Interpretação de copenhague e Werner Heisenberg

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    Werner Heisenberg e a Interpretao deCopenhague: a filosofia platnica

    e a consolidao da teoria qunticaAnderson Leite & Samuel Simon

    resumoEste artigo discute o uso que Werner Heisenberg faz da filosofia grega clssica no mbito dos debatesacerca da teoria quntica realizados na primeira metade do sculo xx. Para esse autor, a cincia foi de-terminada pelo influxo de duas correntes de pensamento que surgiram na Grcia antiga: o materialismoe o idealismo. A partir de tal clivagem, Heisenberg fundamenta sua crtica aos opositores da Interpreta-o de Copenhague, alm de justificar filosoficamente suas prprias teses sobre a mecnica quntica.

    Apesar de suas concepes filosficas no serem passveis de uma sistematizao completa, a relaoque Heisenberg estabeleceu entre a filosofia grega e os problemas da teoria dos quanta acabou por resul-tar em uma interpretao da realidade fsica na qual predominante um platonismo e um incipienteestruturalismo matemtico.

    Palavras-chave Mecnica quntica. Teoria quntica. Werner Heisenberg. Interpretao de Copenha-gue. Filosofia platnica. Idealismo. Materialismo.

    Introduo

    inegvel a influncia das ideias de Niels Bohr (1885-1962) e Werner Heisenberg(1901-1976) sobre a comunidade dos fsicos a partir de fins da dcada de 1920 no tocan-

    te interpretao da nova teoria quntica. Tendo como marco o Congresso de Solvayem 1927, a disseminao do discurso de Bohr e de seu grupo estendeu-se por toda adcada de 1930, sendo reforada pelos fsicos norte-americanos que chegavam aos cen-tros difusores da ortodoxia na Europa: Copenhague, Gttingen e Cambridge. SegundoCushing (cf. 1994, p. 121-3), o estilo pragmtico dos fsicos americanos e seu distan-ciamento, at mesmo desprezo, no tocante a questes filosficas, contriburam aindamais para uma aceitao passiva da interpretaostandard da teoria quntica.

    O papel de Heisenberg na consolidao do esprito de Copenhague a partir deSolvay notvel. Sua confiana demonstrada em uma carta datada do ltimo dia do

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    Congresso: no que diz respeito aos resultados cientficos, estou completamente satis-feito. Seus pontos de vista e os de Bohr tm sido geralmente aceitos; ao menos objeessrias no tm sido mais feitas, nem mesmo por Einstein ou Schrdinger (Heisen-bergapud Cassidy, 1991, p. 254). Com essa ampla aceitao entre a elite dos fsicos daEuropa, Bohr e Heisenberg iniciaram a propagao de suas ideias em outros campos.

    Bohr, na dcada de 1930, ministrou palestras para os mais variados pblicos,relacionando a noo de complementaridade com um sem-nmero de temas. Em 1933,ele proferiu a palestra Luz e vida na abertura do Congresso Internacional sobre Tera-pias atravs da Luz. Em 1937, participou do Congresso de Fsica e Biologia em Bolonhae, um ano depois, discursou no Congresso Internacional de Cincias Antropolgicas eEtnolgicas, em Copenhague, discorrendo sobre Filosofia natural e culturas huma-

    nas (cf. Bohr, 1995). Heisenberg, por sua vez, seguiu os passos deBohr e, em 1929, realizou uma srie de palestras(mas para platias mais especializadas) pelos Esta-dos Unidos, Japo, China e ndia. As prelees naUniversidade de Chicago serviram de base para seuprimeiro livro, intitulado The physical principles ofquantum mechanics (Os princpios fsicos da mecnicaquntica), publicado em 1949 (cf. Heisenberg,

    1949). Segundo Cassidy (1991, p. 265), este tinhacomo propsito expresso a disseminao do esp-rito da teoria quntica de Copenhague o que ex-plica a forte influncia das ideias de Bohr em todo otexto.

    Iniciou-se, ento, a prolfica carreira deHeisenberg como divulgador das ideias do grupo deCopenhague, dela resultando toda a imensa produ-o de artigos filosficos e cientficos que marcaram

    a vida intelectual do fsico alemo. Estes, sem dvi-da, carecem de certa sistematicidade, pois seriamsempre feitos sob medida para o consumo pblico,

    sendo deste modo motivados pelos objetivos pessoais [de Heisenberg] perante cadaaudincia particular (Cassidy, 1991, p. 255). Mas, apesar da assistematicidade, o efei-to propagandstico das palestras e artigos imenso. Eles so um dos pilares para o es-tabelecimento da hegemonia do esprito de Copenhague no somente entre os fsi-cos, mas, principalmente, entre o pblico leigo que, consequentemente, acaba porignorar toda a variedade de interpretaes possveis para os fenmenos qunticos.

    Figura 1. Heisenberg em Gttingen,1924 (Fonte: http://www.aip.org/

    history/heisenberg/p05.htm).

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    1 Heisenberg, histria da cincia e filosofia grega

    Uma constante nesse corpus textual a referncia cultura clssica, especialmenteaos filsofos gregos. Desde jovem, Heisenberg havia se convencido de que dificilmen-te podemos ocupar-nos de fsica atmica sem conhecermos a filosofia grega(Heinsenberg, 1962, p. 60). Essa intuio o acompanhou durante toda sua vida. Em 13de julho de 1949, Heisenberg, a essa altura j laureado com um Nobel, retornou ins-tituio onde cursara o liceu, o Maxmilians Gymnasium em Munique, e proferiu umapalestra intitulada Naturwissenschaft und humanistische Bildung (Cincia natural eformao humanista). Pretendia defender que, mesmo em um mundo marcado pelopredomnio da cincia e da tcnica, uma formao humanista baseada no estudo da

    histria antiga e das letras clssicas, como a de Heisenberg, no poderia ser descar-tada como um luxo, que s sepodem permitir uns poucos paraquem o destino tornou a luta pela

    vida mais fcil do que para os ou-tros (Heisenberg, 1962, p. 62).O que seria apenas um panegricodedicado escola onde passara sua

    juventude, tornou-se a oportunida-

    de para Heisenberg defender que acincia pode tirar benefcios da cul-tura humanista.

    O currculo do MaxmiliansGymnasium que era dirigido porNicolaus Wecklein, av materno deHeisenberg inclua o ensino dogrego e do latim clssicos. O ltimoano, por exemplo, era pautado pela

    leitura de Sfocles, Homero e de al-guns dilogos platnicos, tais como Apologia de Scrates e trechos doFdon e do Banquete (cf. Hermann,

    Figura 2. Primeira pgina do artigo de

    1925 que expe a mecnica de matrizes,

    publicado no volume 33 do Zeitschrift fr

    Physik. (Fonte: http://www.aip.org/history/

    heisenberg/p01.htm).

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    1976, p. 12). Paralelamente a isso, Heisenberg havia desenvolvido um grande interessepela matemtica, a ponto de, ainda no Gymnasium, haver aprendido por conta pr-pria o clculo diferencial e integral, que no fazia parte do currculo regular (Piza,2003, p. 73).1

    Mais de duas dcadas depois, em um artigo escrito em 1976, a reverncia pelacultura clssica ainda permanecia. Nesse artigo, escrito no ano de sua morte,Heisenberg afirma que muitos dos equvocos relacionados teoria das partculas ele-mentares seriam decorrentes do distanciamento que os cientistas mantinham das ques-tes filosficas. Para ele, a boa fsica inadvertidamente prejudicada por uma filoso-fia ruim adotada pelos fsicos (Heisenberg, 1989, p. 82). A separao entre a atuaocientfica e as formulaes tericas gerais teria origem no esquecimento, por parte dos

    cientistas, de uma das principais caractersticas do pensamento grego: a estreita li-gao entre formulaes tericas e atuao prtica [...] e a aptido em ordenar a poli-croma multiplicidade da experincia, tornando-a acessvel ao pensamento humano(Heisenberg, 1962, p. 52-3). Na raiz de todas as conquistas da cincia, encontra-se,segundo Heisenberg, a inestimvel contribuio dos filsofos gregos. Para ele, o cien-tista que tenta desvincular-se da filosofia grega comete um duplo erro. Primeiro, tor-na-se incapaz de detectar e analisar o discurso filosfico que seu trabalho carrega,

    veladamente, limitando sua compreenso dos problemas da prpria fsica. Segundo,ignora-se o quinho da herana helnica para a humanidade, quando se nega a possibi-

    lidade de aproximao entre cincia e filosofia. Dessa maneira, a filosofia forneceriainstrumentos conceituais mais sofisticados para o cientista compreender melhor o seutrabalho e o seu objeto de estudo, aperfeioando o prprio desenvolvimento cientfico.2

    Assim, ainda para Heisenberg, o fato de filosofia e cincia possurem um mes-mo bero nas pleis gregas h mais de dois mil e quinhentos anos, no uma meracontingncia histrica. Apesar da atual separao acadmica entre as duas disciplinas,suas histrias estariam intimamente ligadas, pois certas escolhas conceituais surgidasna Antiguidade determinaram os caminhos da cincia em seu desenvolvimento nos

    1 Essa rara conjuno de interesses humansticos, tcnicos e matemticos pode ser explicada, em parte, pela famliade Heisenberg. Seu pai, August Heisenberg, tornouse, em 1910, o nico a ocupar uma cadeira de filologia bizantinaem toda Alemanha. Sua produo acadmica abrangia desde trabalhos de paleografia at estudos acerca da literaturae histria do Imprio Bizantino. O av, alm de diretor do Gymnasium em Munique, chegou a ser um reconhecidoespecialista em tragdia grega.2 As conquistas dos tempos modernos, de Newton e dos seus sucessores, apareceram-me como continuao ime-diata da obra em que tinham trabalhado matemticos e filsofos gregos; o desenvolvimento completo da cinciaparecia-me um todo nico, e no me passou pela cabea a ideia de considerar a cincia e a tcnica como um mundoradicalmente diferente do da filosofia de Pitgoras ou de Euclides (Heisenberg, 1962, p. 57).

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    sculos posteriores. Assim, nem os ltimos cinco sculos, marcados pelo progressoextraordinrio da tcnica e da cincia, ficaram livres dessa influncia.3

    Portanto, ao analisar o uso que Heisenberg fez de conceitos herdados do pensa-mento grego antigo, necessrio compreender a sua viso da histria da cincia, naqual a herana intelectual helnica se manifestava em duas correntes antagnicas: omaterialismo e o idealismo. Para ele, da busca dos gregos por um entendimento uni-ficado dos fenmenos naturais, surgiram dois conceitos opostos (o idealismo e omaterialismo). Ambos prescreveriam diferentes respostas ao problema da estruturafundamental da matria. A teoria atmica criada por Leucipo e Demcrito conside-rada o marco fundador do materialismo. A outra corrente, o idealismo, teria surgidocom o Pitagorismo e Plato, mais especificamente com este ltimo no Timeu. As duas

    tendncias, afirma Heisenberg, no so apenas de interesse restrito a historiadores dafilosofia. Para ele, a descoberta de Planck no se limitou a resolver um problema espe-cfico da termodinmica. Uma de suas consequncias foi reviver o debate entreDemcrito e Plato sobre os constituintes ltimos da matria.

    Para Heisenberg, o sculo xviii foi crucial na trajetria histrica do materialis-mo, pois, a partir daquele sculo, viu-se que as experincias qumicas podiam serordenadas e interpretadas satisfatoriamente por intermdio da hiptese atmica her-dada da Antiguidade, se o tomo fosse considerado como o elemento imutvel, verda-deiro e realmente existente, constituinte da matria (Heisenberg, 1962, p. 11).

    E a influncia do materialismo chegou at os sculos xixe xx, a qual teria criadouma imagem simplista do mundo, sustentada tanto pelos avanos da qumica e dafsica da poca, como pelo surgimento do materialismo dialtico (Heisenberg, 1974,p. 9). Mesmo no sculo xx, muitos fsicos, envolvidos nas pesquisas sobre as partculaselementares, estariam, segundo ele, sob a influncia mais ou menos inconscientede Demcrito.

    Contudo, Heisenberg no identificava por completo o materialismo antigo coma filosofia que dominou as cincias naturais at as descobertas de Planck, pois a pala-

    vra materialismo assumiu no sculo xixum significado unilateral que se distanciava

    da filosofia grega da natureza. A nova concepo de materialismo, nascida da revolu-o cientfica do sculo xvii, que teve como um dos marcos a publicao do Principiade Newton em 1687, sofreu o influxo da filosofia cartesiana e da ciso entre realida-de material e realidade espiritual preconizada por Descartes (cf. Heisenberg, 1962,p. 61).

    3 O grande rio da cincia, que atravessa a nossa poca, brota de duas fontes situadas no terreno da antiga filosofia e,embora mais tarde muitos outros afluentes tenham desaguado nesse rio, contribuindo para engrossar o seu fecundocaudal, a sua origem , no obstante, sempre claramente reconhecvel (Heisenberg, 1962, p. 62, grifo nosso).

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    A filosofia grega procurava umprincpio unificador de todos os fenme-nos observados no mundo, uma espciede matria csmica, vale dizer, umasubstncia universal que passaria portodas as transformaes, da qual todas ascoisas emergiriam para depois a ela re-

    tornar (Heisenberg, 1995, p. 113). DeTales, passando por Demcrito e atAristteles, o conceito de matria ligava-se a essa tentativa de compreender a to-talidade do mundo por meio de um prin-cpio fundamental de unificao aarch. Sculos depois, Descartes fundauma filosofia baseada na oposio entrematria e esprito e, assim, o conceito de

    matria sofre uma transformao: no lu-gar da totalidade unificada, a ruptura.

    Foi a distino radical entre res cogitans e res extensa que teria modificado pro-fundamente o conceito de matria herdado da Antiguidade Clssica.4 Nesse momentoda histria, a escolha estabelecida, ou seja, a mistura entre o atomismo antigo e a meta-fsica cartesiana, determinou o desenvolvimento das cincias nos sculos posteriores.

    Assim, desconsiderou-se qualquer tipo de fora espiritual como explicao plaus-vel para os fenmenos concretos. Esse novo materialismo entenderia a matria comoo resultado de uma cadeia causal de interaes mecnicas; como consequncia, o

    Figura 3. Niels Bohr e Albert Einstein, fotografa-

    dos pelo fsico austraco Paul Ehrenfest por volta

    de 1927. (Fonte: Robson, 2005, p. 100).

    4 Heisenberg faz uma interpretao que nos parece bastante correta das relaes entre o sistema cartesiano e a fsicaque se seguiu ao sculo xvii. A antiga filosofia grega, escreve ele, tentara achar uma ordem, na infinita variedadede coisas e fenmenos, pela procura de algum princpio fundamental de unificao. J Descartes procurou estabe-lecer a ordem por meio de uma diviso (isto , separao) fundamental. Todavia, as trs partes que resultam dessadiviso [Deus-Mundo-Eu] perdem algo de sua natureza, se cada qual for considerada separadamente das demais.Se quisermos mesmo fazer uso dos conceitos fundamentais cartesianos essencial que Deus se encontre no mundoe no Eu, e tambm essencial que o Eu no possa ser realmente separado do mundo. Descartes, certamente, sabiada inegvel necessidade dessa ligao, mas a filosofia e a cincia natural no perodo seguinte desenvolveram-se combase na polaridade entre rescogitans e resextensa, com a cincia natural detendo-se apenas na coisa extensa (1995,p. 62-3).

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    conceito de matria perdeu sua ligao com a alma vegetativa da filosofia de Aristte-les (Heisenberg, 1995, p. 114).

    Haveria ainda outra caracterstica do moderno materialismo que, alm de dife-renci-lo do atomismo grego, seria uma das causas de sua viso de mundo unilaterale simplista. Em um texto de 1933, aps descrever as transformaes do conceito dematria no decorrer da histria, de Tales at Demcrito e Plato, Heisenberg se deteveem um problema conceitual: o materialismo, em seu curso histrico, com sua nfasenas qualidades primrias e objetivas, no teria desconsiderado certos aspectos essen-ciais da realidade? Em sua avaliao, haveria uma gradativa substituio do termoNaturerklrung(interpretao da natureza) por Naturerbeschreibung(descrio da na-tureza), que seria mais modesto e acarretaria o abandono de um conhecimento ime-

    diato e direto, com o predomnio de um entendimento analtico (Heisenberg, 1952,p. 34).Ao tentar compreender tal problema, Heisenberg recorre anlise platnica dos

    tipos de conhecimento realizada no Livro 6 da Repblica. A distino entre dinoia eepistme utilizada como um instrumento heurstico que permite compreender me-lhor a dinmica entre o materialismo e o idealismo na histria da fsica. Em Plato, osdois termos partilham atribuies epistemolgicas e ontolgicas, mas o fsico alemoos emprega de maneira peculiar. Dinoia e epistme seriam dois instrumentos concei-tuais que permitiriam uma melhor avaliao tanto da interpretao da natureza de

    matriz idealista, qualitativa e baseada em um conhecimento direto e imediato e dadescrio da natureza quantitativa, analtica e de raiz materialista. Nesse sentido,Heisenberg apresenta a seguinte interpretao da diviso da linha no famoso trecho511 d-e daRepblica:

    [Plato] distingue quatro estgios da percepo: o mais alto deles chamado deepistme e corresponde ao conhecimento das coisas reais, percepo e ao re-conhecimento da sua natureza, como descrito na analogia [o mito da caverna].O segundo estgio conhecido como conhecimento discursivo dinoia e pode

    ser alcanado pelo estudo das cincias. Os dois ltimos estgios relacionam-secom os dois primeiros assim como a crena o faz com a compreenso. Elas sochamadas de f e crena (pstis) e conjectura (eikasa) (Heisenberg, 1952, p. 32).

    Talvez por ser a transcrio de uma palestra, o texto apresenta uma confuso ca-nhestra entre os conceitos de epistme e nesis. NaRepblica (6, 511 d-e), Plato distin-gue no exatamente a epistme, mas a nesis da dinoia, dapstis e da eikasa; naRepblica508e, Plato associa epistme verdade, em oposio opinio (dxa). Para todos osefeitos, tal confuso no altera substancialmente o argumento a ser analisado. Apenas

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    deve-se considerar que, quando Heisenberg cita epistme, na verdade ele refere-se nesis.5 De que modo esses dois conceitos servem de parmetros heursticos para acompreenso da dinmica entre o materialismo e o idealismo no transcorrer da hist-ria? Em resposta a essa questo, ele insiste em sua tese: alm da influncia da me-tafsica cartesiana sobre o materialismo moderno, este tambm se distingue doatomismo antigo, e de toda a filosofia grega, pelo fato de seu grande bastio, a cinciamoderna, ter abandonado a epistme como objetivo ltimo, limitando-se descriomatemtica do mundo, ou seja, ao campo da dinoia.

    Frente ao impacto do materialismo na histria da cincia, a compreenso da na-tureza, nos ltimos cinco sculos, limitou-se a afastar os dados da experincia ime-diata e, subjacente a eles, descobrir estruturas matemticas. O pice dessa postura epis-

    tmica marcada pela nfase no quantitativo, em detrimento de outras propriedadesdos objetos naturais encontrado, como j assinalamos, no alto nvel de abstraoque Newton inaugurou nosPrincipiamathematica. Para Heisenberg, com Newton sur-giu a possibilidade de unificar a infinita riqueza dos fenmenos em um formalismomatemtico. Por meio de clculos, o complexo processo individual pode ser compre-endido como uma consequncia de leis bsicas e, portanto, explicado (Heisenberg,1974, p. 40).

    possvel resumir essas reflexes de Heisenberg da seguinte maneira: o mate-rialismo dominante na cincia moderna, anterior descoberta de Max Planck, herdou

    de Demcrito a separao entre qualidades primrias e secundrias, com nfase nasprimeiras. Agregou-se a isso a ciso cartesiana entre res extensa e res cogitans que, almde esvaziar o ideal helnico de busca por uma fundamentao, uma ordem no cosmo,privilegiou a anlise e a separao, desqualificando a subjetividade como algo relevan-te no mbito da cincia. Da, o recurso oposio entre dinoia e nesis (epistme, nostextos de Heisenberg): o materialismo moderno limita-se dinoia, o conhecimentomediano, intermedirio que, ao invs da intuio intelectual autossuficiente, procedede modo analtico, mediato, passo a passo. Concomitante a isso, o alto poder preditivoe as inumerveis aplicaes tecnolgicas geradas pela nova cincia legitimaram o pre-

    domnio da dinoia em detrimento da epistme.Heisenberg critica essa diviso, denominada realismo metafsico, e a prima-

    zia dada res extensa frente coisa pensante, primazia essa que acarretou o nasci-mento de um ideal de cincia puramente objetiva, sem referncia ao Eu. No entanto,

    5 Isso fica bastante evidente no seguinte trecho: epistme precisamente o estado de conscincia no qual se podeparar e para alm do qual no preciso mais pesquisar.Dinoia a habilidade de analisar em detalhes o resultado dadeduo lgica. Ao que parece, em Plato, apenas a epistme fornece uma conexo com o verdadeiro, o essencial-mente real, enquanto a dinoia, por mais que fornea de fato conhecimento, um conhecimento desprovido devalores (Heisenberg, 1974, p. 137).

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    ele reconhece que, na base dos sucessos da cincia moderna anterior teoria quntica,a hiptese de que se pode descrever o mundo sem fazer qualquer meno a Deus ou ans mesmos (Heisenberg, 1995, p. 64) pareceu ser a condio necessria para o de-senvolvimento das cincias naturais. No entanto, aps as descobertas de Planck e osubsequente desenvolvimento da teoria quntica, o realismo metafsico foi incapaz decompreender as novas situaes colocadas.6

    Para melhor compreender esse processo histrico, Heisenberg empregou umtermo retirado da filosofia de Fichte: autolimitao.7 Esse conceito demonstrariaque o predomnio da dinoia na histria da cincia levou ao fato de que praticamentetodo progresso e conhecimento [da cincia] foram obtidos pelo sacrifcio de impor-tantes formulaes anteriores de questes e ideias (Heisenberg, 1952, p. 27). A auto-

    limitao seria, neste caso, o abandono da busca por princpios gerais da natureza esua substituio por uma anlise dos fenmenos, concretizada pela nfase no quanti-tativo, na busca de condies experimentais precisas, de medies exatas e de umaterminologia livre de ambiguidades (Heisenberg, 1974, p. 216).

    A partir da descoberta do quantum de energia em 1900, at os subsequentes ex-perimentos relacionados s partculas elementares, a concepo da estrutura atmicada matria revela uma transio de Demcrito a Plato, ou seja, do materialismo aoidealismo (cf. Heisenberg, 1974, p. 18). A mecnica quntica e a fsica de partculas

    6 Para Heisenberg na interpretao de Copenhague da teoria quntica, podemos proceder sem nos mencionarmoscomo indivduos, embora no possamos ignorar que a cincia natural feita por homens. A cincia natural no serestringe simplesmente a descrever e explicar a natureza, ela resulta da interao entre ns mesmos e a natureza, epropicia uma descrio que revelada pelo nosso mtodo de questionar. Essa foi uma possibilidade que no poderiater ocorrido a Descartes, mas que torna impossvel uma separao bem ntida entre o mundo e o Eu (1995, p. 64).7 Autolimitao do ego, ou Selbstbeschrnkung des Ich, significa que em cada ato de percepo ns selecionamosuma percepo dentre infinitas outras, o que limitaria o nmero de possibilidades futuras (Heisenberg, 1952,p. 28). Beller chega a afirmar que tal conceito de Fichte teve influncia na prpria concepo de Heisenberg doprincpio de incerteza: Uma das mais frteis ideias presentes no artigo sobre a incerteza foi a de reduo do pacotede onda durante a medio. Cada medio seleciona um valor definitivo para um observvel a partir da totalidade depossibilidades e limites das opes para todas as medies subsequentes (Heisenberg, 1983, p. 74). Com essa ideia,

    Heisenberg inaugura o notrio problema da medida na mecnica quntica, que atormenta fsicos e filsofos da fsicaquntica at os dia de hoje. A fonte dessa ideia [...] foi a autolimitao do ego da filosofia de Fichte: a observao danatureza pelo homem mostra uma analogia para com o ato individual da percepo, que Fichte entendeu como umprocesso deSelbstbeschrnkung des Ich [...] (Heisenberg, 1952, p. 28). Heisenberg explica a ideia de Fichte do se-guinte modo: em cada ato de percepo ns selecionamos uma percepo dentre infinitas outras, o que limitaria onmero de possibilidades futuras (Heisenberg, 1952, p. 28). Estas palavras so quase idnticas s linhas da conclu-so do artigo sobre a incerteza: toda observao uma seleo a partir de uma plenitude de possibilidades e umalimitao sobre o que possvel no futuro (Beller, 1999, p. 67). Ao aceitar a aproximao entre os dois textos feitapor Mara Beller, tem-se a confirmao de uma influncia direta de uma concepo puramente filosfica na produocientfica de Heisenberg. To ou mais importante quanto mapear as origens dessa inusitada influncia do idealismoalemo sobre um fsico do sculo xx, investigar as consequncias dessa escolha filosfica nas subseqentes inter-pretaes do problema do colapso.

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    elementares, por exemplo, tornaram insustentvel a concepo do tomo como umaentidade eterna, imutvel e indivisvel.8

    Mas as partculas elementares no poderiam ser comparadas com o tomo deDemcrito e Leucipo? No. Por mais que o atomismo antigo prive o tomo de uma s-rie de atributos restando apenas sua forma, movimento e arranjo espacial , a atualdescrio de uma partcula elementar exclui at mesmo esses aspectos mais abstratosdo tomo de Demcrito. Se quisermos oferecer uma descrio precisa de partculaelementar e, a, a nfase est no termo precisa a nica coisa que poderemos apre-sentar uma funo de probabilidade (Heisenberg, 1995, p. 56). Ou seja, uma part-cula elementar no pode ser identificada com um ponto material, mas sim com umaforma matemtica. Com isso, no s o atomismo antigo, mas tambm suas herdeiras

    modernas a qumica e a termodinmica do sculo xix tornaram-se incapazes detratar do mundo subatmico. As aporias que a teoria quntica parece impor aplica-bilidade dos conceitos da fsica clssica so decorrentes de certas escolhas filosficas a autolimitao que fundamenta a cincia moderna.

    Para Heisenberg, a revoluo quntica, derivada da revoluo galileana e de suaabordagem formalista e abstrata dos fenmenos naturais, levou a fsica a um ponto noqual apenas o formalismo matemtico no alcanava o que estava em jogo no mundosubatmico. nesse sentido que se pode entender plenamente a seguinte frase: talcomo Coprnico e Galileu abandonaram, nos seus mtodos, a cincia descritiva de Aris-

    tteles, assim seremos forados a abdicar do materialismo atmico de Demcrito eretomar as ideias de simetria da filosofia de Plato (Heisenberg, 1990, p. 91). A com-preenso dos fenmenos subatmicos exigia uma volta da cincia aos termos do idea-lismo: estabelecer um distanciamento do materialismo, do cartesianismo e do predo-mnio de um pensamento estritamente formal e matematizado, a dinoia.

    2 Materialismo, realismo, idealismo e a interpretao de Copenhague

    Essa leitura da filosofia grega feita por Heisenberg vai permitir que ele responda aoscrticos da Interpretao de Copenhague. Essas crticas, segundo ele, seriam herdei-ras de uma ontologia do materialismo.9 No captulo de Fsica e filosofia, intitulado

    8 Historicamente, a palavra tomo utilizada na fsica e qumica modernas foi associada ao objeto errado, du-rante o renascimento da cincia no sculo xvii, pois as menores partculas pertencentes a um elemento qumico soainda, como se sabe, sistemas um tanto complexos de unidades ainda menores (Heisenberg, 1995, p. 56).9 Todos os oponentes da Interpretao de Copenhague esto de acordo sobre um ponto. Segundo eles, seria dese-jvel retornar ao conceito de realidade da fsica clssica ou, para fazermos uso de um termo filosfico mais geral, ontologia do materialismo. Eles prefeririam voltar ideia de um mundo real objetivo, em que mesmo as partes maisdiminutas existissem objetivamente (Heisenberg, 1995, p. 99-100).

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    O desenvolvimento das ideias filosficas, aps Descartes, em comparao com a novasituao da teoria quntica, Heisenberg apresenta suas ideias sobre a filosofia mo-derna, relacionando-a com o pensamento antigo e a teoria quntica. Como visto, suaopinio acerca da filosofia moderna, sobretudo com relao a Descartes, crtica e con-tundente. Nesse texto, Heisenberg apresenta trs formas de realismo: prtico, dog-mtico e metafsico. Todas partilham da crena segundo a qual ns objetivaremosuma afirmao, se mantivermos que seu contedo independe das condies sob as quaisela possa ser verificada (Heisenberg, 1995, p. 64). Logo, o realismo ope-se Inter-pretao de Copenhague, pois, segundo esta, no podemos objetivar completamenteo resultado de uma observao experimental, e no temos como descrever o que acon-tece entre uma observao e outra (Heisenberg, 1995, p. 43).

    O realismo prtico limita-se a assumir afirmaes que podem ser objetivadas eque a maior parte de nossas experincias, na vida cotidiana, consistam em tais asser-es, o que faz dele um pressuposto necessrio da prtica da cincia natural (Heisen-berg, 1995, p. 65).

    O realismo dogmtico defende no haver assertiva que diga respeito ao mundomaterial que no possa ser objetivada. A fsica clssica estaria alicerada nele, masaps a teoria quntica ficou bvia a possibilidade de haver cincia exata fora dos pre-ceitos do realismo dogmtico. A dificuldade de Albert Einstein (1879-1955) em en-tender e aceitar a Interpretao de Copenhague deve-se a ele tomar o realismo dog-

    mtico como nica base da cincia natural (Heisenberg, 1995, p. 65).O realismo metafsico definido, sucintamente, como a posio surgida da par-tio cartesiana e que identifica o mundo com a coisa extensa. Para o realista metafsi-co, o problema de nossas asseres poderem ou no ser objetivadas nem se coloca: certo e seguro que elas existem (cf. Heisenberg, 1995, p. 64-5).

    O criador da teoria da relatividadeno foi o nico alvo das crticas de Heisen-berg. Durante a dcada de 1950, renasceramcertas crticas Interpretao de Copen-

    hague, que a essa altura j era hegemni-ca. Se at esse momento os crticos se limi-tavam a poucos oponentes, o ps-guerratrouxe algo que no havia vingado antes: aelaborao de uma interpretao concor-

    Figura 4. Heisenberg em sala de aula em 1936.

    (Fonte: http://www.aip.org/history/heisenberg/

    p04.htm).

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    rente ao modelo que, desde os fins dos anos 1920, havia se tornado a ortodoxia entre acomunidade de fsicos. Ou seja, na reviso histrica empreendida por Heisenberg, osherdeiros de Demcrito e Descartes so, alm de Einstein, David Bohm (1917-1992),Louis de Broglie (1892-1987), Max von Laue (1879-1960) e Erwin Schrdinger (1887-1961) que, alm de taxados como representantes de uma filosofia ultrapassada, so acu-sados de sacrificarem propriedades essenciais de simetria que a teoria quntica exi-be (Heisenberg, 1995, p. 111). Esses autores desenvolveram, de maneira diferente,interpretaes contrrias de Copenhague. Na esteira da crtica aos diversos realis-mos, Heisenberg far ento uso de novos argumentos derivados da filosofia de Platopara desqualificar essas interpretaes.

    Suas mais speras e diretas crticas contra as interpretaes concorrentes vie-

    ram a lume durante uma das palestras apresentadas na Universidade de St. Andrews,na Esccia, durante os anos de 1955 e 1956. Em 1958, seriam publicadas em um nicolivro,Physics and philosophy: the revolution in modern science (Fsica e filosofia: a revolu-o na cincia moderna), uma espcie de suma das opinies de Heisenberg sobre cin-cia, filosofia e histria da cincia. O captulo 8, Crticas e contrapropostas Interpre-tao de Copenhague da teoria quntica, dedicado exclusivamente a suas restriesfrente s propostas de Bohm, Imre Fnyes, A. D. Alexandrov, D. I. Blokhintsev,Schrdinger, Einstein e Max von Laue.

    De incio, Heisenberg declara que a Interpretao de Copenhague provocou o

    afastamento entre a fsica e o materialismo que prevaleceu durante o sculo xix. Toda-via, a influncia do materialismo foi esmagadora: abrangeu desde o pensamento filo-sfico, passando pela cincia natural e chegando at o homem da rua. A profundaascendncia das teses materialistas sobre os mais variados pontos de vista explica quemuitas tentativas tenham sido feitas para criticar a interpretao de Copenhague(Heisenberg, 1995, p. 99).

    Por mais que Heisenberg estabelea, como ser visto adiante, uma diferenciaoentre os crticos da Interpretao de Copenhague, todos os opositores so considera-dos materialistas nostlgicos, que no perceberam ou se perceberam, no aceitaram

    a revoluo introduzida de modo inexorvel pelo grupo de Copenhague e Gttingen.Nesse caso, os opositores foram divididos em trs grupos. O primeiro seria ca-

    racterizado pelo fato de no pretender mudar a Interpretao de Copenhague no quediz respeito a suas predies empricas. Seu foco seria, antes, modificar a linguagemda teoria quntica aproximando-a da fsica clssica. Formado por David Bohm, ImreFnyes, A. D. Alexandrov e D. I. Blokhintsev, esse grupo tenciona mudar a filosofiasem tocar na fsica (Heisenberg, 1995, p. 108). Quanto ao segundo grupo, represen-tado pelo fsico hngaro Lajos Jnossy, o objetivo seria modificar a teoria quntica emsuas estruturas matemticas, de maneira a chegar a uma interpretao filosfica di-

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    versa. O ltimo grupo composto por fundadores da teoria quntica, como Einstein eSchrdinger juntamente com Max von Laue. Haveria, para esses autores, uma insa-tisfao generalizada com os resultados da interpretao de Copenhague, especialmentecom suas concluses filosficas, sem, todavia, fazer contrapropostas definidas(Heisenberg, 1995, p. 99).

    Segundo ele, os argumentos de Einstein seriam os seguintes:

    O esquema matemtico da teoria quntica parece propiciar uma descrio per-feitamente adequada no que diz respeito aos atributos estatsticos dos fenme-nos atmicos. Mas [...] a interpretao usual no permite a descrio do que re-almente acontece independente das observaes, ou entre duas delas. Mas alguma

    coisa deve ter acontecido, sobre isso no h dvida; essa alguma coisa precisaser descrita, seja em termos de eltrons, ondas ou quanta de luz, mas, a menosque ela seja descrita de alguma maneira, a tarefa da fsica no est terminada.No se pode admitir que essa alguma coisa diga respeito somente ao ato de ob-servao. O fsico deve postular, em sua cincia, que ele est estudando um mun-do que no construiu, o qual estar sempre presente e basicamente inalterado,mesmo em sua ausncia (Heisenberg, 1995, p. 109).

    Por mais que o texto contenha trechos que lembram a profisso de f realista que

    abre o artigo onde se elabora o argumento EPR10

    (cf. Einstein; Podolsky & Rosen, 1981,p. 90), no faz nenhuma referncia a ele. Contra a exigncia de uma descrio do querealmente acontece independente das observaes, Heisenberg argumenta que devi-do ao fato de utilizarmos a linguagem da fsica clssica um refinamento de nossa lin-guagem cotidiana para descrever os fenmenos qunticos, haveria um limite intrans-ponvel na efetivao de tal tarefa.11

    10 O fulcro do texto era demonstrar que o formalismo quntico, apesar de correto e consistente, era incompleto.Defender a completeza da mecnica quntica teria como consequncia, estando o argumento EPR correto, a volta doconceito de simultaneidade na troca de informao entre dois sistemas fsicos que, apesar de restrita a magnitudes

    microscpicas, inacessveis para o experimentador, era algo inadmissvel aps a relatividade restrita (cf. Brown, 1981,p. 73). Por isso, os autores rematam o artigo com a seguinte afirmao: Somos forados a concluir que a descrioquntica da realidade fsica atravs das funes de onda no completa (Einstein; Podolsky & Rosen, 1981, p. 90). emblemtica a frase de abertura do artigo, de forte cunho realista: Qualquer considerao sria a respeito de umateoria fsica deve levar em conta a diferena entre a realidade objetiva, que independe de qualquer teoria, e os con-ceitos fsicos com os quais a teoria opera. Pretende-se que tais conceitos tenham correspondncia com a realidadeobjetiva, e por meio deles construmos uma imagem dessa realidade (Einstein; Podolsky & Rosen, 1981, p. 90).11 Tese apresentada por Bohr no Congresso Internacional de Fsica, em Como na Itlia, em 1927 e depois publicadaem artigo (cf. Bohr, 1928). O assim denominado postulado quntico pode ser resumido na seguinte afirmao deBohr: a teoria quntica caracterizada pelo reconhecimento de uma limitao fundamental nas ideias da fsicaclssica quando aplicadas a fenmenos atmicos. A situao assim criada de natureza peculiar, j que a nossa in-terpretao do material experimental repousa essencialmente em conceitos clssicos (Bohr, 2000, p. 135).

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    3 Teoria quntica, idealismo e a estrutura da matria

    Para Heisenberg, essa limitao s poderia ser superada via o idealismo derivado dasdoutrinas platnicas12 sobre a estrutura da matria, descritas no Timeu. Ao contrriodo materialismo de Demcrito, no qual os constituintes ltimos da matria eram inal-terveis e indestrutveis partculas materiais, o idealismo13 platnico considera que asmenores partculas de matria so, por assim dizer, apenas formas geomtricas, nocaso, os slidos regulares da geometria. Esses slidos, diferentemente dos tomos,podem ser divididos em partes ainda menores. Os slidos geomtricos podem ser de-compostos em tringulos que, segundo Heisenberg, deixam de ser matria, pois nopossuem dimenses espaciais.14 A forma geomtrica, uma das poucas caractersticas

    intrnsecas dos tomos, deixa de ser um atributo destes, como o era em Demcrito,tornando-se a estrutura subjacente da matria.E por que Heisenberg relaciona a doutrina platnica com a estrutura da matria

    segundo a fsica moderna? O trecho a seguir representativo do modo como Heisenberginterpreta a fsica platnica:

    Quando duas partculas elementares de elevada energia colidem, originam-sevrias partculas no processo de desintegrao, mas os fragmentos resultantesno so necessariamente menores do que as partculas iniciais. (...) o conceito

    de divisibilidade perdeu assim o seu significado e, consequentemente, o mesmoaconteceu com o conceito de partcula mnima. Se a energia se converte em ma-tria, isso acontece porque a energia adota a forma equivalente de partculas ele-mentares. Esta forma aparece como a representao de um grupo de transforma-o, tal como a rotao no espao ou a transformao de Lorentz. (...) elas so asentidades menores, autnticos blocos construtores da matria, ou so elas me-ramente representaes matemticas dos grupos de simetria pela qual a matria construda? (Heisenberg, 1990, p. 47).

    12 Os termos platonismo ou doutrinas platnicas so aqui utilizados em sentido lato, como a doutrina segundoa qual os objetos da matemtica tm uma existncia real. , na filosofia da matemtica, a doutrina equivalente aorealismo na teoria do conhecimento (Audi, 2006, p. 597).13 Fica claro que o idealismo tratado por Heisenberg do tipo objetivo, que sustenta que as ideias existem por siprprias, e que ns apenas as apreendemos ou as descobrimos. A outra variante de idealismo seria o idealismo

    subjetivo: as ideias existem apenas nas mentes dos sujeitos: no h mundo externo autnomo (Bunge, 2002a,p. 179).14 Assim, em Plato, no limite mais baixo das sries das estruturas materiais, no existe efetivamente algo materi-al, mas uma forma matemtica. A raiz ltima a partir da qual o mundo pode ser uniformemente inteligvel , segundoPlato, a simetria matemtica, a imagem, a ideia; esse conceito , portanto, denominado idealismo (Heisenberg,2004, p. 12).

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    Para ele, inclusive, no comeo era a simetria , certamente, uma expressomelhor do que no comeo era a partcula de Demcrito [...] nossas partculas ele-mentares so comparveis aos corpos regulares do Timeu de Plato. So modelos ori-ginais, as ideias da matria (Heisenberg, 1996, p. 278-9).15 A substituio do mate-rialismo tradicional pelo platonismo adviria das partculas elementares no mais seadequarem a uma imagem dos tomos como indestrutveis e eternos. Os experi-mentos realizados nos aceleradores de partculas demonstram que uma partcula podeser transformada em outras partculas. Essas ltimas seriam estruturas matemticasda natureza, propriedades ou equaes caracterizadas pela sua invarincia frente stransformaes (converses) das prprias partculas umas nas outras.16

    Segundo Heisenberg, um dos efeitos nefastos do materialismo moderno foi a

    ruptura com o modelo epistemolgico platnico apresentado naRepblica, pois o de-senvolvimento das cincias como um todo levou os dois tipos de percepo, epistme edinoia a uma relao de excluso mtua (Heisenberg, 1952, p. 34). Contudo, emseu contexto original, as duas noes eram interdependentes. Quando Heisenbergaproxima as simetrias matemticas das estruturas geomtricas e matemticas do Timeu,ele no s tenta expurgar o materialismo moderno da fsica, mas, tambm, talvez in-conscientemente, reaproxima o conhecimento intermedirio da inteleco pura.Do mesmo modo que os objetos sensveis so decorrentes da mistura entre as formasgeomtricas e o princpio material sensvel (cf. Reale, 1994, p. 148), a dinoia repre-

    senta uma cincia intermediria que, no entanto, permite uma descrio do mundofsico, especialmente a perda da certeza, para empregar os termos de Cattanei.17

    15 Quando Heisenberg refere-se s simetrias, ele est pensando nos grupos de simetria. A importncia desses gru-pos na teoria quntica bem conhecida e inegvel. Para um bom tratamento dessa questo, mesmo em seus aspectosepistemolgicos, ver, por exemplo, Wigner, 1979, especialmente o captulo 3. Weyl, em seu livroSimetria, tambmexamina o papel da simetria na teoria quntica (entre outras aplicaes). Para Weyl, a mecnica quntica represen-ta o estado de um sistema fsico por um vetor em um espao de muitas, de fato, de infinitas dimenses []. Assim,a mais profunda e a mais sistemtica parte da teoria dos grupos, a teoria da representao de um grupo por meio detransformaes lineares, vem aqui baila. Devo refrear-me de apresentar uma descrio mais precisa desse difcil

    assunto. Mas aqui a simetria mostra-se mais uma vez ser a chave para um campo de grande variedade e importncia(Weyl, 1989 [1952], p. 135).16 Tal como os corpos elementares regulares de Plato, as partculas elementares da fsica moderna so definidaspor condies matemticas de simetria; no so eternas nem invariveis e, portanto, dificilmente podem ser cha-madas reais na verdadeira acepo da palavra. So antes representaes daquelas estruturas matemticas funda-mentais a que se chega nas tentativas de continuar subdividindo a matria; representam o contedo das leis fun-damentais da natureza. Para a cincia natural moderna no h mais, no incio, o objeto material, porm a simetriamatemtica (Heisenberg, 2004, p. 26).17 Elisabetta Cattanei vai um pouco alm e considera uma certa ambiguidade na geometria: Nas cincias matem-ticas e, em particular, na geometria, Plato capta uma ambiguidade, refletindo talvez sobre a situao da pesquisasobre axiomas em seu tempo: trata-se de formas de saber intelectual que, contudo, no se desvinculam totalmentedo visvel, e que em si continuam hipotticas. O Timeu fornece uma imagem viva dessa ambiguidade. Dela, Plato

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    O retorno ao idealismo, devido revoluo quntica e fsica das partculas ele-mentares, no significa uma supresso da dinoia algo impossvel para a cinciamoderna altamente matematizada. Levando as ideias de Heisenberg at seu desfecholgico, pode-se considerar que o idealismo nas cincias naturais contemporneas pro-moveu um reequilbrio entre as duas noes. Contudo, essa foi uma concluso queHeisenberg nunca expressou.18

    4 A construo da interpretao de Copenhague:filosofia grega e retrica

    As mais corriqueiras opinies acerca das ideias filosficas de Heisenberg, especial-mente entre seus crticos, so as que o taxam de ser um positivista ou um instrumenta-lista ingnuo que se deixou contaminar pelas filosofias da moda na Europa das dcadasde 1920 e 1930. Filsofos conceituados, tais como Karl Popper e Mario Bunge,19 ado-tam por inteiro essa interpretao. No entanto, pode-se corroborar a tese de Popper eBunge de que Heisenberg foi to somente um mulo do positivismo? Ao que pareceno. Pelas seguintes razes. Desde o artigo de 1925 que expe a mecnica de matrizes,

    no deixa de sublinhar o aspecto que a epistemologia contempornea chamou de perda da certeza, mas, por outrolado, explica seu poder de medio: o limite pura intelectualidade da matemtica, na medida em que a aproxima dosensvel, torna-a instrumento plausvel de explicao do mundo fsico (Cattanei, 2005, p. 280-1).18 Catherine Chevalley expressa do seguinte modo esse problema na obra do fsico alemo: como compreenderque Heisenberg possa sugerir uma ontologia das estruturas matemticas sem deixar de ler a histria da fsica comoum processo de autolimitao do conhecimento? [...] Heisenberg no oscilaria entre a epistemologia e a ontologia,com o risco de cair em um ecletismo pouco convincente? (1992, p. 127).19 Um trecho de Popper mostra a aprovao entusistica por Moritz Schlick das ideias de Heisenberg: Qualquerteste que se faa com o objetivo de verificar a trajetria entre os dois experimentos perturbar tanto essa trajetriaque os clculos de trajetria exata tornam-se ilegtimos. A propsito desses clculos exatos, Heisenberg diz: ... pura questo de gosto querer algum atribuir qualquer realidade fsica calculada histria passada do eltron. Com

    essas palavras, Heisenberg pretende claramente dizer que esses clculos de trajetria, insuscetveis de teste, so, doponto de vista do fsico, destitudos de significao. Schlick comenta essa passagem dizendo: eu me expressaria demaneira ainda mais incisiva, manifestando completo acordo com as concepes fundamentais, tanto de Bohr quan-to de Heisenberg, que acredito serem incontestveis. Se um enunciado concernente posio de um eltron, emdimenses atmicas, no verificvel, no podemos atribuir-lhe qualquer sentido; torna-se impossvel falar datrajetria de uma partcula entre dois pontos em que foi observada (Popper, 2000, p. 242). Mario Bunge segue omesmo vis: por volta de 1935, Bohr e Heisenberg, juntamente com Born, Pauli e outros, propuseram a chamadaInterpretao de Copenhague, com a beno do Crculo de Viena. Segundo ela, a medio de uma varivel no ape-nas perturba seu valor, como a cria. Dito de maneira negativa: enquanto no medido, o quanton carece de proprie-dades. Desse modo, ele nem sequer existe, a no ser como constituinte de uma no-analisvel e selada unidade:sujeito (experimentador) objeto (quanton) aparato [...] obviamente, esta hiptese antropomrfica e, inclusive,mgica (2002b, p. 79).

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    at as palestras de 1958 que resultaram no livro Fsica e filosofia, Heisenberg insisteque a fsica s trata com grandezas observveis, no que se refere ao mundo quntico.O artigo de 1925 finalizado com o seguinte pargrafo:

    Se um mtodo para determinar dados qunticos tericos utilizando relaes en-tre grandezas observveis, tal como proposto aqui, pode ser tido como satisfatrioem princpio, ou se esse mtodo, aps tudo, acabar por representar uma aproxi-mao por demais grosseira para o problema fsico de construir uma mecnicaquntica terica [...] s pode ser decidido com investigaes matemticas maisintensas do mtodo que foi superficialmente empregado aqui (HeisenbergapudVan der Waerden, 1967, p. 276).

    O que iniciou como uma atitude quase que desesperada do jovem Heisenbergdiante do emaranhado de dados experimentais e inconsistncias tericas relativas estrutura do tomo (cf. Van der Waerden, 1967, p. 37-40) acabou por desenvolver-senos anos subsequentes. J em 1927, quando da elaborao do princpio de incerteza, asgrandezas observveis so tidas como a nica fonte de significado fsico para os fen-menos qunticos:

    Quando queremos ter clareza sobre o que se deve entender pelas palavras posi-

    o do objeto, por exemplo, do eltron (relativamente a um dado referencial),ento preciso especificar experimentos definidos com o auxlio dos quais sepretenda medir a posio do eltron; caso contrrio, a expresso no ter ne-nhum significado (Heisenbergapud Chibeni, 2005, p. 183).

    Quase trs dcadas depois, em 1958, Heisenberg apresenta os mesmos argumen-tos, em um tom assumidamente filosfico:

    De um ponto de vista muito geral, no h maneira alguma de descrever o que

    acontece entre duas observaes consecutivas. , certamente, tentador dizerque o eltron deve ter estado em algum lugar, no intervalo de tempo entre essasduas observaes, e que, portanto, o eltron deveria ter descrito algum tipo detrajetria ou rbita, mesmo que seja impossvel saber qual. Esse seria um argu-mento razovel na fsica clssica. Na teoria quntica, porm, teria sido um abusode linguagem que, como veremos depois, no pode ser justificado [...]. Se qui-sermos descrever o que ocorre em um evento atmico, deveremos compreenderque o termo ocorre pode somente ser aplicado observao, e no ao estado decoisas durante duas observaes consecutivas (Heisenberg, 1995, p. 42-6).

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    No entanto, pode-se corroborar a tese de Popper e Bunge de que Heisenberg foito somente um mulo do positivismo? Ao que parece no, por duas razes (cf.Heisenberg, 1995, 1996).

    A obra de Heisenberg inegavelmente perpassada por ideiassimilares s dospositivistas. Mas no existem provas textuais nas fontes consultadas que comprovemuma influncia de fato de filsofos positivistas sobre Heisenberg. Alm disso, seu di-logo com a filosofia grega e moderna inseriu uma srie de noes e conceitos que o

    afastam de um positivismo puro e sim-ples. A influncia de Ernst Mach umadas referncias fundamentais do posi-tivismo rejeitada.20 Heisenberg

    afirmou que nunca o leu seriamente e ocontato com sua obra foi posterior criao da mecnica matricial (cf. Her-mann, 1976, p. 28). A opo de utilizarapenas grandezas observveis foi, segun-do Heisenberg, inspirada pela teoria es-pecial da relatividade (cf. Heisenberg,1996, p. 78-9).

    Outro motivo, que distancia

    Heisenberg das bnos do Crculo deViena, pode ser aduzido a partir do se-guinte trecho:

    Embora o movimento positivista lgico vivesse seu apogeu quando a mecnicaquntica se desenvolveu, as formas de antirrealismo, que comparecem na inter-pretao ortodoxa dessa teoria, no se identificam com o redutivismo positivistaestrito (Chibeni, 1997, p. 31).

    Bohr e Heisenberg no advogavam que as proposies tericas deveriam ser re-duzidas a proposies observacionais atravs de certas convenes lingusticas (re-gras de correspondncia) para que seu verdadeiro contedo emprico e significado seevidenciem (Chibeni, 1997, p. 31).21

    Figura 5. Heisenberg e Bohr, 1935 ou 1936. (Fonte:

    http://www.aip.org/history/heisenberg/p08.htm).

    20 Um detalhe pode ser levantado, e mesmo estudado com maior rigor: apesar da rejeio da influncia de Mach,Pauli, declarada influncia de Heisenberg, era afilhado do filsofo austraco. Haveria uma influncia de Mach sobrePauli e, consequentemente, sobre Heisenberg?

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    Mas, ento, possvel deduzir algum tipo de filosofia consistente da obra deHeisenberg, particularmente no que se refere ao uso que ele faz da filosofia clssica,especialmente do atomismo, do platonismo e da histria da cincia? possvel umareconstruo racional dessas suas ideias filosficas? Ao levar em conta as fontes con-sultadas, a resposta no.

    No existiria um sistema subjacente ou um desenvolvimento intelectual com umsentido logicamente determinado que permitisse afirmar algo como Heisenberg de-fendia uma concepo x1 que foi se desenvolvendo no decorrer de sua carreira e o con-duziu a uma concepo x2. No entanto, observam-se alguns temas recorrentes queforam incorporando as mais diversas teses filosficas. Heisenberg, em diferentes mo-mentos e em funo do contexto de estabelecimento e construo da teoria quntica,

    busca na filosofia elementos tericos que legitimem suas convices cientficas es-pecialmente no que diz respeito Interpretao de Copenhague.Pode-se colocar uma outra questo crucial: existiu uma interpretao de Copen-

    hague, no sentido de uma escola, de um grupo, que partilhasse crenas e prticas ho-mogneas? Talvez os prprios textos de Heisenberg possam esclarecer essa questo.

    EmA parte e o todo, o fsico alemo utiliza um recurso estilstico que remete aostextos de duas matrizes do pensamento helnico: o supracitado Plato e o historiadorTucdides. O estilo dialogado platnico seria fundido com o artifcio que Tucdidesutilizou na sua Histria da guerra do Peloponeso: o de fazer cada orador falar como,

    em minha opinio, ele o teria feito naquelas circunstncias, atendo-me o mais estri-tamente possvel linha de pensamento que norteou sua fala (Tucdides apud Heisen-berg, 1996, p. 7).

    A parte e o todo um texto de recriao de uma srie de dilogos entre o autor eoutras personalidades importantes em sua vida, Einstein e Bohr, por exemplo, em umaforma textual denominada condensao livre (Heisenberg, 1996, p. 7). Nele, encon-tramos um trecho que, fora do contexto, parece no dizer muito:

    Sinto-me fascinado pela ideia de que a simetria seja algo muito mais fundamen-

    tal do que a partcula em si.Isso se enquadra no esprito da teoria quntica, tal comoBohr sempre a concebeu. Tambm se enquadra na filosofia de Plato, mas isso nointeressa agora (Heisenberg, 1996, p. 193, grifo nosso).

    21 A considerar as anlises de Chibeni (1997, p. 16) e de Dutra (2003, p. 42-3) sobre os argumentos antirrealistasacerca da subdeterminao das teorias pelas observaes, a insistncia de Heisenberg em declarar a Interpreta-o de Copenhague como a nica variante correta da teoria quntica, pois s ela levaria em conta certas caractersti-cas genunas da natureza, acabaria por aproxim-lo de um certo realismo, o que o distancia ainda mais do positi-vismo lgico.

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    Alm de recriar dilogos de seu prprio passado segundo sua opinio, Heisenbergreconstruiu, sob uma tica estritamente pessoal, a histria da fsica no sculo xx.

    A estratgia da condensao livre de seu livro de memrias foi utilizada por ele desdea dcada de 1950. O trecho destacado tpico: relaciona simetria, Bohr e Plato;a teoria quntica identificada com as ideias de Bohr e relacionada ao platonismo.

    Apesar do tom despretensioso, o trecho representa bem como se elaborou a criaodaquilo que se convencionou chamar de Interpretao de Copenhague. Ela seria a ni-ca interpretao legtima da teoria quntica, alm de ser a nica filosoficamente acei-tvel, pois reintroduzia o idealismo na fsica.

    Segundo Mara Beller, as opinies filosficas dos fundadores da Interpretao deCopenhague so marcadas por inconsistncias e mudanas, em funo das circuns-

    tncias tericas e sociopolticas. O prprio Bohr mudou suas ideias sobre a mecnicaquntica com o passar dos anos. Beller elaborou uma lista das inmeras tentativas depesquisadores em enquadrar o pensamento de Niels Bohr sob um nico termo. O re-sultado foi uma srie de interpretaes conflitantes, todas elas com boa evidncia tex-tual (Beller, 1996, p. 183), e que inclui desde a avaliao de Popper, que consideraBohr um subjetivista, at Feyrerabend que o considera um defensor do objetivismo.Pesquisadores recentes se dividem: para Murdoch (1994), Bohr seria um realista, en-quanto para Faye (1994), ele seria um antirrealista.

    Diante desse cenrio, a opo metodolgica de Beller (1996, p. 183), consoante

    opo adotada aqui frente s inconsistncias da filosofia de Heisenberg, evitar a am-bio de eliminar as inconsistncias.22 A partir de uma anlise mais detalhada, re- vela-se que a Interpretao de Copenhague no possui a consistncia e homoge-neidade sugeridas pelos relatos de Heisenberg. Outros autores, como Pessoa Jnior(2005, p. 97) e Howard (2004),23 tambm enfatizam a ausncia de uma coerncia en-tre os criadores da mecnica quntica e defendem que a Interpretao de Copenhague uma criao tardia. Howard chega a afirmar que, nos escritos de Bohr, no se endossa

    22 Enquanto estudiosos tm investido competncia e engenhosidade em fornecer a Bohr uma posio consistente,adoto uma atitude diferente e aceito que as opinies conflitantes de realismo e positivismo (nas verses instrumen-talistas de Bohr e operacionalistas de Heisenberg) so ambas inegavelmente presentes. Meu objetivo no curaressa esquizofrenia [...] eliminando as inconsistncias, mas analisar as fontes, usos e propsitos de tais desvios nasposies filosficas (Beller, 1996, p. 184-5).23 Aquilo que chamado de Interpretao de Copenhague corresponderia apenas em parte ao ponto de vista deBohr (...). Muito do que tido como Interpretao de Copenhague encontrado nos escritos de Werner Heisenberg,mas no em Bohr. De fato, Bohr e Heisenberg discordaram de modos importantes e profundos. A ideia de que exis-tiria um ponto de vista unitrio uma inveno do ps-guerra, de responsabilidade, em grande parte, de Heisenberg(Howard, 2004, p. 669-70).

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    grande parte do que considerado como Interpretao de Copenhague;24 a concepode um ponto de vista unitrio relativo aos fsicos do eixo CopenhagueGttingen seriaum mito ps-guerra, uma criao de Heisenberg em 1955, com a introduo do ter-mo Interpretao de Copenhague.25

    24 No h colapso do pacote de onda, no h antirrealismo, nem subjetivismo. A interpretao da complementari-dade de Bohr no o que passou a ser posteriormente considerado como a Interpretao de Copenhague (Howard,2004, p. 675).25 Vale notar que o texto no qual se teve a gnese da Interpretao de Copenhague (Heisenberg, 1955) foi a parti-cipao de Heisenberg em um volume em homenagem a Bohr, organizado por Pauli e Rosenfeld.

    Figura 6. Max Born e Werner Heisenberg discordavam profundamente

    de Einstein a respeito da mecnica quntica (Fonte: Robson, 2005, p. 96).

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    No se deve ignorar, nesse debate, o fator relacionado com o surgimento de in-terpretaes concorrentes, como o caso da teoria de David Bohm. O retorno de umateoria ligada aos parmetros da fsica clssica, to similar, em seus pressupostos fi-losficos, mecnica ondulatria a ponto de permitir o retorno de trajetrias e deuma visualizao26 que se considerava perdida no pode ser descartada como umadas motivaes de Heisenberg no estabelecimento de um corpus de teses bem esta-belecidas acerca da teoria quntica. Mais do que uma forma de combater as crticasfrente interpretao ortodoxa, o uso que Heisenberg fez da filosofia seria uma ma-neira de fornecer legitimidade e consistncia filosfica e histrica Interpretaode Copenhague.

    Logo, o uso que Heisenberg faz de algumas noes da filosofia grega no decor-

    rer de sua carreira parece endossar a seguinte tese: at os anos 1940, as ideias acercados termos platnicos dinoia, epistme e a oposio entre materialismo e idealismoservem apenas como crtica cincia anterior descoberta do quantum de ao.

    Apenas no ps-guerra que esses termos so utilizados em um outro contexto, no caso,de legitimao da recm-criada Interpretao de Copenhague e desqualificao dasteses opostas.

    Independentemente de diferentes contextos histricos terem motivado impor-tantes mudanas no pensamento filosfico de Heisenberg o que produziu uma esqui-zofrenia, segundo Beller (1996, p. 183) considera-se que, a partir do uso que ele faz

    da filosofia grega, possvel extrair de cada uma dessas fases certos elementos refe-rentes a uma ontologia. Vejamos como isso se d a partir dos idos de 1930.No ano de 1933, Heisenberg escreve um texto (cf. 1952a), que produto de uma

    preleo dada no ano anterior. um texto tpico do perodo de divulgao da teoriaquntica e no existe nenhuma meno a uma Interpretao de Copenhague. Mas otexto todo perpassado por uma crtica direta cincia moderna, seu vis materialistae adoo de uma descrio da natureza em detrimento de uma interpretao danatureza. A relao de excluso mtua entre a dinoia e a epistme no decorrer dahistria da cincia moderna tambm j se apresenta nele. No entanto, no se faz men-

    o a uma interpretao especfica da mecnica quntica que se ligue a um desses ter-mos platnicos.

    Mesmo que de maneira negativa, existe uma ontologia que indiretamente podeser extrada desse texto, pois a crtica que surge dessas pginas no contra o realismo,

    26 Antes da mecnica quntica, se olharmos para as teorias bem sucedidas da fsica, todas eram suscetveis ape-sar disso no ser exigido a uma estria causal de figura [causal pictures story], para falar de modo figurado. E tradi-cionalmente dizia-se que a mecnica quntica mostrava que isso no poderia mais ser feito. Mas a veio Bohm emostrou que poderia sim! (Cushing, 2000, p. 17).

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    mas sim contra uma de suas variedades, o realismo classicista: a tese de que a realida-de tem uma estrutura prxima s nossas concepes e intuies clssicas a respeito domundo (Pessoa Jnior, 2005, p. 104). Era esse o realismo que posteriormente foi ta-xado de ontologia do materialismo por Heisenberg e que foi superado com o nasci-mento da teoria quntica. Pessoa Jnior (2005, p. 104) cita uma srie de suposiesclassicistas que so violadas por alguma interpretao da teoria quntica e que socriticadas por Heisenberg nesse texto: o corpuscularismoseria uma herana do atomismohelnico; a tese de que o mundo existe em quatro dimenses no tem sentido no mundoquntico em funo do carter abstrato da funo de onda. Esse texto de 1933 traz emseu bojo imagens de uma ontologia que no tem mais validade para Heisenberg, umaespcie de ontologia negativa, decorrente da austeridade epistmica da mecnica

    matricial e da influncia de Bohr e de seus interditos epistemolgicos, o que explica aausncia de imagens positivas quanto ao que se pode falar acerca do mundo quntico. somente em 1937, que Heisenberg (cf. 1952b) estabelece a oposio entre o

    materialismo dos atomistas gregos e o pitagorismo do Timeu, inclusive aproximandoeste ltimo ideia de tomo que surgiu na fsica moderna. Apesar do foco do textoresidir na inadequao da imagem tradicional do tomo herdada de Leucipo e Dem-crito frente ao tomo da fsica moderna, a aproximao entre o tomo e as estruturasmatemticas platnicas pode ser considerada um movimento em direo a proposi-es positivas quanto ontologia do mundo quntico. Entretanto, ainda permanece

    a separao entre as restries epistemolgicas do estilo instrumentalista, pedra detoque da filosofia do eixo Copenhague-Gttingen, e tais observaes realistas. Heisen-berg, mesmo que houvesse percebido essa contradio entre as duas teses, no elabo-rou nenhum tipo de resoluo dela.

    Na dcada de 1940, em funo do incio da proliferao de partculas elementa-res, Heisenberg acrescenta um argumento que se tornaria recorrente a partir dessapoca: a relao entre a energia e a arch dos pr-socrticos. Mais uma guinada na di-reo de uma ontologia positiva: as partculas elementares, tijolos ltimos da mat-ria, so a combinao das simetrias com a energia, o mais prximo que se tem para um

    substrato material que Heisenberg j havia proposto. Mas o fantasma do materialismo mantido a distncia fazendo-se recurso ao conceito de arch, aliando Aristteles ePlato: energia e simetrias coadunam-se do mesmo modo que matria (hyl) e forma(morph) conjugadas (cf. Heisenberg, 1952, p. 95-108).

    Em meio s turbulncias da Segunda Guerra Mundial, entre maio de 1941 e ofim de 1942, Heisenberg redige o manuscrito Ordnung der Wirklichkeit (A ordenao darealidade) que s foi publicado bem posteriormente em 1984. Se os textos filosficosdo fsico alemo sempre foram pautados pela brevidade e por certa falta de compro-misso com a sistematicidade de suas ideias, o mesmo no se aplica a esse manuscrito

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    (cf. Heisenberg, 1998). Ao contrrio da maioria de seus artigos, derivados de palestrase seminrios para pblicos no-especializados, esse texto foi escrito com fins pesso-ais, uma maneira de fazer entender como a obra de sua vida se harmoniza com o todo(Cassidy, 1991, p. 448). As palavras de Chevalley deixam claro o valor do manuscrito esua importncia: o manuscrito de 1942 acima de tudo um escrito filosfico e consti-tui a elaborao mais densa e sinttica das ideias de Heisenberg sobre a significaoepistemolgica da fsica contempornea e sobre o problema do conhecimento em ge-ral (1998, p. 11).

    Dois princpios estruturam os argumentos do manuscrito: a diviso em nveisde realidade relacionados e um esvaziamento do papel dos conceitos de espao e tem-po em suas acepes clssicas. Apesar de sua importncia, o texto praticamente no se

    refere filosofia helnica, o que evidencia um enfoque diferenciado de Heisenberg nadefesa filosfica da Interpretao de Copenhague.No ps-guerra, iniciava-se um novo perodo de turbulncia para os defensores

    do esprito de Copenhague da teoria quntica. Einstein mantinha-se irredutvel emsuas reservas quanto teoria quntica nos moldes de Copenhague. Fsicos do outrolado da Cortina de Ferro, alm de tecerem crticas contra a interpretao usual, propu-nham modelos alternativos inspirados no materialismo dialtico. Por fim, como vi-mos, o jovem David Bohm elabora uma teoria que parece ir de encontro a todos os pre-ceitos e restries duramente elaborados e divulgados desde o fim dos anos 1920.

    nesse perodo que o uso que Heisenberg faz da filosofia grega sofre sua grandeestruturao. Os ataques aos antigos e novos opositores da Interpretao de Copenha-gue tornam-se explcitos. A noo de ontologia do materialismo, que articula a filo-sofia de Descartes com o atomismo de Demcrito, ambas conduzindo ao materialismodo sculo xix, tambm surge nessa poca.

    Como no bastava apenas atacar os opositores, mas legitimar essa Interpreta-o, Heisenberg elabora a viso segundo a qual, como tambm foi visto, a histria dacincia perpassada pela oposio entre duas filosofias de matriz grega: o materialis-mo e o idealismo. Este ltimo, nomeado assim pela primeira vez em um texto de 1958

    (Heisenberg, 2004, p. 14), liga-se ao pitagorismo e concepo de matria apresenta-da no Timeu. O idealismo s retornou cincia, segundo Heisenberg, aps 1900, com adescoberta do quantum de ao por Planck, sendo ele a nica filosofia capaz de abarcaros fenmenos peculiares da nova fsica.

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    Concluso

    A oscilao entre epistemologia e ontologia na obra de Heisenberg pode ser descritacomo uma tenso entre as restries epistemolgicas, que o acompanham desde a in-

    veno da mecnica quntica, e a sua busca por um contedo ontolgico que no re-corresse s imagens do materialismo. Para lidar com esse impasse e conciliar as res-tries epistemolgicas que a mecnica quntica imps fsica clssica com umaontologia mnima, Heisenberg prope uma nova realidade fsica objetiva (Cheval-ley, 1992, p. 128), utilizando-se dos conceitos de potncia e ato de Aristteles27 e,curiosamente, de conceitos probabilistas. Seria um modo de estabelecer o equilbrioentre dinoia formalista e a crena realista em estruturas matemticas, como as des-

    critas no Timeu.Ao tratar de um dos problemas mais espinhosos da mecnica quntica, o proble-ma da medio e do colapso do pacote de onda,28 Heisenberg consegue harmonizarduas tendncias em seu pensamento que se mostravam incomunicveis. Suas restri-es epistemolgicas acerca da possibilidade do uso de grandezas que no fossemobservveis acabaram por coadunar-se com sua busca por uma ontologia no-mate-rialista e sua rejeio do realismo classicista, passando a receber um tratamento

    27 As referncias a Aristteles so acompanhadas pelo uso dos conceitos de dnamis e enrgeia tradicionalmente

    traduzidos como potncia e ato, respectivamente. Heisenberg interpretou esses dois conceitos do seguinte modo:Na filosofia de Aristteles, a matria foi imaginada na relao entre forma e matria. Tudo o que percebemos nomundo dos fenmenos, nossa volta, matria que encontrou sua forma. A matria no uma realidade por simesma, mas s uma possibilidade, uma potentia; somente a forma lhe dar existncia. Em um processo natural,a essncia (para usar a expresso aristotlica) passa de mera possibilidade realidade, pela presena da forma.A matria aristotlica certamente no uma matria especfica, como gua ou ar, nem tampouco o vazio; ela umtipo de substrato corpreo indefinido, que tem em si a possibilidade de vir-a-ser ao se consubstanciar na forma(Heisenberg, 2004, p. 14).28 Pessoa Jnior expe de maneira bastante clara o problema da medio na teoria quntica. A mecnica quntica,escreve ele, pode ser estruturada da seguinte maneira. Um sistema fechado descrito por um estado que evolui notempo de maneira determinista (de acordo com a equao de Schrdinger). Ao contrrio da mecnica clssica, esse

    estado em geral fornece apenas as probabilidades de se obterem diferentes resultados de uma medio. Aps amedio, o sistema passa a se encontrar em um novo estado, estado este que depende do resultado obtido. Assim,pode-se dizer que no decorrer da medio o sistema evoluiu de maneira indeterminista. Essa transio tem sidochamada de colapso do pacote de onda ou reduo de estado, sendo descrita pelo postulado da projeo de vonNeumann. O chamado problema da medio surge da oposio entre uma evoluo determinista regida pela equa-o de Schrdinger e a evoluo indeterminista descrita pelo postulado da projeo. Essa oposio torna-se umproblema quando se assumem duas hipteses: (1) um estado quntico pode ser atribudo ao aparelho de mediomacroscpico (podendo incluir o observador consciente); (2) o sistema composto (que inclui o objeto e o apare-lho) pode ser considerado fechado em relao ao meio ambiente. Neste caso, o sistema composto deveria evoluir demaneira determinista (pois seria um sistema quntico fechado), mas ao mesmo tempo estariam ocorrendo redu-es de estado indeterministas durante as medies efetuadas pelo aparelho no objeto. Como conciliar estas duaspossibilidades contraditrias? (1992, p. 178).

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    aristotlico a partir da dcada de 1950. O caminho na direo dessa nova realidade f-sica ou, em outras palavras, a busca por um contedo ontolgico nas estruturas mate-mticas da teoria quntica, fica ntida quando Heisenberg afirma que as ondas de pro-babilidade introduziam algo entre a ideia de evento e o evento real, isto , um tipoestranho de realidade fsica a mediar entre possibilidade e realidade (Heisenberg,1995, p. 36).

    O que resta ento? Aps todas as interdies epistemolgicas, existe algum m-nimo rastro de uma ontologia do mundo quntico na viso de Heisenberg? Ao distin-guir a Interpretao de Copenhague do positivismo, que toma as percepes senso-riais do observador como elementos bsicos da realidade, o fsico alemo afirma quea Interpretao de Copenhague considera as coisas e processos (passveis de uma

    descrio clssica), isto , o real, como o fundamento de toda a interpretao fsica.O real, contudo, no o do materialismo: alm de coisas, ele composto por pro-cessos. O fato de nosso conhecimento ser incompleto por si mesmo, em funo dasleis qunticas, no evita a possibilidade de postulao da existncia desse real. No lu-gar dos pontos materiais, do imprio da resextensa, Heisenberg v processos e sime-trias fundamentais essencialmente platnicas, tidas por ele como uma caractersticagenuna da natureza (Heisenberg, 1995, p. 111).

    O que se pode concluir dessa anlise at os idos da dcada de 1950? Parece serpossvel afirmar que Heisenberg apoia-se na filosofia, especialmente na filosofia pla-

    tnica, como um recurso retrico para estabelecer o que se chamou a Interpretao deCopenhague ou, mais ainda, o uso que ele fez da filosofia grega pode ser consideradocomo um dos principais elementos na construo de uma doutrina homognea e uni-tria dessa interpretao. Se, por um lado, Plato uma referncia positiva, Demcritoe Leucipo, assim como Descartes, so utilizados como referncias negativas, uma minfluncia na compreenso dos prprios conceitos fsicos, especialmente da nova teo-ria dos fenmenos atmicos. A repartio da histria da cincia em uma tendncia ato-mista/materialista em contraposio a uma platnica/idealista com um privilgio dasestruturas matemticas, via os grupos de simetria serve no apenas a uma melhor

    compreenso da mesma, mas tambm funciona como uma estratgia de desqualifica-o de interpretaes concorrentes da Interpretao de Copenhague.

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    Anderson LeitePesquisador do Grupo de Lgica e Filosofia da Cincia,

    Universidade de Braslia, Brasil.

    [email protected]

    Samuel SimonProfessor Adjunto do Departamento de Filosofia,

    Universidade de Braslia, Brasil.

    [email protected]

    abstractThis article discusses Werner Heisenbergs use of ancient Greek philosophy in the debates about quan-tum theory that occurred during the first half of the 20 th century. For Heisenberg, science was deter-mined by two concurrent streams of thought that arose in ancient Greece: materialism and idealism.Starting from this separation, Heisenberg not only develops his criticism of the opponents of the Copen-hagen interpretation, but also philosophically justifies his own theses regarding quantum mechanics.

    Although his philosophical conceptions are not themselves open to complete systematization, the rela-tion that Heisenberg established between Greek philosophy and the problems of quantum theory finallyresulted in an interpretation of physical reality, which is deeply marked by a kind of Platonism and anincipient mathematical structuralism.

    Keywords: Quantum mechanics. Quantum theory. Werner Heisenberg. Copenhagen interpretation.Platonic philosophy. Idealism. Materialism.

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