepro-sos nem as ressurreições dosmortos, mas esses dois gênerosde milagres acham-se nas lendasdos profetas. Eliseu curara umleproso, e junto com Elias, res-

68 .. “et dabo clavem domus David superhumerum ejus: et aperiet et non erit quiclaudiat, et claudet, et non erit qui aperi-et” (Isaia XXII, 22). Porei sobre o seuombro a chave da casa de Davi; ele aabrirá e ninguém a fechará, ele a fe-chará e ninguém a abrirá. 69A figura dos coxos que saltam, repete-se literalmente nos Atos dos Apóstolos(III, 7 e seg.)70Isaia XXXV, 5 ss.

suscitam um morto cada um71. Omesmo Jesus cita a cura de Naa-mã, realizada por Eliseu (LucasIV, 27). A cura da mão dissecadaé tirada literalmente do AntigoTestamento (Livro 1 dos Reis,XIII, 4 e seg.).

A piscina de Betesda, que aHistória não conhece, com osseus cinco pórticos, simboliza oscinco livros de Moisés.

A cena do endemoninhadoque, não podendo ser curado pe-los Discípulos, melhora nasmãos de Jesus72, é igual a cenade Geazi, servo de Eliseu,73 quenão tinha sabido fazer voltar àvida o filho de Sumanita, ressus-citando-o o próprio Elias.

Em ambos estes casos, Straussfaz notar a diferença de poder,que existia entre os Discípulos eo Mestre.

A cura do filho do Centurião,realizada por Jesus à distância74,é parecida com a cura de Naamã,operada também de longe por

71 I dos Reis, XVII, 17; II dos Reis, IV,10 e seg. As palavras de Jesus após res-suscitar o rapaz de Nain, são reproduçãotextual do Antigo Testamento, quandoElias ressuscita o filho da viúva de Sa-reta.72Mat. XVII, 14-29; Mar. IX, 14-29;Luca XI, 37-43. 73II Re IV, 8 ss. 29-37. 74Mat. VIII, 5-13; Luca VII, 1-40; Giov.IV, 46-54.

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Eliseu: o Messias não podia serinferior em poder ao profeta doAntigo Testamento.

Jesus acalmando os ventos eas ondas é uma imitação de Jeo-vá ordenando ao Mar Vermelhoque se afaste para dar passagemao Povo Escolhido.

Melhor ainda: Hengstenbergachou uma outra figura idênticaà de Jesus que também acalma atempestade para salvar os Após-tolos que corriam perigo na suabarca. Trata-se do Salmo CVII(v. 25, 28-30). Jesus que cami-nha sobre as águas imita Jeová,que no Antigo Testamento estápoeticamente representado, via-jando sobre elas75. Pedro, quepretendendo andar sobre aságuas está prestes a se afogar,merecendo de Cristo o famoso -Homem de pouca fé, porque du-vidaste? - sendo por ele salvo,revela a mais perfeita semelhan-ça com outro episódio do AntigoTestamento onde se diz, na Epís-tola aos Hebreus (XI, 29), quese os israelitas passaram o MarVermelho, foi por terem fé, aopasso que os egípcios se afoga-ram.

O milagre da multiplicaçãodos pães e dos peixes é decalca-do igualmente sobre o Antigo75Isaia XLIII, 16; Salmos LXXVII, 20;Giob. IX, 8.

Testamento por uma parte, quan-do se refere ao maná que os he-breus recebem no deserto e poroutra, no que diz respeito aosmilagres, perfeitamente análo-gos, de Elias e de Eliseu76.

O milagre da transformaçãoda água em vinho tem seus pre-cedentes no Antigo Testamento:Moisés fizera brotar água da ro-cha e transformara em sanguetoda a água do Egito. Se em Je-sus a água se muda em vinho enão em sangue, é porque no An-tigo Testamento aquele é o sím-bolo deste e ainda do própriosangue expiatório do Messias.

A maldição da figueira quenão produzia frutos precoces étirada de Oséas77 e de Miqueias.

A cena da Samaritana, juntodo poço, é uma imitação poéticadas cenas de Jacó e Raquel, deEleazar e Rebeca na fonte.

Nem mesmo a cena dos ven-dilhões expulsos do templo éoriginal: Jesus não faz senãotransportar duas sentenças doAntigo Testamento, uma de Jere-mias (VII, 11) que diz que otemplo não se há de converterem covil de bandidos, e outra deIsaías (LVI, 7) em que se chamaao templo casa de oração.76Salmo CVII, 4-9; I Re XVII, 7 ss.; IIRe XXXVIII, 42-44. 77IX, 10.

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A cena da transfiguração é co-piada do Antigo Testamento.Moisés subira ao Monte Sinai,levando consigo, além dos 72anciãos, Aarão, Nadab e Abim;uma nuvem cobre a montanhadurante seis dias, e por fim, nosétimo, Jeová aparece em meioda nuvem e chama Moisés, aquem chegam os resplendores dadivina auréola. De volta da mon-tanha, encontra o povo adorandoo bezerro de ouro e encole-riza-se. Jesus sobe também auma montanha anônima emcompanhia de três pessoas, quesão por assim dizer, o comitê di-retor dos Apóstolos; lá torna- seresplandecente como Moisés; amesma nuvem luminosa entraem cena. Descendo do monte Je-sus encontra o jovem possesso,que os seus discípulos não pude-ram curar, e o seu primeiro senti-mento é de cólera pela impotên-cia contra o demônio.

Com Jesus no monte, compa-ram-se Moisés e Elias: o primei-ro para tornar mais evidente arelação que vai do primeiro aosegundo salvador; o segundo emvirtude da profecia de Malaqui-as, segundo a qual Elias deveriavoltar em pessoa antes do Messi-as, uma vez que a sua substitui-ção por João Batista deixariauma lacuna. .

Tanto no Sinai como na mon-tanha da transfiguração, quemfala é a nuvem; no Êxodo é omandato de Moisés; no Evange-lho, segundo o sentido modifica-do, é testemunho de Deus aosdiscípulos acerca de Jesus. Maisainda: estas palavras estão copia-das do Antigo Testamento,78 aca-bando a frase com o mesmo vo-cábulo que serve de conclusão àpassagem do Deuteronômio,onde o legislador promete a Isra-el um profeta semelhante a sipróprio, dizendo-lhe: Escutai-o79.

A entrada de Jesus em Jerusa-lém foi adaptada às profecias deIsaías80 e de Zacarias81.

E para que a adaptação a esteúltimo fosse literal, o evangelistafez viajar Jesus ao mesmo temposobre uma burra e um jumenti-nho, no curto espaço que vai deBetfagia a Jerusalém. Tendo sidomal interpretada a passagem doprofeta e havendo-se repetido78 Is. XLII, 1; Salmo II, 7.79 Matt. XVII, 5. 80 LXII, 11.81 Zac. IX, 9. - Salvador, citando textual-mente uma passagem de Zacarias naqual a entrada de Cristo em Jerusalém éantecipada e minuciosamente descrita,astutamente observa que todas as ima-gens relativas à sua entrada em Jerusa-lém não custaram nada para a imagina-ção da tão grande e rica nova escola (acristã).

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duas vezes a palavra jumento, oevangelista julga que o referidofragmento se deve entendercomo se os jumentos fossemdois.

A traição de Judas foi adapta-da do episódio da traição de cer-to comensal de Davi, e a decla-ração de Jesus, durante a ceia,corresponde a idêntica revelaçãodo rei salmista82.

As palavras Sou eu que oquarto evangelista, mais teológi-co do que os sinópticos, põe naboca de Jesus no momento emque este avança para os soldadosque o vêm prender - palavrasque os fazem cair por terra - sãoas mesmas que pronunciou Jeo-vá, e, por conseguinte, copiadosdo Antigo Testamento83.

A prisão de Cristo como de-linquente são relacionadas pelospróprios evangelistas Marcos eMateus com as predições dosprofetas. A fuga dos Apóstolosequivale ao cumprimento daprofecia de Zacarias84.

Se Jesus não responde à per-gunta do sumo sacerdote, relati-va ao depoimento das testemu-nhas, é para que se veja nele ocordeiro conduzido ao suplíciosem lamentações, em cumpri-82Salmo XLI, 10.83Deuter. XXXII, 39; Isaia XLIII, 10 ss. 84 XIII, 7.

mento literal da profecia de Isaí-as85.

Quando porém, lhe perguntamse ele é o Messias, já se não cala,proclamando que o é, para quese realize aqui o Antigo Testa-mento86.

Os ultrajes e maus tratos infli-gidos a Jesus, foram previsto ex-pressamente por Isaías87

Os trinta dinheiros da traiçãode Judas e o seu gesto de atirá-los fora no Templo são tomadosà letra do oráculo de Zacarias88.

A compra do campo de san-gue com os dinheiros da traição,o remorso e o arrependimento deJudas, a sua morte prematura e ogênero dessa morte, a anasarca ea cegueira, tudo isso se encontraem vários textos do Antigo Tes-tamento89.

Todo o plano, e até mesmo osdetalhes da história da crucifica-ção foram copiados pelos evan-gelistas do capitulo LIII de Isaí-as e dos Salmos XXII e LXIX.Além disso, João preocupado amostrar em como Jesus é o ver-dadeiro Cordeiro, acrescenta ohissope, que no Êxodo90 se em-

85LIII, 7. 86Salmo CX, 1; Daniele VII, 13. 87L, 6.88XI, 13. 89 Strauss, op. cit., II, XC. 90 Êxodo, XII – 21, 22.

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prega no sacrifício do cordeiropascal.

Se Cristo escolhe a Páscoapara ser crucificado, é porque asua missão é exatamente a docordeiro pascal, sacrificando-sena dita época para salvar a hu-manidade do pecado original.

Seja-nos permitido lastimaraqui a grande soma de energiaempregada por todos aquelesque, querendo defender a exis-tência humana de Cristo, quebra-ram a cabeça para explicar aqui-lo que se vê ser totalmente inad-missível, a não ser que despojas-sem Cristo de toda a realidadehistórica, isto é, a mudança dodia do seu sacrifício, como seesse dia fosse histórico e nãosimbólico, e ainda como se talmudança houvesse tido outrofim que não fosse o de mudar odia da Páscoa hebraica, assimcomo já tinham mudado o sím-bolo, substituindo o cordeiromaterial pelo cordeiro simbóli-co.

Os dois ladrões entre os quaisJesus é crucificado relacio-nam-se, segundo o próprio Mar-cos, com a profecia de Isaías91.

Mateus e Marcos põem naboca de Jesus as palavras: - MeuDeus, meu Deus, por que me

91 Isaías (LIII - 12).

abandonaste? No Salmo XXII,versículo 2, lê-se textualmente:Meu Deus, meu Deus, por queme abandonaste?

As palavras Pai, perdoa-lhesporque não sabem o que fazem,são postas na boca de Jesus pararealizar o que Isaías tinha dito doenviado de Deus, que colocadoentre malfeitores e carregadocom os pecados de todos, supor-ta ainda o peso da sua iniquida-de92.

O profeta Zacarias dissera queos habitantes de Jerusalém veri-am Jeová trespassado por umalança. Dali a necessidade de ferirJesus com a lança, para que,quando ele regressasse às nuvensdo céu, fosse possível ver-lhe aferida (Daniel, VII, 13).

Mas Jesus não era só aquele aquem feriram. Era também ocordeiro de Deus, e, precisamen-te, o cordeiro pascal, de quem setinha escrito: Não se quebraránenhum dos seus ossos. Daquitambém a necessidade de nãolhe quebrarem as pernas, comoaos dois ladrões.

Isaías dissera que o servo deJeová morreria entre ricos e mal-feitores93.

Quanto aos malfeitores, lá es-

92 Isaías (LIII - 12).93 Isaias, LIII, 9.

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tão os dois ladrões, que os evan-gelistas fazem morrer a seu lado;quanto aos ricos, fizeram comque o rico José de Arimateia en-terrasse Jesus. Isaías disseratambém: Que fazes aqui? Paraque fizeste abrir aqui um sepul-cro para ti? Porque se abriu umsepulcro num lugar alto, desig-nando uma morada na pedra?94.Isto é o que o evangelista faz di-zer a Jesus junto ao sepulcro deJosé de Arimateia, aberto na ro-cha.

Jesus ressuscita porque issoestá previsto no Salmo XVI (9ss.) e em Isaías (LIII, 10-12).

Finalmente, sobe ao céu ondeestá sentado à direita de Deus,em cumprimento do versículo 1do salmo CX: O Senhor diz aomeu Senhor: senta-te à minhadireita, até que eu ponha os teusinimigos como um escabelo ateus pés.

Se quiséssemos continuar emcitações, reconstituiríamos, pon-to por ponto, o Novo Testamentosobre o Velho. Para o nosso fim,porém, bastam os pontos capi-tais. Acrescentaremos, no entan-to, que a festa do Pentecostesesta tomada à letra do AntigoTestamento (Deut. XVI, 9-11;Num. XXVIII, 26). A luta de Pe-dro e Paulo contra Simão o94 Isaias, XXII, 16.

Mago tem seu motivo simbólicona luta de Moisés contra os tau-maturgos egípcios. Salvadorprova que o Apocalipse é umapura cópia dos profetas, princi-palmente de Ezequiel e Daniel.

Os evangelistas falam de Je-sus, dando-lhe três denomina-ções sobrenaturais ou metafóri-ca, além de Cristo e Messias, Fi-lho de Davi, Filho do Homem eFilho de Deus. Pois bem: tudoisso não faz mais que confirmaro seu caráter simbólico. Filho edescendente de Davi, devia ser oMessias, segundo a teologia he-braica. A expressão - Filho deDeus - já era usada no AntigoTestamento para designar, nãotanto ao povo de Israel95 , masaos reis do mesmo, como Davi eSalomão96 e aos seus mais dig-nos sucessores97.

A expressão Filho do Homemse encontra em Ezequiel, que lhedá a significação de homem hon-rado com as mais altas revela-ções de Deus98 e em Daniel,onde significa, precisamente, oMessias que virá nas nuvens docéu, segundo se lê em Mateus(XXIV, 30, XXVI, 64).99

95 Ezequiel IV, 22; Oséas XI,1; SalmoLXXX, 16.96 II Salmo VII,14, Sal. 89, 27).97 Salmo II, 7.98 II, 1, 3, 6, 8; III, 1, 3, 4, 10, 17, etc.99 VII, 13

72

Não há, pois, nos Evangelhos,nada que já não estivesse no An-tigo Testamento: nada há denovo debaixo do Sol, como diziaSalomão.

Todos as designações de Cris-to tinham já sido usados no Anti-go Testamento, mais ou menosmetaforicamente, enquanto queno Novo Testamento adquiriramo carácter sobrenatural própriode um mito.

Para aqueles que acreditamque Cristo era um homem a difi-culdade é insolúvel, porque,queiramos ou não, Cristo está fa-lando apenas de si mesmo comoo Messias que havia de vir, mes-mo nos sinóticos e precisamentenessa passagem de Mateus(XXII, 41). A única solução raci-onal é que Strauss dá: Jesus quismostrar a superioridade de Davi,do qual era descendente de acor-do com a carne ou a lei, enquan-to procedia de Deus como espíri-to.

Essa dificuldade sempre foi otropeço da cristologia que queriao impossível: Fazer de Cristo umser humano inconsistente com asleis da natureza e da história.

Assim sendo, surge a seguintepergunta: Qual das alegoriasaplicadas a Cristo no Antigo Tes-tamento e nos próprios Evange-lhos era verdadeira

A pergunta não é sem sentidoporque, mesmo no caso de ne-nhuma das duas ser verdadeira,haveria um meio de se sustentara tese de que Cristo poderia terexistido, pois se os evangelistaslhe aplicassem por equívoco ale-gorias indevidas, ainda assim,nada disso se oporia à realidadeda existência de Jesus.

Por outras palavras: mesmoquando se objetasse que Cristonão foi mal imaginado para sermal adaptado às pretendidas ale-gorias do Antigo Testamento,que então não seriam alegorias,estas foram mal imaginadas paraserem mal adaptadas a este per-sonagem que, não obstante, nãodeixaria de ser histórico.

Enfim! Já não precisamos decansar-nos muito para demons-trar que efetivamente as alegori-as do Antigo Testamento prece-deram a Cristo, se não cronolo-gicamente, pelo menos na men-talidade daquele meio em queele foi criado.

Porque, ainda mesmo que oAntigo Testamento, nas passa-gens de onde saiu a concepçãodo Cristo, não contivesse verda-deiras alegorias mas unicamenteexpressões poéticas, imagens efiguras retóricas, coloridas coma ardente fantasia oriental dosprofetas, isto não desmentiria o

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fato indiscutível de que os he-breus tinham costume, desdetempos imemoriais, de explicaro Antigo Testamento por meiode alegorias, antes que em suasmentes nascesse a ideia do Cris-to. Em breve, faremos esta de-monstração, que pertence à His-tória100.

Notemos que Fílon - que nãofoi colocado entre os padres daIgreja por não ter falado no Cris-to, e a quem destruíram os livrosporque demonstravam que ocristianismo nasceu sem Jesus -Fílon tinha já posto em alegoriao Antigo Testamento.

Fócio, como já vimos101, opinaque a linguagem alegórica daEscritura procede do próprio Fí-lon.

A nós, basta saber que o méto-do de interpretar o Antigo Testa-mento estava já em uso entre oshebreus alexandrinos102, antes da

100 Ernest Havet, O Cristianismo E SuasOrigens - O Judaísmo, tomo III, 421 ss.,Paris, Lèvy, 1878. 101 Primeira parte, cap. III102 Não é irrelevante a circunstância deque os simbolistas Hebreus fossem ale-xandrinos. Porque esta condição explicaperfeitamente a passagem da doutrina,da moral e do culto do Antigo Testa-mento, que no judaísmo é fechado e na-cionalista, para o cristianismo do NovoTestamento, que é um judaísmo maissuave e espiritualizado por influência dohelenismo e, sobretudo, da filosofia ne-

época assinalada à vida de Cris-to. Basta que essa fosse a ideia eo espírito dominante daquelaépoca para aplicar a adaptaçãodo mito do novo Redentor, ima-ginado pelo exemplo dos outrosDeuses Redentores, às alegoriasque se encontravam ou se julga-va encontrar no Antigo Testa-mento.

E que tais foram a ideia e oespírito dominante naquela épo-ca - o que deu nascimento aoCristianismo, entenda-se - issoconfirma-se, de um modo quenão admite réplica, com os pri-meiros padres da Igreja, princi-palmente com os que nasceram eviveram no mesmo ambiente deFílon, do qual foram verdadeirosdiscípulos. Entre eles contam-seClemente d'Alexandria103 e Orí-genes104 que, como vimos,105 sãodiscípulos e seguidores de Fílon,até mesmo na negação da exis-tência histórica de Cristo.

Mas para o provar, não preci-samos sair da Bíblia. S. Pauloatribui constantemente um duplosentido à Escritura106, acompa-nhando as opiniões de Santo

oplatônica, que inspirou a famosa Esco-la alexandrina103 Havet, op. cit., III, pp. 433-434. 104 Peyrat, op. cit., pp. 183 ss.105 Parte I, c. III. 106 I Cor., IX, 9; X, 1 e ss.; Gal. IV, 21 ss.;Col. II, 16, 17; Eb. VIII, 5; IX, 1 ss.; X, 1.

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Ambrósio, Santo Agostinho e S.Gregório107.

Além disso, a interpretaçãoalegórica foi obra dos mesmoshebreus, do tempo em que aideia de Cristo tomou corpo.

Tem-se querido ver, nos qua-dros proféticos, apenas a ima-gem de um Messias régio eguerreiro, que devia fazer renas-cer o esplendor do reinado deDavi, quando é precisamente ocontrário. Porque o verdadeiroplano da paixão de Cristo, estáprecisamente na imagem famosade Isaías108. Uma imagem nãoexclui a outra; os hebreus porémacabaram por confundi-las. Asprovas dolorosas do cativeiro deBabilônia e a dos romanos, aca-baram por lhes levar a persuasãode que a época sonhadora deuma nova glória de Davi se afas-tava cada vez mais, e só entãoconvieram que as dolorosas pro-vas de Cristo (personificação deIsrael) e a sua própria morte(Daniel, IX,26) não eram outracoisa mais do que o caminhopara chegar à gloria, colocadamais tarde no outro mundo.

De modo que a ideia da res-surreição, estranha primeiramen-te ao judaísmo, confunde-se logocom os povos orientais, encon-107 Peyrat, op. cit., pp. 184-188.108 Isaias LII, 13 ss.

trando o seu apogeu no AntigoTestamento109, ao se adaptar aomito do Redentor, que morre eressuscita. Este é, como demons-tramos com os próprios Evange-lhos, o plano dos cristãos: adap-tar o novo mito às profecias doAntigo Testamento.

Todas as crenças do Evange-lho, como tão justamente obser-va Havet, foram, portanto, so-nhos hebraicos, antes de seremdogmas cristãos. Mais certa eprecisa é ainda a proposição in-versa, isto é, que não foi o Anti-go Testamento que preparou oNovo, mas sim este que se adap-tou àquele. Está explicado comopuderam existir profetas e umMessias vaticinado.

Não pode ser doutra maneira,a não ser que admitamos o so-brenatural, mas, nesse caso, a fi-losofia não tinha mais a fazer doque retirar-se.

Se Cristo foi adaptado ao An-tigo Testamento, nada fez nemdisse que não estivesse já escritona lei; se a sua própria vinda e asua morte tiveram lugar em tudo,segundo as profecias; se osevangelhos faltaram a este planopreconcebido, tanto antes do seunascimento como antes da suamorte, excluindo toda a possibi-lidade de autossugestão em Cris-109 S. Paulo, I Corintios , XV, 4 ss.

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to; se enfim, Cristo nada fez quenão fosse sobrenatural ou prede-terminado, mística e teologica-mente, quem se atreverá a sus-tentar ainda que ele foi pessoareal e histórica, um homem, umser limitado e terrestre?

Não, Cristo não foi um ho-mem. Foi um Deus.

Cristo não existiu, não viveu

vida própria. Foi apenas uma cri-ação teológica, dogmática e mi-tológica.

Tal é o testemunho da Bíblia,única fonte que nos fala de Cris-to, e que, em lugar de nos sub-ministrar as provas da sua exis-tência, apenas é uma demonstra-ção constante da sua inexistên-cia.

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CAPÍTULO VCONTRADIÇÕES ESSENCIAIS DA BÍBLIA A CERCA DE CRISTO

Mateus e Lucas dão a Jesusduas genealogias diversas110. De-vendo Jesus nascer, segundomuitas profecias, da estirpe deDavi, Mateus pretende demons-trar que se cumpre o vaticínio,fazendo descender José, pai deJesus, da linha de Davi. Por ou-tro lado, porém, o mesmo Ma-teus afirma que Jesus fora con-cebido por obra do Espírito San-to111. Parece, pois, que se Jesusfoi concebido desse modo, nãopodia descender de Davi, ao pas-so que, descendendo de Davi,por via de José, não podia demodo nenhum ser concebido porobra do Espírito Santo.

Quanto ao ano em que Jesusnasceu, há contradição formalentre Mateus e Lucas, os únicosevangelistas que dele falam.Confrontando as circunstânciashistóricas com que os dois rela-cionam o nascimento de Jesus,depreende-se de um modo in-controverso que o Cristo de Ma-teus devia ter pelo menos 11anos quando veio ao mundo oCristo de Lucas112.

110 Mat. I, 1-17; Lucas III, 23-38. 111 Mat. I,20-23.112 Ferrière, Paganismo dos hebreus,apêndice nº 2. Quanto ao erro histórico

Em Mateus, José e Maria par-tem de Belém sem irem a Jerusa-lém e fogem para o Egito preci-pitadamente depois da adoraçãodos Magos, para salvarem Jesusda degolação dos inocentes, or-denada por Herodes113 Pelo con-trário, em Lucas, José e Mariavão publicamente ao templo deJerusalém, onde tem lugar a cenade Simão e Ana, e depois, emvez da fuga para o Egito, voltamtranquilamente para Nazaré114 Éassim que a narração de Lucasnão só contradiz materialmente ade Mateus, mas até exclui, im-plicitamente, a famosa degola-ção dos inocentes, narrada poraquele. O fato de levarem Jesusao templo de Jerusalém, onde épublicamente reconhecido porSimão como o Messias não seharmoniza, em ponto algum, nãodigo já com a fuga para o Egito,mas ainda mesmo com a matan-ça dos inocentes, pois que, emtal caso, Herodes teria podidoapoderar-se dele, sem tocar emum cabelo de nenhum outro me-nino.

de Lucas sobre o censo do Cirino, vid.Strauss, obr. Cit. II. 48.113 Mat. II, 13, 16.114 Lucas, II, 22, 39.

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A infância de Jesus é comple-tamente ignorada por Marcos eJoão, a quem só põem em cenaaos trinta anos, fazendo-o, porassim dizer, cair do céu nas mar-gens do rio Jordão, onde recebeo batismo pelas mãos de JoãoBatista. Mateus, depois de o fa-zer nascer milagrosamente, fugirpara o Egito e regressar a Nazarénunca mais fala dele, até á idadede trinta anos. Só Lucas fala dadiscussão que Jesus aos 12 anosde idade teve no Templo com osdoutores da lei115. Lucas, narran-do este episódio cai em contradi-ção consigo mesmo, porque dizque os pais de Jesus, tendo-lheperguntado quando o encontra-ram no Templo, por que os aban-donara, e ele lhes responderaque fora para ocupar-se das coi-sas de seu Pai, não o compreen-deram. É absurdo que os pais deJesus não compreendessem aresposta, desde que, segundo omesmo Lucas, Jesus tinha nasci-do milagrosamente como, tam-bém, pelo mesmo motivo, se nãodeviam inquietar com o extraviode Jesus.

Cingindo-nos agora aos trêsEvangelhos sinópticos, vemosque Jesus começa e continua asua missão na Galileia, e só paraa realizar, só para cumprir o ob-

115 Lucas, II, 41-50.

jetivo das suas pregações é quevai a Jerusalém, onde é quase in-teiramente desconhecido, a pon-to dos habitantes perguntaremuns aos outros quem ele era. Já oquarto Evangelho o faz viverquase só na Judeia mas ir váriasvezes a Jerusalém, onde realizaos principais atos da sua vida.

Segundo João116, João Batistadeclara formalmente não conhe-cer Jesus quando este se lheapresenta para receber o batis-mo. Mas segundo Lucas117, JoãoBatista conhecia Jesus desde oventre de sua mãe Isabel, ondesaltou de prazer quando Maria avisitou. E, segundo Mateus118,tanto Batista conhecia Jesusquando o batizou, que até recu-sou fazê-1o, a princípio, cedendoapenas às repetidas instâncias deJesus. Entretanto, Batista, quesegundo todos os evangelistas,se dera a conhecer como precur-sor de Jesus, batizando-o com oconcurso da pomba celestial e davoz do Eterno, reconhecendo-lheexplicitamente o caráter de Mes-sias119, não se faz cristão e conti-nua a pregar por conta própria.Depois, quando é preso e encar-cerado, envia da prisão a Jesus116 João, I. 33.117 Lucas, I, 41-44.118 Mateus, III,14.119 Mat, III-13-17; Marc. I-7-11; Luc.III-16, 21, 22; João, I, 29-34.

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dois dos seus discípulos, encar-regando-os de lhe perguntarem:És tu, porventura, o que há devir, ou temos ainda de esperarpor outro?120. Jesus declara queJoão batista é o profeta Elias121,mas este mesmo João Batista de-clara que não é tal o profeta Eli-as122.

As tentações de Satanás con-tra Jesus não vêm mencionadasno quarto Evangelho, que as ex-cluiu sistematicamente, encade-ando os novos detalhes da vidade Jesus - desde o batismo até aoprimeiro milagre - com as maisrigorosas indicações do tempo(ao segundo dia, ao terceiro dia,etc.) de modo que não passariapor alto os quarenta dias que elepermaneceu no deserto e as res-pectivas tentações. IgualmenteJoão, que era o discípulo amadode Cristo e que, portanto, nãopodia ignorar os detalhes da vidadele, nada nos diz acerca dascoisas praticadas pelo Mestrecom os endemoninhados.

Demonstrado está assim que,excetuando o quarto evangelistaos outros três se contradizem acada a linha, quer relatando ahistória das tentações quer con-tando os exorcismos de Jesus.

120 Mat. X, 2-3.121 Mat. XI-14.122 João I-21.

Da citação dessas contradi-ções, como em geral de tudo oque se refere aos milagres, fare-mos graça para nossos leitores,por que não é necessária sequerpara nossa demonstração.

Lucas faz-nos saber que os sa-maritanos acolheram Jesus comhostilidade e que João, que oacompanhava, vendo isto, se en-colerizou sobremaneira123. Porsua vez, o mesmo João, que esta-va com Jesus e que tanto se re-voltou com a ação dos samarita-nos, no seu Evangelho conta quequando Jesus passou por Sama-ria os samaritanos lhe fizeramuma excelente recepção, pe-dindo-lhe que ficasse com eles eproclamando-o Salvador doMundo124.

Sobre o episódio da mulherque unge Cristo, todos os evan-gelistas relatam o caso diversa-mente, sendo portanto, contradi-tórios125.

Quanto à ultima ceia, queconstituiu um fato capitalíssimopara o cristianismo porque nelateria Jesus instituído o mistérioda Eucaristia, nem mesmo aí osEvangelhos se harmonizam. Ostrês primeiros colocam a última

123 Lucas, IX-51-56124 João, IV-9, 39-42125 Mat. XXVI, 2-13 Marcos, XIV, 1-9;Luc. VII, 36-40; João XII, 1-8.

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ceia no dia de Páscoa126, enquan-to João a coloca antes da Pás-coa127. Além disso, os primeirosfazem Jesus instituir nesta ceia omistério da Eucaristia128 ao passoque João, absorto pela ideia eu-carística (CapítuloVI) narra a úl-tima ceia com inúmeros porme-nores, mas sem dizer uma únicapalavra acerca dessa mesmaideia eucarística, sendo ele deresto, o único que teria valor tes-temunhal, pois assistiu a ela des-de o princípio.

Repitamos aqui, pois vale apena, que essa contradição, naqual muita tinta tem sido gastainutilmente pelos estudiosos,não pode ser explicada excetopela nossa dedução na qual,Cristo sendo um mito, e exata-mente o mito do cordeiro pascalqui tollit peccata mundi é elemesmo o alimento da ceia pas-cal.

Só que nos três EvangelhosSinópticos, mais antropomórfi-cos, ele precisa dizê-lo explicita-mente, enquanto que no quarto,ao invés da instituição do sacra-mento ser feita pela boca do Ag-nus Dei, o mistério se cumpre

126 Mat. XXVI, 17-20; Marc, XIV, 12-8;Luc. XXII, 7-15.127 João XIII, 1.128 Matt. XXVI, 26-28; Marco XIV, 22-24; Luca XXII, 19-21.

pelo seu próprio sacrifício. Estas contradições dos Evan-

gelhos mais uma vez confirmamo nosso modo de ver, pois sóconsiderando Cristo como ummito, precisamente o mito doCordeiro Pascal, qui toilit peca-ta mundi, se pode resolver estacomplicação.

Durante a última noite, passa-da no horto de Getsemani, Jesusafastou-se dos seus discípulos, apouca distância, segundo os si-nópticos. Os discípulos dormi-am, Jesus levou consigo apenasCefas e os dois filhos de Zebe-deu. Chegado ali, Cristo cai porterra, com o rosto unido ao chão,e assim ora por largo tempo, per-manecendo triste até à morte econformando-se, enfim, com avontade divina129.

Pela sua parte, o quarto evan-gelista, que deveria ser a teste-munha íntima desse episódio tãocomovedor, nada diz a tal respei-to, apesar das minúcias com querelata os episódios dessa noite.Além disso, enquanto os três pri-meiros nos apresentam Jesus noMonte das Oliveiras, em estadode profundo abatimento, a pontode suar sangue130, o quarto põe

129 Matt. XXVI, 36 ss.; Marco XIV, 32ss.; Luca XII, 39 ss. 130 Matt. XXVI, 36-39; Marco XIV, 32-36; Luca XXII, 41-44.

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na boca de Jesus discursos chei-os de tranquilidade131; e ao passoque nos primeiros evangelistas obeijo de Judas denuncia Jesusaos seus inimigos,132 no quarto éo próprio Jesus que vai ao en-contro dos seus inimigos, comtranquilidade e segurança, dizen-do aos soldados que o rodeiam:Eu sou o Cristo133!

Passemos por alto as contradi-ções relativas à hora em que Je-sus foi julgado pelos sacerdotesna presença do povo, ao seu in-terrogatório, ao momento emque é maltratado e injuriado, aoepisódio da devolução de Pilatospara Herodes só conhecida porLucas, ao depoimento das teste-munhas, ao Cirineu, que Joãonão cita, à beberagem dada a Je-sus, à altivez dos dois ladrões, àinscrição colocada na cruz (dife-rente em cada um dos quatroevangelistas), à exclamação epalavras ditas antes de morrer,ao golpe de lança no peito, àquebra das pernas, ao embalsa-mamento, à natureza do sepulcroe ao tempo em que esteve sepul-tado, contradições estas de deta-lhes, mas tão numerosas, quepreciso se torna citá-las sumaria-

131 João, Cap. 14, 15, 16, 17 e 18. 132 Matt. XXVI, 47-50; Marco XIV, 43-46; Luca XXII, 47. 133 João, XVIII, 2-8.

mente. Repararemos apenas nas con-

tradições mais graves que acom-panharam a sua morte.

Segundo Mateus (XXVII, 45)Marcos (XV, 33) e Lucas (XXI-II, 44) desde a hora sexta atéàquela em que, Jesus devia terexalado o último suspiro, isto é,do meio dia às três da tarde, todaa terra se cobriu de trevas. Alémdisso, segundo Marcos (XV, 25)Jesus teria sido crucificado, àhora terceira do dia, ou fosse àsnove.

Pelo seu lado, João (XIX, 14)diz que, à hora sexta, ou fosse aomeio dia, não só Jesus não esta-va ainda na cruz, mas nem mes-mo o tinham ainda condenado àmorte. A essa hora, Pilatos mos-trava-o aos hebreus, dizendo:Eis aqui o vosso Rei.

Pois bem: se no dizer dos pri-meiros, desde o meio dia até àstrês, toda a terra se cobriu de tre-vas, ao passo que, segundo João,precisamente neste tempo, tive-ram lugar a saída para o Gólgotae a crucificação, devemos con-cluir que João faz desenrolar to-dos os sucessos na mais densaescuridão, circunstância esta quenão o impede de ver tudo o quese vai passando, assim como su-cedia aos demais espectadores.

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As contradições, que se se-guem à ressurreição não nosprenderão muito a atenção, por-que saem do campo da razãopara entrarem no do sobrenatu-ral, que é por outro lado, um doscritérios de condenação da vera-cidade da Bíblia.

Pelo contrário, interessam-nossobremaneira as contradiçõesque a mesma Bíblia põe na bocae no procedimento de Cristo, en-quanto fala e procede como ho-mem.

Na célebre sentença, em queglorifica a pobreza, Jesus fala,na opinião de Lucas, dos pobres,em sentido concreto, ou seja da-queles que sofrem materialmentefome e, sede134, ao passo que, se-gundo Mateus, falava indistinta-mente dos pobres de espírito edos que têm fome e sede justi-ça135.

Quanto aos publicanos, Jesusos trata ora com afeto136, oracom ódio e desprezo137.

Acerca das boas obras, Cristodiz ao mesmo tempo que de-vem138 e não devem139 ser conhe-134 Lucas, VI, 20 ss. 135 Mateus, V, 3-10. 136 Matt. XVIII, 17. 137 Mat. IX, 10-12; XI, 19; Marcos II,15-17; Lucas V, 29-31; VI, 34; XVIII,9-14; XIX, 2-10.138 Matt. V, 16. 139 Matt. VII, 1, 2.

cidas pelos homens. Em conformidade com o pri-

meiro modo de ver, ordena aoendemoninhado de Gheraseni,curado por ele, que divulgue omilagre140 e de acordo com o se-gundo ponto de vista recusa ter-minantemente fazer milagres, in-sulta quem lhes pedem141 e orde-na àqueles a quem cura e aosque assistem, que não divulguemnada142 .

No que diz respeito ao uso daforça física, da resistência, emsuma, da violência, Cristo não sóas recomenda como as pratica143,e ainda aconselha o seu empre-go144.

Quem não é por mim é contramim, diz Cristo em Mateus145 eem Lucas146. Em Marcos, porém,diz: Quem não é contra nós, co-nosco está147. A contradição nãopode ser mais grave.

Segundo Mateus148 Marcos149

140 Marco V, 19. 141 Matt. XIII, 28-41; XVI, 1-4;MarcoVIII, 11-12; Luca, XXIII, 7-9.142 Matt. VIII, 2-4; IX, 27-30; XIII, 15;XVIII, 9; Marco I, 40-44; VIII, 22-26;IX, 8; Luca IX, 36.143 Lucas XXII, 36; João, II, 15. 144 Mat. V, 39; XXVI, 52. 145 Mateus XI, 30. 146 Lucas X, 23. 147 Marcos IX, 38, 39, 40. 148 Mateus V, 25; VIII, 49.149 Marcos I, 44.

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e Lucas150 Jesus ordena os sacri-fícios, mas em parte alguma daBíblia se vê que ele tome parteem qualquer desses sacrifícios.

A principal, a mais irrespondí-vel das contradições, é a que serefere á missão de Cristo. Se-gundo Mateus151, Jesus diz quenão veio para abolir a lei nem osprofetas, e segundo Lucas152 dizque, tanto estes como aquela, ti-veram já o Seu tempo!

À vista de tão extraordináriascontradições, quem se atreverá adizer que Cristo seja um perso-nagem histórico e real? Mesmosem levar em conta o anterior-mente exposto?

Quem não vê aí a mão criado-ra das diversas escolas metafísi-cas e teológicas, denunciadaspela diversidade de planos e dedoutrinas na composição de ummesmo mito?

150 Lucas V, 14. 151 Mateus, V, 17, 18, 19.152 Lucas, XVI, 16.

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CAPÍTULO VIABSURDOS ESSENCIAIS DA BIBLIA ACERCA DE CRISTO

Fiéis ao nosso propósito denão nos ocuparmos do elementosobrenatural contido na Bíblia,não faremos caso dos muitos ab-surdos ali disseminados no quese refere a Cristo-Deus e tauma-turgo

Se quiséssemos sair do nossotema, pouco nos custaria fazerver o absurdo da religião cristã,examinada em seus delírios so-brenaturais.

Falta revelar o principal, ondese prova que esta religião é ex-clusivamente teológica e nãoobra de um homem histórico.

Eis as concepções fundamen-tais sobre as quais se funda ocristianismo: Um Deus proíbe aoprimeiro casal humano quecoma do fruto que lhes daria aconhecer o bem e o mal. Elesporém desobedecem e são casti-gados, embora nenhuma culpatenham, visto que antes de co-merem esse fruto não sabiamdistinguir entre o bem e o mal.

Contudo, Deus não só castigaos autores do fato, inocentes,como se vê, mas todos os seusdescendentes, que em nada fo-ram participantes desse mesmofato.

Para salvar a Humanidadedessa pretendida falta, Deus re-corre a outra vítima, sendo certoque, para isso, bastaria um atosimples da sua vontade. Esta ví-tima, também inocente, é o seupróprio Filho, o qual, se eraDeus, não podia morrer, e se erahomem, não podia ressuscitar.

Enfim, para cúmulo de imora-lidade, para que esse Deus fossemorto, faltava quem o matasse.Assim, obrigando um povo a umdeicídio, Deus condena estepovo à infâmia, tanto mais ime-recida, quanto era uma necessi-dade determinada pelo próprioDeus a fim de realizar o seu pla-no.

E toda esta série de imoralida-des para salvar, não a Humani-dade inteira, mas apenas aquelesque vierem ao mundo depois deCristo, e ainda destes, só umapequena parcela, pois que omundo, passados vinte séculos,ainda é bem pouco cristão.

E mesmo dos que são cristãos,só se salva uma pequeníssimaparte, aqueles predestinados porDeus, como se ouve todos osdias pela voz autorizada da Igre-ja.

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Isto tudo demonstra incontes-tavelmente que Cristo é, sim,uma invenção dos teólogos.

Queremos averiguar, serena econscienciosamente, se existiu ohomem chamado Cristo, e paraisso, nos cingiremos à Bíbliaapenas enquanto fala humana-mente, ou antes, naturalmente,pondo em destaque os absurdosacerca de Cristo-Homem, e ain-da dentre esses, analisaremosapenas os mais salientes.

Comecemos pela forma comoos apóstolos seguem a Jesus,forma que é de todo o ponto, in-verossímil.

Segundo Mateus153 e Mar-cos154, quando Jesus convida aosque desde logo são seus discípu-los para que o sigam, estes aban-donam imediatamente o ofício ea família sem refletirem, sem lhepedirem a menor explicação,sem saberem quem era Jesus, ig-norando enfim, o que viria a serdeles.

Aqui, a Bíblia quer evidente-mente revelar a importância davocação, cuja explicação serámuito teológica, mas tira ao fatotoda a importância e verossimi-lhança humana.

Em Mateus, como vimos no

153 Mateus, IV, 18-22.154 Marcos, I, 16-20.

capítulo precedente, Jesus decla-ra que não veio para abolir a leide Moisés, mas sim para cum-pri-la. Ora, que valor pôde tersemelhante declaração e, porconseguinte, toda a obra de Je-sus, se hoje é certo e sabido queos livros atribuídos a Moisés sãoapócrifos?

No capitulo XII de João, Jesusfala à multidão, que o recebe emtriunfo, em gritos de Hosana,proclamando-o rei de Israel (V,13), atestando que ressuscitouLázaro (V, 17) e julgando-o filhode um anjo (V, 29). Pois bem:apesar do que essa multidão,num entusiasmo que tocava asraias da loucura fez, disse e viu,muito mais do que o suficientenão só para crer em Jesus mastambém para se converter, ape-sar disso, o evangelista diz queessa multidão não só não se con-venceu (V, 37) como assim queo Mestre terminou de falar, foiembora se esconder. (V, 36).

Larroque, perante tamanhoabsurdo, diz que não se pode ex-plicar senão como uma distraçãodo narrador. Esta é uma das pro-vas mais apreciadas do carátersimbólico e de nenhum modohistórico, que a própria Bíbliaatribui a Cristo. Por isso, imedia-tamente depois, o Evangelistaexplica os motivos de tal estra-

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nheza, dizendo que esses fatos(V. 38) aconteceram para que secumprisse a palavra do profetaIsaías, que dissera: Senhor,quem acreditou no que disse-mos? A quem foi revelado o bra-ço do Senhor? (V. 39) Por issonão podiam crer, porque outravez dissera Isaías: (V. 40) Ce-gou-lhes os olhos e endure-ceu-lhes o coração, para quenão vejam com os olhos e nãoentendam com o coração, e seconvertam e eu os sare. (V. 41)Isto disse Isaías...

Tudo isto confirma que a Bí-blia faz proceder Jesus só paracumprir o prescrito no AntigoTestamento. Ora, deste modo,que ninguém me venha com afir-mação de que os livros bíblicossão narrações históricas.

Segundo Mateus155 quando Je-sus entrou em Jerusalém, a mul-tidão procedeu como se o conhe-cesse e venerou-o como se tra-tasse-se de um grande persona-gem, correndo ao seu encontro,festejando-o, adornando as ruascom bandeiras e palmas e excla-mando: Hosana ao filho deDavi! Bendito seja o que vemem nome do Senhor! E aos queperguntavam quem era, respon-dia a multidão: Este é Jesus, oProfeta de Nazaré, de Galileia. 155 Mateus, XXI-8, 11.

E foi assim que ele pôde reali-zar, sem que ninguém o estor-vasse, a façanha da expulsão dosvendilhões do templo.

Pois bem: segundo Mateus eos outros evangelistas sinópti-cos, Jerusalém não conheciaainda então Jesus. Será precisorepetir aqui novamente, que estacontradição absurda não se ex-plica senão recorrendo à necessi-dade de cumprir-se uma profecia(neste caso, a de Zacarias) queimpunha ao evangelista a obriga-ção de dizer que Jesus fora aco-lhido pelos habitantes de Jerusa-lém com extraordinárias mani-festações de alegria, sem repararque isto comprometia ou invali-dava a sua narração? Será preci-so concluir, de novo, que é aber-tamente simbólico o sentido danarração bíblica?

Segundo os quatro evangelis-tas, da prisão de Jesus à sua res-surreição, compreendendo nesteespaço de tempo o processo e adevolução de Herodes a Pilatos,a saída para o Calvário, a cruci-ficação, a morte, o enterro e otempo que permaneceu sepulta-do (três dias, embora incomple-tos) não se passaram mais quetrês dias incompletos!

É isto possível? Respondamos que tenham um pouco de bomsenso.

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A parte da Bíblia referente aPilatos é simplesmente impossí-vel e inexplicável, a não ser quese admita a nossa tese. Pilatosestava convencido da inocênciade Jesus e até intentou salvá-lo156, apesar de abandoná-lo aosjudeus, depois de consentir osultrajes dos soldados no Pretórioe de o haver preterido a um pri-sioneiro da pior fama.

Como explicar uma tão graveincoerência ?

João faz supor que Pilatos te-meu um castigo de César pornão ter condenado à mortequem, proclamando-se Rei dosJudeus, devia necessariamentepassar por sedicioso. Mas, nestecaso, não se explicaria a suaconsideração por Jesus, tantomais que era um governador pre-varicador e tirano, segundo otestemunho do contemporâneoFílon. Outros supõem que estanarrativa fora inventada quandoo cristianismo se infiltrava nomundo romano, pela necessida-de de agradar a Pilatos e de lan-çar sobre os Judeus toda a res-ponsabilidade da parte odiosa dalenda.

Mas, se por um lado, a res-ponsabilidade dos judeus estavapredestinada pelo profetismo,por outro não se pode explicar a156 Luc. XXIII; João, XIX.

atribuída a Pilatos pela Bíblia,senão recorrendo á invenção damorte de Jesus. Só assim o ab-surdo em questão se explica sa-tisfatória e racionalmente, poispara condenar e crucificar publi-camente a Jesus era preciso aaquiescência de uma autoridadecompetente.

Mas, como atribuir a este ma-gistrado a responsabilidade pelacondenação de um inocente? Daía necessidade, para os evangelis-tas, de não fazer depender direta-mente de Pilatos a responsabili-dade de um ato odioso, que semele, não poderia acontecer

Haveria nos Evangelhos ab-surdos que seriam imorais, ou sequerem, imoralidades que seriamabsurdas, porque ofuscam emancham sem necessidade o ca-ráter de Cristo, se não fosse evi-dente a sua razão de ser e a suaorigem simbólica e mitológica.Citemos, por exemplo, o conse-lho dado por Jesus aos seuscompanheiros para que fugissemante os seus inimigos (Mateus,XXIV, 16, 17 Lucas, XXI, 20),no que ele imita a Jeremias. Aordem, dada por Jesus aos seusapóstolos para que não saúdem aninguém quando viajar (Lucas,X, 4) é copiada, grosseiramenteda que Eliseu deu ao seu servo,por determinados motivos que

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não existiam aqui. E o conselho,consignado no capítulo XIV deLucas, dado por Jesus aos co-mensais para que não se colo-quem nos primeiros lugares afim de que o dono da casa osnão faça passar aos últimos, epara que, pelo contrário, se colo-quem nestes, a fim de que aqueleos brinde com os primeiros sãolições de hipocrisia e de orgulhocitadas para dar cumprimento aesta máxima do Antigo Testa-mento: Aquele, que se exaltaserá humilhado e o que se humi-lha será exaltado. (Job, 22, 29;Sal. 18, 27; Prov. 29, 23; 35, 67).

Cristo falava em parábolas,para que não o entendessem osque o ouviam, dirigindo-as nãosó aos inimigos e aos predestina-dos, mas também, e em mais deuma ocasião, aos seus discípu-los157. Este seria o maior absur-do, porque os mais instruídos fi-cariam desorientados, incapazesde compreender a razão porquese expressava de tal modo, senão lhe explicassem os própriosevangelistas, advertindo queCristo o fazia para cumprir aprofecia de Isaías, segundo aqual ouviriam e não entenderi-am, olhariam e não veriam158.

Isto explica realmente o senti-

157 Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18.158 Marco IV, 13, 18; VIII, 17, 18.

do simbólico dos processos deCristo, dignos de um desequili-brado, mas por outro lado, de-monstra a Bíblia que Cristo nãoé pessoa real que procedesse na-turalmente; pelo contrário, é umser fantástico, um verdadeirofantoche que se move só quandoe como o controlador quer.

Não se diga, por favor, quefaltamos ao respeito a um objetode grande veneração, pois mui-tas outras palavras bem mais du-ras teremos de empregar paradefinir semelhante maneira deproceder, zombando do mundo,se não fosse por nossa interpre-tação simbólica e mitológica quedesculpa de tais ações o objetoda adoração dos cristãos, de-monstrando que não foram co-metidas por ele, que nunca exis-tiu, mas inventadas por aquelesque o criaram, impelidos pelanecessidade de cumprir um pla-no teológico.

No versículo 35 do capítuloXXIII de Mateus, Jesus censuraos hebreus por terem derramadoo sangue de Zacarias, filho deBaraquias, a quem mataram en-tre o templo e o altar: a críticademonstrou que não existiuqualquer personagem com talnome e em tais circunstâncias.Só existiu um Zacarias, filho deBaruch, que se encontrava em

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idênticas circunstâncias ao cita-do por Jesus, menos a diferençado nome do pai, que é Baruchem lugar de Baraquias, diferençade resto fácil de explicar.

Mas o caso é que o assassina-to deste Zacarias foi cometidono ano 67 da nossa era, segundoo historiador Josefo, isto é, mui-to tempo depois da época emque os cristãos colocam Jesus.

De sorte que, ou este falou porfalar ou se referiu, como tendo-se já realizado, a um sucesso quedeveria ocorrer muito tempo de-pois dele. O primeiro termo dodilema resolve já a questão, e osegundo demonstra que os Evan-gelhos foram escritos muito tem-po depois da época assinalada aCristo, e que os seus autores nãoforam muito escrupulosos emrespeitar a verdade histórica, an-tes muito pelo contrário, criaramo mito, pondo-lhe na boca pala-vras absurdas, sem se daremconta do que estas deveriam,numa época de menos credulida-de, denunciar as suas imposturase invenções.

Uma das figuras bíblicas quedemonstra a inconsistência his-tórica da narrativa é a de Nico-demos. Este rico fariseu, mem-bro do Sinédrio, descrito pelaBíblia como pessoa de bons cos-tumes e boa fé, que vai procurar

Jesus de noite159, que tem comele uma entrevista, que mais tar-de defende Cristo das acusaçõesdos seus correligionários160 eque, morto Cristo, praticou pie-dosas curas sobre o cadáver domestre161, este Nicodemos não sefez cristão.

De modo que se torna a dar ocaso de João Batista (que tam-bém não se fez cristão).

Mas, o golpe de misericórdiana própria Bíblia, para literal-mente destruir, aniquilar e dissi-par em absoluto a pretendidaexistência de Cristo é dado -quem o diria! - por dois dos seusdiscípulos: Apolo e S. Paulo.

Apolo! Quem é este Apolo? –indagaria Dom Abbondio (perso-nagem do romance Os Noivos,de Alessandro Manzoni) - quenão figura no número dos após-tolos?

A própria Bíblia o vai dizer.Leiamos pois o capítulo XVIIIdos Atos dos Apóstolos:

- 24. E veio a Éfeso um Ju-deu de nome Apolo, natural deAlexandria, homem eloquente emuito douto nas Escrituras.

- 25. Era instruído no cami-nho do Senhor, falava com fer-

159 João III,1.160 João VII, 50 ss.161 João XIX, 39.

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vor de espírito e ensinava comdiligência sobre Jesus, tendo so-mente conhecimento do batismode João.

- 28. Porque, com grandeveemência, convencia publica-mente os judeus, mos-trando-lhes, pelas Escrituras,que Jesus era o Cristo.

Não é estranho que um judeufalasse para converter os outrosao cristianismo, enquanto pelasua parte, se conservava judeu?

E, como se isto ainda fossepouco, a Epístola I aos Coríntiosdiz-nos que este Apolo era igua-lado a ninguém menos do quea Cristo.162.

Vejamos S. Paulo. Este após-tolo, próximo já do final da suacarreira, depois de ter exercitadoo seu apostolado Cristão, com-parece perante o rei Agripa, de-clara-se Fariseu e sustenta que aseita dos Fariseus é a mais seve-ra do que a sua religião163.

Por consequência, S. Paulonão fala de Cristo como de umapersonalidade histórica, mascomo de uma tese teológica164.Para ele, Jesus é um ser misteri-oso, sem pai, sem mãe, sem ge-nealogia, que se mostra aos ho-162 Epístola I aos Coríntios, I, 12; III,4 -5 .163 Atos, XXVI, 5164 Dide, op.cit., p. 93.

mens como encarnação de umadivindade, para cumprir umgrande sacrifício expiatório.

Mas, como se realizou estaencarnação? O apóstolo não odiz. Não fala nunca dos parentesde Jesus, nem sequer de Maria.Não nos diz quando veio aomundo, o que fez e como o fez,quando e como foi crucifica-do165...

Mas, há mais. Segundo osAtos dos Apóstolos (XXXVIII,15 e ss.), quando Paulo e os seuscompanheiros chegaram a Paz-zuoli tiveram uma boa acolhidada parte dos seus irmãos ali esta-belecidos, saindo muitos outrosa recebê-los em todo o percurso,de Pazzuoli a Roma. Chegado aesta capital, Paulo convocou osprincipais judeus que lá viviam,para, diante deles, se justificarda acusação que lhe faziam, deter ofendido em Jerusalém opovo e os ritos dos padres.

E, na Epístola aos Romanos(1-8), Paulo escreve que a fé doscristãos de Roma tinha adquiridogrande fama em todo o mundo, epromete encerrar-se em seu seiodepois de cumprida a sua missãode ir a Espanha saudar um gran-de número de filiados.

Como explicar-se o fato da-

165 Peyrat, op. cit., p. 338. 90

queles hebreus da Itália, tão ínti-mos de Paulo - fato relativo àsjustificações da sua própria féhebraica - e a crença do mesmoapóstolo acerca da sua obrigaçãode se justificar perante eles?

E como explicar o fato inegá-vel segundo o próprio Paulo, dadifusão do cristianismo por todoo mundo, cuja pregação Pauloapenas começava agora?

Evidentemente, não há expli-cação possível, a não ser que ad-mitamos que a narrativa dosAtos dos Apóstolos e da Epístolaaos Romanos é uma fábula, ouque os cristãos existiam já muitoantes da época assinalada a Cris-to. Ou seja: que o cristianismo jáera um fato muito tempo antesde Cristo, sem necessidade dele.

A primeira hipótese não seráadmitida pelos cristãos. Por isso,deverão admitir forçosamente asegunda, como nós a aceitamos,porque concorre para demonstrara nossa tese adaptando-se perfei-tamente aos resultados da crítica,como já vimos em Eusébio, queadmite serem cristãos os tera-peutas do Egito de que Fílon játinha falado, e como vimos emTácito, que faz dos hebreus edos egípcios uma única supersti-ção, e como veremos ainda aoocuparmo-nos das doutrinas de

Fílon, dos Essênios e dos Tera-peutas.

Naturalmente, só nos baseare-mos nestas incongruências daBíblia em razão da sua flagranteevidência para deduzirmos umaconclusão forçosa, de maior im-portância do que a que os textosconsentem.

Por outras palavras: estes ab-surdos, inconcebíveis em um li-vro que se propõe proclamar aexistência de Cristo bastam sópor si, para nos persuadirem docontrário.

Estes fatos adquirem um valorexcepcional porque provam ocontrário do que a Bíblia sepropõe a provar, ou pelo menos,invalidam o que ela pretende fa-zer crer, sem que possam passarpor exceções, pois originam-seda própria Bíblia e nela se apoi-am.

Isolados, estes fatos talvez te-nham pouca credibilidade, mas,no entanto, não podem ser igno-rados diante do acúmulo de ou-tros elementos de prova que te-mos e daqueles que ainda aduzi-remos contra a existência deCristo.

Como se vê, a mesma Bíblia,proporciona ajuda e apôio à nos-sa demonstração.

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CAPÍTULO VIIA MORAL SECTÁRIA DOS EVANGELHOS NÃO É OBRA DE UM

HOMEM, MAS SIM , DA TEOLOGIA

A Bíblia fornece-nos uma pro-va ainda maior que todas as adu-zidas até agora contra a existên-cia de Cristo. Esta prova estáprecisamente na sua moral. Essamoral, que os apologistas ergue-ram até aos céus e agora a críticavai ponto a ponto destruindo, aodesfazer as ilusões criadas emtorno da lenda e da idealidadehumana - essa moral é a provamais firme e segura de que Cris-to não existiu, porque a moralque os Evangelhos lhe atribuemnão pode ser obra de um ho-mem, mas apenas a de uma teo-logia determinada, porque é ex-cessivamente sectária e irrealizá-vel para que pudesse ser ensina-da e praticada por um homem. Écompletamente oposta às preo-cupações teológicas e metafísi-cas de uma seita.

Há, por certo, máximas real-mente morais o boas nos Evan-gelhos, mas que não podem en-tusiasmar um espírito positivo,por místico que seja, se bem queesta parte boa da moral cristã,sem a qual o cristianismo não te-ria podido desenvolver-se não écristã - como mais adiante vere-mos.

As máximas - não faças a ou-trem o que não queres que te fa-çam e faze aos outros o que de-sejas que te façam - não são umacriação de Cristo ou dos Evange-lhos porque preexistiam já noAntigo Testamento, onde esta-vam desde a moral metafísicadas religiões orientais, principal-mente da búdica e da zêndica oupersa.

Suprimindo todas estas máxi-mas que não pertencem ao cristi-anismo e são, além disso, provacontrária à existência de Cristo,o resto da moral evangélica écondenável sem remissão, e se-ria bastante para execrar o ho-mem que a criasse, se fosse obrade um só homem. E vemos aHumanidade, que cresceu nasdoces ilusões de que o Cristofora a personificação de todas asperfeições humanas, concentran-do nele toda a idealidade...

A Humanidade, tornada adul-ta, deve reconhecer que, na suaadolescência, foi vítima de umaenorme mistificação.

Os que neste ponto se encon-tram da verdade verão porquemotivo determinados cristãos da

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nossa época, como Tolstoi e cer-tos reformadores alucinados pelalenda, julgando-se talvez conti-nuadores de Cristo se regozijamem manter as antigas ilusões,opostas a toda a evidência, atodo o conhecimento sereno ecrítico do assunto.

Um dos fenômenos mais ex-traordinários da nossa época,rico de ensinamento é o fato deapelarem para Cristo, tanto osrevolucionários como os déspo-tas. E têm razão uns e outros.

Algumas vezes, Cristo prega aresignação. São Paulo chega aproibir que se reclame e façajustiça (I-Cor. VI-7) e declaraque, emanando de Deus todo opoder, serão por ele condenadostodos os que oponham resistên-cia (Rom. XIII, 1-2). Isto é paraos déspotas.

Para os revolucionários e paraos próprios anarquistas, Cristonão só exalta a pobreza, mas atéconsidera o governo como umabuso, e todo o magistrado comoum natural inimigo dos homense de Deus (Mat. X, 17 e 18 Lu-cas XIII, 11).

Não é porventura, edificanteessa duplicidade do cristianis-mo? Não serão ingênuos os quebaseiam as suas esperanças e osseus privilégios numa moral tãoabsolutamente contraditória?

Não se verá que semelhante mo-ral não pode ser obra de um sóhomem ?

Mas, nem as classes dominan-tes, nem a casta sacerdotal, quealém da ilusão, tem interesse emperpetuar a mistificação de 2 milanos - nem elas sequer poderiamimpedir que a luz da razão ofus-que a moral evangélica...

Poucos séculos há que esta luzcomeçou a brotar das inteligên-cias e, a não ser pelo receio quehá em dizer à Humanidade ver-dades tão amargas, de a privartão bruscamente de uma ilusãoque, por isso constitui uma gran-de força moral - na hora presentea crítica já teria, não só arrojadodos altares este último ídolo,mas até o teria já precipitado naGeena.

O que, porém, até hoje se nãofez, faz-se, deve fazer-se agora,porque a Verdade não reconhececompromissos nem fraquezashumanas e porque a lógica nãose sente satisfeita se não chegaaté as últimas consequências. Aciência, de resto, não tem que sepreocupar com consequências.

Pois bem: enquanto a críticatrabalhe na demolição do ídolocristão e das ilusões de uma mo-ral superior, que o torna respeitá-vel mesmo a alguns incrédulos, eenquanto destrua o velho erro de

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acreditar na existência de Cristo,mudando em execração a vene-ração, tantas vezes secular, daHumanidade, por este ideal deperfeição por ela mesma criado -nós, pelo contrário, poupemos àHumanidade a dor de lhe des-truirmos o objeto da sua maiorveneração, demonstrando-lheque os defeitos da moral cristãnão são imputados àquele Cristo,que nunca existiu, mas sim à te-ologia que o criou.

E entenda-se bem que, em nósnão influem preocupações de ne-nhuma índole estranha à verda-de: nem a finalista daquele quecrê, nem a utilitária do nosso sis-tema.

Nada diremos da primeira,porque não nos compete, e acer-ca da segunda, advertiremos quequeremos aproveitar para a nos-sa tese os defeitos desumanos damoral cristã que entram a fazerparte do nosso quadro, atraídospela força irresistível da Verda-de.

Os defeitos da moral cristãsão tão evidentes que muitos ca-tólicos eruditos, não podendonegá-los e não querendo decidir-se a abandonar a fé, colo-cam-nos entre as provas da di-vindade desta religião, racioci-nando como o hebreu Abraãoque, tendo visto em Roma as tor-

pezas da corte pontifícia se fezcristão dizendo que se esta reli-gião pôde triunfar e subsistir,apesar de tanta corrupção é por-que tinha a proteção do céu.

Citemos, como exemplo, Ni-colau Tomásio, que disse: Solda-dos pagãos, contratistas gerais,mulheres a quem o mundo cha-ma perdidas, um homem quemente e atraiçoa o seu amigo,outro que protege os que se de-dicam a lapidar inocentes. Eisos eleitos de Cristo! Esses que-rem que a história dos seus pro-dígios e das suas virtudes regis-tre entre os antepassados doSalvador do mundo um fornica-dor, uma meretriz, uma adúltera,um rei traidor e homicida. Estespensamentos humilham o espíri-to mas abrem o coração à seve-ridade para nós mesmos e à ca-ridade para com o próximo166.

Se os Evangelhos abundamem máximas desumanas, tantas ede tal calibre que, um homemreal desta terra não teria ousadoconcebê-las e muito menospregá-las sem ir para um mani-cômio ou cárcere, não é evidenteque tal circunstância depõe con-tra o caráter histórico daquelehomem e a favor da sua criaçãopuramente mitológica, simbólica

166 Nicolau Tomásio Roma e o Mundo,seç. V, cap. XVI.

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e sobretudo teológica? Especial-mente se essa circunstância entracoerentemente num processo deprovas análogas que se confir-mam umas às outras?

Vamos, porém a fatos, paranós mais eloquentes.

A moral evangélica, tiradas al-gumas máximas boas que nãosão suas pode dividir-se em duasgrandes categorias: a das máxi-mas irrealizáveis ou desuma-nas e a das máximas sectárias.E não se diga que tais máximassejam puramente virtuais, por-que tanto as humanas são sectá-rias, como as sectárias são desu-manas, pois umas e outras têmpor fundamento comum o cará-ter teológico, que denuncia a suaorigem impessoal e a sua forma-ção sistemática e eclesiástica.

Comecemos pelas máximasirrealizáveis ou desumanas

Em Mateus167 Cristo discorredeste modo: Não julgueis quevim trazer a paz à terra; nãovim trazer a paz, mas sim a es-pada. Vim trazer a discórdia dofilho contra o pai, da filha con-tra a mãe, da nora contra a so-gra. Quem ama seu pai ou suamãe mais do que a mim, e quemama seu filho ou filha mais doque a mim, não é digno de mim.

167 Mateus, X, 34-37.

Em Lucas168 exprime-se as-sim: se alguém vem a mim e nãoodeia seu pai e sua mãe, suamulher e seus filhos, seus ir-mãos e irmãos e até a sua pró-pria vida, não pode ser meu dis-cípulo.

Em Mateus169 (VIII, 21-22) aalguém que lhe pedira autoriza-ção para sepultar seu pai Jesusdiz-lhe: Segue-me e deixa que osmortos enterrem os seus mortos.

Em Lucas170 lê-se - Eis aquium que diz: Seguir-te-ei, senhor,mas primeiro, deixa-me ir dispôrdo que tenho em minha casa.-Jesus lhe disse: Quem põe a mãono arado e olha para trás, não édigno do reino de Deus.

Em Mateus171 Jesus aconselhaos seus discípulos a praticarem acastração voluntária, para que sefaçam dignos do reino dos céus.

Quem não odeia a sua pró-pria vida, não pode salvar-se,diz Jesus em Lucas172.

E em João173: Quem amar asua vida, perde-la-á, e quem aodiar neste mundo, conserva-la-á na vida eterna.

Jesus aconselha também a que168 Lucas, XIV, 26. 169 Mateus, VIII, 21-22.170 Lucas, IX, 61- 62.171 Mateus, XIX, 12.172 Lucas, XIV, 26.173 João, XII, 25.

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não trabalhem; a que se não pre-ocupem com a comida, com abebida, com os vestuários; a quenão pensem no dia de amanhã:que imitem as aves do céu, quenão trabalham e os lírios docampo, que não se cansam nemfiam174. Prefere Maria, que trocaos labores domésticos pelo asce-tismo, a Marta que por si só, háde realizar todos os trabalhos dacasa175.

Quer que o homem viva namais absoluta pobreza, na indi-gência mais miserável: Em Lu-cas,176 diz ele: Nenhum de vósque não renuncie a quanto tenhapode ser meu discípulo.

A própria dignidade humananão lhe merece a mais insignifi-cante consideração. Em Ma-teus177 ele diz: Não resistas aomal. E se alguém te ferir na facedireita, apresenta-lhe a outra. Eaquele que quiser demandar-teem juízo e tirar-te a túnica,deixa-lhe também a capa. E aoque te obrigar a ir carregandomil passos, vai com ele outrosdois mil a mais.

Não é mister grande engenhonem muita eloquência para pro-var que esta moral não é realizá-

174 Mateus, VI, 24-34.175 Lucas, X, 39-42.176 Lucas, XIV, 33.177 Mateus, V, 39 - 4.

vel, por desumana, isto é porcontrária às leis biológicas e so-ciológicas, incompatível com aconservação e progresso da es-pécie humana. Basta expô-la quepor si própria se condena.

Passemos agora às máximassectárias da moral evangélica.

O amor pregado pelos Evan-gelhos não se dirige a todos oshomens, mas apenas aos he-breus. Jesus ordena aos seus dis-cípulos que preguem o seu Ver-bo unicamente aos hebreus, eproíbe-os de entrarem na cidadedos gentios e dos samaritanos178.Diz que os doze apóstolos sesentarão em doze tronos parajulgarem as doze tribos de Isra-el179. Portanto, a sua missão li-mita-se única e exclusivamenteaos hebreus: é um mesquinhonacionalista!

Tanto assim é, que ele próprioresponde à Cananeia, que lhe pe-dia a cura de sua filha: que foraenviado só para Israel. Acrescen-tando não ser justo tirar o pãoaos filhos para o deitar aoscães180. E, quando em João181

pronuncia a sua última prece, de-clara que pede só pelos que nelecreem.

178 Mateus, X, 5-7.179 Mateus, XIX-28.180 Mateus, XV, 22- 26.181 João, XVII, 9-20.

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Mais imoral e não menos sec-tário ainda é o dogma da predes-tinação. Ninguém pode vir amim - diz Cristo - se o Pai, queme enviou, não o trouxer182. Porisso, declara que adotará a pará-bola com os que não forem seusdiscípulos, para que não com-preendam as suas palavras e nãopossam se salvar183.

Este dogma imoral, ou sectá-rio, se assim querem, foi postode propósito na parábola dodono de casa, que representaDeus, o qual chama, ele, próprio,a diversas horas os operários dasua vinha, pagando-lhes depois atodos por igual. E aos que censu-ram a sua parcialidade, respon-de, em Mateus:184 Não terei eudireito de fazer do que é meu oque entender? Os últimos serãoos primeiros e os primeiros osúltimos; por isso, muitos serãoos chamados e poucos os elei-tos.

E sempre, deste modo, e se-gundo esta preocupação teológi-ca, ensina que todo aquele quese exalta será humilhado e o quese humilha será exaltado185; queàquele que tem ser-lhe-á dado eterá em abundância, e àquele

182 João, VI, 44.183 Lucas, VIII, 10.184 Mateus, XX, 1-6.185 Lucas, XIV, 11.

que não tem, até o que não temlhe será tirado186 que mandouceifar os que não lavraram, fa-zendo-lhes desfrutar do que ou-tros lavraram187; que dos pobresserá o reino dos céus, sem outromérito mais do que a sua pobre-za, ainda que sejam vagabundos;que os ricos serão castigados, sópor suas riquezas, embora sejambons188. A mesma inspiração éreconhecida pelas parábolas doconvidado castigado sem cul-pa189 e do filho pródigo190. Odogma da predestinação encon-tra-se, pois, na Bíblia, erigidoem verdadeira doutrina de S.Paulo191 e se constitui num retro-cesso em relação ao politeísmogreco-romano, que punha a justi-ça e a Humanidade acima dospróprios deuses, quando eles nãorespeitavam as leis da natureza eda consciência.

O caráter, a origem, o própriofim teológico da moral evangéli-ca estão comprometidos pela cir-

186 Mateus, XIII, 12; Marcos IV, 25; Lu-cas VIII, 18. 187 João, IV, 38.188 Lucas VI, 20; XVIII, 25; Mateus,XIX, 24, 25 e 26; Marcos X, 25. 189 Mateus, XXII, 8-13. 190 Lucas, XV.191 Gal. II, 16-21; III, 10-25; I Tim. I, 9;Rom. III, 14-16; VIII, 29-30; IX, 11-12,47 ss.; XI, 6; Ef. II, 5, 8, 9; II Cor. IV, 3,4; II Tes. II, 10-12; I Tim. II, 25; I, 9;Filip . II, 13.

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cunstância desta moral se basear,não nas boas obras, mas exclusi-vamente na crença e no culto.

Ensinava Cristo, além disso,que: Quem crer e for batizadoserá salvo, mas quem não crerserá condenado192.

Esta máxima está em relaçãocom a outra, onde Jesus diz aosdiscípulos que os que não escu-tarem suas palavras serão trata-dos no Dia de Juízo mais seve-ramente do que os habitantes deSodoma e Gomorra193.

Donde se deduz que, para amoral evangélica, são preferíveisos delinquentes vulgares, con-tanto que sejam crentes, aos in-crédulos, ainda que sejam honra-dos.

Esta moral só pode ser teoló-gica. Está relacionada com amoral de todo o Antigo Testa-mento, que como já demonstra-mos, é obra quase exclusivamen-

192 Marcos, XVI, 16. Em outros lugaresCristo prega a moral independente doculto. Esta é outra das inúmeras contra-dições irreconciliáveis, que provam queele não é pessoa real, mas um objeto deespeculações da mais disparatada dasescolas teológicas. Veremos ainda, notempo oportuno, que Cristo ou melhor,o Evangelho, não era original, uma vezque essa doutrina era proveniente doprofetismo.193 Mateu, X, 13-15; Marcos, VI, 8; Lu-cas, IX, 3.

te teológica194 e em, muitos luga-res cita a máxima referida, trans-tornando toda a ordem moral ebaseando esta nas práticas doculto e nas crenças.

Muitos são os exemplos doAntigo Testamento que podemosaduzir. Limitar-nos-emos a citara instituição do bode expiatório(Levítico, XVI) e a da água depurificação.

Em geral, todo o espírito, queanima a Bíblia, se baseia na mo-ral religiosa. A Bíblia não medeo mérito ou demérito das pesso-as, sob o ponto de vista das boasou más ações, mas apenas se-gundo a sua devoção.

Aqui temos, entre muitos ou-tros, o exemplo de Achab. Noscapítulos que lhe são consagra-dos no Antigo Testamento, esterei de Israel é acusado de ímpioe tratado com a maior aspereza,apesar de não ter cometido asiniquidades de Davi e de Salo-mão, tão injustamente exaltadaspela Bíblia. Pelo contrário,Achab é um bom rei, humanitá-rio, generoso, magnânimo. Maspoupou a vida ao rei da Síria,Benadad, que não acreditava noDeus da Bíblia, e por isso con-quistou o ódio da casta sacerdo-tal.

194 Vernès, op. cit.98

Temos porém, Davi e Salo-mão que cometeram toda a espé-cie de iniquidades, mas favore-ceram a casta sacerdotal: logo aBíblia os elevou até às nuvens.

Mais ainda: Ehu, o infameEhu, era dado à leitura dos sa-cerdotes. Bastou isso para que aBíblia o enaltecesse.

Veremos ainda mais tarde,dois imperadores, Juliano eConstantino: o primeiro foi ummodelo de virtudes, mas nadaquis com o cristianismo. Foi obastante para passar à históriacom um nome infamante. O se-gundo, que foi um miserável, as-sassinando a própria família, éenaltecido pela Igreja, só por tê-la favorecido.

Mas o coroamento deste siste-ma é a eternidade das penas pre-gada pelo manso cordeiro de Na-zaré (Mateus, XXV, 41-46; XVI-II, 8) e o aturar ao inimigo nestavida: não vos vingueis do vossoinimigo, mas dai lugar à ira;porque, fazendo isto, amontoa-rás brasas vivas sobre a sua ca-beça. (Epístola aos RomanosXII, 20).

Mas onde sobretudo se mani-festa o caráter sectário, teológicoe verdadeiramente sacerdotal damoral evangélica é na instigaçãoàs perseguições religiosas. Nãosó com o famoso compelle in-

trare, Cristo, ou antes, os que es-creveram com a máscara do seunome, proclamaram a legitimi-dade da perseguição religiosa195.

Até os Evangelhos propria-mente ditos são a pura expressãoda evidência absoluta em proldesta perseguição. No capítuloXIX de Lucas, versículo 27, Je-sus põe na boca de um dos per-sonagens das suas parábolas, queé ele próprio, as seguintes pala-vras: E quanto àqueles meus ini-migos que não quiseram que eureinasse sobre eles, trazei-osaqui e tira-lhes a vida na minhapresença.

Segundo Mateus196 e Lucas197,Jesus disse que todos os que nãoestavam com ele, estavam contraele, palavras estas que queremsignificar, necessariamente, queo cristão deve ter por inimigoaquele que não é cristão.

No capítulo VII de Mateus,Jesus adverte os seus discípulosde que se guardem dos falsosprofetas, que são semelhantes àsarvores que dão maus. Frutos. Eacrescenta que toda a árvore quenão der bom fruto, deve ser cor-tada e arremessada ao fogo198.

No capítulo XV de João, Jesus195 Lucas, XIV, 16-24.196 Mateus, XII, 30. 197 Lucas, XI-23.198 Mateus, 15-19

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diz, textualmente: Eu sou a ver-dadeira videira, e meu pai é olavrador. Toda a vara que nãoder fruto em mim, ele a tirará.. .Eu sou a videira, vós outros asvaras. O que não permanecerem mim, será arremessado fora,como a vara; e secará, e seráenfeixado e atirado ao fogo, earderá.

S. Paulo, repetindo a doutrinados provérbios (XXIV, 17, 18;XXV 21-22) aconselha que se dêde comer ao inimigo que tenhafome e de beber ao que tenhasede, para amontoar sobre a suacabeça carvões acesos, isto é,para que Deus o possa castigarinfinitamente199. (Epístola aosRomanos XII, 20).

As máximas da moral evangé-lica explicam-se perfeitamentesob o ponto de vista teológico,isto é, da intolerância irmanadacom o preconceito religioso. AIgreja Católica encoleriza-secontra os que lhe recriminam assuas perseguições religiosas eautos de fé, porque o fundamen-to destes encontra-se na própriamoral evangélica. É na Bíbliaque se encontram as primeirasexecuções e apologias da into-lerância, com o auto de fé reali-zado por S. Paulo em Éfeso,onde queimou, grande numero199 Epístola aos Romanos XII, 20.

de livros, cujo valor, segundo osAtos dos Apóstolos, se elevava a50000 dinheiros de prata200. E oapóstolo João testemunha que oque se revolta e não permanecena doutrina de Cristo não pos-sui a Deus, e quem o não segue,não deve ser recebido em casa enem sequer saudado201.

Por fim, é ainda o mesmoCristo dos Evangelhos que levaa cabo a instituição da excomu-nhão, colocando entre o númerode adversários da igreja aquelesque com ela não se confor-mam202. Aqui, Jesus, falando daIgreja, delata a fábula, porque aIgreja não podia ainda existir noseu tempo, pois que só devia tervindo depois dele e por ele. Da-qui se depreende que os Evange-lhos foram escritos quando aIgreja estava já constituída,pondo-se na boca de Jesus o queele não pudera ter o dito, inven-tando-se, por isso, sem o menorescrúpulo.

Em tese geral, pode afir-mar-se que o Antigo Testamentonão é mais do que a escola dasperseguições religiosas. Cite-mos, como exemplo, as perse-guições seguintes Moisés faz ex-terminar por ordem de Deus

200 Atos, XIX, 19201 João, II, Ep. 9, 10, 11.202 Mateus, XVIII, 17.

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24.000 israelitas, que tinham sa-crificado perante o Deus Baalpe-or, e ordena a carnificina de to-dos os moabitas, incluindo mu-lheres e crianças, só porque ti-nham induzido os israelitas àapostasia.

Bastava o fato de alguém ex-citar a que se adorassem deusesestranhos para ser castigado coma morte. E o excitador devia sermorto, precisamente, por seupai, por seu irmão, por sua espo-sa ou por um seu amigo.

O livro dos Judeus não é maisdo que uma alternativa perpétuade apostasias por parte dos he-breus e de horríveis castigos porparte do Deus bíblico.

Elias manda exterminar 850profetas de Baal. O profeta Eli-seu ordena atrozes perseguiçõesreligiosas. Josias é bom visto porDeus, em razão das suas perse-guições ferozes contra os outroscultos.

Nos Salmos, as perseguiçõesreligiosas são exaltadas, invoca-das e abençoadas por Deus. Jere-mias pede o extermínio dos infi-éis. Outro tanto se lê em Isaías.O Eclesiastes é do mesmo pare-cer. Nos Macabeus, o sumo pon-tífice Mattatias estrangula umherege sobre um altar.

De tudo isto se vê que a Igreja

Católica imitou bem os exem-plos de violência e de intolerân-cia da Bíblia. Fazendo-se perse-guidora e inquisitorial seguiuapenas a Bíblia judaico cristãtanto nas palavras quanto no es-pírito.

Pregando a intolerância e aperseguição religiosas, Cristo,ou antes, a casta sacerdotal que oinventou, não faz mais do quemanter a tradição do Antigo Tes-tamento, onde as excitações aoódio teológico e às perseguiçõesdos incrédulos, encontram se acada passo.

Mas, ao mesmo tempo, dei-xou a descoberto a origem mera-mente teológica do mito que deulugar a Cristo, por mais que sejapróprio da casta sacerdotal minaras máximas fundamentais damoral humana para impor o do-mínio daquela sobre esta, anima-da pelo preconceito religioso, ar-vorando-se única e exclusiva de-positária da verdade absoluta. A origem teológica da moralevangélica se evidencia aindaem outra passagem importantedos livros do Antigo Testamento:a constante preocupação da Bí-blia a favor dos privilégios dacasta sacerdotal da qual ela é,por assim dizer, a carta magna,a lei fundamental. Para se convencer, basta ler os

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exemplos muito persuasivos daBíblia em favor desses privilégi-os sacerdotais: Levítico (VI, 26,29; VIII, 31; X, 13, 14; XXV,23; XXVII, 30-32) e sobretudo,Números, XVIII. Tendo os filisteus tomado a Arcado Senhor, o deus da Bíbliamata-os como quem mata mos-cas, pelo que eles resolvem de-volvê-la aos israelitas. Durante aviagem, a Arca Santa faz um pa-rada entre os betsamitas, que arecebem com alegria e holocaus-tos. Mas, em meio desta adoração, odeus da Bíblia faz morrer 50.070pessoas, simplesmente porque setinham atrevido a guardar a Arca(I Reis, VI, 13, 15, 19). Uza éfulminado só porque ousou se-gurá-la para não que ela não ca-ísse (Paral. XIII, 9, 10). Estes e outros exemplos, como ode Samuel que destrona o reiSaul demonstram bem que a Bí-blia não é, de modo algum, umaobra histórica, mas apenas umaobra teológica da casta sacerdo-tal e que as teocracias da IdadeMédia são seus frutos genuínos.

As ações que os Evangelhosatribuem a Cristo respondemtambém, em parte, ao espíritosectário da teologia, e, por outra,à preocupação constante da vidapós-terrena que torturava cons-

tantemente o pensamento dosseus inventores.

Recusa-se Cristo a receber suamãe e seus irmãos, que tinhamido procurá-lo, dizendo que osseus únicos parentes são os seusdiscípulos203.

Quando, aos doze anos, dei-xou a casa de seus pais, estes,fartos de pesquisas e cheios devivas inquietações, encon-tram-no, ao cabo de três dias, emJerusalém, e Jesus responde se-camente às doces advertênciasdeles: Por que me procurais?204

Quando nas bodas de Canaã,sua mãe lhe observa que os co-mensais já não têm vinho, res-ponde brutalmente: O que há decomum entre mim e ti,mulher?205.

Quando seus irmãos o convi-dam a ir a Jerusalém, pela Festado Tabernáculo, diz que não,mas apenas eles partem, logoparte também, às ocultas206.

Em muitos casos, entretém-se,enganando os que lhe falam, fa-lando ele, por sua parte, para nãoser compreendido207

Outras vezes, atribui a si pró-203 Mateus, XII, 46-50; Marcos II, 31-35; VIII, 20-21. 204 Lucas, II, 41-49205 João II, 1-10.206 João,VII-2-10.207 João, II-21 III, IV, VI.

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prio uma missão obscurantista208 Outras, enfim, insulta sem ra-

zão alguma, os escribas e fari-seus209, porque se fazem batizarembora reconheça que são parti-dários da lei de Moisés, aconse-lhando que se faça tudo o queela ensina210. Declara que estesestão irremissivelmente conde-nados ao inferno, a fim de quetodo o sangue inocente derrama-do sobre a terra, desde Abel aZacarias caia sobre eles211, sus-tentando assim a doutrina da re-versão de penas, condenadas pe-los próprios profetas212.

Quando Pedro teve notícia dofim que levava Jesus, fez voto deque tal não sucedesse. Porém,Jesus o apostrofou, cha-mando-lhe Satanás213.

Na parábola do mordomo infi-el, aprova o furto (Luc. XVI,1-9), apoiando-se S. Irineu no ver-sículo 9 do capitulo XVI de Lu-cas, para justificar aos Israelitas,que no Antigo Testamento, porconselho do Deus da Bíblia e deMoisés (Êxodo III, 21-22) ti-nham roubado aos egípcios os208 João, IX-39.209 Mateus, III-7.210 Mateus, XXIII, 2,3.211 Mateus, XXIII, 13-36.212 Jeremias. XXXI, 29-30; EzechielXVIII, 19-20.213 Mateus, XVI, 22, 23; MarcosVIII, 32-33.

seus vasos de ouro e prata e suasvestimentas.

Falando pacificamente aopovo, encoleriza-se de improvi-so, chamando hipócritas aos ou-vintes, sem que motivo algumjustifique tal mudança de senti-mentos214.

Faz-se manter pelas mulheresdos outros215

Cerca-se de gente faminta216 evagueia com os seus discípulossem respeitar a propriedadesalheias217

Faz atirar ao mar uma manadade porcos, sem pensar no prejuí-zo causado aos seus donos218.Ordena aos apóstolos que nãosaúdem ninguém quando em via-gem219.

Ele prega, em suma, o egoís-mo220, a hipocrisia e a vaidade221.

Poderíamos continuar indefi-nidamente, demonstrando que ocaráter e a doutrina moral deCristo são sempre conforme aBíblia, coisa bem diversa daque-le ideal de perfeição que a Hu-

214 Lucas, XII, 56. 215 Lucas VIII, 1-3.216 Marcos II, 16.217 Marcos II, 23. 218 Mateus VIII, 28-34; Marcos V, 1-20;Lucas VIII, 26-39. 219 Lucas X, 4.220 Lucas XIV, 12-14.221 Lucas XIV, 10.

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manidade formou. Mas, para que continuar? Basta-nos ter provado que a

moral de Cristo não é, não podeser a moral de um homem, massim a de uma seita teológica ou

precisamente, da casta sacerdotalpreocupada, não com a Humani-dade e com a realidade da vida,mas sim de preferência, com ointeresse da Igreja e com a salva-ção da alma.

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Terceira Parte

Cristo na Mitologia

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CAPÍTULO ICRISTO ANTES DE CRISTO

Se Cristo nunca existiu, comoe por que foi inventado ou ima-ginado? A esta pergunta respon-derá o presente capítulo do nos-so trabalho, onde exporemosuma nova e luminosa prova con-tra a existência humana, real eobjetiva de Cristo.

Além disso, se demonstrar-mos que outros personagensanálogos, senão idênticos a Cris-to, o precederam na história dasideias humanas ou nos temposdos conceitos representativos. Seprovarmos que os predecessoresde Cristo, os mesmos que derama este todos os elementos da suavida, do seu pensamento e dasua missão não foram mais doque simples mitos, teremos de-monstrado também que Cristonão é apenas uma cópia, mas ummito igual, de onde se concluirálogo que nunca existiu, a não serna imaginação daqueles que têmacreditado nele.

Começaremos por passar umarápida vista sobre a vida e mila-gres dos Deuses Redentores, queprecederam Cristo e da qual veioo mito cristão, pois Cristo não émais que a repetição do mesmotema.

A antiga Índia teve mais deum Deus Redentor. Porque nessaregião, onde o maravilhoso e osobrenatural têm a sua origem, oDeus Redentor Vischnú encar-nou nove vezes, tomando formahumana para redimir a Humani-dade do pecado original.

Para o nosso trabalho só é in-teressante a oitava e nona avatarou encarnação de Vischnú, quena oitava assume a pessoa deCristna e na nona se encarnacomo Buda.

Cristna, o Redentor hindu,nasce de uma virgem, a virgemDevanaguy, e a sua vinda estávaticinada nos livros sagradoshindus (Atharva, Vedangas, Ve-danta).

O mesmo Vischnú, o Deusbom e conservador aparece aLakmi, mãe da virgem Devana-guy, para lhe revelar os futurosdestinos daquela que estava paranascer e para lhe indicar o nomeque devia impor à mãe do Re-dentor, recomendando-lhe, final-mente, que não una sua futura fi-lha em matrimônio com pessoaalguma, atendendo a que se de-viam cumprir os desígnios de

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Deus222. Isto teve lugar uns 3500anos antes da era vulgar e no pa-lácio do rajá de Madura, peque-na província da Índia oriental.

A menina recebe ao nascer onome de Devanaguy, conforme oque estava escrito. O rajá teveum sonho em que se viu expulsodo trono pelo filho que nasceriade Devanaguy. Por esta razão, otirano de Madura faz encerrarDevanaguy numa torre e soldar aporta para evitar toda a possibili-dade de fuga, colocando aindaum valente guarda à vista da pri-são.

Tudo porém foi inútil. A pro-fecia de Poulastya, não podia serimpedida: E o espírito divino deVischnú atravessou as paredespara se unir a sua amada. Certanoite, enquanto a virgem orava,uma celeste música veio de im-proviso deleitar os seus ouvidos,iluminou-se a prisão e Vischnúapareceu diante dela com todo oesplendor da sua divina majesta-de. Devanaguy foi ofuscada pelo

222 No poema hindu Maha Bhárata en-contra-se outra anunciação, que pareceter servido do modelo à do Batista, tãosemelhante ela é. A deusa solar Sâvitrideu um filho a Asvapatis, piedoso reide Masdras, velho e sem prole que selamentava de não ter descendência e seentregara por 18 anos a contínuas peni-tências e frequentes exercícios de pieda-de.

espírito de Deus que queria en-carnar-se, e concebeu.

Na noite do parto e enquantoo recém-nascido exalava os pri-meiros vagidos, um vento fortís-simo desmoronou o muro da pri-são e a Virgem foi transportadacom o filho, por um mensageirode Vischnú, à uma cabana depastores pertencente a Nanda. Orecém-nascido foi chamadoCristna.

Quando os pastores souberamdo depósito que tinha-lhes sidoconfiado prostraram-se diante dofilho da Virgem e adoraram-no.

O tirano de Madura, sabedordo parto e da fuga de Devanaguyencolerizou-se em extremo e or-denou uma matança geral de to-dos os meninos, nascidos nosseus Estados durante a noite emque Cristna tinha vindo ao mun-do.

Um pelotão de soldados saiimediatamente para o aprisco deNanda, mas Cristna escapa mila-grosamente daquele ameaça.

São quase inenarráveis os epi-sódios dos primeiros anos deCristna, que saia sempre vitorio-so dos perigos e ciladas que lhearmavam os que queriam a suamorte, fossem homens ou dia-bos.

Aos dezesseis anos, Cristna

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abandona os seus parentes e co-meça a percorrer a Índia, pregan-do a sua doutrina.

É o tempo dos seus grandesmilagres: ressuscita mortos, curaleprosos, restitui a audição aossurdos e a vista aos cegos.

Proclama-se a segunda pessoada Trindade, isto é, Vischnú,descido à terra para salvar o ho-mem do pecado original.

Os povos acudiam em massaavidamente para o ver e ouvir osseus ensinamentos, adorando-ocomo a um Deus e dizendo: Esteé realmente o Redentor prometi-do a nossos pais.

A sua moral é pura, elevada ecompletamente altruísta.

Rodeia-se de discípulos quedevem continuar a sua obra.

Ensina por meio de parábolas.Um dia, em que o tirano de

Madura enviara muitos soldadoscontra ele e seus discípulos, es-tes, tomados de pânico, quise-ram fugir, especialmente Ardju-na, chefe dos discípulos, que pa-recia abalado na sua fé.

Cristna, que estava orandoperto, ouvindo os seus lamentosfoi ter com eles, repreen-dendo-os pela sua pouca fé, apa-recendo-lhes com todo o esplen-dor da divina majestade e com orosto de tal modo iluminado que

nem os discípulos puderam re-sistir a tanta luz.

Em seguida a esta transfigura-ção, os discípulos chamaram-lheJezeus, que quer dizer nascidoda pura essência divina.

De outra vez em que se en-contrava com os discípulos,acercaram-se dele duas mulheresda pior condição que lhe derra-maram perfumes sobre a cabeçae o adoraram.

Quando Cristna compreendeuque tinha chegado a hora deabandonar a terra e voltar ao seiode quem o tinha enviado sepa-rou-se dos discípulos proi-bindo-lhes que o seguissem e,transportando-se às margens doGanges mergulhou no rio sagra-do.

Em seguida ajoelhou-se, eorando esperou a morte. Nestaposição foi atingido por uma fle-cha e pregado a uma árvore.

O que o matou foi condenadoa vaguear eternamente sobre aterra.

Quando se espalhou a notíciada morte do Redentor, os seusdiscípulos correram a recolher ossagrados despojos; estes porém,tinham já desaparecido, porqueele ressuscitara e subira ao céu.

A nona encarnação de Visch-nú é aquela em que aparece

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como Buda223. Foi revelada emsonhos à sua mãe a grandeza dofilho e o ascendente que teria so-bre todos os seus semelhantes.

Escolhe, para nela nascer,uma casta principesca, assimcomo Cristo escolheu a de Davi,e desce à terra. Isto acontecia628 anos antes de Cristo.

Por ocasião do seu nascimen-to, sucedem coisas maravilho-sas: uma luz deslumbrante ilu-minou dezesseis mil mundos, oscegos viram, falaram os mudos,andaram os paralíticos, os prisio-neiros recuperaram a liberdade;uma doce brisa refrescou e ani-mou a terra, mananciais fres-quíssimos rebentaram do seuseio, as florestas abriram-se emcorolas multicores e dos céuschoveram lírios de aromas ine-briantes.

De suas altíssimas moradas,saíram espíritos para vigiar o pa-lácio onde devia nascer a criatu-ra e desviar dele e de sua mãetodos os males.

Tão logo nasceu, pôs-se de pé,e diante dos espíritos e dos ho-223 Ao nascer, foi chamado de Guatama,nome da tribo a que pertencia sua famí-lia; Sâkya-Muni, o mentor espiritual dosSâkya; Siddârtha, nome imposto porseu pai e significa Aquele no qual secumpriram os desejos, e, posteriormen-te, Budda, que significa O iluminado,palavra derivada do radical budh (saber)

mens maravilhados, aparece nocéu uma estrela brilhante, aco-dem reis a adorá-lo, e da terra,surge a famosa árvore Bo, sobcuja sombra deveria transfor-mar-se em Buda: Aquela árvoretem as folhas continuamente emmovimento, com o que se quersignificar o estremecimento co-memorativo da sagrada cena deque foram testemunho, à seme-lhança do que dizem os sírios,acerca das folhas da trêmula, queincessantemente se agitam emmemória da crucificação deCristo, de cuja árvore se diz tersido feita a cruz.

Entre os que cheios de gozovão visitar a maravilhosa criatu-ra, fala-se principalmente de umvelho, muito semelhante ao nos-so Simeão, que em troca da suavida devota recebeu o dom dasprofecias. E, embora o seu espí-rito se alegrasse pelo futuro re-servado a esse menino, não po-dia deixar de chorar pensandoque, em virtude dos seus anosnão poderia assistir aos triunfosdele.

A mãe de Buda chama-seMaya ou Maïa, e concebera-o deum modo maravilhoso, fora detoda a relação conjugal.

Quando morreu, foi por suasvirtudes, recebida no céu, ondehabitam os Nat.

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Buda era belo e dotado de ex-traordinária inteligência, maravi-lhando os doutores pela sua sa-bedoria. Por fim, abandonou oteto paterno para levar a cabo asua missão.

Enquanto jejuava no deserto,à sombra da árvore, por um perí-odo de 49 dias (7x7) foi tentadovárias vezes pelo demônio, sem-pre saindo vitorioso.

Pregou pela primeira vez emBenares, convertendo à fé gran-des e pequenos. A sua moral,como veremos, é muito superiorà de Cristo.

O mais célebre dos seus dis-cursos ficou sendo chamado, emvirtude do local onde foi pronun-ciado, de o Sermão da Monta-nha, precisamente como o deCristo. Depois da morte, apareceaos discípulos, em forma lumi-nosa, com a cabeça circundadade uma auréola.

Buda teve também um discí-pulo traidor, Devadatta. Não dei-xou nada escrito. Os seus discí-pulos, porém reunidos em conse-lho geral recolheram todas assuas doutrinas.

Entre esses discípulos, houvedois de natureza diametralmenteoposta: um sério e crente em ab-soluto e cheio de zelo; outro dul-císsimo por natureza e predileto

de Buda. O mesmo que Pedro eJoão, discípulos de Cristo.

Buda, como Cristo, revol-tou-se contra o poder soberanodos sacerdotes.

Como os cristãos, os budistasestão divididos em varias seitas.No budismo encontram-se todasas práticas religiosas do cristia-nismo. E tanto é assim que,quando os missionários católicosse encontraram pela primeira vezcom os monges budistas, acredi-taram numa tentação do diabo, oqual teria sugerido a esses mon-ges as práticas católicas, sempensarem que os imitadores nãopodiam ter sido os budistas,muito mais antigos que os cris-tãos.

Até no seu Papa (Dalai Lama)e na sua infalibilidade, os budis-tas precederam os cristãos.

Mas, não antecipemos o planoda nossa obra e continuemosnarrando a história dos DeusesRedentores, precursores de Cris-to.

Do pouco que já dissemos sedepreende, com evidência quenão pode ser maior, que na Índiahouve uma encarnação do DeusRedentor, 3.500 anos antes deCristo, e outra seis séculos ante-riores, também, e que em seu Je-zéus Cristna e em seu Buda exis-

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tem já quase todos os elementosdo mito cristão, aos quais se as-semelham extraordinariamente.

Quanto mais avançarmos nabreve resenha dos Deuses Re-dentores que precederam Cristo,mais claramente veremos que naépoca em que foi concebido estemito (de Cristo), não foi precisoinventar nada para conformá-lotão bem quanto foi configurado.

Vejamos agora Mitra, o DeusRedentor da Pérsia, que comoobserva Stefanoni, é um pontode passagem entre o avatar, en-carnação hindu, e a encarnaçãocristã. A diferença característicaentre os dois antropomorfismosnão é, na realidade, muito sensí-vel. Ocorre porém, considerarque na encarnação hindu é a di-vindade única e absoluta quetoma da forma humana, sem vín-culo algum de inferioridade como pai celestial, ao passo que aencarnação cristã se distinguepela procedência do filho do pai.E nos livros sagrados da Pérsia,o Deus Redentor transforma-seem patrono de Ormuz, quaseigual a Deus. Mitra é precisa-mente o intermediário entreDeus e os homens, como dizPlutarco224.

Além disso, como nota

224 Sobre Isis e Osiris, c. 46.

Maury225, em Mitra realiza-se aunião da ideia física da passa-gem das trevas para a luz, com aideia moral da união do homemcom Deus.

Mitra, chamado também Se-nhor, nasce de uma virgem,numa gruta. Como Cristo, quenasce num estábulo, também deuma virgem. O dia em que nasceMitra é o mesmo em que, de-pois, nasce Cristo: em 25 de de-zembro, isto é, no solstício doinverno.

Este dia era o da festa princi-pal da religião dos Magos, se-gundo Freret e Hyde.

A mãe de Mitra continua vir-gem depois do parto.

Na esfera dos magos e doscaldeus, o signo zodiacal da Vir-gem, tem junto desta um meninoe um homem, que parece ser osuposto pai da criatura.

O nascimento de Mitra anun-cia-se astrologicamente por umaestrela, que aparece do Oriente,e pelos magos que lhe levamperfumes, ouro e mirra.

Mitra, que nasce em 25 de de-zembro, como Cristo, morrecomo ele, no equinócio da pri-mavera. E, como ele também,teve o seu sepulcro, ao qual iam

225 Crenças e lendas da antiguidade, c.Mitra.

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os seus iniciados derramar lágri-mas. O escritor cristão Firmicoconta que os sacerdotes levavamao túmulo, de noite num andor, aimagem de Mitra, cerimônia queeles acompanhavam com cânti-cos fúnebres. Acendia-se o círiosagrado (círio pascal), ungia-secom perfumes a imagem doDeus e um dos sacerdotes decla-rava solenemente que Mitra ti-nha ressuscitado e que as suaspenas tinham remido a Humani-dade.

Outra parte da vida de Cristona mitologia persa, já tinha sidoaplicada a Zoroastro. O reveren-do dr. Mills, eminente teólogo esábio cristão não pode deixar dese render à evidência, declaran-do e reconhecendo que a tenta-ção de Cristo figurava já na mi-tologia persa, como tentação deZoroastro, e acrescenta: Nenhumsúdito persa, que passeasse pe-las ruas de Jerusalém, poderiadeixar de reconhecer imediata-mente este maravilhoso mito.

Mais adiante veremos a sur-preendente semelhança entre osmistérios persas e os cristãos, se-melhança tão extraordinária, queS. Justino, não podendo negá-lanem sabendo explicá-la com ra-zões favoráveis à ortodoxia, acu-sava o diabo de ter revelado aospersas os mistérios do cristianis-

mo, antes do nascimento deCristo.

Continuemos com a resenhados Deuses Salvadores.

Os egípcios tinham também oseu Deus Salvador em Horus,convertido depois em Osiris ousimplesmente Serápis226.

Horus também nasceu de umavirgem no solstício do inverno emorreu no equinócio da prima-vera para depois ressuscitarcomo Cristo. Horus estava ex-posto no solstício do inverno soba imagem de uma criatura à ado-ração dos fiéis, porque então, dizMacróbio, o dia era mais curtoe este Deus não passava de umdébil menino: o menino dos mis-térios, cuja imagem os egípciostiravam de seus santuários todosos anos e em um dia determina-do (25 de dezembro ). Deste me-nino proclamava-se mãe a deusade Sais, na famosa inscrição: ODeus que pari é o Sol. O deusHorus teve também a sua fuga,levado pela virgem Ísis, montadasobre um jumento.

O mesmo mito foi aplicado noEgito ao rei Amenófis III, queconvém recordar aqui por ser um226 Segundo a lenda egípcia, no dia em quenasceu Osiris uma voz gritou do alto do céu,que tinha nascido o Senhor de todo o mundo.(Plutarco, De Isis e Osiris, XIII O evangelis-ta Lucas (II, 11) apenas copiou a lenda egíp-cia.

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documento da maior importânciapara demonstrar que, dezoito sé-culos antes de Cristo, os mistéri-os que se encontram no Evange-lho de Lucas (c. I e II) já eramconhecidos.

Trata-se de um quadro pintadonuma das paredes do templo deLuxor, no qual se veem as cenasda Anunciação, da Concepção,do Nascimento e da Adoração.Este quadro foi reproduzido porG. Massey no seu livro NaturalGenesis227. Na primeira cena, oDeus Yath, o Mercúrio lunar(anjo Gabriel) saúda a virgem elhe anuncia que ela dará à luzum filho. Na cena seguinte, oDeus Knept (o Espírito) produza concepção. Na cena da adora-ção, o menino recebe as home-nagens dos deuses e as oferendasde três personagens (os Magos).

Também Baco nasceu no sols-tício do inverno, depois de mor-to desceu aos infernos e ressus-citou, e a cada ano se celebra-vam os mistérios da sua paixãono equinócio da primavera. Cha-mava-se Salvador, como Cristo,e como ele, realizava milagrescurando enfermos e prevendo ofuturo. Na sua infância, ameaça-ram matá-lo, como Herodes aJesus, em uma emboscada. No227 Citado por Malvert in Ciência eReligião.

templo de Baco operava-se o mi-lagre da mudança de água em vi-nho, tal qual fez Jesus nas bodasde Canaã.

Igualmente, Adônis, cujonome significa meu senhor, tinhaas suas festas que duravam oitodias (adonias), quatro de lutopela sua morte e quatro de ale-gria pela sua apoteótica ressur-reição. Uma verdadeira semanasanta sem lhe faltar nem mesmoos santos sepulcros, onde as mu-lheres executavam lamentaçõesfúnebres em torno do deus mor-to. Apagavam-se todos os círios,menos um (o pascal) que se es-condia no altar, para de novo sermostrado no dia da ressurreição.Depois, o deus morto ressuscita-va e o luto dava lugar à alegria.Estas festas continuaram a sercelebradas no mundo antigo, es-pecialmente entre os fenícios,durante mais de cinco séculos,antes de se transformarem nas dapaixão de Cristo.

Um dos rasgos característicosdos Deuses Redentores é a suadescida aos infernos, durante otempo em que estão mortos.Também antes de Cristo e emidênticas condições, Baco, Osí-ris, Cristna, Mitra e Adónis,aproveitam o tempo em que es-tavam mortos para fazer nova vi-sita aos defuntos. (Dupuis, Ori-

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gem de Todos os Cultos, V, 204-348).

Poderemos continuar a rese-nha dos Deuses Redentores, deidênticos caracteres e notóriosrepresentantes do Sol: como Atina Frígia, Belenho entre os Cel-tas, Joel entre os germanos, Foentre os chineses, etc.

Até agora temos demonstradosuficientemente que, quandoCristo foi concebido, já tinhamexistido muitos Cristos antesdele.

O leitor, neste ponto, deve porsi próprio tirar suas conclusões ededuzir consequências espontâ-neas e naturais.

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CAPÍTULO IIA MITOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO NÃO É ORIGINAL

Neste ponto poder-se-ia obje-tar que Cristo não foi copiadodos Deuses Redentores dos ou-tros povos, porque, como nóspróprios já admitimos228, Cristoé um mito adaptado às alegoriasdo Antigo Testamento.

Mas esta dificuldade logo de-saparecerá assim que se proveque nem mesmo o Antigo Testa-mento é original, e que ele, ouantes a sua mitologia, se limita auma cópia das mitologias orien-tais.

De sorte que, se por um lado,Cristo é uma cópia dos DeusesRedentores do Oriente, e por ou-tro, o mesmo Antigo Testamen-to, do qual Cristo depende, épura cópia das mitologias orien-tais, teremos que, enquanto Cris-to deriva dos Deuses Redento-res, o mesmo Antigo Testamen-to, a que Cristo se adapta derivadas mitologias orientais criado-ras dos mitos dos Deuses Reden-tores.

Em outras palavras: sem o pe-cado original, que serve de baseao Antigo Testamento não teriaacontecido a Redenção, que ser-ve de base ao Novo. Logo, se o

228 Segunda Parte, cap. III, IV.

pecado original deriva das mito-logias orientais, com mais razãoderivará Cristo, porque Cristoestá para os Deuses Redentores,assim como o Novo Testamentoestá para as mitologias orientais,e por sua vez, Cristo está para oAntigo Testamento assim comoos Deuses Redentores do Orienteestão para as mitologias orien-tais.

Neste capitulo, demonstrare-mos que a mitologia do AntigoTestamento é uma imitação dasmitologias precedentes.

A mitologia do Antigo Testa-mento baseia-se nestes conceitosfundamentais: Deus, a Criação, aqueda dos anjos, o Éden, Eva, aSerpente e o Pecado Original, oDilúvio, a Torre de Babel, osAnjos e os Demônios, o Paraísoe o Inferno, os Patriarcas, um le-gislador inspirado e os Profetas.Pois bem: esta mitologia não éoriginal, porque outros povos ativeram, muito antes dos he-breus.

As origens filosóficas doDeus hebreu são comuns com asdos outros deuses semíticos: Ja-hveh, Jahouh. Jeová nasce deEloa, Ilou, Jahouh, Jahoh, que

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são os nomes de Deus tirados devários povos semíticos. Sobre oDeus hebraico tiveram incontes-tável influência os outros deusesalheios ao grupo semita, comoAhoura Mazda, persa, e Jeová,hebraico, que é - Aquele que é.

A criação tem lugar no Gêne-ses, como em todos os livros sa-grados de todos os povos maisantigos. No Zend-Avesta, dospersas, o Ser Eterno cria o Céu ea Terra, o Sol, a Lua e as Estre-las, em seis Períodos, e o ho-mem, como no Gêneses, apareceno último229. Contando o dia derepouso temos sete dias ou perí-odos, número tido por sagradonas nações antigas porque provi-nha da primitiva adoração doSol, da Lua e dos cinco planetase das fases lunares, que tinhamlugar de sete em sete dias

Assim como a lenda da cria-ção, a do fim do mundo tambémfoi adaptada a partir das mitolo-gias orientais. Volney explicaque isso aconteceu pela interpre-tação equivocada das tradiçõesastronômicas persas e caldeias.

De acordo com estas, o mun-do seria composto de um total de

229 A ordem da criação persa é idêntica àdo Gênesis (Hyde, Valney etc.) Notávele a circunstância de que nos livros sa-grados dos etruscos também se encontraa mesma tradição.

12.000 revoluções (em torno doSol) divididas em duas revolu-ções parciais, das quais uma se-ria a idade do bem, que termina-ria após seis mil anos, e a outra,a idade do mal, que terminariadepois de outros seis mil anos.

Como se vê, fazem uma alu-são à revolução anual do planeta,composta de 12 meses, cada umdividido em 1.000 partes e osdois períodos de inverno e verão,cada um dividido em 6 meses,ou 6000 partes.

Esta divisão, inicialmente ape-nas astrológica, foi posterior-mente tomada em sentido con-creto e interpretada como se omundo fosse durar 12.000 anos,divididos em 6.000 anos de feli-cidade e outros 6.000 de infelici-dade.

Supondo que aqueles até en-tão passados fossem os anos deinfelicidade, conforme cálculosatribuídos aos 70 eruditos ju-deus, os cristãos acreditavamque o fim do mundo, ou dos6000 anos estava próximo, tantoque nos Evangelhos Cristo anun-cia o iminente fim daquela gera-ção.

Sabe-se como essa crençaabalou a autoridade da Igrejacristã nos primeiros séculos, tan-to que, depois do ano mil, foi re-legado o cumprimento da profe-

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cia do Apocalipse, o que nãoconseguiu salvar o prestígio doslivros sagrados cristãos quandose percebeu que a Profecia dosEvangelhos colocada na boca deCristo não se concretizara.

A lenda do fim do mundo,como se encontra na Revelaçãoé uma cópia idêntica da lendados livros sagrados da Índia, quetêm as mesmas imagens e osmesmos fenômenos que no doApocalipse.

Não é a toa que se imaginaque o pretenso autor do Apoca-lipse esteve na Ásia e o tenha es-crito após o seu retorno. A des-crição do fim dos tempos, tantono cristianismo, como na religi-ão zêndica é que o mundo seráconsumido pelo fogo, aceso porum cometa. Em seguida, o zên-dico Messias, precedido por doisprofetas (Elias e Enoque, na mi-tologia judaica), virá ao mundopara destruir o império das tre-vas e julgar os vivos e os mor-tos. Apenas no mazdeísmo é quemesmo os ímpios serão limpos eperdoados.

Na criação hindu, segundo asleis de Manu, o universo estavasubmerso nas trevas, como noGêneses, quando o invisívelBrahma as dispersou e criou aságuas, imprimindo-lhes o movi-mento.

Criou logo uma série de divin-dades subalternas, chamadas an-jos, presididas por Mohassura.Este, movido por um desenfrea-do desejo de reinar induz os an-jos à rebelião contra o Criador,de quem se afastara. Siva foi en-carregado de os expulsar do céusuperior, e precipitá-los nos glo-bos inferiores (inferno).

Brahma criou o homem e amulher, dando-lhes a consciên-cia e a palavra, tornando-os su-periores a tudo que tinha criado,só inferiores aos Devas e a Deus.

Ao homem chamou Adima(Adão, o primeiro homem) e àmulher Heva (Eva, a que com-pleta a vida). Colocou-os em umparaíso terrestre em meio deuma esplêndida vegetação; orde-nou-lhes que se unissem, procri-assem e o adorassem por toda avida, e proibiu-lhes de deixar oparaíso terrestre (Ceilão). Elesdesobedeceram e logo o encantoda Natureza desapareceu. Brah-ma os perdoou, mas expulsa-osdaquele lugar de delícias, e con-dena-lhes os filhos a trabalhar,prevendo que se tornarão mausinfluenciados pelo espírito domal que invadira a Terra.

Consola-os, porém dizendoque lhes enviará Vischnú, que seencarnará no seio de uma mu-lher, para redimir o gênero hu-

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mano do pecado.Na mitologia persa, Ormuz

promete ao primeiro homem e àprimeira mulher a felicidadeeterna, desde que se mantives-sem bons. Mas um demônio coma forma de serpente é enviadopor Ariman. Nesse demônioacreditam, pois os persuade deque Ariman é o distribuidor detodos os bens, e começam aadorá-lo.

O demônio levou-lhes algunsfrutos, que logo comeram, desa-parecendo imediatamente a feli-cidade de que gozavam. Expul-sos desse lugar, começaram ma-tando animais para se alimenta-rem, cobrindo-se com as pelesdos mesmos. E no coração des-tas infelizes criaturas humanas,nasceu o ódio e a inveja e forammalditos, eles e suas gerações.

Uma particularidade digna denota é a semelhança entre o pa-raíso terrestre persa com o Édendo Gêneses. O paraíso persachama-se Eren, em vez de Éden,tendo havido corrupção de umaletra na passagem da lenda persapara a hebraica. Em outros para-ísos terrestres há os mesmosrios.

A árvore tem doze frutos, quecorrespondem aos 12 signos dozodíaco e aos 12 meses do anodurante o qual o Homem passa

alternativamente por períodos debem e de mal, de luz e de trevas,de calor e de frio. O Gêneses nãofaz menção deste número, masfala do Apocalipse.

Para finalizar. No nome doanjo posto de guarda no jardim,vê-se a semelhança da cópiacom o original: No Zend-Avestaele se chama Chelub enquantoque no Geneses é Cherub (Que-rubim)

Os hebreus tomaram igual-mente, dos persas, durante o seucativeiro nas margens do Tigre edo Eufrates, a ideia da imortali-dade da alma e da vida futura, e,consequentemente, a mitologiados anjos e demônios.

Os próprios nomes dos anjos(dividido em 7 ordens como as 7órbitas dos planetas), - Gabriel,Miguel, Rafael, Querubins, Sera-fins, Tronos (Ofanins) e Domi-nações - foram copiados das reli-giões persa e caldaica.

O vocábulo Satã significavaentre os hebreus, diz Bian-chi-Giovini, um homem inimigo.Foi só depois do desterro do Ba-bilônia é que foi usado com osignificado de anjo do mal.

Mesmo Asmodeu, que no An-tigo Testamento foi causa de per-turbações histéricas em mulheres(Tobias, III,8; VI,14) foi copiado

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do Aeshmodaeva persa, o deusda concupiscência.

O Paraíso e o Inferno provêmdos mitológicos orientais. Paraí-so, em persa, significa jardim. OParaíso e o Inferno, já figuravamna mitologia dos hindus, persas,egípcios, gregos (Elísio), roma-nos (Tártaro), gauleses e escan-dinavos. Mas esses povos nãoconheceram a eternidade das pe-nas. Isso estava reservado paraser proclamado pelo manso cor-deiro de Nazaré.

Quanto ao Purgatório, a Bí-blia não o conhece, nem no Anti-go nem no Novo Testamento. AGregório devem os cristãos asprimeira menção do Purgatório,cuja ideia foi talvez tirada dePlatão, que dividiu as almas emtrês classes: as puras, as curáveise as incuráveis.

Os Vedas contam também alenda do Dilúvio230. Os filhos deAdima e Heva tornaram-se tãonumerosos e tão maus, que che-garam a negar à Deus e suas pro-messas. Então, Deus resolveucastigá-los, mandando-lhes o Di-lúvio. Só se salvou Vaiwasvata,por causa das suas virtudes. Osenhor mandou-o avisar do que

230 Regnaud no livro, Como Nascem osMitos, demonstra a precedência da len-da védica sobre a semítica (pp. 59 esegs.).

sucederia, que construísse umbarco onde se encerraria comsua família, um casal de todas asespécies animais e exemplaresde todas as plantas. Quando oDilúvio findou, Vaiwasvata de-sembarcou no cimo do Himalaia.

A narrativa caldaica é aindamais importante porque explicamelhor a origem do Gêneses.Essa lenda foi recentemente de-cifrada nas tábuas encontradasna ruína de Ninive, onde se en-controu toda a mitologia, de quea hebraica não é senão cópia.

O Deus Ilu adverte Xisultrusde que em breve um dilúvio des-truirá todo o gênero humano, emanda-lhe que escreva uma his-tória de todas as coisas, que en-terrará na cidade do Sol. Tam-bém lhe ordena que construauma embarcação na qual se re-colherá com sua família e osseus amigos, um casal de cadaespécie animal com alimentospara todos.

Para saber se as águas tinhamjá descido, fez sair do barco, portrês vezes, algumas aves que àterceira vez não voltaram, sinalevidente de que encontraram ter-ra seca, onde pousar. A nave dásobre a montanha e ele sai comos seus.

As memórias caldaicas dasTábuas de Nínive, falam tam-

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bém da lenda da construção datorre de Babel. Os primeiros ha-bitantes da terra, orgulhosos desua força e poder começaram adepreciar os deuses, levantandono lugar onde ficava Babilôniauma torre que chegasse até aocéu. A certa altura, porém, osdeuses, auxiliados pelos Ventos,derrubaram o edifício e confun-diram a linguagem dos homens,que até então falavam uma sólíngua.

A Bíblia fala de dez patriarcasque viveram antes do dilúvio, emorreram com idade muitoavançada; A tradição caldaicafala também de dez monarcasque reinaram 432.000 anos; Noscontos árabes, chineses, hindus egermânicos fala-se de dez perso-nagens igualmente míticos queviveram antes do período histó-rico. Também foram dez os pri-mitivos reis da tradição sagradapersa e dez heróis da Armênia.

Dos dez patriarcas hebreus,ressalta-se especialmente Abraãopelo seu famoso sacrifício. Poisbem: não é mais do que uma có-pia da lenda do patriarca Adgi-gatha que se lê em Rhamatsariar,livro das profecias hindus.

Adgigatha é um homem justo,predileto de Brahma, sem filhosaté que este faz sua mulher con-ceber de um modo milagroso.

Um dia, Brahma ordena-lheque sacrifique o filho, e se bemque tal ordem lhe apunhale o co-ração, dispõe-se a obedecer,quando Brahma, tomando a for-ma de pomba lhe aparece orde-nando-lhe que guarde o filho eacrescentando que este viverialongo tempo, porque dele devianascer a Virgem que conceberiade gérmen divino.

As modernas investigações noEgito vieram pôr a descoberto ahistorieta de José e da mulher dePutifar, que foi tirada do roman-ce egípcio os Dois irmãos.

O legislador da Bíblia é, en-fim, um copista fiel das antigasmitologias. Aqui, cedemos a pa-lavra a Jacolliot231:

Um homem chamado Manudá à Índia leis políticas e religi-osas. O legislador egípcio rece-be o nome de Manes. Um cre-tense vai ao Egito para estudaras instituições que pretende im-plantar em seu país, e a históriaconfirma nos anais o seu nome:Minos.

E finalmente, o libertador dacasta dos escravos dos judeusque fundou uma nova comunida-de se chama Moisés.

"Manu, Manes, Minos, Moi-

231 La Bible dans l'Inde, Vie de IezeusChristna (1869)

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sés, aqui estão quatro nomesque dominaram o mundo antigo.Os quatro aparecem nos primór-dios de quatro povos diferentespara representar o mesmo pa-pel, cercados pela mesma auramisteriosa de grandes sacerdo-tes e legisladores, fundadores desociedades sacerdotais e teocrá-ticas.

Sabemos que um precedeuaos demais. Manu foi o precur-sor, disto não resta a menor dú-vida, vendo a semelhança de no-mes e de identidade das institui-ções que eles criaram. Manu,em sânscrito, significa o Homempor excelência, o legislador.

Manes, Minos e Moisés, evi-dentemente vêm da mesma raizsânscrita. As variedades levesde pronúncia são consequênciada diversidade de línguas que sefalava no Egito, na Grécia e naJudeia.

Será muito fácil provar que ostrês últimos são a continuaçãode Manu, e quando se averígua,como já se fez, que a Índia é aorigem de todas as lendas daantiguidade, não se estranharádizer que a Bíblia nasceu naAlta Ásia.

Será mostrado que as influên-cias e as memórias dos berçosda civilização, continuandoatravés dos tempos fizeram dar

ao legislador judeu que queriaregenerar o mundo, um nome si-milar ao de Jezeus Cristna quetinha, de acordo com tradiçõesindianas, regenerado o mundoantigo.

O Egito, pela sua posição ge-ográfica, seria necessariamenteum dos primeiros países coloni-zados pela emigração indiana areceber a influência desta anti-ga civilização que chegou aténós. Verdade evidente quando seestudam as instituições do Egi-to, totalmente baseadas nas daAlta Ásia, e das quais não setem como negar a procedência.

Jacolliot faz em seguida o pa-ralelo entre as instituições doEgito, do Antigo Testamento eda Índia para demonstrar que asprimeiras são uma simples cópiada última e que Moisés e Manessão plágios de Manu.

Ao que acrescentaremos quetambém já está demonstrado eprovado incontestavelmente pelaexegese e a crítica literária daBíblia que os livros atribuídos aMoisés não podem ser de sua au-toria.

Malvert afirma que Moisés éo nome do Deus solar Masu.Esta etimologia concorda com ade Jacolliot. A origem do nomepouco importa, de resto. O im-portante é saber-se que Moisés

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também é um mito.Pigault-Lebrun faz o seguinte

paralelo entre Baco e Moisés:Os antigos poetas fazem nascerBaco no Egito; Moisés também;Baco é exposto ao Nilo, comoMoisés; Baco é transportado aomonte Nisa, Moisés ao Sinaiuma deusa ordena a Baco quedestrua um povo bárbaro. Moi-sés recebe a mesma ordem.Baco passa o Mar Vermelho apé enxuto, Moisés também. Orio Horusnte suspende o cursoem homenagem a Baco, e o Jor-dão em favor de Josué; Baco or-dena ao Sol que pare, Josuéigualmente. Dois raios lumino-sos surgem da cabeça de Baco,o que também sucede a Moisés,raios que as crianças confun-dem com cornos. Baco faz nas-cer da terra uma fonte de vinhoMoisés, tocando em uma rocha,faz brotar água.

Além disso, a assiriologia de-monstrou que a história de Moi-sés foi copiada, em parte, da dorei arcadiano Sargon, que nas-ceu em um lugar deserto, foi co-locado por sua própria mãenum cesto de vimes, lançado aorio e recolhido e educado porum estranho, depois do qual foirei mil e tantos anos antes deMoisés, como diz o reverendoBown.

Nem mesmo o profetismo éinvenção judaica. Aqui tambémo judaísmo copiou a Pérsia, que,em tempos remotos supos que ahistória do mundo era uma sériede períodos cada qual presididopor um profeta.

Cada profeta tinha sua Kazar,que era um reinado de mil anos(quialismo ou milênio). E no su-ceder destas períodos é compos-ta a trama dos acontecimentosque prepararão o reino de Or-muzd. Ao final dos tempos, ter-minada a época dos quialismos,virá o paraíso.

Na Bíblia judaico cristã, ospersonagens correspondem tam-bém a outros entes mitológicos,por exemplo Elias que, com suacarruagem de fogo e seus cava-los flamejantes, reproduz o Apo-lo grego.

Sansão e Jonas são cópia domito pagão de Hércules, quetambém, como Jonas, permaneceencerrado três dias no ventre deum monstro marinho e que,como Sansão, também significapequeno sol.

Assim provamos que a mito-logia do Antigo Testamento nãoé original, mas uma cópia de mi-tologias anteriores. Tanto bastaconhecer esta para conheceraquela.

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Poderíamos reforçar isso comuma maior abundância de docu-mentos de fontes mitológicas deoutros povos, mas seria uma ex-cessiva preocupação erudita quenada acrescentaria à nossa de-monstração

Em conclusão: se o AntigoTestamento não é original, quemnão vê em Cristo, que está indis-soluvelmente ligado à mitologiado Antigo Testamento, uma có-pia das antigas alegorias?

Para mais completa persuasãodo leitor, recordaremos que adescoberta das inscrições cunei-formes feitas nas escavações deBabilônia, resolveram para sem-pre este ponto de história mitoló-gica, pondo acima e fora de todaa discussão, o nosso ponto devista.

Quer dizer que a criação, aqueda de Adão, o próprio decá-logo, o dilúvio, a semana de setedias o descanso dominical, opróprio descanso de sábado e umgrande número de prescrições ri-tuais, morais e penais foram parao Antigo Testamento depois dacivilização caldaica.

O decálogo de Moisés foi co-piado de uma recopilação de leis

do rei Hamurabi, oito séculosanterior a Moisés. Na tábua re-centemente descoberta em Susa,pelo sábio assiriólogo Morgan, orei Hamurabi esta representadono ato de receber das mãos deDeus (o deus Sol) um livro dasleis, cena que prova que a deMoisés no Sinai é uma cópia.

As leis de Hamurabi contem,além do decálogo que depois foicopiado pelo legislador hebreu eatribuído a Moisés, as ferozesprescrições penais do Deus Paidos cristãos, entre elas a pena deTalião.

Sobre as revelações devido aestas descobertas surgiu na Ale-manha um debate significativo.O prof. Friedrich Delitzsch di-vulgou que, numa sua conferên-cia pública a que assistiram oimperador Guilherme II e suaconsorte imperial, este o tinhacumprimentado. O mundo orto-doxo na Alemanha reprovou oimperador como um adesista aum sistema que destrói a revela-ção, a divindade de Cristo, a reli-gião e, consequentemente... osprivilégios que a religião, a basedo direito divino e força conser-vadora por excelência, desfruta-va...

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CAPÍTULO IIIORIGEM E SIGNIFICADO DOS DEUSES REDENTORES

Passamos em revista váriosDeuses Redentores anteriores aCristo e dos quais ele é uma sim-ples cópia. Para que seja com-pleta a nossa demonstração epersuada a todos é preciso de-monstrar a origem e significadodestes Deuses que, de origemhumana e significação naturalis-ta são a transfiguração de ummesmo mito, coisa que foi jámagistralmente demonstrada porDupuis e Volney, cujos sistemaspodem ser atacados, mas não se-riamente refutados e a cujasobras remetemos os que quise-rem profundar o assunto232.

Ainda que a primitiva huma-nidade tenha podido passar dofetichismo ao politeísmo e desteao monoteísmo, segundo a co-mum opinião dos mitólogos, es-pecialmente de Girard de Rialle,encontramos ainda na época reli-giosa, que é a que mais nos inte-ressa, que o culto da Humanida-de tem por origem principal oSol.

O Sol é o manancial da vidado Universo; a sua luz é a fonte232 Ciência e Religião de Malvert e OsAdoradores do Sol de Moy, que tratam aquestão sob o ponto de vista mitológicoe evolutivo.

de toda a beleza o movimentoque origina é a causa de todo obem. Ele e só ele é o verdadeiro,o Belo, e o Bom: é uno e trino. Aprimeira adoração da Humanida-de dirige-se ao ministro máximoda Natureza, ao distribuidor detodo o bem, à luz incriada e eter-na, à força fecundante do univer-so. Do Sol deriva a primitivaideia de Deus.

As próprias investigações dosorientalistas estabeleceram queaté mesmo a etimologia da pala-vra Deus procede de um atributodo Sol, de Devv e da raiz divv,que em sânscrito significa, preci-samente, o luminoso.

Da raiz divv se derivam quasetodos os nomes da suprema di-vindade dos povos europeus:desde o theos dos gregos ao dis-vas dos lituanos, do deus latinoao dia irlandês, até ao dieu dosfranceses, ao dio italiano, aodios dos espanhóis, etc.

A ideia de Deus é, pois, origi-nária do simples conceito doSol, este corpo luminoso que tãogrande influência exerce na vidado homem e de toda a natureza.

Por outro lado, como o Sol éinacessível aos homens, estes

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não podem usufruir diretamenteos seus benefícios, a não ser pormeio do fogo ou seja a acumula-ção do calor solar nas plantas,não se remindo de seus males,até ao dia em que o Fogo foidescoberto pela ação de dois le-nhos cruzados. E, descendendo,por assim dizer, do Pai Celestial,trouxe ao homem a sua proteção,dando-lhe alimentos, metais,utensílios, armas, meios enfim,de defesa e de saúde.

Eis aí a origem da antiquíssi-ma veneração dos homens pelacruz, desde que o Fogo, filho doSol e consubstancial com ele,salvador da Humanidade quetanto lhe deve, se produz pormeio de uma cruz de madeira,obra de carpintaria, na qual serealizava, ao contato do Espírito,ou do ar, o mistério do Salvadorda Humanidade nascido deMaya.

Daí o mito de Perseu, que fazbaixar o fogo do céu à terra; o dePrometeu, que o rouba do céupara salvação da Humanidade,sendo por isso condenado a per-manecer no Cáucaso com os bra-ços em cruz, e sobretudo, o mitohindu da Trindade primitiva deSavistri, Agni e Vayu, que indicaclaramente a sua origem, isto é:o Sol, o Fogo e o Ar.

No rito védico, celebrava-se

todos os anos o nascimento deAgni, no solstício do inverno,(25 de Dezembro) isto é, na épo-ca que coincide com o renasci-mento anual do Sol.

Há os sacerdotes que sobre oaltar derramam um licor sagra-do, o espirituoso soma. Há a un-ção e Agni toma o nome de Unto(em grego Crisnos, Cristo).

A oferta do pão e do vinho fa-zia-se ao fogo sagrado, sobre oaltar. Agni é também o mediadorda oferta, o sacrificador que a sipróprio se oferece como vítima.

Os sacerdotes e os fiéis rece-biam, cada um, uma partícula daoferta (hóstia) e a comiam comoum alimento onde estivera Agni,

Esta antiga Trindade, compos-ta do Sol (Savistri) o pai celeste;do Fogo (Agni) filho e encarna-ção do Sol, e do Espírito (Vayú)o sopro do ar, ficou como dogmafundamental das religiões de ori-gem ariana.

Agni se transforma em Ag-nus. O Fogo é substituído peloCordeiro, que também era ima-gem de Deus Redentor.

No cristianismo, também oCordeiro ocupou na cruz o lugarde Cristo durante seis séculos,até que o Concílio Quintesextode Constantinopla (692 dC.) omandou substituir pelo corpo de

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Cristo.(cânone-82)233.Naturalmente, com o tempo e

o significado da linguagem, aopassar do próprio para o figura-do, do físico para o moral - sábiaobservação de Valney, que ser-viu de base ao sistema de Muller- a antiga fonte do mito foi se es-gotando, ou melhor, foi se trans-formando. O gérmen primitivo,e ideia fundamental, essa, po-rém, fica sempre.

Só esta chegou à compreensãodas outras forças físicas, remon-tando- se à concepção das ideiasmorais.

Porém, ainda mesmo que peloprocesso do tempo e origem na-turalista do mito perdesse oumudasse o significado, e aindaque se fizesse mais antropomor-fo, se indianizasse - jamais seperdeu o conceito fundamentalque, servindo de base às religi-ões, isto é, que o Deus criadorfoi o Sol, e que o filho, em quemtinha encarnado para salvar aHumanidade era ainda e sempreo Sol, seja direta, seja indireta-mente, com o caráter de fogo.

233 ...para que a arte da pintura simbolizediante os olhos de todos, aquEle que éperfeito, decretamos de agora em diantese deve representar nos ícones ao cor-deiro, Cristo Deus nosso, que tomou ospecados do mundo, em sua natureza hu-mana no lugar do antigo cordeiro.

É assim que, apesar do desen-volvimento que logo tomou a te-ologia, a origem do mito não de-sapareceu nunca de todo. Aindamais: os próprios desenvolvi-mentos teológicos do tema, fize-ram-se sobre a base das revolu-ções da Natureza, e especial-mente do Sol.

A vida dos Deuses Redentoresé a descrição da vida do Sol.Nascem todos no solstício de in-verno, e precisamente, em 25 dedezembro, quando o Sol, que pa-rece próximo a extinguir-se, vol-ta a renascer. É a criatura, o in-fante. E todos eles morrem pararessuscitar na primavera, quandoo Sol recupera todo o seu podere esplendor, triunfando das tre-vas do inverno, do mal, de Tif-fon, de Siva, de Ariman, de Sata-nás.

Cristna, Mitra, Horus, Apollo,Adonis, como Cristo, todos nas-cem em 25 de dezembro e res-suscitam no equinócio da prima-vera. O Deus do dia foi, pois,personificado no Deus Criador,primeiro e Redentor depois, esubmetido a todas as peripéciashumanas. Que isto sucedera arespeito dos Deuses Redentoresda antiguidade, não há a menordúvida, porque a própria antigui-dade o deixou escrito em carac-teres claros e com palavras ex-

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plícitas.Platão e Aristóteles admitiam

a adoração do Sol e dos astros, eAnaxágoras testemunha a exis-tência desta adoração, quando,para a demolir, dizia que o Solnão era mais do que urna pedrainflamada.

Para Heródoto, como para Es-trabão, o mediador do mazdeís-mo, o Deus Redentor persa, Mi-tra, que tem por emblema a luz,não é outra coisa mais do que oSol, e Quinto Cúrcio diz que ospersas invocavam Mitra ou oSol, como a urna luz eterna.

Segundo Plutarco, os mistéri-os Mitra foram levados ao Oci-dente, e em seguida a Roma, porpiratas sicilianos, fato sucedidoaté o ano 68 da nossa era. Poisbem: em Roma, Mitra era adora-do pura e simplesmente como oSol, e a própria Roma nos dádisso uma prova na formula DeoSoli invicto Mitrac, usada sem-pre nas inscrições latinas, consa-gradas ao deus redentor dos per-sas. Um escritor bizantino, Nice-to, diz-nos que Mitra era, poruns, considerado como sendo oSol e por outros, como sendo oFogo.

Um padre da Igreja, Julio Fir-mico Materno vê em Mitra apersonificação humana do Fogo.Archelau, bispo de uma cidade

da Mesopotâmia, na disputa quesustentou até 277 com Maneton,identifica completamente Mitracom o Sol.

O pretendido Dionísio, o Are-opagita, vê em Mitra um deus detríplice forma, isto é, concebidosegundo as relações das esta-ções. O próprio S. Jerônimo querencontrar no nome de Mitra umanagrama do numero 365, quetantos são os dias do ano.

S. Paulino, bispo de Nola, dei-xou-nos, nos seus versos, umadescrição dos mistérios de Mitra,nos quais o esplendor deste Deussolar se opõe às trevas da noite,durante a qual era adorado. Win-dischmann reuniu outros teste-munhos, pelos quais se vê queMitra é, com efeito, o Sol.

Nas moedas de Karneki, reiindo-escita, que vivia no princí-pio da nossa era, Mitra aparececomo o Sol, circundado de umrisco radiante. O Deus solar Mi-tra era representado com a cabe-ça rodeado pelo disco solar, coma mão direita levantada ao alto eum globo na esquerda.

Sob este aspecto se represen-tou sempre Cristo. Em Roma, oDeus Mitra acabou por conver-ter-se em divindade preponde-rante chamanda Senhor, comoindica uma medalha cunhada noreinado de Aureliano. O monote-

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ísmo, ou melhor, o prototeísmoCristão, pode dizer-se que tinhajá nascido, quando todos os po-vos do império romano designa-vam o Sol sob a denominação deDominus ou Senhor. Esta evolu-ção foi facilitada pelo culto deMitra, o Sol invencível, que oimperador Juliano chamava opai comum dos homens.

Por isso, os Cristãos concen-traram todos os seus esforços emcombater Mitra, que era o maispoderoso adversário da encarna-ção Cristã do Deus Sol.

No Egito, o Sol era gerador douniverso, o criador dos seres edas coisas, e, como na índia,chamava-se o Pai Celestial. Erao principio ativo e luminoso, quea antiga inscrição de um dosobeliscos egípcios, transportadosa Roma, ao Circo Máximo, defi-nia assim: O grande Deus, o jus-to Deus, o todo esplendente.

Era o princípio universal, ofluido luminoso, ígneo, sutilíssi-mo,que enche o universo. Osseus monumentos eram repre-sentados como um globo alado,encimado com uma coroa ondu-lada.

Em toda a América ficaram si-nais evidentes do antigo culto doSol. Na Índia, na China, no Ja-pão, toda a mitologia é a repre-sentação antropomórfica das for-

ças da Natureza, e sobretudo daprincipal, o Sol.

O globo alado do Sol não erasó dos egípcios, mas tambémdos persas e dos fenícios.

O Sol está representado geral-mente nos monumentos assíriose caldaicos, onde tinha altarespor toda a parte.

A cidade de Sipara era-lheconsagrada, e nos seus templos,ardia continuamente fogo em suahonra. Na Síria, na cidade deEdessa, havia um templo consa-grado ao Deus Sol, assim comoem Palmira.

Na Grécia, achamos o globoalado sobre o Caduceu. Orfeuconsiderava o Sol como sendo omaior dos Deuses. Em Homero,lê-se que Agamemon, apostro-fando o Sol, lhe chamava o quetudo vê e ouve tudo. Belenho,dos gauleses, é uma personifica-ção do Sol. Entre os romanos,não só Apolo e Baco eram perso-nificações do Sol, mas tambémJúpiter, segundo Juliano.

Macróbio, na obra acerca dasSaturnais, prova que os nomesde Apolo, Baco, Adonis, etc.,não eram senão as diversas de-nominações do Sol entre váriasnações, e reduz toda a antiga te-ologia ao culto do Sol.

O Deus Redentor, portanto,

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era não só a personificação, omito do Sol, mas era também oculto primitivo, direto e concretodo Sol, como também era o anti-go sabismo ou heliosísmo, que

transmitiu os seus sinais, apesarda sua transformação em mitoantropomorfo e em símbolo teo-lógico.

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CAPÍTULO IVCRISTO É UM MITO SOLAR

Agora, mais do que nunca, es-tamos no direito de concluir queCristo nunca existiu, sendo umpuro mito solar.

O silêncio da história acercadele, a sua inexistência comopessoa terrestre, o seu caráterexclusivamente sobrenatural, e,especialmente, a sua afinidadeou identidade com os mitos sola-res que o precederam, autori-zam- nos a tirar esta conclusão.

Temos, porém, muito maiscom que robustecer o argumen-to, porque existem provas aindamais diretas e convincentes.

- Um Deus nascido de umavirgem - diz Dupuis - no solstí-cio do inverno e ressuscitado naPáscoa, no equinócio da prima-vera, depois de ter descido aosinfernos; um Deus que levaatrás de si um cortejo de dozeapóstolos, correspondentes àsdoze constelações234 e que faz234 O número 12 é comum a todas as re-ligiões de origem heliostática, dos ado-radores do Sol. Os romanos tinham 12grandes deuses, cada um dos quais pre-sidia a um mês. Os gregos, os egípcios eos persas também tinham 12 grandesdeuses, como os Cristãos 12 apóstolos.O chefe destes deuses guardava a barcae a chave do tempo, como Jano entre osromanos e Pedro entre os Cristãos.

passar os homens sob o impérioda luz, não pode ser senão umDeus solar, copiado de tantosmitos heliostáticos em que abun-davam as religiões do Oriente.

No céu da esfera armilar dosMagos e dos caldeus, via-se ummenino colocado entre os bra-ços da Virgem celestial, a mes-ma a que Eratóstenes dá o nomede Isis, mãe de Horus. A queponto do céu correspondia estaVirgem da esfera e o seu filho?Na meia noite de 25 de dezem-bro, quando nasce o Deus doano, o novo Sol, o Cristo pelaparte do Oriente e no mesmoponto onde se levantava o Solno primeiro dia.

É um fato independente de to-das as hipóteses e de todas asconsequências que possamosdeduzir, que o 25 de dezembro,na hora precisa da meia noite,no século em que aparece ocristianismo, a constelação ce-leste, que se erguia no Oriente,e cuja ascensão marcava aabertura da nova revolução so-lar, era a virgem das constela-ções zodiacais. E é também umfato que o Sol, nascido no solstí-cio do inverno entra nesta cons-telação e derrama os seus raios

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de fogo na época da nossa festada Assunção, ou reunião da mãecom o filho. É indubitável que avirgem, que alegoricamentepode ser mãe sem deixar de servirgem, realiza as três grandesfunções da virgem mãe de Jesus,seja no nascimento de seu filho,no seu próprio ou na reunião deambos no céu.

Que isto seja um fato positivo,prova-se depois com iguais cita-ções dos astrólogos antigos, aquem devia ser mais familiar doque a nós a ciência dos caldeus.Conta como nas tradições dospersas, dos caldeus, dos egípci-os, de Hermes e de Esculápio,aparece uma jovem chamada empersa Seclenidas de Darzama, eque em árabe se escreve Adrene-defa, isto é, Virgem casta, pura eimaculada, de formosa aparên-cia, de longas tranças e ar mo-desto. Tem entre as mãos duasespigas, está sentada num tronoe amamenta um menino a quemalguns chamam Jesus é nós oCristo.

O Sol, reparador dos malesque o inverno causa, nascendono solstício, deve permanecerainda três meses nos signos in-feriores, na região atribuída aomal e às trevas, antes de rebai-xar o limite do equinócio da pri-mavera, que assegura o seu

triunfo sobre a noite. Duranteeste tempo, convém que estejaexposto a todas as calamidadesda sua vida mortal...

A teoria de Cristo foi, como asua biografia, tirada inteiramentedos Vedas. É o Deus (o Sol), queoferece o seu único filho (oFogo) para salvação dos ho-mens.

Cristo repete todas as circuns-tâncias dos outros Deuses Re-dentores que o precederam. Nemmais nem menos235. Logo, estesDeuses Redentores, por confis-são dos escritores pagãos, dospróprios padres da Igreja e dosprimeiros escritores cristãoscomo Heródoto, Plutarco, Ma-cróbio, Atanásio, Lactâncio e Ju-lio Firmico, não representavammais do que o Sol.

Impõe-se, pois, forçosamente,a consequência lógica de queCristo é também um mito solar.

Este fato deduz-se, de maneiraevidentíssima, da própria Bíblia,de alguns autores cristãos quetêm expressões e conservam235 Segundo Bianchi-Giovini, (Críticados Evang. 1ibr.IV, cap. VII) na Pérsiacostumavam escolher, na festa chamadaem caldeu Suchaia, um condenado àmorte, vestiam-no de rei, colocavam-nono trono davam-lhe liberdade, em segui-da, passados cinco dias, despojavam-nodas vestes, açoitavam-no e crucifica-vam-no.

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usos, cuja significação tem ínti-ma relação com a adoração doSol e que denunciam, por conse-guinte, a origem e a natureza so-lar do mito cristão.

Já no Antigo Testamento (Sal-mo IV e XVIII) encontramos oSol identificado com Deus.Deus estabeleceu os seus arrai-ais no Sol. Vai de um extremo aooutro do céu e nada se subtrai àsua vista.

Sobre vós, que temeis o meunome, se levantará o Sol da Jus-tiça, e a vossa vida estará nosseus raios.

João diz no seu Evangelhoque o Verbo era a lei, a luz e avida, a luz que ilumina os olhosde todos os mortais, a luz domundo.

Onde, porém, a Bíblia revelamelhor a origem heliostática deCristo é quando lhe chama cor-deiro, o Agnus Dei qui tollit pec-cata mundi. O Apocalipse, so-bretudo deleita-se representandoCristo sob a forma de cordeiro.

Do mesmo modo, a Igreja Ca-tólica, até 680, venerou Cristosob a figura simbólica de umcordeiro.

Foi no quintesexto Sinodo deConstantinopla (Cânone 82) queesse cordeiro foi substituído pelafigura de um homem crucifica-

do, mas nem por isso desapare-ceu: subsiste nos escritos e nasladainhas eclesiásticas, bemcomo na arte Cristã.

Orígenes escreve que era ne-cessário adorar os astros em ra-zão da sua luz espiritual e não dasua luz sensível.

Tertuliano tenta defender oscristãos da acusação que lhe fa-ziam de adorarem o Sol, dizendoque, apesar das aparências emcontrário e dos sinais exterioresda veneração pelo Sol, não é aoastro que se dirige o culto cris-tão: Outros, com maior razão ouverossimilhança, creem que onosso Deus é o Sol. Esta ideiaprovém, aparentemente, de quenos dirigimos para o Oriente,para orar. Se dedicamos à ale-gria o dia do Sol é por urnacausa estranha ao culto desteastro.

Não obstante, o próprio Tertu-liano reconhece que o dogma daressurreição do Deus cristão éidêntica à da religião persa.

Clemente de Alexandria es-creve que o Verbo veio ao nossoconhecimento por meio da ma-deira. (Evidentemente alude aofogo produzido pela madeira).

João Crisóstomo, falando, nassuas homilias, da descida deCristo aos infernos, chama-lhe, o

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sol da justiça, que leva a luz.Sinésio chama a Cristo o tipo

sensível do sol intelectual. Des-creve-o saindo do inferno comoum astro nascido das trevas no-turnas, precedido da lua, seguin-do o rasto luminoso do sol.

Firmico Materno também odescreve, na descida ao inferno,brilhando como o Sol.

O primeiro dia do calendário éainda hoje, consagrado ao Sol,como o seu nome o indica. Do-mingo vem de dominas, o Se-nhor, como se chamava o Sol naépoca em que nasceu o Cristia-nismo.

Além disso, outros dias do ca-lendário expõem em favor doculto solar, porque conservam osnomes correspondentes à lua eaos cinco planetas.

Clemente de Alexandria con-servou-nos um fragmento de S.Paulo, ou a ele atribuído, em quese aconselha a leitura de livrossibilianos, dos gregos e dos Is-taspes. A autoridade dos livrossibilianos ainda hoje é reconhe-cida pela própria Igreja no Diesirae, onde se cita a Sibila comotestemunha de que o mundo serádestruído pelo fogo. Estes mes-mos livros eram frequentementecitados com a autoridade canôni-ca dos antigos teólogos.

Algumas das seitas primitivas,que pelos conhecimentos cientí-ficos têm o mesmo valor que otronco de onde provêm, conser-varam a sua origem solar do cul-to Cristão. Os maniqueus, porexemplo, diziam que o Sol era opróprio Cristo. Assim o atestamTeodoro e Cirilo de Jerusalém.Segundo S. Leão, os maniqueuscolocavam Jesus na substâncialuminosa do Sol e da Lua, a qualnão faz mais do que refletir a luzdaquele. Os saturninos acredita-vam que a alma tinha a substân-cia do Sol, do calor sideral, eportanto, que deixa o corpo naterra, voltando a sua origem.

A Igreja conserva-nos ainda,no culto, várias provas de queCristo é um mito solar.

Por exemplo: a festa da Pás-coa não cai nunca em dia certo,variando, segundo as circunstân-cias e alternativas astronômicas,e isto não seria possível se Cris-to fosse um personagem históri-co, pois em tal caso seria fixo eincontestável o dia da sua morte.

O Santo Sacramento tem aforma do disco luminoso do Sol,conforme as antigas tradiçõesdas religiões heliostáticas. Noostensório católico, vê-se a Luarepresentada no mesmo centro,que se chama precisamente aLúnula: está rodeada de seis pla-

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netas, representados também nosseis círios, que no altar rodeiamo Santo Sacramento.

O Santo Sacramento ex-plica-se, no uso comum, do mes-mo modo que o Sol. Todo ele éextraordinariamente semelhanteao budismo.

Malvert cita um curioso docu-mento que, confundido com osimbolismo cristão, não revelamenos a sua verdadeira origemsolar. É o abanador. No simbo-lismo cristão, encontra-se o ber-ço em que repousa o menino re-cém-nascido, sobre a palha, jun-to da virgem sua mãe, e em com-panhia do boi, do jumento místi-co dos Vedas e, finalmente, doabanador, verdadeiro contrassen-so numa cena que se passava empleno inverno, se não fosse umareprodução inconsciente, porémexata, do primitivo mito védico,onde cumpre uma função impor-tante: a de manter viva, na palha,a primeira chispa do Fogo. Estedetalhe simbólico passou à litur-gia primitiva, onde o abanadorse agitava durante a missa, desdea ablução à comunhão, práticaconservada na Igreja romana atéo século XIV.

Também se observou, durantelargo tempo, o costume de sevoltarem para o Oriente, duranteas preces, bem como o de cons-

truírem as igrejas na mesma di-reção, de modo que a luz do Solviesse ferir o disco de ouro doSanto Sacramento, colocado emfrente da porta do templo.

O mesmo uso do culto solarse encontra também no antigorito do batismo em que o catecú-meno se voltava primeiro para oocidente, a fim de repelir de siSatanás, símbolo das trevas, edepois para o Oriente, jurandoentão fidelidade ao seu novo Se-nhor.

Uma congregação de irmãosadoradores do Santo Sacramentoe que subsistiu até á revoluçãofrancesa de 1789, tinha o nomede Irmãs do Sol.

Por muito tempo, a Igreja re-presentou o Padre Eterno, oDeus Pai, sob a imagem do Sol.Malvert demonstra as transfor-mações sucessivas destas repre-sentações.

As primeiras versões eslavasdos Evangelhos, do século nono,traduziram a palavra ressurectiopor Veskres, que, literalmentesignifica ascensão do fogo.

Todas as nossas cerimônias dosábado santo e especialmente, dofogo novo, do famoso círio pas-cal, não tem outra significação,nem outra origem que o triunfodo Sol sobre as trevas, que têm

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lugar no equinócio da Primave-ra, pela Páscoa.

Em muitas orações deste ofí-cio reproduzem quase literal-mente os hinos védicos. A pala-vra Alelúia (de all (elevado) eoulia (brilhante) era o grito dealegria que pronunciavam os an-tigos persas, adoradores do Sol,quando, pela Páscoa, celebravama sua volta.

Enfim, o barrete dos bisposcatólicos, que toma o nome doDeus Sol dos persas - mitra, -usava-se já entre os magos ousacerdotes de Mitra, o Deus Sol,simbolizando, pela sua forma pi-ramidal, precisamente o Sol, ouse assim querem, seu filho oFogo, que sobe aos céus para seunir ao pai, como o prova a for-ma dada às pirâmides do Egito,aos obeliscos messiânicos edruidas e aos carros piramidaisda Índia.

Pouco a pouco, com a com-pleta personificação do símbolo,nada mais fácil do que fazer de-saparecer os vestígios da origemheliostática de Cristo, a ponto deserem hoje bem poucos os sinaisque se conservam de tal origem.

Mas os poucos que restam sãode uma eloquência tão extraordi-nária, que não admite réplica, ese por si só não bastassem paraafirmar a conclusão da não exis-

tência de Cristo, unidos às pro-vas precedentes adquirem valorde documento definitivo, comoprovenientes que são, do mesmoculto interessado em fazê-lo de-saparecer. Crer, por conseguinte,que Cristo existiu, equivale acrer que tenham existido Mitra,Adônis, Apolo, Baco, JezéusCristna e Horus, também conhe-cido por Serápis. Este último, se-gundo o imperador Adriano, sechamava Cristo e era adoradopelos cristãos. E a todos estes setinha dado existência humana,lugar de nascimento e morte,sendo adorados pelos respecti-vos fieis.

O perspicaz Luciano riu, comgrande fundamento, da pretensãodas diversas religiões em quererelas, unicamente, adorar o Sol,dando-lhe cada uma nome eexistência peculiares ao país res-pectivo, com caracteres especi-ais, enquanto a divindade perma-necia sempre a mesma e era co-mum a todos236.

Não tem maior valor a opiniãodos que creem na existência deum hebreu chamado Jesus, deque logo brotou essa exuberantevegetação do mito e da poesiaoriental, da alegoria e da rica

236 Segundo Justino mártir, o hebreu Tri-fon tinha já negado Cristo. E como jávimos, muitas seitas antigas o negaram.

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imaginação da lenda, apoi-ando-se na razão de que o nomede Jesus era muito vulgar entreos hebreus. Com igual motivo sepoderia dizer que existiram Hér-cules, Apolos, e sobre todos, Jo-sués e Jasones, nomes que têm amesma raiz de Jesus, só porquemuitas pessoas se chamavam as-sim237.

Não, o Jesus da Bíblia surgiuda mitologia; nem sequer é le-gendário, é completamente mito-lógico. Quem pretender susten-tar o contrário não o poderá pro-var, ao passo que nós, como já seviu, provamos que é mitológicopor sua origem, natureza e signi-ficado.

É certo que não podemos ja-mais provar de um modo positi-vo, dada a distância e tenebrosi-dade dos tempos, como e pormeio de quem se criou o mito deCristo. Para isso concorreu, decerto, a obra do cristianismonascente, destruindo todos osdocumentos que se opunham àsua propagação.

Por outro lado, sabe-se tam-bém, por ventura, por quem e

237 Segundo Volney, nos livros sagradospersas e caldáicos, dava-se ao Sol onome Jes ou Cris, representado por ummenino que nasce da virgem das conste-lações. De Cris fizeram os hindus Crist-na e os cristãos Cristo.

como foram criados os mitos dosDeuses Redentores que precede-ram Cristo e que, como ele, fo-ram acreditados, seguidos e ado-rados por tantos milhões de sereshumanos e durante tantos sécu-los?

Em um tempo em que reinavauma tão densa noite de ignorân-cia, era de resto, bem fácil darcorpo a todos os mitos e lendas.Os tempos eram propícios paratoda a criação mística, porquenunca época alguma foi maisatacada pelo sobrenatural. Tudoentão era Deus, tudo então eracelestial238.

O politeísmo helênico tornara-se muito humano, e muito aces-sível à critica e não contentavade modo algum os que busca-vam a forma de resolver o gran-de problema da vida futura e so-brenatural.

Não só na mitologia assí-rio-persa, mas em todas as divin-dades orientais que invadiram aEuropa e que, por muito tempo

238 Os jornais americanos trazem notíci-as detalhadas acerca de um certo Dovie,que tendo-se feito passar pelo próprioprofeta Elias ressuscitado, conseguiuatrair crentes e fundar uma nova cidade,Sião, com 10.000 habitantes, todos seussequazes, de quem ele é o papa rei. Eisto acontece perto de Chicago, em ple-no século XX. O que não seria antiga-mente!

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ainda, dominaram o império ro-mano, encontraram-se a novalinfa de que muito necessitavampara alimentar o seu misticismo.

Os tempos estavam realmenteem sazão para que se realizasseuma nova encarnação da divin-dade. Nem o elemento milagrosopodia prejudicar o crédito donovo Deus porque nunca, comoentão, o milagre esteve, tanto emvoga.

Sabe-se de um Dositeu, quepor seus milagres e prodígios foiconfundido com o Messias eseus sequazes - entre os quais secontavam trinta discípulos, cor-respondentes aos dias do mês -julgando-o descido do céu.

Apolônio de Tianeo fez por sipróprio milagres atribuídos aCristo e desapareceu também,deste baixo mundo de uma ma-neira milagrosa239.

Simão, chamado o Mago, rea-lizou os mais espantosos mila-gres, sendo sempre seguido eacreditado pelo populacho. He-ródoto, como hoje o nosso bomCantu, conta cheio de fé e com amaior seriedade os mais estu-

239 A vida de Apolônio foi escrita por Fi-lostrato até o ano 200 da nossa era eainda naquele tempo o autor acreditavaa sério em todos os milagres do seu he-rói, o que prova as disposições dos espí-ritos de então.

pendos milagres daqueles tem-pos tão supersticiosos e crédu-los.

Na Vida de Vespasiano, de umhistoriador sério, como é Suetô-nio, lê-se este fragmento: En-quanto presidia o tribunal, umindivíduo do povo cego e outroparalítico acercaram-se dele,rogando-lhe que os curasse,pois Serápis lhes tinha prometi-do, em sonhos, ao cego, que re-cuperaria a vista se lhe cuspisseo imperador e ao paralítico, queandaria se ele lhe tocasse comum pé. Não crendo que tal pu-desse realizar-se, não ousavaVespasiano fazer a experiência,até que, tendo-o exortado osamigos, este se decidiu, em pre-sença de todos, a tentar a provaque teve o mais completo êxi-to240. Tácito241 e Dion242 confir-mam estes milagres de Vespasia-no.

Mesmo na sociedade culta, aincredulidade só era aparente: acrença no sobrenatural tor-nava-se, contudo, mais intensapelo fato de que, tendo-se afrou-xado a fé nos deuses falsos, semque a substituísse o conhecimen-to das leis naturais, a increduli-

240 Edição Teubneriana, Leipzig, 1893.pag. 229.241 Histórias, IV, 81.242 LXVI, 8.

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dade redundou em crenças aindamais estupendas, que impressio-navam a imaginação em maiorgrau do que os milagres de quese riam os augures.

Naquele tempo a loucura, oescândalo da cruz, não podiadeixar de assentar bem, de pro-duzir os seus efeitos, no mundogreco-romano, na positiva civili-zação Ocidental.

Orgulhamo-nos, por conse-guinte, de ter demonstrado aosespíritos apaixonados que Cristonunca existiu e de ter introduzi-do a dúvida no ânimo dos maiscrentes.

Na parte que segue, demons-traremos que o cristianismo nãofoi criado por Cristo, mas que jáexistia, em seus elementos cons-titutivos, na época em que deter-minadas condições psicológicas,políticas, históricas e do meio

ambiente, os uniram em corpomais ou menos orgânico, dandovida, não ao fato novo - cristia-nismo, mas à nova forma - cristi-anismo.

Por isso a grandeza históricado efeito cristianismo, se bemque não é de valor intrínseco,servirá para demonstrar queCristo não existiu, porque umasó pessoa é causa muito inferiora um efeito tão grande.

Não, esse Cristo, seja qual foro valor que lhe seja dado, nãopode ter produzido, em contráriodo que a Bíblia diz, um tão con-siderável movimento na socieda-de humana.

Por isso, o cristianismo foiobra impessoal e criação coletivade vários séculos, de distintasdoutrinas, de muitos eruditos ede diversos povos.

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Quarta Parte

FormaçãoImpessoal doCristianismo

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CAPÍTULO IA MORAL CRISTÃ SEM CRISTO

Se um ponto de apoio resta aocristianismo, esse ponto é acrença na originalidade e perfei-ção da moral, atribuída a Cristo.

Acerca da sua pretendida per-feição, já vimos a que se reduz;provaremos agora que, o que elatem de bom, não é em nada ori-ginal.

Uma das glórias usurpadaspelo cristianismo é a de ter redi-mido a condição da mulher. Écompletamente falso.

Eva, no Antigo Testamento éobra em segunda mão: foi tiradaduma costela do homem. É elaque introduz o mal no mundo, eo Deus Judeu-cristão condena-a,por fim, a parir com dor e su-jeita-a ao homem. (Gen. III 16).

Todo o Antigo Testamento éum contínuo envilecimento eservidão para a mulher. Quandoesta tem uma filha sofrerá maisque quando tem um filho. O seuvoto é calculado em grau muitís-simo inferior ao homem. (Levit.XII, 2-5 XXVII, 1-7).

Passagens que envilecem amulher são, entre outras da Bí-blia, as dos Num. V, XXI; ÊxodoXXI, 4; Deut. V, 21; Ecles. VII;etc., etc. Isto sem contar os in-

cestos e as poligamias, queabundam em todas as suas pági-nas.

O Novo Testamento não a tra-ta melhor. S. Paulo, baseando- seem que foi tirada do homem,conclui que ela deve sujeitar-seao mesmo (I Ep. Cor. XI, 3, 7, 9)A mesma ideia se repete em ITim. II, 18; Col. III, 18, PedroIII, 1, 6).

Os padres seguem a Bíblia.Tertuliano chama-lhe a porta dodemônio, que quebrou o segredoda árvore proibida, e outro de-clara-a mais amarga que a morte.

O celibato e a virgindade sãoa condenação do amor e da ma-ternidade, isto é, das principais emais sagradas funções que a na-tureza confiou à mulher.

Poderíamos intitular este capí-tulo, mistificação cristã, porque,tendo de provar que a moral cris-tã não é original no que tem debom, forçoso será provarmosque é inferior, em muitos pontos,à das religiões orientais, que aprecederam, inferior mesmo, sobeste aspecto, ao judaísmo, e es-pecialmente, inferior à civiliza-ção greco-romana.

Comecemos pelas religiões140

orientais. Confúcio, 500 anos antes, pre-

gava já o preceito de não fazeraos outros o que não queremosque nos façam.

Mêncio, outro filósofo chinês,repetia o mesmo preceito 300anos antes de Cristo.

O brahmanismo hindu prega-va também a mesma máxima.Buda repete o mesmo conceito esublima a moral até fazer delauma caridade universal, queabarca toda a Natureza e nãoapenas a Humanidade.

A moral budista é imensamen-te superior à cristã, porque oamor do próximo pregado poresta não ultrapassa os confins dopaís nem as valas da seita.

A moral budista tem ainda ou-tra vantagem sobre a do preten-dido Cristo: a de admitir a livreinvestigação da verdade, ao pas-so que, nos Evangelhos, em vãose procuraria uma palavra em fa-vor da ciência.

Na índia, a caridade para como próximo florescia e fecundavaas instituições de hospitalidade ecasas de beneficência, cinco sé-culos antes do advento do cristi-anismo.

Zoroastro, o fundador do maz-deísmo ou religião persa, tinhajá pregado o outro preceito, atri-

buído mais tarde a Jesus, o pre-ceito da caridade positiva, isto é,o de fazer ao próximo o que de-sejaríamos que nos fizessem; eao passo que o cristianismo de-via pregar depois, o dogma iní-quo da eternidade das penas, areligião persa, pelo contrário, ad-mitia que os malvados, depoisde certo período de expiação, se-riam purificados e reabilitados,desfrutando também a bemaventurança dos bons. Aindamais: enquanto o Cristo dosEvangelhos condena o trabalho ereserva a felicidade supremapara a mendicidade miserável,Zoroastro santifica o trabalho,especialmente o dos campos,enaltecendo-o e dando-lhe muitomais mérito do que aos rogos eorações.

A moral dos egípcios conti-nha, igualmente, além dos pre-ceitos de boa moral dos Evange-lhos, máximas mais elevadas emais práticas para bem viver. Nofamoso capítulo CXXV do Livrodos Mortos, o morto faz, peranteo tribunal de Osíris, uma duplaconfissão: negativa, de que nãofez mal a ninguém, e positiva, detudo quanto fez de bom. Não en-ganei. Não menti no Tribunal.Não cometi fraudes contra oshomens. Não atormentei as viú-vas. Não exigi aos trabalhado-

141

res mais trabalho do que o quepodiam fazer. Não promovi ne-nhum desastre. Não fiz chorarninguém. Não fui preguiçoso.Não fui negligente. Não me em-briaguei. Não dei ordens injus-tas. Nunca fui indiscreto. Nuncaabri a boca para intrigas. Nãolancei mão de coisa alguma, emprejuízo de outrem. Não mateinunca. Não mandei jamais as-sassinar à traição. Não metimedo a ninguém. Não disso malde ninguém. Não deixei que ainveja roesse o meu coração.Não levantei falsos testemunhos.Não tirei o leite da boca dos quemamavam. Não provoquei abor-tos.

E na segunda:Fiz aos Deuses as oferendas

que lhes eram devidas. Reconci-liei-me amorosamente com a di-vindade. Dei de comer ao famin-to, de beber ao sedento,vesti onu e dei barca ao que não podiacontinuar viagem.

Daqui se vê, pois, que no Egi-to, muitos e muitos séculos antesdo cristianismo, se pregava umamoral caritativa e misericordio-sa, e não só isso, mas também ajustiça.

Pitágoras, que sob muitos as-pectos, pertence à civilizaçãooriental, ensinara muito antes deCristo, a perdoar aos inimigos,

aconselhando a maneira de fazeras pazes com eles. O Cristo dosEvangelhos nada forneceu à mo-ral das religiões do Oriente: pelocontrário, delas tirou tudo, delasaprendeu tudo, e neste ponto,bem teriam andado aqueles quecopiaram o seu mito, copiandotambém os bons conceitos da-quelas religiões. A moral doEvangelho porém, reduz-se ape-nas a uma cópia servil do AntigoTestamento...

A afirmação parecerá estranhaaos crentes, dada a mistificaçãode vinte séculos que o cristianis-mo arraigou nas mentes, mas averdade é que nem sequer tem omérito da novidade.

Há muitos anos já que se pro-vou que o Evangelho era a re-produção da parte boa - e nemsempre - do Antigo Testamento.

Salvador, Rodriguez, Dukes eCohen demonstraram por formaque não admite réplica, que todaa pregação moral de Cristo, semexcluir o famoso Sermão daMontanha se formou, palavrapor palavra, com as citações doAntigo Testamento.

O preceito amarás ao próximocomo a ti mesmo, que caracteri-zou a doutrina moral e social deCristo, achava-se já no Levítico(XIX, 18).

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E o melhor é que os própriosEvangelhos, pondo esse preceitona boca de Jesus, indicam a suaprocedência, que seja dito depassagem, devia ter já há séculosaberto os olhos à Humanidade,se não o impedissem a escravi-dão do pensamento e o precon-ceito teológico.

O preceito que proíbe pagar omal com o mal, encontra-se nosProvérbios (XX, 22; XXIV, 29).

O preceito não faças aos ou-tros o que não queres que te fa-çam, lê-se já no livro de Tobias(IV, 16).

Os profetas Jeremias e Eze-quiel tinham já condenado a par-te do Antigo Testamento quecastiga os filhos pelos pais, es-tendendo o amor do próximomais além do que os confins daJudeia. Nisto, é o cristianismoinferior ao judaísmo, pois, comojá provamos, Cristo foi naciona-lista e não eximiu os filhos dasculpas dos pais.

Sábios hebreus, mais moder-nos ainda, como Antígono deSoco, Jesus filho de Sirach eHillet, tinham já aconselhado,antes do cristianismo, o perdãodas ofensas e a doçura de cará-ter. Tinham também condenadoa vingança.

Oséas, Isaías, Jeremias e os

Salmos tinham já preconizadouma religião menos formalista emenos hipócrita no que respeita-va às práticas exteriores do cul-to: mais espiritual, numa pala-vra.

Os ataques contra os potenta-dos da terra e a defesa dos fra-cos, encontram-se em Isaías, Je-remias, Amós e Sofonias.

A pureza do pensamento e oamor especial para com os po-bres e os oprimidos, veem-se,em termos comoventes, no livrode Job.

As bases da igualdade foramlançadas, em termos mais positi-vos que os do Evangelho, por Fí-lon, o hebreu alexandrino, filó-sofo e teólogo, racionalista emístico ao mesmo tempo.

Os que, diz ele, exaltam a no-breza como sendo um grandebem, merecem ser duramente re-primidos. A verdadeira distinçãonão pertence senão aos homensde inteligência e de justiça, ain-da que sejam filhos do escravo,nascido em nossa casa ou com-prado com o nosso dinheiro(Tratado da nobreza). Porque éstão orgulhoso e te julgas superi-or aos outros? Não são todos osteus parentes feitos do mesmomodo e não pertencem à mesmaterra? Não bastaria a vida deum homem para narrar os bene-

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fícios da igualdade. Esta é afonte dos maiores bens que po-dem existir: a boa vontade e aamizade entre os homens. NoUniverso produz a unidade; nacidade a democracia bem regu-lada; no corpo a saúde; na almaa honestidade e a virtude (Devictim. Offer.; de creat. principi-is).

No que se refere ao desprezopelas riquezas, ao bem estar so-cial e ao celibato, também o cris-tianismo é inferior ao judaísmo.Mais ainda: essa mesma inferio-ridade não lhe pertence.

Nem mesmo as virtudes nega-tivas são originais nos Evange-lhos, pois provêm dos essênios.Outros pretendem que vêm dosTerapeutas, não importa. O que épositivo aqui é esta parte da mo-ral cristã ter já existido antes docristianismo,.

A parte boa do essenismo re-lativa ao cultivo da terra e à abo-lição da escravatura não foi imi-tada por Jesus nos Evangelhos,pois condena o primeiro e passaem silêncio a segunda.

Os essênios hebreus tiveramoutra superioridade sobre a mo-ral evangélica: a de ser a suamoral puramente humana, comoa dos estoicos, enquanto que aparte boa da evangélica era tira-do do ascetismo, do misticismo,

do medo do outro mundo243, esobretudo, da preocupação nacrença do fim próximo do mun-do, fazendo desta sentença todaa sua moral: A vida não é maisdo que uma preparação para amorte.

A civilização greco-romana,que depois foi em parte assimila-da pelos padres e doutores docristianismo teve uma moral ela-borada pelos seus sábios, pelosseus literatos e filósofos, ao ladoda qual a cristã fica ofuscada.

A demonstração disso já a fi-zeram Denis (Histoire des theo-ries et des idées morales dans l´antiquitè) e Havet (obra citada):não faremos, por isso, senão re-cordar algumas das máximasmais salientes daquela época deouro do pensamento humano.

Na Odisseia vemos a divinda-de protegendo o fraco e o des-graçado; o pobre e o infeliz sãorecomendados ao respeito e à pi-edade do próximo, ainda que se-jam culpados. Hiparco, filho dePisistrato, manda gravar peloscaminhos públicos: Caminha nasenda da justiça; não enganes oamigo.

243 Neste ponto, ainda o politeísmogreco-romano é superior ao cristianis-mo. Comparem-se os poemas de Home-ro e Virgílio com o tenebroso poema deDante.

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No teatro de Atenas havia má-ximas que sobrepujavam, emmuito, as melhores do Evange-lho.

E Sócrates? Havemos de falardele? Apenas para inverter as pa-lavras de Rousseau, segundo asquais se a vida e morte de Sócra-tes são de um sábio, a vida emorte de Cristo são de um Deus.Sócrates não tremeu nem choroudiante da morte!

Grande era a liberdade conce-dida aos escravos em Atenas,onde eram tratados com doçura ehumanidade244.

A filantropia e a anistia sãopalavras que vieram de Atenas; asociabilidade era ali viva e inten-sa e a civilização ateniense,cheia de humanidade, de equida-de, de costumes aprazíveis, derazão e de ciência, de letras e ar-tes, era um verdadeiro foco deluz que iluminava o mundo anti-

244 Diz-se geralmente que o cristianismoaboliu a escravatura. Nada menos ver-dadeiro. Para os que assim pensam ve-jam a Bíblia Exod. XXI, 21, 24 e 27 Le-vit. XXV, 44 e 45 Proverb. XXIX; Ec-cles. XXXIII, 28; XLIII,5. - S. Paulo,epist. aos Epes. VI, 5,9 Fim. VI. 1,2. Ospadres da igreja, S. Inácio, S. Isidoro,João, S. Crisóstomo, S. Agostinho, Bos-suet e Bouvier santificaram a escravidãoe a Igreja praticou-a e serviu-se dela. Osúltimos partidários da escravatura foramos maçons católicos. E a sua aboliçãodeve-se à obra do livre pensamento.

go.Xenofonte fala em favor dos

escravos, das mulheres e dos pri-sioneiros de guerra, da exaltaçãodos humildes e da humilhaçãodos exaltados, etc.

Hisócrates promete, como oscristãos, aos que praticam a pie-dade e a justiça, não só a paznesta vida, mas esperanças me-lhores na outra.

Em Platão, encontramos todoum sistema de máximas cristãs.Condena o suicídio e a voluptuo-sidade; recomenda a humildade,a castidade, o pudor; detesta a ri-queza: Ser bom e rico ao mesmotempo, é impossível. Proíbe avingança e proclama o desprezodos sentidos, ao passo que exaltaa alma etc. Não está aqui, porventura, toda a moral cristã?

Em Platão se encontra, final-mente, o Pater Noster atribuído aCristo.

Aristóteles, espírito mais posi-tivo, confunde a virtude com ajustiça e chega a dizer que a co-munidade repousa mais no amordo que na justiça, e enfim, ante-cipando-se a Dante, que a justiçasuprema é o amor. Recomendaque se não exponham ao públicoimagens indecentes, em respeitoàs crenças, e quanto a certosdeuses obscenos, quer que só os

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padres os adorem.É certo que admite a escrava-

tura; mas se esta fraqueza é im-putada ao filósofo, do homemsabe-se que deixou em testamen-to, a liberdade aos seus escravos.

Ensinou também que a comu-nidade tem obrigação do instruirtodos os seus filhos, e a este res-peito, o espírito positivo da mo-ral aristotélica sobreleva emmuito o espírito nulo e decaden-te da moral evangélica.

Nem sequer o cinismo é estra-nho à formação da moral cristã.Diógenes, que foi um ateu mo-derno em toda a acepção da pa-lavra condenou o matrimônio, afamília e a pátria, como depoisvieram a fazer os monges cris-tãos.

Grande parte da moral cristãdeve-se ao estoicismo, para oqual não ha mais que um bem, avirtude, nem mais que um mal, opecado. Devemos especialmenteaos estoicos a concepção da fra-ternidade humana universal, queultrapassa as fronteiras de cadapátria em nome da universalida-de da raça, do Logos e do Verbo.

Eis aqui a essência do cristia-nismo, mas com uma diferença:é que este não procura a perfei-ção da alma pela própria virtude,mas unicamente para salvá-la,

para obter um prêmio na outravida. Além disso, enquanto osestoicos amavam a liberdade po-lítica, os cristãos não se preocu-pavam com ela.

Aqui, evidentemente, os cris-tãos copiaram a parte pior doepicurismo, que ensinava a indi-ferença para com a vida pública.

Mas Epicuro tinha tambémensinado que o escravo é umamigo de condição inferior, e re-comendava que não se lhe tocas-se.

A propósito da podridão queassolava a sociedade antiga, eaos pretextos dos cristãos ematribuir ao cristianismo, contratodas as evidências, o mérito detê-la erradicado, Ernest Havetescreveu uma página maravilho-sa que, ao contrário do nosso há-bito, reproduzimos na língua ori-ginal para que não se perca a suaveemência.

C'est oublier bien facilement -escreve ele então no prefácio desua obra imortal - que le monded’après le Christ a conservélongtemps les mêmes misères;que l’empire byzantin a aumoins égalé l'autre en scandaleset en horreurs; que même sousla chrétienté moderne, la Romedes papes a été quelquefoisaussi impure et aussi sanglanteque celle des Césars; que la

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torture a duré jusqu'à laRévolution française, et quel'esclavage dure encore. Car iln'y a pas de plus grand exempledes illusions que peuvent sefaire les croyants, que leurobstination à faire honneur auchristianisme et à l'église del'abolition de l'esclavage; quandil est certain que l'esclavageantique a subsisté dans l'empirechrétien comme dans l'empirepaïen, qu'il a duré assez avantdans le moyen âge, que leservage existait encore enFrance à la veille de laRévolution; que l'esclavage desnoirs s'est établi sous le règnede l'Église, qu'il persiste encoreaujourd'hui dans deux États, etque ces États sont catholiques;qu'il n'a commencé à tomberque depuis le dix-huitièmesiècle, c'est-à-dire depuis queles Églises menacent ruine; etqu'à l'heure qu'il est, laPapauté, qui condamne sifacilement et si imprudemmenttant de choses, n'a pu encore serésoudre à le condamner.L'Église a régné dix-huit centans, et l'esclavage, la torture,l'éducation par les coups, biend'autres injustices encore ontcontinué tout ce temps, de l'aveude l'Église et dans l'Église; laphilosophie libre n'a régnéqu'un jour, à la fin du XVIII e

siècle, et elle a tout emportépresque d'un seul coup”245.

O grego Gelon, na Sicília, tra-tando com os cartagineses, de-terminara que estes não imolas-sem mais vítimas humanas aos245 “É fácil esquecer que o mundo de-pois de Cristo conservou durante muitotempo as mesmas misérias. Que o Impé-rio Bizantino era, no mínimo, igual aosoutros em escândalos e horrores. Que,mesmo na cristandade moderna, a Romados papas foi tão impura e sangrentacomo a Roma dos Césares. Que a tortu-ra durou até a Revolução Francesa, eque a escravidão ainda existe. Porquenão há maior exemplo de ilusão possí-vel do que a determinação dos crentesem atribuir ao cristianismo e à IgrejaCatólica a abolição da escravatura,quando é certo que a escravidão antigasobreviveu no império cristão tal qualno império pagão, e que, subsistindoainda na Idade Média, a servidão sobre-vive na França até às vésperas da Revo-lução. Que a escravidão negra foi criadadurante o reinado da Igreja e ainda per-siste em dois estados, e que estes Esta-dos são católicos. Que ela só começou adiminuir depois do século XVIII, o quesignifica dizer, depois que a Igreja Cató-lica passou a perder força e começou aruir. E que até o presente momento oPapado, que condena tão facilmente etão descuidadamente tantas coisas, ain-da não teve a dignidade de a condenar.O cristianismo tem reinado por mil e oi-tocentos anos, e a tortura, a escravidão,a catequese forçada e muitas outras in-justiças vigoraram durante todo essetempo por obra da Igreja e na Igreja. Afilosofia livre não reinou mais que umdia, no final do século XVIII, e quaselevou tudo de um só golpe”.

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seus deuses.Em Cícero, encontramos um

verdadeiro sacerdote cristão. Muitas das suas sentenças, à

parte da tão citada Charitas ge-neres humani, podiam ser reco-lhidas pelos livros cristãos paraedificação religiosa.

Basta recordar a importantecarta de Santo Agostinho, naqual este santo recomenda a lei-tura de Cícero, pela sua moralpura, declarando que a da Igrejanão é diversa daquela.

Virgílio dizia: maxima debe-tur puero reverencia246. Lucrécioensinava que o fraco deve en-contrar apoio em todos.

Horácio mostra-se cheio desentimentos viris e delicados, aomesmo tempo. A dignidade hu-mana, sobretudo, domina o seucoração.

A moral de Valério Máximo éjá de todo cristã: tem um livrosobre a continência, um sobre apobreza, um sobre a paciência eoutro sobre a castidade.

A exaltação da pobreza prece-deu o cristianismo na própriaRoma, sendo a sua grandeza ob-jeto da saeva paupertas, de Ho-rácio. Opes irritamenta malo-rum, pensava Ovídio. 246 Deve-se à crença a máxima reverên-

cia.

E Lucano cantava:O vitæ tuta facultas

Pauperis, angustique lares, omunera nondum Intellecta Deum!

A moral de Sêneca é por tudoe sobretudo cristã a ponto delerecomendar que sejamos superi-or às paixões, insensíveis à dor eao prazer, e indulgente quanto àpunição; Aconselha a generosi-dade e a bondade para com osescravos e chega até a dizer quetodos os homens são iguais. Falado céu como os cristãos e dizque todos somos filhos do mes-mo pai. A sua pátria é a mesmados Cristãos: o mundo todo 247.

Mas a sua moral era superiorem muitos pontos à do cristianis-mo, porque ele quer que o fim danossa vida seja a felicidade detodos, ao passo que o altruísmocristão se limita aos eleitos sen-do por isso discriminatório e tempor fim o prêmio do céu, masca-rando um egoísmo. Sêneca quersuprimir a pena de morte, en-quanto que o cristianismo a con-serva. Finalmente, prega a to-lerância até para com os culpa-dos, que diz ele, em lugar de se-rem perseguidos, devem ser con-247 Entendamo-nos. Foi só o cristianis-mo de Paulo que tirou a pátria ao cris-tão. Cristo, esse era um acérrimo judeunacionalista.

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vertidos248.Não falamos já na admirável

filosofia de Epiteto e de MarcoAurélio, tão cheias de caridade efraternidade. Observa-se, geral-mente, como diz Havet, que osfilósofos do mundo greco- roma-no foram mestres de moral, econsoladores, como deviam serdepois os sacerdotes cristãos,com a diferença que aqueles nãoestavam constituídos em castaprivilegiada, nem impunham oseu dogma pela força.

É tempo de concluir. Vimosque a moral cristã se formou in-dependentemente do pretendidoCristo e que já existia, no quetem de bom, antes do cristianis-mo. Isto é consolador para a Hu-manidade, pois demonstra que amoral humana não é monopóliode uma seita, mas obra da mes-ma Humanidade. E daqui podeconcluir-se que ela é tão antigaquanto a Humanidade racional.

Por conseguinte, não só não éprecisa a presença de um Cristopara explicar esta moral, mas atéa preexistência desta moral con-tribui para excluir o Cristo.

Porque, em todo o caso, o quefica claro é que a pretendida mo-ral cristã não foi inventada nemrevelada pelo suposto Cristo,

248 De ira, livr. I, cap. XIV.

visto já existir antes dele e semele. Pelo contrário, o advento docristianismo é até um princípiode decadência, sobretudo moral,decadência que explicaremosmelhor, quando tratarmos da for-mação psicológica do cristianis-mo.

Apresentaremos agora, paramostrar a completa inferioridadedo cristianismo em face ao poli-teísmo e ao judaísmo, o seu espí-rito anticientífico e dogmáticoque, agregando o imobilismo aoserros de então, sufocou a liber-dade de pensamento, fonte detodo o progresso intelectual emoral.

Na verdade, colocando a Bí-blia, com a sua cosmologia erra-da e pueril, e seus muitos erroscientíficos como uma emanaçãoda verdade divina, não é de es-tranhar que se repute infalíveltudo o quanto nela é dito, mes-mo no domínio científico, por-que Deus não pode errar e por-tanto, a ciência não poderiaavançar para além das Colunasde Hércules da Bíblia.

A liberdade de pensamento foibanida para plagas longinquasporque é inadmissível o debatede ideias numa igreja que se ar-vora depositária da verdade divi-na absoluta, preocupada apenascom o zelo religioso.

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Sabe-se quão funestos foramos efeitos que daí derivaram.

Citamos como exemplo, aperseguição a Galileu, quando amesma descoberta já havia sidoanunciada na Grécia por Hicetae Aristarco de Samos, (conformeTheophrastus) sem que eles ti-vessem sofrido qualquer tipo deconstrangimento

A grandeza principal da Gré-cia é devida à liberdade de pen-samento e de palavra que ali sedesfrutava, liberdade que foi acausa do rico florescimento dogênio, teorias e sistemas, e porisso foi tão produtiva.

Quando o cristianismo surgiu,o mundo greco-romano já tinhaproclamado, especialmente pelaboca de Lucrécio, a inflexibili-dade das leis naturais, e mesmoHipócrates, quatro séculos emeio antes do tempo assinaladopara Cristo, já mostrava as cau-sas naturais de fenômenos atri-buídos à obsessão;

Assim, o cristianismo repre-sentou um inegável retrocessosobre os princípio científicosque já tinham sido reconhecidospelos pensadores gregos.

No campo do conhecimento, ocristianismo infelizmente seguiuo judaísmo do Eclesiastes, quecondena abertamente a ciência,

ainda que o Talmude reconheçaa liberdade de opinião e de inter-pretações heterodoxas.

Com tais princípios, o cristia-nismo foi fatal para o progressoda , ao qual a liberdade de pen-samento é tão necessária quantoo oxigênio para os pulmões.

Mas ainda mais fatal para oprogresso e a ciência, foi o cris-tianismo por seu ascetismo e seudistanciamento deste mundo,que o fez negligenciar todas asartes e estudos para melhorar avida presente, considerada comouma mera peregrinação parauma outra vida, verdadeira, eter-na, a única importante para osalucinados crentes no além.

Gaetano Negri sintetizou ad-miravelmente o imobilismo daIgreja Católica com estas pala-vras:

O cristianismo tomou, de umlado, o antropomorfismo da di-vindade hebraica e o conceitode criação e de governo do uni-verso que encontrara nos textossagrados de Israel, e de outro, oespiritualismo helênico, originá-rio da escola de Alexandria.Fundiu tudo, por obra do Concí-lio, num vasto sistema teológicobaseado inteiramente em entida-des metafísicas, para em segui-da dizer: esta é a verdade, quemduvidar será amaldiçoado e per-

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seguido. Impôs à raça humana,como verdade absoluta, o quenão era nada senão um produtomutável e passageiro de um mo-mento da evolução intelectual.Pôs a ferros o pensamento econdenou-o a viver por séculose séculos na falsidade. A antigacivilização, decadente desde as

invasões e posteriormente sufo-cada por completo, disseminoupor toda extensão do mundo amais intensa barbárie. O cristia-nismo quis e soube como imobi-lizar a humanidade por muitosséculos. (Negri G., A Crise Reli-giosa, p. 64, Milão, Dumolard,1878).

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CAPÍTULO IIA DOUTRINA CRISTÃ SEM CRISTO

Depois de concluirmos que amitologia judaico-romana e omito de Cristo eram anterioresao cristianismo e ao judaísmo,provaremos em seguida que nemsequer a doutrina cristã é origi-nal, formando-se primeiro e forado pretendido Cristo. Veremospois de que modo se formouaquela concepção metafísica eteológica de Cristo, que obscure-ceu por tantos séculos a sua ori-gem mitológica.

Três pontos, principalmente -e podemos até dizer unicamente- nos restam ainda a analisar,para completar os dogmas capi-tais da doutrina cristã: a imorta-lidade da alma, a ressurreição edogma do Verbo.

O dogma da imortalidade daalma encontra-se na religião per-sa, tal como foi adaptado à reli-gião cristã. Os sequazes de Zo-roastro (1700 a 1000 aC) acredi-tavam que a alma se formavapura e imortal com o livre arbí-trio e que devia ser recompensa-da ou castigada, segundo os seusméritos ou deméritos. O dogmada imortalidade da alma era jáconhecido dos persas, antes mes-mo de Zoroastro, segundo se vêpelas seguintes palavras da Ciro-

pédia (430 - 355aC): Disse Ciroao morrer: Eu nunca pude per-suadir-me de que a alma, quevive enquanto está num corpomortal se extinga desde que saidele e que perca a faculdade deraciocinar, abandonando o queé incapaz de raciocínio.

Outros povos, como o egíp-cio, o indiano, o escandinavo e ogaulês, acreditavam já na imor-talidade da alma. Os hebreus nãoadotaram esta crença senão de-pois que se desenvolveu o co-mércio e relações que tiveram nodesterro com as nações situadasalém do Eufrates.

O dogma da ressurreição doscorpos é um dos principais doZend-Avesta, e segundo Zoroas-tro, o fim do mundo devia prece-der aquele grande acontecimentoque seria anunciado pelos profe-tas Ascedermani e Ascedermat erealizado pelo Messias persa.

Os dois primeiros substituí-ram-nos os judeus por Enoch eElias e o terceiro pelo seu Messi-as.

A doutrina dos Evangelhos erajá, por conseguinte, um fato con-sumado antes do pretendidoCristo.

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E quanto à doutrina do Verbo,encontramo-la no Egito, onde oDeus supremo gera Kneph, a pa-lavra semelhante a seu pai; e daunião do Verbo com o seu divinoautor, nasce o Deus do fogo e davida Fta, que vivifica todos osseres. Porfírio cita um oráculode Serápis assim concebido:Deus é antes, depois e ao mes-mo tempo, o Verbo e o Espíritocom um e outro.

Isto prova que os elementosda doutrina cristã preexistiammuito tempo antes daquele mo-vimento que lhes deu nova orga-nização, novo nome e nova for-ma.

Para sermos mais completos,rebuscaremos as origens no pró-prio judaísmo e helenismo249.Neles encontraremos ainda maisdo que o que procuramos.

Tem-se dito que o cristianis-mo, apoiado no judaísmo, intro-duzira, ele só e primeiro quetudo, a unidade de Deus. Nadamais falho de provas. O judaís-mo conhece outros deuses.

Além disso, ainda mesmo queJeová fosse o único deus dos he-breus, o cristianismo ajunta aTrindade, que decerto não erauma novidade, nem para as reli-249 Veja-se a tal respeito Salvador, obr.cit. Havet, obr. cit. e M. Nicolas - Dou-trinas religiosas dos Judeus.

giões orientais nem para o mes-mo politeísmo greco-romano,pois que, se tinham um grandenumero de divindades inferiores,rapidamente copiadas pelo cristi-anismo, nos seus anjos e santos -tinham a sua Trindade e os seusdeuses redentores, como já vi-mos, e sobretudo, tinham umDeus supremo, que em nada erainferior ao que logo foi o DeusPai dos cristãos.

No mundo romano, o próprioCantu admite (Hist. Univ. cap.VI) que o politeísmo se restrin-gira quase à crença num Deusúnico, a Júpiter e Apolo, sendoeste, apenas um mediador entreDeus e os homens, a fim de porintermédio dos oráculos, revelara sua vontade, e como salvadorda Humanidade, que encarnou eviveu escravo na terra, submeti-do aos padecimentos para expia-ção do gênero humano.

Máximo de Tiro asseguravaque, fosse qual fosse a forma, to-dos os povos acreditavam numsó Deus, pai de todas as coisas.O mesmo dizia Prudêncio opovo tinha sempre na boca asexpressões - Deus o sabe, Deuso abençoe, se Deus quiser. Ospróprios oráculos falavam deDeus no singular.

Eusébio, Agostinho, Lactân-cio, Justino, Atenágoras e outros

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apologistas do cristianismo, re-conheciam também que a unida-de de Deus era admitida pelosantigos filósofos e formava abase da religião de Orfeu e detodos os mistérios gregos.

Além disso, sabe-se que o queproduziu o êxito do Deus hebrai-co, fazendo-o comum a todos oscultos, foi um puro acidente detradução, tendo a versão gregada Bíblia substituído o nome deDeus hebraico pelo de Senhor(em latim Dominus), que era onome dado á divindade suprema(o Sol) por todos os cultos, na-quela época de evolução religio-sa em que nasceu e se propagouo cristianismo.

O amor de Deus não é inven-ção cristã encontra-se já no Anti-go Testamento, para não falardos gregos, como atesta Planto,nem dos essênios, como observaFílon. E a invenção do Pai Ce-leste, que se pretende achar emJesus, pertence também ao Anti-go Testamento, especialmenteem Isaías (LXIII, 15).

São de Ezequiel as palavrasem que Deus declara não querera morte do pecador, mas que seconverta e viva (XVIII, 23; XX-XIII,11). O versículo de Paulo(Gal. III, 11 e seg.) segundo oqual o justo viverá da fé, encon-tra-se já em Habacuc (II, 4).

Porém, os elementos metafísi-cos da doutrina cristã procedemda filosofia grega, especialmentede Platão. Deste deriva igual-mente a doutrina metafísica doVerbo, tendo-o Platão, por suavez, tirado do Egito250.

Platão foi o verdadeiro propa-gandista, - não dizemos criadorporque a procedência é toda domístico Oriente - da metafísicacristã. Foi ele que popularizou aTrindade e o Logos, que propa-gou a distinção entre a alma e ocorpo, subordinando este àquela,que fez desta terra um deserto,que reduziu, em suma, a sistemafilosófico a decadência moral,que faz dos sentidos uma prisãoe do mundo um mal, fazendoconsistir a felicidade nos delíriosmetafísicos. Também a into-lerância religiosa, tirou-a o cris-tianismo das escolas místicas eespiritualistas da Grécia.

Cicero e Sêneca, no mundoromano, escrevem como perfei-tos padres da Igreja. Tanto que oprimeiro converteu e inspirou S.Agostinho na teologia, e o se-gundo foi suspeito de haver tidorelações filosóficas com algumdos apóstolos. Seria supérfluorepetir aqui a demonstração, que

250 Convém recordar que já antes de Pla-tão, Heráclito falara do Verbo, do mes-mo modo por que o faz o Evangelho.

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já é do domínio da filosofia e seconta entre as verdades experi-mentais adquiridas.

De todo o modo, a Idade Mé-dia, sinônimo de cristianismo,oferece-nos dela uma prova ple-na, porque nos conservou asobras daqueles autores, graças àafeição que por eles teve, exce-tuando o Hortêncio, de Cícero,provavelmente suprimido paraevitar aos cristãos uma desairosasituação, pois que com ele se po-deria provar que o cristianismofoi anterior a Cristo251.

Poremos também de lado asprovas que poderíamos tirar dacultura helênica, em demonstra-ção de que o cristianismo, aomenos na sua parte filosófica, ouantes metafísica, procede da len-ta elaboração dos materiais da-quela cultura, pois temos pressade chegar à parte culminante dademonstração da nossa tese, queé a filosofia dos judeus alexan-drinos, os verdadeiros artíficesdo dogma cristão252.251 Havet prova que o cristianismo exis-tia todo, pelo menos em gérmen, no he-lenismo. Só lhe faltava a exaltação doshumildes e infelizes, que foi buscar,como vimos, ao judaísmo profético.252 Segundo Havet, as principais pala-vras da doutrina cristã são de origemgrega: dogma, mistério, símbolo, cate-cismo, presbítero, bispo, diácono, mon-ge, teologia, invisível, criatura, corruptí-vel, afeição, etc. Esta observação é dig-

Com os judeus alexandrinoscristaliza o Oriente o espiritua-lismo helênico de Platão e o ju-daísmo, criando não só a doutri-na cristã mas o mesmo Cristo,ou antes, o Cristo metafísico,com o nome de Verbo. E de todaa sua doutrina, só faremos refe-rência à parte relativa ao mesmoVerbo, única que importa a nossatese, acrescentando ainda aquelefamoso ponto de intersecção ide-ológica, de que nasceu a doutri-na do Verbo que se faz carne,também sem que ainda existisseo nome de Cristo.

Importa recordar aqui a seitados terapeutas do Egito, queeram os israelitas descontentesdas práticas religiosas públicasdo seu povo, os quais tinhamabandonado o culto nacional dotemplo e do sacrifício, retirando-se à vida contemplativa, longedo comércio dos homens: queestabeleceram a comunidade debens, tendo o matrimônio comoum impedimento, querendo li-bertar a alma da tirania do corpo,obediente a uma severa discipli-na, abolindo os prazeres dos sen-tidos, aconselhando a caridade, a

na de ser notada, porque as palavras sãoo símbolo da ideia, e por sua vez, influ-em sobre as ideias e estas sobre os cos-tumes, sobre as religiões e sobre osacontecimentos e porque em todo o casoprovam a verdadeira origem das ideias.

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beneficência e as preces em co-mum, condenando o juramento,exaltando a pobreza e o celibato,praticando a abstinência, etc.Eram semelhantes aos essêniosda Palestina, outra seita análoga,mas não idêntica, pois esta ad-mitia o trabalho na agricultura enos diversos ofícios.

Importa igualmente recordaraqui a opinião de Eusébio, se-gundo a qual os terapeutas, deque falava Fílon, como se fos-sem há muito uma seita cristã,eram os cristãos: opinião estaque demonstra, com uma evi-dência incontestável, que o cris-tianismo existia já antes do pre-tendido Cristo.

É certo que a critica impugnaa afirmação de Eusébio. Mascom que fundamento? Que razãoficará que justifique a objeçãofeita pela crítica à afirmação deEusébio, se suprimirmos a fontesuspeita da Bíblia? A opinião deEusébio é fundamentada em fa-tos, e segundo eles, os terapeu-tas eram já em ação, verdadeiroscristãos.

E tanto assim é, que o próprioStrauss, um dos que combatem aopinião de Eusébio, se vê obri-gado a confessar que a seme-lhança e o parentesco dos essêni-os e terapeutas com o cristianis-mo primitivo, tem dado sempre

muito que pensar.Para os essênios e terapeutas

praticarem toda a moral e doutri-na cristã, só lhes faltava a doutri-na da encarnação do Verbo. Foiesta a obra dos hebreus alexan-drinos.

Os principais autores hebreusalexandrinos, de que nos ocupa-remos neste lugar são Aristóbu-lo253 e Fílon, principalmente Fí-lon, aquele Fílon que deixamosnoutro ponto do nosso trabalho,quando explicava, em alegoria oAntigo Testamento.

Este Fílon, a quem Havet cha-ma o primeiro dos padres daIgreja, nós o consideramos comoo verdadeiro fundador do cristia-nismo, o criador do Verbo, o cri-ador de Cristo, apesar de nuncater falado em Cristo, e precisa-mente, por isso mesmo...

Fílon discorre acerca do Ver-bo, não no sentido de Salomãoou do Livro da Sabedoria, não àmaneira de Heráclito, de Zenone de Platão, mas sob o influxo damitologia egípcia, de tal modoque devia servir, depois, de baseao cristianismo, não faltando se-não o nome de Cristo e a aplica-

253 Que foi o primeiro hebreu alexandri-no que tentou a fusão do hebraísmo como helenismo. Vid. Vacherot, His. crit. daescola de Alexandria. Introdução, libr.II..

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ção do antropomorfismo dosDeuses Redentores orientais aoseu Verbo, para completar a fu-são do Oriente (espécie egípcia)com a Judeia e a Grécia, e atransformação de tantos materi-ais, tantas vezes fundidos numanova religião254.

Já Salomão tinha distinguidoa sabedoria divina de Deus, fa-zendo dela o instrumento da cri-ação. Por isso, o Livro da Sabe-doria define a natureza desteprincípio intermediário, transfor-mando o pensamento vago deSalomão sobre a sabedoria, nadoutrina do Verbo propriamentedito.

No Eclesiastes, de Jesus deSirac, a doutrina do Verbo é ain-da mais precisa: A sabedoriavem de Deus, e com ele estevesempre. Foi criada antes de to-das as coisas, e a voz da inteli-gência existe desde o princípio.O Verbo de Deus, no mais altodo céu, é a fonte da sabedoria.

E aqui já nós estamos muitoperto da linguagem do quartoEvangelho255.254 Vacherot, na sua obra a Religião, no-tando a perfeita identidade da teologiado quarto Evangelho com a do Verboplatoniano e alexandrino, deduz que nãodeve duvidar da origem grega do Verbocristão.255 No livro da Sabedoria, está já nitida-mente professada a divisão da alma e do

Fílon porém, dá o Verbo feitohumano. Segundo ele, Deus éinefável e inacessível à inteli-gência humana que, mesmo aju-dada pela graça divina não che-garia até ele, se Deus não des-cesse até ela e se não se lhe reve-lasse. Nesta revelação, Deus nãose mostra aos homens na sua fi-gura invisível, mas mostra a suaimagem, o Verbo. Este Verbo,em Fílon, é alguma coisa maisque em Platão.

Em Filon, dado o principio daessência impenetrável de Deus,que não pode proceder à criaçãodo mundo nem comunicar comos homens criados sem a obra deum mediador, o Verbo converte-se precisamente neste Mediador.Para Fílon, o Verbo não é só apalavra, mas a imagem visível, afigura de Deus.

Ele é o ungido por Deus, otipo ideal da natureza humana, oAdão celeste. Nesta última deno-minação, que devia ser mais tar-de empregada, no mesmo senti-do, por S. Paulo, crê Vacherotque está precisamente contido oprincípio de uma grande doutri-

corpo, bem como o dogma da vida futu-ra e imortalidade da alma. S. Jerônimo,que traduziu do grego o livro da Sabe-doria, declara que tal obra não existiaem hebraico e que os antigos escritoresa atribuíam ao filosófo hebreu Fílon. Éuma circunstância bem digna de reparo.

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na - a da encarnação do Verbo deDeus sob a fôrma humana256...

O mesmo Fílon diz que, seDeus criou o homem à sua ima-gem, não é a ele a quem podecomparar-se, mas ao Verbo deDeus. De modo que, observa Va-cherot, o Verbo de Fílon é parti-cularmente o tipo da naturezahumana. Com Fílon, pois, o Ver-bo de Platão deixa de ser umapura entidade abstrata para seconverter em princípio de vida,para se encarnar.

Mais ainda: em Fílon, o Verboconverte-se em filho de Deus,que, por sua vez, é pai de todosos homens, que por isso são fi-lhos do mesmo pai. Porque, se oVerbo divino é o tipo da Huma-nidade, também o pai o é, e to-dos os homens são seus filhos:filhos do Verbo, antes de seremfilhos de Deus...

Melhor ainda: segundo Fílon,o Verbo, mediador entre o cria-dor e a criação intercede juntodo Eterno pela mísera Humani-dade, e além disso, interpreta asordens de Deus aos homens...Assegura ao criador que a cria-tura será fiel à lei suprema, forada qual não será coisa alguma,e, por outro lado, assegura àcriatura que o criador não a256 Vacherot, Escola de Alexandria, Introd. livro II, Fílon.

abandonará à sua fraqueza eimpotência.

Fílon faz mais ainda: oferece-nos a eucaristia, a ceia, o que,em linguagem científica, chama-mos teofagia. Dá ao Verbo osnomes de pão da vida, de pãopor excelência, indispensável(aos fieis) para se alimenta-rem257.

Poderíamos continuar o exa-me da doutrina de Fílon, que éabsolutamente cristã, tanto na te-oria do Verbo como na da Trin-dade e no seu misticismo, de talmodo que o cristianismo nãoteve que acrescentar mais do quepalavras, deixando incólume asubstância.

Ao nosso plano, porém, im-porta que nos detenhamos aqui,porque, buscando a formação dadoutrina Cristã antes do preten-dido Cristo e sem ele, algumacoisa mais encontramos: a dou-trina cristã de onde nasceu Cris-to. Não foi, pois, Cristo que cri-ou o cristianismo. Foi o cristia-nismo que criou Cristo.

Este Fílon, que fala como cris-257 Hic est panis, cibus quem doclit Deusanimibus ut se pascant. Verbo ipsius at-que sermone. Nam hic est panis datusnobis ad viscendum vedelecit verbumhoc... Audiat igitur anima vocem Dei,quod um solo pane vivet homo fact usad unaginem, sed omni verbo quod pro-cedit ore Dei (Philo. Legis, alleg. III).

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tão, que funda o cristianismo -embora o nome da nova seitanão apareça ainda em suas obras- e que, além disso não conheceCristo, de quem forçosamentedevia ser contemporâneo, nãoserá, porventura, a mais formosae contundente prova de que Cris-to nunca existiu?

Numa palavra: se recordarmoso que escrevemos no princípiodeste trabalho, isto é, que os dis-cípulos imediatos de Fílon, Cle-mente Alexandrino (depois colo-cado no número dos santos!) eOrígenes não falavam de Cristocomo homem; se recordarmosque o próprio S. Paulo fala deCristo como do Adão celeste, à

maneira de Fílon; se acrescentar-mos o fato bem notório de que,em geral, os primeiros padres daIgreja se não interessaram pelahumanidade de Cristo, conside-rando nele apenas o Verbo e o fi-lho de Deus, estaremos autoriza-dos a declarar que, mais do quenunca, fica demonstrada inteira-mente a nossa tese, e a pedir àciência que retifique as opiniõesseculares acerca de Cristo, e que,de pessoa humana, como foi jul-gado durante mais de quinze sé-culos, o faça voltar ao que foiem suas origens: uma pura enti-dade abstrata, uma criação mito-lógica e metafísica da Humani-dade.

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CAPÍTULO IIIO CULTO CRISTÃO SEM CRISTO

Em realidade, este capítulonão era preciso ao nosso assun-to; mas, para que se veja que ocristianismo não trouxe novida-de alguma ao mundo e que não énecessária a presença de Cristopara explicar a religião cristã,lançaremos uma rápida vista àspráticas religiosas, às cerimoniase à parte exterior ou social dasreligiões que precederam a cris-tã, as quais nos provam que tam-bém o culto cristão antecedera ocristianismo, salvo algumas le-ves modificações, de forma, quea diversidade dos tempos e dospovos explicam. Escusado é di-zer que nos limitaremos aos cul-tos antigos que passaram para ocristianismo.

A tese, pois, e esta: as práticasdas antigas religiões foram copi-adas pela cristã.

A religião de Brahma coloca acasta sacerdotal acima da socie-dade: só ela é que tem conheci-mento das coisas santas, só elapode ler os Vedas, oferecer sacri-fícios, ensinar a religião e apro-priar-se das esmolas depositadasnos templos; as terras dos brah-manes são as únicas isentas deimpostos.

O sumo sacerdote não podecasar-se e é venerado como umDeus, podendo fazer cessar osaçoites o as calamidades públi-cas.

Na religião de Buda, os bon-zos devem ser bem tratados, pro-vidos dos respectivos mosteirose do necessário para viver. Tam-bém estes não se casam. O Da-lai-Lama é o seu papa, isto é, ovigário de Deus e o sucessor deFo, considerado infalível como ocatólico. No budismo era anti-quíssima a prática de celebrarconcílios, a fim de condenar eevitar os erros infiltrados na reli-gião, bem como a de enviar mis-sionários a outros países.

Também o budismo, especial-mente no Tibete, abundava emmosteiros, uns para homens, ou-tros para mulheres, sendo nume-rosíssimos os irmãos258.

258 No livro célebre de Andrea DicksonWhite, História da luta entre a ciênciae a teologia na cristandade, cap. XX,vem descrita a missão que em 1839 opadre Huc, lazarista francês realizou naChina. Por ela se vê que tudo quanto háno cristianismo - cerimonia, ritos, sím-bolos, moral, - tudo ali o encontrou ele,realizado, prático, perfeito, superior. Omissionário, a vista disto, ficou confun-dido, mas logo a sua fé encontrou uma

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Na religião dos persas aparecea divisão hierárquica do cleroem várias ordens e a ele pertencea décima parte das rendas dos ci-dadãos. Os magos persas deviamser puros e abster-se de todo otrabalho manual.

No Egito, os sacerdotes for-mavam a primeira casta da na-ção tinham o poder de eleger osreis e limitar a sua conduta; osseus alimentos eram fornecidospelas classes inferiores, a quemarrendavam as terras dos tem-plos; só eles tinham o direito deinstruir e oferecer sacrifícios.

Nada de novo, pois, debaixodo sol, como diria Salomão, noque se refere ao sacerdócio cris-tão: tudo estava já em práticanos povos mais antigos.

Inseparáveis dos sacerdotessão as profecias, os oráculos, ossortilégios, os prodígios, osexorcismos, porque a sua missãoseria inútil, se não tivessem, ou

explicação: que Satanás, antecipando-seao cristianismo, revelara ao budismoessa ordem de coisas divinamente cons-tituída. A Igreja romana, porém, nãoaceitou tal explicação. O cardeal Anto-nelli e todas as autoridades da Roma pa-pal, vendo o perigo que essas revelaçõestraziam em pleno século XIX, proibirama circulação do livro do padre Huc, masfoi debalde, porque, a esse tempo, já elese tinha espalhado em todo o mundo,em diversas traduções. Padre Huc, nun-ca mais fui enviado a fazer missões.

não julgassem ter, algum poderoculto sobre a Natureza, para in-teresse das necessidades huma-nas.

Pois bem: os brahmanes indi-anos tinham o poder de paralisar,com maldições e malefícios, aação insidiosa de Mahadeva, epossuíam certas plantas e lico-res, a que atribuíam virtudes mi-lagrosas.

As expiações são o alimentoordinário das religiões anterioresao cristianismo, de modo que acristã não faz mais do que copi-ar. As mortificações dos indianosjamais foram excedidas, mesmopelos mais ferozes ascetas daIdade Média.

Uns arrastam cadeias de ferropor toda a vida; outros trazemsobre as carnes agudos espinhosde ferro; estes caminham sobrecarvões acesos; aqueles passama vida inteira imóveis; um peni-tente faz em dez anos a peregri-nação de Benares, medindo como corpo o espaço que o separa...E quantos se deixam despedaçardebaixo das rodas dos carros queconduzem os deuses!

No budismo, há certas épocasdo ano destinadas ao jejum, àabstinência de carnes e a muitaspráticas austeras, entre as quais ade se transportarem aos templos,de joelhos.

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E, como estes, os egípcios, osgregos e os romanos.

Os votos são comuns a todasas religiões, exceto à de Confú-cio. O voto de castidade, sobre-tudo. Encontra-se na Índia, noEgito, na Grécia, em Roma,onde o colégio das vestais eraum verdadeiro convento as jo-vens romanas, que entravam aosseis anos, para lá permanecerematé aos quarenta, faziam voto denão deixar extinguir o fogo sa-grado e de conservar a virginda-de. Se alguma delas violava esteúltimo compromisso, era sepul-tada viva e o amante condenadoà morte.

Acerca dos sacrifícios, já vi-mos como eles se usavam nasreligiões antigas. Os budistas,por exemplo, oferecem a Deuspão e vinho, que representam ocorpo do Agni, e os bonzos, an-tes da cerimônia, abençoam opovo.

A missa é completamentepagã, até nos mais pequenos de-talhes litúrgicos.

O sacerdote, vestido de bran-co, purificava o templo e os fiéiscom agua benta. A cerimônia eraacompanhada de hinos ao Sol eao Fogo, de onde procedem osnossos Kyrie-eleison, etc.

Em seguida, tinha lugar a

imolação da vítima que, com otempo, foi substituída pela hós-tia259.

O sacerdote, antes de fazer alibação do vinho sagrado, (a pa-lavra libação provém de ser o vi-nho oferecido a Líber, Baco) la-vava as mãos.

O Lavabo é uma oração anti-ga, que remonta a Orfeu. As ga-lhetas para as libações, uma paradeitar a água nas mãos e outrapara o vinho, já existiam talcomo hoje.

O celebrante, ora ajoelhava,ora se levantava, erguia as mãosao céu, estendia-as sobre a hós-tia, voltava-se para os circuns-tantes, queimava incenso, ofere-cia pão e vinho à divindade, in-vocando-a três vezes no Sanctuse no Agnus dei. Por fim, despe-dia os assistentes. Em Roma eracom as palavras - ite míssio est -de onde veio, por corrupção, oite missa est.

A elevação do cálice é de ori-gem ariana.

Os persas tinham a sua euca-

259 Pretende-se que a cristianismo aca-basse com os sacrifícios sangrentos.Nada menos verdadeiro. O uso de nãoimolar homens estava já há muito emprática, e até mesmo o de animais já ti-nha acabado, quando triunfou o cristia-nismo. A hóstia de pão era já usada en-tre egípcios e romanos.

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ristia, tal como os católicos.Pelo que se refere às orações,

o cristianismo está muito longedas religiões que lhe serviram demodelo. Os budistas tinham já asua coroa - convertida pelos cris-tãos no rosário - de que se servi-am colocando os dedos entre osgrãos e escrevendo num papel onúmero dos recitados.

Na religião de Zoroastro éprescrita a oração fervorosa,com pureza de pensamentos, pa-lavras e obras. A oração humil-de, acompanhada de sincero ar-rependimento era consideradasuperior a todo o existente.

O pater, o credo e o confiteor,eram as mais importantes ora-ções dos persas.

Na Grécia, a oração fazia-sepela manhã e à noite, ao nascer eao pôr do sol. Os fiéis iam para otemplo de olhos baixos e ar su-plicante beijavam o chão e fica-vam de joelhos. E na Etrúria erajá costume antigo rezar com asmãos juntas.

Os romanos tinham duas es-pécies de orações: as execraçõesque se dirigiam contra os deuses,por ocasião das calamidades, eas súplicas, que eram pedidos degraças.

A confissão auricular já sepraticava no brahmanismo, e os

confessores empregavam asmesmíssimas formas dos atuaissacerdotes católicos. A confissãoera também usada pelos persas.

Os hábitos ou vestimentas sa-cerdotais são tirados das antigasreligiões, em todos os seus deta-lhes. A sotaina procede dos sa-cerdotes de Mitra, bem como aestola, onde estavam representa-dos os signos do zodíaco.

0 uso de rapar toda a barba,era próprio dos sacerdotes, desdea maior antiguidade, e significa-va um grande sacrifício, pois àsbarbas se atribuíam certas virtu-des. O barrete preto, ou tricorne,é igual ao que usavam os sacer-dotes de Júpiter, em Roma.

O solidéu negro, o báculo, oanel de ouro, as sandálias, omanto branco, a tiara, são cópiados costumes sírios e babilôni-cos.

Já falamos das festas da Nati-vidade e da Páscoa; acrescenta-remos as mais importantes,como são, por exemplo, a come-moração dos defuntos e a pri-meira comunhão, todas elas an-teriores ao Cristianismo.

As peregrinações eram já pra-ticadas pelos indianos.

As ladainhas são antiquíssi-mas. Malvert, no livro a que jános referimos, confronta as la-

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dainhas da Virgem Maria com asdas virgens-mães, que a precede-ram, e vê nelas a origem daspróprias palavras da ladainha daVirgem.

As procissões remontamigualmente à mais remota anti-guidade. Ovídio e Apuleyo des-crevem procissões em honra deJuno e Diana, em tais termos,que poderiam aplicar-se às denossos dias.

Havia também o costume deadornar as ruas quando passavaa procissão, figurando nela alta-res, incenso, promessas, criançasvestidas de branco e sacerdotesde cabeça raspada, relíquias sa-gradas, etc.

As preces públicas eram emRoma a Ambarvalia, e tinhamtambém lugar em maio, atravésdos campos, pedindo para eles aproteção divina. No solstício doverão, celebrava-se a festa doSol, que o cristianismo conver-teu na de João.

Os budistas levavam estandar-tes nas procissões, uso que pas-sou para Igreja romana, sem al-teração alguma.

No budismo, os fieis eramchamados à igreja pelo toque decampainhas e no vestíbulo de to-dos os templos gregos haviaágua lustral.

Os cânticos e a música eramtambém já usados nas cerimôni-as religiosas dos gregos e roma-nos. O mesmo diremos dos círi-os e das lâmpadas, que se acen-diam para honrar a luz, princípiogerador do Sol e dos astros.

O culto das imagens é antigocomo o homem. Tem-se dito queo cristianismo foi o primeiro eúnico a aboli-lo.

Plutarco, porém, recorda queos tebanos não representavamDeus sob forma alguma e o pró-prio Numa admoestou os roma-nos para que não fizessem ima-gens materiais dos deuses.

Mas até o cristianismo acaboupor adotar o culto das imagens, ecaso curioso, muitas vezes suce-de que as imagens dos deusesantigos são objeto da devoçãodos cristãos, com uma simplesmudança de nome.

Das cerimonias que acompa-nham o nascimento, importa re-cordar a dos indianos, que lava-vam o menino em água benta,dando-lhe em seguida o nome deum gênio, que se convertia emseu protetor, menino que ao fimde quatro meses era oferecido aoSol, cortando-lhe os cabelos emforma de coroa para imitar o dis-co daquele astro.

Nas dos persas, o mobed (sa-

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cerdote) batizava a criatura, es-premendo- lhe na boca, com al-godão, o suco da árvore chama-da hom - cerimônias que passa-ram todas para o cristianismo.

Entre os indianos, quando acriança chegava à idade de oitoanos, começava a recitar o hinoao Sol, e pouco depois, ia à es-cola do Gurom ou diretor espiri-tual, que lhe ensinava os Vedas.

Entre os persas, a criança de-via, aos quinze anos, preparar-separa as cerimônias do Zuzodi ouiniciação na religião e só entãoera purificada e conduzida aotemplo. O mesmo sucedia entreos egípcios.

Acerca do matrimônio, as ce-rimônias que a ele presidiameram quase as mesmas, assimcomo na morte.

Entre os indianos, a extremaunção consistia em banhar asmãos do enfermo em urinas devaca.

Como se vê, esta ligeira rese-nha das principais cerimônias doculto das religiões pré-cristãs,embora parecesse, a princípio,estranha ao nosso tema, deu,contudo, em resultado mostrarque, ainda aqui, a religião cristãnenhuma necessidade teve decriar coisa alguma porque todosos elementos do seu culto pree-

xistiam já nas várias religiões,das quais ela os copiou.

É certo que nos podem obser-var que nos Evangelhos nada seencontra referente ao culto, masisto é ainda um fato que depõe anosso favor, pois não só provaque quem escreveu os Evange-lhos se não preocupava com oculto, porque evidentemente pra-ticava já um, mas também que oque depois foi culto de uma ououtra seita cristã não se tinhaainda adotado, ou antes diferen-ciado dos precedentes, com ca-racteres distintos, porque primei-ro devia criar-se o novo Deus e acrença nele mesmo.

Sob este ponto de vista, ascontendas e lutas entre as váriasseitas cristãs, relativas a este ouàquele ato do culto são verdadei-ras sandices e perdem todo o va-lor, já que todas elas beberam damesma fonte oriental, o mito doDeus Redentor, encarnado nonovo Deus.

Importava à nossa argumenta-ção demonstrar que nem paracriar o culto cristão era preciso aexistência e a obra do pretendidoCristo, tanto mais que, do examedo culto, tiramos para a luz, es-plêndidas e irrefutáveis provasda origem e natureza mitológicade Cristo.

Concluiremos, pois, dizendo,165

com Stefanoni, que em váriospontos da sua admirável obra es-tabelece com grande lógica e só-lida argumentação a pergunta -se Cristo realmente existiu: Anova época (a do nascimento doCristianismo) estava, por conse-guinte, irrevogavelmente prepa-rada. Nem cataclismos, nemquebras de tradições a inicia-ram; veio lenta, insensível, qua-se inesperada, a erguer as inte-ligências a uma nova ideia. Nãoiniciou, mas completou o traba-lho de vários séculos.

O cristianismo não foi, pois,obra de um só homem nem depoucos anos, mas o resultado delargo trabalho de vários povos,o conjunto dos progressos ge-rais de cada um, feitos em todosos tempos.

E, ainda que a fé ensine que anova religião foi consequênciada divindade novamente revela-da, a História, fundamentadaem documentos pode afirmarcom toda a segurança que ocristianismo existia antes deCristo260.

260 Stephanoni, História Crítica das Superstições, vol. 1, cap. XVI.

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CAPÍTULO IVFORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO CRISTIANISMO

O haver demonstrado que to-dos os elementos que formaramo cristianismo já preexistiam nosvários cultos e escolas filosófi-cas, que o precederam, não bas-taria ainda para explicar a razãopor que vieram a fundir-se numúnico corpo de doutrinas e cren-ças, dando origem a uma novareligião. Esta razão deve serprocurada fora dos materiais danova religião, da qual forma aparte objetiva; esta razão nãopode ser mais do que o estadosubjetivo dos ânimos, nos tem-pos e lugares onde o cristianis-mo se foi elaborando, paulatina-mente, como difusa nebulosaque, pelas mesmas leis de gravi-dade que regem o Universo, deuprincípio a um novo núcleo deatração em torno do qual vieramgravitar as forças psíquicas daevolução humana.

E aqui surge de novo a obser-vação de que hajam sido vãostodos os esforços que se têm ten-tado para determinar o momentopreciso da origem histórica docristianismo por parte das inteli-gências positivas, que com justarazão, não podem reconhecer omilagre, afirmando que o nasci-mento de uma religião não pode

ser uma coisa palpável, concreta,determinada ou determinável,mediante meios diretos e experi-mentais de observação, mas simo produto de um processo lento equase imperceptível em suas fa-ses, de um trabalho absoluta-mente interno, imponderável, in-definível e indeterminável, doconjunto das capacidades huma-nas.

Quando se apresenta como umfato completo e consumado nacena da história, não pode dizer-se, com justiça, qual seja a suafonte, porque as suas origensperdem-se na noite dos tempos,e especialmente, naquele misté-rio, quase impenetrável - porque,inadvertido quando se difunde,está já difundido e consistentequando se dá por isso - da filia-ção das ideias e dos sentimentos,que constituem a causa verdadei-ra da formação de uma religiãonova.

Mas, se não podemos determi-nar o verdadeiro momento dahistória em que surgiu o cristia-nismo, podemos, em compensa-ção, fixar a sua causalidade e de-terminar, precisamente, o pro-cesso da sua formação. Estemeio é a psicologia que avalia os

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fenômenos morais com o estudodas condições do meio ambiente.

Sem pretendermos descrever afundo a formação psicológica docristianismo, daremos contudo,deste fenômeno, uma explicaçãosuficientemente clara, até mes-mo sob o ponto de vista positivoe evolucionista.

Diz-se, e é mesmo um lugarcomum arraigado na persuasãode todos, até de muitos positivis-tas, e que só se explica pelagrande força da tradição, que ocristianismo fora um progressomoral, devido à necessidade depôr termo à corrupção do paga-nismo.

Pois bem: ainda com risco desermos apedrejados, contra essainfundada crença nos revolta-mos, só porque é infundada, eem nome da verdade e como ho-menagem à justiça, devida tam-bém aos homens que tiveram adesgraça - ou a fortuna - de viverantes do cristianismo, declara-mos que a causa psicológica doadvento do cristianismo foi umprincípio de decadência e não deprogresso.

E desde já passamos a de-monstração, deixando que falemos fatos para que, num argumen-to de tanta monta não figure aretórica em linhas de combate.

O cristianismo, que foi o en-contro dos hebreus e dos gregosno Egito, crisol onde se realizoua fusão do Oriente com o Oci-dente - consumado organica-mente em Roma - absorveu detodos esses povos, como expo-ente comum e denominador desuas diversidades étnicas, o con-junto daquelas lágrimas das coi-sas de que falava então, precisa-mente, o poeta latino.

O cristianismo fez a sua apari-ção quando hebreus, gregos e ro-manos tinham perdido a liberda-de, a felicidade e a esperança dereconquistá-las no mundo pre-sente; veio quando a felicidadede viver, própria da antiguidadeprimitiva, que teve o seu apogeuna Grécia, foi destruída pela re-flexão e pela prática dolorosa davida, dando lugar ao tédio, às de-silusões trazidas pelas contínuasadversidades, aquela dor univer-sal das coisas, que tornava aexistência inexplicável e intole-rável ao mesmo tempo, porquecom a cultura, tinha também au-mentado o sentimento da into-lerância dos males que afligiamos homens e os povos.

Como diz Gaetano Negri, in-comparável filósofo e artista: Enão podendo o homem renunci-ar à felicidade, não tem maisque um meio para sair de sua

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miserável condição o de trans-portar esta sua felicidade davida terrena para a vida trans-cendental, a de admitir a adver-sidade no mundo presente, paraa substituir, se assim pode dizer-se, pela esperança da felicidadeno mundo futuro. Esta foi, justa-mente, a doutrina do cristianis-mo261.

A ciência experimental não ti-nha ainda nascido, e a Humani-dade, combalida, não tinha entãooutro remédio contra os malesdesta vida, além da esperança navida futura. O cristianismo foipois, uma doutrina nascida dadecadência. Foi por conseguinte,a religião da decadência262.

A sorte do povo hebreu, conti-nuamente escravizado por uma eoutra dominação, desiludido nassuas esperanças de voltar aostempos felizes e à glória, tinhapreparado aquela literatura dador, que deveria consolar os hu-mildes e os aflitos e ser um po-deroso elemento para a forma-261 Gaetano Negri, Crise Religiosa.262 Emíle Zola, com sua vista de águiapenetrou até a íntima essência do cristi-anismo, ao escrever: É do negro pessi-mismo da Bíblia que é preciso libertaro mundo, espantado e esmagado hádois mil anos, vivendo apenas para amorte; e nada é mais caduco nem maismortalmente perigoso que o velhoEvangelho semita aplicado ainda comoúnico código moral e social.

ção e difusão do que mais tardese chamou cristianismo.

O advento desta filosofia dador, da resignação e do desprezoda vida presente precedeu igual-mente as mais graves calamida-des públicas na Grécia e emRoma.

Platão - o primeiro padre pré-cristão da Igreja - escrevia preci-samente quando os destinos deAtenas decaíam a olhos vistos.

As ruínas morais da pátria nãofizeram senão dar maior incre-mento à filosofia de Platão,àquele misticismo que, desta-cando-se da vida real por suabrutalidade, sem liberdade nemjustiça, em si mesmo se concen-trou, como em último refúgio.

Encaminhada assim, a filoso-fia grega chegava por um lado àEgesia, que aconselhava a mortevoluntária como meio mais se-guro para alcançar o repouso daalma, a paz sem inquietações, epor outro lado, ao Livro do Luto,do acadêmico Crantor, modelodas consolações.

Não andavam melhor as coi-sas de Roma, no século anteriorao advento do cristianismo.

Este século, que depois de terreduzido tantos povos à domina-ção de Roma, submete a mesmaRoma ao domínio de um só,

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inaugura-se sob os auspícios deuma interminável guerra entrecimbros e tentões; vê levanta-rem-se todos os povos da Itáliacontra Roma; assiste às guerrasentre Mário e Sylla; admira Es-pártaco, que à frente dos escra-vos fez tremer os senhores; hor-roriza-se com a organização ge-ral e terrível dos piratas; na Áfri-ca, na Espanha, na Bretanha, vêcenas de ferocidade e de luta; as-siste às guerras de Mitrídates edos partos no Oriente, às façõesde Pompeu, de César, de Bruto,de Antônio e de Augusto, que di-vidiram e ergueram em armas omundo que Roma dominava.

É então que desabrocha umgrande mal estar para a vida,nada se esperando já da liberda-de nem da lei; o suicídio con-verte-se numa salvação, e a mor-te é considerada, não como o ter-mo, mas como o objetivo davida é a filosofia da desolação,que inspira a Tusculane de Cíce-ro.

E como a arte é o termômetromoral do tempo, nós vamos en-contrá-la em Horácio, pessimistaaté ao ascetismo263.

E esta era a disposição dos es-píritos, antes de Augusto. O quenão seria depois, nos sucessores,263 Paulo Orano, O Problema do Cristianismo.

sob Tibério e Nero? Daquele ambiente não podiam

sair senão almas cristãs, comoSêneca. E eis porque, naquelaépoca, começa a fazer à sua apa-rição misteriosa o nome cristão ecom ele o objeto.

A filosofia converte-se em re-ligião, e esta na religião do sofri-mento e da morte nesta vida,para gozar na outra o paraíso.

Vejam se naquele ambientenão deviam surgir e tomar formaconcreta, as esperanças messiâ-nicas dos hebreus, anunciando ofim próximo do mundo, a ressur-reição e a palingenésia univer-sal!

Vejam se, ao antimoralismodaquele tempo, não era necessá-rio o ultramoralismo oriental, se-gundo a feliz antítese de Renou-vier264, para que, a fim de curarum excesso, viesse um excessocontrário, e a fim de curar ummal viesse outro mal - um outromal que, desgraçadamente, per-maneceu no corpo social enfer-mo e debilitado, sem que tenhamconseguido ainda expulsá-lo asrepetidas renascenças do natura-lismo filosófico e do experimen-talismo científico.

Por outro lado, enquanto a

264 Citado por Benoit Malon no livro Questões Ardentes.

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moral degenerava, as crenças naantiga divindade esfumavam-seaté desaparecer de todo. Se a fédiminuía, não era tanto obra dolivre exame, mas do encontroentre os vários cultos e a críticarecíproca.

Sobretudo, devia ter sido deuma grande influência e contatocom os persas, pois não tendo osseus deuses estátuas nem altares,animando o seu culto apenas oelemento puramente espiritual,os gregos seriam levados a me-ditar sobre o grosseiro antropo-morfismo dos seus deuses.

Isto não quer dizer que à anti-guidade clássica faltassem espí-ritos liberais e críticos raciona-listas: Anaxágoras, Epicuro, De-mócrito, Protágoras, Diágoras deMelos, Lucrécio, etc., são nomesque o moderno livre pensamentopode colocar entre os seus mem-bros honorários.

Já, além disso, o estoicismoencontrara a verdadeira explica-ção da origem das religiões nosmitos, nos quais a imaginaçãodos antigos, desconhecedora dasleis da Natureza, intentara expli-car os fenômenos naturais. JáEvemero de Messina estabeleciaa teoria de que os deuses nãoeram mais que grandes homensou reis divinizados, teoria queesteve muito em voga até os

nossos dias, e que ainda hoje éverdadeira para certas tradiçõessecundárias, e que no seu tempo,devia ter exercido uma influên-cia demolidora sobre as religiõesconstituídas.

A incredulidade entra nasconsciências de tal modo, queaté Virgílio admirava Lucrécionos famosos versos: Foelix quipotuit rerum cognoscere causas.(Feliz. aquele que foi capaz deaprender as causas das coisas )

E o próprio Séneca, o cristãoSéneca, escrevia o não menos fa-moso verso em que faz acabartudo com a morte.

Estava portanto batido o poli-teísmo. Na sociedade culta eramoda ser incrédulo. Não se criaem milagres, nem pouco nemmuito, e a idolatria, essa era sópara o vulgo.

A crítica religiosa tinha chega-do, com Cicero, até á negaçãoabsoluta da divindade, nos seusdiálogos sobre Deus e sobre aadivinhação, apesar das precau-ções que toma ao apresentar aideia.

Mas esta crítica, numa épocaem que faltavam a liberdade e aciência experimental, não podiaconduzir à negação absoluta,embora fosse excessivamenteatrevida e adiantada para o mai-

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or numero dos homens daqueletempo.

Ainda assim, conseguiu, emcertas ocasiões, destruir a fé nosvários Deuses, se bem que para aconcentrar no Deus ignoto deSócrates, de Eurípedes e do dou-to e grave Varrão.

0 povo greco-romano não sejulgava incrédulo, embora hou-vesse perdido toda a fé nas desa-creditadas divindades ocidentais;estava agitado, mais que nunca,por uma intensa febre de crer,especialmente no maravilhoso,no místico, na novidade, em al-guma coisa que adormecesse ainteligência amodorrasse os sen-tidos. Dominava o ceticismo fi-losófico.

O espírito febrilmente agitadoprocurava um ponto, um leitoonde repousar. E não conhecen-do ainda a ciência experimental,caminhava, delirando, em buscade uma nova fé. O neopitagoris-mo e, mais tarde, o neoplatonis-mo, não foram mais que esboçosde tais tentativas. A superstiçãorecrudescia.

Diodoro tinha já invejado atranquilidade que os caldeusdesfrutavam em suas crenças re-ligiosas, imóveis e livres da crí-tica.

Na desagregação política e na

desconsolação pela liberdadeperdida, quando nem leis nempoderes, nem costumes basta-vam a reforçar a fé debilitada, aHumanidade entregava-se decorpo e alma aos sonhos do so-brenatural, como para se agruparem torno da última âncora desalvação. A impotência geralsentia a necessidade de um jugo,na ordem espiritual, como na or-dem temporal.

Os próprios poetas eróticos,Ovídio e Tíbulo sobre todos, fa-zem-se eco da devoção domi-nante nos espíritos do tempo.

Por fim, Sêneca mostra acre-ditar na astrologia, no fim domundo e numa nova palingené-sia. Chega a falar no reconheci-mento que se deve ao Sol e àLua. Lucano mostra-nos a almade Pompeu subindo ao céu, ondese senta entre as almas santas,contemplando de lá o nossomundo miserável e o despojomortal que nele deixou. Tambémem Virgílio se revela a crença napalingenésia universal; o nasci-mento de um menino sugere-lheo cumaeum carmen, sonhando,de olhos abertos, na fé do apoca-lipse sibilino.

O grande número de dogmas ereligiões concentrados em Romafavorecia, mais que tudo, esta al-titude dos espíritos, predis-

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pondo-os para aceitar a doutrinareligiosa que mais autoridademostrasse pela necessidade uni-versal da unidade religiosa e desubmissão a uma crença, queacalmasse os espasmos da incer-teza, da confusão e do caos.

Os espíritos estavam fatiga-dos, cansados de pensar, e ansia-vam o repouso.

A unidade do mundo, prepara-da por Alexandre e consumadaem Roma, onde se realizava apaz universal, na universal es-cravidão, e a universalidade dalíngua grega, convertida em veí-culo e em ponto de contato mo-ral das mais diversas nações,como Roma viera a ser o centroe ponto de contato material dosdiversos povos, conduziram to-das as inteligências à concepçãodo homem universal, que nãofosse apenas um cidadão de Ate-nas, de Alexandria, de Jerusalémou de Roma, e sim homem hu-mano, segundo a justa expressãode Strauss, como a multidão dasreligiões (gaulesa, caldaica, per-sa, egípcia, hebraica, etc.) con-duz os espíritos a buscar a suafusão e confusão numa crençaúnica, cujo centro seja o Deussupremo e único e a periferiatoda a Humanidade.

Que religião seria essa? Oúnico obstáculo estava na sele-

ção.Acusava-se o público do ultra-

moralismo das religiões orien-tais, que vieram, com todas asoutras, estabelecer-se em Roma.

E destas, as que mais se dis-putavam o domínio dos espíritoseram a persa e a hebraica, hele-nizada especialmente por Fílon,sobre as doutrinas de Platão porum lado, sobre as dos terapeutaspor outro.

Os mistérios egípcios, com oDeus Redentor Serápis e sua Vir-gem Mãe Ísis, tinham igualmen-te conquistado grande influência,mas acabaram por se confundircom os dos hebreus, provavel-mente por estes se terem impreg-nado daqueles, tirando deles omito do Deus Redentor, que de-pois viria realizar, às mil maravi-lhas, o sonho do Messias, comquem podia confundir-se.

Mitra, sobretudo, conseguiupor muitos anos conquistar a su-premacia. Pelo ano 68, antes daépoca assinalada ao nascimentode Cristo, introduziram-se emRoma os mistérios de Mitra, al-cançando um êxito prodigioso econseguindo milhares de adep-tos. Mitra, que já era adorado naPérsia, na Armênia e na Capadó-cia, teve em Roma, durante doisséculos, a preferência dos devo-tos. No tempo de Adriano, o seu

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culto era tão popular, que um es-critor grego, Paládia, compôsum tratado especial, a que Porfí-rio faz referências.

O seu culto torna-se quase ge-ral nos últimos séculos do paga-nismo, em Roma, onde a sua ini-ciação misteriosa feria as imagi-nações, provocando a criação demuitos monumentos, baixo-rele-vos e inscrições em sua honra,descobertos e recolhidos no nos-so tempo.

A vitória definitiva, porém,essa devia caber aos hebreus.

(Breve se verá porque falamosde hebreus e não ainda de cris-tãos).

Os hebreus tinham começadoa exercer determinada influênciasobre os ocidentais, especial-mente no Egito, onde, por suascontínuas emigrações, estabele-ceram numerosas colônias, se-gundo atestam os escritores he-breus Josefo e Fílon, sobretudoquando Alexandre leva 40 mildeles para Alexandria e quando,150 anos antes da nossa era, alise foi estabelecer Onia, fundan-do um templo ao Deus israelita.

Foi principalmente em Ale-xandria que, por meio das tradu-ções dos seus livros sagrados,feitas em grego, começaram aser conhecidas as suas crenças,

rebaixando as gregas, alexandri-nas e egípcias.

Passaram logo a Roma, depoisdas guerras de Pompeu, que con-duziu consigo alguns milharesde prisioneiros. Antes disto, po-rém, já eles exerciam em Romauma influência considerável, aponto de, já no tempo de Cícero,terem no Senado alguns amigos,segundo diz Plutarco.

Já no ano 22, reinando Tibé-rio, teve lugar um Senatus-con-sultus contra os hebreus e osegípcios, que segundo Tácito,formavam em Roma uma únicasuperstição.

Assim, pois, os hebreus, maisque nenhuma outra religião, le-vavam a Roma aquilo de queRoma, e com ela todo o mundo,tinha necessidade, isto é, a cren-ça no fim do mundo, seguida daressurreição ou palingenésia uni-versal, a exaltação da pobreza,dos humildes e dos doentes etambém a exaltação do misticis-mo religioso, que então chegavaao cúmulo, porque sendo umaenfermidade, esta irrita-se, espe-cialmente nas horas de sofrimen-to e prostração, tanto na vida dospovos como na dos indivíduos.

A crença no fim próximo domundo e numa regeneração davida, trazida da Pérsia para omundo latino, era geral naquela

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época, desde a Índia a todo oMediterrâneo, e no Ocidente,Plutarco, Lucrécio, Ovídio, Vir-gílio, Lucano e Sêneca tinham setornado seus intérpretes. Os li-vros do Novo Testamento, dis-cordante em quase tudo, anda-vam de harmonia neste ponto so-bre que gravitava a crença napróxima vinda do Messias.

A religião judaico-cristã vinhaaqui dar um destino a esta cren-ça, e por conseguinte, devia ser apredileta naquele ambiente exal-tado, que também era o maisbem disposto para que esta sepudesse arraigar nele e estender-se rapidamente, como uma man-cha de azeite sobre uma superfí-cie plana.

O que mais devia contribuirpara o culto do cristianismo,eraa tendência eminentemente po-pular do judaísmo, tendênciaque, tanto na literatura como nasfiguras ideais dos seus persona-gens, era extremamente sugesti-va e de molde a que os humil-des, os oprimidos e os deserda-dos se convertessem em massa ànova fé.

Este elemento, passado do ju-daísmo ao cristianismo, explicacomo e porque essa mesma mo-ral e essa mesma doutrina, assimcomo a filosofia greco-romana,há tanto professada de maneira

sublime, só se tornaram popula-res, só se generalizaram por in-termédio da nova religião.

Com a diferença de que, coma religião cristã, aquela filosofia,em lugar de uma redenção, foiuma ilusão pior que o mal, foiuma decadência que retardou areivindicação que prometia, co-locando-a mais longe, na vidafutura, pregando nesta vida a re-signação e a miséria, como sen-do de direito divino e como meiomeritório, a uns para exercer acaridade, a outros para dar moti-vos a que os primeiros a exerces-sem, tornando-se dignos do rei-no dos céus.

Sob este ponto, foi moroso otriunfo do cristianismo, porqueprometia a felicidade só com aesperança, separada de toda aação e iniciativa, fonte única detodo o verdadeiro progresso mo-ral e material.

Estas eram, realmente, as ar-mas da vitória, o in hoc signovinces daquela época, em que osentimento da revolta contra amiséria e a opressão se tinha ge-neralizado e selecionado pelaforça das coisas e das doutrinasfilosóficas, que para tal fim con-vergiam.

As aspirações morais, maisprofundamente sentidas naquelaépoca, juntavam os hebreus o

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culto a um Deus Redentor, quenesse tempo era provavelmenteSerápis, adotado por eles no Egi-to, como veremos, e que vierasubstanciar e materializar o Ver-bo de Fílon, encarnando-o numdeus feito homem; um Deus Re-dentor que tinha os mesmos atri-butos de Mitra, de Horus, deApolo, e em geral, dos DeusesRedentores, já conhecidos e ado-rados por todos os povos.

Os propagandistas mostra-vam, na propaganda, tanto fana-tismo como o mesmo público,segundo afirma Horácio e a his-tória confirma, achando nas mu-lheres um dos meios de propaga-ção mais eficazes, de que se ser-viram.

Assim, Pomponia Graecinacomparecia no ano 57 peranteum tribunal, acusada de judaís-mo, e a famosa Popea, amante edepois esposa de Nero, protegiaos hebreus nos momentos difí-ceis.

Ajuntemos a isto o atrativo dacomunhão dos sexos nesta reli-gião, comunhão que, na institui-ção dos ágapes, chegou ao extre-mo de se beijarem na boca e dor-mirem no mesmo leito, por pre-tendido espírito de mortificação,abusos cuja autenticidade estáfora de toda a dúvida, e que tor-naram necessária a imposição de

limites a tão misteriosa intimida-de, filha da exaltação erótica,que acompanha sempre a exalta-ção mística das crises religiosas,como se vê pela história.

Agora pergunta-se: em queépoca começaria Cristo a ser hu-manizado? Não é fácil deter-miná-lo com precisão, emboraisso seja indiferente à psicologia.

Recordaremos, no entanto, denovo, que a invenção de Jesusnão pode ser obra dos hebreus,mas dos romanos, não já pelaparte favorável atribuída a Pila-tos, contra a lógica das ideias,que corresponde à logica dos fa-tos, mas pelo papel odioso, inve-rossímil e absurdo que os Evan-gelhos as igualam aos hebreus: opapel de deicidas.

Repugna à inteligência e aocoração supor que uma calúniatão atroz, que por tantos séculosdevia pesar sobre um povo, sóporque se negou a acreditar namentira da vinda do Messias,possa ter sido inventada peloshebreus, inovadores e expatria-dos.

Não: essa calúnia só pode tersido elaborada pelo cristianismoromano, ao formar-se o catoli-cismo czarista e teocrático, emcujo auxílio acudia um novoDeus para melhor consolidar oseu poder; Deus que era preciso

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fabricar na expectativa messiâni-ca dos hebreus, sobretudo depoisda destruição de Jerusalém e dis-persão dos hebreus, em que co-meçavam a passar as gerações eos testemunhos, que poderiamdesmenti-lo.

O momento histórico aproxi-mado, em que foi inventada a fa-bula de Cristo, constitui umaquestão por completo supérflua

para o nosso objetivo.Nessa fusão histórica e psico-

lógica de raças, doutrinas, religi-ões e aspirações cosmopolitas,de que surge o cristianismo, foiisso um efeito do meio ambientee do estado relativo dos ânimos.

Mas, deixemos isso, que afi-nal, pouco tem com o nosso as-sunto, já suficiente e exuberante-mente demonstrado.

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CAPÍTULO VCOMO ACONTECEU O TRIUNFO DO CRISTIANISMO

Exposto o meio ambiente emque se produzira o cristianismo,não fica, porém, de todo explica-do o grande fenômeno de unifi-cação que gerou o cristianismo.

Naquelas condições criadorasdo meio e por sua vez, do estadode ânimo geral que deveriamoperar a transformação da civili-zação greco-romana, só vemosagir causas mecânicas e incons-cientes - em relação do efeitoproduzido com seu involuntárioconcurso - causas que explicama preparação subconsciente eevolutiva do fenômeno, masnunca a sua determinação defini-tiva. Isso foi obra de causasconscientes e de vontades ativas,que neste capítulo indicaremosrapidamente.

Estas forças ativas, coordena-doras, conscientes, determinadase determinantes foram a Igreja eo Estado. Primeiro, aquela só, econtra a vontade deste; depoiscom este e por meio deste; e fi-nalmente, contra este.

Quando, onde e como se for-mou o primeiro núcleo, a pri-meira organização da Igreja cris-tã? O que existiu primeiro: o cle-ro, a casta sacerdotal ou o cristi-

anismo?Foi o cristianismo que gerou o

clero cristão, ou este que gerou ocristianismo? Veio primeiro o sa-cerdote, ou veio primeiro a mis-sa, como diria Guerrazzi?

Desgraçadamente - e dizemosdesgraçadamente porque a histó-ria verdadeira da Igreja seriatambém a da origem precisa docristianismo - temos de nos re-signara confessar a ignorância dahistória sobre este ponto, tantomais que os únicos documentosque sobre tal assunto existem,como a História de Eusébio, quetambém é a primeira e só data doano 313, são documentos inte-ressantes.

O que, porém, está evidente-mente provado é existir já a Igre-ja antes da redação dos Evange-lhos, e os próprios Evangelhosnos dão provas disso, tais comoas palavras de Cristo, quando dizque se deve considerar o herege,que não obedece à Igreja, comopublicano e fariseu, e quandofala em levar a própria cruz, emsentido metafórico, o que nãopoderia nunca ter dito antes quea pretendida paixão de Cristo setivesse difundido e fosse acolhi-

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da com aquele caráter de autori-dade que pressupõe uma organi-zação.

E como a Igreja era anterioraos Evangelhos, com que ela fa-bricou o novo Deus Redentor, élícito deduzir que a casta sacer-dotal presidira desde o princípioà formação e difusão da nova re-ligião.

E também é certo que, desde oprincípio da nova seita, se en-contra a Igreja hierarquicamenteorganizada sobre a imagem dateocracia hebraica e conforme aassociação grega e o colégio ro-mano, de cujos nomes principaisse apropriou (clero, bispo, pres-bítero, diocese, etc.).

Dada assim a existência daIgreja, já temos uma das causasmais poderosas e eficazes da di-fusão do cristianismo, porque aoideal, o clero juntou o própriointeresse, estímulo e aguilhão es-pecialíssimos para a ação.

Acerca da contradição entre aorganização de uma nova Igrejae a pregação do próximo fim domundo, só diremos que podemuito bem existir, como tantasoutras que formam grande partedo trama da vida dos povos, ain-da que aquela fosse de gravida-de, própria para fazer duvidar daboa fé do clero cristão e até mes-mo da origem da nova seita.

E a constituição do cristianis-mo em teocracia, conciliando-secom a moral evangélica, é outradaquelas contradições lógicas,que parecem formar o substrac-tum da psicologia dos povos, eque provavelmente estão deter-minadas pelo trama dos mais di-versos e vários interesses das di-ferentes classes sociais.

Pela presença, certamente,duma nova casta sacerdotal, as-sistimos desde o principio docristianismo a este duplo caráterda sua política ser a um temporebelde à autoridade constituída,e instrumento de submissão àmesma; caráteres que termina-ram ambos por fazer parte dadoutrina da Bíblia, na qual,como já vimos, estão em desa-cordo, tanto como na vida daIgreja.

Estas duas doutrinas, que àprimeira vista parecem inconcili-áveis, não o são. Quando a Igrejaquer, concilia-as admiravelmen-te, em seu interesse. O que aIgreja quer é a sujeição do povoao poder civil, quando este tratados interesses dela mas quandose ocupa dos interesses próprios,então passa a outra doutrina, ar-mando a mão dos Ravailac e dosClement inspirando a justifica-ção do regicídio, que se não en-contra apenas nos doutores jesuí-

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ticos, mas também nos diplomá-ticos como S. Thomaz de Aqui-no.

A primeira destas doutrinasserviu à Igreja cristã para fazerprosélitos nos pontos da terra,povoados de nações vencidas, depovos reduzidos à escravidão eescravos ansiosos pela emanci-pação, que a filosofia helênica eromana há muito defendia e fo-mentava.

A segunda doutrina serviu-lhe- se bem que nem sempre - deproteção contra o medo do go-verno romano, para quem a reli-gião era questão de Estado e pe-dra de escândalo.

Este segundo elemento dadoutrina cristã, muito mais que oelemento revolucionário popular,foi o que produziu, em princípi-os do reinado de Constantino, otriunfo do cristianismo265.

Este desprendimento dos âni-mos, que os fez abdicar da pró-pria independência, em mãos deuma nova teocracia lançou-osdepois nos braços do despotismopolítico. A restauração foi religi-osa e política ao mesmo tempo.

Augusto, restabelecendo a or-265 Ninguém como Bakounine viu a reci-procidade das relações entre o Estado ea Igreja, para exploração do fenômenoreligioso. O seu livro Deus e o Estadoé, neste ponto, admirável.

dem, restabelecia a religião. Equando chegou o tempo deConstantino, o hipócrita, esteaproveitou-se habilmente dadoutrina da resignação e da sub-missão aos princípios - instru-mentos do direito divino - ensi-nada pela Igreja cristã, para co-locar simplesmente esta nova re-ligião no lugar da antiga religiãoromana, restaurada por Augusto,porque a nova era também umasanção para o Estado e um ins-trumento de servidão. Esta e sóesta pode ter sido a razão da pre-tendida conversão de Constanti-no266, muito mais que a de apa-gar os remorsos de sua consciên-cia de assassino, apegando-se auma religião que tinha o poderde lavar toda a culpa, conformelhe lançavam em rosto os pa-gãos267.

Constantino, encurtando asdisputas internas da Igreja cristã,que tinham marcado o largo pe-ríodo da lenta formação duranteo qual esta vinha elaborando eaperfeiçoando os seus dogmasmediante a discussão das várias

266 Que a conversão de Constantino fora uma hábil manobra de oportunismo po-lítico, ele próprio o confessa na carta emque, falando da disputa com Arrio, ape-lida de mesquinha, vã, inútil, indigna dediscussão e de resposta, etc. (Eusébio, livr. II, cap. LXIV.)267 Zósimo, l50.

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seitas cristãs, entre si e em lutacom o paganismo, Constantino,dizemos iniciou o famoso Con-cílio de Niceia, no ano 325, deonde data a consolidação docristianismo. Sem a conversãode Constantino ao cristianismo,é provável que este não chegassenunca a triunfar, não já pela suapretendida268 doação, que arran-cava ao poeta gibelino de Flo-rença a famosa invectiva: Ai! Constantino de quanto mal

foste a causa! Não tanto pela tua conversão,

mas pelo rico dote Que de ti arrancou o primeiro

Papamas porque facilitou ao cristia-nismo a maneira de impôr-secom violência.

Só por meio da força, auxilia-do pelos embustes do clero e ou-tras circunstancias fortuitascomo a mudança da capital doimpério de Roma para Bizâncio,o que permitiu à Roma dos Cé-sares converter-se na Roma dosPapas e a invasão dos bárbaros,

268A Doação de Constantino é apócrifa enão foi redigida antes da metade do sé-culo sexto. Esta falsificação foi demons-trada inequivocamente por Lorenzo Val-la, que provou também a falsidade daCarta de Cristo a Abgaro, tal como fezo próprio cardeal Nicolan de Cusa comas Decretaes de Isidoro e com os escri-tos atribuídos a Dionísio, o Areopagita.

que desorganizou o império, dei-xando a Igreja em pé, sobre assuas ruínas, pôde o cristianismotriunfar e estabelecer a tiraniadas consciências ao lado da tira-nia temporal dos princípios, àespera do tempo em que pudesseempunhar as duas espadas, asduas tiranias, que fez pesar sobrea pobre humanidade até a esma-gar e horrorizar com a fogueira,a tortura, o cárcere, o desterro, ainquisição, os índex, a censura, aconfiscação, as guerras de exter-mínio dos heterodoxos, os tribu-nais de exceção e capitis dimi-nutio dos hereges, dos cismáti-cos e dos hebreus.

O cristianismo conquistou omundo com a violência, e sócom a violência pôde tê-lo sujei-to por tantos séculos. E Por vio-lência, não entendemos só a daforça bruta, mas também, a le-gal, a moral da opinião e, sobre-tudo, a patológica da servidãointelectual, que foi a mais pode-rosa arma da Igreja católica, eque chegou à sua perfeição dou-trinal na fórmula jesuítica perin-de ac cadaver.269

Mas isto não basta para che-269 Disciplinado como um cadáver.Loyola escreveu a constituição jesuítaque deu origem a uma organização rigi-damente disciplinada, enfatizando a ab-soluta auto-abnegação e a obediência aoPapa e superiores hierárquicos. (NE).

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gar à liberdade, a fórmula da li-berdade de consciência dasconstituições modernas, no sen-tido cavouriano da Igreja livreno Estado livre.

É mister a separação, sem asupremacia do Estado; é neces-sário enfim, que a liberdade diri-gida por livres pensadores tendasobretudo a emancipar com amais intensa propaganda intelec-tual, psicológica e sociológicaaqueles a quem a crença católicafaz escravos da superstição, ina-bilitando-os para desfrutar a li-berdade de pensamento.

Com muitíssima razão disse-ram V. Alfieri e Filippe De Bonique a liberdade é incompatívelcom o catolicismo e onde esteimpera não pode nascer nemconservar-se pura a liberdade. Amais perigosa das teocracias éaquela que o padre exerce sobreas consciências.

Com aquisição do favor impe-rial, o cristianismo preparou-separa a grande luta contra o paga-nismo, que só logrou aniquilarpassada uma larga série de anos,com leis repressivas e persegui-ções de todo o gênero.

Por dois modos a Igreja insi-nuou aos imperadores a ela con-vertidos, a persuasão de empre-garem a violência contra o paga-nismo: ora transformando em

demônios os deuses pagãos e empráticas de magia os ritos dosseus sacrifícios, ora fazendo-lhescrer que as cerimônias dos pa-gãos eram uma permanenteconspiração contra a vida do so-berano e obrigando-os, destamaneira, a declará-los culpadosde delitos de lesa-majestade.

Por este processo, os bisposobtiveram o duplo efeito de in-duzir os imperadores a extermi-narem o paganismo, a ferro efogo, e ao mesmo tempo, de seesconderem por detrás do braçosecular, lançando sobre este todaa responsabilidade e odioso daperseguição.

Para fazer passar por magia osritos do paganismo, bastava res-peitar os decretos anteriores con-tra a magia: assim se alcançava ofim desejado, sem dar a conhe-cer que se inaugurava uma novaperseguição.

Os primeiros decretos deConstantino não fizeram, emaparência, mais do que sancionarleis severas contra a magia; mas,na realidade, feriam de morte opaganismo.

Com os imperadores, Cons-tâncio, Constante, Valério e Teo-dósio, a perseguição deixou caira máscara que a cobria, diri-gindo-se diretamente contra opaganismo. Basta examinar as

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leis contidas no Códice Theodo-siano, com o titulo de paganis,sacrificiis et templis para com-preender todo o alcance e gravi-dade daquela odiosa perseguiçãodestinada a exterminar o paga-nismo.

Um decreto imperial começoupor proibir os sacrifícios pagãos.Em 353, Constâncio e Constantepromulgam este decreto: Decre-tamos que, em todo o lugar e emtoda a cidade sejam fechados ostemplos (refere-se aos pagãos)que ninguém possa entrar nelese que aos ímpios se negue o di-reito de delinquir (isto é, adoraroutros Deuses). Queremos quetodos se abstenham de fazer sa-crifício. Se alguém fizer seme-lhante coisa, será morto com aespada vingadora. Decretamosque os bens do executado vãopara o fisco e queremos que se-jam castigados os governadoresdas províncias que se mostraremnegligentes na repressão dos de-litos.

Guiado pelo clero, Constanti-no manda matar, na Tebaida, to-dos os sequazes do antigo cul-to270. João e Valentiniano I imi-tam o rigor de Constâncio.

Por toda a parte, escrevia Zó-zimo, reina o pranto e o deses-pero; as prisões regurgitam de270 Amiano Marcelino, lib. XXI. cap. XI.

gente, para cujo cativeiro não ésalvaguarda a honra de muitosméritos.

Sob o império de Valério, opróprio nome de filósofo era umtitulo de proscrição.

Libânio e Jamblico foram acu-sados como tais, e só o venenoos pode libertar de pior suplício.

Deste modo, o terror operavasimuladas conversões mas, ape-nas voltava a tranquilidade, amaioria dos convertidos abraça-va a antiga crença.

Para impedir isso, Teodósiodecretou uma lei, que despojoudo direito de testar aos pagãosque voltassem ao seu culto. Dezanos depois, a mesma lei era re-novada, e declarando infames osapóstatas do cristianismo, conce-dia que se ultrajasse a sua me-mória e se rasgassem os seustestamentos. Outra lei proíbetoda a espécie de sacrifícios pa-gãos. O culto dos deuses, pros-crito da cidade, refugiara-se noscampos.

Teodósio arremete contra eleaté no ultimo refúgio, ordenandoa confiscação do campo onde seconsumasse um sacrifício.

Não se permite ter nem usaroutro nome que o dos cristãoscatólicos; proibido em absolutoaos apóstatas, não já o direito de

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testar, mas até o de vender; penade fogo contra quem abraçar re-ligião contrária, com a respetivaconfiscação de bens; autorizadae permitida a delação; ordempara derrubar todos os templospagãos; destituição de todos oscargos públicos para aqueles quese não conformarem; desterro,pena de morte, confiscação dosbens, para quem continue aindarealizando sacrifícios pagãos;desterro e excomunhão contraquem ouse discutir as afirma-ções da Igreja e dos sacerdotes;proibição aos hereges de recebe-rem bens; privações de todo odireito civil para os não católi-cos; expulsão dos soldados detodas as legiões, que se encon-trem em igual caso; pena demorte contra o possuidor dequalquer livro, que contradiga oConcilio de Niceia. Uma só fépara todos: a de Niceia.

Tais são, além doutras, asprescrições dos imperadorescristãos, combinados para exter-minarem o paganismo e consoli-darem o cristianismo, impondosilencio a toda a heresia.

A Igreja é que tinha a seu cui-dado atear o fogo nos seus con-cílios, secundava os imperadoresna obra de destruição por ela su-gerida; excitava as turbas cristãsa cometerem excessos contra os

pagãos - violação das sepulturasdos pagãos e roubos dos seusbens - excessos tais, que até osmesmos imperadores, entre elesValentiniano, se vêm obrigados aproteger, momentaneamente, asvítimas da perseguição.

Para melhor armar o braço se-cular, os bispos dão a entenderaos imperadores que as calami-dades públicas são devidas à im-piedade dos que se não conver-tem ao cristianismo.

O clero tinha, além do fisco, odireito de se apossar dos bensdos perseguidos, falando-lhes deassuntos respeitantes ao sacrilé-gio e tratando de delatar contra-venções à lei da fé271. Mal os ir-mãos tinham qualquer possibili-dade de se assenhorearem de umcampo, acusavam o seu proprie-tário de ter sacrificado aos deu-ses, pedindo que contra ele semandasse a soldadesca.

O clero cristão consegue todaa sorte de privilégios e imunida-des, aproveitando-se arteiramen-te daquela época de terror parase dedicar à obra fraudulenta defalsificação e destruição dos li-vros que poderiam revelar asmentiras e farsas demasiadamen-te visíveis da nova religião, eque de algum modo poderiam271 Libânio, Oração em favor dos templos.

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esclarecer suas origens; obra defalsificação que, em verdade, co-meçara com o mesmo cristianis-mo e se praticara em grande es-cala por todas as seitas, que ha-viam concorrido para formar anova religião.

O próprio S. Jerônimo con-fessa que, traduzindo Orígenes,não teve em conta senão o quelhe pareceu útil, eliminando tudoo que julgou nocivo, escusando-se com a desculpa que o mesmofizeram S. Hilário e S. Eusébio.Confessou isso no prefácio quefez ao livro de Eusébio. (De Loi-cis Ebr.)

Celso acusava os cristãos deterem falsificado os oráculos si-bilinos e a ciência justificou aacusação de Celso.

Macróbio foi falsificado parajustificar o martírio dos inocen-tes; foram inventados esses nú-meros escritos, que a própriaIgreja viria depois declarar apó-crifos.

Foram falsificados Josefo eesses outros autores que já vi-mos. Foram até inventados do-cumentos atribuídos ao pai deMatusalém, ao bisavô de Noé ede Enoc.

Mas, sobretudo, foram gravís-simas as falsificações realizadaspelos apologistas e historiadores

do cristianismo primitivo, comoAtanásio, Basílio, Crisóstomo,Eusébio, etc.

Orígenes chegou até a inven-tar uma teoria para justificar es-sas falsificações, distinguindo asfeitas com bom fim, das feitascom má intenção.

O pior de tudo porém foi adestruição das obras que poderi-am ter esclarecido as suas im-posturas. Foi assim que desapa-receram muitas obras importan-tes de Cícero, Proclo, Porfírio,Celso, Fílon, Orígenes, S. Cle-mente, Eunômio, etc.

É nossa opinião que toda ahistória do cristianismo, até aReforma, deve ser quase porcompleto reescrita com critérionaturalista, porque a Igreja temsempre caluniado todos os quenão vão com ela, chegando emcontraposição, a colocar sobre osaltares a última canalha, contan-to que fosse devota.

Contudo, e apesar de tantasproscrições e perseguições, ape-sar desse regime de terror e des-sa inquisição, a Igreja não conse-guiu conquistar o politeísmopara a nova fé.

Então, recorreu a um últimoexpediente, que lhe assegurou otriunfo, e que, se lhe não deu oaplauso do povo, pelo menos

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tornou tributárias à sua domina-ção as práticas religiosas, apro-veitando assim, em seu favor, agrande força do costume queadotou as formas exteriores doculto, já em uso entre os pagãos.

Foi assim que, arrancando umnovo farrapo àquela doutrinaque queria adorar Deus em espí-rito e em verdade, pouco deviacustar-lhe já o triunfo, herdandodelas, fundindo-as e amalga-mando-as, a moral e a doutrinadas religiões precedentes.

Já vimos que o culto cristãonão é mais que uma amálgamade cerimônias tiradas dos cultosprecedentes.

Agora assistimos ao processode integração deste culto, pro-cesso mediante o qual assimilaas práticas e a própria divindadedo paganismo romano, transfor-mando-o e corrompendo-o.

Deste modo, o cristianismoconverte-se, por sua vez, em idó-latra e fetichista. O politeísmonão conseguira destruir o feti-chismo, limitando-se apenas asobrepujá-lo. Pois também o ca-tolicismo não destrói o politeís-mo, antes o subordina aos seusinteresses.

As divindades do paganismo,que não foram declaradas infer-nais, como é costume em todas

as religiões - que convertem emdemônios os deuses das religiõescontrárias - foram convertidasem santos cristãos.

Os gregos celebravam festasem honra de Hermes (Mercúrio)e de Nícan (o Sol); estas festaspassaram ao calendário católico,nas mesmas datas, com os no-mes de S. Ermeto e S. Nicanor.

Baco era adorado sob o nomede Soter (Salvador) e Apolo como de Efoibios. estas festas forammantidas com os nomes de S.Sotero e S. Efebo ou Efésio.

Festejavam Baco com a festade Dionysios, a que se seguiaoutra em louvor de Demetrius;pois os dois nomes encontram-sena mesma data, no calendáriocristão, com os de S. Dionísio eS. Demétrio.

A festa de Ceres, a loira (Flá-via) é a de Santa Flávia; a festada pudica Diana converteu-seem Santa Prudência; a do Palla-dium de Minerva veio a ser afesta de Santa Paládia.

As Saturnais converteram-seem S. Saturnino; a festa de Afro-disia (Venus) corresponde a S.Afrodísio e Santa Afrodísia; odia do signo da Virgem (15 deagosto), em que Astrêa apareceno céu, na dita constelação, con-verteu-se na Assunção da Vir-

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gem.Baco, que se chamava na Gré-

cia Eleutério ou Dionísio e quetinha uma festa denominada rús-tica, porque celebrando-se notempo das vindimas,era essenci-almente campestre, (Festum Di-onysis Eleuterie Rustici) deu lu-gar, com estes três nomes distin-tos, a três santos cristãos: S. Di-onísio, S. Eleutério e S. Rústico.

A brisa matutina, aura placida,que o paganismo simbolizava namulher de Baco, converteu-separa os cristãos em Santa AuraPlácida.

A fórmula da saudação, per-petua felicitas, gerou duas santasPerpetua e Felicidade. Orar e dar(rogare e donare) correspondema S. Donaciano e S. Rogadano,cuja festa se celebra no mesmodia.

S. Apolinario comemora-sealguns dias depois daquele emque se celebravam os jogos Apo-linares em honra de Apolo. Atéos Idus do mês se transformaramem Santa Ida.

A deusa Pelino transfor-mou-se em S. Pelino e o Termes,que presidia aos limites doscampos e dos caminhos, simbo-lizando-se por uma pedra, trans-formou-se na estátua de S. Vito,colocada nos limites dos cami-

nhos (viae), de onde lhe vem onome.

A festa da Gorgona, divindadeinfernal, que simboliza as trevasmaiores do ano, foi substituídapela festa de Santa Górgona.

Uma nova festa consagrada aBaco, se celebrava em dezembrocom o nome de Dionísia; tam-bém passou para o calendáriocatólico. E aqui, importa obser-var quão frequente é o nome deS. Dionísio no calendário católi-co, o que prova, não que tenhamsido numerosos os Dionísiossantos, mas que os santos Dioní-sios não são mais que outras tan-tas transformações das festas emhonra de Baco (Dionísio), queeram muito frequentes na épocado paganismo.

A fórmula romana flor et lux,flor e luz, transformou-se emSanta Flora e Santa Lúcia.

O sobrenome de Júpiter, Nice-for, é nem mais nem menos queS. Niceforo; e o de Juno, Pelas-gia, Santa Pelagia. Atenena (Mi-nerva) originou S. Atanásio eApollon o S. Apolônio e SantaApolônia.

E quando não se cristianiza-ram as formas pagãs, inventa-ram-se santos novos, que, pelopróprio nome, indicam a virtudecurativa dos antigos ídolos: San-

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ta Luzia para o mal dos olhos; S.Gotardo para a gota; Santa Tos-cana para a tosse; S. Latino paraas afecções do leite; S. Bonopara as enfermidades bovinas,etc.

Até mesmo os atributos dosdeuses passavam para os santoscristãos. Como Baco, Noé e S.Vicente presidem a conservaçãoda videira e da vindima. ComoNeptuno, S. Nicolau e S. VicenteFerrer invocam-se para acalmaras tempestades. Como Minerva,Santa Catarina infunde a ciência.Como Esculápio, S. Cosmo pre-side a medicina. Priapo con-verte-se em S. Fiacre, que guar-da os jardins. Como Juno, Santa-na ampara as parturientes.

Santa Margarida, que fecundaas mulheres, é copiada de Luci-na, assim como S. Antônio e S.Humberto, de Mercúrio, que en-contrava o perdido, e de Dianaque presidia a caça.

A estátua de Diana em Efesoe a de Pallas em Atenas, tinhamcaído do céu, tal como muitasestátuas e imagens da Virgemcristã.

As estátuas dos deuses, queEnéas trouxera de Troia e colo-cara em Alba, voltaram para osseus antigos templos. TambémNossa Senhora de Montenegro,trazida de Livorno, voltou para o

seu monte. Os deuses e as deusas pagãs

desciam à terra para conversarcom os mortais e o mesmo fize-ram as Nossas Senhoras Cristãs.

Os pagãos pediam favores àsestátuas dos seus deuses, e, obti-dos estes, colocavam junto dosseus altares um voto e acendiamcírios; nem mais nem menos doque fazem os cristãos com seussantos e madonas.

A Igreja de S. Lourenço, emRoma, foi transformada em S.Lourenço de Lucina, santa advo-gada dos partos das mulheres,em memória de um templo pa-gão ali existente, dedicado a Di-ana Juno Lucina, divindade quepresidia aos partos. A águia deJúpiter foi substituída pela deJoão. Esculápio com a serpente,foi substituído por S. Patríciocom a sua.

Santa Barbara, com a taça, é arepresentação flagrante de Baco.O dragão de Apolo passou paraS. Jorge, assim como o martelode Vulcano para S. Eládio.

A verdadeira imagem (veraicon), que algum tempo se vene-rou pintada em uma tela, foilogo personificada em uma San-ta Verônica.

Muratori demonstrou como,de uma casa destinada a hospe-

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dar peregrinos, se fez um S. Pe-regrino, e de outra chamada oSanto Albergue, situada no terri-tório de S. Cesáreo, se fez umaSanta Alberga.

As curas milagrosas, que seobtinham nos templos pagãos,com práticas sugestivas e medi-ante peregrinações a mananciaisde fontes sulfurosas, ferrugino-sas, arsenicais, etc., sobrevive-ram ao paganismo, como tam-bém sobreviveram as crençasnos sonhos e nas aparições.Igual destino tiveram as pedras,cujo culto, ou litolatria, é umasupervivência do fetichismo, osanimais que foram dados comocompanheiros a alguns santos ecom eles colocados nos altares,etc.

Que diremos agora do cultodas relíquias, que tanto se gene-ralizou no cristianismo, da mul-tiplicação das cabeças, dos bra-ços, das pernas, dos ossos, dasmãos dos Santos, tantos que,para os catalogar, ser-nos-iamprecisos muitos volumes.

Recordaremos apenas o sudá-rio, de que existem quatro exem-plares famosos, disputando to-dos a autenticidade (os de Be-sançon, Turim, Compiègne e Ca-douin) além doutros menos im-portantes. E citamo-los unica-mente, porque ainda se não apa-

gou o eco das discussões acercados mesmos e em que tomaramparte - até nem se acredita! - ho-mens de ciência de Paris, a favorda autenticidade de um ou outrodos sudários.

A Igreja adotou também o cul-to das imagens, especialmenteda Senhora e dos Santos, e, so-bretudo, a da Cruz - evolução re-gressiva para cujo cumprimentoteve de suprimir a segunda lei doDecálogo hebraico, que condenatoda a representação da divinda-de com coisas sensíveis272,vendo-se obrigada, em troca epara conservar sempre o númerodez, a subdividir o décimo man-damento em duas partes.

Portanto, se o cristianismopôde triunfar e substituir o paga-nismo, foi somente mediante aperseguição, a farsa e a assimila-ção do culto pagão, favorecidopor outro lado, pela desagrega-ção do Império romano e pelainvasão dos bárbaros.

O cristianismo não foi apenaso herdeiro do império romano,de cuja decadência se aproveitoupara se erguer sobre as suas ruí-nas, mas até contribuiu enorme-mente, mais que nenhuma outracausa, para produzir tal decadên-cia273. 272 Êxodo, XX, 3,6.273 G. Sorel, Ruína do mundo antigo,

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O seu triunfo, porém, foi com-pletamente isento da pretendidapessoa de Cristo, como tambémfora isento à formação da novareligião, não tendo jamais existi-do, como de sobra temos de-monstrado no presente livro.

O mito do Cristo serviu, écerto, para dar impulso ao cristi-anismo porque apresentava aovulgo um novo culto antropo-mórfico, uma divindade acessí-vel aos sentidos e em forma hu-mana.

Esta força de expansão, porémnão foi de Cristo, mas da ilusãopopular, que viu em Cristo osímbolo dos infelizes, martiriza-dos nesta vida e glorificados naoutra.

(Paris, 1902).190

Conclusão

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CONCLUSÃO

Lisonjeamo-nos por ter persu-adido os nossos leitores, os deboa fé e despidos de todo o pre-conceito, de que realmente Cris-to nunca existiu. Quanto aos ou-tros, é certo que não poderiamjamais, e agora menos do quenunca, tomar superficialmente edestruir sem discussão a hipóte-se da não existência de Cristo. Aestes, basta fazê-los duvidar daprópria fé, porque a dúvida é oprincípio da sabedoria, a origemdas descobertas e o ponto departida de todo o progresso.

Além disso, seja qual for o re-sultado prático deste nosso tra-balho, a nós basta o prazer de terlevado a nossa pedra para o edi-fício da Verdade. Aos de maiorengenho e mais favorecidos pe-las circunstâncias do tempo e doambiente, compete erguer o edi-fício até a suma perfeição, paraque não estremeça aos embatesdas tormentas.

Temos consciência absolutade haver contribuído, na medidadas nossas poucas forças, paraimprimir a crítica aquela novadireção, que a deve conduzir áresolução do problema da ori-gem do cristianismo.

Contudo, não nos iludamos

muito acerca da fortuna da tese,ou melhor, da verdade por nósdemonstrada. Porque não se trataapenas de uma verdade científi-ca, histórica e moral: trata-setambém de uma religião. E se éfácil destruir erros antigos, noterreno científico, histórico emoral, não sucede o mesmo noreligioso, pois que nele estão ar-raigados os interesses de umaimensa casta de parasitas quejungem ao erro dos outros a suaprópria existência, os seus pró-prios privilégios.

Se a ciência pôde destruir semdificuldade, por exemplo, o mitoou lenda de Guilherme Tell, nãosucederá o mesmo com Cristo,porque na conservação de Cristoestão interessados milhões depessoas que vivem dessa crença,como a aranha está interessadaem conservar a sua teia.

Dir-se-á: Que importa, no fimde contas, que Cristo não tenhaexistido, desde o momento emque existe o farto cristianismo,que ainda quando derive de umailusão inicial, não deixa de serum fato consumado e da maiorimportância?

Que importa, dirão outros, quea crença em Cristo tenha sido

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uma ilusão da Humanidade, seessa crença foi tão benéfica?

A estas objeções poderemosresponder, simplesmente, que aciência nada tem com as conse-quências nem com a utilidadeprática das suas investigações,preocupando-se apenas com adescoberta da verdade.

Mas importa ainda examinar osignificado do que geralmente sechama o cristianismo. O que é ocristianismo? Parecerá talvezuma pergunta paradoxal, mastem a sua razão de ser.

O cristianismo é um nomeque serve para legitimar todaa espécie de aberrações. E istoé assim, subjetiva e objetiva-mente. Subjetivamente, porqueusa o nome de um autor quenunca existiu; objetivamente,porque, sob o nome cristão, sedeu cabimento às doutrinas maisdisparatadas, amalgamando-asem monstruosa confusão.

Decompondo este nome, ve-nerável apenas pelos séculos deveneração usurpada que sobreele pesam, vê-se que não é já oresultado de elementos afins reu-nidos em um todo harmônico eorgânico, mas a arbitrária com-binação e justaposição de ele-mentos heterogêneos e inorgâni-cos, provenientes das fontesmais opostas como o hebraísmo

e o helenismo, o oriente e o oci-dente.

Em uma palavra: o cristianis-mo, tomado como fato consuma-do, não é uma doutrina, uma re-ligião, uma crença homogênea.É um mosaico em que há detudo, menos a perfeição ideal dopretendido fundador e de seuspretendidos sequazes primitivos,como neste estudo se viu e comopode ver-se, lendo a própria Bí-blia, sem véu algum nos olhos.

A pretendida perfeição docristianismo não é mais que oideal humano, ideal que se temformado em volta daquele centrode gravidade, para o subtrair àsvistas naturais, não o deixandover senão àquelas vistas particu-lares que só veem o que queremver, mas não o que realmente sevê, fruto da sugestão teológica,do visionismo sobrenatural e doilusionismo transcendental.

Hoje, quem diz Cristo, cristia-nismo ou cristão, quer dizer ohomem, a doutrina, o crente, queé, se julga, ou quer ser perfeitocomo o Pai que está nos céus.Deste modo, o nome de Cristoconverteu- se no símbolo do ide-al humano: pode dizer-se que, nasociedade atual, quem não é cris-tão é comparado com as bestasou pouco menos.

Tão estranha quão monstruosa193

e ingênua é esta alucinação cole-tiva! Não só porque o cristianis-mo da Bíblia e dos doutores daIgreja é completamente diferentedaquela perfeição que a si pró-prios se atribuem, mas também esobretudo, porque na nossa soci-edade não há de cristão mais queo nome, ainda que a considere-mos na sua parte civil, evolutiva,moderna, progressiva, naquela,em suma, que indica o expoenteda civilização presente.

Porque, onde está a crença nopróximo fim do mundo, queconstitui a base da moral evan-gélica? Onde as castrações vo-luntárias, para conquistar o reinodos céus? Onde o celibato, a nãoser nas leis arbitrárias e políticasda Igreja, desprovidas de todo oconsentimento e de toda a verda-de prática? Onde o retiro místi-co, aceito como um meio de per-feição, a não ser nos conventos,que dele fazem um cômodo ins-trumento de parasitismo, desfru-tando, ao mesmo tempo, o traba-lho das pobres criaturas exalta-das, enganadas e roubadas à fa-mília ?

Onde está o desapego, a ren-úncia espontânea das riquezas,para passar à vida contemplati-va? A própria Igreja não estaráainda farta de engolir os patri-mônios das viúvas e dos órfãos e

de engordar com os milhões rou-bados, moeda a moeda, à pobregente, ou sequestrando os peni-tentes ricos, com contratos frau-dulentos, e um pouco a todos oscrentes, com a sugestão e o ter-ror das penas do inferno ?

Onde está a pobreza voluntá-ria, aceita e procurada comomeio mais seguro de ir ao céu,mesmo sem nenhum outro méri-to para se salvar? Onde está afraternidade, se os sacerdotesabençoam as guerras, promo-vendo-as até por conta própria?Onde está a igualdade, se os pró-prios padres e o próprio chefe,Leão XIII, copiado por Pio X,repetem que a pobreza e as dife-renças entre as condições sociaissão de direito divino? Onde estáo ódio e o abandono da famíliapara seguir o Senhor?

Ah! Se alguma coisa ficou damoral cristã, aparte a época me-dieval, foi a parte bruta, foi oabandono da família, o ódio aopróximo, em que incorrem osexaltados que se retiram domundo, e os fanáticos, que jul-gam que só eles vivem na justiçae na verdade, considerando osque não estão com eles - quemnão é por mim é contra mim -como eternamente condenados,por cegueira voluntária; ficou aintolerância provocadora de ódi-

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os e de guerras; ficou o misticis-mo contemplativo e ocioso dasordens eclesiásticas e dos cren-tes de boa fé, cujos danos à eco-nomia pública e ao progresso to-dos nós podemos avaliar; ficou oentorse cerebral (como diria odr. Alfredo Pioda) que torna amente dos fiéis refratária à ra-zão, forçando-a e habituando-a acrer no absurdo - o que inspiravaa Tertuliano quando ingenua-mente proclamava os motivos dasua fé, nestes termos: O filho deDeus morreu: isto é crível por-que é absurdo. Sepultado, res-suscitou: isto é certo, porque éimpossível.

Esta é a sociedade que de cris-tã só tem o nome e a parte bru-tal, ao passo que a parte bela, aparte moral se refugiou (ironiada história!) na esfera da incre-dulidade, porque nesta se conti-nua a serena investigação da ver-dade e se trabalha para a reden-ção dos povos e para fraternida-de universal; esta é a sociedadeque tem posto obstáculos aocristianismo com a proclamaçãoda laicização do Estado e da li-berdade de consciência, para a simesma se salvar da sua into-lerância e consigo salvar as con-quistas da civilização, promo-vendo outras; esta é a sociedadeque continua a chamar- se cristã,

fazendo do cristianismo o fimideal, o espelho de toda a perfei-ção. E não vê ou não quer dar aconhecer os interesses que man-tém com tal engano, e que tudoaquilo que forma o orgulho dacivilização moderna, da civiliza-ção europeia e americana, não sónão é devido ao cristianismo,mas representa uma série deconquista obtidas pelo pensa-mento humano, tornado autôno-mo, sobre o cristianismo intole-rante, imobilista, teocrático, ili-beral, reacionário, místico, ascé-tico e visionário.

Da liberdade civil à política,da liberdade de pensamento àsoberania do povo, do progressointelectual ao econômico, tudo oque serve de base à nossa civili-zação é anticristão.

O ideal do cristianismo não éo homem moderno, trabalhadorcomedido, instruído e social; sãoos irmãos da Tebaida, os abstê-mios, que maceram a própriacarne para salvar a alma, os Se-miões Estilitas, que vivem sobreas colunas, os Simões de Mon-fort, que degolam o próximopara ganhar o paraíso, os PedrosEremitas, os inquisidores, os tor-turadores, os censores, os acen-dedores de fogueiras; são os dés-potas, que suprimem toda a li-berdade para consolidarem uma

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única: a de ser cristão. São osdevotos, que passam o tempo emorações, jejuns e penitências,abandonando o patrimônio nasmãos da Igreja madrasta.

Em uma palavra o cristianis-mo é a religião da morte, ao pas-so que a atual sociedade só res-pira o amor da vida, de uma vidasempre melhor e mais intensa.

Porque perpetuar, pois, a men-tira de chamar-se, de julgar-se,de querer ser cristão?

Ainda mesmo que no delírioda hipótese, se quisesse admitirque Cristo, tal como o figuramos cristãos, fora um ideal de per-feição, e se dissesse, por conse-quência, que ele representa umaideia mãe, que deve ser conser-vada, embora seja uma ilusão, anossa resposta é que, ainda nahipótese - bem longe de ser certa- a Humanidade tem muito a ga-nhar e nada a perder, quandodeixar de lhe dar fé.

Ainda mesmo que esta fosseuma ilusão boa, conservariasempre dois defeitos capitais:primeiro, ser uma ilusão que,cedo ou tarde provocaria umconflito entre o pensamento livree conhecedor da verdade e oscostumes baseados no erro tradi-cional; segundo, pela sua lei mo-ral oposta à natureza humana,num limite heterogêneo.

E já sabemos que o progressomoral só procede da razão autô-noma, do conhecimento da ver-dade e do amor, companheiro dobem. São inúteis, pois, todas asmistificações: a moral é tambémuma ciência positiva. A sua nor-ma única baseia-se nas necessi-dades da natureza humana.

E estas necessidades, quem asfará conhecer e quem as avaliaráa não ser a razão humana, o livrepensamento, a ciência armada dométodo experimental?

Suprimi o uso da razão práticae positiva na investigação dobem e voltareis às máximas an-tissociais do cristianismo, imora-líssimas quando mais pretendemser morais, porque nos delíriosde além-túmulo, isto é, fora dohomem, colocaram o fim do ho-mem, como diz João Bovio.

Além disso, feita a alma umaentidade concreta, destinada aum mundo melhor, o corpo con-vertia-se em um cárcere, em umescândalo, causa de todo o mal;daqui, os suplícios infligidos àcarne, o descuido por melhoraras condições da existência, e oideal de perfeição baseado nador, no abandono de todos oscuidados corporais, santificadopelo beato Labre.

Pois que este mundo é um lu-gar de provações, enquanto que

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a verdadeira pátria do homemseria em um mundo futuro, todoo interesse pelas condições polí-ticas, morais e materiais da exis-tência, deixaria de existir, acei-tando-se resignadamente o malcomo um mérito maior para con-quistar a pátria celestial.

E posto que, segundo a reve-lação, um Deus se tivesse feitohomem e morresse na cruz parasalvar a Humanidade, à qual le-gou o modo de conquistar o rei-no dos céus com o conhecimentoe a prática dos seus mandamen-tos, era pérfido e satânico aqueleque se não aproveitasse da boanova para se salvar, era meritó-rio obrigar os não crentes a seconverterem, à força de os ator-mentar ou exterminar. Assim éque a civilização cristã poderiase definir dizendo que nela o ho-mem, iludido acerca do fim davida, reduzia toda a felicidade atorturar a si próprio para con-quistar a glória.

Eis aí, pois, como a moral re-pousa também na ciência e comosó a razão humana, autônoma eexperimental, pode descobrir asleis do bem e os métodos para oalcançar.

Eis aí, pois, como também nocampo moral - e mais que emparte alguma - concorrem o co-nhecimento positivo das leis da

natureza humana e sempre o usoda razão natural, nunca exaltadanem desviada por nenhum trans-cendentalismo, para buscar e al-cançar a felicidade.

A moral, que é a última dasdisciplinas humanas a emanci-par-se da religião, deverá tam-bém diferenciar-se e constituirterreno autônomo, conver-tendo-se em ciência experimen-tal. É uma questão de método,que dará, na própria moral, a vi-tória definitiva da ciência sobrea fé.

Porque a fé não raciocina, nãoexamina, não discute, não inves-tiga, não descobre nada, ao pas-so que a ciência faz precisamen-te o contrário, e não impõe nada,nem sequer o bem, fazendo-ocontudo conhecer, como esplen-dor da verdade, induzindo aamá-lo, pela persuasiva propa-ganda que faz dele. Iluminandoas inteligências, engrandece enobilita os corações: a sensibili-dade mais requintada é a que sedesenvolve e apura na investiga-ção da verdade.

Não só, portanto, se dispensaa ilusão de um Homem Deuspara conduzir a Humanidade aobem; não só é necessário aban-donar definitivamente essa ilu-são, que tem sido causa de tãograndes danos, mas até preciso

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se torna emancipar para semprea moral de toda a tutela teológi-ca e de toda a infiltração místicae sobrenatural, para a tornar ver-dadeiramente humana, para a ba-sear nas necessidades reais davida: fazê-la, em suma, urna ci-ência positiva, experimental, ra-cional.

Com Cristo, deverá necessari-amente desaparecer o cristianis-mo.

Os que confundem o cristia-nismo com moralismo, pergunta-rão, talvez, de boa fé: Que seráentão da Humanidade sem a be-néfica ilusão de um mito, idealdo homem, como o é Cristo?

A essa pergunta, basta respon-der com esta: Teve a Humanida-de a necessidade de Cristo du-rante todo o tempo pré-cristão?De modo algum. Nesse tempo,antes dele, viveram as socieda-des cultas e civis; nesse tempoderam-se altos exemplos e exce-lentes costumes de moral, que ocristianismo nunca conseguiu ul-trapassar; nesse tempo houveEstados poderosos, ricos, prós-peros; floresceram filósofos, po-etas, artistas, homens de ciência,juristas que ainda hoje servemde modelo. E se, por outro lado,existiram instituições más e cos-tumes desumanos, estes não fo-

ram abolidos pelo cristianismomas pela filosofia, em quantoque o cristianismo agravava osmales que esta não pudera des-truir, acrescentando-lhe outrosnovos, como, para não citar senão os maiores, a luta da almacontra o corpo e a perseguiçãodos crentes contra os incrédulos.

Como antes do cristianismo,no futuro não haverá necessida-de do mito Cristo para ordenar oque à natureza humana cabe exe-cutar. Cristo pode voltar definiti-vamente para o céu, de onde nãodevia ter descido nunca à estaterra, para com o seu nome a en-cher de ruínas e desventuras.

Pela nossa parte, nenhumanostalgia sentimos por esse ídoloque se vai. Antes, pelo contrário,sentimos a alegria que traz sem-pre um mal menor.

Agora, a vós, pagãos, estulta-mente caluniados e destruídos; avós, hebreus injustamente odia-dos e infamados, a vós, livrespensadores de todos os tempos,natureza e grau, atrozmente per-seguidos; a vós todos, a reabili-tação da história, da ciência e daHumanidade.

Cristo, esse vosso detrator,Cristo, esse vosso perseguidor,Cristo, não existe!

FIM198

NOTA ÁDVENA274

JESUS NÃO EXISTIU E O CRISTIANISMO TEM SIDO UMACATÁSTROFE

Patrícia Dantas Às vésperas de sua palestra Covert Messiah em Londres neste sá-

bado (19/10/2013), o pesquisador americano Joseph Atwill foi muitoalém de suas recentes afirmações de que a figura de Jesus Cristo éuma completa fabricação da aristocracia romana. Em entrevista ex-clusiva ao Terra, Atwill, 64 anos, disse que o cristianismo foi inven-tado durante o Império Romano para controlar as massas e, até hoje,só causou danos à sociedade.

Confira a entrevista com o pesquisador americano na íntegra:Terra - Quais serão os pontos altos de sua conferência Covert Mes-

siah neste sábado, 19, em Londres?Joseph Atwill - Um dos tópicos mais importantes será uma apre-

sentação da Confissão Romana, mostrando que os romanos inventa-ram o cristianismo. Acho que é algo que as pessoas vão considerar degrande interesse, além de outra apresentação sobre uma nova manei-ra de pensar o cristianismo como uma ferramenta de controle damente usada para escravizar as pessoas. Acho importante a ideia deque todos os cidadãos tenham consciência disso. Esses serão os doispontos que provavelmente vão causar mais impacto durante o simpó-sio.

Terra - Quais novas evidências você vai apresentar ao público pararevelar que Jesus Cristo é uma completa invenção do império roma-no?

Joseph Atwill - Em um ambiente como esse, no qual você tem aoportunidade de passar tempo analisando a relação entre o livro doqual a história de Jesus foi originada, que foi a história de uma guerraocorrida entre 66 e 73 d.C, e o Novo Testamento, posso mostrar em274 Incluída por Persis Pacci (autor do livro “Crônicas Insurgentes”)

responsável por esta edição de “Jesus Cristo Nunca Existiu”. 199

grande detalhe a relação entre os dois textos. Eu apresento evidênciade alta qualidade, mas não é necessariamente a minha opinião. Possoessencialmente mostrar os dois textos antigos e todo mundo que temsenso comum pode simplesmente olhar estes eventos, lado a lado ever claramente que um é dependente do outro. O ministério de Jesusfoi criado da história da guerra de um César romano.

Terra - Quais documentos você usou como base para seus estudos?Joseph Atwill - O Novo Testamento e A Guerra Judaica, de Flávio

Josefo, escrito no século I. A sequência de eventos e locais do minis-tério de Jesus são praticamente as mesmas da sequência de eventos elocais da campanha militar do imperador romano Tito Flávio, descri-to por Josefo em seu manuscrito do século I. A partir destas coinci-dências pude notar que se inicia um padrão. É como se fosse umtriângulo de pontos e todos os diferentes paralelos entre Jesus e Titosão pontos deste triângulo. Porém, você não verá o triângulo se nãose afastar e observá-lo de fora para notar as conexões entre eles.

Terra - O que você acha que fará as pessoas acreditarem em sua te-oria?

Joseph Atwill - A evidência essencialmente fala por si só. As pes-soas simplesmente precisam de tempo para olhar os dois trabalhoslado a lado e em sequência. Isso é algo que ninguém fez até hoje, atémesmo os estudiosos cristãos que estudaram o Evangelho tão de per-to. Eles não fizeram algo tão simples e, a partir do momento que fi-zerem, a evidência falará por si só e as pessoas poderão tirar suaspróprias conclusões. Quero deixar claro que não uso meu ponto devista ou dou qualquer opinião pessoal sobre essas relações. Eu ape-nas tento explicar como descrevê-las, mas deixo o texto intacto. Useia versão da Bíblia do rei James e uma tradução muito comum do li-vro A Guerra Judaica, assim as pessoas podem ler sozinhas e fazersua cabeça. Eles não precisam de estudiosos, de padres ou de mim.Todos podem simplesmente tirar suas próprias conclusões.

Terra - Como você acha que a Igreja Católica irá reagir às suas no-vas alegações?

Joseph Atwill - Não acho que eles não vão concordar com elas.Será muito interessante de ver, porque a evidência é tão simples e se-ria útil se a Igreja colocasse o assunto em pauta com um de seus estu-

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diosos para discuti-lo em público. Preocupa-me que informaçõescomo essas possam ter um impacto negativo em algumas pessoas. AIgreja pode ter um papel útil neste caso. Se eles discordarem, não háproblemas, eles simplesmente podem levar sua explicação e apresen-tar ao público. Já aqueles que acreditam quando lerem minha análisede que Jesus Cristo foi criado baseado em outras pessoas eles terãosua própria opinião. Sendo assim, teremos duas opiniões diferentes everemos como as coisas se desenrolarão em longo prazo.

Terra - Por quais razões você acredita que a sociedade cria falsosdeuses e fatos na história?

Joseph Atwill - Acredito que a religião é inventada pelos tiranos eclasses dominantes que a usam como uma ferramenta de controle damente. É muito claro para mim que os romanos criaram o cristianis-mo como uma religião de Estado, uma estrutura de autoridade dotopo para baixo. Os escravos não poderiam se rebelar contra o siste-ma porque eles acreditavam que Deus era representativo pela figurado Pontifex Maximus, o papa estava no topo. Porém, nos tempos an-tigos, os escravos se rebelavam porque eles sabiam que era Césarquem estava no poder. Essa é a razão pela qual César sempre tentouse tornar um deus vivo. A cultura do império existiu por centenas deanos e sempre tentou dar a impressão de que César era deus. Issoaconteceu porque eles sabiam que as pessoas não se rebelariam con-tra deus. No final, eles não conseguiram fazer as pessoas acreditaremque César era deus e esta é a razão pela qual os romanos decidiraminventar o cristianismo.

Terra - Por que você acha que os romanos criariam uma figuracomo Jesus Cristo? Qual seria a intenção deles para fazer isso?

Joseph Atwill - Por duas razões. Eles criaram uma religião paracontrolar o povo, dizer às pessoas para obedecer e pagar impostos. Ooutro motivo é que eles também estavam lutando contra um violentomovimento messiânico na Judeia que queria derrubar a ocupação ro-mana. O império romano era uma prisão de nações, uma mistura dereligiões, reinos e etnias que eles conquistaram. Eles não poderiampermitir que um único grupo se rebelasse porque isso desencadeariaoutra série de rebeliões. Os judeus, porque eles se recusaram a vene-rar César, foram capazes de se rebelar com sucesso e conseguiramestabelecer uma nação de Estado por três anos. Foi esse o motivo

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pelo qual os romanos trabalharam duro para tentar substituir aquelareligião por outra na qual o messias diria: obedeça a César e pagueseus impostos.

Terra - Que tipo de dano você acredita que o cristianismo causou àsociedade?

Joseph Atwill - Acho que o cristianismo tem sido uma catástrofe.Se você olhar na história, ele criou a Idade das Trevas, as Cruzadasfoi uma desgraça absoluta e a Inquisição também foi uma abomina-ção moral. Se você observar o século 20, as nações cristãs massacra-ram umas às outras, com mais de 120 milhões de pessoas morrendoem guerras. Acredito que as pessoas não deveriam ter medo de ummundo sem cristianismo fazendo o papel de uma força moral maior,porque observando eventos anteriores, o cristianismo não foi bem-sucedido no passado.

Terra - Você pratica alguma religião ou é ateu? Joseph Atwill - Não sou ateu. Eu simplesmente estou tentando en-

contrar a verdade. Estou aberto à questão de Deus e procurando umaresposta. Uma das razões pelas quais quero saber a verdade sobre oNovo Testamento é o fato de que é uma pergunta que tenho curiosi-dade para saber a resposta, assim como todo mundo. Não tenho boasrespostas, não sou um líder espiritual, só tento meu melhor.

Terra - Você pratica alguma religião? Joseph Atwill - Prático o budismo, que não é realmente uma religi-

ão, é apenas uma técnica para tentar desenvolver seu próprio espírito.Terra - Você acredita em Deus?Joseph Atwill - Não acredito, nem desacredito. Sempre que tento

descobrir percebo que não sou esperto o suficiente para responderessa pergunta. Entretanto, quando eu descobrir, prometo que te aviso(risos).

Terra - O que acha do papel da Igreja Católica nos dias de hoje? Joseph Atwill - É uma organização tão imensa. Não tenho uma

opinião sobre isso. Acredito que algumas coisas são boas, outras ru-ins. Acima de tudo acho que é melhor se desenvolvermos nossa práti-ca sobre a verdade.

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Terra - O professor James Crossley, da Universidade de Sheffield,disse que o tipo de pesquisa que você está desenvolvendo não fazparte da comunidade acadêmica. Você concorda com ele?

Joseph Atwill - Não. Não posso concordar com alguém que nãoleu meu livro. Estou aberto a qualquer crítica ao livro que ele possater, mas a opinião dele não é mais importante do que qualquer outrasobre algo que ele não leu.

Terra - Você já foi ameaçado por promover uma pesquisa que basi-camente arruinaria todo um sistema religioso vigente?

Joseph Atwill - É engraçado. O livro foi publicado há mais de dezanos e desde então sempre tive contato com milhares de estudiosos ecristãos. E todas as pessoas são curiosas, por mais que não concor-dem comigo e tenham uma conclusão diferente. Eles acham que asconexões e a maneira como enxergo o Novo Testamento no livro sãomuito interessantes. Nunca fui ameaçado e não ficaria surpreso senunca receber uma ameaça porque a única que coisa que fiz foi colo-car dois livros lado a lado e notar um padrão entre eles.

Terra - Você eventualmente gostaria de ir ao Brasil para discutirseu trabalho?

Joseph Atwill - Amaria ir ao Brasil. Já morei no Brasil nos anos 70e sempre sonhei em voltar lá. Adoraria ter uma oportunidade de mos-trar meu trabalho se tivesse um grupo que a informação seria valiosapara eles. Com certeza, se algum dia tiver uma boa oportunidade, ireiao Brasil.

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De Jesus Cristo, pessoa real, serhumano, a história não nos con-servou documento algum, provaalguma, demonstração alguma.Assim começa um dos ensaiosmais polêmicos e surpreendentesdos anos 1900. O advogado EmilioBossi desmonta minuciosamente,ponto a ponto, com extrema habili-dade e rigor, qualquer vaga ideiaque a nossa cultura possa ter a res-peito de um personagem chamadoJesus Cristo.Seria ele filho de Deus? Este não éum argumento de pesquisa históri-ca e, consequentemente, nem desteensaio. Viveu ele realmente, ainda que so-mente como pessoa física? Bossi declara um categórico NÃOdemostrando incontestavelmente,com provas e mais provas, que nãohá nenhum traço de evidência ousequer sombra de suspeita da pos-sível existência de um homem cha-mado Jesus.Este ensaio mordaz de 1900 (Rara-mente reimpresso) é uma viagematravés dos mecanismos meméti-cos de evolução cultural: mostracomo as religiões mais primitivas eos rituais mais antigos evoluírampara o que hoje se chama de "ver-dade revelada".

Emilio Bossi nasceu em Bruzella no Can-tão suíço de Ticino em 31 de dezembrode 1870, filho de um arquiteto, Francis-co, e de Emilia Contestabile. Iniciou seusestudos no Liceu de Lugano e formou-seem direito em Genebra. Empreendeu car-reira no jornalismo e ganhou fama comoum grande polemista com o pseudônimode Milesbo. Foi adversário inflexível doclericalismo e defensor acérrimo da itali-anidade de Ticino. Travou duras batalhascontra os "menatorroni" da vida pública.Colaborou com o jornal O Dever, dirigiuA Gazeta Ticinense, foi diretor do sema-nário Nova Vida e fundou o jornal IdeiaModerna. Em 1906 fundou e editou AAção, órgão da Extrema Radical. Bossifoi deputado do Grande Conselho, doConselho Nacional e do Conselho dosEstados. Como tal, dirigiu o Departamen-to do Interior. De 1905 a 1910 ocupou ocargo de juiz de instrução substituto. Li-beral radical, foi com Romeo Manzoni, oflagelo implacável da política oportunistae das transações de Rinaldo Simen. Em1897 foi um dos fundadores da UniãoSocial Radical Ticinense, uma associaçãoque, além das reformas sociais que de-fendia propugnava a escola neutra e a se-paração entre Igreja e Estado. Com Man-zoni, foi o líder carismático da ExtremaRadical, fundada em 1902 após uma vio-lenta polêmica com a corrente de Simen.Em seguida à sua entrada no Conselho deEstado, Bossi foi forçado a se adequar àlógica das negociações. Em consequên-cia, a Radical Extrema desaparece comogrupo autônomo. Morreu 27 de novem-bro de 1920, em Lugano. Jesus CristoNunca Existiu foi publicado simultanea-mente em 1904 em Milão e em Bellinzo-na, na Suíça. Revê a luz em 1951 em Bo-lonha pela Lida e finalmente em 1975 emRagusa, pela La Fiaccola.